MARX, Karl - Sobre a Questão Judaica (Boitempo)

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  • SOBRE A QUESTO JUDAICA

  • Karl Marx

    SOBRE A QUESTO JUDAICA

    Inclui as cartas de Marx a Ruge publicadas nos Anais Franco-Alemes

    Apresentao e posfcioDaniel Bensad

    Traduo de Karl MarxNlio Schneider

    Traduo de Daniel BensadWanda Caldeira Brant

  • Copyright da traduo Boitempo Editorial, 2010

    Traduo do original alemo Zur Judenfrage, em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke (Berlim, Karl Dietz, 1976, v. 1), p. 347-77

    Posfcio de Daniel Bensad: traduo do francs Dans et par lhistoire. Retours sur la Question juive, em Karl Marx, Sur la question juive (Paris, La Fabrique, 2006), p. 74-135

    Coordenao editorial Ivana Jinkings

    Editora-assistente Bibiana Leme

    Assistncia editorial Elisa Andrade Buzzo e Gustavo Assano

    TraduoNlio Schneider (Karl Marx) e Wanda Caldeira Brant (Daniel Bensad)

    Preparao Edison Urbano

    Reviso Frederico Ventura e Vivian Miwa Matsushita

    Diagramao Silvana Panzoldo

    CapaAntonio Kehl

    sobre desenho de Loredano

    Ilustrao da pgina 2Marx sendo preso em Bruxelas (N. Khukov, dcada de 1930)

    vedada, nos termos da lei, a reproduo de qualquer parte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    Este livro atende s normas do acordo ortogrfico em vigor desde janeiro de 2009.

    1a edio: abril de 2010

    BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 37305442-000 So Paulo SP

    Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869editor@boitempoeditorial.com.brwww.boitempoeditorial.com.br

    CIPBRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M355sMarx, Karl, 18181883 Sobre a questo judaica / Karl Marx ; apresentao [e posfcio] Daniel Bensad; traduo Nlio Schneider, [traduo de Daniel Bensad, Wanda Caldeira Brant]. So Paulo : Boitempo, 2010. (Coleo MarxEngels) Traduo de: Zur Judenfrage Cronologia ISBN 9788575591444 1. Bauer, Bruno, 18091882. 2. Judeus Histria 17891945. I. Bensad, Daniel, 1946. II. Ttulo. III. Srie.

    100627. CDD: 335.4 CDU: 330.85

    09.02.10 18.02.10 017582

  • NOTA DA EDITORA ...........................................................................................................7

    ApREsENTAO, Daniel BensadZur Judenfrage, uma crtica da emancipao poltica .......................................................9

    Os Anais FrancoAlemes ou a guinada parisiense de Marx ............................................25

    sOBRE A quEsTO juDAIcAI. Bruno Bauer, Die Judenfrage [A questo judaica].........................................................33

    II. Bruno Bauer, Die Fhigkeit der heutigen juden und christen, frei zu werden [A capacidade dos atuais judeus e cristos de se tornarem livres] ...............................54

    cARTAs DOs AnAis FrAncoAlemes (de Marx a Ruge) ..............................61

    pOsFcIO, Daniel Bensad ...........................................................................................75Na e pela histria. Reflexes acerca de sobre a questo judaica ...............................75

    Trs crticas de sobre a questo judaica .........................................................................75A emancipao e a verdadeira democracia .................................................................86O homem do dinheiro? ..................................................................................................93A questo em suspenso ..................................................................................................99A concepo materialista da questo ...........................................................................104Desassimilao e narcisismo comunitrio ....................................................................114Os novos telogos ........................................................................................................116

    cRONOlOgIA REsuMIDA .........................................................................................121

    NDIcE ONOMsTIcO ................................................................................................137

    suMRIO

  • 7NOTA DA EDITORA

    sobre a questo judaica escrito por Marx em 1843 e publicado no nmero nico e duplo dos DeutschFranzsische Jahrbcher [Anais Franco-Alemes], em fevereiro de 1884 o oitavo volume das obras de Karl Marx e Friedrich Engels lanado pela Boitempo. A coleo teve incio com a edio comemorativa dos 150 anos do manifesto comunista, em 1998, contendo uma introduo de Osvaldo coggiola e textos de especialistas como Antonio labriola, jean jaurs, Harold laski a respeito de suas mltiplas facetas. Em seguida publicamos A sagrada famlia traduzida por Marcelo Backes, em 2003 , obra polmica que assinala o rompimento definitivo de Marx e Engels com a esquerda hege-liana. Os manuscritos econmicofilosficos (ou manuscritos de Paris) vieram na sequncia, traduzidos por jesus Ranieri, aos quais se seguiram os lanamen-tos de crtica da filosofia do direito de Hegel, traduzida por Rubens Enderle e leonardo de Deus; sobre o suicdio, traduzido por Rubens Enderle e Francisco Fontanella, com ensaio de Michael lwy intitulado um Marx inslito; A ideologia alem (completa), traduzida por Rubens Enderle, Nlio schneider, luciano Martorano, com superviso de leandro Konder e apresentao de Emir sader; e, por ltimo, A situao da classe trabalhadora na inglaterra, de Engels, traduzida por B. A. schumann e supervisionada por jos paulo Netto, autor tambm do prefcio obra. para completar, as capas de cada um dos ttulos desta srie trazem ilustrao indita do genial cssio loredano.

    Esta edio foi preparada a partir do original alemo Zur judenfrage, em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke (Berlim, Karl Dietz, 1976, v. 1), p. 347-77. As cartas enviadas por Marx a Arnold Ruge em 1843, tambm integrantes dos Anais Franco-Alemes, foram vertidas do mesmo original (p. 337-46). A tradu-o de Nlio schneider mantm a forma grfica do texto alemo, ou seja, a pontuao, os itlicos e destaques so rigorosamente respeitados. No que diz

  • 8Nota da editora

    respeito ao uso de aspas em ttulos de livros e ao uso de itlico para destacar autores, obras ou palavras especficas, seguimos o original de Marx ainda que por vezes isso fira as normas editoriais da Boitempo , na medida em que o uso do itlico tem, para ele, muitas vezes a funo de chamar a ateno para aquilo que est dizendo, citando ou referindo; e esse destaque ficaria enfra-quecido se assinalssemos tambm as obras que o autor no pretende por alguma razo destacar.

    A apresentao de Daniel Bensad filsofo e militante poltico francs falecido em janeiro de 2010, quando finalizvamos esta edio foi adap-tada e atualizada, pelo autor, do texto publicado em sur la question juive (paris, la Fabrique, 2006), de onde tambm traduzimos o ensaio Na e pela histria. Reflexes acerca de sobre a questo judaica. Os textos de Bensad, traduzidos do francs por Wanda caldeira Brant, contextualizam os escritos de Marx para quem a questo judaica pretexto para explorar os limites da emancipao poltica e retomam antigas polmicas, como a do suposto antissemitismo do filsofo alemo. para melhor esclarecimento dos leitores, a Boitempo disponibiliza em seu site na internet os artigos de Bruno Bauer que originaram a resenha crtica de Marx (buscar a pgina deste livro em http://www.boitempoeditorial.com.br/colecao_marx.php).

    As notas de rodap dos textos de Marx, numeradas, diferenciam-se quando so da edio brasileira (N. E. B.), da edio alem (N. E. A.), da edio inglesa (N. E. I.) ou da traduo (N. T.). Nos ensaios de Bensad, as notas numeradas so do autor; as da traduo brasileira aparecem assinaladas com asterisco. para destacar as inseres do tradutor ou da editora nos textos originais fizemos uso de colchetes. Esse recurso foi utilizado tambm quando nos pareceu necessrio esclarecer passagens, traduzir termos escritos pelo autor em outras lnguas, que no o alemo, ou ainda ressaltar expresses no original cujo significado poderia suscitar interpretao divergente. quando, nas citaes em recuo, Marx adotou transcries em outras lnguas, mantivemos dessa forma no corpo do texto e inserimos a traduo no rodap. Nas citaes bibliogrficas, sempre que foi possvel acrescentamos referncias de edies brasileiras ou em portugus.

    Nossa publicao vem ainda acompanhada de um ndice onomstico das personagens citadas nos textos de Marx e de uma cronobiografia resumida de Marx e Engels que contm aspectos fundamentais da vida pessoal, da mili-tncia poltica e da obra terica de ambos , com informaes teis ao leitor, iniciado ou no na obra marxiana.

    ivana Jinkingsabril de 2010

  • 9ApREsENTAO

    Zur Judenfrage, uma crtica da emancipao poltica

    Agradeo muitssimo a Stathis Kouvlakis e a Jacques Aron por seus trabalhos que possibilitaram esta edio crtica de

    Zur Judenfrage, assim como a Elfried Mller por sua leitura atenta.

    Daniel Bensad

    publicado em paris, na primavera de 1844, no nico nmero dos Anais FrancoAlemes, o artigo Zur judenfrage [sobre a questo judaica], de Marx, marca um momento crucial de sua mudana intelectual e poltica.

    Em 1842 surge, em colnia, a rheinische Zeitung [gazeta Renana]. Nela, Karl Marx publica seus primeiros artigos contestatrios sobre a liberdade de imprensa. Em outubro, torna-se seu redator-chefe, e o nmero de assinaturas passa rapidamente de mil para 3 mil. Essa atividade pe o jovem Marx diante de problemas econmicos e sociais, tais como a questo do furto de madeira e a situao dos camponeses de Moselle. As esperanas de liberalizao susci-tadas pela ascenso de Frederico guilherme IV ao trono da prssia, em 1840, foram logo frustradas com a adoo das leis de 1841 sobre a censura. proibida em janeiro, a Gazeta renana deixa de ser publicada no dia 17 de maro de 1843. O ltimo nmero inclui uma nota de demisso de Marx, impressa em vermelho como forma de protesto.

    pensando em exilar-se, quando a proibio foi anunciada, escreveu a Arnold Ruge:

    lamentvel testemunhar trabalhos servis, mesmo que em nome da liberdade, e lutar com alfinetadas e no com cacetadas. Estou cansado de hipocrisia, de estupidez, de autoridade brutal. Estou cansado de nossa docilidade, de nossa obsequiosidade, de nossos recuos, de nossas querelas por meio de palavras. Nada posso fazer na Alemanha. Aqui, falsifica-se a si mesmo.1

    casou-se com jenny de Westphalen, em Kreuznach, no dia 19 de junho de 1843. Durante o vero, redigiu o chamado Manuscrito de Kreuznach,

    1 Karl Marx, carta a Arnold Ruge, 25 jan. 1843, em correspondance (paris, ditions sociales, 1978, tome I), p. 280.

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    Apresentao

    ou crtica da filosofia do direito de Hegel. Nesse texto, ajusta contas com a filosofia do direito de Hegel e reflete sobre a incapacidade deste de resolver a questo da relao da sociedade civil burguesa com o Estado.

    O ano de 1843 de uma crise em torno da qual gira a trajetria marxiana2. uma srie de textos marca essa passagem do jovem Marx do liberalismo renano e do humanismo antropolgico para a luta de classes e a revoluo permanente: crtica da filosofia do direito de Hegel 3, sobre a questo judaica, crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo*, as cartas a Ruge e, depois, manuscritos econmicofilosficos **, A sagrada famlia***, escrito com Engels, com quem se reencontrou em paris no vero de 1844.

    Trs cartas a Arnold Ruge, editor dos Anais Alemes (tambm proibidos pela censura), com quem ele planeja a edio de uma revista franco-alem, revelam seu estado de esprito e sua evoluo rpida durante o ano crucial de 1843:

    A nossa parte nisso tudo trazer o velho mundo inteiramente luz do dia e dar uma conformao positiva ao novo mundo. quanto mais os eventos derem tempo humanidade pensante para se concentrar e humanidade sofredora para juntar foras, tanto mais bem-formado chegar ao mundo o produto que o presente carrega no seu ventre.4

    consequentemente,a vantagem da nova tendncia justamente a de que no queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar o novo mundo a partir da crtica ao antigo. [...] A filosofia se tornou mundana e a prova cabal disso que a prpria conscincia filosfica foi arrastada para dentro da agonia da batalha, e isso no s exteriormente, mas tambm interiormente. Embora a construo do futuro e sua consolidao definitiva no seja assunto nosso, tanto mais lquido e certo o que atualmente temos de realizar; refiro-me crtica inescrupulosa da realidade dada; inescrupulosa tanto no sentido de que a crtica no pode temer os seus prprios resultados quanto no sentido de que no pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos. [...]

    2 stathis Kouvlakis, Philosophie et rvolution: de Kant marx (paris, puF/Actuel Marx, 2003).

    3 Karl Marx, critique de ltat hglien (paris, ugE, 1976, coleo 10/18). [Ed. bras.: crtica da filosofia do direito de Hegel, trad. Rubens Enderle e leonardo de Deus, so paulo, Boitempo, 2005. Esse manuscrito de Marx, que s foi publicado postumamente em 1927, tambm conhecido como manuscrito de 1843. N. E. B.]

    * Ed. bras.: Idem, crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, em crtica da filosofia do direito de Hegel, cit. (N. E. B.)

    ** Ed. bras.: Idem, manuscritos econmicofilosficos (trad. jesus Ranieri, so paulo, Boitempo, 2004). (N. E. B.)

    *** Ed. bras.: Karl Marx e Friedrich Engels, A sagrada famlia (trad. e notas de Marcelo Backes, so paulo, Boitempo, 2003). (N. T.)

    4 Karl Marx, carta a Arnold Ruge, mai. 1843. Ver p. 69-70.

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    Sobre a questo judaica

    sendo assim, no sou favorvel a que finquemos uma bandeira dogmtica; ao contrrio. Devemos procurar ajudar os dogmticos a obter clareza quanto s suas proposies. Assim, sobretudo o comunismo uma abstrao dogmtica, e no tenho em mente algum comunismo imaginrio ou possvel, mas o comunismo realmente existente, como ensinado por cabet, Dzamy, Weitling etc.5

    A religio e a poltica, naquele momento, constituem os objetos centrais do interesse da Alemanha: preciso partir desses objetos, como quer que se apresentem, e no contrapor-lhes algum sistema pronto, como, por exemplo, o de Voyage en icarie6. para a Alemanha, a crtica da religio encontra-se fundamentalmente acabada, escreveu Marx pouco depois, em sua crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo. hora, ento, da crtica da poltica, do direito, do Estado, da ciso entre a sociedade civil e o Estado, do salto mortal entre o mundo do egosmo privado e o do interesse geral ilusrio. A partir de ento, o objeto da crtica o conflito do Estado poltico consigo mesmo, do qual se trata de extrair a verdade social. Assim, o combate em favor das liberdades pblicas no mbito do Estado parece importante, mas no um objetivo em si ou a forma definitiva da verdade social7. limitado ao plano especfico do Estado, separado da sociedade civil, ele leva simplesmente a uma revoluo parcial, a uma revoluo apenas poltica, que deixa intatos os pilares da casa:

    Nada nos impede, portanto, de vincular nossa crtica crtica da poltica, ao ato de tomar partido na poltica, ou seja, s lutas reais, e de identificar-se com elas. Nesse caso, no vamos ao encontro do mundo de modo doutrinrio com um novo princpio: Aqui est a verdade, todos de joelhos! [...]

    A reforma da conscincia consiste unicamente no fato de deixar o mundo interiorizar sua conscincia, despertando-o do sonho sobre si mesmo, explicandolhe suas prprias aes. Todo o nosso propsito s pode consistir em colocar as questes religiosas e polticas em sua forma humana autoconsciente.8

    O papel que Marx atribui aos revolucionrios ainda, por no confiar nos doutrinadores utpicos, o do pedagogo que revela a conscincia, mais do que o do estrategista:

    portanto, nosso lema dever ser: reforma da conscincia, no pelo dogma, mas pela anlise da conscincia mstica, sem clareza sobre si mesma, quer se apre-sente em sua forma religiosa ou na sua forma poltica. Ficar evidente, ento,

    5 Ibidem, set. 1843. Ver p. 71.6 Idem. Ver p. 71.Ver tambm pierre Macherey, lHomme productif (fotocpia, EMR sa-

    voirs et Textes, universit lille III). [Voyage en icarie, de 1840, um romance de tienne cabet (1788-1856), no qual o autor concebe uma ilha em que o comunismo se efetiva progressivamente. N. E. B.]

    7 pierre Macherey, lHomme productif, cit., p. 57.8 Karl Marx, carta a Arnold Ruge, set. 1843. Ver p. 72.

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    Apresentao

    que o mundo h muito tempo j possui o sonho de algo de que necessitar apenas possuir a conscincia para possu-lo realmente. Ficar evidente que no se trata de um grande hfen entre o passado e o futuro, mas da realizao das ideias do passado. por fim, ficar evidente que a humanidade no comea um trabalho novo, mas executa o seu antigo trabalho com conscincia.9

    A expanso do espao pblico por meio da liberdade de imprensa de fato tropea no despotismo. sendo assim proibida a passagem desejada da sociedade civil para o Estado, a crtica deste torna-se prioritria. surge ento um novo fetichismo, o do Estado poltico, ainda no articulado ao da mer-cadoria. Nos rascunhos de Kreuznach, Marx efetivamente descobriu na ciso entre Estado e sociedade civil a abstrao do Estado poltico como produto da modernidade10. A burocracia enquanto sacerdcio desse novo fetiche baseia-se na separao:

    As corporaes so o materialismo da burocracia, e a burocracia o espiri-tualismo das corporaes. A corporao a burocracia da sociedade civil; a burocracia a corporao do Estado [...] [Ela a] conscincia do Estado, a vontade do Estado, o poder do Estado encarnado numa corporao que forma uma sociedade particular e fechada dentro dele. A burocracia enquanto cor-porao perfeita vence as corporaes enquanto burocracias imperfeitas [...] O esprito burocrtico um esprito fundamentalmente jesuta, teolgico. Os burocratas so os jesutas e os telogos do Estado. A burocracia a repblica eclesistica.

    Ela se considera o objetivo final do Estado: Toda manifestao pblica do esprito poltico, at mesmo do esprito cvico, parece ento burocracia uma traio a seu mistrio. A autoridade o princpio de seu saber; e o culto da autoridade, seu modo de pensar.

    Disso Marx tira a evidente concluso:A supresso da burocracia s possvel se o interesse geral se tornar efetiva-mente e no como para Hegel puramente em pensamento, na abstrao o interesse particular, o que somente pode acontecer se o interesse particular se tornar efetivamente o interesse geral.11

    para isso, preciso repensar a separao. A sociedade civil j uma esfera privada, ou seja, separada do e oposta ao Estado. para adquirir importncia e eficcia polticas, deve deixar de ser o que , ou seja, deixar de ser privada. Esse ato poltico uma transubstanciao total, atravs da qual a sociedade civil deve renunciar completamente a ser ela prpria. Ora, a separao entre a sociedade civil e o Estado implica necessariamente a separao entre o cidado enquanto membro do Estado e o civil enquanto membro da sociedade civil: portanto, preciso que o indivduo efetue uma ciso essencial consigo. Ele

    9 Idem. Ver p. 72-3.10 Idem, critique de ltat hglien, cit., p. 111.11 Ibidem, p. 140-7.

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    Sobre a questo judaica

    leva ento uma vida dupla, por um lado, na organizao burocrtica e, por outro, na organizao social: A separao da sociedade civil e do Estado aparece necessariamente como um ato em que o cidado se separa da sociedade civil e de sua prpria realidade emprica; pois, enquanto idealista do Estado, ele um ser outro, diferente, distinto e oposto ao que na realidade12.

    Esse tema do desdobramento entre sociedade civil e Estado, homem e ci-dado, vai desempenhar um papel-chave na crtica da cidadania desenvolvida em sobre a questo judaica. Essa crtica no inteiramente nova. j figurava, em 1784, num artigo de Moses Mendelssohn intitulado ber die Frage: Was heisst Aufklrung?* [sobre a pergunta: O que quer dizer Esclarecimento?]:

    As luzes do homem enquanto homem podem entrar em conflito com as luzes do cidado. Algumas verdades teis ao homem enquanto homem podem, s vezes, nutri-lo enquanto cidado [...] Infeliz o Estado que deva reconhecer que, em seu seio, o destino essencial do homem no est em harmonia com o destino essencial do cidado.

    A anlise crtica dessa separao permite a Marx ir mais longe e pensar a emergncia do antagonismo de classes:

    A transformao propriamente dita dos estamentos polticos (stnde) em classes civis foi realizada na monarquia absoluta. A burocracia fazia valer a ideia da unidade entre os diferentes estamentos no Estado, mas a diferena social deles continuava a ser uma poltica dentro e ao lado da burocracia do poder governamental absoluto. Foi a Revoluo Francesa que concluiu a trans-formao dos estamentos polticos em classes sociais e reduziu as diferenas de status da sociedade civil a simples diferenas sociais concernentes vida privada, sem importncia na vida poltica. Assim, completou-se a separao da vida poltica e da sociedade civil.13

    Momentos decisivos na via de ultrapassagem do liberalismo radical e de suas iluses, a crtica da filosofia do direito de Hegel e o artigo sobre a ques-to judaica aprofundam a crtica do Estado poltico at a lgica expansiva de uma verdadeira democracia concebida como processo permanente. para atravessar esse trecho rumo a uma perspectiva revolucionria e descobrir a fora social capaz de conduzi-la, ser preciso esperar a crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo de 1844, publicada juntamente com sobre a questo judaica no nico nmero dos Anais FrancoAlemes. No entanto, a transio terica ainda no havia terminado:

    12 Ibidem, p. 201-3.* Moses Mendelssohn (1729-1786) foi um filsofo judeu do perodo do Iluminismo alemo.

    Nesse texto, enviado para o peridico Berlinischer monatschrifft [Mensrio berlinense], Mendelssohn se debrua sobre a mesma questo que Kant em seu famoso ensaio Resposta pergunta: que o Esclarecimento?, ao que mostram diversos pontos de concordncia. (N. E. B.)

    13 Karl Marx, critique de ltat hglien, cit., p. 207.

  • 14

    Apresentao

    Apesar de sua originalidade terica e seu alto teor poltico, a trajetria mar-xiana como estratgia de democratizao deduzida da resoluo dialtica da passagem sociedade/Estado nos recoloca tambm nas guas familiares da via alem: a revoluo legtima, mas tarefa dos outros; a misso de espi-ritualizao atribuda Alemanha permitir que ela escape das amarguras da tormenta revolucionria desfrutando ao mesmo tempo das conquistas; o reformismo estatal, ao qual a filosofia prtica investida no espao pblico serve de aguilho, permitir uma resoluo pacfica e produtiva das contradies. Em outras palavras, embora o lugar ocupado por Marx seja singular, no sai do mbito do que ele designar depois como a ideologia alem.14

    Ele ainda no sai dali, mas j est na soleira, ou na soleira da soleira.A troca do alfinete pela clava acelera ento sua mudana. prova disso a

    evoluo, em poucas semanas, da redao de sobre a questo judaica para a da crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo15:

    O sr. me olha com um meio sorriso nos lbios e pergunta: E o que se ganha com isso? Vergonha no leva a nenhuma revoluo. Eu respondo: A vergonha j uma revoluo; [...] Vergonha um tipo de ira voltada para dentro. E se toda uma nao realmente tivesse vergonha, ela seria como um leo que se encolhe para dar o bote.16

    A vergonha , ento, a tomada de impulso para o salto que Marx est prestes a dar diante da comdia do Antigo Regime que a Alemanha no para de representar sonhando filosoficamente com as revolues realizadas por seus vizinhos.

    Em menos de um ano, assiste-se assim passagem de uma estratgia de con-quista do espao pblico por meio da liberdade de imprensa (stahis Kouvlakis denomina-o o momento renano) para a revoluo radical (momento pa-risiense), passando pela verdadeira democracia (momento de Kreuznach). Nesse encadeamento, sobre a questo judaica situa-se na articulao do segundo e do terceiro momento. O artigo um preldio da guinada decisiva da

    14 stathis Kouvlakis, Philosophie et rvolution: de Kant marx, cit., p. 342. sobre essa mudana terica, ver tambm Michael lwy, la Thorie de la rvolution chez le jeune marx (paris, Maspero, 1970); Antoine Artous, marx, ltat et la politique (paris, syllepse, 1999); Miguel Abensour, la Dmocracie contre ltat. marx et le moment machiavlien (paris, puF, 1997); jacques Texier, rvolution et dmocratie chez marx et engels (paris, puF/Actuel Marx, 1998).

    15 Karl Marx, introduction la critique de la philosophie du droit de Hegel (edio comentada por stathis Kouvlakis, paris, Ellipses, 2000).

    16 Karl Marx, carta a Ruge, mar. 1843. Ver p. 63-4. Ao se referir ao salto do tigre em suas Teses sobre o conceito de histria, Walter Benjamin retomar, conscientemente ou no, esse tema do salto leonino. [Essas teses foram publicadas no Brasil com traduo de jeanne Marie gagnebin e Marcos lutz Mller em Michael lwy, Walter Benjamin: aviso de incndio: uma leitura das Teses sobre o conceito de histria, trad. Wanda caldeira Brant, so paulo, Boitempo, 2005 N. T.]

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    Sobre a questo judaica

    poltica concebida como revoluo permanente que ultrapassa, sem a renegar, a problemtica jacobina da cidadania. o sentido da ruptura que a crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo de 1844 traduz; nomeando o proletariado e selando sua aliana com a filosofia, ela proclama o mundo novo: Ela anuncia uma ruptura do tempo histrico, o momento em que o ainda no e o j, o cedo demais e o tarde demais se invertem e revelam sua verdade: a impossibilidade do momento exato, da coincidncia entre a coisa e seu tempo prprio17.

    No cabe retomar aqui esse texto denso, uma espcie de manifesto antes do manifesto do Partido comunista. Basta lembrar at que ponto ele vai alm de sobre a questo judaica, cuja publicao simultnea faz com que paream gmeos. constatando, desde as primeiras palavras, que a crtica da religio encontra-se fundamentalmente acabada, Marx pe na ordem do dia a crtica no religiosa. pois, o homem no uma essncia abstrata agachada fora do mundo; o homem o mundo do homem, o Estado, a sociedade que produzem a religio como conscincia invertida do mundo. A religio aparece, ento, como um fenmeno contraditrio, ao mesmo tempo expresso da misria real e protesto contra essa misria. por isso que o simples anticlericalismo burgus alimentado pelo positivismo republicano no vai ao fundo das coisas. Ele ataca a expresso da misria real sem levar em conta seu reverso de protesto legtimo e sem ir s razes dessa misria, em outras palavras, a um Estado que tem necessidade de iluses. Aps ter levado a termo a crtica da religio, urgente desmascarar a autoalienao humana em sua forma sagrada.

    A Alemanha, que compartilhou as restauraes dos povos modernos sem compartilhar com eles as revolues, marca passo diante dessa nova tarefa: Ns conhecemos restauraes, em primeiro lugar, porque outros povos ousaram fazer uma revoluo e, em segundo, porque outros povos submeteram-se a uma contrarrevoluo; a primeira vez porque nossos soberanos tinham medo, a segunda porque no o tinham. portanto, o regime alemo representa um anacronismo na Europa. Aos olhos do mundo, ele exibe apenas a nulidade do Antigo Regime e no mais que o comediante de uma ordem do mundo, cujos verdadeiros heris morreram. Ora, a comdia a ltima fase de uma forma da histria universal. Diante desse impasse histrico, a simples expanso das liberdades pblicas e a verdadeira democracia no so mais suficientes. chegou a hora de declarar guerra situao alem.

    Na crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, a dialtica das revolues europeias pressupe a ideia, ainda no explcita, do desenvolvimento desigual e combinado. Na atrelagem da triarquia europeia (Inglaterra, Frana, Alemanha), o atraso alemo obriga de fato a se colocar de outra maneira o problema fundamental dos tempos modernos: o das relaes do mundo da riqueza com o mundo poltico. A partir de ento, na Frana e na Inglaterra, a

    17 stathis Kouvlakis, Philosophie et rvolution: de Kant marx, cit., p. 408.

  • 16

    Apresentao

    alternativa entre economia poltica e dominao da riqueza pela sociedade; na Alemanha, a alternativa ainda entre economia nacional e dominao da nacionalidade pela propriedade privada. Na Frana e na Inglaterra, j se trata de abolir o monoplio, que foi at as ltimas consequncias; na Alemanha, ainda se trata de lev-lo at as ltimas consequncias. O nico elemento da vida alem realmente no diapaso de sua poca a filosofia do direito e do Estado. por isso os jovens hegelianos da crtica crtica lutam a contratempo, num cenrio filosfico em que, paul Nizan teria dito, filsofos fantasmas trocam golpes fantasmas. Eles no veem que a filosofia especulativa do direito e do Estado no mais possvel, exceto na Alemanha, enquanto pensamento abstrato e exaltado do Estado moderno, cuja realidade permanece num outro mundo, mesmo que este outro mundo se encontre simplesmente do outro lado do Reno. Em suma, na falta do que fazer, os alemes pensaram no que os outros povos fizeram, e a Alemanha foi a conscincia terica desses povos.

    A questo, doravante, saber se a Alemanha ser capaz de alar sua prtica altura de seus princpios, ou seja, a uma revoluo que a eleve no s ao nvel oficial dos povos modernos, mas at o nvel humano que ser o futuro prximo desses povos. Em outras palavras, a questo saber se os ltimos sero os primeiros. Marx retoma essa problemtica do desenvolvimento desigual e da no contemporaneidade nos manuscritos de 18571858 (Grundrisse), em o capital * e, no final de sua vida, em suas cartas a Vera Zassulitch sobre a revoluo na Rssia. Mas desde 1844, no se trata mais de refazer o caminho da Revoluo Francesa, de marchar sobre seus rastros, mas de empreender uma revoluo indita, inaudita, sem precedente. No se trata de obter somente a emancipao poltica, mas de atingir a emancipao humana. Ali, reaparecem os temas introduzidos em sobre a questo judaica. Exceto que nos textos dos Anais FancoAlemes de 1844 o vnculo poltico e estratgico entre os dois nveis de emancipao explicitamente colocado: sem dvida, a arma da crtica no pode substituir a crtica das armas, a fora material deve ser derrotada pela fora material, mas a teoria tambm se torna uma fora material quando ela se apodera das massas. uma revoluo alem radical tornou-se necessria. Ela no tem nada de sonho utpico. O que se torna realmente utpico a revoluo parcial, somente poltica, que deixaria de p os pilares da casa.

    A revoluo radical necessria coloca um problema ainda sem soluo. As revolues requerem um fundamento material; as necessidades tericas, a mediao de necessidades prticas: No basta que o pensamento leve realizao, a prpria realidade deve levar ao pensamento. portanto, uma revoluo radical deve ser a revoluo das necessidades radicais condu-zida por uma classe cujo estado determinado seja o estado do escndalo universal, e que tenha a audcia de proclamar, parafraseando sieys sobre

    * Karl Marx, o capital (trad. de Regis Barbosa e Flvio R. Kothe, 2. ed., so paulo, Nova cultural, 1985). (N. T.)

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    Sobre a questo judaica

    o Terceiro Estado: Eu no sou nada, eu deveria ser tudo. O cenrio ento construdo para uma peripcia que atualiza a possibilidade positiva da revo-luo alem. Trata-se da irrupo de uma classe com elos radicais, de uma classe da sociedade civil burguesa que no uma classe da sociedade civil burguesa; de um estado que a dissoluo de todos os estados sociais. Essa classe no reivindica um direito particular porque ela no est submetida a uma injustia particular, mas injustia enquanto tal. Ela no poderia ento emancipar-se sem emancipar todas as outras esferas da sociedade: Essa dissoluo da sociedade enquanto estado particular o proletariado. Entrada em cena ruidosa, mas entrada em cena filosfica. A classe que surge ainda no passa de uma hiptese conceitual que se supe responder ao enigma das revolues modernas. Ela encontrar seu contedo prtico (o verbo, sua carne) no contato com o proletariado parisiense e com a colaborao de Engels, que desembarcar vindo de Manchester, trazendo em suas bagagens as notas sobre a situao da classe trabalhadora na inglaterra*.

    Na Alemanha, o proletariado comea ento apenas a se formar com o surgimento do movimento industrial. pois no a pobreza resultante das condies naturais, mas a pobreza produzida artificialmente que produz o proletariado. portanto, uma nova pobreza. No a pobreza da penria ou de catstrofes naturais, mas uma pobreza propriamente social, gerada pelo grande vampiro moderno que ainda no tem nome, e ser denominado mais tarde: o capital. socialmente produzida, essa pobreza acarreta uma crtica da propriedade privada, da qual o proletariado exige a negao:

    uma vez iniciado o combate contra a classe que est acima dela, cada classe se engaja no combate contra a que se encontra abaixo; assim, o prncipe se encontra em luta contra a monarquia, o burocrata contra a nobreza, os bur-gueses contra todos eles, enquanto o proletrio j comea seu combate contra o burgus.

    A revoluo permanente ser, portanto, a resposta finalmente encontrada para o enigma do impossvel trmino da revoluo burguesa.

    V-se de fato, luz dessa crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, que sobre a questo judaica seu laboratrio e a questo que a precede; nela est esboada a crtica que Marx no vai parar de aprofundar at morrer. para ele, a questo judaica simplesmente a oportunidade e o pretexto para explorar os limites da emancipao poltica e para realizar sua crtica do Estado poltico. portanto, o texto de passagem, de transio na tran-sio, do aprendizado de um pensamento prestes a rejeitar a crtica crtica e sua sagrada famlia, para ir raiz das coisas por meio da crtica da economia poltica, para passar crtica das armas sem renunciar s armas da crtica.

    * Friedrich Engels, situao da classe trabalhadora na inglaterra (trad. de B. A. schumann, so paulo, Boitempo, 2008). (N. T.)

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    Apresentao

    sobre a questo judaica apresenta-se como uma resposta a Die Judenfrage [A questo judaica], publicado pela primeira vez em novembro de 1842 por Bruno Bauer nos Anais Alemes, e a seu artigo Die Fhigkeit der heutigen juden und christen, frei zu werden [A capacidade dos atuais judeus e cristos de se tornarem livres], publicado em 1843 nas einundzwanzig Bogen aus der schweiz [Vinte e um cadernos da sua ]18. Nele, Bauer sustentava que, na atual sociedade, a emancipao dos judeus exigia que anteriormente se emancipas-sem da teologia. para terem acesso cidadania no Estado constitucional, os judeus deveriam renunciar sua religio, sua pretenso de se constiturem um povo ancorado em sua essncia oriental, eternamente separado dos outros. sua emancipao somente seria possvel por meio de uma mudana total de sua essncia. A questo judaica era, consequentemente, apenas um aspecto da grande questo universal que nossa poca trabalha para resolver e os judeus somente seriam verdadeiramente emancipados quando tivessem renunciado ao judasmo e o Estado constitucional, ao cristianismo. O judas-mo no poderia exigir a abolio de outros privilgios sem renunciar ao de sua prpria eleio. para Bauer, a prpria essncia do judeu enquanto judeu, que o faz judeu antes de ser homem, no foi imposta pelas circunstncias externas, mas escolhida e desejada pelos judeus, excludos voluntariamente da sociedade comum por sua obstinao em cultivar sua singularidade religiosa e consequentemente responsveis pela opresso a que foram submetidos. logicamente, ele chama a uma converso teolgica, exigindo do judeu tirar o judeu da sua cabea (como os maostas de 1968 imaginaram que bastava

    18 sobre Die Judenfrage, de Bruno Bauer, e seu contexto, ver a excelente apresentao crtica de Massimiliano Tomba, la questione ebraca: il problema delluniversalismo politico, em Bruno Bauer, Karl marx: la questione ebraca (Roma, Manifestolibri, 2004). Tomba queixa-se, com razo, de que um bom nmero de marxistas somente conhea Bauer atravs da rplica polmica de Marx. Ele salienta que toda a reflexo de Bauer parte de categorias em estado de crise. Assim, o termo francs emancipao vai ocupar, na Ale-manha, o espao deixado vago pela destruio dos privilgios corporativos em prol da reivindicao dos direitos civis e polticos. Desde antes da publicao de sobre a questo judaica, essa reflexo inspira Der christliche staat und unsere Zeit (1841) [O Estado cristo e nossa poca] e Das entdeckte christentum: eine erinnerung an das achtzehnte Jahrhundert und ein Beitrag zur Krisis des neunzehnten (1843) [O cristianismo desvelado: uma rememorao do sculo XVIII e uma contribuio crise do sculo XIX], proibido pela censura e destrudo antes de sua publicao. A crtica baueriana do cristianismo no mais branda que a do judasmo. para Tomba, essa crtica da religio coloca em evidncia o carter necessariamente exclusivo de toda identidade comunitria e trabalha para a dissoluo de qualquer fundamento essencialista desse em comum. A controvrsia com Marx, segundo Tomba, no se baseia no fato de que Bauer deixaria subsistir a religio como uma simples questo privada, enquanto Marx trabalharia para sua supresso nas relaes sociais reais, e sim na forma religiosa de um dualismo cristalizado, de um lado, em um universalismo irreal do Estado com relao ao indivduo e, de outro, no poder do dinheiro como abstrao social.

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    Sobre a questo judaica

    tirar o policial da sua cabea para aniquilar a opresso), em vez de mudar o mundo no qual ele vive e que, de alguma maneira, ele merece.

    Em 1843, o debate sobre a questo judaica chega a seu ponto culminante. seus termos no so inteiramente novos. O sculo anterior tinha sido agitado pelas controvrsias sobre o dogmatismo teolgico e a emancipao civil. Na ustria e na Alemanha, o despotismo esclarecido de jos II e de Frederico II permitira aos judeus obterem alguns direitos. Em Viena, a partir de 1782, a Toleranzpatent [Edito da tolerncia] permitiu-lhes enviar seus filhos para escolas e colgios do Estado; ela outorgou-lhes tambm liberdades econmicas, exceto a propriedade imobiliria. jos II props a seu conselho de Estado tornar produtiva sociedade a classe numerosa de israelitas em nossos territrios hereditrios. Frederico II aplicou com pragmatismo a lei que limitava o nmero de judeus autorizados em Berlim. Em suma, a situao dos judeus alemes e austracos era melhor do que a que eles conheciam ento no resto da Europa.

    Nesse contexto mais favorvel, Moses Mendelssohn, descrito por lessing como um novo spinoza, comeou a defender a causa de sua comunidade em nome do Iluminismo e de uma total liberdade de conscincia. Em seu prefcio de 1782 edio alem de la dfense des juifs [A defesa dos judeus], de Manasseh ben Isral, intitulado Du salut des juifs [sobre a redeno dos judeus], ele incitava seus correligionrios a deixarem seu gueto para partici-parem plenamente da cultura do pas de adoo. No se tratava de demandar direitos particulares para uma doutrina particular, mas de reivindicar direitos universais do homem. Em compensao, Mendelssohn no aceitava o direito das autoridades rabnicas de exclurem um membro de sua comunidade (como haviam feito com uriel da costa e spinoza), arrogando-se assim um poder que pertencia apenas ao poder secular.

    sob a ocupao napolenica, os judeus renanos beneficiaram-se da eman-cipao civil reconhecida para os judeus da Frana. Aps o Tratado de Viena, a reao da santa Aliana retoma esses direitos restabelecendo a noo do Estado cristo. A tragdia de Rahel lewin Varnhagen, obrigada a apagar a infmia de seu nascimento para poder se integrar, constitui uma ilustrao exemplar dessa regresso19. O edito de 4 de maio de 1816 proibia efetivamen-te aos judeus da Alemanha o acesso s funes pblicas. Em 1819, surgiram manifestaes antijudeus na Baviera. Essa onda de judeufobia se alimentou de boatos de assassinato ritual lanados em 1840 pelo caso de Damasco20. A questo dos direitos cvicos dos judeus torna-se ento uma reivindicao libe-ral. Em 1843, um ano aps a publicao de Die Judenfrage, de Bauer, gabriel

    19 Ver Hannah Arendt, rahel Varnhagen (paris, pocket, 1993, coleo Agora). [Ed. bras.: rahel Varnhagen: judia alem na poca do romantismo, Rio de janeiro, Relume-Dumar, 1994.]

    20 Os judeus de Damasco, acusados de assassinatos rituais, foram submetidos a uma onda de perseguies em 1840.

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    Apresentao

    Riesser publicou A questo judaica contra Bruno Bauer; samuel Hirsch, por sua vez, cartas para esclarecer A questo judaica de Bruno Bauer; e gustav philippson, esclareci mentos sobre A questo judaica de Bruno Bauer. Em 1844, foi publi-cado Bruno Bauer e os judeus, de Abraham geiger. paralelamente, desenvol-veram-se as pesquisas de uma histria judaica ligada manuteno dos ri-tuais religiosos, resultantes dos estudos judaicos iniciados por leopold Zunz e da Wissenschaft des Judentums [cincia do judasmo] desde 1816, condu-zida pelos trabalhos histricos de Heinrich graetz. Ela ser continuada, no sculo XX, por simon Doubnov, salo Baron e Yosef Yeruschalmi.

    Os anos 1840 marcaram ento uma guinada do judasmo alemo. Zunz e graetz esforaram-se para estabelecer a continuidade do judasmo como nao e para reabilitar a tradio, enquanto os judeus liberais defendiam sua assimila-o ao Estado constitucional moderno. Assim, graetz criticava gabriel Riesser por sua indiferena dimenso nacional do judasmo e por sua fidelidade ao ideal de lessing. Marx retoma essas controvrsias sobre Bruno Bauer e seus consortes no captulo VI de A sagrada famlia, em A crtica crtica absoluta ou a crtica crtica conforme o senhor Bruno: em sua polmica contra A questo judaica, do senhor Bruno, alguns judeus liberais e racionalistas criticam-no com toda razo por imaginar um Estado que seja um Estado ideal filosfico. Na verdade, Bauer confunde Estado e humanidade, os direitos do homem e o homem, a emancipao poltica e a emancipao humana. Em sua obra poltico-fantstica, em nome da crtica absoluta, ele aprova a ideia de que a assimilao no seria possvel a no ser onde o judasmo tivesse desaparecido, com a condio recproca de que o cristianismo tambm aceitasse sua prpria autodissoluo ecumnica.

    para Marx, a crtica absoluta de Bauer continua, assim, a considerar o atesmo como condio necessria e suficiente da igualdade civil, ignorando a essncia do Estado21. para Bauer, atualmente, os judeus se emanciparam, medida que avanaram na teoria. portanto, so livres medida que o querem. para Marx, ao contrrio, tempo de abandonar esse socialismo puramente espiritual para dar um salto na poltica. A lgica de um atesmo de Estado autoritrio, exigindo a renncia a qualquer religio poderia levar forca judeus e cristos em seu [de Bauer] Estado crtico. Marx previa, assim, os riscos de um atesmo doutrinrio e de catecismos positivistas, que substitussem o fetichismo religioso por um fetichismo estatal. Esse atesmo maneira de Bauer seria sim-plesmente o ltimo grau do tesmo e o reconhecimento negativo de deus. A abordagem de Marx diametralmente oposta ao racionalismo dogmtico e ao anticlericalismo burgus que se manifesta na crtica crtica: so Bruno, mais uma vez um esforo para se tornar realmente incrdulo!22

    21 Karl Marx e Friedrich Engels, la sainte Famille (paris, ditiones sociales, 1973), p. 112.22 Ocupado em criar a imagem de um Marx antissemita, pierre Birnbaum revela-se assus-

    tadoramente indulgente com Bauer. No entanto, foi esse ltimo, e no Marx, que deu um ultimato aos judeus, condicionando seu direito cidadania ao abandono de sua reli-

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    Sobre a questo judaica

    Apesar dessas divergncias essenciais entre Marx e Bauer, pierre Birnbaum pretende reconcili-los por meio de uma frmula geral, de acordo com a qual a emancipao suporia o fim do judasmo. No entanto, para Marx, no h mais emancipao pura e simples. seu problema precisamente esclarecer de que emancipao se trata. Bauer quer o fim de todas as religies em prol do Estado racional, resume Birnbaum, enquanto Marx ridiculariza essa eman-cipao baseada na separao da Igreja e do Estado que deixa subsistirem as religies23. No entanto, Marx ridiculariza isso to pouco, que diz exatamente o contrrio, qualificando a emancipao poltica de grande progresso. Mas critica Bauer pela confuso acrtica da emancipao poltica com a eman-cipao humana geral. porque, na Alemanha, o Estado poltico, o Estado enquanto Estado, no existe verdadeiramente, que a questo judaica perma-nece ali puramente teolgica: O judeu encontra-se em oposio religiosa ao Estado que confessa o cristianismo como sua base. Na Frana, ao contrrio, com o Estado constitucional, a questo judaica tornou-se a da parcialidade da emancipao poltica. somente nos Estados unidos ela realmente perde seu significado teolgico e se tornou uma questo realmente secular!

    portanto, o principal problema para Marx no a manuteno da religio sob o Estado poltico, mas o fetichismo do Estado resultante do desdobramen-to entre sociedade civil e representao poltica. Ele comea apenas a entrar na via da crtica da religiosidade moderna, da religiosidade mercantil, da qual o capital fornecer a elucidao conceitual. O que passa a ser problema, a partir de ento, o Estado puro e simples. consequentemente, comenta Birnbaum, Marx tem todos os trunfos na mo para se fazer de defensor da emancipao dos judeus que Bauer parece recusar. Todos os trunfos? seria puro estratagema retrico e um liberalismo de fachada? Ao contrrio, a posio de Marx plenamente coerente. Diferentemente de Bauer, que no a consente, Marx apoia a emancipao poltica dos judeus sem exigir que renunciem sua religio, pois as religies somente poderiam se extinguir junto com a mi-sria real contra a qual protestavam e a necessidade de iluses com a qual reagiam. A leitura teolgica de Marx, por pierre Birnbaum, to limitada quanto a abordagem teolgica da questo judaica por Bauer: cego por uma espcie de narcisismo comunitrio, hoje amplamente compartilhado, no compreende nem o contexto histrico, nem o que est em jogo no centro da discusso24. Ele admite que, para Marx, o privilgio da f um direito universal

    giosidade. Birnbaum chega a inverter as posies de ambos, declarando que Bernanos espera a converso dos judeus como prova de redeno da humanidade, assim como Marx, antes dele, num outro registro. (pierre Birnbaum, Gographie de lespoir, paris, gallimard, 2004, p. 193). Num outro registro? Na realidade, um totalmente diferente!

    23 Ibidem, p. 59. 24 pena, pois essa cegueira compromete, com muitas informaes, a leitura de sua obra

    erudita e, muitas vezes, apaixonante.

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    Apresentao

    do homem que se aplica tambm aos judeus, mas a emancipao poltica que lhes concede no teria significado real, pois para ele a nica emancipa-o que pe a religio em questo a emancipao humana25.

    difcil entender quando algum fala de coisas to diferentes. O problema de Marx no a religio enquanto tal, mas a ciso no centro da sociedade mo-derna. Ele apreender todo o seu sentido com a descoberta do desdobramento do valor em valor de uso e valor de troca, do trabalho em trabalho concreto e trabalho abstrato, do capital em capital fixo e circulante etc. Desde sobre a questo judaica, Marx demonstra, opondo-se a Bauer, que a diviso do homem em cidado no religioso e indivduo religioso de modo algum incompatvel com a emancipao poltica26. por isso, em A sagrada famlia, apoiar Riesser e os judeus da Reforma contra esse mesmo Bauer. Num belo exerccio de lei-tura suspeita, pierre Birnbaum observa que Marx mostra-se a partir de agora favorvel emancipao dos judeus da qual ele nada dizia em sobre a questo judaica27. A partir de agora? sabemos, por sua carta a Ruge em maro de 1843, que o prprio Marx havia redigido uma petio requerendo os direitos cvicos dos judeus de colnia. longe de contradizer sobre a questo judaica, escrito poucas semanas depois, esse gesto , ao contrrio, a ilustrao prtica disso. Em vez de se contentar com o que considera com suspeita um simples desvio, Birnbaum v a apenas uma manobra discursiva: se Marx declara-se a partir de agora favorvel emancipao cvica dos judeus na realidade para melhor demonstrar a vacuidade dessa emancipao poltica. No: para apoi-la sem deixar de salientar seus limites.

    pierre Birnbaum no desiste: Marx preconiza o fim indispensvel e ine-vitvel dos judeus28. A formulao viciada. Ele poderia escrever que Marx prev o desaparecimento da alienao religiosa e das identidades confessionais, como consequncias provveis da emancipao humana. poderia at atribuir ao enunciado um sentido performativo. Mas as palavras foram escolhidas: Marx no se limita a prever, ele preconiza. portanto, ele dita. O qu? O fim indispensvel e inevitvel dos judeus. A destruio final? De quem? No da religio, mas dos judeus enquanto tais. luz crepuscular do genocdio dos judeus, essa leitura orientada tem o tom de um processo.

    Em A sagrada famlia, Marx condena a crtica absoluta de Bauer por atingir por meio de um desvio teolgico profecias sobre o declnio das na-cionalidades, para as quais essa crtica prev um futuro muito sombrio29. Ele reivindica ter desnudado, desde sobre a questo judaica, o erro fundamental que consiste em confundir a emancipao poltica e a emancipao humana, em tratar a questo judaica como uma questo religiosa, realmente teolgica

    25 pierre Birnbaum, Gographie de lespoir, cit., p. 59.26 Karl Marx e Friedrich Engels, la sainte Famille, cit., p. 122.27 pierre Birnbaum, Gographie de lespoir, cit., p. 67.28 Ibidem, p. 83.29 Karl Marx e Friedrich Engels, la sainte Famille, cit., p. 122.

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    Sobre a questo judaica

    e poltico-fantstica30. quando pretende falar de poltica, o telogo Bauer no se ocupa de poltica, mas de teologia. Trata-se, ao contrrio, de saber o que uma questo religiosa particularmente em nossos dias. pois doravante no existem interesses religiosos em si, religio enquanto religio, mas uma situao real do judasmo na sociedade burguesa atual, de fato as questes religiosas tm em nossa poca um significado social.

    sem dvida, elas sempre o tiveram. Mas esse significado era expresso de outra maneira nas sociedades em que poltica e religio, sagrado e profano encontravam-se estreitamente imbricados. O que mudou em nossa poca foi, portanto, o lugar da religio, sua separao do Estado poltico, a privatizao das crenas confessionais. sobre essa novidade que Marx procura pensar. sem negar que a questo judaica seja tambm uma questo religiosa, ele critica a obstinao de Bauer em explicar os verdadeiros judeus pela religio, em vez de explicar o mistrio da religio judaica pelos verdadeiros judeus. Bauer, retomando a velha opinio ortodoxa segundo a qual o judasmo se manteve, apesar da histria31, continua assim no campo da ontologia do ser judeu. Marx inverte a equao: Demonstramos, ao contrrio, que o judasmo conservou-se e desenvolveu-se pela histria, na e com a histria32. Essa inverso decisiva inspirou autores, de Abraham lon a Maxime Rodinson, passando por Isaac Deutscher, Roman Rosdolsky e Ernest Mandel, que se dedicaram a desenvolver uma concepo materialista da questo judaica.

    para Marx, no se tratava tambm de explicar o judeu da poca pela religio, mas de explicar a sobrevivncia da religio pelos elementos prticos da vida burguesa da qual ela d um reflexo fantstico: a tarefa no consistia ento em eliminar os judeus como pretendiam os defensores de um Marx antisse-mita, mas em abolir o judasmo da sociedade burguesa, que atinge seu ponto culminante no sistema monetrio33. Embora os judeus pudessem ser po-liticamente emancipados em diferentes Estados, ainda estavam longe de s-lo no plano humano:

    consequentemente, convm estudar a essncia da emancipao poltica, ou seja o Estado poltico desenvolvido. quanto aos Estados que ainda no podem conceder aos judeus a emancipao poltica, preciso compar-los ao Estado poltico acabado, e demonstrar que eles so Estados subdesenvolvidos.

    Nesta passagem de A sagrada famlia, Marx continua e desenvolve a crtica iniciada em sobre a questo judaica:

    Mostramos ao senhor Bauer como a decomposio do homem em cidado no religioso e indivduo religioso no est totalmente em contradio com

    30 Ibidem, p. 133.31 Essa perenidade, apesar da histria, continuar a ser o leitmotiv dos telogos da histria

    judaica enquanto histria sagrada.32 Karl Marx e Friedrich Engels, la sainte Famille, cit., p. 135.33 Idem.

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    Apresentao

    a emancipao poltica. Mostramos a ele que se o Estado se emancipa da religio ao se emancipar da religio do Estado, abandonando ao mesmo tempo a religio a si mesma no mbito da sociedade civil, o indivduo se emancipa politicamente da religio comportando-se em relao a ela no mais como em relao a uma questo pblica, mas considerando-a como sua questo particular.

    logo depois, Marx insiste:

    portanto, os direitos do homem no o libertam da religio, mas garantem-lhe a liberdade de religio; eles no o libertam da propriedade, mas lhe do a liberdade de propriedade; no os libertam da necessidade de ganhar sua vida de modo mais ou menos prprio, mas concedem-lhe a liberdade de trabalho.

    O fundamento do Estado poltico moderno no mais a sociedade dos pri-vilgios, mas a sociedade dos privilgios abolidos. A sociedade civil burguesa simplesmente essa guerra recproca de todos os indivduos e o movimento universal desenfreado das foras vitais elementares libertadas dos entraves dos privilgios.

    A argumentao de Bauer supe que os judeus no tm a mesma capaci-dade que tm os cristos de se emanciparem porque o judasmo iria opor seu culto, cioso da particularidade, viso universal do cristianismo. Ao retomar algumas consideraes de Feuerbach em A essncia do cristianismo, ele v em seu particularismo egosta (proveniente do mito do povo eleito) um obstculo irredutvel para a universalidade qual aspira o cristianismo. O artigo de Marx usa como pretexto a oportunidade oferecida por esse livreto de Bauer para retomar um projeto descrito numa carta em 25 de agosto de 1842 a David Oppenheim, em que declara abordar a questo por um outro ngulo. Em sua carta a Ruge, em 13 de maro de 1843, ele j indicava que a posio de Bauer lhe parecia extremamente abstrata, e muitssimo pouco crtica em relao ao Estado cristo34. seu erro vinha da incapacidade de estender a questo judaica a outros pases alm da Alemanha, onde ela era considerada efetivamente do ponto de vista teolgico. No entanto, nos pases em que o Estado tinha atingido, segundo a concepo de Bauer, uma forma de perfei-o desfazendo-se de seu carter religioso, a religio no tinha desaparecido. portanto, era inevitvel constatar que a religio no era o verdadeiro obstculo perfeio do Estado.

    A questo crucial, ignorada por Bauer, no era saber se a emancipao da religio resulta automaticamente da emancipao poltica, e sim saber que relao a completa emancipao poltica mantinha com a religio. A questo

    34 sobre essa questo, ver georges labica, le statut marxiste de la philosophie (Bruxelas, complexe, 1976). labica observa que crtica da emancipao poltica teria sido um bom ttulo para Zur Judenfrage [sobre a questo judaica] e teria permitido explicitar o que est subentendido em Zur, A propsito de.

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    Sobre a questo judaica

    consistia na relao entre o Estado poltico e a sociedade civil, a mesma que a filosofia hegeliana do direito no havia conseguido elucidar. Enquanto a eman-cipao dos judeus continua a ser, para Bauer, uma questo religiosa e sua soluo, teolgica , para Marx, a tarefa da crtica consiste em se emancipar da teologia de todas as formas. Na passagem da crtica da religio para a do Estado poltico e da propriedade privada, ele absolutamente no subestima a importncia das liberdades cvicas, mas o homem no pode se livrar de sua essncia religiosa se no dirige a crtica para onde se passa sua existncia real. quando a alienao religiosa se enraza na alienao poltica e social, no basta mais emancipar o Estado da religio atravs de uma reforma da conscincia; a partir de agora, preciso se emancipar do fetichismo do Estado por meio da luta poltica.

    Depois de ter ajustado contas filosficas com Hegel, na crtica da filosofia do direito de Hegel, os artigos dos Anais FrancoAlemes anunciam ento as Teses sobre Feuerbach de 1845. sobre a questo judaica aparece como ponto de partida de uma crtica dos limites da Revoluo Francesa e da retrica dos direitos do homem. Foi o motivo pelo qual esse artigo suscitou tantas paixes e leituras enviesadas. O desdobramento entre o judeu do shabat e o judeu de todos os dias ilustra a grande ciso da modernidade, o desdobramento geral entre o Estado poltico e a sociedade civil, entre o homem e o cidado, entre o espao pblico e o espao privado, entre o bem comum e o interesse egosta. Marx inaugura, assim, uma crtica que busca nas condies histricas da exis-tncia judaica, e no na eternidade celeste do povo eleito, as razes de sua opresso e as razes da perpetuao do judasmo, na e pela histria.

    Os Anais FrancoAlemes ou a guinada parisiense de Marx

    Os dois artigos publicados por Marx em paris em 1844 crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo e sobre a questo judaica no se limitam a anunciar a morte do Deus das religies. Eles iniciam o combate contra os fetiches e os dolos substitutos: o Dinheiro e o Estado.

    Em A essncia do cristianismo*, Feuerbach no s mostrara que o homem no a criatura de Deus, e sim seu criador. No s sustentara que o homem faz a religio, a religio no faz o homem. Ele tambm comprovara que a filo-sofia simplesmente a religio transposta para a ideia e nesta desenvolvida, escreve Marx. Ao fazer da relao social do homem com o homem o prin-cpio fundamental da teoria, fundou o verdadeiro materialismo. pois o homem no um homem abstrato agachado fora do mundo, o mundo do homem, o homem em sociedade que produz, troca, luta, ama. o Estado, a sociedade.

    * Ed. bras.: ludwig Feuerbach, A essncia do cristianismo (petrpolis, Vozes, 2007). (N. E. B.)

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    Apresentao

    uma vez admitido que esse homem real no a criatura de um Deus todo-poderoso, resta saber de onde vem a necessidade de inventar uma vida aps a vida, e de imaginar um cu livre das misrias terrestres. A misria religiosa a expresso da misria real e, ao mesmo tempo, o protesto contra esta misria. A religio o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem corao, do mesmo modo que ela o esprito de um estado de coisa sem esprito. A religio o pio do povo. como o pio, ela atordoa e ao mesmo tempo acalma.

    portanto, a crtica da religio no pode se contentar, como acontece com o anticlericalismo manico e o racionalismo das luzes, em ser hostil com o clero, com o imame ou com o rabino. Essa abordagem da questo religiosa ser tambm, logo aps a comuna de paris, a de Engels. Ele considera, ento, o problema do atesmo ultrapassado e critica alguns exilados parisienses por quererem transformar as pessoas em ateus por ordem do mufti, em vez de tirarem lies da experincia:

    que se pode ordenar tudo o que se quer no papel sem que, no entanto, isso seja colocado em prtica, e que as perseguies so a melhor maneira de dar origem a fiis estorvantes. uma coisa certa: o nico servio que se pode prestar a Deus, hoje, declarar que o atesmo um artigo de f obrigatrio e suplantar as leis anticlericais, proibindo a religio em geral.

    Desde 1844, para Marx, trata-se de atacar as condies sociais que provo-cam uma necessidade de crena e de paraso artificiais:

    A abolio da religio enquanto felicidade ilusria do povo a condio de sua felicidade real. Exigir que ele renuncie s iluses em sua situao exigir que ele renuncie a uma situao que tem necessidade de iluses. A crtica da religio , portanto, em seu estado latente, a crtica do vale de lgrimas cuja aurola a religio.

    Assim, a crtica da religio visa a um objetivo necessrio, mas limitado: privar o homem de suas iluses, de seus consolos ilusrios, frustr-lo, abrir-lhe os olhos para que ele pense, aja, transforme sua realidade de homem decep-cionado, chegue razo, para que ele gravite em torno de si prprio, ou seja, em torno de seu sol real. uma vez acabado o alm-mundo religioso da verdade, a tarefa histrica estabelecer a verdade do mundo aqui embaixo e desmascarar a alienao humana em suas formas no sagradas: A crtica do cu transforma-se, assim, em crtica da terra, a crtica da religio em crtica do direito, a crtica da teologia em crtica da poltica.

    Ao proclamar que, para a Alemanha, a crtica da religio est essencial-mente acabada, mas que ela a condio de qualquer crtica, a crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, de 1844, tem um ar de manifesto antes do manifesto comunista, e de um programa de trabalho que anuncia as novas tarefas da crtica. O artigo sobre a questo judaica, publicado no

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    Sobre a questo judaica

    mesmo e nico nmero dos Anais FrancoAlemes, muitas vezes entendido com contrassenso seu prolongamento ou sua primeira aplicao prtica.

    Os dois artigos publicados na primavera de 1844 nos Anais FrancoAlemes marcam, portanto, exatamente uma guinada na formao do pensamento crtico de Marx. Eles constituem um adeus definitivo filosofia alem especulativa e inauguram, no contato com o proletariado parisiense, o grande canteiro de obras da crtica. A crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo marca, assim, a entrada espetacular do proletariado na cena filosfica como condio da possibilidade positiva da emancipao alem: O filsofo a cabea dessa emancipao, o proletariado seu corao. A filosofia no pode se realizar sem abolir o proletariado, o proletariado no pode se abolir sem a realizao da filosofia.

    Essa transformao do liberalismo democrtico em comunismo resultado das experincias e decepes do movimento dos jovens hegelianos. para a intelligentsia oposicionista alem, 1843 foi um ano terrvel, marcado pelo en-durecimento autoritrio do regime de Frederico guilherme. No incio daquele ano, o governo prussiano proibiu a publicao da Gazeta renana, que Marx dirigia de fato desde o vero de 1842. A escalada repressiva torna obsoleta a estratgia reformista da oposio esclarecida. A aniquilao de qualquer espao de livre expresso obriga a intelligentsia oposicionista a escolher entre renunciar a toda atividade poltica pblica ou seguir o exemplo de Heine e tomar o caminho do exlio.

    Em 17 de maro de 1843, Marx publica no ltimo nmero da Gazeta renana algumas linhas pedindo demisso. Ele planeja, ento, expatriar-se e, poucas semanas depois, escreve a seu correspondente Arnold Ruge:

    lamentvel testemunhar trabalhos servis, mesmo que em nome da liberdade, e lutar com alfinetadas e no com cacetadas. Estou cansado de hipocrisia, de estupidez, de autoridade brutal. Estou cansado de nossa docilidade, de nossa obsequiosidade, de nossos recuos, de nossas querelas por meio de palavras. Nada posso fazer na Alemanha. Aqui, falsifica-se a si mesmo.

    Aps seu casamento com jenny, ele passa o vero em Kreuznach, onde se dedica leitura crtica da filosofia do direito de Hegel, da qual nasceram os rascunhos conhecidos como crtica da filosofia do direito de Hegel e os artigos dos Anais.

    sua crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo , escreve stathis Kouvlakis, um texto de ruptura irrevogvel:

    Verdadeira coleo de enunciados, um bom nmero deles consagrados a uma gloriosa posteridade, gravados com buril, em uma linguagem ao mesmo tempo especulativa e panfletria, ganha ares de primeiro manifesto de Marx, que incita ao, anunciando abertamente a passagem de seu autor s posies revolucionrias.35

    35 stathis Kouvlakis, comentrio lintroduction la critique de la philosophie du droit de Hegel (paris, Ellipse, 2000).

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    Apresentao

    constitui uma espcie de introduo aos manuscritos parisienses, tambm conhecidos como manuscritos econmicofilosficos.

    Nela, a crtica de um atesmo contemplativo e abstrato leva Marx a se distanciar de Feuerbach, que no v que o prprio sentimento religioso um produto social e que o indivduo abstrato que ele analisa pertence a uma forma de sociedade bem determinada. seu antigo materialismo para no pon-to de vista da sociedade burguesa. Ele deve ser ultrapassado por um novo materialismo que se coloca do ponto de vista da sociedade humana ou da humanidade social: Assim, uma vez que se descobriu que a famlia terrestre o segredo da sagrada Famlia, a primeira que deve ser aniquilada na teoria e na prtica.

    Esse novo materialismo social, essa superao do atesmo abstrato sim-plesmente o comunismo:

    Da mesma maneira que o atesmo, enquanto negao de Deus, o desenvolvi-mento do humanismo terico, o comunismo, enquanto negao da propriedade privada, a reivindicao da verdadeira vida humana como propriedade do homem: o comunismo o desenvolvimento do humanismo prtico. Em outras palavras, o atesmo o humanismo mediado pela supresso da religio, e o comunismo o humanismo mediado pela supresso da propriedade privada.

    preciso distinguir ainda diferentes momentos no desenvolvimento da ideia comunista. Em sua forma primitiva, o comunismo rudimentar quer destruir tudo o que no suscetvel de ser possudo por todos. A condio do trabalhador no abolida, mas estendida a todos os homens. A propriedade privada generalizada encontra sua expresso animal na posse das mulheres. Esse comunismo vulgar simplesmente finaliza o nivelamento imaginando um mnimo. A abolio da propriedade privada, nesse caso, no a apropriao social real, mas a negao abstrata de toda a esfera da cultura e da civilizao, a volta simplicidade do homem sem posse e sem desejo, que no s no se situa alm da propriedade privada, mas que nem sequer a alcanou.

    O comunismo poltico ou democrtico visa supresso do Estado, superao da alienao humana e volta do homem para si mesmo. Mas no tendo ainda compreendido a natureza humana da necessidade nem a essncia positiva da propriedade privada, ele ainda contaminado por ela e permanece sob sua dependncia. Enquanto superao positiva da propriedade privada e apropriao real da essncia humana pelo homem e para o homem, o comunismo a volta total do homem para si enquanto homem social, ou seja, humano. portanto, a verdadeira soluo do conflito do homem com a natureza, do homem com o homem, a verdadeira soluo da luta entre a existncia e a essncia, entre a objetivao e a subjetivao, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivduo e a espcie.

    se, para dominar a ideia da propriedade privada, o comunismo pensado suficiente, para dominar a propriedade privada real, preciso uma ao comunista real, um movimento que na realidade, passar por um processo

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    Sobre a questo judaica

    muito longo e muito duro. Em suma, enquanto o atesmo apenas a negao abstrata de Deus, o comunismo sua negao concreta. Ele vai raiz das coisas e procura acabar praticamente com um mundo de frustraes e de misrias das quais surge a necessidade de consolo divino.

    O sumrio do nmero duplo dos Anais FrancoAlemes de fevereiro de 1844 compreende, nesta ordem:

    plano da publicao; -correspondncia entre Marx e Ruge (1843); -poema satrico de Heine sobre lus I da Baviera e seu germanismo de -pssima qualidade;veredicto da corte suprema da prssia contra johann jacoby por alta traio -e crime de lesa-majestade;crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, de Marx; -Esboo de uma crtica da economia poltica, de Friedrich Engels; -ata da reunio ministerial em 12 de junho de 1834, seguida de dois dis- -cursos de Metternich e de Ferdinand Bernays;poema de georg Herwegh; -A situao da Inglaterra, de Friedrich Engels; -sobre a questo judaica, de Karl Marx; -extratos de artigos da imprensa alem sobre a atualidade, por Ferdinand -Bernays.

    Rico sumrio, para um rico e nico nmero! Deixa claro o contexto da publicao de sobre a questo judaica.

    Na poca, Marx tinha 25 anos e Engels, 23.

    Daniel Bensad Paris, fevereiro de 2009

  • SOBRE A QUESTO JUDAICA

    (Escrito entre agosto e dezembro de 1843)

  • "Sobre a questo judaica", artigo de Marx em resposta a Bruno Bauer, publicado nos Anais Franco-Alemes em 1844.

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    I

    BRUNO BAUER, DIE JUDENFrAGE [A QUESTO JUDAICA]1

    (Braunschweig, 1843)

    Os judeus alemes almejam a emancipao. Que emancipao almejam? A emancipao cidad, a emancipao poltica.

    Bruno Bauer responde-lhes: ningum na Alemanha politicamente eman-cipado. Ns mesmos carecemos da liberdade. Como poderamos vos libertar? Vs, judeus, sois egostas, quando exigis uma emancipao especial s para vs como judeus. Como alemes, tereis de trabalhar pela emancipao po-ltica da Alemanha, como homens, pela emancipao humana, percebendo o tipo especial de presso que sofreis e o vexame por que passais no como exceo regra, mas como confirmao da regra.

    Ou os judeus estariam querendo equiparao com os sditos cristos? Eles reconhecem desse modo o Estado cristo como de direito, reconhecem assim o regimento da subjugao universal. Por que lhes desagrada seu jugo especfico se lhes agrada o jugo universal! Por que o alemo deveria se interessar pela libertao do judeu, se o judeu no se interessa pela libertao do alemo?

    O Estado cristo s conhece privilgios. O judeu possui dentro dele o privi-lgio de ser judeu. Como judeu ele tem direitos que os cristos no tm. Por que almeja direitos que ele no tem e dos quais gozam os cristos?

    Ao querer emancipar-se do Estado cristo, o judeu pede que o Estado cristo renuncie ao seu preconceito religioso. Acaso ele, o judeu, renuncia ao seu preconceito religioso? Teria ele, portanto, o direito de pedir a algum tal abdicao da religio?

    1 Nesta primeira parte de Sobre a questo judaica, Marx toma como principal referncia o texto de Bruno Bauer, Die Judenfrage (Braunschweig, Friedrich Otto, 1843), disponibili-zado pela Boitempo em seu site, na pgina deste livro, em http://www.boitempo.com/colecao_marx.php. As referncias bibliogrficas no corpo do texto so do prprio Marx, como ele as grafou. As indicaes de nmero de pginas entre parnteses referem-se ao texto de Bauer. (N. E. B.)

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    Karl Marx

    O Estado cristo, por sua prpria essncia, no pode emancipar o judeu; mas, arremata Bauer, o judeu, por sua prpria essncia, no pode ser emancipado. Enquanto o Estado for cristo e o judeu judaico, ambos sero igualmente incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipao.

    O Estado cristo s pode se relacionar com o judeu na qualidade de Estado cristo, isto , privilegiando, ao permitir o isolamento do judeu em relao aos demais sditos, mas fazendo com que sinta a presso das demais esferas isoladas, e permitindo que ele sinta tanto mais essa presso pelo fato de se encontrar em oposio religiosa religio dominante. Mas tambm o judeu s pode se relacionar com o Estado de modo judaico, ou seja, como um estrangeiro em relao ao Estado, ao contrapor nacionalidade real sua nacionalidade quimrica, ao contrapor lei real sua lei ilusria, ao crer que tem o direito de isolar-se da humanidade, ao no tomar parte no movimento histrico por princpio, ao aguardar um futuro que nada tem a ver com o futuro geral do homem, ao considerar-se um membro do povo judeu e ter o povo judeu na conta de o povo escolhido.

    Portanto, a ttulo de que vs, judeus, almejais a emancipao? Por causa de vossa religio? Ela a inimiga mortal da religio do Estado. Como cidados do Estado? No h cidados do Estado na Alemanha. Como seres humanos? Vs no sois seres humanos, e tampouco aqueles a quem apelais.

    Bauer formulou de maneira nova a questo da emancipao dos judeus, depois de ter feito uma crtica s posies e solues apresentadas para ela at agora. Ele pergunta: como so constitudos o judeu a ser emancipado e o Estado cristo que deve emancipar? Ele responde com uma crtica religio judaica, analisando o antagonismo religioso entre judasmo e cristianismo, ajuizando sobre a essncia do Estado cristo, tudo com audcia, agudeza, vivacidade, meticulosidade, valendo-se de um estilo preciso tanto quanto substancioso e enrgico.

    Assim sendo, como Bauer soluciona a questo judaica? A que resultado chega? A formulao de uma pergunta sua soluo. A crtica questo judaica a resposta questo judaica. O resumo , portanto, o seguinte:

    Temos de emancipar a ns mesmos antes de poder emancipar outros.A forma mais cristalizada do antagonismo entre o judeu e o cristo

    o antagonismo religioso. Como se resolve um antagonismo? Tornando-o impossvel. Como se faz para tornar impossvel um antagonismo religioso? Superando a religio. Assim que judeu e cristo passarem a reconhecer suas respectivas religies to somente como estgios distintos do desenvolvimento do esprito humano, como diferentes peles de cobra descartadas pela histria, e reconhecerem o homem como a cobra que nelas trocou de pele, eles no se encontraro mais em uma relao religiosa, mas apenas em uma relao crtica, cientfica, em uma relao humana. A cincia constitui ento sua unidade. Todavia, na cincia, os antagonismos se resolvem por meio da prpria cincia.

  • 35

    Sobre a questo judaica

    Principalmente o judeu alemo se defronta, de modo geral, com a falta de emancipao poltica e com o pronunciado carter cristo do Estado. Contudo, nos termos de Bauer, a questo judaica possui um significado universal, inde-pendente das condies especificamente alems. Ela constitui a pergunta pela relao entre religio e Estado, pela contradio entre o envolvimento religioso e a emancipao poltica. A emancipao em relao religio colocada como condio tanto ao judeu que quer ser politicamente emancipado quanto ao Estado que deve emancipar e ser ele prprio emancipado.

    Bem, o que se diz e o prprio judeu diz isso que o judeu no deve ser emancipado como judeu, no por ser judeu, no por possuir um princpio to excelente de moralidade universalmente humano; antes, o judeu ceder lugar ao cidado e ser cidado, mesmo que seja judeu e deva permanecer judeu, ou melhor, ele e permanecer judeu apesar de ser cidado e viver em condies humanas universais; sua essncia judaica e limitada sempre e em ltima anlise preponderar sobre seus deveres humanos e polticos. O preconceito permanece apesar de ser sobrepujado por princpios universais. Mas se permanece, acaba sobrepujando tudo o mais.

    O judeu s poderia permanecer judeu na vida estatal ao modo sofista, ou seja, na aparncia; caso ele quisesse permanecer judeu, a simples aparncia seria, portanto, o essencial e preponderaria, isto , sua vida no Estado seria apenas aparncia ou uma exceo momentnea em contraposio essncia e regra (Die Fhigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden, Einundzwanzig Bogen, p. 57).2

    Ouamos como Bauer expe, em contrapartida, a tarefa do Estado. Ele diz:

    A Frana nos proporcionou recentemente [Deliberaes da Cmara dos Deputados de 26 de dezembro de 1840] em relao questo judaica assim como faz constantemente em relao a todas as demais questes polticas a viso de uma vida que livre, mas que revoga a sua liberdade pela lei, declarando-a, portanto, tambm como aparncia e, em contrapartida, refu-tando sua lei livre por meio de seus atos (Judenfrage, p. 64).

    A liberdade ainda no lei na Frana, e a questo judaica ainda no foi resolvida, porque a liberdade jurdica de que os cidados so iguais restringida na vida real, a qual dominada e fragmentada pelos privilgios religiosos, e essa falta de liberdade da vida retroage sobre a lei, forando-a a sancionar a diferenciao dos cidados em si livres em oprimidos e opres-sores (p. 65).

    Quando, ento, a questo judaica estaria resolvida na Frana?

    2 Bruno Bauer, Die Fhigkeit der heutigen Juden und Christen, frei zu werden [A capa-cidade dos atuais judeus e cristos de se tornarem livres], Einundzwanzig Bogen aus der Schweiz [Vinte e um cadernos da Sua]. Editado por Georg Herwegh; Winterthur-Zurique, 1843, n. 5, p. 57. Esse outro texto de Bauer ser tratado com mais vagar por Marx na segunda parte. (N. E. B.)

  • 36

    Karl Marx

    O judeu, p. ex., j teria deixado de ser judeu se sua lei no mais o impe-disse de cumprir seus deveres para com o Estado e seus concidados, ou seja, p. ex., comparecer no shabbat Cmara dos Deputados e participar das deliberaes pblicas. Todo e qualquer privilgio religioso, ou seja, tambm o monoplio de uma igreja privilegiada, j teria sido abolido, e se alguns ou muitos ou at mesmo a maioria esmagadora ainda acreditasse ter de cumprir deveres religiosos, esse cumprimento deveria ser deixado por conta deles como questo puramente privada (p. 65).

    No havendo religio privilegiada no h mais nenhuma religio. Tirai da religio seu poder de excluir e ela deixar de existir (p. 66).

    Do mesmo modo que o sr. Martin du Nord vislumbrou na sugesto de omitir a meno do domingo na lei uma proposio para declarar que o cris-tianismo deixou de existir, com o mesmo direito (e esse direito plenamente justificado) a declarao de que a lei do sbado no mais obrigatria para o judeu seria a proclamao da dissoluo do judasmo (p. 71).

    Bauer exige, portanto, por um lado, que o judeu renuncie ao judasmo, que o homem em geral renuncie religio, para tornar-se emancipado como cidado. Por outro lado, de modo coerente, a superao poltica da religio constitui para ele a superao de toda religio. O Estado que pressupe a religio ainda no um Estado verdadeiro, um Estado real.

    No entanto, a concepo religiosa oferece garantias ao Estado. Mas a qual Estado? A que tipo de Estado? (p. 97).

    nesse ponto que se evidencia a compreenso unilateral da questo judaica.De modo algum bastava analisar as questes: quem deve emancipar?

    Quem deve ser emancipado? A crtica tinha uma terceira coisa a fazer. Ela devia perguntar: de que tipo de emancipao se trata? Quais so as condies que tm sua base na essncia da emancipao exigida? To somente a crtica emancipao poltica mesma poderia constituir a crtica definitiva questo judaica e sua verdadeira dissoluo na questo geral da poca.

    Bauer incorre em contradies por no alar a questo a esse nvel. Ele impe condies que no esto fundadas na essncia da emancipao poltica mesma. Ele levanta perguntas que no esto contidas na tarefa que se props e resolve problemas que deixam o seu questionamento sem resposta. Bauer diz sobre os adversrios da emancipao dos judeus que: Seu nico erro foi presumirem que o Estado cristo o nico verdadeiro e no o submeterem mesma crtica com que contemplaram o judasmo (p. 3); diante disso, vemos o erro de Bauer no fato de submeter crtica to somente o Estado cristo, mas no o Estado como tal, no fato de no investigar a relao entre emancipao poltica e emancipao humana e, em consequncia, de impor condies que s se explicam a partir da confuso acrtica da emancipao poltica com a emancipao humana geral. Em vista da pergunta de Bauer aos judeus: Tendes, a partir do vosso ponto de vista, o direito de almejar a emancipao poltica?, ns perguntamos em contrapartida: o ponto de vista

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    Sobre a questo judaica

    da emancipao poltica tem o direito de exigir dos judeus a supresso do judasmo e do homem de modo geral a supresso da religio?

    A questo judaica deve ser formulada de acordo com o Estado em que o judeu se encontra. Na Alemanha, onde no existe um Estado poltico, onde no existe o Estado como Estado, a questo judaica uma questo puramente teolgica. O judeu encontra-se em oposio religiosa ao Estado que confessa o cristianismo como sua base. Esse Estado telogo ex professo [com perfeio]. Nesse caso, a crtica que se faz a crtica teologia, crtica de dois gumes, crtica teologia crist, crtica teologia judaica. Entretanto, por mais que estejamos nos movendo criticamente, ainda estamos nos movendo no interior da teologia.

    Na Frana, no Estado constitucional, a questo judaica a questo do constitucionalismo, a pergunta referente parcialidade da emancipao poltica. Como ali se mantm a aparncia de uma religio do Estado, ainda que numa frmula inexpressiva e autocontraditria, a saber, na frmula da religio da maioria, a relao entre os judeus e o Estado conserva a aparncia de um an-tagonismo religioso, teolgico.

    Os estados livres norte-americanos ao menos em uma parte deles fo-ram o nico lugar em que a questo judaica perdeu seu sentido teolgico e se tornou uma questo realmente secular. S onde o Estado poltico existe em sua forma plenamente desenvolvida, a relao do judeu, e de modo geral do homem religioso, com o Estado poltico, ou seja, a relao entre a religio e o Estado, pode emergir em sua peculiaridade, em sua pureza. A crtica a essa relao deixa de ser uma crtica teolgica no momento em que o Estado deixa de comportar-se teologicamente para com a religio, no momento em que ele se comporta como Estado, isto , politicamente, para com a religio. A crtica transforma-se, ento, em crtica ao Estado poltico. Justamente no ponto em que a questo deixa de ser teolgica, a crtica de Bauer deixa de ser crtica.

    Il nexiste aux tats-Unis ni religion de ltat, ni religion dclare celle de la majorit ni prminence dun culte sur un autre. Ltat est tranger tous les cultes3 (Marie ou lesclavage aux tats-Unis etc., par G. de Beaumont. Paris, 1835, p. 214). Sim, h alguns Estados norte-americanos em que la constitution nimpose pas les croyances religieuses et la pratique dun culte comme condition des privilge politiques4 (l. c., p. 225). Ainda assim, on ne croit pas aux tats-Unis quun homme sans religion puisse tre un honnte homme5 (l. c., p. 224).6

    3 Nos Estados Unidos, no h nem religio do Estado, nem uma religio oficial da maioria, nem a preeminncia de um culto sobre o outro. O Estado no se ocupa com nenhum culto. (N. T.)

    4 a Constituio no estabelece qualquer crena religiosa ou a prtica de um determinado culto como condio para obter privilgios polticos. (N. T.)

    5 nos Estados Unidos no se cr que um homem sem religio possa ser um homem honesto. (N. T.)

    6 Gustave de Beaumont, Marie ou lesclavage aux tats-Unis: tableaux de murs amricaines [Ma-ria ou a escravido nos Estados Unidos: quadro de costumes americanos] (Paris, 1835).

  • 38

    Karl Marx

    Ainda assim, a Amrica do Norte sobretudo a terra da religiosidade, como asseguram a uma s voz Beaumont, Tocqueville e o ingls Hamilton.7 Os Estados norte-americanos, entretanto, so para ns apenas um exemplo. A pergunta : como se comporta a emancipao poltica plena para com a religio? Se at mesmo no pas da emancipao poltica plena encontramos no s a existncia da religio, mas a existncia da mesma em seu frescor e sua fora vitais, isso constitui a prova de que a presena da religio no contradiz a plenificao do Estado. Como, porm, a existncia da religio a existncia de uma carncia, a fonte dessa carncia s pode ser procurada na essncia do prprio Estado. Para ns, a religio no mais a razo, mas apenas o fenme-no da limitao mundana. Em consequncia, explicamos o envolvimento religioso dos cidados livres a partir do seu envolvimento secular. No afir-mamos que eles devam primeiro suprimir sua limitao religiosa para depois suprimir suas limitaes seculares. Afirmamos, isto sim, que eles suprimem sua limitao religiosa no momento em que suprimem suas barreiras secu-lares. No transformamos as questes mundanas em questes teolgicas. Transformamos as questes teolgicas em questes mundanas. Tendo a histria sido, por tempo suficiente, dissolvida em superstio, passamos agora a dissolver a superstio em histria. A questo da relao entre emanci-pao poltica e religio transforma-se para ns na questo da relao entre emancipao poltica e emancipao humana. Criticamos a debilidade religiosa do Estado poltico ao criticar o Estado poltico em sua construo secular, independentemente de sua debilidade religiosa. Humanizamos a contradio entre o Estado e uma determinada religio, como, p. ex., o judasmo, em ter-mos de contradio entre o Estado e determinados elementos seculares, em termos de contradio entre o Estado e a religio de modo geral, em termos de contradio entre o Estado e seus pressupostos gerais.

    A emancipao poltica do judeu, do cristo, do homem religioso de modo geral consiste na emancipao do Estado em relao ao judasmo, ao cristia-nismo, religio como tal. Na sua forma de Estado, no modo apropriado sua essncia, o Estado se emancipa da religio, emancipando-se da religio do Estado, isto , quando o Estado como Estado no professa nenhuma religio, mas, ao contrrio, professa-se Estado. A emancipao poltica em relao religio no a emancipao j efetuada, isenta de contradies, em relao religio, porque a emancipao poltica ainda no constitui o modo j efe-tuado, isento de contradies, da emancipao humana.

    O limite da emancipao poltica fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitao sem que o homem realmente

    7 As fontes de Marx aqui, alm do texto de Beaumont j citado, so: Alexis de Tocqueville, De la dmocratie en Amrique [A democracia na Amrica], Paris, 1835; e Thomas Hamilton, Die Menschen und die Sitten in den vereinigten Staaten von Nordamerika [Homens e costumes nos Estados Unidos da Amrica], Mannheim, 1834. (N. E. B.)

  • 39

    Sobre a questo judaica

    fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre [Freistaat, repblica] sem que o homem seja um homem livre. O prprio Bauer admite isso tacitamente quando impe a seguinte condio emancipao poltica:

    Todo e qualquer privilgio religioso, ou seja, tambm o monoplio de uma igreja privilegiada, j teria sido abolido, e se alguns ou muitos ou at mesmo a maioria esmagadora ainda acreditasse ter de cumprir deveres religiosos, esse cumpri-mento deveria ser deixado por conta deles como questo puramente privada.8

    O Estado pode, portanto, j ter se emancipado da religio, mesmo que a maioria esmagadora continue religiosa. E a maioria esmagadora no deixa de ser religiosa pelo fato de ser religiosa em privado.

    Porm, o comportamento do Estado, principalmente do Estado livre, para com a religio nada mais do que o comportamento das pessoas que com-pem o Estado para com a religio. Disso decorre que o homem se liberta de uma limitao, valendo-se do meio chamado Estado, ou seja, ele se liberta poli-ticamente, colocando-se em contradio consigo mesmo, alteando-se acima dessa limitao de maneira abstrata e limitada, ou seja, de maneira parcial. Decorre, ademais, que o homem, ao se libertar politicamente, liberta-se atravs de um desvio, isto , de um meio, ainda que se trate de um meio necessrio. Decorre, por fim, que, mesmo proclamando-se ateu pela intermediao do Estado, isto , declarando o Estado ateu, o homem continua religiosamente condicionado, justamente porque ele s reconhece a si mesmo mediante um desvio, atravs de um meio. A religio exatamente o reconhecimento do homem mediante um desvio, atravs de um mediador. O Estado o mediador entre o homem e a liberdade do homem. Cristo o mediador sobre o qual o homem descarrega toda a sua divindade, todo o seu envolvimento religioso, assim como o Estado o mediador para o qual ele transfere toda a sua im-piedade, toda a sua desenvoltura humana.

    A elevao poltica do homem acima da religio compartilha de todos os defeitos e de todas as vantagens de qualquer elevao poltica. O Estado como Estado anula, p. ex., a propriedade privada; o homem declara, em ter-mos polticos, a propriedade privada como abolida assim que abole o carter censitrio da elegibilidade ativa e passiva, como ocorreu em muitos estados norte-americanos. Hamilton interpreta esse fato com muito acerto do ponto de vista poltico quando diz: A grande massa levou a melhor sobre os propriet-rios e a riqueza em dinheiro. Acaso a propriedade privada no estaria abolida em princpio se o no proprietrio se tornasse legislador do proprietrio? A estratificao censitria a ltima forma poltica de reconhecimento da pro-priedade privada.

    No entanto, a anulao poltica da propriedade privada no s no leva anulao da propriedade privada, mas at mesmo a pressupe. O Estado

    8 Marx aqui cita novamente esse trecho do texto de Bauer, Die Judenfrage, p. 65. (N. E. B.)

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    Karl Marx

    anula sua maneira a diferenciao por nascimento, estamento, formao e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formao e atividade laboral como diferenas apolticas, ao proclamar cada membro do povo, sem considerao dessas diferenas, como participante igualitrio da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. No obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formao, a atividade laboral atuem maneira delas, isto , como propriedade privada, como formao, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essncia particular. Longe de anular essas diferenas fticas, ele existe to somente sob o pressuposto delas, ele s se percebe como Estado poltico e a sua universalidade s torna efetiva em oposio a esses elementos prprios dele. Sendo assim, Hegel determina a relao entre o Estado poltico e a religio com muito acerto quando diz:

    Para que [...] o Estado chegue existncia como realidade moral do esprito ciente de si mesma, faz-se necessria sua diferenciao em relao forma da autoridade e da f; mas essa diferenciao s aparece na medida em que ocorre uma diviso no lado eclesial; s assim, pela via das igrejas particulares, o Estado obtm a universalidade da ideia, o princpi