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“O ator deve trabalhar a vida inteira, cultivar seu espírito, treinar sistematicamente os seus dons, desenvolver seu caráter; jamais deverá despencar e nunca renunciar a este objetivo primordial: amar sua arte com todas as forças e amá-la sem egoísmo”. Constantin Stanislavski ada um tem a sua. Única num universo infini- to de possibili- dades, a per- sonalidade é algo que cons- truímos ao longo dos anos, prin- cipalmente em nossa infância, e depende de fatores sociais, geo- gráficos, culturais, temporais, fa- m i l i a res, genéticos, espirituais, além do acaso que cada momen- to nos proporciona. Se a vida em plenitude, como disse Jesus Cris- to, é possível, isso acontece por- que de cada momento podemos absorver e sentir com nossos cor- pos o prazer que o milagre da existência pode gerar. Ou o desprazer. Basta estar receptivo, conectado. Isso é um assunto para depois. Sobre a persona- lidade, digamos que seja fácil para cada um de nós atuar o próprio personagem. Acredita- mos nessa loucura toda que cri- amos para nós mesmos, nessa “roupa que vestimos”, porque é dessa maneira que estamos acos- tumados a ser, depois de longos anos sujeitos a relações de forças, ou melhor, jogos de interesse, aprovação, reprovação, estímu- los externos e internos. Não esqueçamos também do livre arbítrio. Daí, vamos nos tornan- do quem somos. Ou acreditamos que somos. Ou nos fizeram crer. Mas então um dia eu resolvo me lançar um desafio. Quero tes- tar algo diferente, ser alguém que nunca fui? Será que isso dá pra- zer? Sempre bate aquela insegu- rança diante do desconhecido. E o fato de havermos feito a opção por um determinado persona- gem, e não outro, significa que de alguma maneira ele já estava ali, latente e adormecido, esperando por uma oportunidade ou descul- pa para se expressar? Pergunta difícil, boa para refletir. Mas tomar a atitude de experimentar relações diferentes com o mundo e consigo mesmo é, no mínimo, um bom exercício de autoco- nhecimento. Você pode ou não se identificar com a nova “más- cara”, substituindo a anterior ou simplesmente sobrepondo-a à antiga. Ou às muitas outras adquiridas no passado. Neste caso, você descobriu um pedaci- nho de si, que estava guardado sem saber. Você pode não gostar do novo formato. Então foi pura farra mesmo. Ou peripécia men- tal. Mas não pensemos nisso agora. O importante na hora “H” é aproveitar, livre de julgamentos e culpa, absorto num éter dio- nisíaco de prazer e mistério, de riscos e oportunidades. Idéias como essa ganham con- torno ainda melhor na boca de Danilo Moreno, ator, artista, amante da vida e das pessoas, com “24 anos bem vividos, 24 primaveras de amor, de entrega, de liberdade”. “Tolir nunca. Li- vre-arbítrio!”, é o lema que de- monstra claramente a atitude perante o mundo que ele reco- menda. Estar aberto a experiên- cias, ao “fluxo”, se permitir a vi- da, porque o “prazer é o líquido que escorre pelas pernas”. Com Janeiro/Junho 2004 26 BRUNO PRADA, FRED D`AMATO, LEO CAPUTTI E THIAGO FRANCO Máscaras que revelam ou ocultam Quando o prazer se aplica à mudança de personalidade C

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“O ator deve trabalhar a

vida inteira, cultivar

seu espírito, treinar

sistematicamente os seus

dons, desenvolver seu

caráter; jamais deverá

despencar e nunca re n u n c i a r

a este objetivo primord i a l :

amar sua arte com todas as

forças e amá-la sem egoísmo”.

Constantin Stanislavski

ada um tem asua. Única numuniverso infini-to de possibili-dades, a per-

sonalidade é algo que cons-truímos ao longo dos anos, prin-cipalmente em nossa infância, edepende de fatores sociais, geo-gráficos, culturais, temporais, fa-m i l i a res, genéticos, espirituais,além do acaso que cada momen-to nos proporciona. Se a vida emplenitude, como disse Jesus Cris-to, é possível, isso acontece por-que de cada momento podemosabsorver e sentir com nossos cor-

pos o prazer que o milagre daexistência pode gerar. Ou odesprazer. Basta estar receptivo,conectado. Isso é um assuntopara depois. Sobre a persona-lidade, digamos que seja fácilpara cada um de nós atuar opróprio personagem. Acre d i t a-mos nessa loucura toda que cri-amos para nós mesmos, nessa“roupa que vestimos”, porque édessa maneira que estamos acos-tumados a ser, depois de longosanos sujeitos a relações de forças,ou melhor, jogos de intere s s e ,aprovação, reprovação, estímu-los externos e internos. Nãoesqueçamos também do livrearbítrio. Daí, vamos nos tornan-do quem somos. Ou acreditamosque somos. Ou nos fizeram crer.

Mas então um dia eu resolvome lançar um desafio. Quero tes-tar algo diferente, ser alguém quenunca fui? Será que isso dá pra-zer? Sempre bate aquela insegu-rança diante do desconhecido. Eo fato de havermos feito a opçãopor um determinado persona-gem, e não outro, significa que dealguma maneira ele já estava ali,latente e adormecido, esperandopor uma oportunidade ou descul-pa para se expressar? Perguntadifícil, boa para re f l e t i r. Mas

tomar a atitude de experimentarrelações diferentes com o mundoe consigo mesmo é, no mínimo,um bom exercício de autoco-nhecimento. Você pode ou não seidentificar com a nova “más-cara”, substituindo a anterior ousimplesmente sobrepondo-a àantiga. Ou às muitas outrasadquiridas no passado. Nestecaso, você descobriu um pedaci-nho de si, que estava guardadosem saber. Você pode não gostardo novo formato. Então foi purafarra mesmo. Ou peripécia men-tal. Mas não pensemos nissoagora. O importante na hora “H”é aproveitar, livre de julgamentose culpa, absorto num éter dio-nisíaco de prazer e mistério, deriscos e oportunidades.

Idéias como essa ganham con-torno ainda melhor na boca deDanilo Moreno, ator, art i s t a ,amante da vida e das pessoas,com “24 anos bem vividos, 24primaveras de amor, de entrega,de liberdade”. “Tolir nunca. Li-vre-arbítrio!”, é o lema que de-monstra claramente a atitudeperante o mundo que ele reco-menda. Estar aberto a experiên-cias, ao “fluxo”, se permitir a vi-da, porque o “prazer é o líquidoque escorre pelas pernas”. Com

Janeiro/Junho 200426

BRUNO PRADA, FRED D`AMATO, LEO CAPUTTI E THIAGO FRANCO

Máscaras que revelam ou ocultam

Quando o prazer se aplica à mudança de personalidade

C

expressões pouco usuais, Daniloincita a reflexão do interlocutora c e rca da personalidade e doprazer em viver sem amarras.Segundo ele, a “plenitude” acon-tece a partir de três pressupostos:“sem tesão não há solução”;“viver ultrapassa qualquer enten-dimento”; “eu sou um produto euma experiência de mim mes-mo”.

Então, ser uma pessoa “plena”significa transgre d i r. Dar vozaos desejos e anseios intern o s ,personificá-los. É aí que entraem cena o “cidadão”, comotambém é conhecido Danilo. Eleconstantemente promove festaspara celebrar o “jorro”. Nelas, oconvite à auto-experimentaçãoencontra um fim em si mesmo.“A festa à fantasia é um pro c e s-so criativo a ser vivido e me dáprazer porque é verd a d e i ro, temsentimento”, revela. Moreno dizque ser ator é a mentira maisv e rdadeira e que é intere s s a n t epoder dar vida a personagensmesmo sem que haja identifi-cação entre criador e criatura.Seja na festa à fantasia, seja nodia a dia da profissão de ator, ov e rd a d e i ro prazer em constru i rpersonagens de uma maneiramais voluntária está na buscapelo autoconhecimento. Não setrata de papéis sociais que sea p rende durante a vida emsociedade, em que cada indiví-duo tem uma perf o rm a n c ecomo filho, amigo, pro f i s s i o n a l ,turista e uma infinidade de ou-tras possibilidades. Estes papéissão rasos e codificados pelomeio em que se vive. A experi-mentação de que fala Danilo,m o reno, “cidadão”, vem menos

do mundo que nos rodeia, maisdo universo que nos habita. Ded e n t ro .

Mané ciência, Gentil, Bobo dac o rte, Bruno, o Port e i ro, o Vi l ã o ,p reta. Alguns nada acre s c e n-taram; outros lhe mudaram avida, conta o “cidadão”. A perso-nagem Gentil, por exemplo, teveuma grande importância paraDanilo, porque lhe ensinou a secolocar no lugar dos outros, a vero mundo com outros olhos – os dadelicadeza –, e isso até hoje mar-ca sua personalidade. O prazerno momento está em viver opapel de “preta: a madama, afaceira, a cortesã, a menina”.Para Danilo, “Preta não pensaem termos de certo ou errado, elavai sempre na direção do prazer,ela visa a uma contemplaçãoe r ó t i c a ” .

O carnavalÉ impossível falar em troca de

personalidade sem citar o car-naval, cuja essência é o próprioestímulo à inversão de valores.Ele representa um fenômeno sin-gular, capaz de integrar o ima-ginário coletivo numa celebraçãoúnica. Pelo menos aqui no Brasil,em nenhuma outra ocasião aeuforia e os festejos têm tamanhaamplitude, reunindo as diversasesferas da sociedade, desde asclasses mais simples até as elites.Os dias de folia são uma experi-ência vivida em conjunto, quan-do as pessoas parecem despir-sede todas as atribuições cotidianasàs suas personalidades para des-frutarem de outra vida, isenta depreocupações e dívidas, e muitodiferente daquela à qual estãoacostumadas.

Com muito prazer 27

Danilo (à direita) encarna “A Preta” em festa à fantasia

Por seu poder de abrangência,o carnaval consegue enverg a rtoda a estrutura social sob umparâmetro distorcido, invertendopólos e posições, como se o uni-verso inteiro virasse de cabeçapara baixo. Ele é uma regra quevale para todos: quase um inter-valo no mundo real. Assim, tudoque antes era sério vira engraça-do, o errado passa a ser certo, op roibido é liberado. Esse re s u l t a d onão poderia estar mais bemexemplificado do que nos blocosonde as pessoas comuns encar-nam, sem ressentimentos, perso-nagens marginalizados do mun-do real como bêbados e pro s t i-t u t a s .

A ofegante epidemia do car-naval e a possibilidade de viveressa “outra vida” renderam teo-rias antropológicas sobre o as-sunto. O brasileiro Roberto daMatta descreve o carnaval como

um evento capaz de destru i r,num plano simbólico, as hierar-quias opressivas da sociedade.Para ele, a mudança de papéis ede personalidade dos foliões sãoo ensejo da utopia, a manifes-tação da liberdade – ainda quemetaforicamente –, que ofuscamas castas e alienações do mundoreal. Da Matta trata o eventocomo uma linguagem unitáriadividida por brancos e negros,ricos e pobres, homens e mu-lheres, heterossexuais e homos-sexuais, na qual as diferençassão apenas caricaturas que atra-em os indivíduos em vez de sepa-rá-los.

O antropólogo José CarlosRodrigues também defende que aprincipal proposta do carnaval éa transgressão à regra. Em paísescomo o Brasil, com grande índicede desigualdade social onde aregra é a hierarquia, o gozo car-navalesco encontra-se na inver-são. Por isso, os marg i n a l i z a d o sassumem o centro da vida social.É o caso do singelo habitante daperiferia que nos dias que antece-

dem a quarta-feira de cinzasassume o glamouroso posto dem a e s t ro na orquestra de tam-b o res; ou da mulata, que sofrep reconceito durante o ano inteiro ,mas durante o carnaval se trans-f o rma na rainha da passare l a ,e rotizada e exaltada pela platéia.

Contudo, na opinião de JoséCarlos, o fenômeno da quebra darotina – e inversão de papéis –serve apenas para reafirmar aordem. “A lógica do simbolismo éuma lógica binária: as coisas sedefinem por contraposição. Eu sósei o que a ordem é por oposiçãoà ausência dela. Quase todas associedades têm momentos emque é possível, ou até mesmoobrigatório, que você transgridaas regras. Você pratica o opostopara afirmar o que é cotidiano. Ocarnaval tem esse papel políticode controle social.”

O “Big Brother”: a fama quereconstrói o indivíduo

Diante das câmeras também écomum que as pessoas encarnemum personagem, principalmenteem jogos como o reality show “BigB rother Brasil” (BBB). Marc e l oGomes, o Zulu, de 23 anos, queparticipou da quarta edição doBBB, tinha como objetivo con-seguir um patrocinador que olevasse às Olimpíadas de Atenas.Mas tudo foi deixado de ladoquando, ao sair do confinamen-to, os compromissos e o grandeassédio mudaram de vez a vidado estudante de Engenharia deTelecomunicações.

Considerado uma “metralha-dora” na atração da TV Globo,por frustrantes tentativas emconquistar as mulheres, Zulu

Janeiro/Junho 200428

“Sem tesão não hásolução”; “viver

ultrapassa qualquerentendimento”; “eusou um produto e

uma experiência demim mesmo”

Danilo Moreno

No Carnaval, as fantasias ajudam aexperimentar a inversão de papéis

garante que sua vida não deveser dividida em antes e depois do“Big Brother”, já que o convívionem sempre pacífico na casa nãopassa de uma competição feitade estratégias para conquistar asimpatia do público.

Na verdade, a visão de Zulu seestende a todos os participantes detodas as edições do “Big Bro t h e r ” ,que em horário nobre transfor-mavam o programa, na verd a d e ,em uma de muitas tramas que aemissora transmite durante o dia.O autor, no caso, é o telespectadorque dita o caminho a ser seguidopor cada participante. Os atore s ,na casa, manipulavam suaprópria personalidade, pro c u r a n-do ocultar os maiores defeitos emostrar virtudes que os levassemà glória da final.

Zulu acredita na continuidadedos seus trabalhos, agora comouma pessoa pública. A verdade éque, apesar de manter suas raízesem Niterói, onde mora com afamília, Marcelo Zulu já não secomporta como o Zulu dos tem-pos de escola. O que se vê hoje éum Zulu diferente. Amigos dizemque agora ele sempre tem a agen-da lotada como justificativa parasua ausência.

P e d ro Bial, apresentador detodas edições do “Big Bro t h e rBrasil”, acredita que as pessoaspodem se descobrir em um re a l i t ys h o w. “É natural que cada umcrie um personagem, e não é queele seja falso, ele apenas tem quese adaptar”. Para ele, o que se vêno programa são novas manifes-tações de uma mesma personali-dade. São os concorrentes que,respondendo a empurrões exter-nos, adequam o temperamento e

o jeito de ser. Pedro ressalta quenem sempre é assim. Muitasvezes, a máquina de celebridadesconstrói personagens caricatos,com uma re p resentação emoldu-rada de fora para dentro. Dessamaneira, a pessoa ficaria esvazi-ada, perdida e sem expre s s ã o .

“Essa idéia de ‘eu’ são as cris-talizações de tudo o que vocêpassou. O que desejo? O que euq u e ro? É na luta por essas con-quistas que se entra em contatocom outras facetas da personal-idade”. Bial acrescenta que mui-tos dos que se tornaram famosos(por exemplo, Leka, Manuela eJuliana) também se torn a r a mpessoas mais completas, nãopela celebridade em si, mas portoda a busca de identidade queo programa instigou nelas. P a r ao apre s e n t a d o r, os momentosmais bonitos foram quando,dando mais expressão aos senti-mentos, o indivíduo via a neces-sidade de iniciar um processo ded e s c o n s t rução e autoconheci-m e n t o .

“É natural que cadaum crie um

personagem, e não éque ele seja falso,

ele apenas tem que se adaptar”

Pedro Bial

A repercussão do BBB tornou churrascos com amigos raros para Zulu

Com muito prazer 29