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MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO COMO DISPOSITIVO NECROPOLITICO 1 . Yann Gomes dos Santos (PPGHDL FFLCH/USP) 2 A memória dos ditadores. Jair Bolsonaro, na época deputado, em frente ao seu gabinete. Foto: reprodução internet. 1 Texto apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS - GT23 - Memória Social e Sociedade: os desafios contemporâneos. 2 Especialização em Direitos Humanos, Diversidade e violência pela UFABC. Doutorando em Humanidades, Direitos e outras legitimidades pela FFLCH/USP. E-mail: [email protected]

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Page 1: MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO …

MATAR OCULTAR ESQUECER – O DESAPARECIMENTO

FORÇADO COMO DISPOSITIVO NECROPOLITICO1.

Yann Gomes dos Santos (PPGHDL – FFLCH/USP)2

A memória dos ditadores.

Jair Bolsonaro, na época deputado, em frente ao seu gabinete. Foto: reprodução internet.

1 Texto apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS - GT23 - Memória Social e Sociedade: os desafios

contemporâneos. 2 Especialização em Direitos Humanos, Diversidade e violência pela UFABC. Doutorando em Humanidades,

Direitos e outras legitimidades pela FFLCH/USP.

E-mail: [email protected]

Page 2: MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO …

Jair Bolsonaro, ainda como deputado, em comemoração dos 50 anos do golpe militar de 1964.

A memória dos Familiares de mortos e desaparecidos políticos.

Caminhada do Silêncio - Ibirapuera São Paulo - 31.03.18 Foto: Edilson Dantas

Caminhada do Silêncio - Ibirapuera São Paulo - 31.03.18 Foto: Edilson Dantas

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O retorno do recalcado – conflito de memórias

Avenida Paulista 31/03/2019 - Fotos: Jardiel Carvalho/Folha Express. - Militantes pró e contra o golpe de 1964

brigam na Av. paulista.

Avenida Paulista 31/03/2019 - Fotos: Jardiel Carvalho/Folha Express

Page 4: MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO …

Impossível apurar, impossível nomear – cristalizando discursos oficiais.

Monumento em Homenagem aos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar - Ricardo Ohtake, Fotos próprias

com destaque para texto.

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Profanações – subvertendo dispositivos.

Cemitério de Perus em São Paulo-SP, monumento colocado próximo ao local onde foi descoberta a vala de

Perus. Foto: reprodução internet.

Escrevo esse texto com base nas imagens que mostrei acima. A partir delas, penso na

relação entre esquecimento, memória e as políticas do fazer morrer em situações onde se tenta

apagar o rastro com a destruição do corpo. Proponho, então, uma reflexão sobre o

Desaparecimento Forçado, um tipo de crime que se disseminou no Brasil no período da

Ditadura Militar.

Opto por um percurso que vai desde entender as formas do esquecer até o estudo acerca

do dispositivo necropolítico “Desaparecimento forçado”, que tem como efeitos a manipulação

da memória e o soterramento do traço para retirar da esfera comum a existência de formas de

vidas diferentes da “civilizada” e “racional”, ou melhor, da “patriota”, da “família com deus

pela liberdade”.

Page 6: MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO …

O rastro: Lembrar - Esquecer

O esquecimento, na maior parte dos casos, é indesejável e visto como fraqueza que põe

em xeque a confiabilidade da memória e do testemunho por subsequente. Ricoeur (2007) fala

que isso acontece porque se confunde a memória com a rememoração – capacidade de se

remeter a fatos. Ao mesmo tempo, a memória total é indesejada, causa horror, pois seria

impossível viver se lembrássemos de cada dor, cada angústia, cada trauma, sendo o

esquecimento necessário para viver o presente, pois, como elucida Gagneban (2006), “o trauma

é ferida aberta na Alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que

não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo

sujeito.” (GAGNEBIN, 2006, p.110).

Ricoeur (2007) argumenta ainda que só existe memória com o esquecimento. Destarte,

é numa ação de interação entre os dois que construímos nossas memórias, nossas imagens para

lembrar. Quando se trata de memória coletiva, resta destacar que essa interação se dá por

distanciamento e proximidade do lembrado, e que, é no exercício de rememorar que notamos o

esquecimento para lembrar novamente, a ausência de algo então faz possível sua

presentificação. O esquecimento opera uma tarefa de seleção, de leitura ou encobrimento de

rastros. Então, se o esquecimento é tão polissêmico, é preciso pontuar a diferença entre as

formas do esquecer.

O autor sistematiza memória e esquecimento, apontando que existe uma forma de

esquecimento que se configura como a amnésia – que consiste na subtração/apagamento do

rastro, da imagem, do registro, no intuito de impedir e manipular a memória. Já o esquecimento,

enquanto manifesto ou de reserva - que tem relação com a elaboração/ perlaboração, permite

que sigamos a vida, sem reviver todas as nossas dores todos os dias (não lembro agora o que

aconteceu, mas posso lembrar).

Então temos ao menos duas grandes formas de tratar o esquecimento, como violência

contra a memória, que visa barrar a lembrança ou esconder os traços para que não se saiba e

um outro tipo, ou um esquecimento de reserva, feliz, que podemos acessar quando necessário

mas que não me impede a vida no presente por estar preso em uma repetição do passado. Como

aponta Gagnebin (2006),

Há um esquecer natural, feliz, necessário à vida, dizia NietzcheNietzsche. Mas existem

também outras formas de esquecimento, duvidosas: não saber, saber mais não querer

saber, fazer de conta que não se sabe, denegar, recalcar E por que os alemães dos anos

50 e 60 desejavam tanto esquecer, segundo Adorno?Porque o peso do passado era tão

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forte que não se podia mais viver no presente; esse peso era insuportável porque era

feito não apenas do sofrimento indizível das vítimas, mas também, e antes de tudo, da

culpa dos algozes. (GAGNEBIN, 2006, p.101).

Como vemos na fala da filósofa, a vida no presente está intrinsecamente ligada a como

lidamos com eventos passados, por isso a importância de entender o esquecimento. No texto

“Conto e Cura”, Walter Benjamin ilustra, através do exemplo de uma mãe que consola o filho

em dor, como opera esse esquecimento feliz. No exemplo, a mãe, ao contar uma história ao

filho, faz com que ele esqueça a dor. Para Benjamin (2012), “a cura (se dá) através da narrativa”

(BENJAMIN, 2012, p.276), onde o relato é o próprio início do processo de cura. Vemos, então,

que o esquecimento feliz passa pela possibilidade de uma narrativa, de poder contar sobre e não

de impedir saber sobre. O momento traumático fica então no passado, mas sem que seja

ocultado.

No entanto, como falamos, é preciso distinguir o esquecimento feliz e a amnésia, que é

uma perturbação ou imposição que veta o lembrar. Paul Ricoeur (2008), analisando duas

figuras jurídicas que visam a supressão da punibilidade, irá contrapor o Perdão, oriundo de uma

elaboração, com o esquecimento que pode decorrer de uma Anistia.

Em “O Justo” ele define a Anistia como “amnésia institucional” (RICOEUR 2008).

Segundo o filósofo, existe uma diferença marcante entre as figuras jurídicas Anistia e Perdão.

A primeira propõe uma forma de esquecimento que leva à amnésia por tomar o evento delituoso

como se não tivesse acontecido, por sua vez, o perdão seria o oposto, pois requer a memória,

ou seja, o evento delituoso não só é conhecido como é exigência para o perdão conhecê-lo para

que haja a elaboração. Gagnebin (2010) faz uma análise e aplicação desse conceito para o caso

da Lei de Anistia brasileira que se coloca como principal empecilho para a elaboração do

período da Ditadura Militar.

Para a autora, a lei de Anistia visa criar uma conciliação forçada, com a narrativa de um

país hospitaleiro e festivo e, assim, esconder as violações de direitos ocorridas durante a

ditadura, colocando um ponto final, buscando silenciar a busca por verdade. Éneste aspecto,

que se fala de uma amnésia que foi imposta de forma institucional.

Contrariando essa tentativa autoritária, é a partir da busca dos rastros que a disputa de

narrativas sobre o período da ditadura militar no Brasil se firma. Na busca pela verdade sobre

os desaparecidos políticos temos o maior exemplo de tentativa de soterrar rastros (corpos e

documento). Gagnenbin (2006) explica que a reflexão sobre a memória utiliza tão

frequentemente a imagem – o conceito de rastro, pois “a memória vive essa tensão entre

presença e ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas,

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também, presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente.

Riqueza da memória certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (Gagnenbin,

2006. p. 44).

Essa fragilidade do rastro enseja uma busca atenta e vigilante e é por isso que se faz

necessário entender os mecanismos de violência contra a memória.

Matar. Ocultar. Esquecer – o dispositivo necropolítico

Para entender essa tensão entre narrativas, faço a análise do desaparecimento forçado, a

partir da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas. Aprovada pela

assembleia geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1994, define-se por

desaparecimento forçado:

A privação da liberdade de uma ou mais pessoas, por qualquer forma, cometida por

agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com a autorização,

com o apoio ou com a anuência do Estado, seguida da falta de informação ou da

negativa de se reconhecer dita privação da liberdade ou de se informar o paradeiro da

pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais

pertinentes. (OEA, 1994)

O desaparecimento forçado é, assim, um mecanismo que retira da pessoa a liberdade

sem fornecer informações, ou tornar público esse ato. É uma prisão que acontece de forma

escusa e oculta, como num sequestro, impedindo que se acesse direitos e garantias processuais.

É uma prisão que não se assume, é feita de forma secreta, gerando incertezas e instabilidade

bem como a vulnerabilidade de quem é capturado dessa forma, que fica sujeitado a qualquer

tipo de ação abusiva e contra sua vida.

O desaparecimento forçado foi utilizado de forma ampla no Brasil, muitos opositores

do regime militar ou “inimigos de Estado” eram sequestrados e levados de forma forçada a

lugares como a Casa do Terror, Granjas, Porões de delegacias, entre outros lugares preparados

para executar práticas de tortura ou execução sumária.

A execução sumária, arbitrária ou extrajudicial podem ser definidas como:

todo e qualquer homicídio praticado por forças de segurança do Estado (policiais,

militares, agentes penitenciários, guardas municipais) ou similares (grupos de

extermínio, justiceiros), sem que a vítima tenha tido a oportunidade de exercer o direito

de defesa num processo legal regular, ou, embora respondendo a um processo legal, a

vítima seja executada antes do seu julgamento ou com algum vício processual; ou,

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ainda, embora respondendo a um processo legal, a vítima seja executada sem que lhe

tenha sido atribuída uma pena capital legal. (PIOVESAN et.al, 2001, p.16).

Percebemos então que se trata de um homicídio realizado com a finalidade de eliminar

a vítima, realizado por ação do Estado e seus agentes, sem que tenha sido imputada pena ou

garantia de direito de defesa. É um matar sem perguntar, matar sem dar o direito de se defender,

é um assassinato com intuito de aniquilação.

A execução sumária se enquadra numa lógica necropoítica de eliminação de um inimigo

interno que é visto como outro com o qual é impossível conviver e, portanto, precisa ser

aniquilado, seguindo a lógica de dispêndio do excesso.

Culminado com essa prática, estava a ocultação de cadáver. O Decreto Lei nº 2.848 de

07 de dezembro de 1940 que deu texto ao art. 211 do Código Penal Brasileiro e tipificou a

conduta de “Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele”. Aqueles que não resistiam a

sessões de tortura ou que era sumariamente assassinados pelos militares, muitas vezes não

tinham seus corpos devolvidos as famílias. Na verdade, a ocultação de cadáver tem o intuito de

apagar o crime e, por isso, esta é uma prática muitas vezes associada com o desaparecimento

forçado. Primeiro, era feito o desaparecimento forçado, e, uma vez que a pessoa estava sob o

domínio do Estado ou de milícias, sem as garantias legais ou divulgação desse ato, não se podia

saber ou ter a certeza se o indivíduo ou o corpo estava sob custódia do Estado, restando mais

“fácil” sumir com o corpo, ou melhor, assassinar e depois ocultar o cadáver a fim de negar o

crime.

E é por essa razão que verificamos nessa prática cumulada de Desaparecimento Forçado,

Execução sumária e Ocultação de Cadáver um dispositivo necropolítico por excelência.

A necropolítica, como explica Mmbembe, se caracteriza pela fragmentação do

território, a perda do monopólio da violência e a formação de grupos com interesses conflitivos,

a disposição de aparatos tecnológicos que possibilitam destruição em massa para subjugar e

matam seus inimigos (destroem pessoas), e o necropoder age embaralhando a fronteira entre

resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade. São políticas de morte e

inimizade que fundam a “soberania” num mundo de morte.

Sobre o dispositivo, Agamben (2014, p.32) delineia o termo dispositivo “no uso comum

como no foucaultiano, parece remeter a um conjunto de práticas e mecanismos (ao mesmo

tempo linguísticos e não linguísticos, jurídicos, técnicos e militares) que têm o objetivo de fazer

frente a uma urgência de obter um efeito mais ou menos imediato.” (AGAMBEN, 2014, p.32).

No caso do dispositivo que analisamos e está baseado na tríade: desaparecimento

forçado, execução sumária e ocultação de cadáver, o efeito imediato é a eliminação, que deve

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servir para silenciar imediatamente o contestante, menos imediato é seu efeito de apagar o

nome, que se pretende como efeito perpetuo: eliminar o sujeito da vida social, como uma

tentativa de apagar um traço, não deixar rastros. E, por isso, que o desaparecimento forçado se

culmina com a destruição de outro corpo, o documento, que pode dar provas do crime.

Ainda, o dispositivo “nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura

atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre

implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito”. (AGAMBEN,

2014, p.37).

O desaparecimento busca a eliminação do sujeito “inimigo de Estado”, produzido pela

exceção de forma autoritária - fragmentando a coesão social através da criação do inimigo

interno. Essa eliminação visa o apagamento do contraditório, do questionamento, da outra

possibilidade de vida, da contestação. Sua eficiência se pretende justamente na premissa de que

“Sem corpo, não há crime”, sem corpo não há prova do crime, Sem corpo não há traço, não há

vestígio. Esse dispositivo necropolítico visa apagar o corpo, impedir o sepultamento e destruir

a memória do nome.

O que pretendíamos com a formulação de nossa hipótese era delinear o dispositivo pelo

qual se implementava uma política de morte no Brasil que visava a uniformização dos

indivíduos, criar uma “coesão social”, por meio da eliminação dos indesejáveis e, com essa

uniformização, garantir uma narrativa única sobre a nação e sua construção, ocultando o

contraditório ou suas próprias táticas. Ao ocultar, ou tentar apagar o rastro, esse dispositivo

necropolítico pretendia o crime perfeito, que não seria possível nomear por não ser possível

enxergar o rastro de morte fundante do poder.

Outra característica que vemos presente durante a ditadura, de forma análoga, são a

lógica do martírio e a lógica da sobrevivência (Mbembe, 2018). No contexto da guerra fria que

a ditadura brasileira era situada, se considerava necessário que fosse eliminado o indivíduo

comunista para assegurar a vida, era um questão de eliminar esse terror para sobreviver, o que

gerava uma satisfação, um alívio na eliminação desse outro que “me possibilita viver”. Por

outro lado, percebemos a lógica do martírio na resistência. Tendo apenas seus corpos e, às

vezes, armas precárias, os insurgentes não se conformavam com a vida sem liberdade, sem

igualdade e sem direitos. Colocavam-se então em oposição ao regime e assumiam a condição

de luta sendo tachados de subversivo na tentativa de liberdade. No contexto em que se

colocavam, diante do poder bélico do regime, eles assumiam o risco da morte por tomar

consciência de que é melhor “perder a vida lutando” do que viver sob a opressão.

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Dessa forma, o dispositivo necropolítico capturava esse eros e transformava em

thanatos. Qualquer insurgente está motivado por leis que divergem do decreto de exceção. Sua

ação é movida por eros e hybris mas não exclui o logos. O desejo de liberdade se convertia em

eminencia de morte. Ao capturar esse corpo que busca liberdade o dispositivo realiza o processo

de desubjetivação do sujeito “militante” e o transforma num espectro, numa ausência – o

desaparecido.

Através desse dispositivo, se perpetua o soterramento do rastro, impedindo saber o que

aconteceu e apurar os crimes que foram cometidos tanto pelo Estado como por outros agentes

com a conivência do Estado. A consequência eminente desse artifício sobre a memória é

perpetuar um discurso de que as mortes (as que se conseguiu ter noticia) no período ditatorial

foram “excessos” contra “terroristas” numa guerra contra o “terror”.

Como não se tem acesso aos corpos (documentos e remanescentes humanos) a premissa

do “sem corpo, sem crime” se consolida nos “baixos números” de mortes apurados,

cristalizando o discurso de uma “ditablanda” no Brasil.

Outra consequência é que as políticas de memória no país operam sobre a premissa do

“impossível apurar” 3, alegada a impossibilidade de acesso aos documentos e restringindo o

campo de busca aos casos conhecidos que ficam cristalizados na metodologia de apuração do

“Caso Emblemático”, uma metodologia adotada pelas Comissões da Verdade que escolhem

casos para ilustrar o que aconteceu no período, são casos onde a apuração foi possível de forma

inconteste, demostrando a ação do Estado e sua relação com essas mortes.

Ainda, a partir dessa solidificação sobre o passado, como impossível apurar, prevalece

o “pacto de esquecimento” positivado com a lei de Anistia, que ao comparar os crimes de

Estado com os “crimes” dos perseguidos políticos, resolver passar uma borracha sobre o

conflito dissimulando a finalidade de possibilitar a vida no presente. Mas será que é possível

apagar rastro e viver no esquecimento? O conflito sem elaboração não está resolvido, o

recalcado volta então com a mesma força para a esfera pública.

Os conflitos de narrativas sobre esse passado recente voltam com cada vez mais força,

como quando o presidente em exercício Jair Bolsonaro, reafirma sua postura de comemorar o

dia 31 de maio4, data que marca o golpe militar no Brasil, como dia da “revolução que salvou

3 No monumento aos mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar no parque do Ibirapuera em São Paulo-

SP consta a seguinte frase: “impossível incluir todos os nomes de milhares de trabalhadores rurais, indígenas,

vítimas dos esquadrões da morte e outras pessoas também brutalmente executadas naquele período e que

permanecem desconhecidos”. 4 Para detalhes sobre o caso acessar a reportagem em: < https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-determina-que-

militares-celebrem-golpe-de-64-23549592> Acesso em 02 de julho de 2019.

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o país” ao mesmo tempo em que os familiares de mortos e desaparecidos fazem atos5 para

relembrar os crimes da ditadura e exigir verdade e justiça. O presidente nega os crimes e louva

o passado delituoso que, em sua opinião, “deveria ter matado muito mais” e, ainda, critica a

busca dos familiares pelos remanescentes humanos, pois, segundo Bolsonaro6, quem “busca

osso é cachorro”.

Dessa forma, o dispositivo necropolítico - desaparecimento forçado, visa perpetuar a

narrativa única, manipulada, que contribui para a imposição de uma ideologia sobre história e

memória nacional, sendo ela uma violência contra o lembrar, principalmente nos aspectos do

luto e do reconhecimento social que ele acarreta. Como Afirma Butler (2015), saber quais vidas

são passiveis de luto indica quais vidas são consideradas como vidas.

E é pelo clamor dos familiares de mortos e desaparecidos que a busca continua e,

subvertendo o dispositivo, cunharam o termo “Desaparecido Político”, por não se conformarem

em ter seus familiares como um desaparecido sem motivação conhecida. Essas famílias exigem

que o Estado reconheça os crimes, preservando a memória de seus entes queridos, não como

terroristas, mas como perseguidos do regime, como aqueles que lutaram contra a ditadura em

favor da liberdade. Azevedo explica como o termo desaparecido político surge na esfera pública

e seus motivos:

Os primeiros esforços em torno da construção de sentidos para o “desaparecimento

político” vieram dos setores de oposição à Ditadura e passaram pela tentativa de defini-

lo como parte de um conjunto de crimes perpetrados pela repressão política que

deveriam ser reconhecidos como “terrorismo de Estado”. O desaparecimento teria um

papel fundamental na caracterização da Ditadura como um regime autoritário

excepcional[...]O desaparecimento é, por um lado, inserido em uma história de

“violência política” associada à trajetória de períodos discricionários na época

republicana. Entendendo “política”, numa acepção restrita, como disputa direta pelo

poder e, consequentemente, “repressão” como um movimento contra grupos

organizados em torno deste propósito: militantes, oposicionistas, inimigos do

regime.[...] Por outro lado, o desaparecimento se converte em marca da

excepcionalidade da Ditadura, que é identificada não propriamente no exercício da

violência para assegurar o poder, mas na criação de uma “figura misteriosa” cercada de

ausências (de corpo, de nome, de informação) e incertezas (onde está? Morreu? Como?

Quem é responsável?). (AZEVEDO, 2016. p.70-71)

5 No dia 30/03/2019 familiares, amigos, entidades da sociedade civil organizada, entre outros, fizeram ato na

delegacia onde operava o DOI-CODI na rua Tutoia em São Paulo. Além de lembrar dos mortos e desaparecidos,

afirmavam a luta para que o local se torne um memorial da ditadura e reafirma o combate a tortura e tratamentos

degradantes. Mais informações no link: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/30/manifestantes-

fazem-ato-contra-ditadura-militar-na-zona-sul-de-sp.ghtml> acesso em 3 de julho de 2019. No dia 31.03.2019 foi

feita a “caminhada do silêncio” no Parque do Ibirapuera em São Paulo, organizada por entidades dos familiares de

mortos e desaparecidos políticos. 6 Informação disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2019/04/22/bolsonaro-encerra-grupos-responsaveis-por-identificar-ossadas-de-vitimas-da-ditadura/> Acesso em 25.jul.2019.

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Mas por que era necessário diferenciar esse desaparecimento? A legislação brasileira já

previa a figura do “ausente” que servia para operacionalizar questões burocráticas e relativas a

direitos em casos de desaparecimento, mas essa figura não comtemplava a especificidade do

desaparecimento forçado das vítimas da ditadura. Azevedo (2016) faz um estudo de como o

grupo de familiares de mortos e desaparecidos cunhou o termo “desaparecido político” para

contemplar uma narrativa que explicitasse o caráter político e a violência de Estado inerentes

ao caso, recusando utilizar a figura do “ausente”, que não reconhece causa para o

desaparecimento, em sua pesquisa entendemos a necessidade do nomear e especificar esse

crime, como fica evidente no trecho que analisa as entrevistas de sua pesquisa de campo:

Para Elisabeth Silveira e Silva do GTNM/RJ, a figura jurídica “ausência” não

diferenciaria os casos da grande variedade de ocorrências cotidianamente classificadas

como “desaparecimentos”. Entre outras possibilidades: sequestro ou perda de crianças;

fugas de adolescentes; adultos vítimas de acidentes, ou que saem de casa para tarefas

cotidianas e, pelos mais variados e desconhecidos motivos, nunca mais retornam; ou

ainda casos diretamente relacionados à violência urbana. Os estudos antropológicos e

sociológicos que tomam como objeto tais fenômenos (por exemplo,FERREIRA, 2011;

ARAÚJO, 2012; OLIVEIRA, 2007) atentam para a diversidade de acontecimentos

organizados sob o termo “desaparecimento” e, consequentemente, para as imprecisões

que ele carrega. Um fenômeno que, a princípio, não poderia ser associado à existência

de um crime que o tenha originado. (AZEVEDO, 2016, p.73)

Ainda no trabalho de Azevedo (2016) encontramos um trecho de seu material de campo,

uma entrevista, que resume o sentimento dos familiares frente ao instituto jurídico da

“ausência” e o iminente apagamento dos crimes de estado que essa atribuição e gera, pois uma

vez que esse instituto não reconhecer um crime que gerou o desaparecimento, ele ocultaria

totalmente a narrativa de luta dos opositores da ditadura e negaria as graves violações de direitos

cometidas pelo Estado, para entender melhor, extraímos um trecho da pesquisa:

Se você quisesse poderia na justiça, como qualquer pessoa que desaparece por mais de

5 anos. Qualquer situação. [Por exemplo,] você tá casada, o cara some 5 anos e ninguém

acha. Você pode ir na justiça e pedir o atestado de presunção de morte, né? Pra você

resgatar a sua vida, pra fazer inventário, pra requisitar uma pensão ou dar baixa no nome

dele em algum negócio. Enfim, a questão legal. Qualquer pessoa que desaparece 5 anos,

você pode fazer isso. Era isso que eles queriam que fizesse. Não era isso que a gente

queria, porque isso não era verdade. Então, eu acho que nenhuma família pediu ou

aceitou. Provavelmente alguma fez, mas eu não tenho conhecimento. (...) Mas eu acho

que foi pouquíssimos. Eu não tenho conhecimento. Não sei de ninguém que fez, porque

não era essa a verdade. Eles não estavam desaparecidos porque, sei lá, foi atropelado

em algum lugare ninguém achou e foi enterrado como indigente, como em alguns casos

acontece. Não é essa a situação e todo mundo sabia muito bem que não era. Minha mãe

poderia fazer: meu irmão tava desaparecido, procurou em tudo quanto era lugar. Mas

ela não ia fazer isso, porque ela sabia que não foi isso que aconteceu. Jamais ela ia fazer

isso (Entrevista com Elizabeth Silveira e Silva, Rio de Janeiro, 18 de dezembro 2013

in: AZEVEDO, 2016, p.73).

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Na fala de Elizabeth entendemos que a recusa a atribuição da figura do “ausente”

impulsionou o debate e a necessidade de um dar nome e denunciar a conduta do Estado e

combater o discurso do Estado ou a tentativa de “silêncio” militar, e nessa luta surge a Lei de

Mortos e Desaparecidos Políticos entre outras políticas de memória e reparação. Ainda, as

famílias buscavam não só o reconhecimento dos crimes de Estado, mas os corpos de seus entes

para realização de ritos fúnebre. No clamor dos familiares percebemos que o luto se transforma

em luta e opera resistências ao dispositivo, causando profanações, aberturas num contexto de

continuidade da luta de seus entes.

A disputa não acabou e, em alguns momentos, a necessidade de silêncio parece que

impõe o esquecimento. Mas a memória opera de várias formas, ela está latente, e uma hora o

traço fica nítido, forma a imagem e fica impossível ignorá-lo. A vala de Perus é um exemplo

de como o traço resiste e uma hora submerge, trazendo as lembranças, as provas, os corpos.

E esses corpos lembram a luta e o desejo de quem empreende no ato de pensar que o

mundo pode e deve ser diferente. Resgatar a memória é resgatar e tornar possível esses desejos

de vida e de liberdade, pois a necropolítica em seu gerenciamento da morte, tenta suprimir a

diversidade, excluindo outras formas de vida. Fundindo a sociedade tornando a todos apáticos,

necrófilos. Não podemos nos esquecer do eros motivador da revolta, que mesmo com a certeza

de morte não se imobiliza. Assim, conscientes de sua condenação, muitos preferiram/preferem

lutar por meios múltiplos do que se submeter à imposição de um único modo de ver e viver,

preferiram uma vida qualificada do que uma vida quantificada. Como bem traduziram as

palavras de Tito de Alencar Lima, o frei Tito, torturado entre 1969 e 1970 no Brasil, que

constam no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 390), “é melhor morrer

do que perder a vida”.

Referências:

AZEVEDO, Desirée de Lemos. A única luta que se perde é aquela que se abandona:

Etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. 2016. 1 recurso

online (351 p.). Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia

e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:

<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/305070>. Acesso em: 30 ago. 2018.

AGAMBEN, Giorgio. O amigo & O que é um dispositivo? Chapecó-SC: Argos, 2014.

Page 15: MATAR OCULTAR ESQUECER O DESAPARECIMENTO FORÇADO …

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II- Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2014.

Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, Promulga a

Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, disponível

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