15
O CONCEITO DE MEMÓRIA NA OBRA "MATÉRIA E MEMÓRIA" DE HENRI BERGSON Autor: Joaquim Francisco Soares Guimarães 1 Cacia Valeria de Rezende 2 Ana Maria Plech de Brito 3 Eixo Temático: Formação de Professores Memórias e Narrativas RESUMO: Ancorado na disciplina Fundamentos Epistemológico da Metodologia da Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPED) – Mestrado em Educação da UNIT este artigo é fruto de pesquisa em andamento, atrelada ao seguinte objeto de estudo: “Memórias de Educadoras: Práticas Educativas em Umbaúba entre 1960 a 1980” que tem por objeto entender o conceito de memória. Para este pressuposto, toma-se como referência Henri Bergson, ou seja, o referencial teórico desta pesquisa é composto pelo estudo de Henri Bergson contido no livro Matéria e Memória, do qual foi retirado o conceito de memória empregado neste trabalho. É importante entendermos que a memória é um tema muito estudado por diversos ramos da ciência; entre eles pode-se destacar: a psicologia, a sociologia, a medicina e a literatura. 1 Graduado em Letras Português/Inglês pela Universidade Tiradentes, pós graduado em Gestão Administrativa da Educação pela Faculdade Pio Décimo, atualmente é bolsista do mestrado em Educação da Universidade Tiradentes. Participa do grupo de pesquisa, Sociedade, Educação, História e Memória liderado pela professora Dra. Raylane Andreza Dias Navarro Barreto. E-mail: [email protected] 2 Graduada em História e Pedagogia pela Universidade Tiradentes, pós graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade de São Luís da França e Docência e Tutoria pela UNIT e atualmente é bolsista do mestrado em Educação da Universidade Tiradentes. Participa do grupo de pesquisa, Sociedade, Educação, História e Memória liderada pela professora Dra. Raylane Andreza Dias Navarro Barreto. E-mail: [email protected]. 3 Licenciada em Pedagogia pela Faculdade Educação da Bahia - FEBA, Pós Graduada em Marketing e Propaganda pela Universidade Jorge Amado – UNIJORGE, atualmente é bolsista do mestrado em Educação da Universidade Tiradentes. Participa do Grupo de Pesquisa Educação, Cultura e Desenvolvimento Humano, liderado pela Dra. Fábrica Teixeira Borges. E- mail [email protected]

Matéria e Memória - Do Reconhecimento da Imagem

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Discussão acerca da relação corpo e espírito na definição do que seja imagem, tendo como ponto de partida a distinção entre dois tipo de memória que estão ligadas a essa relação.

Citation preview

  • O CONCEITO DE MEMRIA NA OBRA "MATRIA E MEMRIA" DE HENRI BERGSON

    Autor: Joaquim Francisco Soares Guimares1 Cacia Valeria de Rezende2 Ana Maria Plech de Brito3

    Eixo Temtico: Formao de Professores Memrias e Narrativas

    RESUMO:

    Ancorado na disciplina Fundamentos Epistemolgico da Metodologia da Pesquisa do Programa de Ps-Graduao em Educao (PPED) Mestrado em Educao da UNIT este artigo fruto de pesquisa em andamento, atrelada ao seguinte objeto de estudo: Memrias de Educadoras: Prticas Educativas em Umbaba entre 1960 a 1980 que tem por objeto entender o conceito de memria. Para este pressuposto, toma-se como referncia Henri Bergson, ou seja, o referencial terico desta pesquisa composto pelo estudo de Henri Bergson contido no livro Matria e Memria, do qual foi retirado o conceito de memria empregado neste trabalho. importante entendermos que a memria um tema muito estudado por diversos ramos da cincia; entre eles pode-se destacar: a psicologia, a sociologia, a medicina e a literatura. 1 Graduado em Letras Portugus/Ingls pela Universidade Tiradentes, ps graduado em

    Gesto Administrativa da Educao pela Faculdade Pio Dcimo, atualmente bolsista do mestrado em Educao da Universidade Tiradentes. Participa do grupo de pesquisa, Sociedade, Educao, Histria e Memria liderado pela professora Dra. Raylane Andreza Dias Navarro Barreto. E-mail: [email protected] 2 Graduada em Histria e Pedagogia pela Universidade Tiradentes, ps graduada em

    Psicopedagogia Clnica e Institucional pela Faculdade de So Lus da Frana e Docncia e Tutoria pela UNIT e atualmente bolsista do mestrado em Educao da Universidade Tiradentes. Participa do grupo de pesquisa, Sociedade, Educao, Histria e Memria liderada pela professora Dra. Raylane Andreza Dias Navarro Barreto. E-mail: [email protected]. 3 Licenciada em Pedagogia pela Faculdade Educao da Bahia - FEBA, Ps Graduada em

    Marketing e Propaganda pela Universidade Jorge Amado UNIJORGE, atualmente bolsista do mestrado em Educao da Universidade Tiradentes. Participa do Grupo de Pesquisa Educao, Cultura e Desenvolvimento Humano, liderado pela Dra. Fbrica Teixeira Borges. E-mail [email protected]

  • Palavras chave: Histria cultural; HENRI BERGSON; Matria e Memria.

    SUMMARY:

    Anchored in the discipline Epistemological Foundations of Research Methodology Program of Postgraduate in Education (PPED) Master of Education UNIT this article and the fruit of ongoing research, linked to the following subject matter: Memories of Educators: Educational Practices in Umbaba from 1960 to 1980 whose objective is to understand the concept of memory. For this assumption, we take as reference Henri Bergson, ie, the theoretical framework of this research is composed of the study contained in the book Henri Bergson Matter and Memory, which was removed from the concept of memory used in this work. Is important to understand that the memory is a subject much studied by different branches of science, among them we can highlight: psychology, sociology, medicine and literature.

    Words Keywords: Cultural History, Henri Bergson, Matter and Memory

    1. INTRODUO:

    Cabe destacar que este artigo encontra-se ancorado na disciplina Fundamentos Epistemolgico da Metodologia da Pesquisa do Programa de Ps-Graduao em Educao (PPED) Mestrado em Educao da UNIT que fruto de pesquisa em andamento, atrelada ao seguinte objeto de estudo: Memrias de Educadoras: Prticas Educativas em Umbaba entre 1960 a 1980 tem por objeto entender o conceito de memria. Para este pressuposto, toma-se como referncia Henri Bergson, em seu livro intitulado Matria e Memria: Ensaio sobre a relao do corpo com o esprito.

    importante entendermos que a memria um tema muito estudado por diversos ramos da cincia; entre eles pode-se destacar: a psicologia, a sociologia, a medicina e a literatura. Para Silva (2003) a palavra memria provm do grego que diz, mais imediatamente, ao de lembrar, o lembrar dele mesmo, aquilo que permanece no esprito. Dentro desse pressuposto, pode-se entender memria como instncia de inventar, meditar, refletir e velar, no sentido de cuidar.

    Em se tratando especificamente de Bergson, (1999) observa-se que sua proposta de reflexo comea a partir da leitura do mundo atravs de imagens e a apreenso desse mundo atravs do corpo. Assim, Bergson acredita que a

  • totalidade do universo jamais pode ser completamente decifrada pelo homem, pois o seu instrumento de raciocnio uma parte dele, como se observa no trecho abaixo:

    [...] o crebro uma imagem, os estmulos transmitidos pelos nervos sensitivos e propagados no crebro so imagens tambm [...] o crebro que faz parte do mundo material, e no o mundo material que faz parte do crebro [...] Nem os nervos nem os centros nervosos podem, portanto condicionar a imagem do universo. ( BERGSON, 1999 P. 13-14).

    Tendo como ponto de partida as consideraes acima apresentadas, nota-se que Bergson (1999) no compartilhava de algumas correntes intelectualistas da cincia da poca, que acreditavam que o homem poderia conhecer tudo atravs de sua capacidade intelectual, pois o crebro uma parte do mundo material tambm. Logo, acredita-se que a sua viso sobre a memria foi revolucionria, j que afirmava a realidade do esprito, ou algo alm da matria. Sobre o tema, Bergson faz aproximaes com a lembrana, distinguindo entre elas dois tipos, quais sejam:

    A lembrana espontnea, imediatamente perfeita, onde o tempo no poder acrescentar nada sua imagem sem desnatur-la; ela conservar para a memria seu lugar e sua data. E a lembrana aprendida, esta segundo Bergson, sair do tempo medida que a lio for melhor sabida tornar-se- cada vez mais impessoal. Das duas memrias apresentadas, observa-se que a primeira parece, portanto, ser efetivamente a memria por excelncia.

    Sendo assim, constata-se que Bergson (1999) acreditava na existncia de uma memria pura, inaltervel, que se contrape lembrana- imagem e percepo, ainda que nenhuma se produza isoladamente, como ele afirma e em seguida as define.

    A percepo no jamais um simples contato do esprito com o objeto presente; est inteiramente impregnada das lembranas-imagens que a completam, interpretando-a. A lembrana-imagem, por sua vez, participa da lembrana-pura que ela comea a materializar e da percepo na qual tende a se encarnar.

    Ainda sobre a memria, o filsofo acima destacado, afirma que o papel do corpo no armazenar lembranas, mas simplesmente escolher, para

  • traz-la conscincia distinta. Assim, cria na existncia de uma reserva memorialista que reside no nosso esprito e que o corpo tem o poder de acess-la nunca de maneira completa, mas fragmentada.

    Ecla Bosi (1994), em seu livro Memria e sociedade, parte de pressupostos bergsonianos para compor a sua obra. Atravs dessa autora, pode-se entender de maneira clara a teoria de Bergson como na seguinte afirmao:

    [...] Antes de ser atualizada pela conscincia, toda lembrana vive em estado latente, potencial. [...] Depois, ela completa, dizendo que: o papel da conscincia, quando solicitada a deliberar, , sobretudo o de colher e escolher.[...] E, finalmente, ela faz uma aproximao ao que Bergson considerava a verdadeira memria, ou lembrana-pura arte. (BERGSON, 1999 p.14)

    Atravs dessa concepo que Ecla (1994) pontua, pode-se afirmar que a arte, assim como o sonho, retoma essa memria considerada verdadeira por Bergson, inatingvel na sua extenso. Outra leitura contundente que Ecla (1994) nos traz a caracterizao da memria como fora espiritual. Para ela, a memria uma fora espiritual prvia a que se ope a substncia material, seu limite e obstculo. A matria seria, na verdade, a nica fronteira que o esprito pode conhecer.

    Logo, de acordo com o raciocnio estipulado at o momento, nota-se que a nossa verdadeira memria, como chamou Bergson, aquela que sobrevive no esprito, no remonta somente as nossas experincias, mas as de nossa espcie. Assim como no podemos apreend-la completamente, temos acesso s reminiscncias dessa memria coletiva que vive em ns.

    2. DESENVOLVIMENTO:

    2.1. A VISO DE MEMRIA EM HENRI BERGSON: BREVE ANLISE

    Tomando como referncia de anlise do livro Matria e Memria, nota-se que Henri Bergson destaca importantes conceitos que potencializam as anlises sobre a memria e sua relao com as imagens. O conceito central deste estudo o conceito de memria em Henri Bergson. Henri Bergson (1959-

  • 1941) foi um intelectual francs, formado em Letras, que se dedicou a estudos filosficos de cunho fenomenolgico e produziu obras de referncia como Ensaios sobre os dados imediatos da conscincia (1889), Matria e Memria (1896), A Evoluo Criadora (1907) e Durao e Simultaneidade (1918).

    Para Bergson, a memria um fenmeno que responde pela reelaborao do passado no presente, "ela prolonga o passado no presente" (BERGSON, 2006, p.247), e " do presente que parte o apelo ao qual a lembrana responde, e dos elementos sensrio-motores da ao presente que a lembrana retira o calor que lhe confere vida" (BERGSON, 2006, p. 179). Para este estudioso, a lembrana a representao de um objeto ausente (BERGSON, 1999, p.80; p.275). Em outras palavras,

    [...] A memria, praticamente inseparvel da percepo, intercala o passado no presente, condensa tambm, numa intuio nica, momentos mltiplos da durao e, assim, por sua dupla operao, faz com que de fato percebamos a matria em ns, enquanto de direito a percebemos nela (BERGSON, 1999, p.77).

    Segundo Bergson (1999, p. 266), a memria tem por funo primeira evocar todas as percepes passadas anlogas a uma percepo presente, recordar-nos o que precedeu e o que seguiu, sugerindo-nos assim a deciso mais til. Dessa forma, nossa memria escolhe sucessivamente diversas imagens anlogas que lana na direo da percepo nova (BERGSON, 1999, p.116).

    Bergson constata a existncia de duas memrias distintas, mas que se interligam com frequncia, a memria hbito e a memria regressiva (2006, p.89-90) ou espontnea (2006, p.93), responsvel pelas imagens-lembranas. Pela necessidade de um recorte para tornar possvel o estudo de dados no tempo disponvel para a realizao desta pesquisa, este estudo estudar as evocaes de imagens-lembranas que tragam informaes sobre a histria de vida dos participantes. Para o autor (BERGSON, 2006, p.2), as imagens so uma certa existncia situada entre o que o idealista entende por representao e o realista por coisa.

  • Para Bergson, a realidade no se limitaria a uma viso ou outra, mas seria a composio das duas vises, pois no se pode deixar de considerar que o nosso crebro que faz parte do mundo material e no o contrrio (BERGSON, 2006, p. 14), assim como no podemos negar que nossas representaes guardem suas singularidades que possibilitam diversas formas de concepo da matria. Dessa forma, o autor define a memria regressiva como sendo aquela que:

    [...] registraria, sob forma de imagens-lembranas, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana medida que se desenrolam; ela no negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda inteno de utilidade ou de aplicao prtica, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural. (BERGSON, 2006, p.88).

    A percepo que temos da realidade preenchida por lembranas em certa durao (BERGSON, 2006, p.31). Essas lembranas so evocadas em virtude de uma situao presente a qual respondem a fim de serem teis ao a ser realizada pelo corpo. Dessa forma, observaremos nesta pesquisa o reconhecimento de uma percepo presente pela imagem-lembrana que se renova (BERGSON, 2006, p.99-100), vindo a compor os moldes dessa percepo com a condio de abandonar muitos de seus detalhes para entrar a mais facilmente (BERGSON, 2006, p.111).

    Para pensar a memria como agente possvel na criao de subjetividades preciso, segundo o autor, que se observem as funes do corpo e suas potencialidades em relao s imagens que lhe so exteriores. Visto que, nosso corpo mantm posio privilegiada em relao s imagens e aos objetos em geral, justamente porque com o corpo estabelecemos diferentes formas de ao. Os objetos que cercam meu corpo refletem a ao possvel de meu corpo sobre eles (BERGSON, 1999, p. 12).

    Crtico agudo das perspectivas tericas e cientficas de sua poca, Henri Bergson tematizou a relao crebro/memria no prefcio do seu livro Matria e memria, de modo to luminoso que, em pleno sculo XXI, ainda soa bastante oportuno:

    [...] Que haja solidariedade entre o estado de conscincia e o crebro incontestvel. Mas tambm h solidariedade entre a

  • roupa e o prego onde ela est dependurada, pois se arrancamos o prego, a roupa cai. Dir-se-ia por isso que a forma do prego desenha a forma da roupa ou nos permite de algum modo pressenti-la? Assim, do fato de que o psicolgico esteja pendurado em um estado cerebral no se deve concluir o paralelismo das duas sries, psicolgica e fisiolgica (BERGSON, 1999, p. 164).

    Nota-se que Bergson estabelece um vnculo de solidariedade entre o estado de conscincia e o crebro, mas postula uma diferena de natureza entre essas duas instncias, barrando a via ao gesto de reduo de uma delas outra. Solidariedade implica uma relao necessria, mas no deixa brechas para o estabelecimento de nexos de equivalncia ou de causalidade. A metfora do prego e da roupa bastante precisa: ela evidencia, por um lado, o vnculo entre os dois elementos em questo e, por outro, a irredutibilidade entre as duas instncias, inviabilizando operaes reducionistas. Bergson (1999) props um dualismo renovador: matria e memria no seriam instncias redutveis uma outra, nem sries paralelas. Matria e memria diferem de modo radical, distinguindo-se por suas naturezas diversas.

    Retornando, de modo sucinto, a concepo bergsoniana de memria, em seus vnculos com a materialidade do crebro e com a virtualidade. Evidncia-se que em Matria e memria, Bergson no cessa de afastar-se de uma viso espacializada da memria, que faria do crebro e de suas clulas locais de armazenamento, lugares de mera arquivao do passado. Rompendo com a tradio filosfica de que as pesquisas cientficas da poca permaneciam tributrias, Bergson no pensa o crebro como rgo da representao, da especulao, do conhecimento puro, remetendo-o sempre a uma ao vitalmente interessada.

    Partindo da discusso das doenas da memria, Bergson refuta a partir de vrios ngulos a concepo do crebro como um reservatrio de imagens e de lembranas. No caso, por exemplo, das afasias, que corresponderiam a leses locais do crebro, entende a leso psicolgica no como uma abolio das lembranas (supostamente guardadas, estocadas - segundo a perspectiva qual se contrape - nas clulas cerebrais), mas como uma impotncia para evoc-las ou para atualiz-las. Prova disso que um certo esforo ou certas emoes podem trazer bruscamente de volta conscincia palavras que se

  • acreditavam perdidas de uma vez por todas. Ou seja: as lembranas no esto situadas nem arquivadas em clulas do crebro. O esquecimento tampouco equivale a uma operao meramente negativa, de aniquilao das lembranas.

    Bergson (1999) tambm associa o crebro funo plstica, vitalmente orientada do esquecimento. Em sua viso o crebro contribui para lembrar a lembrana til, mas, mais ainda, para afastar provisoriamente todas as outras. Conclui ressaltando a diferena entre crebro (matria) e memria (e ao mesmo tempo a solidariedade entre ambos), citando o filsofo Ravaisson, para quem a materialidade coloca em ns o esquecimento. Longe de ser local de armazenamento ou arquivo de lembranas, o crebro pode ser associado inibio das lembranas, ao esquecimento, remetido ateno vida e, portanto, ao mecanismo de suspenso da memria como um todo no plano da virtualidade.

    Para Bergson (1999) a memria est sempre integralmente presente, mas sob o modo da virtualidade. Ela nos acompanha por inteiro ao longo da vida, atualizando-se em geral em funo das exigncias da ao. Na perspectiva inaugurada por Bergson, estamos imersos na durao, em uma temporalidade que dura; nossa memria no consiste de modo algum em uma regresso do presente ao passado, mas, ao contrrio, em um progresso do passado no presente. Nosso corpo, com tudo o que o cerca, nada mais do que a ponta movente que nosso passado empurra a todo momento, para nosso futuro.

    A memria entendida nesse sentido corresponde a uma fonte inesgotvel para que o homem varie de resposta a determinadas situaes, para que ele invente novos horizontes. Segundo Bergson, (1999) o sistema nervoso central liberou o homem dos automatismos, da priso s respostas imediatas, prontas e necessrias, como aquelas a que os animais inferiores se limitam. O crebro est, portanto intimamente ligado rica possibilidade de hesitar, de adiar, diferir, suspender ou ainda variar respostas s promessas e ameaas que convocam a ao do vivente. Alm disso, j que um sem-nmero de lembranas pode vir a se atualizar, essa noo de memria funciona como um manancial inesgotvel que permite ao homem libertar-se da mera repetio, dos hbitos e do reino da necessidade.

  • Confirmando a potncia desse conceito de memria no sentido do no automatismo e da liberdade, h certas passagens de Matria e memria que dotam as lembranas de uma curiosa fora e vivacidade.

    Pode-se dizer, portanto que esse processo corpo/imagem, muito mais que uma relao de causa-efeito, representa o princpio para entendermos as formas de criao das imagens e, mais tarde, identificarmos os aspectos constitutivos na produo de udio visualidades (atravs de suas imagens/sons em movimento). Assim, alm de ocupar posio privilegiada, o corpo uma espcie de componente ativo na relao imagens/subjetividade. Nesse contexto, Bergson explica que:

    [...] Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a no ser por intermdio de certas imagens particulares, cujo modelo me fornecido por meu corpo. (Bergson, 1990: 10).

    Sendo assim observa-se que com o corpo constri-se subjetivamente os objetos e as relaes com o mundo. Imagem, ento, tambm memria porque das imagens que extramos os fatos/acontecimentos que configuram nossa forma de relao em sociedade ou com outros objetos, portanto nossa ao sobre as coisas identificando-as como imagem lembrana ou remidiatizando-as como imagem-ao.

    Assim, considerando nosso corpo e suas relaes com a matria, e aqui destacamos matria como o conjunto de imagens que nos cerca, a memria uma espcie de regente de todo o processo. Desse processo permanecem ativos o passado e o presente, circunscrevendo os limites de nossa interpretao. Desse tipo de imagem a que Bergson (1999) chamou de imagens-lembrana identificam-se apenas a parte inteligvel da relao com os objetos, onde, ao invs de experimentarmos as imagens, as identificamos, tentando recuperar sua claridade e, principalmente, sua utilidade em nossas vidas. Portanto, das imagens-lembrana nasce nosso reconhecimento dos objetos, sua comunicabilidade, logo,

    [...] Por ela [imagem-lembrana] se tornaria possvel o reconhecimento inteligente, ou melhor, intelectual, de uma percepo j experimentada; nela nos refugiaramos todas as

  • vezes que remontamos, para buscar a uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada. (BERGSON, 1999 p, 62).

    Entende-se que das imagens-lembrana pode-se reter o movimento sgnico, na medida em que esse movimento nos indica pedaos de referencialidades de situaes passadas. Nossa compreenso, nesse sentido, absorve esses pedaos tornando possvel armazenar o passado como memria. (Bergson, 1990: 62). Nessa atitude da memria obtm-se a partir das nossas experincias e dos nossos hbitos, que configuram perspectivas comunicacionais, estticas, ticas e polticas a um s tempo.

    Embora para Bergson (1999) as lembranas puras estejam contaminadas pela impotncia prpria ao passado, nem por isso so inertes, secas, fracas ou isoladas. Mantidas no plano da virtualidade, sempre podero encontrar brechas para se atualizarem. o passado que impotente, no elas, que se mantm vivas no plano virtual, que tem estatuto ontolgico e no meramente psicolgico.

    2.2. RELAO ENTRE IMAGEM, MATRIA E PERCEPO NA VISO DE BERGSON

    Na viso de Bergson (2006) as relaes de grandeza que se comporiam entre si, funes que evoluiriam desenvolvendo seu contedo: a partir da a representao, carregada com os despojos da matria, se manifestar livremente numa conscincia inextensiva. Mas no basta cortar, preciso costurar. Essas qualidades que foram separadas de seu suporte material, ser preciso agora explicar de que modo elas tornam a juntar-se a ele.Cada atributo de que a matria privada faz crescer o intervalo entre a representao e seu objeto. Se voc faz a matria inextensa, como ela ir receber a extenso? Se voc a reduz ao movimento homogneo, de onde surgir a qualidade? Sobretudo, como imaginar uma relao entre a coisa e a imagem, entre a matria e o pensamento, uma vez que cada um desses dois termos possui, por definio, o que falta ao outro? Assim as dificuldades nascem a cada passo, e cada esforo que fazemos para dissipar uma delas s conseguir decomp-la em muitas outras.

  • O movimento ir atravessar a substncia cerebral, no sem ter a permanecido, e se manifestar ento em ao voluntria. Eis a todo o mecanismo da percepo. Quanto prpria percepo, enquanto imagem, no preciso descrever sua gnese, pois a colocamos de incio, j que a percepo nasce, mas como ela se limita, j que ela seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, quilo que nos interessa. Mas, se ela, a percepo, se distingue justamente da imagem pura e simples pelo fato de suas partes se ordenarem em relao a um centro varivel, compreende-se sua limitao sem dificuldade: indefinida de direito, ela se restringe de fato a desenhar a parte de indeterminao deixada aos procedimentos desta imagem especial que chamamos de corpo. E por consequncia, inversamente, a indeterminao dos movimentos do corpo, tal como resulta da estrutura da substncia cinzenta do crebro, d a medida exata da percepo que se tem. No de admirar, portanto se tudo se passa como se a percepo resultasse dos movimentos interiores do crebro e sasse, de certo modo, dos centros corticais. Ela no poderia vir da, pois o crebro uma imagem como as outras, envolvida na massa das outras imagens, e seria absurdo que o continente sasse do contedo. Mas, como a estrutura do crebro oferece o plano minucioso dos movimentos entre os quais se tm a escolha; como, por outro lado, a poro das imagens exteriores que parece concentrar-se para constituir a percepo desenha justamente todos os pontos do universo sobre os quais esses movimentos teriam influncia, percepo consciente e modificao cerebral correspondem-se rigorosamente.

    Para Berdson (2006) a dependncia recproca desses dois termos deve-se, portanto simplesmente ao fato de eles serem, um e outro, funo de um terceiro, que a indeterminao do querer. A nica questo , portanto saber por que e como a imagem escolhida para fazer parte da percepo, enquanto uma infinidade de outras imagens permanece excluda. Os elementos nervosos interessados so, portanto exatamente aquilo que d ao estmulo recebido sua eficcia; eles simbolizam a indeterminao do querer; de sua integridade depende essa indeterminao; e, consequentemente, toda leso desses elementos, ao diminuir nossa ao possvel, diminuir na mesma medida a percepo. Em outras palavras, se existem no mundo material pontos onde os estmulos recolhidos no so mecanicamente transmitidos, se h como

  • dizamos zonas de indeterminao, estas zonas devem precisamente encontrar-se no trajeto daquilo que chamado processo sensrio-motor; e a partir da tudo deve se passar como se os raios fossem percebidos. E mais: se essa indeterminao algo que escapa experimentao e ao clculo, o mesmo no se d com os elementos nervosos nos quais a impresso recolhida e transmitida. desses elementos, portanto que devero se ocupar fisiologistas e psiclogos; neles se determinaro e por eles se explicaro todos os detalhes da percepo exterior.

    Diante do abordado, pode-se dizer que, se quisermos, que a excitao, aps ter caminhado ao longo desses elementos, aps teralcanado o centro, converteu-se a numa imagem consciente que exteriorizada. Mas, ao nos exprimirmos assim, estaremos apenas nos curvando s exigncias do mtodo cientfico; no descreveremos em absoluto o processo real. De fato, no h uma imagem inextensiva que se formaria na conscincia e se projetaria.

    Porm, convm no esquecer que, em todos os estados psicolgicos, a memria desempenha o papel principal. Nesse sentido, importante entender que entendermos que a memria deve surgir, e que essa memria, tanto como a prpria percepo, no tem sua condio real e completa num estado cerebral. Sem abordar ainda o exame desses dois pontos, limitemo-nos a apresentar uma observao bastante simples, e que, alis, no nova. Muitos cegos de nascena tm seus centros visuais intactos: no entanto vivem e morrem sem ter jamais formado uma imagem visual. Tal imagem no pode aparecer a menos que o objeto exterior tenha desempenhado um papel uma primeira vez: consequentemente ele deve, na primeira vez pelo menos, ter entrado efetivamente na representao.

    Nesse sentido, cabe-nos entender que a matria no deve ser percebida sem o concurso de um sistema nervoso, sem rgos dos sentidos, essa situao no teoricamente inconcebvel; mas praticamente impossvel, porque uma percepo desse tipo no serviria para nada. Ela conviria a um fantasma, no a um ser vivo, a um ser ativo. Representa-se o corpo vivo como um imprio dentro de um imprio, o sistema nervoso como um ser parte, cuja funo seria inicialmente elaborar percepes, em seguida criar movimentos.

    3. CONCLUSO

  • Diante do que foi aqui abordado ficou evidenciado que Bergson distingue duas maneiras de aprender uma lio que correspondem a duas funes diferentes da memria e a duas espcies de lembrana: a memria que repete (lembrana aprendida) e a memria que imagina (lembrana espontnea). Por exemplo: podemos aprender uma lio de cor, fora de repetio (decomposio e recomposio) at adquirirmos a lembrana-ao. Essa memria ativa est voltada para a ao prtica; no conserva as imagens antigas, mas prolonga seu efeito til at o momento presente, criando uma srie de mecanismos corporais (hbitos motores). Cada leitura particular, no entanto, imprime uma imagem determinada na memria que nos d uma lembrana-representao. Esta memria registradora que data os acontecimentos na sua singularidade a memria por excelncia: ela armazena o passado na forma de imagens-lembrana.

    Duas observaes merecem a nossa ateno nesse esquema da teoria da memria. Em primeiro lugar, o que se armazena a ao do passado e no o prprio passado. Trata-se de certas configuraes de movimentos que podem ser recuperadas, isto , organizadas da mesma maneira em que se produziram quando foram imagens presentes. Essa recuperao implica um esforo (memria-hbito) atribudo ao da vontade. A segunda observao que decorre da primeira que o que se conserva (memria-espontnea) no este ou aquele fato, seno todos os acontecimentos de forma integral. A utilidade de todo o processo, que inspira a nossa leitura pragmatista da memria enquanto ao prtica, pode ser justificada pela maneira como o prprio Bergson articula as duas memrias em vista da uma funo comum: uma presta um servio regular outra, mostrando-lhe imagens daquilo que precedeu ou seguiu situaes anlogas situao presente, a fim de esclarecer sua escolha. Compreende-se, assim, que o funcionamento integral da memria, pelo menos indiretamente, responde ao comando de uma vontade, seja humana ou universal. Bergson define os mecanismos cerebrais como terminaes das imagens passadas no presente, movimentos que constituem o ponto de ligao do passado com o real e com a ao. Cortando essa ligao, a imagem passada perde sua capacidade de agir sobre o real, mas isso no significa que deixe de existir: Passa-se, por graus insensveis,

  • das lembranas dispostas ao longo do tempo aos movimentos que desenham sua ao nascente ou possvel no espao.

    Para Bergson, as leses do crebro podem atingir tais movimentos, mas no tais lembranas. A percepo de objetos, por sua vez, provoca em ns certas reaes (movimentos nascentes) que, ao se repetirem, se organizam entre si formando hbitos corporais. Esses mecanismos motores respondem a um processo de adaptao que a finalidade geral da vida, da qual se desprende tanto o sentido prtico da ao, quanto o seu sentido vital.

    Bergson explica o funcionamento da memria por analogia com a percepo, ou seja, atravs de uma comparao entre os rgos de percepo virtual (memria) e os rgos de percepo real (percepo).

    Segundo Bergson, adquirimos o hbito de acentuar as diferenas e de apagar as semelhanas entre a srie dos objetos simultaneamente escalonados no espao e a dos estados sucessivamente desenvolvidos no tempo. Isso acontece porque a memria contemplativa apreende somente o singular, portanto, capaz de reter a lembrana das diferenas. A memria motora, por sua vez, imprime a marca da generalidade sua ao e, assim, reconhece a percepo das semelhanas que o fundamento das idias gerais, visto que, segundo Bergson (1999), a semelhana entre coisas ou estados, que declaramos perceber, antes de tudo a propriedade, comum a esses estados ou a essas coisas, de obter de nosso corpo a mesma reao, de faz-lo esboar a mesma atitude e comear os mesmos movimentos.

    Precisamos nos deter, por conseguinte, na anlise dessas duas noes obscuras (semelhana e generalidade) em torno das quais gravitam, segundo Bergson, o nominalismo e o conceitualismo, uma vez que: para generalizar preciso primeiro abstrair, mas para abstrair utilmente preciso j saber generalizar. A unidade da idia estaria dada pela identidade do smbolo (o nome) que designa objetos distintos, mas as semelhanas permitem distinguir os objetos aos quais uma determinada palavra no se aplica.

    A hiptese de Bergson a seguinte: No comeamos nem pela percepo do indivduo nem pela concepo do gnero, mas por um sentimento intermedirio, por um sentimento confuso de qualidade marcante ou de semelhana. O corpo, entendido como sede da memria e da percepo, o intermedirio entre o esprito e o mundo; as nossas aes, como no so

  • meras reaes ao ambiente, dependem da unio de duas memrias: a memria corporal e a memria pura.

    4. BIBLIOGRAFIA:

    BERGSON, Henri. Matria e memria. Trad. Paulo Neves. 2 a ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.

    _______________ . Matria e Memria: ensaio sobre a relao do corpo com o esprito. So Paulo: Martins e Fontes, 2006.

    BOSI, Ecla. Memria e sociedade. So Paulo: T. A. Queiroz, 1994

    SILVA. Alexandre Rocha da. Elementos para uma comunicao ps-miditica. So Paulo: Unisinos, 2003