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NUNES, Benedito. Seminário de ficção mineira: de guimarães Rosa aos nossos dias. Belo Horizonte: conselho Estadual de Cultura, 1983. p. 09-29 A MATÉRIA VERTENTE Bendito Nunes Uma abordagem filosófica de Grande Sertão: Veredas, como a que tentamos fazer aqui, recai dentro do problema mais geral das relações entre filosofia e literatura. O que pode a filosofia conhecer da literatura? Tudo quanto interessa à elucidação do poético, inerente à linguagem, e portanto, tudo quanto se refere à simbolização do real nesse domínio. Essa resposta, num trabalho anterior (1), baseou-se na idéia de que não há um método filosófico específico para a análise literária, em concorrência com os da Teoria da Literatura, que assentam, contudo, em pressupostos filosóficos, quaisquer que sejam os campos científicos de que se originam. Em filosofia, método e concepção se interligam. Assim, o método fenomenológico é a consecução da fenomenologia e a fenomenologia é, em si mesma, uma posição metodológica. Quando Roman Ingarden estabeleceu o modelo de análise fenomenológica das obras literárias, foi a fenomenologia toda que ele inverteu no processo de conhecimento da arte da palavra, o que significa dizer que os procedimentos correspondentes de análise estão comprometidos com a preliminar atitude fenomenológico, de caráter reflexivo. Aplicar o método da fenomenologia já pressupõe a compreensão prévia da obra corno totalidade significativa de níveis distintos, que mantém entre si nexos de fundação e de complementação (2). Não se pode isolar da filosofia o método que a constitui e que com ela se confunde, Dialético ou existencial, hermenêutico ou lógico-analitico, os métodos filosóficos, quaisquer que sejam, transportam para a análise da literatura ou para a apreciação da arte em geral diferentes modos de compreensão e de interpretação. [09] Conseqüentemente, o que a filosofia pode conhecer da literatura é o que dela já compreendeu antecipadamente, segundo a perspectiva em que se situa. Em princípio, isso proporciona o discernimento de novas dimensões da arte literária, dimensões de que as próprias obras se tornam instâncias de confirmação. Essa vantagem tem como contrapartida o risco de poder converter-se a liter atura numa dependência da filosofia, numa ilustração de seus princlpios, numa versão de teses gerais, como nos romances existencialistas de Sartre, caso muito peculiar, na medida da afinidade de base com a arte literária que distingue a concepção filosófica sartreana. A discussão do problema das relações entre filosofia e literatura deve partir de um dos dados da consciência filosófica atual: o enraizamento da filosofia na linguagem. A filosofia é reflexão crítica abrangente, que se sabe condicionada a estruturas verbais da língua, a metáforas e aos mecanismos retóricos do discurso. Antes de ser intuição poética à luz dos conceitos, o diálogo da alma consigo mesma, que foi como Platão entendeu o pensamento, a reflexão filosófica é um discurso encadeando palavras. Marcadas por irredutíveis diferenças, a filosofia e a literatura relacionam-se através da linguagem, como o elemento comum do pensamento de que ambas participam. Desde logo, porém, não é o romance e sim a poesia - tomada na acepção estrita de poesia. lírica - que maior proximidade mantém com a filosofia. Pode-se dizer, de um modo geral,

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empregando-se expressões de Warren Shibles. que ambas realizam "uma penetração nas palavras e com as palavras" (3). Mas ao contrário da poesia que permanece presa às palavras, a filosofia delas se desprende no movimento do conceito, sem perda dos fios metafóricos, das analogias e dos esquemas imaginativos que ligam o pensamento conceptual à linguagem ordinária. [10] Um verdadeiro poema neutraliza o uso comunicacionial corrente da linguagem, mas fala-nos de alguém e sobre alguma coisa. Nele perdura o vinculo com os enunciados-de-realidade (4). O romance é ficção: elabora, firmado em estruturas narrativas, um completo universo imaginário. Os componentes verbais desse universo estão neu-tralizados. como enunciados-de-realidade pela própria mimese, pela criação da obra ficcional, na acepção de. Käte Hamburger (5). Entretanto, o romance também pode rea-lizar, em determinados casos, por efeito de sua narrativa, o jogo da linguagem poética. Os grandes romances, a exemplo de Grande Sertão: Veredas, não são, como afirmou Merleau-Ponty, apenas aqueles que se deixam guiar por duas ou três idéias filosóficas. A função do romance não é tematizar essas idéias, mas de fazê-las existir diante de nós à maneira de coisas. O papel de Stendhal não era discorrer sobre a subjetividade, bastou-lhe torna-la presente." (6). Para esse filósofo francês, ainda hoje confundido com os existencialistas, a metafísica, entendida como explicitação da vida humana e não como ciência suprema do real, transferira-se para a criação romanesca. Alcançar o ente em sua totalidade, por meio da razão - por meio da ordem racional dos conceitos ou da intuição - foi, desde o começo, com Platão e Aristóteles, o alvo a meta isica da ciência primeira – a filosofia por excelência, historicamente atuante - que Descartes e Hegel preservaram. Esse entendimento da metafísica, que a despoja de seu tradicional caráter de conhecimento superior, vai ao encontro da atitude valorizadora da intuição dos poetas e da mensagem dos mitos. O pensamento como atenção à linguagem é o que reclama Heidegger. [11] Essencialmente, os poetas e os pensadores falam do ser. Seria preciso auscultar as palavras ouvir o que elas dizem poeticamente. Num romance que seja poético, elas poderão dizer da articulação do mundo, da existência e da temporalidade, propondo-nos o termo limite, mostrado e não demonstrado, de questões fundamentais que Walter Benjamin chamou de ideal do problema. (7) Nada mais pretendemos neste trabalho do que fazer uma aproximação hermenêutica a Grande Sertão: Veredas; para focalizar nele o ideal do problema, isto é, "a idéia de uma verdade que sendo da própria obra como tal, é não um mero problema filosófico extrínseco e avulso por ela levantado, mas a intrínseca verdade que prenuncia, verdade que por si só constitui, ainda que como interrogação expressa não se formule, e independentemente de sua prévia aliança cora o discurso característico da filosofia, uma instância de questionamento" (8). Seria a temporalidade relacionada com a temática do romance, e integrante de seu processo narrativo, a instância do questionamento filosófico em Grande Sertão: Veredas.

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II

Numa estimativa dos componentes de sua abra, Guimarães Rosa atribuiu a mais alta cotação - 4 pontos - ao valor metafísico-religioso, contra 3 pontos para a poesia, 2 para o enredo e 1 para o cenário e realidade sertaneja (9) Como Fernando Pessoa, o criador de Grande Sertão: Veredas emprestou a mais alta importância à metafísica. E como Fernando Pessoa, estendeu esse termo, aliás com propriedade, ao elemento religioso do pensamento, englobando neste as correntes místicas ocidentais e orientais que se interligam no conjunto heterogêneo e fluido do Ocultismo, amálgama das idéias neoplatônicas e das doutrinas heterodoxas do cristianismo - o hermetismo e a alquimia - da Cabala e dos ensinamentos maçônicos. "Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanishades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, [12] com Berdiaeff e com Cristo, principalmente." (10). Em muitas outras fontes do pensamento religioso-filosófico terá buscado, de acordo com o universalismo ocultista, as concordâncias doutrinárias, os pontos de convergência acerca do sentido transcendente da existência humana e de seu desenvolvimento espiritual. Guimarães Rosa assinalou passagens de boletins do Círculo Esotérico do Pensamento, anotou textos da Christian Science, de livros dos padres Sertillanges e Romano Guardini, segundo o diligente inventário que das leituras do romancista fez Suzi Frankl Sperber (11) . A compreensão neoplatônica, reconheceu-o Mary L. Daniel, ligou-se ao artesanato romanesco do escritor e progrediu no curso da elaboração de sua obra (12). Diante de fontes tão diversas, embora equilibradas cm suas tendências espiritualistas comuns, o neoplatonismo é apenas uma rubrica genérica da visão do mundo de Guimarães Rosa. Designaria o vislumbre da transcendência para além e dentro da alma – o “quem das coisas” ou da “sobre coisa” (13) na experiência comum – o despontar das afinidades secretas entre seres, o aceno de conversão do homem a si mesmo ou a suspeita de uma presença real por trás das aparências enganosas, a mão invisível que guia o tortuoso e casual itinerário das personagens – tudo isso, enfim, que como movimento da criatura humana em meio a contrastes, a oposições extremas (carne/espírito, amor/ódio, hem/mal) conflui, por diferentes situações, conflitos e des-fechos nas novelas de Sagarana e de Corpo de Baile, nos contos de Primeiras Estórias e em Grande Sertão: Veredas. Essa confluência estaria centrada, finalmente, na "atitude contemplativa que é característica do misticismo de inspiração neoplatônica" (14). Sabe-se como Guimarães Rosa ve r teu a doutrina, a simbologia hermética e as figurações da iniciação Ocultista na matéria de suas narrativas. Estão aí, para nos restringirmos às mais estudadas, "São Marcos", de Sagarana, "Recado do Morro" e "Cara-de-Bronze", de Corpo de Baile. Pedro Orósio, de "Recado do Morro", relaciona-se com os céus planetários (Júpiter, Vênus, Mercúrio, Lua, Marte [13] e Sol), subimpressos nos nomes de seus companheiros de viagem (o Jovelino, o Veneriano, o Zé Azougue, o João Lualino, o Martinho, o Hélio Dias) às seis fazendas. visitadas (Jove, Dona Vininha, Nhô Hermes, Nhá Selená, Marciano e Apolinário). (15) A viagem do Grivo, à busca do "quem das coisas", é uma peregrinação iniciática, o recluso Cara-de-Bronze e a paisagem da região que seu emissário percorre enquadrados na simbologia maçônica è cabalística (16). Simples detalhes de uma estória, substância; como o alvor do polvilho das lajes

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quebradas de uma pedreira, que envolve a beleza de Maria Exita, diante do fazendeiro Sionésio, adquirem projeção alegórica; no alvor do polvilho enxerta-se a imagem transubstanciadora da pedra filosofal. Personagens têm dupla natureza, típica e arquetipica, como a moça-velha, Dona Rosalina, de "A Estória de Lélio e Lina". Nomes de lugares, de coisas e de pessoas, trazem mensagens cifradas da tradição heterodoxa do Ocultismo, a cuja paciente decifração entregou-se, não sem êxito, Consuelo Albergaria, em seu Bruxo da Linguagem no Grande Sertão (17). Quando conhecemos essas mensagens cifradas, sentimo-nos, diante da obra de Guimarães Rosa, como aquele que num quadro de Holhein, Os Embaixadores, há longo tempo contemplado, descobre, olhando-o através de um espelho, uma caveira ao longo e abaixo da mesa, entre os dois vultos imponentes, que a visão direta não distinguira. Um elemento alegórico sobressalente oculta-se no retrato realista: sobressalente, digo, porquanto isso acrescenta ao valor representativo da pintura uma notação de contraste, que se rebate sobre a primeira mensagem plástica recebida, sem alterar a ordem da composição pictural. Do mesmo modo, o leitor de Rosa, a par dessas anamorfoses ocultistas de Zé Bebelo, de Diadorim e de Riobaldo, perceberá as camuflagens doutrinárias da história, sobressalentes à ação do romance - lido por Albergaria como um texto esotérico de Iniciação - que não alteram o jogo ficcional, e que constituem prolongamentos do mesmo plano alegórico decorrente da visão do mundo de Guimarães Rosa. [14] Pode-se dizer, de Grande Sertão: Veredas, o mesmo que Dante disse da Divina Comédia ao enviá-la ao seu protetor, o magnífico senhor Can Grande de Scala: ." ... esta obra não tem sentido simples, mas ao contrário pode-se até chama-lá de polissema, isto é, que tem mais de um significado; pois o primeiro é o que se tem na própria letra, e o outro quê tira o seu sentido daquilo que se diz pela letra. O primeiro se chama literal, o segundo, alegórico ou místico" (18). Este último, tal como na Divina Comédia, des-dobrar-se-ia, em Grande Sertão: Veredas, numa significação moral e numa significação anagógica, propriamente mística, proposta ao leitor. Segundo a retórica medieval, a composição poética, realizada com o recurso de imagens e figurações que se destinam a exprimir verdades, era um modo fraco do pensamento filosófico. Medido por essa bitola da alegoria, Guimarães Rosa trabalharia como filósofo - en philosophe, nas palavras de Jean de Meung. Mas o filósofo que alegoriza em Grande Sertão: Veredas é, antes de tudo, um pensador-poeta trabalhando como romancista. Enquanto o pensador-poeta desce até às palavras para construir o solo metafórico do Sertão, onde dissemina imagens neoplatônicas, idéias agostinianas e filamentos de textos teológico-místicos, o romancista articula a história do jagunço Rio-baldo, por este mesmo contada, numa estrutura meândrica labiríntica, que envolve, também, formas diferentes de romance das quais extraiu esquemas característicos para construir a forma complexa inconfundível de sua obra. A primeira dessas formas é a que circunscreve o traça o épico de Grande Sertão: Veredas, na acepção, frequentemente ressaltada de epopéia cavaleiresca dentro do vetusto esquema do romance de busca ou de demanda (19), desenvolvido em três fases: uma jornada ou viagem perigosa (agon), precedida ou seguida de peripécias menores,

uma luta crucial ou batalha mortal (pathos) contra um inimigo terrível , em que o herói também pode perecer, e o reconhecimento (agnosiris) final da missão heróica que se cumpriu. Protagonista e opositor são homens comuns [15] ou seres dotados de atributos extraordinários e opostos, benéficos ou divinos os do primeiro, maléficos ou demoníacos os do segundo.

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Riobaldo atravessa o Sertão numa empresa de vindita, para exterminar o grande inimigo Hermógenes, traiçoeiro e cruel, assassino de Joca Ramiro; vence-o em batalha renhida e é reconhecido como o libertador das paragens sertanejas. Mas sobre esse esquema do romance arcaico, próximo do mito solar - the mythos of summer (20) - Guimarães Rosa implanta, distendendo cada etapa, uma outra forma, a do moderno romance de introspecção, que faz passar a demanda de Riobaldo, em sua condição de cavaleiro jagunço, ao plano reflexivo do relato em primeira pessoa, autobiografico, que se volta para a ação consumada a fim de questionar-lhe o sentido. Tanto a primeira como a segunda etapa - a da viagem e a da batalha mortal - são mediadas por singular coadjuvante, ao mesmo tempo opositor: a personagem de Diadorim, objeto de atração e de repulsa para o herói, preso aos laços de um "mau-amor oculto", amor de "jeito condenado", companheiro e amante que o leva a defrontar-se com o Arqui-inimigo. "Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim..." (GSV, 503) A batalha final se trava quando Riobaldo ascende à chefia do bando, sucedendo a Zé Bebelo, depois do Pacto com o Demo, invocado nas Veredas Mortas. No combate mortal, é Diadorim, o ambíguo Reinaldo, quem mata o adversário e que morre ao fazê-lo. O reconhecimento do herói sucede à sua derrota trágica: a morte de Reinaldo, espécie de transfiguração reveladora de sua vera natureza feminina, en-tretanto amado como homem. Esse trajeto da aventura, da viagem perigosa no Sertão, é o que Riobaldo, como personagem-narrador, recolheu na sua memória, e que recompõe, dificultosamente, refletindo de maneira interrogativa acerca do sentido da ação consumada, sob o foco da questão premente da existência [16] real do Maligno. "E me inventei nesse gosto de especular ideia O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenuncio" (GSV: 11). De duas maneiras conjugadas, Guimarães Rosa modifica a forma introspectiva do romance moderno: mantendo o registro épico dos acontecimentos, dentro do relato de Riobaldo, como desfio da recordação, e dando à recordação um alcance inquisitivo, numa linha semelhante à da anamnese platônica (21), "Eu sei que isso que estou dizendo é muito dificultoso, muito entrançado... Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente" (GSV, 96). Riobaldo não recorda para recuperar a lembrança, devolutiva do passado. Estamos longe da busca proustiana do tempo perdido, da recolha do "albatre translucide de nos souvenirs desquels nous sommes incapables de montrer la couleur" (22). Reviver a memória, a necessidade proustiana fundamental, é meio para decifrar aquelas coisas que são importantes, para compreender a "ação escorregada e aflita, sem substância narrável" (GSV, 130), para compreender-se agindo, num recuo ao instante cias decisões, aos momentos dos atos, "das coisas que formaram passado para mim com mais pertença" (GSV, 96). A recordação leva Riobaldo ao fundo de si mesmo, levando-o ao dúbio conhecimento do que foi e daquilo em que se tornou, em meio ao vago discernimento do que poderia ter sido. É que a lembrança converte-se em reminiscência, recordação obscura através da qual, paradoxalmente, pode ver com súbita clareza o que importa. Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida?" (GSV, 292).

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A anamnese platônica, que se transferiu à doutrina de Santo Agostinho, tem como limite a reminiscência, interno aposento dos palácios da memória de que nos fala o santo doutor em suas Confissões (23), e que são os de Riobaldo, "aonde o demônio não consegue espaço de entrar" [17] (GSV, 443) “... No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo!" (GSV, 443). A reminiscência, que isentaria a alma dos transtornos da mudança, reconduzindo-a, de acordo com o neoplatonismo, a sua verdadeira origem, opõe-se a sucessão dos atos que configuram o Destino na medida em que formam o passado (24). A interrogação de Riobaldo sobre a existência do Diabo, e conseqüentemente sobre a possibilidade de ter sido pactário, é a pergunta acerca do Destino, isto é, a pergunta em torno da predeterminação ou da liberdade da sua existência. "Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. E preciso negar que o "Que-Diga" existe". (GSV, 296). Essa é a demanda reflexiva intérmina de Riobaldo contando a sua história - para saber "o que é que vale e o que é que não vale?" (GSV, 138). "O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia." (GSV, 387). Contando o que se passou, Riobaldo põe em causa o pacto, que ficou para trás, e o Destino como sina, que o fadou a tornar-se chefe jagunço e a amar Diadorim. A reflexividade se instaura no processo de narração, que reabre, a cada passo, a aventura do personagem projetada como travessia do Sertão. O Sertão tematiza o mundo e a travessia, conforme se verá, tematiza o Tempo, numa figuração da temporalidade. Mas já estamos em face da estrutura meândrica da narrativa que absorve, gerando a forma complexa de Grande-Sertão: Veredas, o esquema do romance introspectivo, a que se integrou o do romance de busca. [18]

III Essa estrutura de labirinto acompanha o vai-e-vem de uma conversa descosida, espaçada, posto que a narração de Riobaldo, um puro reconto articulado sob o ritmo de impostação oral, faz-se diante de um outro, que o escuta - de uma segunda pessoa sempre presente a cada volta do labirinto, e que, embora não tome apalavra, marca a sua interferência silenciosa e descontínua, mediante perguntas subentendidas sobre os incidentes da aventura relatada, pausas dentro de um diálogo (25) ao qual se deve o prosseguimento sinuoso, de interrupção a interrupção, da história ("olhe... senhor pergunte... o senhor vê... explico ao senhor... o senhor ouvia... eu lhe dizia... tanto, digo... bom, ia falando... o senhor mire veja... minto..."). A esse outro se dirigem as indagações do ex-jagunço, especulando idéia; dele quer saber se o Cujo existe ou não existe, se é ou não pactário. No circuito da conversação assim desenrolada é que Riobaldo recorda, o interlocutor silente colocado diante dele como o intérprete da ação decorrida. "Falar com o estranho assim que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mas mesmo comigo" (GSV, 39). Em confronto com esse outro, a subjetividade do narrador, que reflete, se exterioriza, o conhecimento de si mesmo obtido no curso do diálogo, inter-subjetivamente.

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A figura do narratário, nessa segunda pessoa, cristaliza pois o espaço do intercurso dialogal dentro do romance. Há, porém, um terceiro proveito que Riobaldo espera tirar daquele com quem dialoga: a versão escrita de seu relato, a suma textual do narrado, como repensamento era forma de letra que o subtraia do entrançado dos acontecimentos e da contingência dos atos que lhes deram origem, configurando [19] o traçado do Destino. "Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiei como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda" (GSV, 96). Homem instruído, o imaginário interlocutor contará como nos livros, seguidamente. "A vida é um vago variado. - O senhor escreva no caderno: sete páginas..." (GSV, 471). "Campos do Tamanduá-tão - o senhor aí escreva: vinte páginas ... Nos Campos do Tamanduá tão, Foi grande batalha." (GSV, 514). Na presença do narratário reflete-se não só a esquiva do escritor: insinua-se a auto-referencialidade da própria obra, que engloba todos os eventos do relato e da existência do sujeito narrador. Por meio da forma do intercurso dialogal, manter-se-á, dentro do romance, uma oposição entre o falado e o escrito – entre o discurso da vida e o texto que o recolhe. A figuração da temporalidade, que procuraremos identificar, apóia-se no tempo da narrativa, que concerne à ordem dos eventos narrados e à sua duração (26). No que diz respeito à ordem, deve ser dito, em primeiro lugar, que uma grande e geral anacronia marca os eventos da história: a distância entre cada um deles e a situação delimitada pelos segmentos do relato oral, que indiciam, como os já anteriormente mencionados ("olhe... senhor pergunte..." etc), as passagens da conversação, "Eh, que se vai? Jájá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui [20] em casa, comigo, é por três dias!" (GSV, 26) (27). Desse eixo fincado no presente dialogal é que parte o encadear dos eventos, entramadamente, ora por meio de retrospecções (por exemplo, o "conhecimento de Diadorim, ainda menino, e o de Zé Bebelo, a quem Riobaldo serviu, precedem, em tempos anteriores aos dos momentos da ação ou do enredo), ora por meio de antecipações indicadas por advertências (a luta do Paredão, a morte de Diadorim). Umas e outras são tão numerosas, até, pelo menos o anúncio da morte de Joca Ramiro, no lugar chamado Guararavacã, talvez a divisória do romance, que a ordem da história narrada parece surgir da reflexão questionante do personagem-narrador: dos atalhos da recordação e das veredas da especulação. A duração, que se pode avaliar na segunda porção da obra, mais episódica, onde encontramos uma pausa, também sumária - depois da volta de Zé Bebelo, quando começa a guerra contra o Hermógenes - que recapitula os principais eventos e situações (a atuação de Joca Remiro, as atitudes de Medeiros Vaz e de Sô Candelário, os amores de Riobaldo, principalmente Otacília, Nhorinhá e Diadorim) - não está isenta de calculado desajuste entre o tempo do que é narrado e a extensão cronológica do acontecmento respectivo. "Vá de retro! - nanje os dias e as noites não recordo Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos - às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zúo de um minuto mito: briga de beija-flor" (GSV, 324), como se diz da demora do cerco do bando na Casa dos Tucanos (28) .

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Ocorre que tanto num caso como noutro, seja sob o aspecto da ordem, seja sob o aspecto da duração, o tempo [21] do esquema épico do romance sofre a interferência da reflexividade da narração, que tematiza a experiência temporal, juntamente com o mundo. Sob a englobante perspectiva da reflexão, distinguem-se vários modos de temporalidade, referidos em distintas passagens, como que intercalados no curso da aventura: o cósmico, repetitivo, como ciclo das estações e dos anos ("Milho crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o pequi amadureceu no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju nos campos." (GSV, 287); o psicológ i c o , enquanto durée ("Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.", GSV, 95), e o instantâneo , rapto e arroubo místicos, após a invocação do Demo nas Veredas Mortas ("Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo.", GSV, 399). Essa tematização mostra-nos que Riobaldo debate o tempo e se debate contra ele, arguindo-o como raiz do suceder e, portanto, do Destino. "Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito." (GSV, 295). À medida que o relato remernorativo se perfaz, uma nova consciência do passado vai surgindo. "Em certo momento, se o caminho demudasse, se o que aconteceu não tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser? Memórias que não me dão fundamento. O passado - é ossos em redor de ninho de coruja..." (GSV, 491). O passado não se isola do presente, onde está contido, e nem do futuro, de onde proveio. Não haveria três tempos diferentes na sucessão, que mede as coisas e divide os nossos atos, ensinou Santo Agostinho, no Livro XI das Confissões. O passado é a lembrança, inteligível mediante a visão das coisas presentes e a expectativa das futuras. "Pelo que, pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão [22] extensão (distentio); mas de que coisa o seja, ignoro-o. Seria para admirar que não fosse a do próprio espírito." (29). Já quase no final do romance, quando se prepara para a batalha mortal, Riobaldo exclama: "Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar - tem uma coisa! -: eu vejo é o puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida na morte: imperfeição." (GSV, 552/553). Como para Plotino e para Santo Agostinho, o tempo é imperfeição: a finitude da criatura em sua parte corporal, em contraposição à eternidade, ao nunc stans do ser absoluto, divino, origem e fim da alma (30). A figuração da temporalidade que a narração sustenta - em seu ir e vir, pela recordação, a momentos presentes no passado e, pela expectativa, a momentos presentes no futuro, retrovindo-se. e projetando-se com o movimento do relato oral do narrador na direção de quem o escuta, é a temporalização extática (31), lance indiviso da existência humana que os even- s recortam, mas que se recobra a cada instante, como a aventura de Riobaldo, terminada no recolhimento. "Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, a alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah! alma absoluta." (GSV, 25). Por esse caminho hermenêutico, a verdade da obra, como ideal do problema - a verdade do pensamento poético de Grande Sertão: Veredas - está na juntura da temporalidade, que nos redime da pura sucessão, e do Destino, desdobrado em contingência : a travessia no mundo, o Sertão mítico, sob a paciência de Deus e a impaciência do Diabo.

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O refrão do viver perigoso demarca a instância do questionamento filosófico do extraordinário romance de Guimarães Rosa. [23] Achega final Como pode o romance, que é ficção, colocando a criação verbal fora do sistema de enunciação da linguagem, mostrar poeticamente um limite do Pensamento? Já em si, a narrativa em 1ª pessoa constitui um embaraçoso problema teórico para Käte Hamburger. A autora de A Lógica da Criação Literária prefere considerá-la como fingimento. Uma fingida mimese, porquanto o sujeito narrador é sujeito de enunciação. Grande Sertão: Veredas confunde, entretanto, os exemplos canônicos, Nesse romance, o jogo da linguagem também questiona a ficção, através do caráter dubitativo que imprime à narrativa: o tema do falseamento da experiência vivida, pela incerteza, pela insegurança e pela incompletude do contar dificultoso. Riobaldo não acerta no contar porque "... remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço..." (GSV, 167). Só consegue dar relato do que reuniu "... relembrado e verdadeiramente entendido.. ." (GSV, 133). O dificultoso que há nisso vem da ". .. astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem tios lugares." (GSV, 175). A astúcia do passado reproduz-se nas ciladas da narrativa em permanente balancé, o sujeito narrador voltando-se para a linguagem, a cada momento preso às palavras e a cada momento fazendo ver através delas o que não pode ser narrado, mas só poeticamente mostrado. A dialética do falado e do escrito, na tensão do relato oral dentro do texto, condiciona a passagem da mimese à poiesis. O plano alegórico de Grande Sertão: Veredas - o da visão mística e do mito - recebe dessa narrativa poética e dessa poesia pensante o seu alcance anagógico, de convite à contemplação. [24]

NOTAS

(01) Literatura-Filosofla: A Análise de Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa - Cadernos da PUC-RJ, 1976.

(02) Roman Ingarden, A Obra de Arte Literária, Fundação Calouste Guibenkian, Lisboa, 1965.

(03) Worren Shlbles, Poesia e Filosofia, In Wittgenstein, Linguagem e Filosofia, págs,.21/27.

(04) Käte HambUrger, A Lógica da Criação Literária, págs. 167 e segs., Editora

Perspectiva, São Pauto, 1975.

(05) Käte Hamburger, op. cit., págs. 39/45.

(06) Merleau-Ponty, Le Roman et La Métaphysique, in Seus et Non-Sens, pág. 45, Nagel, Paris.

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(07) Walter Benjamin, "Affinités Electives" de Goethe, Oeuvres Choisies, pág. 150, Julliard, Paris, 1959.

(08) Literatura-Filosofia: A Análise de Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, cf. cit. - Convém estendermos esta nota, esclarecendo, conjuntamente, o método empregado e a terminologia, a começar pelo “ideal do problema".

A palavra ideal, na expressão de Walter Benjamin, é um termo-chave do idealismo germânico, usado crítica e especulativamente. Kant empregou-o de maneira crítica para assinalar o função reguladora das Idéias racionais - Deus, por exemplo - sobre o conhecimento. Como idéia de uma causa absoluta dos fenômenos, que ultrapassa a experiência, extrapolando a categoria de causalidade, e desligada do tempo e do espaço, Deus não pode ser realmente conhecido. Representa, porém, relativamente à ordem empírica dos nossos conhecimentos, o ideal de unidade de todas as causas: a idéia apenas reguladora, de alcance me-todológico, de ciência total do sistema completo do universo. Nesse sentido, o ideal é autolimitação do conhecimento racional. O uso especulativo, em Hegel, faz do ideal a Idéia racional em via de realização; a Idéia une verdade e beleza; o belo é a "aparição sensível da Idéia" (sinnlich Scheinen der Idee).

O ideal do problema referido por Walter Benjamin, em seu ensaio de interpretação das Afinidades Eletivas, de Goethe, retorna ao parentesco legítimo que o romantismo estreitou entre a filosofia e a arte - parentesco que autorizaria, sob muitas reservas e cautelas, quer o tratamento filosófico da criação artística quer o tratamento artístico das obras filosóficas.

"O todo da filosofia, o seu sistema", diz o ensaísta alemão, "estende sua soberania mais para além das respostas que pode reclamar o conjunto de seus problemas" (op. cit., pág. 150). Não há problemas filosóficos isolados, fora da ordem sistemática dos conceitos na base dos quais são formulados e ao mesmo tempo resolvidos; a solução decorre da formulação ou a formulação implica a solução; ambas valem dentro do sistema de que os problemas formam o arcabouço. Mas se todas as questões filosóficas podem ser solucionadas de acordo com o sistema de conceitos do qual fazem parte, a articulação mesma dessas questões, em sua unidade sistemática, não é ohjeto de indagação expressa, e permaneceria insolúvel se o fosse. Sem que se dissipe, a idéia da unidade dos [25] problemas persiste enquanto idéia-limite ou ideal da solução de todos, uma vez resolvido o princípio que lhes é comum e em que assenta o sistema. "O que os filósofos chamam de ideal do problema é essa mesma idéia de uma questão inexistente incidindo sobre a unidade da filosofia" (op. cit., pág. 150). Seria a solução do todo sistemático da filosofia, a verdade como ideal realizado.

Mas, para Benjamin, as obras de arte "apresentam uma profunda afinidade" com o ideai da unidade da filosofia. Essa afinidade, que se concerta no plano ontológico, só pode ter por base a correspondência entre o que é belo e o que é verdadeiro. Benjamin aplica a lição de Hegel, que lhe era familiar. A correspondência avizinha, aproxima, dois domínios simetricamente inversos, posto que o belo torna manifesta, no sensível, a verdade da idéia, racionalmente independente do sensível.

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Sem ser objeto de interpretação expressa, a verdade pende sobre a grande ou autêntica obra de arte, enquanto exigência de completude. Mas também se pode dizer que a arte, cuja existência genérica é uma abstração, submete a exigência de realização conceptual, determinante na esfera do pensamento especulativo, ao modo de ser concreto e individual que a caracteriza como obra. Em termos hegelianos, a obra é um todo, e como tal uma totalidade de sentido no sensível, o ideal inseparável das aparências, da fenomenalidade em que se manifesta. Transpondo-se esse entendimento da arte para o terreno da literatura, sob o foco da aproximação hermenêutica, que utilizaremos na leitura de Grande Sertão: Veredas, diremos que a verdade da obra, quando esta é filosoficamente interpretada e, portanto, quando examinada do ponto de vista dos problemas filosóficos que deixa entrever, ou que se encontram nela tematizados, isto é, incorporados aos seus temas e recondicionados à sua forma específica, concerne ao mundo que se articula no discurso - no discurso feito texto, cujo sentido, objetificado peta escrita, e assim distanciado das intenções do autor; a leitura interpretativa reatualiza. No caso particular do romance, a leitura de aproximação hermenêutica, que acompanha a pauta temática do texto, vai ao encontro, através do mundo nele constiluido - a ordem dos acontecimentos e a situação dos personagens - da instância de questionamento: a questão por meio da qual a verdade da obra se mostra. Essa questão, implícita às demais, não expressamente formulada como pergunta, e que a todas confere sentido, envolve o elemento conceptual, genérico, da Idéia - o ideal do problema, a unidade do pensamento filosófico - sem resolver-se, entretanto, como idéia. Transparecendo à custa da ação, guardando constante nexo com os conflitos desenrolados, mas sem nenhum poder de síntese sobre eles, a questão, ideia irrealizada que se projeta no horizonte do mundo criado, apresenta para o pensamento filosófico interrogativo, de que é a instância dentro da obra, ao mesmo tempo que uma figura da existência real, um "claro enigma", um limite da racionalidade. A leitura hermenêutica, retomando o discurso, interroga o texto à busca da questão que o mundo da obra propõe ao pensamento. A simples descrição da visão de mundo (Weltanschaung), da mundivivência, é apenas uma via de acesso à instância de questionamento, que a coloca em causa ou torna-a problemática. A exegese filosófica de Grande Sertão: Veredas é reclamada pelo caráter reflexivo de um texto que narra rememorando, e que, rememorando, interroga os motivos de uma ação transcrrida. As perguntas que encaminham a narrativa delineiam o elemento conceptual, o núcleo dos problemas gerais explicitados pela leitura. [26]

(09) J. Guimarães Rosa - Correspondência com o Tradutor italiano, pág. 68, São Paulo,

Instituto Cultural Italo-Brasileiro, s/d. - A complexidade de Grande Sertão: Veredas está apenas esquematizada nessa estimativa, o cenário e a realidade regionais desdobram-se no Sertão da aventura humana. Na paisagem sertaneja localizam-se as "regiões" ética e espiritual. A poesia, como ação verbal, entrama-se à ação propriamente dita, de que o enredo é o esqueleto épico, ao mesmo tempo aventura e busca do personagem-narrador em função do mito (o Pacto com o demônio) que as mobiliza, gerando um ethos, um modo de ser e de agir levado ao

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plano reflexivo. O mito cristão-medieval do Tentador é excedido pelo demoníaco, no sentido que Goethe deu a esse termo: força obscura, contraditória, transcendendo a individualidade de que emana, oposta à ordem do mundo e entrecruzando-se com ela (Vide Goethe, Poesia e Verdade, 20º Livro).

Riobaldo seria o "herói problemático", que procura situar-se "num mundo degredado", segundo a formulação já clássica da Teoria do Romance, de Lukács. A riqueza dos componentes do romance espelha-se na complexidade da forma - aparentemente simples em seu desenvolvimento monologal.

"É somente no romance, diz Lukács, que o tempo se mostra ligado à forma" (La Theorie du Roman, pág. 121, Édltions Gonthier).

Em Grande Sertão: Veredas, o tempo é o eixo da forma da narração do mundo romanesco. Usamos a palavra temporalidade para significar dimensão originária do existente humano, facticamente situado e aberto na compreensão de si mesmo e do mundo, como profeta, às suas possibilidades. A conhecida procedência dessa terminologia (Heidegger, Ser eTempo) atesta o vínculo de nossa leitura com a fenomenologia hermenêutica.

(10) J. Guimarães Rosa - Correspondência com o Tradutor Italiano, pág. 67, op. cit. (11) Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos, Leituras de Guimarães Rosa, Livraria Duas

Cidades, São Paulo, 1976. (12) Mary L. Daniel, João Guimarães Rosa: Travessia Literária, pág. 173, Livraria José

Olympio Editora, Rio, 1968. (13) O "quem das coisas" é o que busca o Grivo em Cara-de-Bronze, de Corpo de Baile.

A "sobre-coisa": referência ao saber do compadre Quelemém (Grande Sertão: Veredas, p. 189).

(14) Francisco Faus, João Guimarães Rosa, le "contemplatif transparent", cf. Mary L.

Daniel, op. cit., págs. 15/16. (15) J. Guimarães Rosa - Correspondência com o Tradutor Italiano, op. cit., pág. 04. (16) Ver Milton de Godoy Campos, Guimarães Rosa - mestre ocultista, Jornal do

Brasil, s/d. (17) Consuelo Albergaria, "Bruxo da Linguagem no Grande Sertão (Leitura dos

Elementos Esotéricos na obra de Guimarães Rosa)", Tempo Brasileiro, Rio, 1977. (18) Dante Aliguieri, Epistolas, Obras Completas, vol. X, pág. 170, Editora das

Américas, São Paulo. [27]

(19) Cf. Nortrop Frye, Anatomy of Crlticism. págs. .188/187, Atheneum New York, 1966.

(20) Cf. Northrop Frye, op. cit., Idem.

(21) Ver acerca das fontes filosóficas da anamnese em Guimarães Rosa, o livro de Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos, já referido.

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(22) Marcel Proust, La Prisionnière, La Recherche du Temps Perdu, vol. XII, pág, 111, Gallimard, Paris, 1927.

- A busca do tempo perdido é a busca do centro, da convergência das lembranças. O tempo reencontrado é de certo modo o tempo abolido - o artifício estético da temporalidade conquistada, redimida pela memória, como objeto de ume obra a ser escrita. Os instantes revividos são mais do que um momento do passado. "Rien qu'un moment du passé? Beaucoup plus, peut-ètre; quelque chose qui commun à la fois au passé et au présent, est beaucoup plus essentiel qu'eux deux" (Le Temps Retrouvé, vol. II, ed. cit.). Mas esse elemento comum é intemporal. "Une minute affranchie de l’ordre du temps a recréé en nous pour la sentir l'homme affranchi de l'ordre du temps" (idem).

(23) Santo Agostinho, Confissões, Livro X, pág. 280, Porto, 1998. - "Transporei então esta força de minha natureza, subindo por degraus até aquele que me criou. Chego aos campos e vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie." Segundo Santo Agostinho, as noções que não provêm dos sentidos, originam-se do pensamento, que colige as coisas dispersas e desordenadas na memória, chegando até à lembrança da lembrança, ou seja, a reminiscêncla de Deus.

(24) O neoplatonismo, pelo menos cm sua fonte primeira - Plotino - nega o curso fatal do Destino como encadeamento causal necessário (Influência dos astros ou de demónios) de agentes exteriores. Ver, a respeito, o tratado 1 de terceira Enéada.

(25) Roberto Schwarz, Grande Sertão - A Fala, A Sereia e o Desconfiado, ensaios críticos, págs. 23/27, Editora Civilização Brasileira, Rio, 1965.

(26) Seguimos a distinção de Gérard Genette em Figures III, Discours du récit, essai de méthode entre ordre et duraée - Edotions du Seul, Paris, 1972.

(27) "O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias: repensando. Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é dos de Carinhanha". (GSV, 292). “Nosso pessoal, montão deles, pegou a mazelar. Mas isto eu refiro depois. O senhor já que me ouviu até aqui, vá ouvindo". (GSV, 360). "O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver - não é? - é muito perigoso." (GSV, 550). "O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sei é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei." (GSV, 560).

(28) Antecedendo o trecho citado: “Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu - que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo - mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados guerreantes dentro de Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa." (GSV, 324). Ainda como

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exemplo: "Curtamente: dali da Sempre-Verde, com um dia mais, desapertamos." (GSV, 270). [28]

(29) A análise agostiniana (Livro XI, das Confissões) alcança criticamente a concepção do tempo exposta por Aristóteles na Física: a medida do movimento segundo o anterior e o posterior. Segundo Santo Agostinho, não haveria três tempos - o anterior do passado, o posterior do futuro e o "agora" do presente - mas um só movimento da alma como presente das coisas passadas pela lembrança, presente das presentes pela atenção e presente das futuras pela expectativa. A reminiscência é a lembrança do que esquecemos, do Deus oculto, ser eterno e imutável. "Na eternidade, (...) nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. ... Quem poderá prender o coração do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel determina o futuro e o passado...?" (Livro X1 Confissões)

(30) "Um ser que dura, mesmo completo, como, por exemplo, o corpo completado pela alma, ainda tem necessidade do futuro; ele tem, portanto, uma falha, porque necessita do tempo." (Platino, Entrada III, Livro 7). O temporal é defectivo; a eterno, idêntico a si mesmo, é infinito, total e perfeito. Eis a doutrina plotiniana. No debate de Riobaldo com o tempo, a nova consciência do passado, que surge com o avanço da rememoração, também acarreia uma nova consciência do futuro. "O que é de paz cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro." (GSV, 272). A visão neoplatônica do mundo tenderia a submeter o temporal ao eterno, a existência humana à transcendência do ser divino; mas a verdade da obra desprende-se de mundivivência do autor.

(31) Não bastaria dizer que a temporalidade é o continuum de existência humana enquanto cada um dos seus momentos - passado, presente e futuro - corresponde a uma dimensão do existente (Dasein), como ser-no-mundo e à estrutura do cuidado (Surge) que caracteriza a existência humana. De acordo com a fenomenologia heideggeriana do tempo, o passado corresponde à situação global do homem no mundo (facticidade), o presente ao confronto com os entes e o futuro ao projetar-se das possibilidades O Dasein é o que foi na medida do que pôde ser, projetado no futuro e presente a si mesmo. A temporalidade é, pois, um ek-statikon: movimento fora de si, de que cada componente constitui um ek-stase, em recíproca ligação com os demais. Entretanto, e primazia cabe ao "futuro", que garante a estrutura do cuidado, o ser projetante do Dasein. De temporalidade - o tempo originário que funda, por assim dizer, o tempo objetivo e o tempo subjetivo, e ao qual não se pode aplicar nem a noção de ente nem a de fluxo - convém afirmar, embora tautologicamente, que se temporaliza a partir de cede êxtase. Não há sucessão entre os êxtases. Mas, dessa forma, a temporalidade se torna uma descrição da finitude do ser humano e, conseqüentemente, da contingência de todo acontecer oriundo da ação. "Possível que é - possível o que foi. O sertão não chama ninguém às claras; mas, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente... E - mesmo - possível o que não foi." (GSV, 491). A temporalidade é o cômpito, e encruzilhada. Como obra, GSV figura a temporalidade como temporalização, ou seja, a existência humana em sua fragilidade enigmática de evento. Viver - não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo." (GSV, 550). Nesse sentido, a travessia perigosa no sertão do mundo é uma

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errância. "Em desde aquele tempo, eu já achava que e vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu aco, é o que eu achava." (GSV, 232).

As citações de Grande Sertão: Veredas (GSV) seguem a 2ª edição (texto definitivo), Livraria José Olympio, Rio, 1958. [29]