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1 A PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA – O HOMEM NA SOCIEDADE – PETER BERGER Ao chegarem a uma certa idade, as crianças ficam profundamente admiradas com a possibilidade de se localizarem num mapa.Parece estranho que a vida familiar de uma pessoa tivesse transcorrido inteiramente numa área delineada por um sistema de coordenadas impessoais (e até então desconhecidas) na superfície de uma mapa.As exclamações da criança – “Estive aqui”, “Agora estou aqui!” – revelam o assombro pelo fato de que o local das férias do verão passado, um local marcado na memória por fatos pessoais como a propriedade do primeiro cachorro ou uma coleção secreta de minhocas, tenha latitudes e longitudes específicas, determinadas por estranhos que não conhecem o cachorro, as minhocas ou a própria criança.Essa localização do “eu” em configurações concebidas por estranhos constitui um dos aspectos importantes daquilo que, talvez eufemisticamente, é chamado de “crescer”.Uma pessoa participa do mundo real dos adultos por possuir um endereço.A criança que talvez recentemente poria no correio uma carta endereçada “A vovô” agora informa a uma colega caçador de minhocas seu endereço exato – rua, cidade, estado e o que mais for necessário – e vê sua tentativa de ingresso na cosmovisão adulta legitimada espetacularmente pela chegada da carta do amigo. À medida que a criança continua a aceitar a realidade dessa cosmovisão, continua a colecionar endereços – “Tenho seis anos”, “Meu nome é Brown, como o do meu pai, é porque meus pais são divorciados, “Sou presbiteriano”, “Sou americano”, e, quem sabe, “Estou na classe 1

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O homem na sociedade

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A PERSPECTIVA SOCIOLGICA O HOMEM NA SOCIEDADE PETER BERGER

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A PERSPECTIVA SOCIOLGICA O HOMEM NA SOCIEDADE PETER BERGER

Ao chegarem a uma certa idade, as crianas ficam profundamente admiradas com a possibilidade de se localizarem num mapa.Parece estranho que a vida familiar de uma pessoa tivesse transcorrido inteiramente numa rea delineada por um sistema de coordenadas impessoais (e at ento desconhecidas) na superfcie de uma mapa.As exclamaes da criana Estive aqui, Agora estou aqui! revelam o assombro pelo fato de que o local das frias do vero passado, um local marcado na memria por fatos pessoais como a propriedade do primeiro cachorro ou uma coleo secreta de minhocas, tenha latitudes e longitudes especficas, determinadas por estranhos que no conhecem o cachorro, as minhocas ou a prpria criana.Essa localizao do eu em configuraes concebidas por estranhos constitui um dos aspectos importantes daquilo que, talvez eufemisticamente, chamado de crescer.Uma pessoa participa do mundo real dos adultos por possuir um endereo.A criana que talvez recentemente poria no correio uma carta endereada A vov agora informa a uma colega caador de minhocas seu endereo exato rua, cidade, estado e o que mais for necessrio e v sua tentativa de ingresso na cosmoviso adulta legitimada espetacularmente pela chegada da carta do amigo.

medida que a criana continua a aceitar a realidade dessa cosmoviso, continua a colecionar endereos Tenho seis anos, Meu nome Brown, como o do meu pai, porque meus pais so divorciados, Sou presbiteriano, Sou americano, e, quem sabe, Estou na classe especial dos meninos inteligentes, porque meu Q.I 130.Os horizontes do mundo, da maneira como os adultos o definem, so determinados pelas coordenadas de cartgrafos remotos.Acriana pode exibir identificaes alternadas ao se apresentar como pai ao brincar de casinha, como um cacique indgena ou como Davy Crockett, mas no deixar de saber em nenhum momento que est apenas brincando e que os fatos reais a seu respeito so aqueles registrados em sua ficha escolar.Abandonamos as aspas e assim denunciamos que tambm ns fomos induzidos sanidade em nossa infncia claro que devamos escrever todas as palavras chaves entre aspas: saber, reais, fatos.A criana sadia aquela que acredita no que est registrado em sua ficha escolar.O adulto normal aquele que vive dentro das coordenadas que lhe foram atribudas.

Aquilo a que se chama consenso geral na verdade o mundo dos adultos aceito como bvio a ficha escolar transformou-se numa ontologia.Agora a personalidade passa a ser identificada, naturalmente, com a maneira como a pessoa est localizada com preciso no mapa social.O que isto significa para a identidade e as idias de uma pessoa ser tratado mais extensamente no prximo captulo.O que nos interessa no momento a maneira como essa localizao informa a um indivduo aquilo que ele pode fazer e o que pode esperar da vida.Estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseco de foras sociais especficas.Geralmente quem ignora essas foras age com risco.A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente definidos de poder e prestgio.E depois que aprende sua localizao, passa tambm a saber que no pode fazer muita coisa para mudar a situao.

A maneira como os indivduos de classe mais baixa usam o pronome eles exprime com bastante exatido essa conscincia da heteronomia da vida de uma pessoa. Eles arrumam as coisas dessa ou daquela maneira, eles do o tom, eles fazem as regras.Talvez no seja muito fcil identificar esses eles com determinados indivduos ou grupos.E o sistema, o mapa traado por estranhos, sobre o quel tem-se de continuar a rastejar.Mas isto seria uma maneira unilateral de se considerar o sistema, se se pressupe que este conceito perde o significado quando uma pessoa passa para as camadas superiores da sociedade.A rigor, haver uma maior sensao de liberdade de movimento e deciso, o que ser verdade.Mas as coordenadas bsicas dentro das quais se pode mover e tomar decises ainda tero sido traadas por outros, na maioria estranhos, muitos deles mortos, h muito tempo.At mesmo o autocrata total exerce sua tirania contra uma constante resistncia, no necessariamente resistncia poltica, mas a resistncia do costume, das convenes e do simples hbito.As instituies trazem consigo um princpio de inrcia, talvez alicerada, em ltima instncia, na rocha firme da estupidez humana.O tirano constata que, embora ningum se atreva a contest-lo, mesmo assim suas ordens sero frequentemente anuladas por mera falta de compreenso. A trama aliengena da sociedade se reafirma at mesmo diante do terror. Entretanto, deixemos de lado a questo da tirania.Nos nveis ocupados pela maioria dos homens, inclusive o autor e (supomos) quase todos os leitores destas linhas, a localizao na sociedade constitui uma definio de regras que tm de ser obedecidas.

Como vimos, o consenso geral da sociedade entende isto.O socilogo no contradiz esse entendimento.Ele o agua, analisa suas razes, s vezes o modifica ou o amplia.Veremos mais tarde que a perspectiva sociolgica finalmente ultrapassa o consenso geral do sistema e de nosso cativeiro nele.Entretanto, na maioria das situaes sociais especficas que o socilogo se dispe a analisar, ele encontrar poucos motivos para desmentir a idia de que so eles que mandam...Ao contrrio, eles tero ainda mais ascendncia sobre nossas vidas do que julgvamos antes da analisa sociolgica.Este aspecto da perspectiva sociolgica pode ser melhor esclarecido pelo exame de duas importantes reas de investigao o controle social e a estratificao social.

Controle social um dos conceitos mais utilizados em sociologia.Refere-se aos vrios meios usados por uma sociedade para enquadrar seus membros recalcitrantes.Nenhuma sociedade pode existir sem controle social.At mesmo um pequeno grupo de pessoas que se encontrem apenas ocasionalmente ter de criar seus mecanismo de controle para que o grupo no se desfaa em muito pouco tempo. escusado dizer que os instrumentais de controle social variam muitssimo de uma situao social para outra.A oposio numa organizao comercial pode acarretar aquilo que os gerentes de pessoal chamam de entrevista final e que as organizaes criminais chamam de ltimo passeio de automvel.Os mtodos de controle variam de acordo com a finalidade e o carter do grupo em questo.Em qualquer um dos casos, os mecanismos sociais funcionam de maneira a eliminar membros indesejveis e (como foi enunciado de maneira clssica pelo Rei Christophe, o Haiti, quando mandou executar um dcimo de seus trabalhadores) para estimular os outros.

O meio supremo e, sem dvida, o mais antigo, de controle social a violncia fsica.Na sociedade selvagem das crianas ainda o mais importante.Entretanto, at mesmo nas polidas sociedades das modernas democracias, o argumento final a violncia.Nenhum Estado pode existir sem uma fora policial ou seu equivalente, em poderio armado.Essa violncia final pode no ser usada com freqncia.Poder haver inmeras medidas antes de sua aplicao, guisa de advertncia e reprimenda.Mas se todas as advertncias forem ignoradas, mesmo numa questo secundria como pagar uma multa de trnsito, o ato final ser o aparecimento de dois policiais porta do cidado, com algemas e um tintureiro.At mesmo o guarda moderadamente corts que entregou o talo de multa provavelmente usava uma arma em caso de ser necessria...E at mesmo na Inglaterra, onde os guardas no portam armas, receber uma se a situao exigir.

Nas democracias ocidentais, onde prevalece a nfase ideolgica na submisso voluntria s leis votadas por representantes populares, essa presena constante da violncia oficial menos visvel.O importante que todos saibam que ela existe.A violncia o alicerce supremo de qualquer ordem poltica.O consenso geral da sociedade percebe isto, o que talvez tenha alguma coisa a ver com a generalizada relutncia popular em eliminar a pena capital do Direito Penal (embora provavelmente essa relutncia se baseie em doses iguais de estupidez, superstio e do bestialismo congnito que os juristas partilham com a maior parte de seus concidados).Contudo, a afirmativa de que a ordem poltica repousa em ltima anlise na violncia tambm vlida em relao aos Estados que aboliram a pena capital.Sob certas circunstncias, os membros da polcia estadual de Connecticut (onde uma cadeira eltrica adorna a penitenciria central) recebem permisso para usar suas armas, mas a mesma possibilidade est aberta a seus colegas de Rhode Island, onde as autoridades policiais e penitencirias no desfrutam das vantagens da pena capital.No preciso ressaltar que nos pases de ideologia manos democrtica e humanitria os instrumentos de violncia so exibidos e empregados com muito menos discrio.

Como o uso constante da violncia seria impraticvel, e alm disso ineficiente, os rgos oficiais de controle social confiam sobretudo na influncia inibidora da disponibilidade dos meios de violncia.Por vrios motivos, essa atitude geralmente se justifica em qualquer sociedade que no esteja beira da dissoluo catastrfica (como, digamos, em situaes de revoluo, derrota militar ou desastre natural).O motivo mais importante o fato de que, mesmo nos Estados ditatoriais ou terroristas, um regime tende a ganhar aquiescncia e at aprovao com a simples passagem do tempo.No cabe aqui entrar na dinmica scio-psicolgica deste fato.Nas sociedades democrticas h no mnimo a tendncia de a maioria das pessoas aceitar os valores em nome dos quais os meios de violncia so empregados (isto no significa que estes valores tenham de ser bons a maioria dos brancos em algumas comunidades do Sul dos Estados Unidos pode ser, por exemplo, favorvel ao uso da violncia, por parte dos servios policiais, a fim de manter a segregao mas significa que a utilizao dos meios de violncia aprovada pelo grosso da populao).Em qualquer sociedade normal a violncia utilizada com parcimnia e como ltimo recurso, e a mera ameaa dessa violncia final basta para o exerccio cotidiano do controle social.Para os fins a que nos propomos, o fato mais importante a salientar que quase todos os homens vivem em situaes sociais nas quais, se todos os outros meios de coero falharem, a violncia pode ser oficial e legalmente usada contra eles.

Compreendido assim o papel da violncia no controle social, torna-se claro que os, por assim dizer, penltimos meios de coero so quase sempre mais importantes para a maioria das pessoas.Embora haja uma certa monotonia quanto aos mtodos de intimidao imaginados pelos juristas e pelos policiais, os instrumentais subviolentos de controle social apresentam grande variedade e, s vezes, muita imaginao. provvel que, aps os controles polticos e legais, se deva situar a presso econmica.Poucos meios coercitivos so to eficientes como aqueles que ameaam o ganha-po ou o lucro.Tanto os empregadores como os trabalhadores usam com eficcia essa ameaa como instrumento de controle em nossa sociedade .Entretanto, os meios econmicos de controle tambm so eficientes fora das instituies que compreendem a economia.As universidades e as igrejas utilizam as sanes econmicas, com a mesma eficincia, a fim de impedir seu pessoal de se entregar a uma conduta discordante que as respectivas autoridades julgarem ultrapassar os limites do aceitvel.Talvez no seja realmente ilegal que um ministro religioso seduza sua organista, mas a ameaa de ser impedido para sempre do exerccio de sua profisso constituir um controle muito mais eficiente sobre essa tentao que a possvel ameaa de ter de ir para a cadeia. fora de dvida no ser ilegal um ministro expor sua opinio sobre assuntos que a burocracia eclesistica preferia ver sepultados no silncio, mas a possibilidade de passar o resto da vida em parquias rurais de baixa remunerao constitui realmente um argumento muito poderoso. claro que tais argumentos so empregados mais abertamente em instituies econmicas propriamente ditas, mas a utilizao de sanes econmicas nas igrejas e universidades no difere muito, em seus resultados, da que se verifica no mundo dos negcios.

Onde quer que seres humanos vivam ou trabalhem em grupos compactos, nos quais so conhecidos pessoalmente e aos quais esto ligados por sentimentos de lealdade pessoal (aquilo que os socilogos chamam de grupos primrios), mecanismos de controle a um s tempo muito potentes e muito sutis so constantemente aplicados ao transgressor real ou potencial.Tratam-se dos mecanismos de persuaso, ridculo, difamao e oprbio.J se descobriu que em discusses grupais que se estendem durante um certo perodo, os indivduos modificam suas opinies originais, ajustando-as norma grupal, que corresponde a uma espcie de mdia aritmtica de todas as opinies representadas no grupo.O ponto a que leva essa norma depende obviamente do grupo.Por exemplo, se tivermos um grupo de vinte canibais discutindo o canibalismo com um no-canibal, as probabilidades maiores so de que ao fim este ltimo saia convencido e que, com apenas algumas reservas para manter as aparncias (referentes, digamos, ao consumo de parentes prximos), ceder completamente ao ponto de vista da maioria.Mas se tivermos uma discusso entre dez canibais que consideram a carne de pessoas de mais de sessenta anos como dura demais para um paladar apurado e dez outros canibais que estabelecem o limite aos cinqenta anos, provvel que por fim o grupo concorde em estabelecer o limite em cinqenta anos, refugando como alimento os prisioneiros que ultrapassam esta idade.Assim se processa a dinmica grupal.O que jaz no fundo dessa presso aparentemente inevitvel no sentido de um consenso, ser provavelmente um profundo desejo humano de ser aceito, talvez por qualquer grupo que estiver mo.Esse desejo pode ser manipulado com toda eficincia, como bem sabem os terapistas de grupo, os demagogos e outros especialistas no campo da engenharia de consenso.

O ridculo e a difamao so instrumentos potentes de controle social em grupos primrios de todas as espcies.Muitas sociedades usam o ridculo como um dos principais controles sobre crianas a criana obedece norma no por receio de castigo, mas para no ser alvo de zombaria.Em nossa prpria cultura, isto tem constitudo importante medida disciplinar entre os negros do Sul.No entanto, a maioria das pessoas j sentiu o medo arrepiante de cair no ridculo em alguma situao social.A difamao, ou o mexerico, como bem sabido, de especial eficcia em pequenas comunidades, onde a maior parte das pessoas conduz suas vidas num alto grau de visibilidade e possibilidade de inspeo por parte de seus vizinhos.Em tais comunidades, o disse-me-disse um dos principais canais de comunicao, essencial manuteno da trama social.Tanto o ridculo como a difamao podem ser manipulados deliberadamente por qualquer pessoa inteligente que tenha acesso s suas linhas de transmisso.

Finalmente, uma das punies mais devastadoras disposio de uma comunidade humana consiste em submeter um de seus membros ao oprbio e ostracismo sistemticos.De certa forma irnico constatar que este um mecanismo de controle favorito de grupos que se opem em princpio ao uso da violncia.Exemplo disso seria a rejeio entre os menonitas.Um indivduo que quebra um dos principais tabus do grupo (por exemplo envolver-se sexualmente com um estranho) rejeitado.Isto significa que, conquanto possa continuar a trabalhar e viver na comunidade, ningum jamais lhe dirigir a palavra. difcil imaginar um castigo cruel.Entretanto, essas so as maravilhas do pacifismo.

Um dos aspectos do controle social que deve ser salientado o fato de se basear frequentemente em afirmaes fraudulentas.Num captulo posterior, retomaremos a importncia da fraude para uma compreenso sociolgica da vida humana; aqui frisaremos apenas que uma concepo de controle social incompleta, e portanto tendenciosa, se esse elemento no for levado em considerao.Um garotinho pode exercer considervel controle sobre seu crculo de colegas se tiver um irmo maior que, se necessrio, possa ser convocado para sovar algum adversrio.Contudo, na falta de tal irmo, possvel inventar um.Nesse caso s depender do talento de relaes pblicas do garotinho conseguir traduzir essa inveno em controle real.As mesmas possibilidades de fraude existem em todas as formas de controle social discutidas. por isso que a inteligncia contribui para a sobrevivncia quando se trata de competir com a brutalidade, a maldade e recursos materiais.Voltaremos ainda a este ponto.

Podemos, ento, considerar que estejamos no centro (isto , no ponto de maior presso) de um conjunto de crculos concntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social.O crculo exterior bem poder representar o sistema legal e poltico sob o qual somo obrigados a viver. o sistema que, contra a vontade da pessoa, lhe cobrar impostos, a convocar para as foras armadas, a far obedecer as suas inmeras leis e a seus regulamentos, se necessrio a meter na priso, e em ltimo recurso a matar.No necessrio que uma pessoa seja um Republicano direitista, nos Estados Unidos, para se perturbar com a contnua expanso do poder desse sistema, que atinge todos os aspectos concebveis da vida de uma pessoa.Seria um exerccio salutar anotar, durante uma nica semana, todas as ocasies, inclusive as fiscais, em que se sofreu as exigncias do sistema poltico-legal.O exerccio pode ser concludo com a soma das multas e/ou sentenas de priso a que poderia levar a desobedincia ao sistema.O consolo que poderia advir de tal exerccio consistiria em perceber ou lembrar que os servios policiais e judicirios so normalmente corruptos e de limitada eficincia.

Outro sistema de controle social que exerce presso contra a figura solitria no centro dos crculos o da moralidade, costumes e convenes.S os aspectos mais urgentes (para as autoridades) desse sistema acarretam sanes legais.Isto no significa, entretanto, que se possa, sem risco, ser imoral, excntrico ou anticonvencional.Nesse ponto, todos os outros instrumentos de controle social entram em ao.A imoralidade punida com a perda do emprego, a excentricidade pela perda das possibilidades de se conseguir outro, o anticonvencionalismo pela rejeio dos grupos que respeitam aquilo que consideram ser boas maneiras.O desemprego e a solido talvez sejam castigos menores que ser levado arrastado pelos policiais, mas talvez a pessoa punida no pense assim.O desafio extremo aos costumes de nossa sociedade, que dispe de um instrumental de controle bastante desenvolvido, pode levar ainda a outra conseqncia a definio de uma pessoa como adoidada.

A burocracia esclarecida (da qual fazem parte, por exemplo, as autoridades eclesisticas de algumas denominaes protestantes) j no atira seus empregados discordantes no olho da rua, mas ao invs disso os submete a tratamento psiquitrico.Dessa forma, o indivduo que no satisfaz os critrios de normalidade estabelecidos pela administrao, ou por seu bispo, ameaado com desemprego e com a perda de ligaes sociais, mas alm disso tambm estigmatizado como uma pessoa que com toda justia poder ser afastada inteiramente da categoria dos homens responsveis, a menos que d mostras de remorso (entendimento) e resignao (reao e tratamento).Assim os inmeros programas de assistncia, orientao e terapia levado a efeito em muitos setores da vida institucional contempornea, fortalecem enormemente o mecanismo de controle da sociedade como um todo, e principalmente daqueles seus argumentos onde as sanes do sistema poltico-legal no podem ser invocadas.

Contudo, alm desses amplos sistemas coercitivos exercidos sobre todos os indivduos, h ainda outros crculos de controle, menos gerais.A ocupao escolhida por um indivduo (ou, como geralmente acontece, a ocupao a que foi levado) inevitavelmente o subordina a vrios controles, muitas vezes bastante rgidos.H os controles formais de juntas de licenciamento, organizaes profissionais e sindicatos, alm, claro, dos requisitos formais estabelecidos por seus empregadores.Ao lado desses controles formais, h outros informais, impostos por colegas de profisso e companheiros de trabalho.Este ponto tambm no exige maiores explicaes.O leitor poder alinhar seus prprios exemplos o mdico que participa de um programa de assistncia mdica pago por antecipao, o agente funerrio que anuncia funerais baratos, o engenheiro industrial que no leva em considerao a obsolescncia planejada em seus clculos, o ministro que afirma no estar interessado no tamanho de sua congregao (ou melhor, o que age assim quase todos dizem isto), o burocrata do governo que regularmente gasta menos que a verba consignada, o operrio da linha de montagem que excede as normas tidas como aceitveis por seus colegas, etc.As sanes econmicas so, naturalmente, as mais comuns e eficientes nesses casos o mdico se v impedido de trabalhar em todos os hospitais, o agente funerrio pode vir a ser excludo de sua associao profissional por falta de tica, o engenheiro poder ser obrigado a entrar para os Voluntrios da Paz, como tambm o ministro e o burocrata (para trabalhar, digamos na Nova Guin, onde ainda no existe obsolescncia planejada, onde os cristos so raros e muito dispersos e onde a mquina administrativa ainda bastante pequena para ser relativamente racional) e o operrio da linha de montagem poder vir a descobrir que todas as pes defeituosas da fbrica sempre acabam em sua banca.Entretanto, as sanes de excluso social, desprezo e ridculo tambm podem ser quase intolerveis.Todo papel ocupacional na sociedade, at mesmo em empregos muito humildes, traz consigo um cdigo de conduta que no pode ser violado impunemente.Normalmente, a obedincia a esses cdigo to essencial para a carreira de uma pessoa quanto a competncia tcnica ou a educao.

O controle social do sistema ocupacional da maior importncia porque i emprego que decide o que uma pessoa pode fazer na maior parte de sua vida de quais associaes ele poder tornar-se membro, quem sero seus amigos e onde ele poder morar.Contudo, alm das presses da ocupao de uma pessoa, seus outros envolvimentos sociais tambm acarretam sistemas de controles, muitos dos quais menos rgidos, outros ainda mais inflexveis.Os cdigos que regem a admisso e permanncia em muitos clubes so to rigorosos quantos os que decidem quem pode tornar-se chefe na IBM (s vezes, felizmente para o atormentado candidato, os requisitos so os mesmos).Em associaes menos fechadas, as normas podem ser mais indulgentes e talvez s raramente um membro seja excludo, mas a vida pode se tornar to desagradvel para o persistente no-conformista que sua participao se torne humanamente impossvel. claro que os pontos cobertos por esses cdigos tcitos variam amplamente.Podem incluir maneiras de vestir, linguagem, gosto esttico, convices polticas e religiosas, ou simplesmente maneiras mesa.Em todos esses casos, porm, constituem crculos de controle que circunscrevem efetivamente o mbito das possveis aes do indivduo na situao dada.

Por fim , o grupo humano no qual transcorre a chamada vida privada da pessoa, ou seja, o crculo da famlia e dos amigos pessoais, tambm constitui um sistema de controle.Seria erro grave supor que este seja necessariamente o mais dbil de todos , apenas por no possuir os meios formais de coero de alguns dos outros sistemas de controle. nesse crculo que se encontram normalmente os laos sociais mais importantes de um indivduo.A desaprovao, a perda de prestgio, o ridculo ou o desprezo nesse grupo mais ntimo tm efeito psicolgico muito mais srio que em outra parte.O fato de o chefe concluir que uma pessoa imprestvel pode ter conseqncias econmicas desastrosas, mas o efeito psicolgico de tal opinio incomparavelmente mais devastador para um homem se ele descobrir que sua mulher chegou mesma concluso.Alm disso, as presses desse sistema ntimo de controle podem ser exercidas nas ocasies em que uma pessoa est menos preparada para elas.No trabalho, uma pessoa geralmente est em melhores condies de se resguardar, de se precaver e fingir que est vontade.O familismo americano contemporneo, um conjunto de valores que d forte nfase ao lar como lugar de refgio das tenses do mundo e da realizao pessoal, contribui bastante para esse sistema de controle.Um homem relativamente preparado psicologicamente para oferecer combate em seu escritrio estar disposto a fazer qualquer coisa para preservar a precria harmonia de sua vida familiar.Ademais,o controle social daquilo que os socilogos alemes chamam de a esfera do ntimoe particularmente poderoso devido aos prprios fatores da biografia do indivduo que entraram em sua formao.Um homem escolhe uma mulher e um bom amigo em atos de auto-definio.Aquelas pessoas que ele conhece mais intimamente so aquelas com que ele tem de contar para sustentar os elementos mais importantes de sua auto-imagem.Portanto, arriscar a desintegrao dos relacionamentos com essas pessoas equivale a arriscar perder-se a si mesmo de maneira inapelvel.No de admirar, portanto, que muitos dspotas no escritrio obedeam prontamente s suas mulheres e tremam diante de um olhar de reprovao dos amigos.

Se voltarmos imagem de um indivduo localizado no centro de um conjunto de crculos concntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social, podemos compreender um pouco melhor que situar-se na sociedade significa situar-se em relao a muitas foras repressoras e coercitivas.O indivduo que pensando consecutivamente em todas as pessoas que talvez tenha de agradar, desde o inspetor do servio de rendas internas, at sua sogra, julgar que toda sociedade esteja montada em sua cabea no deve rejeitar essa idia como uma perturbao neurtica momentnea. provvel que o socilogo intensifique essa opinio, por mais que outros orientadores digam tratar-se de uma iluso.

Outra rea importante de anlise sociolgica que talvez contribua para elucidar o pleno significado da localizao na sociedade a da estratificao social.O conceito de estratificao refere-se ao fato de que toda sociedade compem-se de nveis inter-relacionados em termos de ascendncia e subordinao, seja em poder, privilgio ou prestgio.Em outras palavras, estratificao significa que toda a sociedade possui um sistema de hierarquia.Alguns estratos, ou camadas sociais, so superiores, outros so inferiores.A soma desses estratos constitui o sistema de estratificao de uma determinada sociedade.

A teoria da estratificao um dos setores mais complexos do pensamento sociolgico, e estaria inteiramente fora dos objetivos deste livro apresentar qualquer espcie de introduo ao assunto.Bastar dizer que as sociedades diferem amplamente no tocante aos critrios segundo os quais os indivduos so levados aos diferentes nveis, e que diversos sistemas de estratificao, utilizando critrios distributivos inteiramente diferentes, podem coexistir na mesma sociedade. claro que os fatores que determinam a posio de um indivduo no sistema de estratificao da tradicional sociedade de castas na ndia so muito diferentes dos fatores que determinam sua posio numa moderna sociedade ocidental. E as trs principais recompensas da posio social - poder, privilgio e prestgio com freqncia no se sobrepe, antes existindo lado a lado em sistemas de estratificao distintos.Em nossa sociedade riqueza muitas vezes leva a poder poltico, mas no necessariamente.Alm disso existem indivduos poderosos e dotados de pouca riqueza.E o prestgio pode estar ligado a atividades sem nenhuma relao com posio econmica ou poltica.Essas observaes indicam que devemos agir com cautela ao investigar a maneira como a localizao na sociedade envolve o sistema de estratificao com sua enorme influncia sobre toda a vida de uma pessoa.

O tipo de estratificao mais importante na sociedade ocidental contempornea o sistema de classes.O conceito de classes, como a maioria dos conceitos na teoria da estratificao, tem sido definido de vrias formas.Para nossos objetivos, ser suficiente entender classe como tipo de estratificao no qual a posio geral de uma pessoa na sociedade determinada basicamente por critrios econmicos.Em tal sociedade, a classe em que se chega tipicamente mais importante do que a classe em que nasceu (embora a maioria das pessoas admita que esta tenha influncia profunda sobre aquela).Alm disto, uma sociedade de classes uma sociedade de alta mobilidade social.Isto significa que as posies sociais no so fixas, que muitas pessoas mudam suas posies para melhor ou para pior no decorrer de sua vida, e que, conseqentemente nenhuma posio parece inteiramente segura.Por isso, os smbolos da posio de uma pessoa so de grande importncia.Isto , pelo uso de vrios smbolos (como objetos materiais, estilos de comportamento, gosto e linguagem, tipos de associao e at opinies apropriadas) uma pessoa estasempre a mostrar ao mundo o ponto a que chegou. a isso que os socilogos chamam de smbolos de status que tem despertado grande ateno nos estudos de estratificao.

Max Weber definiu classe em termos das expectativas razoveis que um indivduo pode ter.Em outras palavras a classe de uma pessoa determina certas possibilidades, ou oportunidades, quanto ao destino que a pessoa pode esperar ter na sociedade.Todo mundo admite isto em termos estritamente econmicos.Um indivduo de classe mdia superior de, digamos, vinte e cinco anos de idade tem muito mais possibilidades de possuir da a dez anos uma casa elegante, dois carros e uma casa de campo do que outro indivduo da mesma idade de classe mdia inferior.Isto no significa que este ltimo no tenha nenhuma possibilidade de obter essas coisas, mas simplesmente que se encontra em desvantagem estatstica.Isto no de modo algum surpreendente, por quanto, de sada, classe foi definida em termos econmicos e uma vez que o processo econmico normal garante que dinheiro atrai dinheiro.Contudo, a classe determina as possibilidades da vida em muitos outros sentidos alm do puramente econmico.A posio de classe de uma pessoa determina o nvel de educao que seus filhos provavelmente tero.Determina os padres de assistncia mdica desfrutados por ela e por sua famlia, e por conseguinte, as expectativas de vida no sentido literal da palavra.As classes superiores de nossa sociedade alimentam-se melhor, moram melhor, so mais bem educadas e vivem mais do que eu seus concidados menos afortunados.Poder-se- dizer que estas observaes so bvias, mas elas adquirem maior impacto quando se constata que h uma correlao estatstica entre a quantidade de dinheiro que uma pessoa ganha por ano e o nmero de anos que pode esperar poder ganh-lo.Mas as conseqncias da localizao dentro do sistema de classes vo mais alm.

As diferentes classes de nossa sociedade no s vivem de maneira diferente quantitativamente, como tambm vivem em estilos diferentes qualitativamente.Um socilogo competente, diante de dois ndices bsicos de classe, como renda e ocupao, capaz de fazer uma longa lista de prognsticos sobre o indivduo em questo mesmo que nenhuma outra informao lhe seja dada.Como todas as outras previses sociolgicas, esses prognsticos tero carter estatstico.Ou seja, sero afirmaes de probabilidade e tero uma margem de erro.No entanto, podero ser bastante precisas.Conhecendo essas duas informaes a respeito de determinado indivduo, o socilogo ser capaz de oferecer palpites inteligentes a respeito do bairro da cidade onde esse indivduo mora, bem como sobre o tamanho e o estilo de sua casa.Poder ta,bem fazer uma descrio geral da decorao interior e conjecturar sobre os tipos de quadros na parede e sobre os livros e revistas nas estantes.Poder ainda calcular o tipo de msica que o indivduo gosta de ouvir e at mesmo se ele costuma ouvi-la em concertos, na vitrola ou no rdio.Mas o socilogo poder ire adiante.Pode predizer os clubes e associaes de que o indivduo em questo scio e qual a igreja.Pode estimar seu vocabulrio, sua maneira de falar, etc.Pode avaliar a filiao poltica do indivduo e sua opinio sobre vrias questes pblicas.Pode prever seu nmero de filhos e ainda se ele tem relaes sexuais com a mulher com as luzes acesas ou apagadas.Poder fazer algumas afirmativas sobre a probabilidade do cidado ser acometido por vrias doenas fsicas e mentais.Como j vimos ele ser capaz de situar o homem num quadro atuarial de expectativas de vida.Finalmente, se o socilogo decidisse verificar todos esses palpites e solicitasse uma entrevista ao indivduo em questo ele ser capaz de estimar as possibilidades de que a entrevista seja negada.

Muitos dos elementos a que acabamos de nos referir so criados por controles externos, em qualquer classe dada.Assim o gerente de uma empresa que tiver o endereo errado e a mulher errada ser submetido a considervel presso para mudar ambos.O indivduo de classe trabalhadora que desejar freqentar uma igreja de classe mdia superior ser levado a entender em termos inequvocos que se sentiria mais satisfeito em outro lugar.Ou a criana de classe mdia inferior com inclinaes para a msica de cmera se defrontar com fortes presses para corrigir essa aberrao e adquirir interesses musicais mais consonantes com os de sua famlia e de seus amigos.Contudo, em muitos desses casos, a aplicao de controles externos ser de todo desnecessria, uma vez que a probabilidade de ocorrncia de desvios realmente mnima.A maioria dos indivduos aos quais est aberta uma carreira de executivo casa-se com o tipo certo de mulher, quase que por instinto, e as crianas de classe mdia inferior tem seus gostos musicais formados bem cedo, e de maneira tal a se tornarem relativamente imunes s sedues da msica de cmera.Cada ambiente de classe forma a personalidade de seus membros atravs de inumerveis influncias que comeam ao nascimento e que se estendem at a formatura do curso secundrio ou ao reformatrio, conforme o caso.S quando essas influncias formativas de alguma forma no conseguem alcanar o objetivo que se faz necessria a ao dos mecanismos de controle social.Portanto, ao tentar compreender a importncia de classe, estamos no s examinando outro aspecto de controle social, como estamos tambm comeando a vislumbrar a maneira como a sociedade penetra nos recnditos de nossa conscincia, uma coisa sobre a qual nos alongaremos nos prximo captulo.

Ressalte-se neste ponto que essas observaes sobre classe no pretendem de modo algum constituir uma acusao colrica contra nossa sociedade.Existem decerto alguns aspectos de diferenas de classe que poderiam ser modificadas por certas espcies de engenharia social, como a discriminao de classe na educao e as desigualdades de classe na assistncia mdica.Entretanto, nenhum volume de engenharia social modificar o fato bsico de que os diferentes ambientes sociais exercem diferentes presses sobre seus membros, ou que algumas dessas presses contribuem mais do que outras para o sucesso, segundo a maneira como o sucesso for definido numa dada sociedade.H bons motivos para se crer que algumas das caractersticas fundamentais de um sistema de classes, s quais acabamos de nos referir, so encontradas em todas as sociedades industriais ou em industrializao, inclusive nas governadas por regimes socialistas, que negam em sua ideologia oficial a existncia de classes.Entretanto, se a localizao num determinado estrato social tem essas amplas conseqncias numa sociedade relativamente abertacomo a nossa, fcil imaginar quais sero as conseqncias em sistemas maisfechados.Neste ponto nos reportamos mais uma vez instrutiva anlise feita por Daniel Lerner sobre as sociedades tradicionais do Oriente Mdio, nas quais a localizao social fixava a identidade e as expectativas de uma pessoa (at mesmo na imaginao) num grau na maioria dos ocidentais acha difcil at de compreender.Entretanto, antes da revoluo industrial as sociedades europias no eram radicalmente diferentes, na maioria de suas camadas, do modelo tradicional de Lerner.Em tais sociedades, pode-se saber o que um homem apenas conhecendo-se sua posio social, da mesma forma que se pode olhar para a testa de um hindu e ver nela a marca de sua casta.

Contudo at em nossa prpria sociedade existem outros sistemas de estratificao, por assim dizer sobrepostos ao sistema de classe, muito mais rgidos que este, e que, por conseguinte,determinam de maneira muito mais severa americana o sistema racial, que a maioria dos socilogos considera uma variedade de casta.Em tal sistema, a posio social bsica de uma indivduo (isto , a fixao de sua casta) determinada ao nascimento.Pelo menos em teoria ele no tem absolutamente nenhuma possibilidade de modificar essa posio no decorrer de sua vida.Por mais rico que um homem se torne, sempre ser negro.Ou por mais baixo que um homem caia, em termos dos costumes da sociedade, sempre ser branco.Um indivduo nasce em sua casta, tem de viver toda a vida dentro dela e dentro dos limites de conduta prescritos. claro que deve casar-se e procriar dentro dessa casta.Na realidade, pelo menos em nosso sistema racial, existem algumas possibilidades de trapaa isto , negros de pele clara passarem por brancos.Entretanto, essas possibilidades em pouco alteram a eficcia total do sistema.Os fatos deprimentes do sistema racial americano so por demais conhecidos para exigirem maior elaborao aqui. claro que a localizao social de um indivduo como negro (mais no Sul do que no Norte, naturalmente, com menos diferenas entre as duas regies do que brancos farisaicos do Norte habitualmente proclamam) implica numa dramtica reduo de possibilidades existentes determinadas pela classe.Na verdade, as possibilidades de mobilidade social de um indivduo so nitidamente determinadas pela localizao racial, uma vez que algumas das desvantagens mais prementes desta ltima so de carter econmico.Assim, a conduta, as idias e a identidade psicolgica de um homem so moldadas pela raa de maneira muito mais decisiva do que pela classe.A fora repressora dessa localizao pode ser vista em sua forma mais pura (se que tal adjetivo pode ser aplicado, mesmo num sentido quase qumico, a fenmeno to revoltante) na etiqueta racial da sociedade tradicional do Sul dos Estados Unidos, na qual todo e qualquer caso de interao entre membros das duas castas era regulado num ritual estilizado projetado com todo cuidado para honrar uma das partes e humilhar a outra.Um negro se arriscava a punio fsica, e um branco a extremo oprbrio, pela mais leve violao do ritual.A raa era muito mais importante do que o lugar onde uma pessoa podia morar e a quem podia ligar-se.Determinava a inflexo vocal, os gestos, as piadas de uma pessoa, e at se infiltrava em seus sonhos de salvao.Em tal sistema, os critrios de estratificao tornavam-se obsesses metafsicas como no caso da senhora sulista que expressava a convico de que sua cozinheira iria sem a menor dvida para o cu das pessoas de cor.

Um conceito muito usado em sociologia o de definio da situao.Assim chamado pelo socilogo americano W.I.Thomas, significa que uma situao social o que seus participantes crem que ela seja.Em outras palavras, para as finalidades do socilogo, a realidade uma questo de definio. por isso que o socilogo deve analisar atentamente muitas facetas da conduta humana que em si mesmas so absurdas ou ilusivas.No exemplo do sistema racial acima mencionado, um bilogo ou antroplogo poder olhar as convices so inteiramente falsas.Poder ento neg-las como apenas mais uma mitologia produzida pela ignorncia e m vontade humanas, arrumar suas coisas e ir embora.A tarefa do socilogo, porm, s ento comea.De nada lhe adianta rejeitar a ideologia racial sulista como uma imbecilidade cientfica.Muitas situaes sociais so na verdade controladas pelas definies de imbecis.Na verdade, a imbecilidade que define a situao faz parte do material de anlise sociolgica.Assim, a compreenso operacional que o socilogo tem de realidade um tanto peculiar, questo qual retornaremos.No momento, o importante observar que os controles inexorveis pelos quais a localizao social determina nossa vida no so eliminados com o desmascaramento das idias que sustentam esses controles.E a histria no acaba a.Nossas vidas so dominadas no s pelas inanidades de nossos contemporneos, como tambm pelas de homens que j morreram h vrias geraes.Alm disso, cada inanidade ganha credibilidade e reverncia com cada dcada passada desde sua promulgao.Como Alfred Schetz observou, isto significa que cada situao social em que nos encontramos no s definida por nossos contemporneos, como ainda pr-definida por nossos predecessores.Como no se pode redargir a nossos ancestrais, comumente mais difcil nos livrarmos de suas fatdicas heranas do que das tolices criadas em nossa prpria gerao.Este fato expresso no aforisma segundo o qual os mortos so mais poderosos que os vivos. importante acentuar este ponto porque ele nos demonstra que at mesmo nas reas em que a sociedade aparentemente nos permite alguma opo a mo poderosa do passado estreita ainda mais essa opo.Como por exemplo, voltemos a um incidente j evocado, a cena de um casal de namorados ao luar.Imaginemos ainda que essa ocasio seja a decisiva, na qual uma proposta de casamento feita e aceita.Ora, sabemos que a sociedade contempornea impe considerveis limitaes a essa escolha, facilitando-a bastante nos casos dos casais que se ajustam nas mesmas categorias scio-econmicas e criando graves obstculos nos casos em que no existe essa concordncia.No entanto, tambm claro que at mesmo nos pontos em que eles (que ainda esto vivos)no fizeram nenhuma tentativa consciente para limitar a escolha dos participantes nesse drama especfico, eles (que j morreram) escreveram o script de quase toda a cena.A idia de que a atrao sexual pode ser traduzida e emoo romntica foi maquinada por menestris de vozes aveludadas que excitavam a imaginao de damas aristocrticas mais ou menos por volta do sculo XII.A idia de que um homem deveria fixar seu impulso sexual de modo permanente e exclusivo numa nica mulher, com quem ele deve dividir o leito, o banheiro e o tdio de milhares de cafs-da-manh remelosos foi produzida por telogos misantrpicos um pouco antes.E a premissa de que a iniciativa desse acordo maravilhoso deva partir do macho, com a fmea sucumbindo graciosamente remetida impetuosa de suas carcias, remonta s eras pr-histricas em que pela primeira vez guerreiro selvagens investiram contra alguma pacfica aldeia matriarcal, arrastando suas filhas.

Da mesma forma como todos esses vetustos personagens prepararam a estrutura bsica dentro da qual se desenrolaram as paixes de nosso casal, tambm cada um dos estgios de suas relaes recprocas foi pr-definido, pr-fabricado ou, se o leitor assim preferir fix-lo.No se trata apenas do fato de se esperar que os dois se apaixone e contratem um casamento mongamo no qual a moa renunciar ao sobrenome de solteira e o rapaz solvncia financeira, que esse amor deva ser fabricado a todo custo para que o casamento no parea insincero a todos os envolvidos, ou que a Igreja e o Estado vigiem a mnage com toda ateno uma vez estabelecida embora tudo isto constitua normas fundamentais estipuladas sculos antes de os protagonistas nascerem.Alm disso, cada um dos estgios do namoro e do noivado tambm estabelecido por um ritual social, embora sempre haja margem para improvisaes, uma variao excessiva nos padres certamente por em perigo toda a operao.Assim nosso casal comea com idas ao cinema e passa a encontros na igreja e a reunies de famlia; comea de passeios de mos dadas e passa a exploraes hesitantes e aquilo que inicialmente desejava guardar para depois; comea com planos para uma sada a noite e passa para planos para nova residncia sendo que a cena ao luar ocupa seu lugar adequado na seqncia cerimonial.Nenhum dos dois inventou o jogo ou qualquer uma de suas partes.Apenas decidiram jog-lo um com o outro, e no com terceiros.To pouco tem muita margem de escolha quanto ao que acontecer depois da troca ritual de proposta e resposta.Familiares, amigos, clrigos, vendedores de jias, corretores de seguros, floristas e decoradores garantem que o restante do jogo continue a ser praticado dentro das regras estabelecidas.To pouco esses guardies da tradio tem de exercer muita presso sobre os protagonistas, uma vez que as expectativas de seu mundo social h muitos anos foram integradas em suas projees do futuro eles desejam exatamente aquilo que a sociedade espera deles.Se as coisas se passam assim nas esferas mais ntimas de nossa existncia, fcil constatar que no mudam muito e que quase todas as situaes sociais encontradas no decorrer de uma vida.Quase sempre, o jogo j foi arrumado muito antes de entrarmos em cena.Tudo quanto nos resta, geralmente, jog-lo com mais ou menos entusiasmo.O professore que entra na sala para dar aula, o juiz que pronuncia sentena, o pregador que enfatiza sua congregao, o general que d ordem de ataque sua tropa todas essas pessoas esto empenhadas em aes pr-definidas dentro de limites muito estreitos e protegidos por imponentes sistemas de controles e sanes.Tendo em mente essas consideraes, podemos agora chegar a uma compreenso mais exata do funcionamento das estruturas sociais.Um til conceito sociolgico em que basear essa compreenso o de instituio.Geralmente se define instituio como um complexo especfica de aes sociais.Podemos dizer assim que lei, classe, casamento ou religio organizada sejam instituies.Essa definio ainda no nos informa a maneira como a instituio se relaciona com as aes dos indivduos envolvidos.Arnold Gehlen, socilogo alemo contemporneo, ofereceu uma resposta sugestiva a essa questo.Gehlen concebe a instituio como um rgo regulador, que canaliza as aes humanas quase da mesma forma como os instintos canalizam o comportamento animal.Em outras palavras, as instituies proporcionam mtodos pelos quais a conduta humana padronizada, obrigada a seguir por caminhos considerados desejveis pela sociedade.E o truque executado ao se fazer com que esses caminhos paream ao indivduo como os nicos possveis.Citemos um exemplo.Como no preciso ensinar aos gatos a caar ratos, existe aparentemente alguma coisa no equipamento congnito de um gato (um instinto, se o leitor gostar do termo) que o faz agir assim.Presumivelmente, quando um gato avista um rato, h alguma coisa que lhe diz : Coma!Coma!Coma!.No se pode dizer que o gato resolve atender este apelo interior.Ele simplesmente segue a lei de seu ser mais ntimo e arremete contra o pobre camundongo (o qual, suponho, escuta uma voz interior que lhe diz: Corra!Corra!Corra!).O gato no tem outra alternativa.Mas agora voltemos ao casal cujo namoro analisamos anteriormente.Quando nosso rapaz viu pela primeira vez a moa com quem representaria a cena do luar (ou, se no foi na primeira vez, algum tempo depois), tambm ouviu uma voz interior, que lhe dava uma ordem bem clara.E seu comportamento subseqente demonstra que ele tambm no pde resistir voz de comando.No, essa imperativa no essa que o leitor provavelmente est pensando esse imperativo nosso rapaz compartilha congenitamente com os gatos, chimpanzs e crocodilos e no nos interessa no momento.O imperativo que nos interessa aquele que lhe diz : Case-se!Case-se!Case-se!.Ao contrrio do gato, nosso rapaz no nasceu com esse imperativo.Ele lhe foi instilado pela sociedade, reforado pelas incontveis presses de histrias de famlia, educao moral, religio, dos meios de comunicao e da publicidade.Em outras palavras, o casamento no um instinto, e sim uma instituio.No entanto, a maneira como conduz o comportamento para canais pr-determinados muito semelhante atuao dos instintos em seus setores.A veracidade disto se torna bvia quando tentamos imaginar o que nosso jovem faria na ausncia do imperativo institucional.Poderia, naturalmente, fazer um nmero quase infinito de coisas.Poderia manter relaes sexuais com a moa, deix-la e nunca mais voltar a v-la.Ou poderia esperar que seu primeiro filho nascesse e depois pedir ao tio materno da moa que o criasse.Ou poderia reunir trs amigos e propor tomar a moa em comum como esposa.Ou poderia incorpor-la a seu harm, juntamente as outras vinte e trs mulheres que j vivem l.Em outras palavras, dados seu impulso sexual e seu interesse naquela moa especfica, o rapaz estaria num impasse bastante srio.Mesmo supondo que ele tivesse estudado antropologia e soubesse que todas as opes acima mencionadas constituem as atitudes normais em certas culturas humanas, ainda assim ele estaria em apuros para decidir qual seria o caminho mais conveniente nesse caso.J percebemos ento o que o imperativo institucional faz para ele protege-o desse impasse.Exclui todas as outras opes em favor daquela que a sociedade pr-definiu para ele.At mesmo afasta essas outras opes de sua conscincia.Apresenta-lhe uma frmula desejar amar, casar.Tudo quanto lhe resta fazer agora retrilhar o caminho preparado para ele mesmo nesse programa.Isto poder apresentar um nmero bastante grande de dificuldades, mas so dificuldades de natureza muito diversa das enfrentadas por algum proto-macho que encontrasse uma proto-fmea numa clareira da floresta primal e tivesse de elaborar um mudus vivendi vivel com ela.Em outras palavras, a instituio do casamento serve para canalizar a conduta de nosso rapaz, faz-lo seguir determinado tipo de comportamento.A estrutura institucional da sociedade proporciona a tipologia para nossas aes.S muito, muito raramente que temos necessidade de imaginar novos tipos segundo os quais nos conduzir.No mais das vezes, podemos no mximo escolher entre o tipo A e o tipo B, tendo ambos sido pr-definidos a priori.Poderamos decidir entre ser artista ou homem de negcios.Em ambos os casos, porm encontraramos pr-definies bastante precisas do que devemos fazer.E nenhum dos dois estilos de vida ter sido inventado por ns.Outro aspecto do conceito de Gehlen da instituio a salientar, porque ele ser importante mais adiante, o da aparente inevitabilidade de seus imperativos.O rapaz mdio de nossa sociedade no s rejeita as opes de poliandria ou poliginia, como pelo menos para si, julga-as literalmente inimaginveis.Acredita que o rumo de ao pr-definido institucionalmente seja o nico que ele poderia jamais tomar, o nico de que ele ontologicamente capaz. de se presumir que, caso refletisse sobre a perseguio que move o camundongo, o gato chegasse mesma concluso.A diferena est em que o gato chegaria concluso correta, ao passo que o rapaz est enganado.Tanto quanto saibamos, um gato que se recusasse a perseguir camundongos constituir uma monstruosidade biolgica, talvez o resultado de uma mutao maligna, certamente um traidor da prpria essncia da felinidade.Entretanto, sabemos perfeitamente que ter muitas mulheres ou ser entre muitos maridos no representa uma traio da condio humana, em qualquer sentido biolgico, ou mesmo da virilidade.E como tais opes so possveis aos rabes e tibetanos, respectivamente, devem tambm ser biologicamente possveis a nosso rapaz.Na verdade, sabemos que se ele tivesse sido tirado do bero e levado para essas plagas exticas, no teria crescido como o tpico rapaz americano de sangue quente e algo mais que ligeiramente sentimental de nossa cena luar, e se teria transformado num lbrico polgamo na Arbia ou num tranqilo marido entre maridos no Tibet.Ou seja, ele est enganando a si mesmo (ou, mais exatamente, est sendo enganado pela sociedade) quando encara seu rumo de ao nessa questo como inevitvel.Isto significa que toda estrutura institucional tem de depender da fraude e que toda existncia em sociedade traz consigo um elemento de m f.Este vislumbre da realidade pode parecer profundamente deprimente a princpio, mas, como veremos, ele na verdade nos oferece a primeira nesga de uma viso da sociedade um pouco menos determinista que aquela que at agora obtivemos.No momento, contudo, nossas consideraes sobre a perspectiva sociolgica nos conduziram a um ponto em que a sociedade mais parece uma gigantesca priso que qualquer outra coisa.Passamos do contentamento infantil de se possuir um endereo percepo adulta de que a maior parte da correspondncia desagradvel.E a compreenso sociolgica s nos ajudou a identificar mais de perto todos os personagens, vivos ou mortos, que gozam do privilgio de nos oprimir.

O pensamento sociolgico que mais aproxima dessa concepo da sociedade o associado a Emile Durkheim e sua escola.Durkheim ressaltava que a sociedade um fenmeno sui generis, isto , ela representa uma relidade compacta que no pode ser reduzida a outros termos ou para eles traduzida.Durkheim afirmou ainda que os fatos sociais so coisas, possuidoras de uma existncia objetiva externa a ns, tanto quanto os fenmenos da natureza.Durkheim agiu assim sobretudo para proteger a sociologia de ser tragada pelos psiclogos de esprito imperialista, mas sua concepo importante, ainda que excluamos essa preocupao metodolgica.Uma coisa algo como uma pedra, por exemplo, com que se topa, algo que no deixa de existir mediante um simples desejo.Uma coisa aquilo contra a qual se investe em vo, aquilo que existe apesar dos desejos e das esperanas de uma pessoa, aquilo que por fim pode cair sobre a cabea de uma pessoa e mat-la. nesse sentido que a sociedade constitui uma coleo de coisas. possvel que a instituio social que melhor ilustre essa qualidade da sociedade seja a lei.A seguirmos a concepo durkheimiana, portanto, a sociedade se manifesta como um fato objetivo.Ela existe, algo que no pode ser negado e que se tem de levar em conta.A sociedade externa a ns.Ela nos cerca, circunda nossa vida por todos os lados.Estamos na sociedade, localizados em setores especficos do sistema social.Essa localizao pr-determina e pr-define quase tudo quanto fazemos, desde a linguagem at a etiqueta, desde nossas convices religiosas at a probabilidade de que venhamos a cometer suicdio.Nossos desejos no so levados em considerao nessa questo de localizao social, e nossa resistncia intelectual aquilo que a sociedade aprova ou probe adianta muito pouco, na melhor das hipteses.A sociedade, como fato objetivo e externo, manifesta-se sobretudo na forma de coero.Suas instituies moldam nossas aes e at mesmo nossas expectativas.Recompensam-nos na medida em que nos ativermos a nossos papis.Se samos fora desses papis, a sociedade dispe de uma nmero quase infinito de meios de controle e coero.As sanes da sociedade so capazes, a todo momento da existncia, de nos isolar dentre os outros homens, expor-nos ao ridculo, privar-nos de nosso sustento e de nossa liberdade e, em ltimo recurso, privar-nos da prpria vida.A lei e a moralidade da sociedade podem apresentar complexas justificativas para cada uma dessas sanes, e a maioria de nossos concidados aprovar que sejam usadas contra ns como castigo por nosso desvio.Finalmente, estamos localizados na sociedade no s no espao, como tambm no tempo.Nossa sociedade constitui uma entidade histrica que se estende temporariamente alm de qualquer biografia individual.A sociedade nos precedeu e sobreviver a ns.Nossas vidas no so mais que episdios em sua marcha majestosa pelo tempo.Em suma, a sociedade constitui as paredes de nosso encarceramento na histria.PAGE 1