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1 COSTUMES O IMPÉRIO De um peixe horrendo, antiquíssimo e des- prezado, o esturjão, vem o alimento mais caro do mundo. Mas já houve tempo em que era servi- do de graça para acom- panhar aperiti- vos

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COSTUMES

O ImpérIO dO CavIar

De um peixe horrendo, antiquíssimo e des-prezado, o esturjão, vem o alimento mais caro do mundo. Mas já houve tempo em que era servi-do de graça para acom-p a n h a r aperiti-vos

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O ImpérIO dO CavIar

Um quilo custa mais de 1 000 dólares, o equiva-lente a quase 100 gra-mas de ouro puro. O

metal se guarda, por avareza, in-vestimento ou precaução. O caviar, porém, se come, e rapidamente — e na maior parte das vezes quem come o caviar nem mesmo sabe quanto a preciosidade custa, sem falar nas origens e razões do seu soberano paladar. São milênios de evolução. Aliás, muito e muito mais de mil milênios. Pois o caviar se compõe das ovas bem conser-vadas de um peixe antiquíssimo, o esturjão, cuja origem a Zoologia data em 1 milhão de séculos atrás.Raros seres na natureza se de-monstram tão horrendos como o esturjão. Da classe dos Ostei-chtytes aqueles de esqueleto oste-ocartilaginoso, que predominam nas águas doces do hemisfério setentrional, o esturjão faz par-te da ordem dos Condrostíde-os e já foi muito abundante na América do Norte, Europa, Ásia oriental e, principal-mente, em todas as bacias fluviais que demandam o mar Negro e o mar Cáspio, ao sul da União Soviética. Oito décadas atrás, o estur-jão era um peixe tão comum

que as suas ovas acompanha-vam gratuitamente os drin-

ques servidos no bar do famoso Waldorf-Astoria Hotel, de Nova

York. Naqueles tempos, só nos Estados Unidos, se capturavam 11 mil toneladas do condrostídeo a cada ano. A sua carne, seca, ser-via de alimento aos estratos mais pobres da população da Nova Inglaterra. O caviar se desperdi-çava, sem idéia da sua majestade. Os europeus, igualmente, dila-pidaram a iguaria matriz e, por

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extensão, as suas conseqüências essenciais. Resultado da explora-ção indiscriminada — hoje, o peixe só existe nos entornos do Cáucaso e do Turquestão e em algumas pa-ragens chinesas nas fronteiras dos rios Mekong e Yang-tsé. Numa frase: porque o planeta invariavel-mente desprezou o esturjão como comida vulgar, sem imaginar as riquezas escondidas no belo ven-tre de cada fêmea, o condrostídeo enfrenta a ameaça da extinção. Situação patética, essa, pelo po-tencial prolífico do bicho e pelo exagerado volume que ele pode adquirir se protegido da predação.

Mais de 25 espécies ainda so-brevivem ao sul da União So-viética, no Irã e nas fraldas hi-malaicas da China. Quase todas consistem em peixes de corpo alongado e coberto por cinco faixas sucessivas de placas ri-jas como as escamas de uma ar-madura medieval. A cabeça faz lembrar a ponta de um aríete e a boca, surpreendentemente miúda e desdentada, se localiza abaixo da couraça dianteira. Quatro bi-godes gorduchos se dependuram nos maxilares e uma nadadeira dorsal e cinco ventrais anunciam a cauda, espinhosa e em leque.

No Ocidente, a moda co-meçou na Itália Medieval

Um esturjão pode expelir mais de 2 milhões de ovas

Qualquer peixe é capaz de crescer indefinidamente, quando não morre de doença ou de velhi-ce ou quando não sucumbe à mão impiedosa do ser humano. O es-turjão pode chegar a 10 metros de comprimento com um peso for-midável de 500 quilos, o que re-dunda, às vezes, em 150 quilos de caviar. O esturjão habitualmente mora nos fundos lodosos das re-dondezas dos deltas dos grandes rios e ali estaciona do verão até o inverno. Nos meses de primavera, reanimado pelo aumento da tem-peratura, corre em busca das tocas

salobras da foz, a fim de depositar seu caviar. A maturidade sexual ocorre entre os 18 e os 20 anos e um esturjão adulto e sadio conse-gue expelir entre 800 mil e 2,4 mi-lhões de ovas impecáveis, em tornode 3 milímetros cada qual. Já se recolheram esturjões com per-to de 100 anos de idade e mui-to mais de 10 milhões de ovas.

A sua alimentação consiste em pequenos crustáceos da lama, outros peixes insignificantes — e particularmente as larvas gordu-rosas de microinsetos e de ver-mes. Nos entornos do Cáspio e do Negro, o condrostídeo é, atu-almente, o único peixe de impor-tância alimentar e comercial. Das espécies utilizáveis, a mais provi-dencial é o beluga (na ciência, Aci-penser huso), de dimensões mais alentadas e um caviar soberbo, nos limites dos 2 milímetros de diâmetro e numa cor que varia do cinzento ao negro-brilhante. Também requisitado, o sevruga (Acipenser stellatus) ostenta ovas miúdas, de pouco mais de 1 milí-metro, quase claras e transparentes.

O refínadíssimo ster-

let (Acipenser ruthenus), nas bordas do desaparecimento fatal, além das ovas minúsculas e amarelo--avermelhadas, com 0,7 milímetro em média, oferece à gastronomia o privilégio da sua saborosíssima bexiga natatória, o órgão que per-mite ao peixe manter-se em equilí-brio na água sem afundar. Resta o

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tipo mais econômico e trivial, bem trivial, 500 dólares por quilo, o es-turjão osetra, ou osetrova (Acipenser sturio), de ovas entre o dourado e o castanho. O trajeto que conecta o esturjão ao caviar é rapidíssimo.Retirado da água, em cardumes, por meio de redes, coloca-se o peixe em tanques, nos barcos pes-queiros ou nos píers de atracação e dali, com extrema cautela, se arrasta o bicho, num lampejo, às bancadas de industriali-

zação.Tudo ocorre

em plataformas limpíssimas, de pedra ou de aço inoxidável. Ainda vivo, o peixe passa por uma verdadei-ra incisão cirúrgi-ca que lhe abre o ventre, em abso-luta esterilização, e dele extrai o sacoovariano com o magnífico caviar. Quem pratica a operação possui uma especializa-ção transcenden-tal. Primeiro, sabe

distinguir as fêmeas dos machos, que são devolvidos a seu meio ambiente de raiz. Depois, comete o corte sem ferir a proteção mem-branosa da raridade.

Retiradas com angelical delica-deza, as bagagens do caviar tom-bam, então, sobre grelhas metáli-cas de trama calculada para cada espécie e cada dimensão de peixe. Nessas grelhas, o saco se rompe, e possibilita que as pelotinhas caiam em recipientes absolutamente de-sinfetados e secos. Lavam-se as ovas em água doce, várias e várias repetições. E elas se entregam en-fim à magia que irá transformá-las

Onze toneladas para o czar a cada ano novo

em relíquias — a etapa apelidada de salgamento, coordenada por um profissional com, no mínimo, dez ou doze anos de experiência e observação.

O mestre e grande sacerdote do caviar é a figura responsável pelo sucesso admirável ou pelo fracas-so irrecuperável de toda a aven-tura. O mestre analisa o tamanho das ovas, o seu grau de maturação e, em função do examinado, deci-de a quantidade de sal a incorpo-rar o conjunto: na pior das hipóte-ses, cerca de 3 por cento do peso da matéria-prima. O sal serve para eliminar a untuosidade original do caviar, torná-lo mais consistente, aumentar-lhe a resistência e afinar o seu sabor. Como um cirurgião diante de uma deliberação crucial, o mestre e sacerdote, de luvas nas mãos e máscara no rosto, mistura meigamente as ovas ao sal acres-centado, de modo a homogeneizar a sua criação. Cinco minutos de-pois, testa o que trabalhou e, satis-feito, retira as proteções. Operação perfeita, em 99 por cento das situ-ações. O caviar nasceu.

Da separação dos esturjões machos e da incisão nos esturjões fêmeas até a glória do operador, transcorreram meras três horas. Na linha de produção, as latinhas e os recipientes de vidro permane-cem à espera do que irá preenchê--los. O melhor caviar se apelida malossol, palavra russa que signifi-ca, exatamente, “superpouco sal”. O privilégio do batismo malossol se destina àqueles produtos que o sacerdote julga insuperáveis no equilíbrio e na qualidade e, por isso, não precisam de corretivos. Menos de 10 por cento da produ-ção mundial merece a caracteriza-ção. Num segundo plano se situa o caviar prensado, o payusnaya, espécie de gelatina que se obtém das ovas muito maduras e particu-larmente grandes, além das que se rompem no manuseio do caviar. Uma imperfeição, sem dúvida, mas ainda assim uma iguaria, 300 dólares o quilo.

Parentes pobres do caviar são as ovas de salmão ou correlatos, prin-cipalmente os peixes das águas ge-ladas dos rios dinamarqueses, de tonalidade dourado-refulgente, perfeitamente comestíveis, assim como as ovas de tainha ou de pacu

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xe limoso, como alimento kosher, ausente de impurezas; o caviar de mil anos atrás, porém, já devia ser tão singular e delicioso que os isra-elitas ortodoxos da Bota inteligen-temente acharam uma brecha em seu Talmude que lhes permitisse o consumo das ovas. Da Itália, o ca-viar — palavra que vem do turco khavyar — subiu a Europa pelos Alpes. No século XVIII, o produto se transformou em paixão na cor-te francesa de Luís XIV e de seu insaciável ministro Jean-Baptiste Colbert.

Na Rússia czarista, a corte real impôs uma lei, que perdurou até o século XIX, obrigando os pesca-dores a enviar ao palácio um mí-nimo de 11 toneladas de caviar de primeiríssima qualidade a cada novo ano. E mesmo a Revolução Comunista não se poupou dos prazeres formidáveis da iguaria: Josef Stálin exigia que ao menos 2/5 do caviar de sterlet fossem re-metidos às cozinhas cremlinianas,

exatamente a mesma participação cobra-da de comum acordo pelo xá da Pérsia. Não se sabe se a glasnost, na URSS, e os aiato-lás, no Irã, continuam abusando do privilé-gio do domínio quase total dos produtos do sterlet.

Por que o caviar custa tão caro? Ospreços elevados não advêm, somente, da sua raridade. Na ver-dade, a metodologia artesanal da prepara-ção ajuda as despesas

a subirem a picos estratosféricos — assim como a complexidade da pesca de peixes bem acima dos 100 e até dos 200 quilos em geral. Como a dificuldade em se retira-rem os esturjões ainda vivos dos barcos, manualmente, sem deixar que eles se machuquem. Como a imperiosidade de se removerem as ovas imediatamente, de modo que não percam o seu frescor. Como, enfim, a sensibilidade de

que começam a aparecer no Brasil ou ainda a botarga dos italianos. Único problema: comerciantes inescrupulosos tingem esse falso caviar de negro, com sépia de lu-las jovens, uma combinação que, entre outros perigos, estimula a fulminante deterioração do pro-

duto depois de sua embalagem ser aberta e as ovas expostas aos fun-gos existentes no ar.

Gastronomicamente, o Ociden-te aprendeu a apreciar o caviar apenas na Idade Média, quando os cristãos de Ferrara, na Itália, des-cobriram que os judeus eviscera-vam os esturjões então abundantes no rio Pó em busca das ovas. Uma curiosidade importante: a religião hebraica não libera o esturjão, pei-

O segredo é não deixar o peixe machucado

Liturgias de um prazer

Caviar não se mastiga, jamais. Caviar, apaixonadamente, se de-gusta com a língua, as refulgentes pelotinhas de encontro ao céu da boca, onde devem se romper à com-pressão, liberando nas papilas um sabor incomparável, um micro-suco picante e untuoso a se lavar, prefe-rivelmente, com um gole imediato de vodka legítima e superge-lada. Caviar não se come, nunca. Ca-viar, respeitosamente, se desfruta, em pouquíssimas companhias. A tradição balcânica sugere a escolta dos blinis — delicadas lâminas de massa de farinha e leite, pequenas panquequinhas que embrulham as ovas com um tico de manteiga à temperatura ambiente. Isso basta, embora existam aqueles que prefe-rem ampliar a relação das parcerias: clara e gema, cozidas, pica-dinhas; cebola crua, triturada; creme de lei-te, azedo; torradas frescas no lugar dos blinis.

Para beber, além da vodka, uma única alternativa: um champagne, ou algum outro espumante de supe-rior categoria. Só, com exclusivida-de. Por 1 (XX) dólares o quilo, afinal, respeitem-se os máximos requintes. Caviar se serve, por exemplo, num recipiente apropriado de porcelana, vidro ou prata, no qual se encaixa, perfeitamente, a latinha original, de marca bem visível aos olhos dos co-mensais. Esse recipiente se localiza dentro de um outro, maior, obriga-toriamente de prata, com abundan-te gelo picado. Aberta a sua embala-gem, o caviar deteriora rapidamente se não for colocado sob a proteção de baixa temperatura.

A colher do serviço, igualmente, precisa ser de prata, especial, as bor-

das bem finas, de modo a não rom-perem as pelotinhas no momento da colheita. E nada pode sobrar. O caviar não se devolve ao refrigera-dor. Cuidado com eventuais cana-pés perpetrados com antecedência — todos, obrigatoriamente, têm de ser guardados em ambiente fresco e

protegido, de modo a se preser-var a qualidade das ovas sensíveis. Restaurantes famosos já cometem algumas re-ceitas exó-ticas com o caviar. Está na moda um tal de filet mignon à moscovita, as ovas de-sembarca-das sobre a carne e flam-badas com um pouco de vodka. Este e s c r i b a uma oca-sião expe-r i m e n t o u um prato de massa, penne, com tirinhas de salmão, o destilado rus-so-polonês de cereais e caviar por cima. Tudo bem, na co-zinha tudo se permite. Mais do que heresia, porém, é tolice e contra--senso aquecer-se aquilo que a ma-gia propõe como gelado.

Caviar se homenageia, se possí-vel, à luz cálida das velas.

Sobre blinis e creme de leite, com champagne

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quem agrega o sal às pelotinhas diante de um dilema cruel: mais cloreto de sódio, mais conserva-ção e menos sabor natural; me-nos cloreto de sódio, mais peri-go e mais grandeza de paladar.

Nesse impasse reside a diferen-ça entre o processamento soviéti-co e o processamento iraniano. Na URSS, hoje em dia, aposta-se na segurança, enquanto no Irã o ob-jetivo é manter a qualidade. E, do ponto de vista da nutrição, como se localiza o caviar? Todas as suas espécies são muito ricas em prote-ínas, mas também ostentam taxas altíssimas de gorduras e de co--lesterol. Em contrapartida, ironi-camente, todas possuem grandes dosagens de ômega-3, um ácido graxo cuja principal propriedade é, precisamente, dissolver o coles-terol e impedir que ele crie placas na corrente sanguínea dos huma-nos.

Detalhe importante: a fim de flavorizarem seus produtos, mui-tos exportadores iranianos adicio-nam bórax, ou borato de sódio, ao caviar. Tal circunstância tem de estar explicada no rótulo de cada lata ou de cada vidro. Não se provou, ainda, a nocividade do bórax para os efeitos da alimenta-ção. Nos Estados Unidos, de todo modo, são rigorosamente proibi-das as vendas de ovas imersas em borato de sódio.

Um francês de origens armê-nias, Christian Petrossian, detém atualmente o domínio internacio-nal das negociações com caviar e, por isso, manipula à sua vontade as cotações das ovas do esturjão. Herdeiro de uma família tradicio-nalíssima em seu departamento, Petrossian controla o mercado de duas sedes, em Paris e em Nova York. A casa francesa foi fundada em 1922 e pelos seus caixas pas-sam milhões de dólares a cada mês. “Crise? Nunca ouvi essa palavra”, brinca Petrossian com o seu próprio poder. “Eu vendo sonhos e festas, e na fantasia não existe crise.” Ele confia tanto na classe superlativa de sua clientela que não hesita em aceitar enco-

mendas pelo seu telefone parisien-se 45.51.59.73.

Sílvio Lancellotti

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Uma esquadrilha de jatos da Força Aérea Brasileira decolou da Base de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, numa ensolarada manhã

de julho de 1961 para cumprir uma missão inacreditável: destruir um ni-nho de aranhas. Os aviões de comba-te estavam equipados com poderosas bombas incendiárias, prontos para lançá-las sobre um recanto da baía de Guanabara, na zona norte da cidade. Em poucos instantes, um verdadeiro inferno de chamas espalhou-se por uma pequena nesga de terra junto à ilha do Fundão. Um destacamento de soldados da vizinha Base Aérea do Galeão completou o serviço, enchar-cando de gasolina e colocando fogo nos poucos metros quadrados que ha-viam escapado ao bombardeio.

A área transformou-se num de-serto de cinzas fumegantes, levando as autoridades sanitárias do então Estado da Guanabara a anunciar com satisfação uma fulminante vitória contra o reduto daquelas indesejáveis criaturas de oito pernas. Proclamou--se que a ilha do Fundão ficara livre de um terrível aracnídeo, cientificamente conhecido como Latrodectus curaca-viensis. Trata-se, na verdade, de uma minúscula e pacata aranhazinha com listras pretas e vermelhas no abdome (daí o nome popular, flamenguinha), cujo veneno, acreditava-se, seria fatal para o homem.

Os filhotes escaparam em balões de seda

O uso de aviões de guerra contra aranhas pode parecer aberrante. Mas é um excelente exemplo do pavor que elas inspiram — e da falta de conhe-cimentos com que frequentemente o homem as enfrenta. De fato, o que ninguém poderia imaginar é que as flamenguinhas dispunham de uma engenhosa estratégia de retirada e que sobreviveriam aos milhares ao ataque, formando colônias em outros pontos do litoral carioca. Os hábitos da curacaviensis eram então pouco conhecidos — principalmente o com-portamento dos filhotes. Uma jovem flamenguinha, tão logo abandona o convívio com o resto da ninhada, tece um pequeno balão de fios de teia grudado ao abdome. Ao menor deslocamento de ar, o balão levanta o bichinho, que com as correntes as-cendentes de ar quente pode chegar à altitude de várias centenas de metros.

A inocente flamenguinha (Lactrodectus curacaviensis) causou pânico no Rio

As presas e os olhos da armadeira... ...da aranha-lobo...

A aranha não é um inseto. Ape-sar de pertencer ao mesmo fílo, o dos artrópodes (que têm patas ar-ticuladas), é de uma classe própria, Arachnida, da qual fazem parte também os piolhos e os escorpiões. As aranhas possuem quatro pares de patas e o corpo dividido em apenas duas porções: um rechon-chudo abdome e uma estrutura dianteira denominada cefalotórax. Este nome estranho significa ape-nas que, nos aracnídeos, a cabeça e o tórax estão fundidos numa única peça. No cefalotórax acomodam--se, além das oito patas, os olhos e as peças bucais do animal.

O número e a disposição dos olhos no cefalotórax são caracterís-ticas de fundamental importância para o reconhecimento das ara-nhas, principalmente das três espé-cies mais venenosas existentes no Brasil; as armadeiras, assim cha-madas pela agressividade com que

erguem as patas dianteiras quan-do ameaçadas, armando o bote, pertencem ao gênero Phoneutria, que tem oito olhos — dois situa-dos logo acima das peças bucais, quatro numa fileira superior e mais dois no topo do cefalotórax; as aranhas-lobo, do gênero Lycosa, também contam com oito olhos, mas quatro deles se alinham acima das peças bucais, vindo logo em seguida outros dois, bem maiores, e o último par no topo; as aranhas--marrons, do gênero Loxosceles, só possuem seis olhos, numa única fileira, agrupados aos pares.

Todas as aranhas são peço-nhentas, isto é, inoculam em suas vítimas, geralmente insetos, uma substância que mata ou paralisa e desempenha muitas vezes a fun-ção de suco digestivo. Utilizam para isso as duas presas pontia-gudas, chamadas quelíceras. No

Os olhos contam tudo

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No Morumbi, arrepiantes encontros noturnos

Lá no alto. a pequena balonista até controla o nível do vôo, aumentando ou diminuindo o volume do balão consegue assim aterrissar quando bem entender.

Não é difícil imaginar o que acon-teceu na ilha do Fundão, quando as primeiras bombas de napalm atingi-ram o solo. Os grandes deslocamen-tos de ar causados pelos impacto dos projéteis e as colunas ascendentes de ar quente produzidas pelos incêndios carregaram para a atmosfera uma enorme quantidade de jovens curaca-viensis em seus balões de seda. Por-tanto, enquanto a velha geração de aranhas ardia no solo da ilha, suas descendentes planavam tranquila-mente ao sabor das correntes aéreas sobre a baía de Guanabara — algu-mas rumando para Niterói, outras em direção à Barra da Tijuca e mais além. Ironicamente, um ano depois do bom-bardeio, uma nova e saudável colônia de flamenguinhas foi encontrada nas proximidades da Base Aérea de Santa Cruz, exatamente de onde havia par-tido a missão exterminadora.

O bizarro caso das flamengui-nhas fez com que o zoólogo Herman Lent, então diretor da Seção de Ento-mologia do Instituto Oswaldo Cruz, apresentasse um extenso relatório condenando o espetacular e ineficien-te método de combate às aranhas e aconselhando que. no futuro, fossem utilizadas apenas as técnicas conven-cionais de borrifação com DDT ou BHC, supervisionadas por especia-listas. A própria picada da Latrodec-tus curacaviensis foi considerada de baixa periculosidade, em comparação com a da Latrodectus mactans — a famosa viúva-negra — a ponto de o dr. Lent prever que as flamenguinhas não iriam atacar a população. O cien-tista estava certo: até hoje, banhistas e aranhas compartilham alguns pontos da orla marítima carioca sem maiores problemas.

Mas poucos seres aterrorizam tan-to quanto as aranhas. Anos depois do bombardeio das flamenguinhas, apareceram na imprensa paulista re-portagens sobre uma incontrolável invasão de aranhas no elegante bairro do Morumbi, na zona sul de São Pau-lo. Donas de casa, em pânico, descre-viam arrepiantes encontros noturnos com

A agressiva armadeira (Phoneutria nigriventer) invadiu mansões paulistas

...e da aranha-marrom: as três espécies mais perigosas

homem, o veneno das aranhas-lobo faz apodrecer os tecidos do local atin-gido. O das aranhas-marrons também destrói os glóbulos vermelhos do sangue, o que causa obstrução renal. E o das armadeiras provoca uma dor tão intensa que acarreta hipertensão, sudorese (suores) e taquicardia (au-mento dos batimentos cardíacos). En-tretanto, poucas espécies injetam um veneno capaz de pôr em risco a vida humana, a não ser no caso de indiví-duos de pouco peso ou em más con-dições físicas.

Ainda que se possa contar com so-ros específicos para a picada de cada uma das aranhas perigosas, a melhor forma de lidar com elas é conhecer seus hábitos e procurar evitá-las — já que não é o caso de ficar contando seus olhos para saber se são menos ou mais venenosas. O maior número de acidentes acontece nos meses mais frios, durante as horas quentes do dia, e a metade dos casos, dentro de casa. As aranhas podem entrar numa casa por diversos motivos, mas não com o propósito de atacar o homem.

Quando suas habitações na-turais nas florestas e campos são devastadas por queimadas ou des--matamentos, ou quando suas to-cas subterrâneas são revolvidas ou inundadas, elas começam a vagar à procura de novos abrigos.

Épocas de muito frio ou ca-lor, bem como o período de aca-salamento, também provocam o mesmo comportamento. Algumas espécies levam uma vida errante, sempre em busca de esconderi-jos para repousar durante o dia e de onde possam sair à caça com a chegada da noite. Tanto para aquelas sem endereço fixo como para as que procuram um abrigo mais duradouro, as casas, princi-palmente em sítios, chácaras ou praias, se apresentam como uma ótima opção. É conveniente, então, para evitar visitas inesperadas, ve-dar as frestas em janelas, portas e telhados, fazer dedetizações siste-máticas e jamais acumular entulho no quintal.

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rom. Pouco maior que a flamengui-nha, ela possui um poderoso veneno capaz de levar à morte por insufici-ência renal, ou seja, os rins da vítima deixam de funcionar (veja quadro).

Ao contrário da aranha-lobo ou da armadeira, que são animais errantes, a aranha-marrom prefere viver den-tro das casas, escondida durante o dia atrás de móvel ou de quadro encosta-do à parede. Os raros acidentes causa-dos por esta espécie acontecem quase sempre quando a vítima veste roupa que ficou pendurada junto à parede durante a noite, onde a aranha se es-condeu. A importância das aranhas como devoradoras de insetos, prin-cipalmente daquelas que constroem delicadas teias nos jardins, pode ser avaliada pela incrível quantidade de

moscas, mosquitos, cupins e baratas que consomem anualmente.

Mas nem todas as aranhas tecem teias e ficam à espera de suas vítimas. Algumas vivem em tocas, atacando os insetos que passam por ali; outras são caçadoras, vagando à procura da próxima refeição. Os habitantes das grandes metrópoles deveriam apren-der a olhá-las com mais simpatia e aproveitá-las como eficientes insetici-das naturais em todas as áreas verdes disponíveis. No entanto, é recomen-dável uma cuidadosa escolha, pois não é exatamente agradável acordar com uma assustadora armadeira no travesseiro. n

A aranha comum de jardim (Argiope argentata) é um valioso inseticida natural, mas persegui-da pelo homem

Inseticidas naturais, em áreas verdesenormes criaturas peludas que trafe-gavam pelos aposentos das mansões. As aranhas do Morumbi, segundo os relatos, eram consideravelmente maiores e mais agressivas que as cura-caviensis bombardeadas no Rio. E pior — eram das duas espécies responsá-veis pela maioria dos acidentes com aranhas em todo o Brasil. Uma delas, a aranha-armadeira (Phoneutria nigri-venter), possuidora de um veneno pe-rigoso, principalmente para as crian-ças. E a outra, a aranha-lobo (Lycosa erytrognata), cuja peçonha provoca forte reação na região da picada. Ne-nhuma delas faz teias. Quando os téc-nicos do Instituto Butantã inspecio-naram o bairro, conseguiram coletar, em apenas dois ou três quarteirões, centenas desses aracnídeos, dentro e fora das casas.

O próprio homem estimulou a suposta invasão

Mas não confirmaram a suposta invasão, pois, muito antes dos lotea-mentos e construções, as aranhas-lobo e as armadeiras já viviam nas matas da região do Morumbi. Aparente-mente, a própria ocupação urbana es-timulara a sua procriação, na medida em que as construções acabaram por afastar os principais predadores na-turais daquelas aranhas — várias es-pécies de lagartos e vespas-caçadoras. Além disso, o lixo que se acumulara nos terrenos baldios deixara prolife-rar enorme quantidade de baratas e outros insetos, considerados o prato predileto dos aracnídeos, assim como o costume de amontoar o entulho das obras no fundo dos quintais propi-ciou excelentes abrigos para as duas espécies de aranhas.

Desse modo, o próprio homem ar-ticulou a suposta invasão, proporcio-nando casa e comida em abundância e, simultaneamente, livrando as ara-nhas dos seus inimigos naturais. No Morumbi, os mesmos fatores que es-timularam a proliferação daquelas es-pécies também causaram grande au-mento nas populações de escorpiões e de uma pequena e tímida aranha — a Loxosceles rufescens, ou aranha-mar-

Terríveis só na aparência

Apesar do tamanho, as caranguejeiras não são perigosas. Mas seus pelos causam irritação nos olhos e no nariz

Eliminando insetos caseiros, a papa-mosca é extremamente útil

Roberto Muylaert Tinoco

As aranhas, Wolfganga Bücherl, Ediarte,São Pau-lo, 1972

A aranha-lobo, Roberto Muylaert Tinoco, Editora Moderna, São Paulo, 1984

Para saber mais

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