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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA Departamento de Letras e Artes PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS MESTRADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS MEL MATHEUS SANTOS OLIVEIRA O EFEITO DO CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA REESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE EXPRESSÃO DE POSSE DO PORTUGUÊS DO SEMIÁRIDO BAIANO Feira de Santana, BA 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

Departamento de Letras e Artes

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS

MESTRADO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS – MEL

MATHEUS SANTOS OLIVEIRA

O EFEITO DO CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA

REESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE EXPRESSÃO DE POSSE

DO PORTUGUÊS DO SEMIÁRIDO BAIANO

Feira de Santana, BA

2016

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MATHEUS SANTOS OLIVEIRA

O EFEITO DO CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA

REESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE EXPRESSÃO DE POSSE

DO PORTUGUÊS DO SEMIÁRIDO BAIANO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos Linguísticos da Universidade

Estadual de Feira de Santana, como requisito para

obtenção do título de Mestre em Estudos

Linguísticos.

Orientadora: Profa. Dra. Mariana Fagundes de

Oliveira Lacerda

Feira de Santana, BA

2016

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MATHEUS SANTOS OLIVEIRA

O EFEITO DO CONTATO ENTRE LÍNGUAS NA

REESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE EXPRESSÃO DE POSSE

DO PORTUGUÊS DO SEMIÁRIDO BAIANO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos Linguísticos da Universidade

Estadual de Feira de Santana, como requisito para

obtenção do título de Mestre em Estudos

Linguísticos.

Orientadora: Profa. Dra. Mariana Fagundes de

Oliveira Lacerda

Aprovada em 22 de fevereiro de 2016

__________________________________________________________

Profa. Dra. Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda

Orientadora – UEFS

__________________________________________________________

Prof. Dr. Alan Norman Baxter

UFBA

__________________________________________________________

Profa. Dra. Zenaide de Oliveira Novais Carneiro

UEFS

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À dona Jaci e ao Sr. Nélio, com “todo amor que houver nessa vida”!

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AGRADECIMENTOS

À professora Mariana, minha querida orientadora, sem a qual a realização deste trabalho

seria mesmo impossível, e de quem tanto admiro a competência, a bondade, a paciência

e a humildade. Essas suas virtudes me acompanham, felizmente, desde a iniciação

científica, na graduação, e, sem qualquer sombra de dúvidas, foram essenciais na minha

formação pessoal e profissional.

À CAPES, pelo financiamento desta pesquisa.

À professora Zenaide Carneiro, pelos exemplos de quem nasceu para fazer ciência e pelas

tantas trocas de saberes de que, felizmente, participei.

Ao professor Alan Baxter, membro da banca de defesa do projeto de pesquisa, da

qualificação e da defesa desta dissertação, pela disponibilidade em ajudar sempre e pelas

excelentes contribuições a este trabalho.

À professora Silvana Araújo, com cujo trabalho comparo os dados obtidos nesta pesquisa,

pela disponibilidade em contribuir, desde o início, com o meu trabalho, nas trilhas iniciais

de minha lida com a pesquisa científica.

Aos professores Dante Lucchesi, Norma Lúcia Almeida e Tania Alkmin, pelas

esclarecedoras conversas acerca do meu objeto de pesquisa e da constituição histórica do

português brasileiro.

Às colegas Huda Santiago, Daiane Lemos e Shirley Guedes, a quem devo muito pelas

incontáveis contribuições.

Aos colegas do grupo de pesquisa (CE-DOHS), sobretudo a Priscila, Mari, Igor, Janaína,

Adilson e à professora Telma Garrido, com os quais tanto cresci.

À professora Iran e ao nosso Programa Portal, pela parceria de sempre.

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Aos colegas da turma do mestrado, presentes de Deus para a vida inteira.

A todos os professores do Mestrado em Estudos Linguísticos, da UEFS, com muito

carinho e gratidão.

A todos os professores da minha graduação, também na UEFS, responsáveis

grandiosamente pela minha formação.

À professora, hoje amiga, Denise Gomes Dias, por (não sei com que dom) enxergar, em

mim, no primeiro semestre da graduação, um pesquisador de Linguística Histórica.

À família e aos amigos, por acreditarem em mim e me darem força, quando precisei, e

por entenderem (quase sempre) a minha ausência.

Ao meu irmão mais velho, Júnior, pelo cuidado que tem tido comigo, desde sempre.

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“Os homens fazem a língua, não a língua os homens”

Fernão de Oliveira

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RESUMO

Esta dissertação analisa a reestruturação do sistema de expressão de posse do português

rural da Bahia. O corpus sobre o qual nos debruçamos foram as Amostras da língua falada

no semiárido baiano (ALMEIDA; CARNEIRO, 2008), um conjunto de entrevistas com

falantes analfabetos e semianalfabetos, moradores de comunidades formadas sócio-

historicamente por matrizes étnicas diferentes: branca, negra e indígena. O nosso objetivo

é atestar a relevância do contato entre línguas havido nos períodos colonial e imperial do

Brasil na reestruturação do aspecto gramatical que estudamos, à luz da Teoria da variação

e mudança linguísticas e da Teoria da gramática. Os resultados mostram que, assim como

no português afro-brasileiro (LUCCHESI; ARAÚJO, 2009), há um rearranjo do sistema

de expressão possessiva do português falado em comunidades rurais da Bahia. A análise

contrastiva com outros estudos sobre o mesmo fenômeno revela, primeiramente, uma

polarização sociolinguística do português brasileiro (LUCCHESI, 2003). Em segundo

lugar, é observável que a transmissão linguística irregular (BAXTER, 1993; LUCCHESI

et al, 2009 etc.) foi responsável pelos processos de variação e mudança atestados neste

estudo. Há semelhanças entre o comportamento morfossintático dos pronomes

possessivos no corpus por nós analisado e em línguas pidgins e crioulas e nenhuma

semelhança entre esse comportamento e o atestado em estudos sobre o português europeu,

o que torna ímprobo acreditar que as mudanças do português do Brasil revelem uma

deriva secular (NARO e SCHERRE, 2007).

Palavras-chave: Sistema de expressão de posse. Contato entre línguas. Português

brasileiro. Semiárido baiano.

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RESUMEN

Esta disertación analiza la reestructuración del sistema de expresión de posesión del

portugués rural de Bahia, en el corpus Amostras da língua falada no semiárido baiano

(ALMEIDA e CARNEIRO, 2008), un conjunto de entrevistas con hablantes analfabetos

y semianalfabetos, moradores de comunidades formadas, en su socio-historia, por etnias

distintas: branca, negra e indígena. Nuestro objetivo es averiguar la relevancia del

contacto entre lenguas habido en los periodos colonial e imperial de Brasil en la

reestructuración del aspecto gramatical que estudiamos, utilizando el aporte teórico de las

teorías de la variación y cambio lingüístico y de la teoría de la gramática. Los resultados

iniciales muestran que, así como en el portugués afro-brasileño (LUCCHESI e ARAÚJO,

2009), hay una reorganización del sistema de expresión posesiva del portugués hablado

en comunidades rurales de Bahia. El análisis contrastivo con otros estudios sobre el

mismo fenómeno revela, en el primer lugar, una polarización sociolingüística del

portugués brasileño (LUCCHESI, 2003). Además, se detecta que la transmisión

lingüística irregular (BAXTER, 1993; LUCCHESI et al, 2009 etc.) fue responsable por

los procesos de variación y cambio atestados en este estudio. Hay semejanzas entre el

comportamiento morfosintáctico de los pronombres posesivos en el corpus que

analizamos y en las lenguas pidgins y criollas, pero no hay ninguna semejanza entre ese

comportamiento y el atestado en los estudios sobre el portugués europeo. Es difícil, pues,

creer que los cambios del portugués brasileño revelen una deriva secular (NARO e

SCHERRE, 2007).

Palabras-clave: Sistema de expresión de posesión. Contacto entre lenguas. Portugués

brasileño. Semiárido baiano.

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SUMÁRIO

LISTA DE SIGLAS

LISTA DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 15

1 A EXPRESSÃO DE POSSE .......................................................................................................... 19

1.1 A MARCAÇÃO DE POSSE NA GRAMÁTICA TRADICIONAL ........ 19

1.2 A MARCAÇÃO DE POSSE EM LÍNGUAS CRIOULAS .................... 21

1.3 A MARCAÇÃO DE POSSE NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO 23

1.4 EM SÍNTESE .................................................... ............................. 25

2 UM PANORAMA SÓCIO-HISTÓRICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO ... 27

2.1 HIPÓTESE DO CONTATO x HIPÓTESE DA DERIVA ...................................... 28

2.2 AS DINÂMICAS DE CONTATO INTERLINGUÍSTICO NA FORMAÇÃO

SÓCIO-HISTÓRICA DO PORTUGUÊS POPULAR BRASILEIRO ......................... 31

2.2.1 Influências africanas e indígenas no PB: dados demográficos ....................... 31

2.2.2 A importância das línguas africanas na formação do PB: a transmissão

linguística irregular ...................................................................................................... 37

2.3 EM SÍNTESE .......................................................................................................... 41

3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ..................................................... 43

3.1 TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICAS E TEORIA DA

GRAMÁTICA ............................................................................................................... 43

3.1.1 Os pressupostos sociolinguísticos e a complementaridade entre a Teoria da

Gramática e a Teoria da Variação e Mudança Linguísticas ................................... 45

3.1.2 A mudança linguística e a teoria da gramática gerativa ................................. 47

3.1.3 Contato entre línguas e competição de gramáticas ......................................... 49

3.2 METODOLOGIA .................................................................................................... 52

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3.2.1 O corpus ............................................................................................................... 52

3.2.2 Os grupos de fatores ........................................................................................... 56

3.2.2.1 Variável dependente ........................................................................................ 56

3.2.2.2 Variáveis independentes .................................................................................. 57

4 A EXPRESSÃO DE POSSE NO PORTUGUÊS RURAL DA BAHIA:

RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................................. 60

4.1 GRUPOS DE FATORES SELECIONADOS PELO GOLDVARB ....................... 63

4.1.1 Distribuição da posse .......................................................................................... 63

4.1.2 Faixa etária .......................................................................................................... 65

4.1.3 Sexo ...................................................................................................................... 66

4.1.4 Referencialidade do referente ............................................................................ 66

4.1.5 Comentários a respeito dos resultados estatísticos .......................................... 68

4.2 ANÁLISE CONTRASTIVA ................................................................................... 69

4.3 DE NÓS, DA GENTE: UMA ESTRATÉGIA, DUAS HISTÓRIAS ...................... 71

4.4 EXPRESSÃO DE POSSE NO SEMIÁRIDO BAIANO, CONTATO ENTRE

LÍNGUAS E ASL .......................................................................................................... 74

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 76

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 80

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LISTA DE SIGLAS

AL1: aquisição de primeira língua

ASL: aquisição de segunda língua

DLP: dados linguísticos primários

GT: gramática tradicional

GU: gramática universal

L1: primeira língua

L2: segunda língua

LA: língua-alvo

P4: 1ª pessoa do plural

PB: português brasileiro

PE: português europeu

SN: sintagma nominal

SP: sintagma preposicionado

WLH: Weireich, Labov e Herzog

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LISTA DE FIGURAS, GRÁFICOS, QUADROS E TABELAS

FIGURAS

Figura 1: Aquisição do português no Brasil, Lucchesi (2009, p. 145) p. 50

GRÁFICOS

Gráfico 1: Percentuais das ocorrências das variáveis dependentes no corpus p. 61

QUADROS

Quadro 1: Os pronomes possessivos segundo a tradição gramatical, Cunha e Cintra

(1985, p. 310) p. 20

Quadro 2: Pronomes pessoais no crioulo de São Tomé, Ferraz (1979, p. 62) p. 22

Quadro 3: Os pronomes possessivos nas comunidades afro-brasileiras isoladas,

Lucchesi e Araújo (2009, p. 500) p. 24

Quadro 4: Variável quantificação do referente possuído p. 51

TABELAS

Tabela 1: Demografia histórica do Brasil, Mattos e Silva (2004, p. 63) p. 34

Tabela 2: Dados demográfico-populacionais, Mattos e Silva (2004, p. 36) p. 35

Tabela 3: Quantificação do referente possuído na escolha das formas analíticas p. 52

Tabela 4: Função sintática do elemento possuidor na escolha de da gente p. 53

Tabela 5: Distribuição geral das ocorrências de de nós, da gente e nosso (e flexões) na

Matinha p. 53

Tabela 6: Distribuição geral das ocorrências de de nós, da gente e nosso (e flexões) em

comunidades afro-brasileiras isoladas, Lucchesi e Araújo (2009, p. 501) p. 54

Tabela 7: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma

popular de Feira de Santana/BA, Araújo (2009, p. 145) p. 54

Tabela 8: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma

culta de Feira de Santana/BA, Da Silva (2009, p. 43) p. 54

Tabela 9: Distribuição geral das ocorrências p. 61

Tabela 10: Posse analítica com relação ao grupo ‘quantificação do referente possuído’

p. 64

Tabela 11: Posse analítica com relação ao grupo ‘distribuição da posse’ p. 64

Tabela 12: Posse analítica com relação ao grupo ‘faixa etária’ p. 65

Tabela 13: Posse analítica com relação ao grupo ‘sexo’ p. 66

Tabela 14: Posse analítica com relação ao grupo ‘referencialidade do referente’ p. 67

Tabela 15: Contextos mais favoráveis ao uso da estratégia analítica na expressão de posse

referente a P4 em comunidades do semiárido baiano p. 68

Tabela 16: Análise contrastiva da expressão de posse no semiárido baiano e em

comunidades afro-brasileiras isoladas p. 69

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Tabela 17: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma

popular de Feira de Santana/BA p. 69

Tabela 18: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma

culta de Feira de Santana/BA p. 70

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INTRODUÇÃO

Há três principais matrizes étnicas a partir das quais se deu a gênese do povo

brasileiro: a indígena, a portuguesa e a africana. Dado esse encontro miscigenante,

erigiram tanto uma nova identidade racial quanto uma multifacetada identidade cultural,

do que resultaram efeitos na constituição da história linguística do português brasileiro

(doravante PB).

A importância do contato entre línguas na configuração sociolinguística da

vertente americana da língua portuguesa, sobretudo no que concerne ao contato entre ela

e as várias línguas africanas, trazidas a cabo com a política de importação de mão de obra

escrava africana para o Brasil, foi levantada, em fins do século XIX, por Adolfo Coelho

(1880), importante filólogo português. Esta discussão seria retomada no início do século

XX.

Hoje, a discussão sobre a origem da vertente popular do português do Brasil possui

dois vieses: ao passo que Naro e Scherre (2007) defendem a deriva secular, relativizando

os efeitos do contato entre línguas na formação do PB e atribuindo o seu desenvolvimento

histórico a fatores internos, Baxter (1993), Baxter e Lucchesi (1993, 1997), Lucchesi et

al. (2009) etc. defendem um processo de transmissão linguística irregular. Para Lucchesi

(2009, p. 255), transmissão linguística irregular do tipo leve, como a que possivelmente

ocorreu, no Brasil, significa a existência de mudanças decorrentes do massivo contato

entre línguas, sem que as alterações ocorridas aí “cheguem a configurar a emergência de

uma nova entidade linguística qualitativamente distinta” (LUCCHESI, 2009, p. 255).

Dito de outra forma, o português brasileiro popular seria, nos termos de Holm (2004),

uma variedade vernácula parcialmente reestruturada.

Dentre as várias mudanças por que passou o PB, destaca-se a expressão de posse,

tema sobre o qual se debruçam diversos trabalhos, a exemplo do trabalho de Silva (1982,

1984, 1996), Perini (1985), Kato (1985), Neves (1993, 2000), Cerqueira (1993, 1996),

Muller (1997), Lucchesi e Araújo (2009). O interesse desses estudiosos deve-se à série

de mudanças pelas quais os pronomes possessivos passaram, mesmo nos segmentos

sociais brasileiros de maior nível de escolaridade.

No que concerne às mudanças no sistema de expressão de posse, pode-se destacar

o uso do possessivo seu (e de suas formas flexionadas) para se referir à segunda pessoa

do discurso, em virtude da ascensão do pronome você. Paralelamente a isso, vê-se o

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crescente uso de dele, pronome possessivo usado para expressar, sem ambiguidade, a

posse com referência à terceira pessoa. Além disso, a variação entre os possessivos nosso

(e suas formas flexionadas) e da gente, de eu é observável, conforme mostram os

trabalhos anteriormente citados, em virtude da gramaticalização da expressão nominal a

gente (no caso do uso de da gente).

Além dos processos de variação a que nos referimos acima, Araújo (2005) e

Lucchesi e Araújo (2009) mostram que, em comunidades rurais afro-brasileiras isoladas,

devido às especificidades de sua formação sócio-histórica, outros processos de variação

observáveis são relacionados diretamente com as situações de contato entre línguas, pano

de fundo para a formação do PB. Esses dois estudos interessam diretamente à pesquisa

que ora se apresenta, já que nos debruçaremos aqui sobre os efeitos do contato entre

línguas na reestruturação do sistema de expressão de posse do português falado no

semiárido baiano, em comunidades também rurais e isoladas (à época da gravação dos

inquéritos), à luz do seguinte referencial teórico:

o Sociolinguística Quantitativa: para o levantamento e a rodagem dos dados da

variação da gente, de nós ~ nosso (e suas flexões), a fim de perceber que

condicionantes linguísticos e extralinguísticos operam na escolha dos falantes

pela posse analítica;

o Teoria da Gramática: para compreender de que forma a aquisição de L2 em

situação de contato levou à coexistência de estratégias diferentes de marcação de

posse. A natureza híbrida desse fenômeno deve-se mesmo à fixação de

parâmetros, em virtude da história de contato entre línguas tipologicamente

diferentes (PE e línguas bantas)?

Neste trabalho, focalizaremos os contatos linguísticos havidos entre o português

e as línguas africanas. Não estamos, com isso, diminuindo a importância dos contatos que

houve entre o português e as várias línguas indígenas com que ele conviveu no território

brasileiro. A opção pelo trabalho apenas com as línguas africanas, por ora, se dá por

razões demográficas, as quais detalharemos mais adiante.

As perguntas que nos levaram a pesquisar o tema sobre o qual nos debruçamos e

as respectivas hipóteses seguem abaixo:

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1- A que se deve a reestruturação do sistema de expressão de posse, já verificada em

dados do semiárido baiano, na fase inicial desta pesquisa, e nas comunidades afro-

brasileiras isoladas (cf. LUCCHESI E ARAÚJO, 2009)?

O rearranjo do sistema de marcação de posse no semiárido baiano deve-se à situação

sócio-histórica de formação da variedade popular do PB e ao modo de transmissão e

aquisição linguísticas que houve.

2- As comunidades do semiárido baiano apresentam diferenças na marcação de

posse?

Apesar de cada grupo ter sido formado, em sua sócio-história, por uma matriz étnica

diferente, não deve haver diferenças significativas, hoje, na marcação de posse, o que

pode comprovar que as variedades do PB, em fenômenos não estigmatizados

socialmente, estão se encontrando, pela força dos meios de comunicação, da

universalização do acesso ao ensino e das políticas públicas no Brasil (cf. LUCCHESI,

2003 etc.)

3- O que a comparação dos resultados do semiárido baiano com a norma culta e com

línguas crioulas acrescenta à discussão?

(i) Na norma culta, deve haver apenas a forma da gente, em menor número, o que

pode comprovar a existência de uma polarização sociolinguística no PB (cf.

LCUCCHESI, 2003);

(ii) Formas como de eu, de nós, de tu etc. devem aparecer raramente, utilizadas pelos

mais velhos, o que indica que são resquícios de uma época em que a estratégia

preposição de + pronome pessoal (como se atesta em crioulos de base lexical

portuguesa) foi comum em épocas pretéritas no PB.

(iii) Línguas pidgins e crioulas (ex: cabo-verdiano) usam formas sem flexão para

expressar a posse, em virtude da perda da flexão de caso genitivo.

Nesse sentido, essa pesquisa busca lançar luz à variação da expressão de posse do

PB, através da investigação dos efeitos do contato entre línguas nessa variável, bem como

da comparação dos corpora do semiárido baiano com outros corpora (representativos do

português afro-brasileiro isolado, das normas culta e popular de Feira de Santana/BA, do

português europeu e de línguas africanas). Pretende-se, portanto, primeiramente, ampliar

a análise do fenômeno em questão, dando-lhe uma compreensão gerativa.

Além disso, o interesse maior desta pesquisa (estudar as contribuições africanas

na formação do PB utilizado pela maioria dos utentes desta língua) se justifica por

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questões científicas e sociais. Científicas porque os falares populares, sobretudo aqueles

mais próximos do português afro-brasileiro, são verdadeiros sítios arqueológicos, através

dos quais se pode ter um relevante testemunho sobre a formação dos falares brasileiros

da maioria da população do país. Sociais porque reconhecer as contribuições africanas

para a cultura (e, portanto, para a língua portuguesa) do Brasil significa, antes de tudo,

diminuir o preconceito e a intolerância para com este povo. Ademais, essa valorização

contribui para a desconstrução dos mitos de inferiorização do negro e de tudo o que lhe

subjaz e para a desmitificação da imagem dos negros associada à escravização. Só dessa

forma viveremos em um país que aceita e vive em harmonia com seu próprio caráter

pluriétnico.

Assim, esta dissertação se estrutura da seguinte maneira: no primeiro capítulo,

discutiremos o que se sabe na literatura sobre o fenômeno com que estamos trabalhando,

a expressão de posse. Nosso segundo capítulo é uma apresentação panorâmica da história

do português brasileiro. Discutiremos, nele, questões de história externa, como

demografia e escolarização, o contato entre línguas e a transmissão linguística irregular –

processos havidos na constituição histórica do PB; questões centrais, para nós, nos

processos de variação e mudança que estudamos. No terceiro capítulo, apresentaremos as

teorias que embasam nossa pesquisa, a metodologia de análise e o corpus sobre o qual

nos debruçamos. Por fim, o quarto capítulo apresentará uma primeira amostra dos dados

obtidos até aqui. Trata-se, enfatizamos, de um primeiro passo da pesquisa.

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1 A EXPRESSÃO1 DE POSSE

A expressão de posse no PB é tema de uma série de investigações, a exemplo dos

trabalhos de Silva (1982, 1984, 1996), Perini (1985), Kato (1985), Neves (1993, 2000,

2003), Cerqueira (1993, 1996) e Muller (1997). O que esses trabalhos mostram é que o

PB está passando por uma reorganização em seu sistema de marcação possessiva,

diferentemente do que se observa no português europeu (PE), língua na qual os

possessivos continuam funcionando como os descreve a gramática tradicional (cf.

MENDES, 2008).

No que concerne às mudanças no sistema de expressão de posse, pode-se destacar

o uso do possessivo seu (e de suas formas flexionadas) para se referir à segunda pessoa

do discurso, em virtude da ascensão do pronome você. Paralelamente a isso, vê-se o

crescente uso de dele, pronome possessivo usado para expressar sem ambiguidade a posse

com referência à terceira pessoa. Além disso, a variação entre os possessivos nosso (e

suas formas flexionadas) e da gente é observável, conforme mostram os trabalhos

anteriormente citados, em virtude da gramaticalização da expressão nominal a gente.

Além dos processos de variação a que nos referimos acima, Araújo (2005) e

Lucchesi e Araújo (2009) mostram que, em comunidades rurais afro-brasileiras isoladas,

devido às especificidades de sua formação sócio-histórica, outros processos de variação

observáveis são relacionados diretamente com as situações de contato entre línguas, pano

de fundo para a formação do PB. Estes dois estudos interessam diretamente à pesquisa

que ora se apresenta, já que nos debruçaremos aqui sobre os efeitos do contato entre

línguas na reestruturação do sistema de expressão de posse do português falado no

semiárido baiano, em comunidades também rurais e isoladas (à época da gravação dos

inquéritos).

1.1 A MARCAÇÃO DE POSSE NA GRAMÁTICA TRADICIONAL

A gramática tradicional (GT) apresenta os pronomes possessivos como um

sistema simples e em equilíbrio, como se nota no quadro abaixo:

1 Neste trabalho, marcação e expressão de posse têm uma relação sinonímica.

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Quadro 1: Os pronomes possessivos segundo a tradição gramatical.

PRONOME PESSOAL SUJEITO PRONOME POSSESSIVO

eu meu/minha/meus/minhas

tu teu/tua/teus/tuas

ele/ela seu/sua/seus/suas

nós nosso/nossa/nossos/nossas

vós vosso/vossa/vossos/vossas

eles/elas seu/sua/seus/suas

Fonte: Cunha e Cintra (1985, p. 310)

O problema da apresentação deste aspecto da língua pela tradição gramatical é

que não existe correlação direta entre cada um dos pronomes pessoais e os possessivos,

como se pode presumir da leitura de um quadro como aquele anteriormente apresentado.

Com mudanças como a gramaticalização de você (CINTRA, 1972; FARACO,

1982); a gramaticalização de a gente (MONTEIRO, 1994); a crescente utilização da

expressão genitiva dele e de suas formas flexionadas, para indicar a posse em relação à

terceira pessoa (SILVA, 1982, 1984, 1996; CERQUEIRA, 1993, 1996); a introdução das

formas possessivas de você/de vocês (NEVES, 1993; 2000; 2003), de eu/de nós/da gente

(LUCCHESI & ARAÚJO, 2009) etc., o sistema de expressão de posse foi reestruturado

no PB, tanto na variedade culta quanto na variedade popular (LUCCHESI & ARAÚJO,

2009)2.

Outro problema desse tipo de apresentação dos pronomes pessoais, predominante

nas GT, em geral3, é que os autores, amiúde, apresentam um conceito impertinente para

esse tipo de pronome. Na verdade, mesmo a sua nomenclatura não condiz com a realidade

(cf. NEVES, 2003). Isso porque nem sempre um pronome dito possessivo indica uma

relação de fato possessiva com o termo a que se refere. É o que se nota em exemplos

como4:

2 As vertentes culta e popular do PB, porém, apresentam variações diferentes. Os falantes representativos

da norma culta alternam seus usos entre teu e seu, para a P2, e entre nosso e da gente, para P4. Já os falantes

representativos da norma popular, além de alternarem nos usos supracitados, também utilizam estratégias

como de eu, de nós, de tu etc. 3 Não mostraremos aqui o que dizem várias gramáticas, porque, como afirmamos, elas, em geral,

apresentam os pronomes pessoais como um sistema simples e em equilíbrio. Algumas, como a de Bechara

(2009), citam a variação existente, por exemplo, entre teu e seu para referir-se a P2. No entanto, como se

percebe ao longo deste capítulo, essa não é a única variação observável no sistema de expressão de posse

do PB. 4 Exemplos retirados de Bagno (2001, p. 20).

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(a) Volta logo, querida! Tua ausência me faz sofrer muito!

(b) Chegou a nossa vez de pedir respeito!

(c) Dá para você sair da minha frente?

Nos exemplos acima, querida não possui a ausência; nós (elíptico na oração) não

possui a vez; tampouco você possui a frente. O que se percebe com esses exemplos é que

o uso dos possessivos transcende o ato de atribuir posse de algo a alguém, estabelecendo,

na verdade, variadas relações entre as pessoas do discurso e os nomes qualificados pelos

possessivos. Há até propostas para deixar de considerar os possessivos como se

consideram e passar a chamá-los simplesmente de pessoais (cf. MONTEIRO, 1994).

Não obstante concordarmos que os possessivos expressam não apenas a posse,

mas uma gama de outras funções (cf. ARAÚJO, 2005), nesta dissertação, consideraremos

apenas os casos em que os pronomes de fato indicam posse (material, abstrata e

inalienável5). Ademais, também serão considerados usos que não apresentam o elemento

formalmente possessivo, mas que são indicadores de posse, a exemplo das construções

genitivas iniciadas pela preposição de (de eu, de nós, por exemplo).

1.2 A MARCAÇÃO DE POSSE EM LÍNGUAS CRIOULAS

Conforme afirma Lucchesi (2009, p. 491):

A perda da flexão de caso dos pronomes é uma das características gerais

das línguas pidgins e crioulas (...). Tal mudança ocorre no bojo do

amplo processo de redução da morfologia aparente, inerente aos

processos de transmissão linguística irregular (...). Com isso, é normal

nas línguas crioulas que a mesma forma do pronome desempenhe tanto

a função de sujeito quanto a de objeto, bem como a função de expressar

a posse (caso genitivo); eliminando-se habitualmente a flexão de caso

presente na língua lexificadora. Os crioulos de base lexical portuguesa

da África, em maior ou menor grau, se conformam a essa tendência, em

função da intensidade do processo de reestruturação gramatical de cada

língua crioula, em seu processo histórico de formação.

Os trabalhos de Lopes da Silva (1984) e Almada (1961) mostram que, no crioulo

de Cabo Verde, por exemplo, estruturas com um sintagma preposicionado (SP) são

5 Explicaremos esses tipos de posse no capítulo 3.

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comuns para indicar a posse quando se emprega um demonstrativo no sintagma nominal

(SN), ao passo que, com o emprego de numeral, mantém-se a estrutura análoga à da

língua-alvo, como revelam os exemplos abaixo (cf. ALMADA, 1961, p. 163):

(d) ês kaza de miña ~ meu ‘esta minha casa’

(e) ñas sinku kaza ‘minhas cinco casas’

O estudo de Ferraz (1979) sobre os pronomes no crioulo de São Tomé mostra que

o forro6 exibe estruturas bastante divergentes em relação ao português, por se tratar de

uma das línguas de maior grau de reestruturação gramatical quando se trata de línguas

crioulas de base lexical portuguesa na África. A flexão de caso dos pronomes pessoais foi

praticamente eliminada nesse crioulo. Assim, para todas as pessoas, exceto para P1 e P3,

um mesmo pronome pode indicar a função de sujeito, de objeto e o caso genitivo, como

se observa no quadro abaixo:

Quadro 2: Pronomes pessoais no crioulo de São Tomé

PESSOA FUNÇÃO SINTÁTICA

sujeito objeto possessivo

P1 n ~ i(n) mu(n) ~ m mu(n) ~ m

P2 bo bo bo

P3 e ~ elê e ~ elê d(e)

P4 no no no

P5 nãse nãse nãse ~ nãsê

P6 iné(n) ~ né(n) ~ inê iné(n) ~ né(n) ~ inê iné(n) ~ né(n) ~ inê

Fonte: adaptado de Ferraz (1979, p. 62)

Outro aspecto do santomense é a possibilidade de SPs regidos pela preposição di,

que podem assumir um valor genitivo. Os exemplos7 abaixo ilustram essa possibilidade:

(f) m’basu (di) pota ‘embaixo da porta’

(g) zozé sa ta sondu ni tlachi (di) zõ ‘José está sentado atrás de João’

(h) e sa livlu mu(n) ‘é o meu livro’

(i) e as ji mu(n) ‘é o meu’

6 Forro e santomense são nomes utilizados para designar o crioulo de São Tomé. 7 Exemplos retirados de Ferraz (1979, p. 69-70).

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Os exemplos (f), (g) e (h) mostram o caso genitivo como a norma padrão prevê

em português. Já no exemplo (i), o que se percebe é que, no caso do apagamento do núcleo

do SN, o pronome ji funde-se com a preposição di. A tradução literal para o português

seria “é de meu” ou “é de eu”, estratégia atestada no português afro-brasileiro, no estudo

de Lucchesi e Araújo (2009) e também no semiárido baiano, como se verá na análise de

dados deste trabalho.

Essa breve, mas importante descrição do sistema de marcação de posse em duas

línguas crioulas de base lexical da África pode fornecer subsídios interessantes sobre

como a transmissão linguística irregular, de que falaremos no próximo capítulo, pode ter

afetado esse aspecto da língua. O resultado mais radical seria a preservação de uma única

forma do pronome pessoal para indicar a função sujeito e objeto e o caso genitivo. Por

outro lado, é igualmente interessante perceber que, em línguas crioulas (em muitas delas,

diga-se de passagem, e não apenas nas duas de que falamos aqui), observa-se a

possibilidade de se usarem formas analíticas com a preposição de para expressar a posse,

nos casos em que se apaga o núcleo do SN ou se emprega o possessivo como predicativo

do sujeito.

No caso das comunidades afro-brasileiras isoladas e também das comunidades do

semiárido baiano, como se perceberá em nossa análise de dados, não se observa o

resultado mais radical de utilização de uma única forma invariável também com a função

de genitivo, expressando, pois, a posse. Por outro lado, verifica-se o uso de expressões

como de eu e de nós, em lugar de meu, nosso e suas flexões. Esses usos são exclusivos

da norma popular8 do PB. Isso revela que há uma relação entre essas formas linguísticas

e os processos de mudança induzidos pelo contato entre línguas, como buscaremos

demonstrar mais adiante.

1.3 A MARCAÇÃO DE POSSE NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO

No português afro-brasileiro de quatro comunidades rurais baianas, o quadro da

expressão de posse é o seguinte (LUCCHESI & ARAÚJO, 2009, p. 500):

8 Trataremos das normas popular e culta do PB no capítulo 2.

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Quadro 3: Os pronomes possessivos nas comunidades afro-brasileiras isoladas.

PRONOME PESSOAL SUJEITO PRONOME POSSESSIVO

Eu Meu (s) / minha (s)

Você Seu (s) / sua (s) ~ teu (s) / tua (s)

Ele/ela Dele (a)

Nós Nosso (a) (s) ~ da gente

Vocês Seu (s) / sua (s) ~ de vocês

Eles/elas Dele (s) / dela (s)

Fonte: Lucchesi e Araújo (2009, p.500)

Do quadro acima podem-se depreender duas características importantes:

As formas analíticas predominam na 3ª pessoa e apresentam-se em variação

equilibrada com as formas sintéticas, na 1ª e 2ª pessoas do plural;

Parece estar definitivamente consolidada a forma sintética para a 1ª pessoa do

singular e para a 2ª pessoa do singular, com a alternância seu/teu. Não obstante,

os autores chamam a atenção para a existência, ainda que pequena, de variantes

como de eu e de nós, que, segundo eles, parecem apontar para “(...) um passado

em que, em consequência dos efeitos do contato entre línguas, as formas analíticas

(...) concorriam com as formas sintéticas tradicionais em todas as pessoas do

discurso” (LUCCHESI & ARAÚJO, 2009, p. 501).

No que concerne à expressão de posse referente a P4, diversos estudos, como os

de Neves (1993), Monteiro (1994) e Omena (2003), atestam a presença da forma

inovadora da gente. Estes estudos, que se debruçaram sobre a vertente culta do PB,

revelam pouquíssimos dados de da gente, o que fez com que Monteiro (1993, p. 191)

afirmasse que “da gente ainda não parece ameaçar a existência do pronome nosso”.

Não obstante, a pesquisa de Lucchesi e Araújo (2009), que se debruçou sobre

comunidades afro-brasileiras isoladas (representativas, portanto, da norma popular),

apresentou o comportamento contrário: do total de 110 ocorrências de expressão de posse

referente a P4, 56% (62 ocorrências) foram de formas analíticas (da gente – 57

ocorrências e de nós – 05 ocorrências).

Pode-se presumir, com isso, que, diferentemente da norma culta, a norma rural

das comunidades afro-brasileiras isoladas marca a posse referente a P4,

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predominantemente, com formas analíticas, o que evidencia que há, de fato, como

postulou Lucchesi (2001), uma polarização sociolinguística do PB, isto é, a história social

do Brasil, porque bifurcada (a elite possui uma e as demais camadas da sociedade, outra),

levou a língua aqui utilizada ser igualmente bipolarizada9.

Aventamos a hipótese de que, no semiárido baiano, locus desta pesquisa, o

comportamento morfossintático dos pronomes possessivos seja igual ou bastante

parecido ao comportamento deles nas comunidades afro-brasileiras isoladas a que nos

referimos acima. Isso porque as condições sócio-históricas em que se formaram os dois

grupos de comunidades parecem ser parecidas, como se poderá notar nos próximos

capítulos (e, mais especificamente, no capítulo 3, em que discutiremos o corpus sobre o

qual nos debruçamos, neste trabalho).

1.4 EM SÍNTESE

Nesta dissertação, focalizaremos um aspecto da língua portuguesa falada no

semiárido baiano: a expressão de posse. Neste capítulo, mostramos alguns trabalhos que

versam sobre esse aspecto da gramática.

Em primeiro lugar, há que se ter em mente que o que a GT denomina pronomes

possessivos nem sempre indica uma relação possessiva entre esses pronomes e as palavras

às quais se referem. No entanto, só nos dizem respeito, por ora, as formas pronominais

que, de fato, indicam posse. As demais ocorrências serão excluídas de nossa análise de

dados. Ademais, também analisaremos os exemplos em que há indicação de posse sem

uso de formas pronominais possessivas tradicionais, de que é exemplo o caso genitivo.

Em segundo lugar, e isso é o que mais nos interessa, a GT mostra um paradigma

pronominal possessivo simples e em equilíbrio, o que não condiz com a realidade de uso

no PB. Além de algumas mudanças já ocorridas mesmo na norma culta, há processos de

variação observáveis na norma padrão que são agramaticais no PE, mas comuns em

línguas pidgins e crioulas de base lexical portuguesa. Isso, para nós, revela como o contato

entre línguas e, mais amplamente, a transmissão linguística irregular, processos de que

9 Esta discussão sobre a polarização sociolinguística do PB será retomada, com maiores detalhes, no capítulo 2.

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falaremos a seguir, havidos nos períodos colonial e imperial do Brasil, operaram na

reestruturação do sistema de expressão de posse das normas populares do PB.

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2 UM PANORAMA SÓCIO-HISTÓRICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Quando, no século XVI, o visionário Fernão de Oliveira (1536), gramático

descritivo do português de então, escrevia que “os homens fazem a língua, não a língua

os homens”, em sua Grammática da lingoagem portuguesa, ele dava-se conta, com

alguma precocidade, de que a língua ganha as configurações que possui graças aos

sujeitos que a ressignificam constantemente.

O PB é um exemplo prototípico de como uma sociedade pluriétnica torna a língua

por ela utilizada igualmente plural. Sua heterogeneidade em todos os níveis de análise

linguística é prova disso. Essa heterogeneidade tem sido objeto de estudo sobre o qual se

debruçam diversos linguistas. As variações que esta vertente do português na América

apresenta revela uma história de mudanças intensa, o que tem sido terreno fértil para

análises e interpretações.

Há uma numerosa bibliografia que trata da língua portuguesa do Brasil10,

focalizando, nas palavras da professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, “o português, sua

transplantação, difusão e implantação no espaço americano” (2004, p. 12). Parece

consenso afirmar que falar do PB é falar de, pelo menos, duas histórias. Dante Lucchesi

sintetiza esse pensamento, afirmando que há uma polarização sociolinguística de nossa

língua. Essa polarização aparta

[...] a fala de uma elite que sempre teve os olhos voltados para a Europa,

em busca de seus modelos culturais e linguísticos, da fala da grande

população que, no cadinho de sua pluralidade étnica, cultural e

linguística, forjou os elementos definidores da originalidade cultural e

linguística do Brasil, que tanto assombram e encantam o mundo

ocidental, desautoriza todos os estudos que apresentam uma história

única para o português brasileiro (LUCCHESI, 2009, p. 30).

Ainda segundo Lucchesi (2009, p. 42), o fosso que separa a fala da elite da fala

do restante da população brasileira caracteriza a realidade linguística brasileira como um

sistema polarizado, constituído por dois grandes subsistemas: a norma culta, cujos

utentes têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços

10 Quando nos referimos a português do Brasil, estamos falando sobre o resultado dos contatos linguísticos

que o formaram, em oposição a português no Brasil, que se refere à língua trazida por Portugal para a sua

colônia americana.

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da cidadania, e a norma popular, a cujos falantes sempre foram negados os direitos

elementares.

Neste capítulo, discutiremos em que medida o contato entre línguas, durante os

períodos de colônia e império do Brasil, influenciou a formação do português popular

brasileiro11, vertente que nos interessa, neste estudo.

2.1 HIPÓTESE DO CONTATO x HIPÓTESE DA DERIVA

Uma questão pertinente com a qual trabalham estudiosos da história do PB diz

respeito a saber em que medida os diversos contatos interlinguísticos que houve na

formação da sociedade brasileira contribuíram para produzir as características que

permitem contrastar suas variedades com as do PE. Quando se trata do léxico do PB, não

há quem negue as influências indígenas e africanas. No entanto, o mesmo consenso não

existe quando se trata das influências dessas línguas na formação de características

gramaticais do PB. A esse respeito, as discussões são polarizadas. Existem defensores do

que chamaremos aqui de hipótese da deriva e hipótese do contato.

A primeira grande teoria para a explicação da origem do PB é a da deriva secular,

apregoada por Anthony Julius Naro e Maria Marta Pereira Scherre (1993; 2003; 2009

etc.), segundo a qual o PB nada mais é do que uma continuação do português arcaico,

com pequenas alterações, uma vez que não se consegue, até hoje, ainda segundo eles,

“identificar nenhuma característica do português do Brasil que não tenha um ancestral

claro em Portugal” (2007, p. 13). Ademais, Naro e Scherre afirmam que o PB possui uma

expansão de estruturas e variações acelerada por uma confluência de motivos, dentre os

quais o contato entre línguas. Há que ressaltar que estes autores utilizam a noção de deriva

do linguista estadunidense Edward Sapir, para quem a linguagem “não é apenas uma coisa

que cresça no espaço [...], [mas] move-se pelo tempo em fora num curso que lhe é próprio.

Tem uma deriva” (1949, p. 121).

No livro As origens do português brasileiro, o grande corolário da teoria

defendida por esses autores, Naro e Scherre (2007) apresentam, ademais de discussões

teóricas, estudos linguísticos que evidenciariam que os fenômenos variáveis do PB têm

um ancestral claro em Portugal.

11 A partir daqui, sempre que se falar em PB, deve-se entender que se está tratando de sua vertente popular,

já que, entre os dois subsistemas que formam a língua majoritariamente falada no Brasil, é o popular que

nos interessa, neste trabalho.

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A posição teórica dos autores, contrária à hipótese do contato entre línguas, fica

clara já no prefácio, onde se lê:

Refletindo sobre a sócio-história do português brasileiro, os autores

mostram que esses contatos não promoveram nenhuma modificação na

tipologia estrutural da língua, tão somente aprofundaram tendências

surgidas já em Portugal, ali documentadas, e transplantadas para o

Brasil. (NARO & SCHERRE, 2007, p. 15)

As conclusões a que chegam os autores, no livro supracitado, são as que seguem:

1) A língua portuguesa falada em Portugal antes da colonização do

Brasil já possuía uma deriva secular que a impulsionava ao longo de um

vetor de desenvolvimento.

2) No Brasil, este vetor encontrou com outras forças que reforçavam e

expandiam a direção original.

3) No início, uma dessas forças era a pidginização, que exercia uma

influência sobre o português através da língua geral tupi e da “língua de

preto” europeia, revivificada no Brasil originalmente para uso com os

ameríndios.

4) Ao longo de toda a história do Brasil, o processo de aprendizado do

português como segunda língua teve seus efeitos documentados

parcialmente.

5) Se existiu uma verdadeira língua crioula, caracterizada como sendo

de “léxico português e gramática africana”12, ela cedo se evaporou sem

deixar rastros na documentação. Sua possível influência no

desenvolvimento do português do Brasil seria indistinguível da de

outros eventuais pidgins ou crioulos de base não-europeia. (NARO &

SCHERRE, 2007, p. 47)

A teoria da deriva secular nos parece mais querer negar a crioulização do que

apresentar fatos empíricos que comprovem que fenômenos observáveis no PB tenham

sido documentos em Portugal. O grande problema desse tipo de postura teórica é que

talvez ninguém mais, nos dias de hoje, defenda que o PB seja uma língua crioula. O debate

transcende em muito essa questão, como se poderá notar no decorrer deste trabalho.

Dois dos principais oponentes da deriva secular são Alan Baxter e Dante Lucchesi,

que têm dedicado seus estudos às análises linguísticas do PB no Estado da Bahia, muitas

vezes fazendo-o comparativamente às línguas africanas. O Projeto Vertentes do

12 Essa definição do que seria uma língua crioula, utilizada pelos autores, é totalmente desatualizada.

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Português Popular do Estado da Bahia, por exemplo, do qual Lucchesi é coordenador,

tem, por objetivo,

[...] sistematizar evidências empíricas da relação historicamente

motivada entre certas características morfossintáticas da norma popular

brasileira e o maciço contato do português com as línguas indígenas e

africanas ocorrido nos primeiros séculos da formação da sociedade

brasileira. (LUCCHESI, 2012, p. 251)

Segundo este autor, a aquisição precária do português como segunda língua por

parte de milhões de índios brasileiros e africanos escravizados leva a uma simplificação

morfológica, que é “característica geral das situações de contato entre línguas massivo”

(2012, p. 252).

A hipótese de o PB ser um crioulo de base portuguesa (cujo léxico seria do

português europeu, e sua gramática, das línguas africanas com que teve contato), contra

a qual parecem querer brigar os defensores da deriva secular, não se comprova, na medida

em que não houve a formação de uma gramática original. O que teria havido, nas palavras

de Holm (2004), seria a formação de uma variedade vernácula parcialmente

reestruturada. À formação dessa variedade Baxter (1993) atribui o processo transmissão

linguística irregular13, o qual seria responsável pela simplificação morfológica do PB.

Por transmissão linguística irregular do tipo leve (que parece ter ocorrido, no Brasil),

entendem-se os processos de mudança decorrentes do maciço contato entre línguas, sem

que as alterações ocorridas aí “cheguem a configurar a emergência de uma nova entidade

linguística qualitativamente distinta” (LUCCHESI, 2012, p. 255).

A noção de transmissão linguística irregular é, para Naro e Scherre, uma

excrescência teórica. Isso porque, segundo os autores, fazendo uma referência ao frade

franciscano do século XVI, Guilherme de Ockham, atribuir as características do PB ao

contato linguístico e à reestruturação parcial da morfossintaxe dessa língua seria explicar

erroneamente o sumiço dos carneiros. Segundo a estória do frade, um fazendeiro, numa

certa manhã, dá pela falta de alguns carneiros de seu rebanho.

[O fazendeiro] conclui que os carneiros devem ter sido comidos pelos

lobos que ele vira na floresta vizinha à sua propriedade no dia anterior.

Mas ele poderia também pensar que ouvira dizer que há leões no

13 Estamos apresentando sucintamente, por ora, o que seria a transmissão linguística irregular. Essa

discussão será retomada, de forma mais abrangente, no item 1.2.2.

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zoológico que fica na capital. Talvez tenham escapado alguns leões e

estes poderiam ter comido os carniceiros. [...] Ou então poderia ter

havido uma invasão despercebida de extraterrestres, casualmente

famintos exatamente por carneiros. A Navalha de Ockham determina

que a primeira teoria é a que deve ser preferida, por envolver menos

construtos teóricos do que a teoria da fuga dos leões ou a da existência

de extraterrestres. (LUCCHESI, 2012, p. 259)

Segundo a doutrina do frade, um princípio heurístico geral da construção de

teorias científicas, é preciso cortar qualquer excrescência teórica que não contribua para

explicar os dados relevantes. Entretanto, sabiamente, Lucchesi (2012, p. 259) afirma que,

na verdade, a excrescência teórica seria acreditar numa deriva secular, o que nos remete

à Linguística imanentista de Saussure, não mais aplicável à realidade das línguas. Além

disso, a teoria apregoada por Naro e Scherre possui diversas lacunas e impertinências14.

Acreditamos que um trabalho que queira levar em consideração fatores sociais

envolvidos na formação do PB não deve, em hipótese alguma, deitar fora a importância

do contato entre línguas no processo de constituição histórica dessa língua, como parece

ser objetivo de Naro e Scherre, que relativizam os efeitos dessas dinâmicas de contato

interlinguístico entre o português e as línguas africanas, sobretudo15.

2.2 AS DINÂMICAS DE CONTATO INTERLINGUÍSTICO NA FORMAÇÃO

SÓCIO-HISTÓRICA DO PORTUGUÊS POPULAR BRASILEIRO

2.2.1 Influências africanas e indígenas no PB: dados demográficos

Calvet (2002) nos diz, à página 35, para introduzir seu capítulo sobre contato entre

línguas:

Há na superfície do globo entre 4.000 e 5.000 línguas diferentes e cerca

de 150 países. Um cálculo simples nos mostra que haveria teoricamente

cerca de 30 línguas por país. Como a realidade não é sistemática a esse

ponto (alguns países têm menos línguas, outros, muitas mais), torna-se

evidente que o mundo é plurilíngue em cada um de seus pontos e que

as comunidades linguísticas se costeiam, se superpõem continuamente.

O plurilinguismo faz com que as línguas estejam constantemente em

14 Sobre isso, conferir o informativo e substancial capítulo de Lucchesi (in Lobo et al., 2012), “A deriva

secular na formação do português brasileiro: uma visão crítica”. 15 A razão pela qual, neste trabalho, daremos ênfase aos contatos que houve entre o português e as línguas

africanas ficará clara no item 1.2.1, a seguir.

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contato. O lugar desses contatos pode ser o indivíduo (bilíngue, ou em

situação de aquisição) ou a comunidade.

O Brasil é um bom exemplo de país no qual houve intenso contato entre línguas.

Ao longo de mais de 500 anos de história, a sua situação linguística foi supercomplexa,

pela presença de cerca de 360 línguas indígenas (RODRIGUES, 1986, p. 19) ou mais de

1500 delas (HOUAISS, 1985, p. 100), de muitas e variadas línguas africanas e do PE de

diferentes lugares de Portugal, em diversos momentos16. Daí Ilari e Basso (2007, p. 60)

afirmarem, com razão, que o multilinguismo foi o pano de fundo da criação do PB.

As influências indígenas e africanas verificáveis hoje no PB se deram de maneiras

diferentes. Segundo Mattos e Silva (2004, p. 14), houve uma

[...] trajetória dizimada dos índios brasileiros e de suas línguas, percurso

etnocida e glotocida conhecido, conduzido primeiro pelos

colonizadores portugueses e prosseguido pelas chamadas frentes

pioneiras que hoje alcançam os limites últimos da Amazônia brasileira.

A submissão do índio foi dupla. Ao passo que os colonizadores portugueses

exerciam a submissão material dos autóctones, os missionários da Companhia de Jesus

realizavam a submissão espiritual dos índios. Para tanto, “os jesuítas também adotaram a

língua geral, chegando mesmo a codificá-la e dar-lhe feição escrita, empregando o

modelo da gramática portuguesa de então” (LUCCHESI, 2009, p. 43). O termo língua

geral recobre uma diversidade de situações linguísticas. Aqui, chamamos de língua geral

aquela versão das línguas indígenas usada para a comunicação entre colonizadores

portugueses e os índios e gramaticizada pelos jesuítas para o êxito na catequese dos

primeiros habitantes do Brasil (cf. LUCCHESI, 2009, p. 43).

Rodrigues (1986, p. p. 95), autoridade quando se trata de línguas indígenas do

Brasil, informa que existiam duas línguas-gerais: a paulista, de base tupiniquim e/ou

guarani, utilizada como instrumento de colonização pelos bandeirantes, e a língua geral

de base tupinambá, presente do Maranhão à Amazônia. Outros estudos, como o de Mattos

e Silva (2000), mostram que pode ter havido, além das duas supracitadas, uma língua

geral cariri, no interior do Nordeste, de base macro-jê.

16 É importante ressaltar que, apesar de sempre se falar em contato entre línguas africanas, línguas indígenas

e português europeu, como se essa última língua fosse única, isenta de variação, também ela foi trazida ao

Brasil de lugares e classes sociais diferentes de Portugal e em momentos diferentes da história da

colonização do nosso país. Há, portanto, variações, no tempo e no espaço, do PE que entrou em contato

com as demais línguas em solo brasileiro.

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Rodrigues (1986, p. 95) também chama a atenção para um fato interessante: apesar

da variedade de línguas indígenas presentes no Brasil, a criação de línguas gerais era

facilitada aqui em virtude da relativa uniformidade das línguas nativas da costa.

As línguas gerais foram utilizadas por mais de dois séculos no Brasil. Entretanto,

num decreto que visava ao enfraquecimento do poder dos jesuítas em solo brasileiro,

Marquês de Pombal proibiu, em 1757, o uso dessas línguas, instituindo o português como

língua de ensino na colônia. Segundo Ilari e Basso (2007, p. 66), as línguas indígenas não

deixaram de ser usadas tão rapidamente na colônia, o que reforça a hipótese de que o

Brasil-Colônia foi um país multilíngue. Como e por que desapareceram essas línguas

ainda se precisa saber. O avanço da urbanização (e, com ele, o do português como língua

veicular) e a história “etnocida e glotocida” dos índios, para usar as palavras de Mattos e

Silva, já aqui mencionadas, são hipóteses plausíveis.

Na contramão da história dizimada dos índios e suas línguas, aparece o elemento

africano. Não se sabe decerto quando começam a ser trazidos para o Brasil os primeiros

escravos negros17. Prado Jr. (1974, p. 37) aventa a hipótese de já haver africanos desde a

primeira expedição oficial de povoadores no Brasil. Isso é possível, na medida em que os

africanos já estavam em Portugal a partir de 1945, e em números razoáveis (cf.

CLEMENTS, 2009). Segundo Raimundo (1933, p. 26), o tráfico negreiro foi autorizado

por um alvará de D. João III, datado de 29 de março de 1549. Esse documento autorizava

os donos de engenho do Brasil a resgatarem escravos da Costa da Guiné e da Ilha de São

Tomé. Ainda segundo Raimundo (1933, p. 27), o limite era de 20 “peças” por engenho

montado na colônia.

A partir daí, a importação de escravos africanos cresceu de forma vertiginosa.

Gabriel Soares de Sousa, na sua crônica de viagem, intitulada Tratado descritivo do

Brasil, nos deixa um registro do que seria a composição demográfica da colônia:

Assim, pode ser socorrida por mar e por terra, de muita gente

portuguesa até quantia de dois mil homens, de entre os quais podem sair

dez mil escravos de peleja, a saber: quatro mil pretos de Guiné e seis

mil índios da terra [...] (SOUSA, 1989, p. 86).

17 Sobre a substituição da mão-de-obra indígena pela africana, deve-se levar em conta a resistência cultural

intrínseca do índio ao trabalho forçado. Além disso, os jesuítas sempre moveram campanhas contra a

escravidão dos índios.

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Alberto Mussa, em sua dissertação de mestrado, O papel das línguas africanas na

história do português do Brasil (1991), recompôs, diacronicamente (do século XVI ao

XIX), a densidade demográfica do Brasil. Trata-se de mais um testemunho de que, desde

o início do tráfico negreiro, o contingente de africanos no Brasil sempre foi exorbitante.

A partir da tabela abaixo, com dados extraídos do trabalho de Mussa a que nos

referimos acima, percebe-se que “a constante não branca em menor proporção na história

brasileira (...) acarreta consequências significativas para melhor compreender a

heterogeneidade discutida do português brasileiro” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 35)

Tabela 1: Demografia histórica do Brasil

1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890

Africanos 20% 30% 20% 12% 2%

Negros brasileiros - 20% 21% 19% 13%

Mulatos - 10% 19% 34% 42%

Brancos brasileiros - 5% 10% 17% 24%

Europeus 30% 25% 22% 14% 17%

Índios integrados 50% 10% 8% 4% 2%

Fonte: adaptado de Mussa (1991, p. 63)

Como se pode ver na tabela acima, retomando as palavras do próprio Mussa

(1991, p. 146), “(...) o percentual de falantes banto foi sempre superior, e quase sempre

maciçamente, em todo o período do tráfico”. Mattos e Silva (2004, p. 35), cuja autoridade

é indiscutível, diz que os dados demográficos apresentados por Mussa são suficientes para

uma visão geral da história demográfico-linguística do país, ao longo de sua história18.

Mattos e Silva também nos deixou uma importantíssima contribuição no que

concerne aos dados demográficos do Brasil. Com base em fontes disponíveis, ela

conjugou dados que nos permitem, em suas próprias palavras, “uma avaliação

demográfica que [leva] em conta os grupamentos étnicos conviventes no Brasil dos

séculos XVI ao XIX” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 36). A tabela segue abaixo:

18 Em seu importantíssimo ensaio O português no Brasil (1985), Antônio Houaiss insiste na importância

dos dados demográficos, aliados a outras três vias, por ele assim designadas, para a reconstrução da história

do PB. As hoje conhecidas quatro vias de Houaiss estão sendo cumpridas pelos muitos grupos de pesquisa

que se aventuram nessa laboriosa tarefa, inclusive pelo PROHPOR (Programa para a História da Língua

Portuguesa, criado por Rosa Virgínia Mattos e Silva, em fins de 1990, hoje liderado por Alan Baxter), do

qual esta pesquisa faz parte. Silva Neto, primeiro estudioso da língua portuguesa que procurou ir às fontes

sócio-históricas do passado, segundo Mattos e Silva (2004, p. 32), é outro exemplo de linguista que insistiu

no uso de dados demográficos para reconstruir a história do PB.

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Tabela 2: Dados demográfico-populacionais

Fonte: adaptado de Mattos e Silva (2004, p. 36)

Como se pode notar na tabela acima, do século XVI ao XIX, os chamados

“aloglotas”, aqui representados por negros e índios, representam uma taxa que varia entre

63% e 88%, ao passo que os falantes de língua materna portuguesa variam entre 12% e

37%. É mais uma prova de que o PB já nasce com diversidade, como afirmou Houaiss

(1985, p. 91).

As duas tabelas anteriormente mencionadas são reveladoras do quão importante

foram os contatos interlinguísticos para a formação do PB. Ademais, há que se ter em

mente que, infelizmente, a história de negros e índios foi contrária no Brasil: ao passo que

os autóctones (e suas línguas) foram desaparecendo gradativamente, o transporte forçado

de africanos para o Brasil cresceu de forma vertiginosa. Daí ser consenso hoje, entre os

estudiosos, o fato de as línguas africanas terem deixado maiores contribuições ao PB, em

detrimento das línguas indígenas, cujas contribuições são recuperáveis sobretudo (e,

talvez, exclusivamente) no léxico.

Todo esse intenso contato entre povos tão diversos favoreceu o processo de

bipolarização do PB, sobre o qual comentamos, rapidamente, no início desta seção. Vale

aqui retomar essa história bifurcada do PB. Além da própria composição social diversa

LOCAL GRUPAMENTOS

ÉTICOS

FIM DO

SÉC. XVI

% 1798-1799 % 1835

(REIS, 1986: 16)

%

BAHIA

(cidade)

(GSS 1989: 19)

BAHIA

(cidade)

(LSV 1969: 55)

OLINDA

(cidade)

(GSS 1989: 86)

RIO

(cidade)

(JVS 1965: 180)

SÃO PAULO

(cidade)

(GSS 1969: 776)

GOIÁS

(cidade)

(LSV 1969: 867)

Brancos

Índios

Negros

Brancos

Índios

Negros

Brancos

Índios

Negros

Brancos

Índios

Negros

Brancos

Índios

Negros

Brancos

Índios

Negros

2000 17

6000

4000 83

3000 37

5000 63

750 19

3000

100 81

40000 33

80000 67

11093 21

32126

8987 79

8931 12

29622

34104 88

18500 28

-

47000 72

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do Brasil, há que salientar outro fato importante da história externa do PB para essa

bipolarização: o enriquecimento de alguns poucos com a economia açucareira na colônia.

Sobre isso, afirma Lucchesi (2009), à página 47:

[...] a pujança da economia açucareira dará ensejo também a

manifestações de requinte, entre as quais, naturalmente, o cultivo de

uma língua fortemente ligada aos padrões da Metrópole, que, sob o

modelo dos administradores, altos funcionários e autoridades

eclesiásticas (todos reinóis), vicejará entre a elite colonial, sobretudo

nos ambientes finos dos dois mais importantes centros urbanos da

época: Salvador e Recife. Já na casa-grande, nas grandes propriedades

rurais, encontram-se escravos domésticos, que, se possuíam certamente

uma maior proficiência em português, não deixavam de influenciar a

língua de seus senhores – principalmente pela ação das amas que

participavam diretamente da criação dos filhos do seu senhor –,

impregnando-lhes a língua com as marcas de sua aquisição imperfeita.

Assim, a expansão da língua portuguesa no Brasil, que se deu através da fala dos

colonos portugueses e, sobretudo, através das variedades defectivas de português

adquiridas pelos escravos africanos e transmitidas para os seus descendentes (cf.

LUCCHESI, 2009, p. 48), ocorreu de forma bipolarizada, bipartida.

É, pois, interessante perceber como a falta de escolarização (ou a escolarização

precária, quando muito), da grande maioria dos brasileiros contribuiu para o

distanciamento entre o português brasileiro culto e o português brasileiro popular e para

o distanciamento entre o PB e o PE. Houaiss (1985, p. 137), ainda no ensaio O português

no Brasil, afirma que, até o século XVIII, o número de letrados não ultrapassou 0,5% da

população brasileira. Este percentual sobe para 20% a 30% ao longo do século XIX, até

1920.

Não nos debruçaremos, por ora, sobre o problema da escolarização na colonização

do Brasil. Os dados anteriormente citados são, entretanto, reveladores para entender,

como dissemos, a distância que existe até hoje entre o PB e o PE e a bipolarização do

português do Brasil.

A seguir, abordaremos mais um pouco a respeito das influências africanas no PB,

discutindo a hipótese de transmissão linguística irregular, já apresentada anteriormente,

de forma sucinta.

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2.2.2 A importância das línguas africanas na formação do PB: a transmissão

linguística irregular

Como se pôde perceber do que foi exposto até aqui, fundamentado por uma

demografia histórica do Brasil, com base, é claro, em fontes parciais, mas confiáveis, as

línguas africanas devem ter deixado maiores contribuições ao PB que as línguas

autóctones.

Segundo o historiador Curtin (1968), 40% dos africanos escravizados (cerca de

3,6 milhões deles) foram trazidos ao Brasil, número que supera a quantidade de escravos

levados a qualquer outro país das Américas. A importância linguística desses dados

numéricos reside no fato de que, em outros lugares nos quais houve uma história social

semelhante, surgiram as chamadas línguas pidgins19 e crioulas, como no Caribe e no sul

dos Estados Unidos (cf. GUY, 2005, p. 15). Se, por um lado, não se pode dizer que o PB

seja uma língua crioula, na medida em que não houve, nas palavras de Lucchesi (2012,

p. 255), já aqui citadas, a formação de uma nova gramática qualitativamente distinta da

língua-alvo (PE), por outro, é ímprobo acreditar que as semelhanças fonológicas, lexicais

e morfossintáticas compartilhadas entre o PB e as variedades de português em emergência

em Angola e Moçambique, por exemplo, sejam apenas acaso ou resultado de uma deriva

secular (cf. PETTER, 2009, p. 169).

O modo como o português foi adquirido pelos escravos africanos e transmitidos a

seus descendentes interessa bastante à pesquisa sobre fenômenos em variação e mudança

do PB. Por isso, cabe, neste momento, discutir de forma mais ampla o conceito de

transmissão linguística irregular, sobre o qual falamos, no item 2.1.

Conforme dissemos, por transmissão linguística irregular do tipo leve entendem-

se os processos de mudança decorrentes do maciço contato entre línguas, sem que as

alterações ocorridas aí configurem uma nova gramática qualitativamente distinta da

gramática da língua-alvo (cf. LUCCHESI, 2012, p. 255). Trata-se de um modo de

transmissão linguística em que a nativização é divergente.

Tal processo de nativização da língua dominante ocorre de maneira

irregular no sentido de que os dados linguísticos primários de que as

crianças que nascem nessas situações dispõem para desenvolver a sua

língua materna provêm praticamente de versões de segunda língua

desenvolvidas entre os falantes adultos das outras línguas, que

19 “(...) variedade linguística qualitativamente diferente da [língua-alvo], que se desenvolveu gramatical e

funcionalmente, sem se tornar língua da maioria dos seus falantes” (LUCCHESI, 2009, p. 110).

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apresentam lacunas e reanálises em relação aos seus mecanismos

gramaticais. Tal processo diferencia-se da situação de transmissão

geracional normal das línguas humanas, em que as crianças dispõem de

dados linguísticos mais completos fornecidos pela língua materna dos

seus pais. Dessa forma, o processo de transmissão linguística irregular

pode conduzir à formação de uma língua historicamente nova,

denominada língua crioula, ou à simples formação de uma nova

variedade histórica de superstrato, que não deixa de apresentar

processos de variação e mudança induzidos pelo contato entre línguas

(LUCCHESI, 2009, p. 101).

Esse processo ocorre quando uma população de adultos, falantes de línguas

diferentes, ininteligíveis entre si, é forçada a adquirir uma segunda língua (L2), de

maneira emergente, em razão da submissão a que é exposta. Conforme afirmou Lucchesi,

anteriormente citado, a aquisição da língua materna (AL1) que ocorre em situações de

contato massivo é bem diferente daquela que ocorre nos processos normais de

transmissão de uma língua natural de uma geração para outra.

Ao passo que, no cenário mais frequente, os parâmetros da gramática das crianças

são estabelecidos com base nos dados linguísticos primários (DLP) fornecidos pela

geração anterior, o que faz com que a gramática adquirida se aproxime daquela dos pais

fornecedores das evidências/estímulos (embora não sejam gramáticas idênticas)20, no

caso de crioulização, os DLP para AL1 provêm de uma variedade de L2 que contém

informações morfossintáticas altamente variáveis e defectivas (cf. LUCCHESI, 2009, p.

111). A AL1 com base em DLP de L2 aprendida em situação emergencial de fala tem

implicações muito sérias para a fixação dos parâmetros da gramática da L1 (cf. I.

ROBERTS, 1997).

A variedade da língua-alvo (LA) que se forma nessa situação de contato massivo

apresenta uma redução em sua estrutura gramatical, na medida em que apenas os

elementos essenciais às funções comunicativas básicas são mantidos (cf. LUCCHESI,

2009, p. 102).

Ainda segundo Lucchesi (idem), há três razões pelas quais ocorre essa redução na

estrutura gramatical da LA: a dificuldade de acesso dos falantes à LA, já que,

normalmente, o número de falantes do grupo dominante é inferior ao de falantes de outras

línguas; a idade dos aprendentes da LA, o que lhes impossibilita de recorrer aos

20 Utilizamos aqui a noção de fixação de parâmetros delineada por Chomsky (1981).

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dispositivos inatos que atuam no processo de aquisição de língua materna e a ausência de

uma ação normatizadora (de que é exemplo, por excelência, a escola).

Na medida em que a L2 aprendida pelos adultos escravizados, em situação

emergencial de fala, apresenta lacunas, o que ocorre, a partir da segunda geração de

falantes, é o preenchimento gramatical dessas variedades defectivas de L2. Isso é possível

graças aos dispositivos inatos da Gramática Universal (cf. CHOMSKY, 1968) que atuam

no processo de desenvolvimento da língua materna.

Segundo Baxter (2012, p. 224), a aquisição do português como L2 pelos escravos

africanos pode ter produzido mudanças em três direções, não necessariamente

excludentes entre si:

(i) Simplificação: presença de formas reduzidas e regularizadas (KLEIN;

PERDUE, 1997; MATHER, 2006; SIEGEL, 2004), orientada pela natureza

do input, via frequências, saliências, transparência semântica e pragmática e

pela Gramática Universal (GU).

(ii) Transferência e relexificação: formas estruturais da L1 do aprendente

transferidas para a L2 incipiente (LEFÈBVRE, 2001; SIEGEL, 2006;

SCHWARTZ; SPROUSE, 1994; SPROUSE, 2006);

(iii) Aquisição de segunda língua (ASL) imperfeita: o aprendente adulto pode ser

incapaz de adquirir traços das categorias funcionais parametrizadas, uma

incapacidade condicionada pelo período crítico de aquisição da linguagem

(HAWKINS; CHAN, 1997; FRANCESCHINA, 2002, 2003).

Dessa forma, fenômenos representativos de processos de variação e mudança no

PB podem ser explicados pelo modo como o português foi aprendido pelos africanos,

quantitativamente majoritários no Brasil-colônia e Brasil-império, como já se disse aqui,

e transmitidos aos seus descentes, já que a simplificação gramatical observada no PB é

característica essencial da ASL (cf. SIEGEL, 2008; KLEIN; PERDUE, 1997).

Há uma corrente da crioulística que acredita que, para haver reestruturação

gramatical, deve haver, invariavelmente, crioulização (cf. BICKERTON, 1999). São

exemplos disso línguas como o crioulo inglês do Havaí, estudado por Bickerton (1999),

que, embora exibisse um léxico majoritariamente inglês, possuía uma gramática

qualitativamente distinta da gramática da língua inglesa. A nova gramática, no entanto,

não era uma mera colagem de estruturas gramaticais do chinês, do japonês ou do

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português (línguas envolvidas na situação de contato em que se formou tal crioulo).

Segundo Bickerton, a gramática surgida nesta situação só poderia ser resultado dos

mecanismos atuantes no processo de aquisição da língua materna, que o autor chamou de

Bioprograma da Linguagem.

Não obstante, Lucchesi chama a atenção para o caso particular do PB, que difere

das situações tidas como prototípicas de crioulização:

[...] se o acesso dos falantes aos modelos da LA aumenta com a continuidade da

situação social que originou o contato, vai-se estabelecendo uma espécie de ideal

normativo, na medida em que as formas da LA gozam de maior prestígio social. Em

tais contextos, os modelos da língua do grupo dominante tendem a suplantar os

processos de transferência de estruturas das outras línguas e/ou de reestruturação

original da gramática. O resultado, então, pode não ser a formação de um sistema

linguístico muito distinto da LA, mas uma nova variedade histórica dessa língua que

não deixa de apresentar certas características decorrentes do processo de transmissão

linguística irregular que ocorreu com sua socialização/nativização entre os falantes

das outras línguas e seus descendentes. (LUCCHESI, 2009, p. 107)

Assim, concordamos com Lucchesi no sentido de que, no Brasil, não houve a

formação de uma língua crioula única, por diversos motivos de natureza sócio-histórica21,

mas um processo de transmissão linguística irregular do tipo leve. É preciso deixar claro

aqui que a própria noção de crioulização é variável. Baker (1982) e Bickerton (1984)

afirmam que mesmo a crioulização, quando ocorre a partir de situações de contato com

maior acesso aos modelos da LA, dá origem a crioulos mais próximos da LA.

No que concerne aos aspectos linguísticos, especificamente, deve-se ter em mente

que a característica essencial da situação de contato linguístico massivo, abrupto e radical

como a que houve no Brasil, durante os períodos colonial e imperial, é, segundo Lucchesi

(2009, p. 109-110), a redução da gama das funções desempenhadas pela comunicação

verbal, permanecendo, muitas vezes, apenas as funções básicas de comunicação

emergencial. Há, nesses casos, uma perda de matéria gramatical da LA, que atinge

sobretudo “as suas estruturas mais abstratas, de menor funcionalidade comunicativa e de

carga semântica mais tênue ou menos transparente” (LUCCHESI, 2009, p. 110).

Entre as tendências estruturais que, no nível da morfossintaxe, são encontradas

nas línguas pidgins, segundo Mühlhäusler (1986, p. 152-165) e Winford (2003, p. 275-

276), estão a ausência de morfologia flexional; tendência para a ordem SVO; ordem

21 A respeito das causas da não crioulização do PB, cf. Lucchesi (2009, p. 62-71).

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invariável para as orações afirmativas, imperativas e interrogativas; uso reduzido de

preposições; ausência de regras de movimento, apagamento e relativização nos processos

de derivação da sentença; forma bimorfêmica analítica assumida pelas palavras

interrogativas (constituintes WH) e redução do sistema pronominal, aspecto que nos

interessa, nesta pesquisa.

Em relação ao sistema pronominal, do qual destacaremos, neste trabalho, o

sistema de expressão de posse, é importantíssimo destacar que Romaine (1988, p. 28)

chama a atenção para a substituição de formas sintéticas por formas analíticas, “de modo

que formas complexas são decompostas em seus componentes”, em situações de contato

entre línguas. Segundo a autora, formas mais complexas e de difícil decodificação (ou,

em outras palavras, DLP não muito claros para o aprendiz de L2) são substituídas por

conjuntos de formas independentes mais simples e cujo significado é mais transparente22.

Trata-se de um processo de otimização estrutural (cf. MÜHLHÄUSLER, 1986) que

caracteriza a primeira fase da transmissão linguística irregular, ou group second language

acquisition or shift23 (cf. WINFORD, 2003), na qual ocorre uma “drástica redução da

alomorfia” (ROMAINE, 1988, p. 27). Dito de outra forma, a substituição de formas

sintéticas por formas analíticas numa variedade de língua formada em situação de contato

massivo pode ser resultado da aquisição imperfeita de L1 com DLP não muito claros

provenientes de L2 defectiva.

2.3 EM SÍNTESE

Buscamos levantar aqui algumas questões que concernem à formação do PB,

entendido aqui como a norma popular da língua portuguesa falada no Brasil. Essa vertente

popular do português do Brasil apresenta características que nos permitem compará-la

com variedades em emergência em Angola e Moçambique, por exemplo (cf. GALVES;

AVELAR, 2014, e, ao mesmo tempo, distanciá-la do PE. Nesse sentido, é ímprobo

acreditar numa deriva secular, teoria defendida veementemente por dois grandes

sociolinguistas brasileiros: Anthony Julius Naro e Maria Marta Pereira Scherre (2007).

Em lugar de acreditar que as características hodiernas do PB têm um claro

ancestral em Portugal, preferimos buscar uma compreensão de suas características com

22 Seria o caso, por exemplo, da substituição das formas “meu” e “nosso” e de suas flexões por “de eu” e

“de nós”, estas últimas atestadas no corpus sobre o qual se debruça nossa pesquisa. 23 “Aquisição de L2 por um grupo ou mudança de língua”, em português.

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base sobretudo em sua formação sócio-histórica. Olhando do passado para o presente,

percebemos que os escravos africanos foram o principal difusor do “português geral

brasileiro”, que veio a se tornar o PB aqui estudado (cf. MATTOS E SILVA, 2004, p.

82).

A maneira como o português foi adquirido por esses africanos e transmitidos às

suas gerações futuras interessa bastante à pesquisa que ora se apresenta. Isso porque, em

situações de contato massivo, abrupto e radical, para usar as palavras de Lucchesi (2009,

p. 109), podem acontecer, pelo menos, duas coisas, dentre os processos normais de ASL:

transferências de propriedades da L1 dos africanos para a L2 ou reanálise de

características cujos DLP não foram claros, robustos. Em outras palavras, a simplificação

gramatical observada no PB é característica essencial da ALS (cf. SIEGEL, 2008;

KLEIN; PERDUE, 1997).

É um tanto quanto notório para nós que o PB não seja uma língua crioula, na

medida em que não houve uma ruptura tipológica ou mesmo a formação de uma nova

língua, como nos casos tidos como típicos de crioulização atestados mundo afora. Por

outro lado, as reanálises e transferências atestadas no PB (em contraste com línguas

africanas, por vezes) são reveladoras de que houve, em sua formação, um processo de

transmissão linguística irregular.

A seguir, detalharemos os aspectos teórico-metodológicos desta pesquisa.

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3 ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

3.1 TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGUÍSTICAS E TEORIA DA

GRAMÁTICA

Esta pesquisa se insere no âmbito dos estudos de Linguística histórica stricto

sensu24. Segundo Mattos e Silva (2005, p. 39), há, hoje, no Brasil, um retorno aos estudos

histórico-diacrônicos25, graças aos desenvolvimentos de duas orientações predominantes

na Linguística contemporânea: a Sociolinguística quantitativa ou variacionista e o modelo

gerativista paramétrico da década de 80.

Ainda segundo Mattos e Silva (2005, p. 42), “uma das abordagens mais

proeminentes da mudança linguística se encontra no modelo gerativista, que associa

aquisição e mudança”. É porque concordamos com a brilhante professora, cujos escritos

deixados são verdadeiras missões, sobretudo para os linguistas jovens, aventureiros na

arte de “ouvir o inaudível”26, que acreditamos que o modelo gerativista fornece base

teórica interessante para a compreensão das mudanças por que passou a gramática do PB,

em oposição à gramática da variedade europeia do português, da qual a vertente culta do

português brasileiro é tentativa de continuação, como dissemos no capítulo 2. Aqui,

utilizaremos, como se perceberá adiante, uma tentativa (ou mais uma, já que há tantos

trabalhos que o fazem) de unir a Teoria da Gramática à Teoria da Variação e Mudança

Linguística para explicar um fenômeno do PB: a expressão de posse.

Expliquemo-nos: conforme dissemos no capítulo 2, quando se observam

fenômenos variáveis do PB de maneira contrastiva a outras línguas, percebe-se que há

muitas similitudes entre ele e as variedades de português em emergência em Angola e

Moçambique, por exemplo; não há, por outro lado, qualquer semelhança com o PE, do

24 Existem, para Mattos e Silva (2008, p. 9-10), duas possibilidades de se fazer Linguística Histórica. Faz-

se LH lato sensu quando se trabalha com quaisquer dados datados e localizados, ao passo que se faz LH

stricto sensu quando se debruça sobre o que muda nas línguas e como essas mudanças ocorrem no devir

temporal. 25 A Linguística, como ciência, nasce histórica, durante o século XIX (cf. MATTOS E SILVA, 2008).

Entretanto, no século XX, com o aparecimento do modelo estruturalista do genebrês Ferdinand de Saussure

(1916), a Linguística ganha um caráter predominantemente sincrônico, já que, para o pai da Linguística

moderna, a mudança linguística fazia parte da fala, e só a língua era passível de estudo científico. A língua,

como sistema, era, para Saussure, invariável. 26 “Ouvir o inaudível” é uma metáfora de Roger Lass (1997, p. 45) sobre o fazer Linguística Histórica.

Mattos e Silva traduziu a metáfora e a usou em subtítulo de um de seus livros, Caminhos da linguística

histórica: ouvir o inaudível (2008).

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que resulta uma impossibilidade de crer numa deriva secular (cf. NARO; SCHERRE,

2007), na medida em que é ímprobo pensar que as semelhanças compartilhadas entre o

PB e as línguas africanas da família banto são mero acaso ou continuação do português

arcaico (cf. PETTER, 2009).

A situação sócio-histórica em que se formou o PB leva-nos a acreditar que as

mudanças gramaticais por que passou essa língua têm sua origem na maneira como o

português foi adquirido: primeiramente, como segunda língua por adultos falantes de

línguas bantas e, depois, transmitidas a uma segunda geração, que, possivelmente,

utilizaram-se de mecanismos da GU para preencher supostas lacunas da língua

anteriormente aprendida pelos adultos, de maneira imperfeita, em situação emergencial

de comunicação.

Daí o nosso desejo de unir a Teoria da Variação e Mudança Linguística, ou

Sociolinguística, que pode dar conta de como uma mudança se implementa na estrutura

linguística e social de uma comunidade, à Teoria da Gramática, que pode dar conta da

mudança linguística em situação de contato entre línguas, atribuindo essas mudanças à

maneira como a língua é adquirida.

Não seríamos ingênuos em acreditar que unir essas teorias, com concepções

diferentes mesmo sobre a mudança linguística, seria uma tarefa fácil. No entanto,

acreditamos que, utilizando bem os pressupostos que nos interessam de cada teoria, é

possível entender, de maneira mais clara, o que aconteceu com o sistema de expressão de

posse no contato do português com as línguas africanas.

O que se quer aqui, em outras palavras, é tentar unir as dimensões psíquico-

biológica e sócio-histórica do fenômeno linguístico. Isso, em termos empíricos, significa:

(...) definir em que medida os processos sociais de mudança

linguística que ocorrem nas redes de relações sociais que definem

a tessitura social da comunidade de fala são restringidos pelos

mecanismos do sistema biológico da faculdade da linguagem, no

sentido que tem sido definido por Chomsky (1986, 1995, entre

outros). (LUCCHESI, 2009, p. 128).

As contribuições desses dois modelos teóricos (sociolinguístico e gerativista) para

a compreensão da mudança linguística, além da metodologia de trabalho que foi adotada

e o corpus sobre o qual nos debruçamos constituem o objeto deste capítulo. A seguir,

apresentaremos os pressupostos que nos interessam, por ora, de cada teoria.

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3.1.1 Os pressupostos sociolinguísticos e a complementaridade entre a Teoria da

Gramática e a Teoria da Variação e Mudança Linguísticas

A Sociolinguística variacionista surge durante a década de 1960, a partir dos

estudos sobre mudanças em progresso no inglês da ilha de Martha’s Vineyard (1963) e

da cidade de Nova Iorque (1966), sob orientação de Uriel Weinreich. Esse modelo teórico

apresentava discordâncias com os mais importantes princípios teóricos sobre a mudança

linguística que o antecederam.

Um dos grandes triunfos da teoria sociolinguística foi o de superar a visão de que

a mudança linguística só poderia ser estudada após estar concluída27. Em lugar disso, ao

destacar a estreita relação entre variação e mudança, Weinreich, Labov e Herzog

(doravante WLH) abriram o caminho para a compreensão dos estágios intermediários

entre dois momentos temporais, o que permitiu uma visão da mudança como algo

contínuo e gradativo.

Ademais, é de WLH a responsabilidade por terem desmitificado a ideia de que a

variação era livre, não-condicionada, como apregoavam os estruturalistas. WLH, em seus

Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística (2006), determinaram

a sistematicidade da variação. A análise linguística, destarte, deixou de se circunscrever

aos limites das relações internas ao sistema linguístico – outra visão estruturalista. Como

afirma Labov (1972, p. 2), “nem todas as mudanças são altamente estruturadas, e

nenhuma mudança acontece num vácuo social. Mesmo a mais sistemática mudança em

cadeia ocorre com uma especificidade de tempo e lugar que demanda uma explicação”.

Assim, definiu-se como objeto de estudo da Sociolinguística a comunidade de

fala, focalizando os padrões coletivos de comportamento linguístico observáveis no uso

concreto da língua. Segundo Labov (1982, p. 18), “o objeto da descrição linguística é a

gramática da comunidade de fala: o sistema de comunicação usado na interação social”.

Como a Sociolinguística parte do pressuposto de que toda variação é sistemática

e previsível, a heterogeneidade de uma língua é motivada por fatores. WLH apontam a

necessidade de um controle sistemático dos fatores que favorecem o uso de cada variante.

Essas variantes, que são sempre equivalentes semanticamente, coexistindo em um dado

momento da língua, podem manter-se estáveis ou uma pode vir a desaparecer, sendo

substituída gradativamente pela outra (mudança em progresso). Os fatores que podem

27 Essa era a crença, por exemplo, de linguistas como Bloomfield (1933) e Hockett (1958).

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condicionar o emprego das formas variantes são de dois tipos: linguísticos e extra-

linguísticos.

Não obstante investigações profícuas na perspectiva da Sociolinguística, há uma

importante lacuna nesse modelo teórico, na medida em que ele é incapaz de integrar o

sistema mental de funcionamento da língua ao esquema de análise social da mudança

linguística28. Isso significa dizer, para usar termos chomskianos, que esse modelo teórico

pode dar conta da língua-E, mas não da língua-I29. Cabe aqui citar a opinião de Lucchesi

a esse respeito:

Adotando-se o pressuposto de que o comportamento linguístico dos

indivíduos é, em grande medida, determinado pelo seu conhecimento

linguístico internalizado, o poder explicativo do modelo variacionista

fica bastante comprometido, se esse modelo não for capaz de integrar

em sua explicação da mudança uma teoria forte sobre a estruturação do

conhecimento linguístico na mente dos falantes. (LUCCHESI, 2009, p.

130).

Assim, parece-nos profícuo tentar integrar um modelo poderoso de análise da

gramática, como o modelo gerativista, no estudo de padrões coletivos de comportamento

linguístico e no estudo das mudanças linguísticas e outros processos históricos, como os

processos de transmissão linguística irregular e contato entre línguas.

Para a professora Edivalda Araújo:

[...] uma sociolinguística paramétrica [união das teorias sociolinguística

e gerativista] reúne as contribuições do aparato da sociolinguística,

porque localiza os dados, faz análise do contexto linguístico, identifica

as variáveis e as variantes que estão no processo de variação ou

mudança, pode indicar também as prováveis interferências externas,

como contatos linguísticos e o desencadeamento das mudanças em

função desses contatos. Ou ainda contribuir com a análise quantitativa

dos dados, evidenciando numericamente o que mudou, qual variante

venceu a mudança, e se essa variação pode ser mensurada em um

tempo, através da análise das faixas etárias (no caso de pesquisas

sincrônicas). Mas a análise desses dados também pode ser explicada

através de uma teoria sintática, como a de Princípios e Parâmetros, da

abordagem gerativa, que indica os princípios mantidos na mudança

28 A percepção dessa lacuna levou diversos linguistas a tentarem conciliar a Teoria da Variação e Mudança

à Teoria da Gramática (cf. TARALLO, 1987, 1991; TARALLO; KATO, 1989; KATO, 1999; RAMOS,

1999; DUARTE (1999); KROCH, 1989, 2001, 2005; KROCH; TAYLOR, 1997; ROBERTS, 2007 entre

outros). 29 Língua-I: interna, individual; língua-E: externa (cf. CHOMSKY, 1968).

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linguística, já que são invariantes, e os parâmetros que ou estão em

variação ou que mudaram no percurso diacrônico da língua. (ARAÚJO,

2013, P. 80-81).

Além disso, achamos que o modelo gerativista atual é um bom caminho para

explicar/interpretar a mudança linguística em contexto de contato interlinguístico. Assim,

ao passo que a sociolinguística nos fornecerá o aparato analítico para estudar a variação

na expressão de posse no PB, é o gerativismo que nos dará os pressupostos para o estudo

teórico das razões pelas quais se atesta hoje tal variação. Isso porque, para a

sociolinguística, a variação é inerente à língua. Ora, uma vez que acreditamos que a

variação no uso dos pronomes possessivos atestada hoje no PB é graças aos contatos que

o português teve com línguas africanas, não podemos crer que essa variação é inerente à

competência monolíngue dos falantes; pelo contrário, essa variação revela uma

competição de gramáticas distintas ou diglossia sintática (cf. KROCH, 2001, p. 723).

Teremos cuidado, repetimos, com essa integração, cientes de que a teoria gerativa

centra o problema da mudança linguística na mente/cérebro dos falantes, ao passo que a

teoria sociolinguística centra-o na dimensão sócio-histórica do fenômeno linguístico. Para

nós, essas duas visões podem ser complementares para a compreensão da reestruturação

do sistema de expressão de posse no PB.

3.1.2 A mudança linguística e a teoria da gramática gerativa

Para gerativistas contemporâneos (cf. LIGHTFOOT, 1979, 1991, 1999;

ROBERTS, 1993, 2007; KROCH, 1989, 2001, 2003, 2005), a aquisição de uma língua

por uma criança se dá num processo de seleção de uma gramática a partir dos DLP e dos

princípios da GU – teoria dos universais linguísticos biologicamente determinados que

tenta determinar o que pode variar entre as línguas (os parâmetros) e o que é invariável

(os princípios).

Segundo Lightfoot (1979), embora as propriedades da GU permaneçam

constantes de geração em geração, os DLP mudam. Isso faz com que o input para uma

geração não seja o mesmo para a próxima. Como a gramática a ser adquirida é uma

consequência da interação entre propriedades da GU inatas aos falantes e a interação com

o ambiente, e como o ambiente é constantemente modificado cultural, social e

pragmaticamente, a mudança ocorre de forma inevitável. Assim, ainda segundo o autor,

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é no processo de aquisição da linguagem que a mudança pode ocorrer. Dessa forma, a

mudança sintática é sempre uma mudança no valor do parâmetro.

Lightfoot (1979) acredita que a gramática não é um objeto historicamente

transmitido, mas é essencialmente descontínuo e tem de ser recriado pelo indivíduo. Daí

surgirem as mudanças de uma geração para outra. O autor argumenta que a mudança

sintática ocorre em virtude da opacidade da gramática, que desencadeia reanálises que

levarão à sua reestruturação para recuperar a transparência necessária.

Segundo Kroch:

A mudança linguística é por definição uma falha na transmissão de

traços linguísticos através do tempo. Tais falhas, em princípio, podem

ocorrer entre grupos de falantes nativos adultos, que, por alguma razão,

substituem um traço por outro no uso da língua, como acontece quando

novas palavras são cunhadas e substituem velhas; porém, no caso de

traços sintáticos e gramaticais, tal inovação por falantes adultos quase

não é atestada. Por outro lado, as falhas na transmissão parecem ocorrer

no curso da aquisição da linguagem; isto é, são falhas no aprendizado.

Uma vez que, numa instância de mudança sintática, o traço que os

aprendizes falham em adquirir é aprendizável em princípio, tendo sido

parte da gramática da língua num passado imediato, a causa da falha

deve recair em alguma mudança, talvez sutil, no tipo de evidência

disponível para o aprendiz ou em alguma diferença, por exemplo, na

sua idade durante o processo de aquisição, como no caso da mudança

induzida através da aquisição de segunda língua por adultos em situação

de contato linguístico. (KROCH, 2003, p. 2)

Assim, a mudança sintática surge quando acontecem reanálise de partes dos DLP,

fato que tem como causas processos morfofonológicos, ambiguidade estrutural de dados

na expressão do valor paramétrico, inovações nos DLP, situações de contato linguístico,

fatores extralinguísticos, dentre outros (cf. LIGHTFOOT, 1991; KROCH, 2005;

ROBERTS, 2007). Para Kroch (2003, p. 5), não há dúvida de que adultos aprendendo

uma L2 fazem com que a transmissão linguística seja imperfeita.

O que defendemos, utilizando o aporte teórico dos gerativistas supramencionados,

pode ser assim sintetizado: os africanos que aprenderam, de maneira emergencial, o

português (fora, portanto, do período crítico de aquisição de uma língua) foram expostos

a inputs não muito robustos e estruturalmente complexos. Uma vez que os dados da

experiência relevantes para a aquisição precisam ser constituídos de elementos robustos

e estruturalmente simples (cf. LIGHTFOOT, 1991), a situação sociolinguística de

aquisição da L2 levou os africanos a duas direções: ora eles interpretavam mal os DLP e,

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uma vez que a gramática nova diferia no seu output da gramática original apenas

levemente, os falantes de português L2 não notaram a diferença e então não corrigiram

seu erro (cf. KROCH, 2003) – isso ocorre porque falantes adultos, fora da fase crítica de

aquisição de uma língua, são incapazes de adquirir traços das categorias funcionais

parametrizadas (HAWKINS; CHAN, 1997; FRANCESCHINA, 2002, 2003); ora eles

fixaram os parâmetros da L2 com base em seu conhecimento da L1, por meio de

processos de transferência (cf. LEFÈBVRE, 2001; GALVES; AVELAR, 2014; SIEGEL,

2006; SCHWARTZ; SPROUSE, 1994; SPROUSE, 2006). É por isso que se atesta, no

corpus com que trabalhamos, usos (raros) da estratégia preposição + pronome pessoal

do caso reto (de eu; de nós, por exemplo), presente em línguas africanas (cf. LUCCHESI;

ARAÚJO, 2009, p. 510).

O contato cada vez mais próximo entre as crianças africanas, filhas da primeira

geração de africanos que aprendeu o português como L2, e outros falantes de português

L1 e o maior acesso à escola visto nas últimas décadas certamente fez com que, no corpus,

o uso da estratégia supracitada para expressar a posse seja tímido, com raríssimos dados.

A escassez dos dados, entretanto, não é uma férula à pesquisa, mas algo importantíssimo

para confirmar a hipótese de que, em épocas pretéritas, no Brasil, deve-se ter usado essa

estratégia para todas as pessoas do paradigma pronominal (cf. LUCCHESI; ARAÚJO,

2009, p. 509). Os dados atestados seriam um resquício dessa época.

Ademais, há que se ter em mente que o uso abundante de da gente para expressar

a posse referente a P4 pode ser resultado de uma mudança encaixada (WLH, 2006) à

perda de morfologia flexional, característica geral das línguas afetadas por contato

interlinguístico (cf. GUY, 2005; LUCCHESI et al, 2009; BAXTER, 2012 entre outros).

Isso porque é possível que o uso da estratégia preposição + pronome pessoal seja um

modo de o falante evitar o uso de plural, com a variante conservadora.

3.1.3 Contato entre línguas e competição de gramáticas

Segundo Lucchesi:

Os fatos da história sociolinguística do Brasil (...) revelam uma

predominância de situações de multilinguismo no Brasil do século XVI

ao XIX. Focalizando a questão africana, a aquisição do português como

língua materna por parte dos descendentes dos escravos trazidos da

África teria, em grande medida, na constituição dos [DLP], dados

fragmentários e defectivos do português falado como segunda língua,

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em níveis muito variáveis de proficiência, o que tem (...) sido definido

como um processo de transmissão linguística irregular.

(LUCCHESI, 2009, p. 145).

Roberts (2007, p. 390) apresenta um modelo de aquisição para situação de contato

que reflete a questão da aquisição imperfeita ou transmissão linguística irregular. Esse

esquema foi adaptado por Lucchesi (2009, p. 145-146) para a situação afro-brasileira e

segue abaixo:

Figura 1: Aquisição do português no Brasil.

Fonte: Lucchesi (2009)

Citaremos o próprio Lucchesi para a explicação do interessante esquema acima:

[...] a relação entre A e B é a de uma aquisição defectiva de segunda

língua por parte de falantes adultos (escravos africanos), tendo como

input os dados fornecidos por falantes nativos do português (os colonos

portugueses). A relação entre B e C é de aquisição da língua materna

por parte dos filhos dos escravos africanos, a partir do modelo defectivo

de português falado como segunda língua por estes últimos. A relação

entre C e D é a de transmissão linguística geracional, que se dá entre os

segmentos afrodescendentes, a partir da versão nativa de português

reestruturado do Grupo 3. O corpusD deriva de uma variedade, não

apenas simplificada do português falado como segundo língua

(sobretudo nos mecanismos gramaticais mais abstratos e sem valor

referencial), mas também com eventuais “contaminações” decorrentes

de transferências, reanálises etc. orientadas pelas gramáticas das línguas

nativas dos escravos africanos. Já o corpusR é constituído a partir de

uma variedade nativa de português reestruturado, falado pelos escravos

crioulos (filhos de mãe africana nascidos no Brasil) e refletirá, por um

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lado, as simplificações30 ocorridas na constituição do corpusD, bem

como eventuais transferências de substrato; por outro lado, conterá

também reanálises e reestruturações orientadas pelos dispositivos

inatos da GU que atuam na aquisição de língua materna. A partir daí,

as novas gerações de afrodescendentes (o Grupo 4, dos

afrodescendentes crioulos de segunda geração em diante) tenderão a ir

reincorporando estruturas gramaticais do português falado pelas classes

dominantes brasileiras, na medida em que as interferências do contato

entre línguas diminuem (sobretudo a partir de 1850, com o fim do

tráfico negreiro) e na medida em que esses indivíduos vão se integrando

e ascendendo na sociedade brasileira. (LUCCHESI, 2009, p. 145-146).

Outras duas observações são pertinentes a respeito do esquema. Em primeiro

lugar, interessa notar que, quanto maior for a simplificação ou “contaminação” do corpus

D, maior será a reestruturação na G1 do grupo 3 de afrodescendentes de primeira geração.

Isso fará com que esse processo de transmissão da língua da segunda geração de

afrodescendentes em diante se assemelhe a um processo de descrioulização31. Em

segundo lugar, é importante perceber que a situação A-B-C foi replicada inúmeras vezes

no Brasil, em virtude de a chegada de escravos ao país ter sido ininterrupta, prologando-

se por mais de três séculos.

Conforme afirma Roberts (2007, p. 389), são três as mais importantes

propriedades dos sistemas linguísticos afetados por uma aquisição imperfeita por parte de

falantes adultos: a instabilidade das evidências para a marcação de parâmetros, a

tendência de não realizar a morfologia flexional e as alterações nas estruturas da LA. Na

reestruturação do sistema de expressão de posse no PB, conforme dissemos há pouco, é

possível que os escravos africanos da primeira geração de aquisição do português L2

tenham reanalisado as estruturas em aprendizado ou feito transferências de sua L1 para a

L2 em parâmetros não muito claros para eles. Além disso, usos como da gente, atestado

nas normas culta e popular do PB (cf. MONTEIRO, 1994; LUCCHESI; ARAÚJO, 2009

entre outros), podem ser uma mudança em progresso encaixada na perda da morfologia

flexional, citada por Roberts, característica típica de processos de contato interlinguístico.

Essa visão abre mais ainda a possibilidade de unirmos as teorias da gramática e da

variação e mudança linguísticas, neste trabalho.

30 Acharíamos melhor, em lugar de falar em “simplificação”, dizer “incorporação limitada”, por uma questão taxionômica. No entanto, ao longo deste trabalho, usaremos a primeira expressão, mais usual. 31 Segundo o próprio Lucchesi (2009, p. 146), “há que se ter em mente que, [se o processo de

descrioulização] ocorreu, ele terá sido pontual”. O autor afirma que é possível que tenha predominado, no

Brasil, um processo de reestruturação leve, em grau menor do que o observado nas situações de crioulização

típicas.

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Assim, a variação na expressão de posse no português rural da Bahia deve ser

vista como um processo de competição de gramáticas. Isso reflete as estruturas da

gramática do português das classes dominantes brasileiras convivendo, ao longo da

história de dinâmicas de contato interlinguístico, no Brasil, com estruturas provenientes

de processos de simplificações, transferências, reanálises etc.

3.2 METODOLOGIA

3.2.1 O corpus

Esta pesquisa é realizada no âmbito do projeto CE-DOHS (Corpus eletrônico de

documentos históricos do sertão), sediado no Departamento de Letras e Artes, da

Universidade Estadual de Feira de Santana, e coordenado pelas profas. Dras. Zenaide de

Oliveira Novais Carneiro e Mariana Fagundes de Oliveira Lacerda. O corpus sobre o qual

nos debruçamos neste trabalho é, pois, fruto do projeto dentro do qual esta pesquisa se

realiza. Esse corpus é fruto do projeto A língua portuguesa no semiárido baiano,

coordenado por Almeida e Carneiro32. Trata-se das Amostras de Língua Falada no

Semiárido Baiano (CARNEIRO & ALMEIDA, 2008), um conjunto substancial de

entrevistas com moradores de áreas rurais da Bahia, feitas entre 1994 e 2002. Os

moradores são falantes representativos da variedade popular do PB.

Há que salientar que a escolha pelo corpus em questão se deu pela limiar ideia da

visionária linguista Rosa Virgínia Mattos e Silva, que, em seus Ensaios para uma sócio-

história do português brasileiro (2004, p. 20), nos deixou uma verdadeira missão: “(...)

encontrar comunidades rurais isoladas que apresentem variantes do português que possam

ter tido uma história em que as línguas africanas tenham desempenhado papel essencial”.

As comunidades estudadas neste trabalho dispõem exatamente dessas características: são

rurais, isoladas (pelo menos o eram à época das gravações dos inquéritos) e são formadas

por falantes analfabetos ou semianalfabetos, o que também contribui para a busca de

resquícios do que Mattos e Silva (2004) chamou de português brasileiro geral – um

antecedente do português brasileiro popular –, já que, em falantes como esses, a escola e

a mídia não conseguiram impor uma variedade imitadora da norma lusitana.

32 Para maiores informações a respeito das fases do projeto, ver: www.cedohs.uefs.br

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A estratégia metodológica de estudar a variação dos pronomes possessivos, numa

sincronia do PB, também atende a uma proposta de Mattos e Silva para a reconstrução da

história dessa língua. Esse método é, segundo a autora, fonte essencial, porque “vendo-

se o presente, se pode presumir antever o passado” (2004, p. 13).

Além disso, outra importância para a utilização do corpus escolhido para a nossa

pesquisa é o fato de as suas autoras terem selecionado regiões de diferentes formações

sócio-históricas para integrarem o banco de dados. Assim, há comunidades que foram

formadas predominantemente por brancos, outras predominantemente por negros e outras

predominantemente por índios. Como afirmam Norma Almeida e Zenaide Carneiro,

organizadoras das amostras:

Um estudo linguístico a partir de amostras que levem em conta essas

peculiaridades regionais pode (...) propiciar uma melhor compreensão

e controle de aspectos que podem ter influenciado a formação

linguística da população rural da região semiárida. Além disso, os dados

de comunidades não marcadas etnicamente em contraposição àquelas

marcadas etnicamente também podem ser significativos para o

entendimento da formação sócio-histórica da língua falada nessas

localidades (ALMEIDA; CARNEIRO, 2014, p. 18-19).

Assim, de posse de dados de comunidades formadas por matrizes étnicas

diferentes, pode ser possível perceber se essa formação sócio-histórica traz diferenças no

uso das estratégias de expressão de posse ou se, como nos dizem Lucchesi e Araújo

(2009), as vertentes do português do Brasil estão se encontrando, tendo diminuídas as

suas diferenças, quando se trata de variação não estigmatizada socialmente. Assim,

utilizaremos os dados do fenômeno em estudo de todas as comunidades do corpus, quais

sejam: Bananal/Barra dos Negros, Casinhas, Lagoa do Inácio, Matinha, Mato Grosso,

Piabas e Tapera. Uma descrição detalhada das comunidades pode ser vista em Almeida e

Carneiro (2014).

Uma descrição mais detalhada do corpus encontra-se a seguir:

Piabas: 12 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de ambos os

sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos moldes da

sociolinguística quantitativa (cf. LABOV, 1972, 1982). Os inquéritos foram gravados na

fase I do projeto “A língua portuguesa falada no semiárido baiano”, entre 1997 e 1999.

Nesta fase, a intenção era contribuir para o conhecimento da realidade linguística

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brasileira e, de forma específica, para o estudo da língua falada em áreas do semiárido

baiano. As comunidades foram escolhidas de forma que representassem o avanço da

língua portuguesa na Bahia, a partir do século XVII, numa perspectiva sócio-histórica.

Piabas, região de transição entre o processo histórico-econômico que se define como área

de pecuária e zona de mineração, é uma comunidade que tem, como formação étnica

marcante, a matriz africana.

Barra dos Negros/Bananal: 12 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco

escolarizados, de ambos os sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de

coleta foi feita nos moldes da sociolinguística quantitativa. Os inquéritos foram gravados

na fase I do projeto “A língua portuguesa falada no semiárido baiano”, entre 1997 e 1999.

Nesta fase, a intenção era contribuir para o conhecimento da realidade linguística

brasileira e, de forma específica, para o estudo da língua falada em áreas do semiárido

baiano. As comunidades foram escolhidas de forma que representassem o avanço da

língua portuguesa na Bahia, a partir do século XVII, numa perspectiva sócio-histórica.

Barra dos Negros e Bananal, representativas da zona de mineração que, atualmente, tem

como uma das principais atividades econômicas o turismo, é uma comunidade que tem,

como formação étnica marcante, a matriz africana.

Mato Grosso: 12 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de ambos

os sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos moldes

da sociolinguística quantitativa. Os inquéritos foram gravados na fase I do projeto “A

língua portuguesa falada no semiárido baiano”, entre 1997 e 1999. Nesta fase, a intenção

era contribuir para o conhecimento da realidade linguística brasileira e, de forma

específica, para o estudo da língua falada em áreas do semiárido baiano. As comunidades

foram escolhidas de forma que representassem o avanço da língua portuguesa na Bahia,

a partir do século XVII, numa perspectiva sócio-histórica. Mato Grosso, representativa

da zona de mineração que, atualmente, tem como uma das principais atividades

econômicas o turismo, é uma comunidade que tem, como formação étnica marcante, a

matriz portuguesa.

Casinhas: 12 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de ambos os

sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos moldes da

sociolinguística quantitativa. Os inquéritos foram gravados na fase II do projeto “A língua

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falada no semiárido baiano”, entre 1999 e 2003. Nesta fase, o projeto voltou-se para duas

regiões da Bahia: a Nordeste, uma das mais antigas, e a Paraguaçu, ponto de passagem

para o interior do estado. Casinhas é uma comunidade formada de descendentes de

africanos.

Tapera: 6 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de ambos os

sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos moldes da

sociolinguística quantitativa. Os inquéritos foram gravados na fase II do projeto “A língua

falada no semiárido baiano”, entre 1999 e 2003. Nesta fase, o projeto voltou-se para duas

regiões da Bahia: a Nordeste, uma das mais antigas, e a Paraguaçu, ponto de passagem

para o interior do estado. Tapera é uma comunidade formada de descendentes de

indígenas.

Lagoa do Inácio: 6 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de

ambos os sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos

moldes da sociolinguística quantitativa (Labov, 1972, 1982). Os inquéritos foram

gravados na fase II do projeto “A língua falada no semiárido baiano”, entre 1999 e 2003.

Nesta fase, o projeto voltou-se para duas regiões da Bahia: a Nordeste, uma das mais

antigas, e a Paraguaçu, ponto de passagem para o interior do estado. Lagoa do Inácio é

uma comunidade formada de descendentes de portugueses.

Matinha: 12 entrevistas com falantes analfabetos ou pouco escolarizados, de ambos os

sexos, divididos em três faixas etárias. A metodologia de coleta foi feita nos moldes da

sociolinguística quantitativa (Labov, 1972, 1982). Os inquéritos foram gravados na fase

II do projeto “A língua falada no semiárido baiano”, entre 1999 e 2003. Nesta fase, o

projeto voltou-se para duas regiões da Bahia: a Nordeste, uma das mais antigas, e a

Paraguaçu, ponto de passagem para o interior do estado. Matinha é uma comunidade

formada, majoritariamente, por descendentes de africanos e fica na região de transição

entre o recôncavo e o sertão baiano.

Uma vez feito o levantamento dos dados no corpus supracitado, realizar-se-á uma

comparação dos resultados com os de outra pesquisa sobre os pronomes possessivos em

amostras de português afro-brasileiro de regiões isoladas, presente em Lucchesi e Araújo

(2009), já apresentada aqui, a fim de atestar a pertinência do contato entre línguas e, de

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forma mais abrangente, da transmissão linguística irregular, também na formação do PB

rural da Bahia.

Ademais, a fim de atestar a legitimidade da polarização sociolinguística do PB

(cf. LUCCHESI, 2001), os resultados do semiárido baiano serão comparados com os

resultados das normas popular (cf. ARAÚJO, 2009) e culta (cf. DA SILVA, 2009) do

português falado em Feira de Santana/BA.

É preciso deixar claro que seria impossível estudarmos a variação em todo o

paradigma pronominal de posse. Em lugar disso, optamos por estudar a variação no uso

dos pronomes possessivos referentes à primeira pessoa do plural (P4). Isso porque dados

de expressão de posse são difíceis de aparecer nos inquéritos do corpus com que

trabalhamos. O maior número de ocorrências aparece justamente na P4.

Utilizaremos aqui o conceito de uniformitarismo (cf. LABOV, 1972), segundo o

qual as tendências de variação atuais correspondem a processos semelhantes aos que se

verificaram no passado. Assim, se da gente, de nós são mais usuais no semiárido baiano

que nosso, isso significa que, no passado, os falantes, desde os primeiros africanos vindos

para o Brasil, utilizavam a estratégia analítica para expressar a posse, ou porque lhes era

uma forma mais simples, cujo significado era mais transparente (cf. ROMAINE, 1988, p.

28), ou mesmo para evitar a marcação de plural, utilizando um pronome invariável

(conforme dissemos aqui várias vezes, essa simplificação morfológica é típica de línguas

modificadas por efeito do contato interlinguístico).

3.2.2 Os grupos de fatores

3.2.2.1 Variável dependente

A variável dependente deste estudo é binária, com as variantes posse analítica (de

nós e da gente) e posse sintética (nosso e flexões). As formas de nós e da gente não foram

estudadas separadamente por duas razões. Primeiramente, porque queremos observar,

repetimos, se o PB utilizado no semiárido baiano usa formas analíticas para expressar a

posse, o que, possivelmente, é vestígio de uma fase de crioulização, ainda que do tipo

leve, em microssituações. Segundo, porque a forma de nós é rara no corpus. Houve

apenas três dados dessa variante, o que se justifica por um “avançado processo de

assimilação de padrões linguísticos e culturais urbanos que se acelerou na segunda metade

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do século XX que estaria eliminando as principais marcas decorrentes da formação

multlíngue do PB” (LUCCHESI e ARAÚJO, 2009, p. 502).

São exemplos da variável dependente:

(1) No dia só Deus sabe, o dia de nós (...). (HGL)

(2) Escolheu o grupo da gente e depois a gente que era mais velho do grupo que

formou o grupo. (AO)

(3) Rapai, eu acho... tem horas que é decente morar c´um nossos pai, mas tem hora

que passa mei sufoco, né? (HGL)

3.2.2.2 Variáveis independentes

Conforme dissemos ao discutir as teorias que embasam nosso estudo, segundo a

Sociolinguística, a variação linguística não é aleatória; pelo contrário, esta é motivada por

fatores linguísticos (estruturais) e extralinguísticos (socioculturais). O controle dessas

variáveis nos permite prever os contextos de ocorrência das variantes. Mais ainda, pode-

se detectar a direção da mudança linguística.

Em nosso estudo, foram consideradas doze variáveis explanatórias, das quais oito

são de natureza linguística e quatro são de natureza sociocultural. As variáveis

explanatórias seguem abaixo33:

a. Tipo de posse:

i. Material (pode ser comprada)

ii. Abstrata (valor moral, afetivo, espiritual, intelectual etc.)

iii. Inerente/inalienável

b. Referencialidade do referente

i. Genérico

ii. Indefinido (grupo grande – toda a comunidade, por exemplo)

iii. Definidio (grupo pequeno – menos de 5)

33 No próximo capítulo, explicaremos melhor cada grupo de fator, dando exemplos, e apresentaremos as

hipóteses que nos levaram a controlá-los.

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c. Distribuição da posse

i. Coletiva (o elemento possuído pertence igualmente aos

possuidores)

ii. Distributiva (Cada qual possui um, o seu)

d. Quantificação do referente possuído

i. Único

ii. Múltiplo

e. Presença de núcleo no SN com o elemento possessivo

i. Com núcleo

ii. Sem núcleo

f. Função sintática do SN com o elemento possessivo

i. Sujeito

ii. Adjunto adnominal

iii. Adjunto adverbial

iv. Predicativo do sujeito

v. Objeto direto

vi. Objeto indireto

vii. Complemento nominal

g. Paralelismo sintático-discursivo

i. Menção única

ii. Primeira menção

iii. Precedido de forma igual

iv. Precedido de forma diferente

h. Paralelismo formal

i. Próximo a “nós”

ii. Próximo a “a gente”

i. Sexo

i. Masculino

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ii. Feminino

j. Faixa etária

i. I (18 a 38 anos)

ii. II (39 a 58 anos)

iii. III (maior ou igual a 59 anos)

k. Comunidade

i. Bananal/Barra dos Negros

ii. Casinhas

iii. Piabas e arredores

iv. Matinha

v. Tapera

vi. Mato Grosso

vii. Lagoa do Inácio

l. Matriz étnica principal formadora da comunidade

i. Africana

ii. Indígena

iii. Portuguesa

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60

4 A EXPRESSÃO DE POSSE NO PORTUGUÊS RURAL DA BAHIA:

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste capítulo, apresentaremos e discutiremos os resultados obtidos nas rodadas

do pacote estatístico Goldvarb (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005), no estudo

sobre a variação no uso dos possessivos de primeira pessoa do plural (de nós, da gente e

nosso e flexões). Os resultados são discutidos à luz dos pressupostos teóricos

anteriormente apresentados e comparados com os resultados obtidos em outros trabalhos

sobre o tema.

Conforme dissemos, foram coletadas ocorrências da marcação de posse em

entrevistas com falantes de sete comunidades rurais do interior da Bahia. A matriz étnica

que majoritariamente formou cada uma dessas comunidades interessa sobremaneira a esta

pesquisa. Isso porque há comunidades majoritariamente formadas por africanos (Piabas

e arredores, Barra dos Negros/Bananal, Casinhas e Matinha), por portugueses (Lagoa do

Inácio e Mato Grosso) e uma formada majoritariamente por indígenas (Tapera), o que

facilita o mapeamento das influências africanas, objetivo deste estudo, no fenômeno sobre

o qual ora nos debruçamos.

Os falantes entrevistados são analfabetos ou semianalfabetos, o que também

contribui para esta pesquisa, na medida em que a vertente do PB com a que estamos

trabalhando é a popular. Ora, em falantes com pouca ou nenhuma escolaridade, espera-

se que haja pouca ou nenhuma influência da mídia e da escola, instituições

representativas, por excelência, da vertente culta de uma língua34.

São exemplos da variável dependente em estudo:

(1) No dia só Deus sabe, o dia de nós (...). (HGL)

(2) Escolheu o grupo da gente e depois a gente que era mais velho do grupo que

formou o grupo. (AO)

34 É claro que, ao dizer isso, estamos falando em regra geral. No que concerne especificamente às comunidades por nós estudadas, no entanto, há que se levar em consideração o encontro das normas populares e culta que se tem percebido, no Brasil – fato de que trataremos, mais adiante.

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(3) Rapai, eu acho... tem horas que é decente morar c´um nossos pai, mas tem hora

que passa mei sufoco, né? (HGL)

As variantes de nós e da gente foram analisadas juntas, como posse analítica, por

dois motivos. Primeiramente, porque queremos observar, repetimos, se o PB utilizado no

semiárido baiano usa formas analíticas para expressar a posse, o que, possivelmente, é

vestígio de uma fase de crioulização, ainda que do tipo leve, em microssituações.

Segundo, porque a forma de nós é rara no corpus. Houve apenas três dados dessa variante,

o que se justifica por um “avançado processo de assimilação de padrões linguísticos e

culturais urbanos que se acelerou na segunda metade do século XX que estaria eliminando

as principais marcas decorrentes da formação multilíngue do PB” (LUCCHESI;

ARAÚJO, 2009, p. 502).

A tabela com a distribuição geral das ocorrências das variantes no corpus

encontra-se abaixo, seguida de um gráfico para melhor visualização dos resultados

percentuais:

Tabela 9: Distribuição geral das ocorrências

De nós Da gente Nosso e flexões

03 ocorrências

1,7%

109 ocorrências

57%

79 ocorrências

41,3%

Gráfico 1: Percentuais das ocorrências das variáveis dependentes no corpus

A tabela e o gráfico ilustram que a hipótese de que, assim como atestado em

comunidades afro-brasileiras isoladas (ARAÚJO, 2005; LUCCHESI; ARAÚJO, 2009),

em comunidades rurais do semiárido baiano, existiria a preferência na utilização de posse

Distribuição geral das ocorrências

de nós da gente nosso e flexões

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analítica foi confirmada. No entanto, a diferença não é tão grande, o que pode significar

duas coisas: ou há uma variação equilibrada entre os usos das formas da gente e nosso

(de nós merece atenção exclusiva, como diremos, a seguir) ou, no corpus sobre o qual

nos debruçamos, os falantes, cientes de que, ao serem entrevistados, recebem uma pressão

social concernente ao uso linguístico (problema da avaliação), especulam ser mais

prestigioso o uso da forma padrão (nosso). Outros trabalhos, sobretudo aqueles que fazem

pesquisas sociolinguísticas etnográficas, podem ser melhores esclarecedores dessa

questão.

Além disso, o trabalho em Linguística Histórica com corpus tem, inevitavelmente,

um problema metodológico com que precisa lidar o pesquisador (pelo menos aquele que

utiliza os pressupostos da Teoria da Gramática, já aqui discutida): o fato de que, em

corpora, só aparecem evidências positivas. As evidências negativas, a partir das quais se

conheceriam as sentenças agramaticais, no tocante ao fenômeno em estudo, jamais são

conhecidas. Portanto, o fato de estarmos considerando que ocorrências com marcação de

posse cujo possessivo encontrado é de nós são importantes achados desta pesquisa se

deve justamente à possibilidade de dizer, com base no corpus do semiárido baiano, que é

gramatical, nas comunidades de fala estudadas, esse tipo de marcação possessiva, também

atestada em línguas crioulas (cf. LOPES DA SILVA, 1984; ALMADA, 1961; KIHM,

1994; FERRAZ, 1979; MINGAS, 1998; MARLYSE, 2002; GALVES; AVELAR, 2014

etc.) e em comunidades afro-brasileiras isoladas (cf. ARAÚJO, 2005; LUCCHESI;

ARAÚJO, 2009). O pequeno uso dessa forma pode ser um vestígio de uma época em que

a mesma estratégia (preposição + pronome pessoal do caso reto) concorria com as

formas sintéticas tradicionais em todas as pessoas do discurso, na fala de estrangeiros

aprendentes de português, numa situação de ASL, em contexto de contato interlinguístico

(cf. LUCCHESI; ARAÚJO, 2009).

Por isso, apesar de termos rodado os dados de de nós e de da gente como uma

mesma variável dependente, discutiremos melhor os dados da forma crioulizante de nós,

na seção 4.3.

Para o estudo da variação na marcação de posse de que trata este trabalho, foram

consideradas doze variáveis explanatórias, das quais oito são de natureza linguística (tipo

de posse, referencialidade do referente, distribuição da posse, quantificação do referente

possuído, presença de núcleo no SN com o elemento possessivo, função sintática do SN

com o elemento possessivo, paralelismo sintático-discursivo e paralelismo formal) e

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quatro são de natureza sociocultural (sexo, faixa etária, comunidade e matriz étnica

principal da comunidade). Todas as variáveis foram discutidas anteriormente.

Numa primeira rodada dos dados, houve um KNOCKOUT, o que nos obrigou a

excluir o grupo paralelismo formal, irrelevante para a análise. Na segunda rodada, o

programa estatístico Goldvarb selecionou, como relevantes ao estudo da variação, quatro

grupos de fatores (por ordem de importância): distribuição da posse, faixa etária, sexo e

referencialidade do referente. Trataremos, agora, de cada grupo separadamente.

4.1 GRUPOS DE FATORES SELECIONADOS PELO GOLDVARB

4.1.1 Distribuição da posse

Com base em estudos anteriores sobre o mesmo fenômeno, sobretudo os de

Araújo (2005) e Lucchesi e Araújo (2009) – de que já falamos aqui, algumas vezes –

postulamos o princípio de que menos concordância favoreça o uso de formas analíticas

para expressar a posse. Isso porque, ao usá-las, o falante pode estar sucumbindo à

tendência de evitar redundância na marcação de plural no sintagma nominal de que faz

parte o elemento possessivo. Daí termos controlado as variáveis quantificação do

referente possuído, de que são exemplos as frases (a) e (b), abaixo, e distribuição de

posse:

(a) É, pra arar as terrinhas da gente, que a gente não pode pagar, aí tem quatro

garrotinho. (A. de J.)

(b) Que o pref...o prefeito de nossa região sempre é bom. (A.S. de C.)

Em (a), o falante utiliza a forma analítica da gente, possessivo que tem referente

múltiplo (terrinhas), ao passo que, em (b), o informante utiliza a forma sintética nossa,

que tem referente único (prefeito). É possível que o falante esteja, ao utilizar da gente, no

exemplo (a), evitando a marcação de plural. No entanto, a despeito do que aventávamos,

a variável quantificação do referente possuído não foi selecionada pelo Goldvarb. Ainda

assim, apresentamos, abaixo, os resultados percentuais dessa variável, na medida em que

acreditamos que ela nos revela elementos interessantes para o nosso estudo.

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Tabela 10: Posse analítica com relação ao grupo ‘quantificação do referente possuído’

Fatores Posse analítica

(da gente/ de nós)/ Total Percentual

Único 86/157 54%

Múltiplo 26/34 76%

Como se pode notar, a posse analítica é mais frequente (76%) quando o referente

possuído é múltiplo. Isso nos permite afirmar que, assim como hipotetizávamos, o uso de

formas analíticas para marcação de posse está atrelado à tendência à perda da morfologia

flexional, prototípica de situações de ASL em contexto de contato interlinguístico.

Já a variável distribuição da posse, essa, sim, selecionada como relevante pelo

programa estatístico, diz respeito a saber se o elemento possuído pertence igualmente a

todos os possuidores, como no exemplo (c), ou se, em lugar disso, cada possuidor tem a

posse de um elemento, como no exemplo (d).

(c) Pelo meno, óh, não tem muito conforto, sabe? As pessoa tem que trabalha pra

viver, mas pelo meno a gente dorme o sono da gente tranquilo, não precisa tá com

medo, né? (MSFS)

(d) Não, não tenho vontade de morar em outo lugar não. Eu costumei aqui no lugar

nosso aqui, no Mato Grosso. Acho que aqui, aqui dá pra gente... dá pra viver, né?

(GGL)

Controlamos essa variável aventando a hipótese de que, em exemplos cujo

elemento possuído fosse múltiplo, o falante preferencialmente usaria a posse sintética.

Mais uma vez, tratar-se-ia, em nossa hipótese, de uma preferência de uso impulsionada

pela tendência à perda da morfologia flexional, prototípica de situações de ASL em

contexto de contato interlinguístico. Essa hipótese foi confirmada, como se pode observar

no quadro abaixo:

Tabela 11: Posse analítica com relação ao grupo ‘distribuição da posse’

Fatores

Posse analítica

(da gente/ de nós)/

Total

Percentual Peso relativo

Posse distributiva 59/75 78% .64

Posse coletiva 53/116 54% .40 Input = 0.623; Log likelihood = -101.087; Significance = 0.004

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Houve, no corpus, 78% de uso de formas analíticas em contexto de posse

distributiva, ao passo que, em 54% dos casos, usaram-se essas formas em contexto de

posse coletiva. A análise dos pesos relativos permite afirmar que a posse distributiva

favorece a regra de aplicação da variável dependente em estudo.

4.1.2 Faixa etária

Na análise estatística do Goldvarb, a variável faixa etária apresentou relevância.

Conforme a tabela 3, abaixo, as faixas I e II são as que mais favorecem a regra de

aplicação da variável dependente em estudo, isto é, o uso de formas analíticas para

expressar a posse. Por outro lado, observando-se os pesos relativos, ainda na tabela 3, a

faixa III (peso relativo .16) dá primazia ao uso da forma sintética, tradicional, para marcar

a posse.

Tabela 12: Posse analítica com relação ao grupo ‘faixa etária’

Fatores

Posse analítica

(da gente/ de nós)/

Total

Percentual Peso relativo

Faixa I

(18-38 anos) 47/75 62% .56

Faixa II

(39-58 anos) 54/81 66% .61

Faixa III

(acima de 58) 11/35 31% .16

Input = 0.623; Log likelihood = -101.087; Significance = 0.004

Os dados são reveladores de algo já há muito conhecido por quem estuda variação

linguística utilizando dados de corpus. Normalmente, falantes mais velhos são mais

conservadores e, por isso, utilizam, em maior número, as formas conservadoras, ao passo

que, no caso dos mais jovens, há preferência pelo uso das formas inovadoras. Estamos

considerando aqui, mais uma vez, a variação da gente ~ nosso e flexões. Como se pôde

depreender da tabela 3, acima, a forma inovadora da gente é mais utilizada pelos mais

novos.

No caso particular do uso da forma de nós, de que trataremos, mais amplamente,

na seção 4.3, todas as ocorrências são de falantes da faixa III, o que confirma, mais uma

vez, a nossa hipótese de que tal forma é vestígio de épocas pretéritas do PB.

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4.1.3 Sexo

Os resultados do Goldvarb para a análise da variável sexo não confirmaram a

nossa hipótese inicial, de que as mulheres seriam mais conservadoras do que os homens.

Os dados, sintetizados na tabela 4, abaixo, mostram que as mulheres usam mais as formas

analíticas do que os homens.

Tabela 13: Posse analítica com relação ao grupo ‘sexo’

Fatores

Posse analítica

(da gente/ de nós)/

Total

Percentual Peso relativo

Feminino 69/103 67% .63

Masculino 43/88 48% .34 Input = 0.623; Log likelihood = -101.087; Significance = 0.004

Trata-se de um dado importante: à luz das mudanças paradigmáticas pelas quais

as mulheres têm passado, já não cabe mais afirmar, categoricamente, que homens são

mais inovadores, na fala, por se engendrar em mais eventos sociais do que as mulheres.

Além disso, a leitura das entrevistas com os falantes do semiárido baiano também

traz luz à compreensão dos resultados do estudo da variável sexo. Nas comunidades de

fala estudadas, todas as mulheres entrevistadas trabalham, de alguma maneira, para o

sustento da família. Isso, de alguma forma, contribui para que elas tenham maior acesso

às inovações linguísticas circulantes em sua comunidade.

No entanto, nossa interpretação, sobretudo para essa variável, carece, ainda, de

maiores evidências empíricas. O pouco número de dados de expressão de posse em

entrevistas do tipo DID (diálogo entre informante e documentador) pode estar

influenciando alguns resultados. É preciso alargar o estudo, utilizando outras

comunidades com formação sócio-histórica semelhante.

4.1.4 Referencialidade do referente

Omena (1986) afirma, com base em estudos diacrônicos sobre a variação nós ~ a

gente, que a forma analítica, utilizada como pronome pessoal, pode estar perpetuando,

hoje, o traço [+ genérico] da forma nominal a gente. Segundo a autora, o pronome pessoal

a gente, de primeira pessoa do plural (semanticamente), surge a partir da gramaticalização

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da forma nominal a gente, inicialmente de terceira pessoa do singular, utilizada em

contextos genéricos.

Em concordando com Omena, decidimos controlar a variável referencialidade do

referente, a fim de percebermos se a forma possessiva da gente é utilizada, de forma

predominante, com referente genérico. Os exemplos abaixo ilustram os fatores da

variável referencialidade do referente:

(e) Aqui a gente comemora na casa da gente mehmo, mai os filho. (MJ)

(f) Não conseguiu ainda, mas a adevogada falou pra gente que o direito é nosso. (AO)

(g) Gosto de cozinhar. A vida da gente é essa mesmo. (MSCS)

No exemplo (e), o referente é indefinido, isto é, refere-se a um grupo grande de

pessoas. Nesse trecho da entrevista, o falante trata de uma comemoração que é feita na

comunidade de que faz parte. No exemplo (f), o falante se refere a um direito da família,

pelo qual briga, na justiça. Portanto, o referente a que se liga a forma possessiva nosso é

definido. Já em (g), o referente é genérico, vez que, no trecho da entrevista do qual se

retirou esse exemplo, o informante tratava do papel social da mulher. “A vida da gente”,

portanto, refere-se à vida da mulher.

Os resultados obtidos na análise dessa variável seguem abaixo:

Tabela 14: Posse analítica com relação ao grupo ‘referencialidade do referente’

Fatores

Posse analítica

(da gente/ de nós)/

Total

Percentual Peso relativo

Definido 46/86 53% .46

Genérico 41/47 87% .77

Indefinido 25/58 43% .32 Input = 0.623; Log likelihood = -101.087; Significance = 0.004

De fato, conforme aventamos, o contexto no qual mais se utilizam formas

analíticas para marcação de posse é aquele cujo referente é genérico. Nesses casos, o peso

relativo é de .77, o que permite afirmar que referente genérico favorece a regra de

aplicação da variável dependente (posse analítica).

4.1.5 Comentários a respeito dos resultados estatísticos

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Os resultados estatísticos da rodada de dados que apresentamos, há pouco, podem

assim ser sintetizados:

Tabela 15: Contextos mais favoráveis ao uso da estratégia analítica na expressão de posse referente a P4

em comunidades do semiárido baiano

Variáveis

independentes

Fator condicionador Nº de

ocorrências/

total

Frequência Peso

relativo

Hipótese

Distribuição da

posse

Posse distributiva 59/75 78% .64 Confirmada

Faixa etária Faixa II (39-58 anos) 54/81 66% .61 Confirmada

Sexo Feminino 69/103 67% .63 Negada

Referencialidade do

referente

Genérico 41/47 87% .77 Confirmada

Input = 0.623; Log likelihood = -101.087; Significance = 0.004

Destacamos, na tabela acima, os contextos que mais favorecem o uso da estratégia

analítica para marcação possessiva, nas comunidades rurais do semiárido baiano sobre as

quais se debruça esta pesquisa. Observa-se que, particularmente no que se refere às

variáveis independentes selecionadas pelo programa Goldvarb, apenas uma não condiz

com a nossa hipótese. A explicação está ainda por ser encontrada. Em virtude dos limites

deste trabalho para uma explicação detalhada das razões pelas quais as mulheres (e não

os homens, como esperávamos) usam mais a variável em estudo, apresentamos algumas

hipóteses: ora as mulheres entrevistadas se inserem, igualmente aos homens, em variadas

atividades sociais, em suas comunidades; ora os dados, porque poucos, não ilustram a

realidade desta variável.

Conforme hipotetizamos, a utilização da estratégia analítica para expressão de

posse, nas comunidades analisadas, está encaixada à tendência que línguas “afetadas” por

contato interlinguístico têm de reduzir a morfologia flexional. Isso fica claro quando se

percebe, principalmente, que, em contexto de posse distributiva (e não coletiva) e de

referente possuído múltiplo (e não único), os falantes dão primazia significativa ao uso

da estratégia analítica, ora com a forma de nós, ora com a forma da gente, em lugar do

uso da estratégia tradicional, nosso e flexões.

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69

4.2 ANÁLISE CONTRASTIVA

Um dos objetivos deste trabalho, como dissemos, na introdução, era saber se as

comunidades rurais do semiárido baiano, assim como as afro-brasileiras estudadas por

Araújo (2005) e Lucchesi e Araújo (2009), marcavam a posse com estratégia analítica,

inclusive com a forma crioulizante de nós. Como se pôde perceber, a nossa hipótese (de

que a resposta a essa pergunta era afirmativa) foi confirmada.

De fato, as comunidades do semiárido baiano por nós estudadas dão primazia à

marcação possessiva, na primeira pessoa do plural (contexto com maior número de dados

a serem rodados), com a estratégia preposição + pronome pessoal do caso reto. Os

resultados obtidos neste trabalho e nos trabalhos de Araújo e Lucchesi e Araújo são

bastante parecidos, conforme mostra a tabela a seguir.

Tabela 16: Análise contrastiva da expressão de posse no semiárido baiano e em comunidades afro-

brasileiras isoladas

De nós Da gente Nosso e flexões

Comunidades rurais:

semiárido baiano

03 ocorrências

(1,7%)

109 ocorrências

(57%)

79 ocorrências

(41,3%)

A preferência pelas formas analíticas para expressão de posse observada nos dois

grupos de comunidades acima mencionados é perceptível também na norma popular da

cidade de Feira de Santana/BA, como se percebe a seguir:

Tabela 17: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma popular de Feira

de Santana/BA

Ocorrências/total Porcentagem

Da gente 29/46 63%

Nosso (e flexões) 17/46 37%

Fonte: Araújo (2009)

Por outro lado, na norma culta de Feira de Santana/BA, Da Silva (2009) encontrou

resultados opostos aos da norma popular baiana:

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Tabela 18: Distribuição geral das ocorrências de da gente e nosso (e flexões) na norma culta de Feira de

Santana/BA

Ocorrências/total Porcentagem

Da gente 20/59 33%

Nosso (e flexões) 39/59 66%

Fonte: Da Silva (2009)

A partir da comparação dos dados aqui expostos, é possível afirmar que, de fato,

há, entre as normas popular e culta, assim como postulou Lucchesi (2001), uma

polarização sociolinguística do português do Brasil. Essa polarização aparta

[...] a fala de uma elite que sempre teve os olhos voltados para a Europa, em

busca de seus modelos culturais e linguísticos, da fala da grande população

que, no cadinho de sua pluralidade étnica, cultural e linguística, forjou os

elementos definidores da originalidade cultural e linguística do Brasil, que

tanto assombram e encantam o mundo ocidental, desautoriza todos os estudos

que apresentam uma história única para o português brasileiro (LUCCHESI;

BAXTER, 2009, p. 30).

Essa bifurcada história sociolinguística do português do Brasil é evidente nas

estratégias de marcação de posse utilizadas nas comunidades supracitadas. Ao passo que

a norma culta de Feira de Santana explicita uma maior proximidade com a norma-padrão,

justificada pelos modelos culturais e linguísticos que, historicamente, sempre foram

buscados pelas camadas mais privilegiadas econômico e intelectualmente, a norma

popular, tanto da própria cidade de Feira de Santana quanto das demais comunidades

rurais da Bahia, apresentam um comportamento que se caracteriza como vestígio de um

período em que, provavelmente, utilizaram-se formas analíticas para todas as pessoas do

discurso (cf. LUCCHESI; ARAÚJO, 2009, p. 499). A forma da gente deve ser

remanescente desses usos.

Por fim, os resultados aqui obtidos são também similares aos de pesquisas com

línguas crioulas (cf. LOPES DA SILVA, 1984; ALMADA, 1961; KIHM, 1994;

FERRAZ, 1979; MINGAS, 1998; MARLYSE, 2002; GALVES; AVELAR, 2014 etc.),

nas quais a estratégia preposição + pronome pessoal do caso reto concorre com formas

tradicionais, sintéticas, por vezes, em todas as pessoas do discurso.

Essa análise dos dados do semiárido baiano em contraste com os dados das

comunidades afro-brasileiras isoladas e de línguas crioulas é mais um argumento

plausível para defender que a estratégia analítica de marcação possessiva tem origem,

muito provavelmente, em épocas pretéritas do PB, em razão de duas questões bastante

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discutidas aqui: o contato entre línguas e a ASL (imperfeita, como não poderia deixar de

ser, vistas as condições sócio-históricas em que os estrangeiros adquiriram o PB).

4.3 DE NÓS, DA GENTE: UMA ESTRATÉGIA, DUAS HISTÓRIAS

Durante toda a apresentação dos dados, neste capítulo, deixamos clara uma atitude

metodológica nossa: separar o que era dado de da gente e o que era dado de de nós, apesar

de, na rodada, utilizarmos essas duas variantes como uma mesma variável (o que se

justifica por razões estatísticas e pelo pouco número de dados de de nós, o que ocasionaria

diversos knockouts). De fato, as duas formas analíticas utilizadas para expressar a posse

referente a P4, no semiárido baiano, têm histórias distintas.

Estudos sobre a variação no uso de pronomes possessivos referentes a P4 têm

demonstrado que o aparecimento da forma possessiva da gente deve-se à

gramaticalização da forma nominal a gente (cf. NEVES, 1993; MONTEIRO, 1994;

OMENA, 2003 etc.). Tratar-se-ia, então, segundo esses autores, de uma mudança

encaixada, nos termos de WLH (2006). Assim, a implementação da forma possessiva da

gente teria, ainda segundo esses estudos, razões internas ao sistema linguístico.

Não obstante, não devemos perder de vista que as ocorrências residuais de formas

crioulizantes como de nós e de eu, atestadas em Lucchesi e Araújo (2009) e também nesta

pesquisa, parecem anteriores à variação nosso ~ da gente, já que o uso dessa estratégia

analítica é comum na expressão de posse em línguas crioulas.

Por isso, concordamos com os trabalhos de Neves (1993), Monteiro (1994) e

Omena (2003), quando afirmam que a forma da gente, que, diferentemente da forma de

nós, aparece, inclusive, na fala culta (cf. DA SILVA, 2009), é resultado de uma mudança

encaixada à gramaticalização da forma nominal a gente. No entanto, esse argumento não

invalida a hipótese de que a estratégia preposição + pronome pessoal do caso reto seja

típica de línguas formadas em contexto de contato interlinguístico e ASL imperfeita.

Basta, para isso, notar que, em Portugal, mesmo com a gramaticalização da forma

nominal a gente como pronome pessoal, não são encontrados dados de um possessivo da

gente (cf. ARAÚJO; SILVA, 2014).

Portanto, a presença residual da expressão de nós na fala das comunidades rurais

do semiárido baiano remete para um estágio de formação dessas comunidades em que,

em função do tipo de variação e mudança que ocorre nos processos de transmissão

linguística irregular desencadeados pelo contato massivo entre línguas, predominaram as

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formas analíticas em detrimento das formas sintéticas com flexão de caso. Porém,

conforme afirmam Lucchesi e Araújo (2009, p. 511), as formas analíticas, como de eu e

de nós, estariam se perdendo, com o avanço das formas sintéticas, como meu e nosso, e,

no caso da 1ª pessoa do plural, a substituição de nós por a gente, na função de sujeito,

possibilitou a substituição de de nós por outra forma analítica: da gente.

Parece-nos claro que a grande vitalidade do SP da gente para expressar a posse no

semiárido baiano, diferentemente do que se observa na fala culta de Feira de Santana, por

exemplo, conforme expusemos, no item 4.2, pode ser explicada pelo fato de a gramática

dessas comunidades com que trabalhamos já conter a possibilidade estrutural de

expressão de posse por meio de um SP com a preposição de, já que, provavelmente, em

estágios anteriores, a forma de nós teve presença maciça (ou mesmo exclusiva).

A união, em nosso estudo, das variantes de nós e da gente se deu também para

testarmos o princípio do uniformitarismo (cf. LABOV, 1986). Ora, se é verdade que as

mesmas forças que atuam, hoje, na variação devem ter atuado, no passado, podemos

dizer, então, que, no passado, quando a estratégia analítica de marcação possessiva era

predominante no PB, o que estava em jogo era mesmo a tendência de perda de morfologia

flexional, típica de contextos de ASL imperfeita, em situação de contato interlinguístico.

Essa hipótese foi confirmada: conforme apresentamos, o controle das variáveis

distribuição da posse e quantificação do referente possuído comprova que a escolha pela

posse analítica se dá preferencialmente em contextos de posse distributiva e referente

múltiplo (isto é, em contextos em que o falante, através da marcação de posse com as

formas de nós e da gente, evitam a marcação redundante de plural, no sintagma nominal

com o elemento possessivo).

Os três dados de de nós encontrados nas comunidades do semiárido baiano

seguem abaixo:

(h) A gente saiu sem direiti. É Deus que eu tinha essa casinha aqui, aí a gente ficou

aqui. Aí eu tenho um pedacinho de terra ainda maisi eu ...Mode a gente tirar um

pinguim de mei pa comer, é longe a terra de nós. (MJO)

(i) É. O avô de... de.../ faz um banho. E é difici tomém curador fazer as coisa ne

presença de nós, num é? (JF de S)

(j) No dia só Deus sabe, o dia de nós todo. (HGL)

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O que mais nos chamou a atenção, além do próprio aparecimento da forma de nós,

no corpus, é que todas elas são de comunidades majoritariamente formadas por africanos

(Casinhas, Piabas e Matinha, respectivamente) e todas elas apareceram em entrevistas

com falantes da faixa III (acima de 59 anos). É mais uma evidência de que a estrutura

possessiva é resquício de épocas pretéritas do PB e de que as línguas africanas com que

o português teve contato, no território brasileiro, deixaram mesmo significativas

influências na língua aqui falada.

Em relação ao desaparecimento da forma de nós, nas comunidades do semiárido

baiano estudadas, podemos afirmar que ele se justifica por um “avançado processo de

assimilação de padrões linguísticos e culturais urbanos que se acelerou na segunda metade

do século XX que estaria eliminando as principais marcas decorrentes da formação

multlíngue do PB” (LUCCHESI; ARAÚJO, 2009, p. 502). Sobre isso, afirma Bortoni-

Ricardo (2011, p. 33):

Os vernáculos ficaram por muito tempo mais ou menos circunscritos às regiões

interioranas e isoladas. No século XX, porém, assistimos a dois fenômenos de

notáveis consequências linguísticas: a migração das populações de pequenas

cidades e zonas rurais para os grandes centros e a difusão dos meios de

comunicação de massa. Instala-se, então, nesses centros, um processo de

diglossia, onde atuam duas forças antagônicas: por um lado, o padrão

tradicional de redução flexional da própria língua, exacerbado pela situação de

contato entre dialetos diferentes; por outro, a pressão do prestígio da norma

culta, imposta pela ação da escola, dos meios de comunicação e do status das

classes mais favorecidas. Decorre desse processo o declínio dos vernáculos

que se transformam em dialetos urbanos de classe baixa, acentuando-se

provavelmente a estratificação vertical da língua. Ao se radicar na zona urbana,

o indivíduo egresso de zonas rurais ou rurbanas [com traços tanto rurais quanto

urbanos] percebe mais facilmente a estigmatização que recebem os itens

lexicais e expressões mais salientes de sua fala regional. Por isso tende a

substituí-las por sinônimos de cunho urbano.

Com o avanço dos processos de urbanização e industrialização, no Brasil do

século XX, devem ter desaparecido, na língua falada nas zonas rurais do país, os seus

traços mais peculiares, os quais são resquícios de processos de transmissão linguística

irregular. Podemos, assim, falar em target shift35 (cf. BAKER, 1982): os falantes , ao

longo do crescimento econômico do país, deixaram de ter como LA aquela aprendida no

seio da comunidade de fala e assimilaram padrões de comportamento linguístico de cunho

3535 “Mudança de alvo”, em português.

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mais urbanos, mais prestigiosos socialmente. O desaparecimento de de nós e assimilação

das formas da gente e nosso devem-se, muito provavelmente, a isso.

4.4 EXPRESSÃO DE POSSE NO SEMIÁRIDO BAIANO, CONTATO ENTRE

LÍNGUAS E ASL

O estágio atual da variação entre as estratégias de expressão de posse, ora com

formas analíticas, ora com formas sintéticas, parece revelar uma competição entre duas

gramáticas: uma que imita os modelos do PE, outra que é remanescente de um período

de aquisição imperfeita do português por escravos africanos. Trata-se, pois, de mais uma

evidência de que há, entre as normas popular e culta do português do Brasil, um fosso,

separando-as.

A razão pela qual se veem duas gramáticas distintas em competição no Brasil

parece verossímil, em virtude de não se atestar, no PE, uso da estratégia preposição +

pronome pessoal do caso reto para marcar relação possessiva. Essa estratégia, no entanto,

é recorrente em línguas crioulas (cf. LOPES DA SILVA, 1984; ALMADA, 1961; KIHM,

1994; FERRAZ, 1979; MINGAS, 1998; MARLYSE, 2002; GALVES; AVELAR, 2014

etc.) e também é encontrada nas regiões afro-brasileiras isoladas (cf. ARAÚJO, 2005;

LUCCHESI; ARAÚJO, 2009).

É possível, portanto, que a estratégia analítica esteja em uso por duas razões: ou

se trata de um remanescente de uma época em que os africanos, aprendendo o português

como L2 em situação emergencial, tenham feito processos de transferência e relexificação

(cf. LEFÈBVRE, 2001; SIEGEL, 2006; SCHWARTZ; SPROUSE, 1994; SPROUSE,

2006) de sua L1 para a L2 em processo de aquisição. Isso é possível, na medida em que,

segundo Romaine (1988, p. 28), a substituição de formas sintéticas por formas analíticas

é uma constante em situações de contato entre línguas, de modo que formas complexas

são decompostas em seus componentes. Segundo a autora, conforme dissemos, formas

mais complexas e de difícil decodificação (ou, em outras palavras, DLP não muito claros

para o aprendiz de L2) são substituídas por conjuntos de formas independentes mais

simples e cujo significado é mais transparente. Essa explicação é altamente confiável

quando se trata do raro uso das expressões de eu e de nós, no semiárido baiano.

No caso do uso de da gente, que acontece de forma predominante na expressão de

posse referente a P4 na norma popular, mas que também aparece, timidamente, na norma

culta, é preciso deixar clara outra questão: a gramaticalização da forma nominal a gente

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em pronome pessoal do caso reto. Graças a esse processo, e com o desaparecimento da

forma estigmatizada socialmente de nós, houve a implementação do possessivo inovador

da gente.

Assim, acreditamos que a variação atestada no uso das estratégias de marcação

possessiva revela processos típicos de dinâmicas de contato interlinguístico e, mais

amplamente, de transmissão linguística irregular. Esses usos divergentes da gramática do

PE revelam, para nós, a tendência de não realizar a morfologia flexional e também

alterações nas estruturas da LA graças às características típicas de ASL imperfeita (cf.

ROBERTS, 2007; HAWKINS; CHAN, 1997; FRANCESCHINA, 2002, 2003; SIEGEL,

2008; KLEIN; PERDUE, 1997). Estamos dizendo, com isso, que acreditamos que a

mudança linguística, em geral, ocorre na aquisição, em virtude de falhas na fixação dos

parâmetros da língua em aquisição (cf. KROCH, 2005).

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CONCLUSÃO

Esta pesquisa debruçou-se sobre a variação no uso de estratégias de expressão de

posse, em comunidades rurais do semiárido baiano. O nosso objetivo era atestar a

relevância dos processos de contato interlinguístico e, mais amplamente, transmissão

linguística irregular na reestruturação do sistema de marcação possessiva estudado.

Na introdução deste trabalho, apresentamos os problemas de pesquisa e as

hipóteses que aventávamos. Abaixo, apresentamos novamente os problemas e hipóteses,

mas, agora, seguidos da resposta a que chegamos, ao fim desta nossa pesquisa.

Quadro 5: Perguntas, hipóteses e respostas.

PERGUNTA 1: A que se deve a reestruturação do sistema de expressão de posse, já

verificada em dados do semiárido baiano, na fase inicial desta pesquisa, e nas

comunidades afro-brasileiras isoladas (cf. LUCCHESI E ARAÚJO, 2009)?

HIPÓTESE 1: O rearranjo do sistema de marcação de posse no semiárido baiano

deve-se à situação sócio-histórica de formação da variedade popular do PB e ao modo

de transmissão e aquisição linguísticas que houve.

RESPOSTA:

De fato, como aventávamos, há um rearranjo no sistema de marcação de posse

de comunidades do semiárido baiano. A leitura atenciosa da literatura sobre processos

de variação e mudança em contexto de contato entre línguas e ASL imperfeita e sobre

a formação sócio-histórica da vertente popular do PB trouxe à luz a substituição de

formas sintéticas por formas analíticas como um processo natural em casos assim.

Parece mesmo que o processo de transmissão linguística irregular é o responsável pela

reorganização do paradigma de marcação possessiva.

Essa nossa afirmação também se sustenta, em primeiro lugar, em uma análise

contrastiva com línguas pidgins e crioulas. Ora, os trabalhos aqui apresentados sobre

marcação de posse em línguas crioulas mostram usos bastante parecidos com os

atestados nas comunidades por nós estudadas.

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Seria por demais produtiva uma comparação dos resultados aqui obtidos com

outros, de outras línguas crioulas. Pelos limites desta pesquisa, preferimos deixar para

mais adiante esse trabalho. É uma pretensão nossa, futuramente, numa pesquisa de

doutorado, comparar os dados de expressão de posse do semiárido baiano com os de

línguas crioulas descritas em atlas, como o APICs. Também pretendemos fazer uma

comparação com o português dos tongas, da Ilha de São Tomé, que possui bastantes

semelhanças com o PB, tanto do ponto de vista de fenômenos verificáveis, quanto do

ponto de vista da sua formação sócio-histórica (ASL imperfeita em contexto de contato

entre línguas; serviçais aprendendo português como L2 a partir de input d L1 e de L2

aprendida de forma irregular etc.).

Em segundo lugar, porque, conforme apresentamos, a partir da análise

variacionista que fizemos, podemos observar que o uso de estratégia analítica para

expressão de posse é condicionada, em boa parte, pela tendência de evitar o plural. Isso

porque, em casos de posse distributiva e de referente múltiplo, há preferência pelo uso

das formas de nós e da gente. Por isso, postulamos que o uso dessas formas está

condicionado à perda de morfologia flexional, prototípica de línguas “afetadas” por

contato interlinguístico e ASL imperfeita.

***

PERGUNTA 2: As comunidades do semiárido baiano apresentam diferenças na

marcação de posse?

HIPÓTESE 2: Apesar de cada grupo ter sido formado, em sua sócio-história, por

uma matriz étnica diferente, não deve haver diferenças significativas, hoje, na

marcação de posse, o que pode comprovar que as variedades do PB, em fenômenos

não estigmatizados socialmente, estão se encontrando, pela força dos meios de

comunicação, da universalização do acesso ao ensino e das políticas públicas no

Brasil (cf. LUCCHESI, 2003 etc.)

RESPOSTA:

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Como imaginamos, não há grandes diferenças de uso das estratégias de

marcação de posse entre as comunidades do semiárido baiano. Em todas elas, é

predominante o uso da estratégia analítica. Entretanto, a forma que mais nos

interessava, neste estudo, de nós, apareceu, no corpus, três vezes. As três ocorrências

vieram de comunidades cuja matriz étnica formadora principal é a africana. Além disso,

todas as três apareceram na fala de baianos da faixa III (acima de 59 anos). Esses dois

elementos são importantíssimos. Primeiramente, porque, ao que tudo indica, de nós é

resquício (daí aparecer apenas na fala dos mais velhos) de uma época em que, para

todas as pessoas do discurso, utilizou-se dessa estratégia para expressar a posse.

Segundo, porque, aqui, nosso objetivo era atestar a relevância do contato do

português com as línguas africanas, na reestruturação do sistema de expressão de posse.

Não estamos, com isso, diminuindo, por exemplo, a importância das línguas indígenas.

Mas, como deixamos claro, ao longo deste trabalho, e, mais especificamente, quando

discutimos questões de demografia histórica e escolarização, as línguas africanas (pelo

peso demográfico de sua população, ao longo da história da escravidão, no Brasil)

deixaram mais influências morfossintáticas que as línguas indígenas, porque, no caso

dos autóctones, o que houve, em nosso país, foi uma história “etnocida e glotocida”,

nas palavras de Mattos e Silva (2004), já aqui citadas.

***

PERGUNTA 3: O que a comparação dos resultados do semiárido baiano com a norma

culta e com línguas crioulas acrescenta à discussão?

HIPÓTESES PARA A PERGUNTA 3:

(i) Na norma culta, deve haver apenas a forma da gente, em menor número, o que

pode comprovar a existência de uma polarização sociolinguística no PB (cf.

LCUCCHESI, 2003);

(ii) Formas como de eu, de nós, de tu etc. devem aparecer raramente, utilizadas

pelos mais velhos, o que indica que são resquícios de uma época em que a

estratégia preposição de + pronome pessoal (como se atesta em crioulos de

base lexical portuguesa) foi comum em épocas pretéritas no PB.

(iii) Línguas pidgins e crioulas (ex: cabo-verdiano) usam formas sem flexão para

expressar a posse, em virtude da perda da flexão de caso genitivo.

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RESPOSTA:

Constatamos, através de uma análise contrastiva, que, de fato, a forma da gente

aparece em maior número na norma popular. A forma de nós aparece exclusivamente

na norma popular. Esses dados nos permitem constatar que há, entre as normas do PB,

uma polarização sociolinguística (cf. LUCCHESI, 2003).

Acreditamos, por fim, que este trabalho, tendo cumprido seus objetivos,

contribuirá para um alargamento tanto da análise do fenômeno sobre o qual nos

debruçamos quanto das contribuições das línguas africanas à vertente popular do PB.

Esperamos, conforme apresentamos, na introdução, um aumento do respeito à cultura

africana. Respeitá-la significa, antes de mais, diminuir o preconceito e a intelorância que,

infelizmente, vemos, diariamente, contra esse povo e desconstruir os mitos de

inferiorização do negro e de tudo que lhe subjaz.

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REFERÊNCIAS

ALMADA, Maria Dulce de Oliveira. Cabo Verde: contribuição para o estudo do dialeto

falado no seu arquipélago. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1961.

ALMEIDA, N & CARNEIRO, Z. (Org.), 2008. Coleção amostras da língua falada no

semi-árido baiano. Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana.

ARAUJO, Silvana Silva de Farias (2004). A variação entre formas sintéticas e analíticas

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