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32 | CIÊNCIAHOJE | VOL. 50 | 299 Entre os materiais que conhecemos, há certos comportamentos que nos parecem naturais – e não imaginamos que possam ser diferentes. Por exemplo, o trilho do trem, feito de aço, se expan- de quando aquecido. Disso, é razoável inferir que qualquer outro material terá comportamento semelhante, correto? Nem sempre. Há aqueles exóticos: quando aquecidos, em vez de dilatar, encolhem. Outros, em condições específicas, em vez de conduzir eletricidade, tornam-se isolantes... Nas próximas páginas, veremos aspectos da física de fenômenos ‘malcomportados’. Mariano de Souza Ricardo Paupitz Programa de Pós-graduação em Física, Departamento de Física, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista (Rio Claro, SP) MATÉRIA MALCOMPORTADA Quando o fenômeno físico contraria a intuição

MATÉRIA - Unesp · Como consequência, o volume da amostra aumenta, caracterizando a expansão térmica negativa observada experimentalmente. Peças do quebra-cabeça Em suma, o

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Page 1: MATÉRIA - Unesp · Como consequência, o volume da amostra aumenta, caracterizando a expansão térmica negativa observada experimentalmente. Peças do quebra-cabeça Em suma, o

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Entre os materiais que conhecemos, há certos comportamentos que nos parecem naturais –

e não imaginamos que possam ser diferentes. Por exemplo, o trilho do trem, feito de aço, se expan-

de quando aquecido. Disso, é razoável inferir que qualquer outro material terá comportamento

semelhante, correto?

Nem sempre. Há aqueles exóticos: quando aquecidos, em vez de dilatar, encolhem. Outros, em

condições específi cas, em vez de conduzir eletricidade, tornam-se isolantes...

Nas próximas páginas, veremos aspectos da física de fenômenos ‘malcomportados’.

Mariano de SouzaRicardo Paupitz Programa de Pós-graduação em Física,Departamento de Física,Instituto de Geociências e Ciências Exatas,Universidade Estadual Paulista (Rio Claro, SP)

MATÉRIA MALCOMPORTADAQuando o fenômeno físico contraria a intuição

Page 2: MATÉRIA - Unesp · Como consequência, o volume da amostra aumenta, caracterizando a expansão térmica negativa observada experimentalmente. Peças do quebra-cabeça Em suma, o

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positados no fundo do oceano. Esse comportamento possivelmente levaria a uma confi guração de correntes marítimas diferente da que conhecemos hoje, afetando, certamente, fauna e fl ora planetárias.

Mau comportamento Diversos exemplos de ex-pansão térmica negativa são conhecidos na literatura. Vejamos dois deles: o silício cristalino e o quartzo. Esses materiais, apesar de apresentarem comportamento usual em temperatura ambiente, expandem-se quando são resfriados abaixo de temperaturas específi cas.

Exemplos mais complexos de expansão térmica ne-gativa podem ocorrer em sistemas eletrônicos (ver ‘Elé-trons em baixas dimensões’, em CH 234; ‘Parece metal, mas não é’, em CH 240). Neles, o comportamento de um elétron infl uencia o de outros presentes no sólido.

Os casos acima são todos exemplos de matéria ‘mal-comportada’.

Nesse ponto, duas questões merecem ser colocadas: 1) qual o mecanismo que faz com que um material se distenda à medida que a temperatura é reduzida?; 2) Por que o estudo desse comportamento anômalo é impor-tante do ponto de vista tecnológico?

Um dos modelos que explicam o fenômeno de expan-são térmica negativa em vários tipos de materiais – e, portanto, ajuda a responder à primeira pergunta acima – está representado na fi gura 1. À medida que a tempe-ratura é elevada, os modos de vibração dos átomos cen-trais (figura 1B e 1C) se tornam mais efetivos. Como consequência, o material ‘encolhe’.

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o campo do estudo das propriedades físi-cas dos materiais, inúmeros fenômenos exóticos podem ser observados. Entre eles, alguns merecem destaque: supercondu-

tividade, ou seja, a passagem de corrente elétrica sem dissipação de energia; superfl uidez, estado de um fl ui-do em que a viscosidade é nula; supersolidez, quando um sólido, a temperaturas muito baixas, exibe comportamen-tos típicos de superfl uidos... Alguns desses fenômenos são tópicos ainda em debate na literatura especializada.

A lista das propriedades que contrariam o senso co-mum é longa. Mas, aqui, discutiremos um tipo específi co de mau comportamento: a expansão térmica negativa, na qual o material com essa propriedade, quando submeti-do a baixas temperaturas, ao invés de se contrair – como ocorre com a maioria dos materiais que conhecemos –, acaba se expandindo.

O exemplo mais comum de expansão térmica negati-va está muito presente em nosso cotidiano: a solidifi cação da água. Abaixo de aproximadamente 4°C, a densidade da água é reduzida e, como consequência, ocorre uma expansão à medida que a temperatura é diminuída.

Podemos imaginar que, se o comportamento da água fosse ‘normal’, diversas coisas seriam diferentes em nos-so meio ambiente. Por exemplo, o gelo não flutuaria; portanto, não existiriam icebergs, pois estes estariam de-

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Figura 1. Esquema de estrutura composta de três tipos de átomos diferentes. Em A, a molécula estendida. Em B, deslocamento dos átomos centrais do eixo na mesma direção, por causa do aumento da temperatura. Em C, a elevação da temperatura desloca os átomos centrais em direções opostas. O comprimento total ao longo do eixo é reduzido por causa do deslocamento dos átomos centrais

Com a variação da temperatura, a amostra se expande ou se contrai e, com isso, a distância (d) entre as placas do capacitor também varia

A variação do comprimento da amostra é determinada indiretamente, por meio da medida de propriedades do capacitor

O eletrodo inferior é móvel e ligado mecanicamente, por meio de duas molas (azuis), a um componente eletrônico (capacitor) formado por placas paralelas (verdes)

As pressões empregadas são enormes. Atualmente, é possível obter em laboratório pressões na faixa de cen-tenas de milhares de bar (ou seja, cerca de 100 mil vezes a pressão atmosférica) – para se ter uma ideia, um pneu de carro calibrado tem cerca de dois bar.

Bom, mau e super Do ponto de vista tecnológi-co, o fenômeno de expansão térmica negativa é de extre-ma importância. Esses materiais poderiam ser usados, por exemplo, na confecção de partes de telescópios. Essencialmente, quando a temperatura varia, os mate-riais que compõem o telescópio dilatam, causando uma variação no foco. Um sistema construído com materiais de expansão térmica negativa, poderia compensar essa dilatação e manter o equipamento em foco.

Materiais com a chamada expansão térmica nula po-deriam ser também usados como interfaces, reduzindo o estresse entre duas superfícies quando a temperatura é aumentada ou reduzida.

Em trabalho recente, empregando a técnica de dila-tometria, um de nós (Mariano de Souza), em colaboração com pesquisadores do Instituto de Física da Universi-dade de Frankfurt (Alemanha), reportou um processo que dá origem à expansão térmica negativa. E, para isso, foram realizados experimentos de dilatometria para in-vestigar outro fenômeno malcomportado: a chamada transição de fase metal-isolante de Mott – o nome é ho-menagem ao físico inglês Nevill Mott (1905-1996), ga-nhador do Nobel de Física de 1977.

Mas, antes de detalhar o aparato experimental, va-mos descrever aqui, de modo simples e conciso, o que é essa transição de fase. Essencialmente, uma transição de fase caracteriza a mudança de um estado da matéria para outro, como a da água em estado líquido para o es-tado sólido (gelo).

Figura 2. Representação de uma célula dilatométrica usada em medidas de expansão térmica de altíssima resolução. Usando esse método experimental é possível medir variações de comprimentos da ordem de um trilionésimo de metro (10-12 m) para uma amostra com comprimento de 10 mm

Pressão e sensibilidade Para entender o com-portamento da expansão térmica dos materiais, experi-mentos ultrassensíveis têm sido realizados em labo ra-tório. Entre eles, os mais comuns são medidas da varia -ção do comprimento de uma amostra até a faixa de milé-simos de kelvin (cerca de 273°C negativos).

Nesses experimentos, as propriedades do material es-tudado podem ser controladas por meio de variações da temperatura. Além disso, a aplicação de pressão externa sobre a amostra tem se mostrado uma poderosa ferramen-ta experimental para o entendimento desses materiais.

A sensibilidade desses experimentos, que usam a téc-nica chamada dilatometria, é impressionante: a reso-lução, nesses casos, equivale a detectar uma variação de cerca de 0,018 mm na distância que sepa ra as cidades de Rio Claro (SP) e a capital do estado, se considerarmos ambas separadas por exatos 180 km (fi gura 2).

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Com a variação da temperatura, a amostra se expande ou se contrai e, com isso, a distância (

A variação do comprimento da amostra é determinada indiretamente, por meio da medida de propriedades do capacitor

O eletrodo inferior é móvel e ligado mecanicamente, por meio de duas molas (azuis), a um componente eletrônico (capacitor) formado por placas paralelas (verdes)

Figura 2. Representação de uma célula dilatométrica usada em medidas de expansão térmica de altíssima resolução. Usando esse método experimental é possível medir variações de comprimentos da ordem de um trilionésimo de metro (10para uma amostra com comprimento de 10 mm

A amostra é colocada entre o eletrodo superior (fi xo) e o inferior (móvel)

d

A B C

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Agora, para entender o estado isolante de Mott, é im-portante compreender a diferença entre um metal e um isolante. O primeiro é um bom condutor elétrico (cobre, por exemplo); o outro, mau condutor (ou isolante), como a borracha.

Há também a classe dos supercondutores, em que os elétrons formam pares – os chamados pares de Cooper, em homenagem ao norte-americano Leon Cooper, No- bel de Física de 1972 – por meio da ação sobre eles das vibrações conjuntas de todos os núcleos atômicos pre- sentes no material (figura 3). É a formação desses pa- res que permite a um supercondutor conduzir eletrici-dade sem dissipar calor.

Vale destacar que o fenômeno da expansão térmica negativa também pode ser observado, em alguns casos específicos, na transição de fase metal-supercondutor. No entanto, uma explicação completa desse fenômeno mereceria outro artigo.

Falso metal Há uma classe de materiais que, segun- do a teoria, deveria se comportar como metal, mas, nos experimentos, seu comportamento é semelhante ao de um isolante. São os chamados isolantes de Mott.

Como vimos acima, esses materiais sofrem uma tran-sição de fase: o comportamento deles passa daquele ca-racterístico de um metal ao de um isolante. Atualmente, vários laboratórios no mundo investigam o que aconte-ce com o volume do material nessa mudança de fase, quando os elétrons deixam de ser móveis. É um tema de fronteira.

Agora, depois de termos descrito o que é mudança de fase e a diferença entre bons e maus condutores, temos elementos para detalhar o experimento citado anterior-mente. Vejamos. Nele, um material (por exemplo, con-dutor elétrico molecular) tem a temperatura reduzida até sofrer uma transição de fase metal-isolante de Mott, ou seja, passar de bom condutor de eletricidade a isolan-te. Ao atingir esta última fase, os elétrons param de se mover no interior da amostra.

Mas aí surge a pergunta: o que isso tem a ver com a expansão térmica negativa?

Em termos simples, o material, mesmo com a tempe-ratura mais baixa, em vez de se contrair, expande-se. E a causa dessa expansão tem a ver com o fato de os elé-trons deixarem de se deslocar no interior do material. Considerando um modelo simplificado, a explicação é a seguinte: quando os elétrons deixam de se deslocar, sur-ge uma repulsão entre os átomos e/ou moléculas que compõem o sólido. Como consequência, o volume da amostra aumenta, caracterizando a expansão térmica negativa observada experimentalmente.

Peças do quebra-cabeça Em suma, o fenô- meno de expansão térmica negativa é um tópico de alto interesse da comunidade científica na busca do entendi-mento das propriedades da ‘matéria malcomportada’.

Várias técnicas experimentais e métodos teóricos, incluindo cálculos complexos, têm sido empregados com sucesso por diversos grupos de pesquisa no mundo – inclusive no Brasil – para uma descrição microscópica desse tipo de comportamento.

Já se vislumbram várias aplicações tecnológicas para esses materiais ‘malcomportados’. Mas, antes disso, é preciso chegar a um entendimento mais profundo das propriedades dos materiais que apresentam expansão térmica negativa.

Essa busca pode ser vista como a montagem, ao longo de décadas, de um grande quebra-cabeça cuja colocação das últimas peças ainda pode demorar a chegar.

Figura 3. Em A, um metal convencional tem elétrons livres (esferas vermelhas), responsáveis por conduzir eletricidade. Em B, em um isolante elétrico, não há elétrons livres, o que faz do material mau condutor. Em C, em um supercondutor, os elétrons se acoplam nos chamados pares de Cooper

Sugestões para leitura

BARRON, T. H. K.; WHITE, G. K. Heat capacity and thermal expansion at low temperatures. Nova York, Kluwer Academic, 1999.TAKENAKA, Koshi. ‘Negative thermal expansion materials: technological key for control of thermal expansion’. Science and Technology of Advanced Materials, v. 13, 013001, 2012.DE SOUZA, M.; BRÜHL, A.; STRACK, Ch.; WOLF, B.; SCHWEITZER, D.; LANG, M. ‘Anomalous lattice response at the Mott transition in a quasi-2D organic conductor’. Physical Review Letters, v. 99, 037003, 2007.

A

B

C