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MAURICÉLIA TEIXEIRA DE ALBUQUERQUE NEGROS EM GAROPABA - SC: EXPERIÊNCIA QUILOMBOLA NAS COMUNIDADES DA ALDEIA E DO MORRO DO FORTUNATO. Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Educação, da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso FLORIANÓPOLIS 2014

MAURICÉLIA TEIXEIRA DE ALBUQUERQUE - faed.udesc.br · DA ALDEIA E DO MORRO DO FORTUNATO. ... Encantada e Araçatuba, por volta de 1950, com destaque para as famílias negras, conforme

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  • MAURICLIA TEIXEIRA DE ALBUQUERQUE

    NEGROS EM GAROPABA - SC: EXPERINCIA QUILOMBOLA

    NAS COMUNIDADES

    DA ALDEIA E DO MORRO DO FORTUNATO.

    Dissertao apresentada ao Curso de

    Ps-Graduao em Histria do Centro

    de Cincias Humanas e Educao, da

    Universidade do Estado de Santa

    Catarina, como requisito parcial para

    obteno do grau de Mestre em

    Histria.

    Orientador: Prof. Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso

    FLORIANPOLIS

    2014

  • Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

  • A meus pais.

  • AGRADECIMENTOS

    hora de agradecer, em especial queles que se

    fizeram presentes durante esses dois anos. Primeiramente, a

    Deus, pela fora necessria ao desenvolvimento desta

    pesquisa, depois a todos que torceram por mim e que de

    alguma forma contriburam para a realizao desta conquista.

    Carinhosamente agradeo a meu esposo Daniel e meus filhos

    Guilherme e Gustavo, que no mediram esforos para me

    ajudar e incentivar. minha me e minha sogra, pela

    pacincia e acolhimento nas horas difceis. Aos meus irmos,

    que se empenharam em dar assistncia no que era necessrio.

    minha amiga Rosiane, prestativa, uma verdadeira

    irm, que me incentivou a entrar no mestrado, sempre

    preocupada em ler meus trabalhos e que esteve junto nessa

    caminhada do incio ao fim. Elaine, amiga, vizinha e

    companheira de algumas disciplinas.

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Paulino Jesus Francisco

    Cardoso, pelo carinho, pela confiana, por acreditar na

    relevncia da minha pesquisa, pela pacincia nas orientaes,

    enfim, por todas as contribuies na minha trajetria enquanto

    pesquisadora.

    Ao Ncleo de Estudos Afro Brasileiros da UDESC -

    NEAB, uma verdadeira famlia, que me incentivou e me

    possibilitou excelentes amizades. Aos professores da UDESC,

    por todas as contribuies nessa conquista.

    banca examinadora, pela disposio em participar

    desse processo e por sua valiosa contribuio, fundamental

    para meu trabalho.

    CAPES/MEC, pela bolsa concedida, que

    imensamente contribuiu na execuo da pesquisa.

    As Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro

    do Fortunato, pelo acolhimento e colaborao durante a

  • realizao da pesquisa e a todos os entrevistados. A todos, o

    meu muito obrigada.

  • O nosso lugar hoje um lugar

    multicultural, um lugar que exerce

    constante suspeio contra supostos

    universalismos ou totalidades.

    (Boaventura de Souza Santos)

  • RESUMO

    Este trabalho apresenta consideraes acerca das experincias

    dos moradores das Comunidades Remanescentes dos

    Quilombos Morro do Fortunato e Aldeia, ambos localizados no

    municpio de Garopaba - SC. As discusses giram em torno da

    constituio histrica dos grupos e dos aspectos que garantiram

    a coeso e permanncia nestes espaos. Nesse sentido,

    recorreu-se as memrias de moradores das comunidades bem

    como do entorno, buscando por meio das narrativas apresentar

    os acontecimentos que possibilitaram tal formao. Com o

    intuito de conhecer a formao dos grupos, realizou-se uma

    reconstituio das transformaes sentidas em Garopaba desde

    sua fundao at a atualidade, definindo o lugar dos afro-

    brasileiros nessa dinmica, dando visibilidade aos mesmos,

    diferente de outras abordagens j publicadas sobre o lugar. No

    decorrer do estudo, procurou-se enfatizar aspectos das

    vivncias cotidiana dos grupos, dando especial ateno as

    diferentes festividades que contribuem para manter vivos os

    laos com as experincias vividas. Os estudos que abrangem a

    problemtica afro-brasileira encontram lugar de destaque na

    contemporaneidade. Assim, para dar sustentao terica

    pesquisa, trabalhou-se com as categorias: Identidade /

    Identificao, Memria e Experincias. A construo

    identitria desses grupos no est naturalmente dada, ela

    construda por meio de escolhas e confrontos, ou seja, na

    atualidade existe uma constante luta por visibilidade e

    reconhecimento.

    Palavras-Chave: Garopaba. Comunidade Quilombola.

    Experincia. Identidade. Memria.

  • ABSTRACT

    This work presents observations about the experiences of the

    residents of the Remnants Communities of the Quilombos

    Morro do Fortunato and Aldeia, both located in the

    municipality of Garopaba - SC. Discussions involve the

    historical constitution of the groups and aspects that ensured

    cohesion and permanence in these spaces. In this sense, we

    heard the memories of residents of the surrounding

    communities, as well as, looking through these narratives to

    present the events that made possible such formation. In order

    to know the formation groups, there was a reconstitution of the

    transformations experienced in Garopaba since its founding to

    the present, identifying the place of the african-brazilians in

    this dynamic, giving visibility to them, unlike other approaches

    that have been published about this place. During the study, we

    tried to emphasize aspects of the day by day experiences of the

    groups, giving special attention to the different festivities that

    contribute to keep alive the ties with the known experiences.

    These studies cover african-brazilian issues prominent in the

    contemporary times. Thus, to give theoretical support to the

    research, we worked with the following categories: Identity /

    Identification, Memory and Experiences. The identitary

    construction of these groups is not naturally given, it is

    constructed through choices and clashes, i.e., today there is a

    constant struggle for visibility and recognition.

    Keywords: Garopaba. Quilombo Community. Experience.

    Identity. Memory.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 01 - Localizao das Comunidades Quilombolas

    no Municpio de Garopaba...........................

    16

    Figura 02 - Retrato do Senhor Maurcio dos Passos........ 37

    Figura 03 - Enseada de Garopaba - SC............................ 44

    Figura 04 - Mapa dos limites territoriais de Garopaba -

    SC.................................................................

    47

    Figura 05 - Regio da Praia de Garopaba - SC no ano de

    1925...............................................................

    48

    Figura 06 - Garopaba - SC no final da dcada de 1960... 49

    Figura 07 - Lano de peixe na praia de Garopaba, na

    dcada de 1970..............................................

    58

    Figura 08 - Mapa das Praias Garopaba - SC.................... 61

    Figura 09 - Praia da Gamboa - Garopaba - SC................ 62

    Figura 10 - Praia do Siri - Garopaba - SC...................... 64

    Figura 11 - Cachoeira do Siri - Garopaba - SC.............. 65

    Figura 12 - Praia do Centro de Garopaba - SC................ 66

    Figura 13 - Praia da Vigia ou Preguia - Garopaba -SC.. 68

    Figura 14 - Praia da Silveira - Garopaba - SC.................. 69

    Figura 15 - Praia da Ferrugem - Garopaba - SC.............. 69

    Figura 16 - Oficina ltica no Sambaqui de Garopaba -

    SC, na Praia da Barra....................................

    71

    Figura 17 - Praia do Ouvidor - Garopaba - SC................ 72

    Figura 18 - Baleia Franca na Praia do Centro de

    Garopaba.......................................................

    73

    Figura 19 - Retrato do Senhor Maurlio Machado........... 80

    Figura 20 - Retrato da Senhora Adelaide Maria Eva....... 102

    Figura 21- Mapa das atuais comunidades de Aldeia,

    Campo D Una, Limpa, Encantada e

    Araatuba, por volta de 1950, com destaque

    para as famlias negras, conforme

    informaes do Senhor Laudelino Antnio

  • Teixeira (79 anos)......................................... 107

    Figura 22 - Mapa de Garopaba - SC indicando a

    localizao do Morro do Fortunato...............

    121

    Figura 23 - Retrato do Senhor Fortunato Machado.......... 123

    Figura 24 - rvore genealgica da Famlia Fortunato

    Justino Machado...........................................

    125

    Figura 25 - Boi de Mamo apresentado em Garopaba -

    SC.................................................................

    135

    Figura 26 - Mapa do Municpio de Imbituba - SC........... 138

    Figura 27 - Grupo de Samba de Roda da Comunidade

    da Aldeia........................................................

    146

    Figura 28 - Banda de pagode /Coloninha - Florianpolis

    -SC. na Festa da Tainha.................................

    153

    Figura 29 - Tainhas assadas na Festa da Tainha-Aldeia.. 154

    Figura 30 - Jantar da Festa da Tainha Aldeia................. 154

    Figura 31 - Mulheres trabalhando na produo da

    comida na Festa da Tainha - Aldeia..............

    155

    Figura 32 - Carro Alegrico do Bloco Unidos por

    Garopaba - Carnaval / 2013..........................

    160

    Figura 33 - Ensaio do Bloco Unidos por Garopaba -

    Carnaval- 2013..............................................

    161

    Figura 34 - Desfile do bloco Unidos por Garopaba -

    Carnaval - 2013.............................................

    164

    Figura 35 - Senhora Jordina Rita Machado, com a

    imagem de So Loureno.............................

    168

  • SUMRIO

    INTRODUO................................................. 13

    1 GAROPABA, DE REDUTO PESQUEIRO A CIDADE TURSTICA......................................

    35

    2 A PRESENA DOS AFRICANOS E

    AFRODESCENDENTES EM GAROPABA

    E SEUS ARREDORES.....................................

    75

    3 CONSTITUIO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DE GAROPABA - SC........

    97

    3.1 Constituio da Comunidade Quilombola da

    Aldeia.................................................................

    101

    3.2 Constituio da Comunidade Quilombola do

    Morro do Fortunato.............................................

    115

    4 SOCIABILIDADE E AFIRMAO

    IDENTITRIA NAS FESTIVIDADES DOS

    QUILOMBOS DE GAROPABA.....................

    129

    4.1 Aldeia e suas festividades.................................. 130

    4.2 Festividades da Comunidade Quilombola do

    Morro do Fortunato.............................................

    156

    CONSIDERAES FINAIS........................... 171

    REFERNCIAS................................................ 177

    FONTES............................................................. 187

  • 13

    INTRODUO

    H momentos na vida em que precisamos tomar

    determinadas decises em um breve perodo de tempo. Assim

    ocorreu quando precisei definir uma temtica para escrever o

    trabalho de concluso do curso de Histria no incio de 2006,

    na Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Naquele

    momento fiz um release de todos os temas que me

    interessavam e procurei distinguir um que realmente fosse

    importante para mim e tambm para os alunos do Ensino

    Mdio da Escola de Educao Bsica Professor Jos

    Rodrigues Lopes, no Centro de Garopaba e da Escola de

    Educao Bsica Maria Corra Saad, no bairro Campo D

    Una, Sul do referido municpio, escolas nas quais lecionava na

    poca.

    Certo dia, na sala dos professores da escola do Centro,

    houve uma discusso sobre um assunto at ento pouco

    comentado: os alunos oriundos da Comunidade Quilombola do

    Morro do Fortunato. Falava-se sobre a mudana de postura de

    tais alunos aps o processo de reconhecimento na condio de

    quilombolas, comentando-se, inclusive que alguns deles no se

    sentiam vontade para falar do assunto e que quando

    questionados davam respostas evasivas.

    Foi naquele momento que percebi um forte elo entre

    determinado grupos de alunos das duas escolas, pois, tanto no

    Centro, quanto no Campo DUna, havia descendentes de

    quilombolas. Ento, decidi conhecer melhor as comunidades

    que por muito tempo foram invisibilizadas pela sociedade

    local e desvelar mais uma cortina desse emaranhado de

    experincias e sentimentos que por tanto tempo pareceram

    adormecidos aos olhos pouco atentos das pessoas comuns.

    Desta forma, entende-se que o desenvolvimento deste

    estudo encontra sua relevncia na urgncia que a questo dos

    afro-brasileiros requer, j que somos um pas multicultural.

  • 14

    Diversos estudos vm contribuindo para ampliar o

    entendimento acerca da temtica bem como a compreenso

    das experincias de nossos pares. Nesse vis, trabalhamos com

    a noo de afrodescendentes ou populaes de origem

    africana, no no sentido de uma raa1, mas enquanto grupos

    populacionais com perspectivas relacionadas visibilidade de

    suas memrias, experincias e histrias2. Segundo Paulino de

    Jesus Francisco Cardoso:

    Para fugir do anacronismo e do racialismo,

    optamos por utilizar as categorias de populao

    de origem africana e afrodescendentes como

    ferramentas de natureza descritiva para a

    apreenso de realidades pretritas. Elas nos

    permitem nos referir totalidade dos africanos

    e seus descendentes sem a pretenso de ser

    expresso de identidade tnica ou

    uniformidade cultural. Elas nos permitem

    discutir sobre fenmenos de longa durao que

    afetaram e afetam africanos e seus

    descendentes no pas. A afrodescendncia, ao

    contrrio de negritude, no remete a uma

    identidade de natureza racialista e totalitria.

    Ela enfatiza a pluralidade de experincias da

    dispora africana no tempo e no espao. (2004,

    p.173).

    1 Sabemos que o conceito biolgico de raa est cientificamente

    ultrapassado, porm, h um uso social para o termo raa que tem sido

    aplicado para justificar prticas discriminatrias e racistas. (REZENDE, p.

    161, 2004). 2 A justificativa para o uso da expresso negros em Garopaba, presente no

    ttulo, se faz em funo da palavra estar arraigada no dilogo das

    comunidades. Assim, embora o termo seja visto como preconceituoso, seu

    uso tem maior aceitao nas relaes entre os Quilombolas e demais

    moradores de Garopaba - SC e, em hiptese nenhuma, utilizado na

    perspectiva de categoria explicativa.

  • 15

    Portanto, afirmar a identidade afro-brasileira uma das

    formas de valorizar nossa cultura. No que se refere s questes

    tnicas, importante ressaltar que se existir a oportunidade das

    pessoas se sensibilizarem e mudarem suas prticas em prol dos

    desafios da luta antirracista no cenrio social, j ser uma

    conquista, que no se encerra em si, mas, em um caminho a

    trilhar, fundamental para a conquista histrica do

    reconhecimento e a formao da identidade do povo afro-

    brasileiro.

    Assinala-se desta maneira uma discusso em torno do

    reconhecimento dos remanescentes de quilombo que

    conquistaram uma dimenso de direitos e cidadania. Nessa

    discusso, a busca do desenvolvimento social enfatiza a luta

    pela liberdade, cidadania e direitos, possibilitando a construo

    de uma identidade social especfica. Da mesma maneira,

    prope-se a construo e manuteno da memria coletiva, da

    terra e do espao cultural construdo por afro-brasileiros e seus

    descendentes.

    No Municpio de Garopaba, Sul de Santa Catarina,

    reconhecido por moradores e autoridades como reduto

    tipicamente aoriano, existem duas comunidades formadas,

    quase que em suas totalidades, por afro-brasileiros - Morro do

    Fortunato, na localidade de Macacu, ao Norte, e Aldeia, no

    extremo Sul do municpio, na localidade de Campo DUna,

    conforme se observa na figura 01.

    Constitudas por descendentes de africanos cativos, as

    Comunidades do Morro do Fortunato e da Aldeia ainda

    praticam alguns dos hbitos e costumes dos antepassados,

    reconstitudos ao longo do tempo por fora da tradio, como a

    produo familiar de gneros alimentcios, utilizando

    utenslios muitas vezes improvisados, mas que, juntamente

    com o trabalho assalariado, garantem a sobrevivncia dos

    grupos e a manuteno da cultura herdada de seus

    antepassados.

  • 16

    Figura 01: Localizao das Comunidades Quilombolas no Municpio

    de Garopaba.

    Fonte: www.gsurf.com.br.

    Edio: Da prpria autora.

    Nessa perspectiva, a pesquisa que resultou nesse

    trabalho perseguiu a seguinte indagao: que experincias

    marcaram a vida dos quilombolas de Garopaba entre os anos

    de 1970, com a chegada do turismo, at 2008, momento em

    que estas comunidades tomam conscincia de seus direitos e

    comeam a lutar pelo reconhecimento de suas terras?

    Ao estudarmos as Comunidades Remanescentes de

    Quilombos de Garopaba, tivemos o objetivo geral de

    http://www.gsurf.com.br/
  • 17

    compreender as formas de interao entre estes grupos e as

    comunidades do entorno e, principalmente, a sua organizao

    interna. Alm disso, perseguimos os seguintes objetivos

    especficos: identificar as motivaes que levaram os grupos a

    se manterem coesos; verificar a densidade do cotidiano das

    comunidades; narrar situaes relativas s festividades, no

    perodo em questo; identificar as aes coletivas de afirmao

    cultural e relacionar o interesse pelo reconhecimento como

    Comunidades Remanescentes de Quilombo com a segurana e

    manuteno das terras em que vivem. Assim, encontra-se a

    viso de uma histria construda a partir das lutas sociais e da

    interao entre culturas.

    Estudos referentes problemtica afro-brasileira

    encontram lugar de destaque na contemporaneidade, pois os

    afro-brasileiros fazem-se presentes em diferentes espaos com

    seus costumes, sua religiosidade e seu trabalho,

    desempenhando, desde os primeiros momentos da

    colonizao, papel fundamental na formao tnica, cultural e

    econmica brasileira.

    Articular historicamente o passado no significa

    conhec-lo como de fato o foi, mas sim apropriar-se de

    determinados registros, representaes, dando sentido e

    racionalidade condizentes com as questes que se queiram

    deixar registradas e ver debatidas. Segundo Ren Rmond

    (2006, p. 208), O historiador do tempo presente sabe o quanto

    sua subjetividade frgil, que seu papel no o de uma chapa

    fotogrfica que se contenta em observar fatos, ele contribui

    para constru-los.

    Este estudo, focado nas experincias das Comunidades

    Quilombolas de Garopaba, parte da perspectiva da Histria do

    Tempo Presente. Tal opo terica deve-se ao esforo

    empreendido na busca da compreenso das transformaes em

    seu percurso, em seu prprio tempo de durao, ao contrrio

    de outras abordagens histricas, que se detm sobre as

    transformaes, focando somente o que foi transformado.

  • 18

    Realizar este trabalho no foi tarefa fcil, pois

    demandou uma pesquisa ampla marcada por estudos

    disponveis e busca de novas fontes, ou seja, a

    interdisciplinaridade permitiu ir alm da escassez de fontes

    escritas at rdua tarefa de obter testemunhos da tradio

    oral. Como fundamentao terica, esta pesquisa apia-se em

    literaturas que deem conta do processo de escravido e da ps-

    abolio no Brasil; em discusses tericas sobre identidade,

    preconceito, tradio, costume, multiculturalismo, memria e

    quilombo. Assim, as discusses baseiam-se nas obras de

    Janaina Amado Ferreira, Eclia Bosi, Fernando Henrique

    Cardoso, Paulino de Jesus Francisco Cardoso, Clifford Geertz,

    Stuart Hall, Ilka Boaventura Leite, Luclia de Almeida Neves,

    Homi Bhabha, dentre outras obras que possibilitaram pensar

    de que modo as populaes afro-brasileiras criaram estratgias

    e tticas, articulando suas experincias de vida e sobrevivncia

    ao delineamento de sua prpria histria.

    Para o levantamento de documentao histrica foram

    realizadas pesquisas documentais em arquivos pblicos e

    privados, nos Cartrios de Registros de Garopaba3, Imbituba

    4

    3 Em relao aos documentos do Cartrio de Registro Civil de Garopaba -

    SC foram consultados os seguintes documentos: Certido de Casamento de

    Antnio Manoel Lemos (falecido) e Maria Eugnia Pereira, moradores da

    Comunidade Quilombola da Aldeia; Certido de Casamento de Fortunato

    Justino Machado e Lusa Cristina de Jesus; Certido de bito de Fortunato

    Justino Machado; e as Certides de Nascimento de trs filhos de Fortunato

    Justino Machado e Lusa Cristina de Jesus - Daniel, Manoel e Loureno

    (nas certides no consta o sobrenome). Segundo informaes de alguns

    moradores da Comunidade do Morro do Fortunato, o Senhor Fortunato

    Justino Machado foi o fundador do grupo, o patriarca da Comunidade,

    sendo que o nome da Comunidade Morro do Fortunato deriva do seu

    nome. 4 No Cartrio de Registro Civil de Imbituba - SC obteve-se a Certido de

    bito do Senhor Antnio Manoel Lemos, morador da Comunidade

    Quilombola da Aldeia. Segundo Manoel Matias Pereira, 35 anos, lder e

    professor da Comunidade da Aldeia, o tio, Antnio Manoel Lemos,

  • 19

    e Palhoa5. Tambm foram averiguados acervos particulares

    dos membros das Comunidades Quilombolas da Aldeia6 e do

    Morro Fortunato7, na inteno de obter documentos como:

    certides de nascimento, casamentos e bitos, fotos cartas

    escrituras de terras, entre outros. Uma das principais fontes de

    pesquisa deste trabalho consiste nas entrevistas com moradores

    e lideranas das Comunidades Quilombolas.

    Os documentos do Cartrio de Registro Civil, como

    certides de terra, de nascimento e de casamento, foram

    analisadas com o objetivo de entender o processo de formao

    territorial das Comunidades Quilombolas de Garopaba e

    perceber as sutilezas do reconhecimento e o balizamento

    dessas fronteiras. Outros aspectos pesquisados e discutidos conhecido como Antnio Ventura, foi um dos moradores que muito

    contribuiu com o levantamento histrico da Comunidade. 5 No Cartrio de Registro Civil de Palhoa - SC encontrou-se a Certido das

    terras da Comunidade do Morro do Fortunato, as quais medem 208.000 m,

    pertencentes a Fortunato Justino Machado, que em seu falecimento foram

    deixadas como herana para seus filhos: Loureno Fortunato Machado, Joo

    Fortunato Machado, Manoel Fortunato Machado, Alice Luiza Machado,

    Anastcio Fortunato Machado, Daniel Fortunato Machado e Incio

    Fortunato Machado. 6 Em uma das visitas realizadas residncia da Senhora Adelaide Maria

    Eva, 82 anos, moradora da Comunidade da Aldeia, obteve-se a certido de

    seu casamento com o Senhor Argentino Timtio. Vale salientar que a

    Senhora Adelaide Maria Eva a atual matriarca da Comunidade e lder

    espiritual do grupo. 7 O Presidente da Associao Comunitria da Comunidade Quilombola do

    Morro do Fortunato, Maurlio Machado, nos forneceu os seguintes

    documentos: Ata da Assembleia da Fundao e eleio da diretoria da

    comunidade; Ata da reunio para alterao do Estatuto da Associao da

    Comunidade Quilombola; Documento de Alterao Estaturia N 001/2009,

    registrada no Cartrio de Registro Civil de Garopaba; Ofcio recebido do

    Prefeito de Garopaba, Lus Carlos da Silva, no qual declara de utilidade

    pblica a Associao de Moradores do Morro do Fortunato e d outras

    providncias; Certido de Auto Reconhecimento da Fundao Cultural

    Palmares; Anlise tcnica de pedido de concesso de subvenes sociais,

    dentre outros documentos de regime interno.

  • 20

    foram s relaes sociais internas e externas dessas

    comunidades. Com a pesquisa de campo, procuramos tambm

    identificar a forma que os grupos vivem atualmente, seu modo

    de organizao poltica e o lugar em que trabalham. Conhecer

    suas redes matrimoniais, de amizade e compadrio, como est

    distribudo s casas, suas festividades, seus lugares sagrados,

    narrativas sobre a escravido, entre tantos outros elementos,

    nos permitiram maior visibilidade histrica dos grupos.

    A partir de entrevistas, documentao dos Cartrios

    Civis e documentos particulares das Comunidades

    Quilombolas, buscamos conhecer a sua constituio histrica e

    social, entender a trajetria histrica dos seus familiares e

    construir a rvore genealgica dos antepassados aos atuais

    moradores do Morro do Fortunato, visto que este grupo tem

    muitas ligaes de parentesco diferentes da Aldeia, que alm

    de parentes, agrega muitos compadres e amigos.

    Para conhecer as vivncias dos moradores das

    Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro do

    Fortunato, a Histria Oral foi o procedimento, o caminho ou

    fio condutor das tramas da memria, das experincias de vida

    em um espao no qual a oralidade predomina. Segundo Luclia

    de Almeida Neves Delgado (2006, p. 52), A histria Oral

    possibilita o afloramento de mltiplas verses da histria e,

    portanto, potencializa o registro de diferentes testemunhos

    sobre o passado. Nesse sentido, os testemunhos e os relatos

    orais tornaram-se as fontes principais a serem trabalhadas.

    As entrevistas foram realizadas com moradores e

    lideranas das Comunidades Quilombolas do Morro do

    Fortunato8, Aldeia

    9 e de outras localidades do municpio

    10. Os

    8 Os entrevistados da Comunidade do Morro do Fortunato foram: Jordina

    Rita Machado; Fortunato Joo Machado; Maurlio Machado e Mercedes

    Machado. 9 Os entrevistados da Comunidade da Aldeia foram: Abrao Joo de Souza,

    Manoel Matias Pereira; Manoel Antnio Lemos; Claudemir Antnio Lemos

    e Edinete Lemos.

  • 21

    nomes dos entrevistados que aparecem no texto so

    verdadeiros j que todos se mostraram seguros quanto

    divulgao de suas ideias, aes e sentimentos em relao s

    vivncias das comunidades nas quais pertencem e quando

    informados sobre a possvel utilizao de suas falas em

    pesquisa acadmica, mostraram-se inteiramente favorveis.

    Em relao s entrevistas, organizamos um roteiro com

    a inteno de conhecer e entender as vozes dos moradores e

    lideranas das Comunidades Quilombolas de Garopaba: o que

    sabem sobre o processo do reconhecimento da Comunidade

    como Quilombola; como se sentem como moradores de uma

    Comunidade Quilombola; o que sabem sobre a constituio do

    grupo (de onde vieram, porque e como pararam nesses locais,

    se fixaram); de que forma foram criados e como sobrevivem

    hoje: economia, educao, sade, religio e lazer; seus medos,

    crenas, saudades, frustraes, alegrias, verdades e mentiras;

    os costumes dos africanos que foram mantidos na Comunidade

    Quilombola; os motivos que levaram os moradores do

    Fortunato a se distanciarem das demais comunidades; e quais

    festividades fazem parte da vida das Comunidades.

    De acordo com Luclia de Almeida Neves Delgado

    (2006, p. 30-31), trabalhar com fontes orais exige que o

    historiador possua determinadas habilidades, j que so

    inmeros e de diferentes naturezas os desafios que as

    acompanham. Primeiramente, vlido destacar que as fontes

    orais esto repletas de emoes recentes que podem levar o

    pesquisador a se tornar refm do depoimento recolhido em

    detrimento de sua capacidade analtica. Vale salientar que, em

    se tratando de fontes orais, a presena do pesquisador

    indispensvel. ele quem deve comandar o processo, analisar

    e interpretar as informaes.

    10

    E os Moradores do Centro da cidade, Maurcio dos Passos, Manfredo

    Hbner e Jair Joo Ribeiro. Os moradores da Comunidade do Campo

    DUna: Laudelino Antnio Teixeira, Santina da Silveira Teixeira, Sandra

    Marques Gonalves, Joo Marques e Leonrcio Marques.

  • 22

    No que concerne s entrevistas, consideramos, assim

    como Knia de Souza Rios (2000, p. 25), que o indivduo

    aquilo que sua memria comporta guardar seja como

    lembrana do vivido ou como desejo sobre o no vivido. A

    memria mostra a organizao do passado em relao ao

    presente. Ou seja, no um passado preservado, e sim

    continuamente reconstrudo, tendo como base o presente. Na

    verdade, no existe memria isenta, pois a memria uma

    construo hodierna sobre o passado que constantemente

    revitalizada no Tempo Presente.

    A memria , pois, imprescindvel na medida em que

    esclarece o vnculo entre a sucesso de geraes e o tempo

    histrico que as acompanha. Sem a memria no possvel se

    situar, pois se perde o elo afetivo com o meio em que se est

    inserido, o que impede o reconhecimento de si prprio como

    cidado de direitos e deveres e sujeito da histria. Segundo

    Ecla Bosi (2004):

    Aos dados imediatos e presentes dos nossos

    sentidos ns misturamos milhares de

    pormenores da nossa experincia passada,

    quase sempre essas lembranas deslocam

    nossas percepes reais, das quais retemos

    ento algumas indicaes, meros signos

    destinados a evocar antigas Figuras. [...]

    comea-se atribuir memria uma funo

    decisiva do processo psicolgico total: a

    memria permite a relao do corpo presente

    com o passado e, ao mesmo tempo, interfere

    no processo atual das representaes. Pela

    memria, o passado no s vem tona das

    guas presentes, misturando-se com as

    percepes imediatas, como tambm empurra,

    desloca estas ltimas, [...] A memria

    aparece como fora subjetiva ao mesmo tempo

    profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e

    invasora (BOSI, 2004, p. 46 - 47).

  • 23

    Outro aspecto importante o fato de que, quando

    fazemos uso de fontes orais, estamos lidando com pessoas e o

    resultado do material estar ligado ao momento da narrativa,

    como tambm relao do entrevistado com o entrevistador,

    ou seja, tem-se aqui uma caracterstica bsica das condies de

    produo da Histria do Tempo Presente, j que a memria

    selecionada a partir do momento vivido. Um dos elementos

    que compem a narrativa gestado no momento mesmo da

    entrevista, pois parte de uma relao entre condies de

    recepo e emisso neste momento de dilogo (RIOS, 2000,

    p. 12).

    O resultado da entrevista no est gravado numa

    memria remetida somente ao passado, nem tampouco apenas

    ao presente. A memria utilizada para recompor lembranas

    a partir desse entrelaamento. O que se lembra o que se vive

    ou o que se queria viver. Existe uma emoo, ou at mesmo

    uma exaltao do vivido, talvez por se tratar de um sonho ou

    de um fato que ficou no passado e no pode ser remetido a

    julgamentos do presente, mas apenas lembrado e enaltecido.

    Afinal, os sonhos so reais na sua potncia de ser sonho. O

    mais importante perscrutar o que esses sonhos dizem do

    indivduo e seu grupo na sua dimenso cultural, que tambm

    histrica (RIOS, 2000, p. 21).

    No se deve afirmar que o contedo de determinado

    depoimento no real. O que mais importa no saber se

    algo aconteceu ou no, mas perceber por que est sendo

    narrado de tal maneira, como tambm perceber a relao com

    que os elementos contidos na descrio iro ajudar na

    interpretao da complexidade social em que est inserida. O

    trabalho de interpretao das fontes orais possibilita a abertura

    de novas perspectivas de investigao, pois, alm de criar

    condies para repensar a construo do conhecimento, agrega

    elementos subjacentes ao processo, como: valores em disputa,

    padres de comportamento, culturas polticas, dentre outros,

  • 24

    fazendo vir tona as experincias vivenciadas e os seus

    significados. Knia de Souza Rios (2000) afirma:

    Ns, historiadores da oralidade, no devemos

    encarar os depoimentos como uma rede de

    informao pronta para ser analisada e definida

    pelos pressupostos da filosofia. Entender a

    situao de enunciao em que o depoimento

    que se constri condio imprescindvel para

    estabelecermos dilogos com nossos

    depoentes. Quando o entrevistado fala sobre o

    tema solicitado, ele no est simplesmente

    informando sobre acontecimentos que nos

    interessam, mas constri o fato mediante a sua

    experincia. Portanto, apresenta-nos sua

    prpria interpretao. no entendimento dessa

    dada interpretao que nos encontramos com o

    sujeito. Deparamo-nos, assim, com a maior

    contribuio da histria oral, ou seja, o

    horizonte de possibilidades. O vislumbramento

    do mltiplo, do diverso em face de nossas

    tentativas de compreenso do homem nas suas

    mais variadas relaes com o mundo (RIOS,

    2000, p. l5).

    Por outro lado, no podemos dissociar a histria oral da

    teoria, pois estaramos concebendo qualquer tipo de histria,

    um conjunto de tcnicas incapazes de refletir sobre si mesmas.

    Cabe ao historiador analisar as diversidades e complexidades

    de cada contexto. Nesse vis, Jorge Eduardo A. Lozano (2001,

    p.17) afirma: Fazer histria oral significa, portanto, produzir

    conhecimentos histricos, cientficos, e no simplesmente

    fazer um relato ordenado da vida e da experincia dos outros.

    Assim, a pesquisa de campo, embasada na metodologia

    da Histria Oral, segue o exemplo daquelas realizadas por

    historiadores, antroplogos e socilogos, abrangendo a

    observao, a participao e o envolvimento direto nos

    processos e acontecimentos histricos apresentados para

  • 25

    reflexo crtica acerca da Histria do Tempo Presente. A

    valorizao de uma histria construda atravs da oralidade

    permitiu que estudiosos repensassem as relaes entre passado

    e presente e definissem para a Histria do Tempo Presente o

    estudo dos usos do passado. Segundo Luclia de Almeida

    Neves Delgado (2006, p. 52):

    A Histria Oral refere-se, especificamente, ao

    Tempo Presente, portanto histria

    contempornea. Nesse sentido, pode no

    mximo recolher registros, informaes e

    verses sobre o acontecido em um espao

    limitado de tempo, no comportando

    referncias a um passado mais longnquo, a

    no ser como notcias ou registros de tradies

    que foram transmitidas de gerao em gerao.

    (DELGADO, 2006, p. 52).

    Para desenvolver a pesquisa que tem por tema as

    experincias quilombolas nas comunidades, Aldeia e Morro do

    Fortunato, fez-se necessrio recorrer a determinadas categorias

    histricas, destacando-se, memria, identidade/identificao e

    experincia. Esse destaque deve-se ao fato de que importante

    se ter clareza quanto ao tipo de pesquisa que se prope, ou

    seja, considerar que a pesquisa est focada na perspectiva

    historiogrfica do Tempo Presente.

    Diante de tal constatao enfatiza-se a urgncia de

    considerar as transformaes constantes de sentido e de

    significados, em torno das memrias, das identidades, das

    sociabilidades, das representaes e das subjetividades no

    contexto histrico. Nesse sentido, Lusa Passerini alerta que:

    Todas essas expresses fazem parte de uma

    mesma constelao que preside ao esforo

    necessrio para construir um presente e

    constitui os eixos de uma subjetividade

  • 26

    histrica cambiante, compartilhada, ainda que

    de maneiras diferentes, pelos historiadores e os

    contemporneos. (PASSERINI. 2006. p, 212).

    Em se tratando de vivncias quilombolas, o dilogo

    entre as fontes passa a contemplar experincias e pontos de

    vista distintos, contraditrios, ambguos, que tendem a se

    completar em mutuamente, pois argumentam coletivamente

    diante de uma problemtica comum - a luta pela afirmao de

    uma identidade. No se intenciona a tarefa impossvel de

    estabelecer a verdade dos fatos, mas sim, mostrar o que se

    pode registrar e analisar a partir do lugar em que o sujeito se

    situa como agente histrico e historiador.

    A categoria memria constitui-se como elemento de

    significativa importncia para a reconstituio do processo

    histrico desses remanescentes de quilombos; o sujeito que

    lembra, escreve Maurice Halbwachs (1990, p. 80). A

    memria tem vrias funes: toda nossa conscincia do

    passado est fundada na memria; atravs das lembranas

    recuperamos acontecimentos anteriores, distinguimos o ontem

    de hoje e confirmamos que j vivemos um passado. Segundo

    Luclia de Almeida Neves Delgado (2006, p. 61) A memria,

    portanto, traduz registro de espaos, tempos, experincias,

    imagens, representaes. Ou seja, a memria do passado,

    muitas vezes, nos ajuda a entendermos o contexto vivido,

    como tambm a construir um futuro mais significativo.

    importante destacar que, para Halbwachs (1990), a

    memria individual existe sempre a partir de uma memria

    coletiva. Ou seja, o conceito de memria est na interseo

    entre histria e identidade coletivas. Assim, a memria

    imprescindvel para a reconstituio do passado, seja

    individual ou coletivo, sendo considerada, portanto, um

    recurso fundamental para a apreenso da identidade e da

    histria.

  • 27

    Entendemos que a memria e a tradio mostram a

    organizao do passado em relao ao presente. Isto , no se

    trata de um passado preservado, mas continuamente

    reconstrudo, tendo como base o presente. A memria coletiva

    possui guardies, geralmente formada por pessoas mais idosas

    e que assim o so no apenas porque participam de muitas das

    formulaes dessas tradies, mas porque tm tempo

    disponvel para identificar os detalhes contidos, e, ao contrrio

    do costume, tm fora de unio que combina contedo moral e

    emocional. Assim, a tradio um meio organizador da

    memria coletiva e individual.

    importante destacar que um dos principais objetivos

    da memria atualizar o passado, atravs dos testemunhos que

    muitas vezes esto inconscientes ou dos sentimentos que esto

    preservados. Segundo Maurice Halbwachs:

    A memria apoia-se sobre o passado vivido,

    o qual permite a constituio de uma narrativa

    sobre o passado do sujeito de forma viva e

    natural, mais do que sobre o passado

    aprendido pela histria escrita.

    (HALBWACHS, 1990, p. 75).

    Atentando para as palavras de Maurice Halbwachs,

    buscamos construir a histria das Comunidades Quilombolas

    de Garopaba com base nas experincias dos moradores dessas

    comunidades, valendo-nos de seus depoimentos e lembranas.

    Porm, nessa trama, no s as falas e lembranas do o

    tom do enredo. preciso destacar, tambm, que a pesquisa

    documental, juntamente com as fontes orais, embasam a

    escritura desta dissertao. Pensamos que a variedade de

    documentos amplia as possibilidades do trabalho de campo e

    facilita reflexes diferenciadas acerca de diversos assuntos

    sobre um mesmo tema, j que toda fonte histrica possui

    historicidade e constitui uma representao do real. (RIGER,

  • 28

    2011, p. 84). Assim, utilizaremos os documentos como

    certides de nascimento e casamento (civis) e certides de

    batismo e casamento (religiosas) para convalidar o que nos

    informado atravs das narrativas dos entrevistados.

    Exemplos do agregamento de fontes orais e escritas

    sero materializados na organizao e apresentao da rvore

    genealgica da Comunidade do Morro do Fortunato. Em certo

    momento, apresentaremos a constituio familiar do grupo

    com base nas falas dos moradores mais antigos ou, como diria

    Ecla Bosi, na memria dos velhos, confrontada com os

    documentos dos cartrios. O uso da fonte documental,

    portanto, serve para corroborar as falas, aproximando as

    lembranas dos vestgios histricos que representam os

    documentos oficiais. A histria deve reproduzir-se de gerao

    a gerao, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem ,

    prolongando o original, puxados por outros dedos. (BOSI,

    2004, p. 90).

    Provocar embates entre as fontes disponveis e todas as

    informaes que se tem a respeito do fato estudado,

    submetendo-as s perspectivas tericas, importante para que

    se evitem distores. No entanto, esta operao processual da

    pesquisa no a encerra, pois no basta descrever as coisas tais

    como aconteceram se que isso possvel; necessrio

    compreend-las e interpret-las.

    As fontes so, no entanto, a estrada real

    emprica, para se chegar ao cerne do

    pensamento histrico, do qual o historiador

    retorna mais sbio do que as fontes podem

    torn-lo. Esse ganho de eficincia do

    pensamento histrico, para alm da mera crtica

    das fontes como meio de extrair informaes

    dos fatos do passado, d-se na interpretao.

    (RUSEN, 2007, p. 124).

  • 29

    Este processo de interpretao dos testemunhos obtidos

    atravs dos vestgios histricos o mais importante, pois esta

    operao metdica que articula, de modo intersubjetivamente

    controlvel, as informaes garantidas pela crtica das fontes

    sobre o passado humano. Ela organiza as informaes das

    fontes em histrias e as insere no contexto narrativo em que os

    fatos do passado aparecem e podem ser compreendidos como

    histria.

    Nesse vis, as categorias Identidade/Identificao vm

    complementar e at mesmo, de forma intrnseca, estabelecer os

    contornos das particularidades pertinentes a cada uma das

    Comunidades Quilombolas em questo: Morro do Fortunato e

    Aldeia. A construo identitria de tais grupos no est

    naturalmente dada; feita por meio de escolhas e confrontos.

    Stuart Hall (2006) no hesitou em afirmar que existe

    uma crise de identidade abalando as estruturas do homem

    ps-moderno. Para o autor, as fronteiras bem definidas do

    homem da sociedade moderna o localizavam e o definiam no

    mundo social e cultural, premissa que fora abalada na

    modernidade tardia com o descentramento das identidades

    modernas. Ainda segundo o antroplogo Stuart Hall (2006, p.

    13), a identidade plenamente unificada, completa, segura e

    coerente uma fantasia.

    As velhas identidades esto em declnio e as novas

    permitem as mltiplas fragmentaes impossibilitando aos

    sujeitos ps-modernos terem uma identidade fixa, essencial ou

    permanente, processo conceituado por Stuart Hall (2006)

    como crise de identidade. Stuart Hall trabalha na perspectiva

    de uma identidade hbrida.

    O sujeito previamente vivido dentro de uma

    identidade unificada e estvel est se tornando

    fragmentado; composto no de uma, mas de

    vrias identidades, algumas vezes

    contraditrias e no resolvidas. (HALL, 2006,

    p. 12).

  • 30

    Sendo assim, a identificao seria o processo pelo qual

    nos projetamos em nossas identidades e a identidade torna-se

    uma dinmica mvel: formada e transformada continuamente

    em relao s formas pelas quais somos representados ou

    interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

    Desta forma, os estudos sobre processos de identidade

    cultural valorizam as reflexes sobre as experincias

    vivenciadas pelos grupos em estudo. Ou seja, ressaltam os

    mltiplos fios das culturas e tradies estabelecidas e

    vivenciadas por eles. Alm disso, no caso especfico dos

    quilombos, existem lutas identitrias, pois h disputas internas,

    em relao s verses acerca do mito de fundao a serem

    aceitas por todos, enfim, uma gama bastante complexa de

    olhares e opinies que se engendram para construir a face

    identitria do grupo. Nesse sentido, importante destacar as

    consideraes de Homi K. Bhabha acerca do momento

    histrico que vivemos:

    [...] encontramo-nos no momento em que

    espao e tempo se cruzam para produzir

    figuras complexas de diferena e identidade,

    passado e presente, interior e exterior, incluso

    e excluso. (BHABHA, 1998, p. 19).

    Assim, as culturas no correspondem a fronteiras

    espaciais ou temporais, no estabelecem obstculos de nao

    ou de etnia, tampouco reproduzem valores essenciais de

    antigas tradies como um princpio histrico. As tradies, as

    culturas so escancaradas pelo dilogo e s trocas. A dinmica

    das identidades e formaes culturais so livres e no seguem

    um fio condutor pronto que orienta sua trajetria cultural. Ou

    seja, as prticas culturais trocam-se, intercambiam-se,

    conflitam-se, metamorfoseiam-se permanentemente. Nesse

    sentido, entendemos as reinvenes culturais e identitrias dos

  • 31

    grupos sociais, principalmente das Comunidades Quilombolas

    em estudo.

    importante destacar que a categoria experincia um

    dos pilares desse trabalho. No entanto, mister sublinhar que

    a experincia surge sem aviso, exerce presses e prope novas

    questes. A experincia o que nos passa, o que nos acontece,

    o que nos toca. Tornar a experincia visvel exige uma

    anlise crtica em relao ao sistema de funcionamento

    ideolgico de si prprio e da sociedade, analisando as

    transformaes e as vivncias.

    Segundo Thompson, por meio da categoria

    experincia que se compreende a resposta mental e

    emocional, seja de um indivduo ou de um grupo social,

    existem muitos acontecimentos inter-relacionados

    (Thompson, 1981, p. 15). atravs da experincia que homens

    e mulheres definem e redefinem suas prticas e pensamentos.

    Os homens e mulheres tambm retornam como

    sujeitos, dentro deste termo, no como sujeitos

    autnomos, indivduos livres, mas como

    pessoas que experimentam suas situaes e

    relaes produtivas determinadas como

    necessidades e interesses e como antagonismos,

    e em seguida tratam essa experincia em sua

    conscincia e sua cultura [...]. (THOMPSON,

    1981, p. 182).

    Por sua vez, o mesmo autor introduz a categoria

    experincia e a articula com a cultura. Ou seja, da reflexo

    relativa categoria experincia resulta a concepo de que a

    cultura deve ser compreendida a partir de experincias mentais

    e emocionais, vividas em muitos acontecimentos inter-

    relacionados. Thompson reconhece que a experincia vivida,

  • 32

    alm de pensada, , tambm, sentida pelos sujeitos. Conforme

    ele mesmo afirma:

    As pessoas no experimentam sua prpria

    experincia apenas como idias, no mbito do

    pensamento e de seus procedimentos [...] Elas

    tambm experimentam sua experincia como

    sentimento e lidam com esse sentimento na

    cultura, como normas, obrigaes familiares,

    [...] valores, [...] arte ou nas convices

    religiosas (Thompson, 1981, p. 189).

    Assim, fica evidente que a categoria experincia

    estabelece fundamentos necessrios a corroborar a capacidade

    de homens e mulheres romperem com condies impostas. Ou

    seja, a experincia pode levar a rever prticas, valores e

    normas e, ao mesmo tempo, pode ajudar a constituir

    identidades de classe, de gnero, de gerao, de etnias

    (Moraes e Mller, 2003, p. 13).

    A visibilidade das experincias dos grupos em estudo

    mostra a existncia de mecanismos repressores, mas

    dificilmente conheceremos seu funcionamento interno, sua

    lgica. Temos conscincia de que a diversidade existe, mas

    difcil nos apropriarmos dela, conhecer suas relaes e

    desvelar suas particularidades. Para conhecer partes dessas

    experincias, precisamos dar conta dos processos histricos,

    das vivncias, das aes realizadas por eles e para isso, nos

    fundamentamos nos testemunhos e nas narrativas desses

    sujeitos que produzem suas experincias. Pensar a experincia

    dessa forma historiciz-la. Segundo Joan W. Scott,

    historicizao implica uma anlise crtica de todas as

    categorias explicativas que normalmente no so questionadas,

    incluindo a categoria experincia. (1999, p. 28).

    Na ps-modernidade a histria lida com um tempo

    repleto de agoras e preocupa-se com as evidncias do

  • 33

    passado que possibilitem a leitura de um passado plausvel,

    sem a presuno de ser verdadeiro. Essa histria se preocupa

    em ampliar os horizontes e servir vida. Sabemos que o

    passado ser sempre contado, no se esgota. Uma verso pode

    se tornar hegemnica em certo momento, sendo reeditada em

    outro. Nosso tempo fugidio, deslizante e a histria se

    angstia por no poder prend-lo, segur-lo. Assim o tempo

    histrico na ps-modernidade: incerto e imprevisvel.

    Contudo, preciso registrar uma histria, aquele que

    nos parea mais verossmil e at mesmo verificvel. Assim,

    estruturamos esta dissertao da seguinte forma:

    No primeiro captulo, intitulado Garopaba, de reduto

    pesqueiro cidade turstica, realiza-se uma breve viagem pela

    formao tnico-cultural desse municpio, procurando

    identificar o lugar dos afro-brasileiros nessa trama social.

    Nesse sentido, ser atravs de relatos dos prprios moradores

    das comunidades em questo e tambm dos documentos

    produzidos por historiadores e antroplogos durante o

    processo de reconhecimento como Comunidades Quilombolas,

    que construiremos uma verso quanto presena dos afro-

    brasileiros em Garopaba. Este captulo tem a preocupao

    maior de levar o leitor a compreender a estrutura social na qual

    os afrodescendentes construram suas casas como tambm a

    forma que se deu (ou no!) a interao com as comunidades do

    entorno.

    O segundo captulo, nomeado A presena de africanos

    e afrodescendentes em Garopaba e seus arredores, trata da

    constituio fsica dos Quilombos e da formao das

    Comunidades de Remanescentes. Assim, lana mo das

    memrias de moradores das comunidades bem como de seu

    entorno, procurando, atravs destas narrativas, delinear os

    acontecimentos que possibilitaram tal formao. Com base nos

    depoimentos e relatos dos moradores das Comunidades

    Quilombolas e das comunidades do entorno, teceu-se o enredo

    da narrativa referente s prticas de sociabilidades.

  • 34

    O terceiro captulo, denominado Constituio das

    Comunidades Quilombolas de Garopaba-SC, tem por

    objetivo mapear os espaos de sociabilidades das

    Comunidades Quilombolas da Aldeia e do Morro do

    Fortunato, identificando que suas constituies esto

    caracterizadas pela comum herana com o passado escravista e

    por formas culturalmente especficas como da coletividade e

    do compadrio. Essas caractersticas so visveis pelas

    vivncias e por experincias de organizao social diretamente

    relacionada ao direito a terra, por formas de consanguinidade e

    parentesco.

    No ltimo captulo, intitulado Sociabilidade e

    afirmao identitria nas festividades dos quilombos de

    Garopaba, nos reportaremos s diferentes festividades que

    acontecem nas Comunidades Quilombolas de Garopaba:

    Aldeia e Morro do Fortunato. Assim, os bailes, as brincadeira

    de Boi de Mamo, os Ternos de Reis, a Festa da Tainha, o

    Carnaval, a Festa de So Loureno e outras festividades que se

    evidenciam a partir das crenas, hbitos e costumes dos

    quilombolas, exaltando a alegria e a simplicidade dessas

    comunidades traduzidas em acolhimento, participao

    comunitria.

  • 35

    1. GAROPABA, DE REDUTO PESQUEIRO A CIDADE TURSTICA

    Neste primeiro captulo, apresentamos a cidade de

    Garopaba desde sua fundao, passando pela efervescncia da

    chegada dos primeiros turistas, em meados dos anos de 1970 e

    1980, at atingir o momento atual: poca de afirmao

    enquanto destino turstico de alto padro. Nessa jornada,

    atentamos para as novas prticas e transformaes pelas quais

    a cidade passou, alterando a paisagem e os costumes locais.

    sabido que no se pode conhecer a totalidade do

    processo de desenvolvimento histrico da cidade de Garopaba,

    pois seria uma pretenso que no condiz com a prtica

    historiogrfica responsvel. No entanto, colocamos em tela

    aspectos relevantes quanto trajetria de sua gente no

    esvanecer do tempo. Nesse universo, atentamos para a

    elaborao de discursos sobre a necessidade de proteger a

    histria da cidade bem como de criar espaos e rtulos que

    vendam a imagem de uma cidade apta para o consumo

    turstico. Discutimos, ainda, questes relativas ao papel da

    memria e das tradies na construo da imagem da cidade.

    Falar da histria da Garopaba mergulhar nas

    transformaes scio-histricas pelas quais a cidade passou, j

    que de pequeno reduto de pescadores e agricultores se tornou

    uma cidade conhecida por sua vocao turstica. Sendo

    assim, importante ressaltar que nossa caminhada

    historiogrfica fruto do entrelaamento das memrias e das

    narrativas dos moradores locais aliados a documentos e

    produes bibliogrficas referentes s suas transformaes.

    A estratgia de utilizar as narrativas dos moradores foi

    adotada na perspectiva de encontrar um caminho a ser seguido

    na empreitada de tal construo histrica. Ou seja, os

    depoimentos dos moradores nos possibilitaram maior clareza

    em relao aos meandros das transformaes pela quais a

    cidade de Garopaba passou durante o perodo. Pensamos que

  • 36

    essas memrias extrapolam o tempo presente e o homem

    mergulha no seu passado ancestral. Nessa dinmica,

    memrias coletivas encontram-se, fundem-se e se constituem

    como possveis fontes para a produo do conhecimento

    histrico. (DELGADO, 2006, p. 16).

    Abrir uma discusso histrica sobre a construo da

    cidade de Garopaba ousar adentrar por um universo

    bibliograficamente incerto. As produes que contemplam o

    municpio e abordam a temtica em estudo so livros de

    memorialistas, um livro didtico, alguns trabalhos de

    concluso da graduao, um trabalho de especializao e duas

    dissertaes de mestrado.

    Entre os memorialistas, esto s obras do Padre

    Artulino Besen, 1996, quando do Centenrio da Igreja Matriz

    da cidade; as duas obras do Professor Manoel Valentim (1994

    - 2007); os livros do jornalista Fernando Bitencourt (2003 -

    2005) e o livro de versos de autoria do pescador Maurcio dos

    Passos (2012). Alm desses, em 2011, foi lanado, pela

    Secretaria Municipal de Educao, um pequeno livro didtico

    para as sries iniciais do ensino fundamental, de autoria das

    Professoras da Universidade do Sul de Santa Catarina

    (UNISUL), Deise S. de Farias e Mrcia Neu, alm da

    Professora de Histria e Geografia, Elaine Coelho da Luz, que

    aborda a histria e a geografia do municpio.

    Os trabalhos acadmicos tratam de segmentos distintos

    da histria de Garopaba: h uma obra relativa ao papel das

    mulheres no desenvolvimento histrico da cidade, da

    professora Silvana Cervo (2001); outra se debrua sobre as

    festas de boi vendouro, hoje conhecidas como farra do boi, da

    professora Rosiane Marli Antnio Damzio (2007) que

    tambm escreveu sobre as transformaes provenientes do

    turismo (2011); os stios arqueolgicos so a temtica de outro

    trabalho da professora Elaine Coelho da Luz (2007), assim

    como os engenhos de farinha, escrito pela professora Snia

    Damsio Carvalho (2007), havendo ainda escritos sobre os

  • 37

    remanescentes de quilombolas pelas professoras Mauriclia

    Teixeira de Albuquerque (2011) e Francine Adelino Carvalho

    (2011).

    Em funo da temtica em questo, acreditamos ser

    pertinente apresentar com maior nfase o pescador e autor de

    versos Maurcio dos Passos, 70 anos, conhecido por Morio

    (Figura 02). O Senhor Maurcio nasceu na comunidade do

    Siru, Norte do municpio, e viveu a maior parte de sua vida no

    Centro da cidade, onde ainda reside. Importante destacar que

    Maurcio dos Passos quilombola, j que sua me, Joana

    Machado, era moradora do Morro do Fortunato, neta de

    Fortunato Justino Machado, fundador do Quilombo.

    Figura 02: Maurcio dos Passos. Fonte: Acervo prprio da autora. Ano: 2013.

    Local: Em sua residncia Garopaba SC.

  • 38

    O Senhor Maurcio uma pessoa bastante simples e

    dono de uma cultura predominantemente oral, visto que no

    alfabetizado. Porm, isto no significou entrave para organizar

    e publicar seu livro Versos de Morio, em 2012. Foi seu

    sobrinho quem fez o papel de escriba, transformando as

    memrias do pescador em registro escrito. com orgulho que

    Morio narra os acontecimentos que deram origem ao livro

    bem como os desdobramentos que sua publicao produziu:

    Eu comecei a versar meu livro com a conversa

    que eles vieram fazer para mim. A primeira

    pessoa que veio fazer essa conversa foi o

    Fernando Bitencourt. Outra situao que me

    instigou a fazer o livro foi quando fui a Porto

    Alegre e comecei a dizer o verso da baleia. Esse

    verso fala do aparado, e eles me perguntaram:

    Maurcio o que um aparado? um cafezinho.

    Falei tambm da boleia, eles pensavam que

    boleia era de caminho. Rindo eu disse: vocs

    no conhecem nada, um aparelho de pescar

    com linha e anzol que boleava para jogar no

    mar para pegar peixe. Meus versos surgiram

    por isso, eu tirava verso e as pessoas

    perguntavam cada vez mais. Como as pessoas

    que escutavam eu declamar os meus versos

    gostavam muito e achavam engraados, eu pedi

    ajuda a meu sobrinho para escrever os versos e

    com a ajuda do Movimento Aoriano de

    Resgate MAR11

    , consegui publicar o meu

    livro e hoje vendo nas ruas, Bancos e praas de

    Garopaba.

    11

    MOVIMENTO AORIANO DE RESGATE - MAR: Associao

    Cultural que tem como meta promover o resgate e a valorizao da cultura

    em Garopaba.

  • 39

    Hoje, o pescador vende sua obra no centro da cidade12

    e sempre tem tempo para conversar e contar suas histrias aos

    que se interessam. Porm, acreditamos que sua obra literria

    no tem merecido o devido destaque, pois enquanto os demais

    livros que tratam da temtica compem as referncias oficiais

    sobre a histria do municpio, o livro Versos de Morio no

    citado. Essa marginalizao tpica de uma sociedade

    excludente, que tende a valorizar somente as produes da

    classe hegemnica. Quem perde com tal situao so os

    leitores, em geral crianas das escolas municipais, pois no

    tm oportunidade de conhecer versos como este:

    Tempo passado

    Quero falar no Brasil

    Dos tempos de antigamente

    Vai um pouco de passado

    Do futuro e do presente

    E falar de hoje em dia

    Da vida de hoje pra frente

    (...)

    Foi a minha profisso

    Porque nasci pra pescar

    Pois no aprendi a ler

    Porque no pude estudar

    Fui obrigado a servir

    Pros irmos alimentar

    (...)

    Tambm quero falar

    12

    Nosso contato com ele deu-se da seguinte forma: certo dia observamos,

    em frente a uma agncia bancria do Centro da cidade, um senhor afro-

    brasileiro, com alguns livros nas mos. Este, ao perceber que estava sendo

    observado falou: Chegue at aqui, conhea os livros que vendo, so de

    autoria minha. Sou analfabeto, mas Deus me deu o dom de fazer versos

    sobre tudo o que se passa em Garopaba: economia, poltica, colonizao,

    entre outras coisas que voc pode ler a. J concorri at em concurso de

    versos. Neste contato inicial, o Senhor Maurcio dos Passos falou sobre

    muitas coisas, demonstrando seu potencial como fonte para esta pesquisa.

  • 40

    Do lugar onde nasci

    Meu pai era do Siri

    Depois veio morar aqui

    Numa casa na praa

    Ali pouco vivi

    (...)

    Onde nasceu minha me

    H muito tempo passado

    Pertencia ao negro Fortunato

    Eu ainda t lembrado

    Ela chamava Joana

    Filha de Incio Machado (Passos, 2012, p. 38-

    39).

    O livro do Senhor Maurcio dos Passos, Versos do

    Morio resultado de suas experincias como pescador e

    morador de Garopaba. Um homem analfabeto que se apropriou

    dos versos para poder narrar e registrar alguns fragmentos da

    sua prpria histria, da histria do Brasil e do municpio em

    que mora. Em sua obra, aborda temas relevantes como: a

    histria da sua famlia, dando visibilidade localidade em que

    nasceu e onde seus pais, Apolnio dos Passos e Joana

    Machado, iniciaram a vida, antes de vir morar no Centro de

    Garopaba.

    Em seus versos, Maurcio evidencia o vnculo familiar

    que sua me tinha com os membros da Comunidade

    Quilombola do Morro do Fortunato. importante destacar que

    o poeta tem alegria em dizer que parente dos quilombolas,

    enfatizando tambm sou um quilombola. O sentimento de

    pertencimento ao ncleo familiar dos remanescentes

    quilombolas est presente em sua fala, como em seus versos.

    Sua me Joana era neta do Senhor Fortunato Machado, filha

    do Senhor Incio Machado um dos filhos mais velhos do

    Senhor Fortunato. Outro fator importante o nome de sua me

    Joana, o mesmo da bisav, Joana Maria de Jesus, a

    fundadora do grupo do Morro do Fortunato.

  • 41

    Em relao histria do municpio de Garopaba,

    Maurcio fala do passado ao presente; a vida dos pescadores;

    as dificuldades sofridas pelas famlias dos pescadores e

    agricultores; a fora da natureza, como as tempestades

    enfrentadas no municpio de Garopaba e no Estado de Santa

    Catarina; lembranas de Getlio Vargas e Tancredo Neves;

    entre outros versos que se referem ao cotidiano do municpio.

    Outro aspecto que merece destaque na obra do Senhor

    Maurcio dos Passos, so as memrias que ele guarda do

    passado. A memria para os homens uma forma de

    identificar-se com sua concepo de passado e, nesse sentido,

    devemos compreender os aspectos referendados em seus

    versos. Uma das memrias recorrentes em seu livro so as

    lembranas de Garopaba, como vimos no verso a seguir:

    J entreguei meus versos

    Muita gente gostou

    Vou falar do municpio

    Onde eu sou morador

    Em Garopaba do Norte

    Avenida do pescador

    (...)

    Agora eu fao um convite

    Pra vir aqui passear

    Seja do sul ou do norte

    Onde voc morar

    Seja no leste ou oeste

    Venha conhecer meu lugar

    (...)

    Esta linda Garopaba

    Fica no sul do pas

    Chegando em Florianpolis

    Pergunta que o povo diz

    E traga f em Jesus

    E visite nossa Matriz

    (...)

    H muitos anos atrs

    Este lugar era fraco

    No tinha casas bonitas

  • 42

    Tinha pequenos barracos

    Mas tinha nossa igreja

    E o velho padre Faraco

    (...)

    Hoje aqui temos de tudo

    Hotel e supermercado

    Temos loja, restaurante

    Que no se viu no passado

    Mas tem a nossa lavoura

    E vem o nosso pescado

    (...)

    Muitos saram daqui

    Quando voltar no conhece

    A casa onde morava

    Se no perguntar se esquece

    Ns estamos ficando velho

    Enquanto a cidade cresce. (Passos, 2012, p.

    05).

    Ainda em relao aos versos do poeta garopabense,

    ressaltamos a riqueza de detalhes histricos que elenca ao

    escrever sobre o municpio. Em seus versos, Maurcio convida

    os turistas a visitarem Garopaba, mas no somente pelas

    belezas naturais como as propagandas miditicas costumam

    enfatizar; mas para conhecer parte histrica de Garopaba,

    como a Igreja Matriz e a Avenida dos Pescadores, ambas

    consideradas Patrimnio Cultural da cidade.

    Nos mesmos versos, o poeta faz referncia ao passado

    e ao presente, indicando que sua narrativa pauta-se em suas

    experincias, para elucidar as mudanas ocorridas em

    Garopaba. As casas e ranchos que foram substitudas por

    comrcio ou pousadas e as pequenas vendas, que hoje so

    supermercados. Sabemos que essas mudanas so decorrentes,

    em sua maioria, do turismo. No entanto, esse um processo

    recorrente em diferentes lugares; portanto, no s Garopaba

    sofreu esta transformao, uma vez que o lazer e o bem estar

    se tornou proeminente a partir do crescimento exacerbado das

    grandes cidades.

  • 43

    Voltando histria de Garopaba, observa-se que a

    maior parte das produes embasada em fontes orais, ou

    seja, fundamenta-se em entrevistas, revelando falas de quem

    viveu ou vive na regio ou, ento, de pessoas que se remetem

    memria de seus antepassados. Vale ressaltar que as obras

    referentes histria de Garopaba tambm consideram as

    fontes documentais, tais quais as fotografias e os registros

    eclesisticos e cartoriais.

    Feitas tais distines e indicativos, passamos a delinear

    a histria de Garopaba, ressaltando que a cidade mais um dos

    municpios do litoral catarinense marcado pela forte ligao

    com o mar e com a chamada tradio aoriana, muito

    embora, na prtica, haja evidncias da forte presena das

    culturas indgenas e africanas; alis, no por acaso que

    existem dois quilombos na regio e que o nome Garopaba

    deriva da lngua tupi, prpria dos guaranis que por muito

    tempo a habitaram.

    Assim, conforme consta no dicionrio Tupy Guarany

    (CONTELLI, s.n, p.09), Garopaba deriva da juno de yg,

    ygara, ygarat, que significa barco, embarcao, canoa com

    mpaba, paba, que significa paradeiro, lugar, enseada.

    Garopaba, ento, significa Enseada das Canoas

    (BITENCOURT, 2003, p. 14). Para padre Artulino Besen

    (1996, p. 12), O nome condiz com a primeira utilidade da

    enseada, recanto seguro para ancoradouro de embarcaes.

    Tal denominao se mantm atual, visto que ainda hoje

    comum vermos a calma enseada da avenida dos pescadores

    (Figura 03) repleta de barcos de pesca, lanchas, caiaques,

    escunas, enfim, num colorido que atualiza hodiernamente sua

    denominao.

    A presena dos primeiros colonizadores portugueses

    em Garopaba discutida em diferentes obras sobre o lugar. Na

    obra de Jos Artulino Besen (1980) encontra-se o registro da

    chegada dos primeiros casais de colonizadores portugueses no

    sculo XVII, exatamente no ano de 1692. Segundo Besen, a

  • 44

    presena dos portugueses em Garopaba desencadeou a

    estruturao da armao baleeira que foi construda um sculo

    depois. Besen descreve, em sua obra, a estrutura da armao

    baleeira de Garopaba:

    A Armao de Garopaba ficava no interior de

    uma baa estreita e comprida (a enseada),

    cercada direita e esquerda de morros

    cobertos de florestas. A igreja, os alojamentos

    do administrador, do capelo, dos feitores,

    tinham sido construdos meia encosta de um

    morro; o engenho de frigir, os reservatrios, as

    casas dos negros, ficavam situados margem

    da enseada (BESEN, 1980, p. 16).

    Figura 03: Enseada de Garopaba - SC.

    Fonte: Acervo prprio da autora. Local: Garopaba - SC.

    Ano: 2014.

  • 45

    Esta verso em relao ao perodo da chegada dos

    primeiros colonizadores a Garopaba analisada na obra de

    Vilson Francisco de Farias (2000), em outro espao de tempo.

    O autor diz que os aorianos desembarcaram em Garopaba

    enviados pelo Imprio Portugus, procedentes, em sua

    maioria, da Ilha Terceira, localizada no Arquiplago dos

    Aores.

    As primeiras informaes sobre a presena de

    populao fixa [em Garopaba] de origem

    europeia so do final do sculo XVIII,

    resultante dos registros eclesisticos que

    indicam j residirem em Garopaba diversas

    famlias de origem aoriana. (FARIAS, 2000,

    p. 255).

    Garopaba tambm foi palco da caa a baleia durante

    um longo perodo de tempo. As calmarias de suas guas e a

    presena constante dos animais no perodo que vai de julho a

    outubro fizeram com que fosse construda uma armao

    baleeira em sua orla, na atual Praia do Centro. As armaes

    baleeiras instaladas no litoral brasileiro foram

    empreendimentos coloniais dedicados pesca da baleia e ao

    beneficiamento das partes econmicas deste cetceo. O nome

    armao, presente na toponmia em muitas regies do litoral

    brasileiro, advm da instalao destas unidades produtivas ou

    simplesmente da realizao da pesca da baleia, em que era

    necessrio armar-se para o confronto com o grande peixe do

    mar. A Armao de So Joaquim de Garopaba foi fundada em

    1795 a 1851.

    A obra Histria de Garopaba, do Professor Manoel

    Valentim (2007), revela que a fundao da vila de pescadores,

    atual Garopaba, foi resultado da organizao de Joaquim

    Pedro Quintela e Joo Ferreira Sola. Seu nome, So Joaquim,

    pode ter sido dado em homenagem a um de seus

    organizadores, Joaquim Pedro Quintela. (VALENTIM, 2007,

  • 46

    p. 20). Ainda segundo o autor, posteriormente, em 1830, em

    funo do crescimento populacional, Garopaba foi elevada a

    Freguesia. Em 1890, com trabalho de mobilizao da

    Freguesia, Garopaba foi elevada a Vila e, no mesmo ano,

    foram nomeados os membros do Conselho da Intendncia.

    Seguindo as informaes organizadas pelo Professor

    Manoel Valentim (2007), sabe-se que a instalao do

    municpio ocorreu no dia 07 de junho de 1890, porm, alguns

    anos depois, em 1923, perdeu tal condio, passando a integrar

    o municpio de Imbituba, pertencendo Comarca de Laguna.

    Em 1930, Garopaba passou a Distrito de Palhoa, voltando

    condio de municpio somente em 1961. desta poca o

    estabelecimento de suas atuais fronteiras ou limites territoriais:

    ao Norte e ao Oeste, Garopaba limita-se com o municpio de

    Paulo Lopes, ao Sul com o municpio de Imbituba e ao Leste

    com o Oceano Atlntico. (VALENTIM, 2007, p. 09). Figura

    04.

  • 47

    Figura 04: Mapa dos limites territoriais de Garopaba - SC.

    Fonte: Secretaria de Educao.

    Edio: Da prpria autora.

    Pode-se inferir que no perodo em que Garopaba

    deixou de ser municpio, ou seja, no intervalo entre as dcadas

    de 1920 e 1960, no devem ter acontecido muitos

    investimentos em infraestrutura. recorrente ouvir que o lugar

    era desprezado, abandonado. Segundo o Senhor Maurcio dos

    Passos, Garopaba era um lugar abandonado, pra chegar a

    Garopaba tinha que chegar pelo mar, pra ir pra Florianpolis

    tinha que ir de lancha com o vento sul e com nordeste vinha

    para c 13

    . A figura 05 ilustra a formao do povoado de

    Garopaba: os ranchos de pesca e casas de moradias: 13

    PASSOS Maurcio dos. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

    Albuquerque. Garopaba, 09 de julho de 2013. Entrevista.

  • 48

    Figura 05: Regio da Praia de Garopaba no ano de 1925.

    Fonte: Acervo de Bertoldo lvaro dos Santos Filho.

    Ano: 1925.

    Local: Garopaba - SC.

    Aps muitos anos de luta e negociaes dos polticos

    locais, a vila de pescadores foi finalmente emancipada.

    Renasce assim, o municpio de Garopaba. A partir da

    emancipao, a cidade comea a seguir seu caminho, muitas

    obras foram realizadas, estradas, praas, ruas, casas de

    alvenaria e sobrados foram construdos. Conhecer a totalidade

    dessa histria no tarefa fcil, pois, um processo muito

    amplo para ser estudado num curto espao de tempo. Sendo

    assim, deixamos muitos aspectos relevantes para serem

    estudados num prximo momento, por ora tomaremos como

    fio condutor as narrativas oriundas das memrias de diferentes

    moradores.

    De pequeno reduto de pescadores, Garopaba passa a ser

    uma cidade turstica marcada pela modernizao e

    urbanizao, episdios que mudaram radicalmente a vida e a

    cultura dos habitantes locais. Na busca de compreender o

    encontro entre moradores locais e turistas, entrevistamos o

    Senhor Manfredo Hbner (85 anos), que se considera um dos

  • 49

    primeiros turistas a chegar a Garopaba. Quando cheguei aqui

    em 1967, encontrei Garopaba com poucas casas, as pessoas

    viviam despreocupadas 14

    . Na figura 06 podemos conferir a

    Garopaba vista por Manfredo Hbner.

    Figura 06: Garopaba - SC, no final da dcada de 1960. Fonte: Manfredo Hbner.

    Ano: 1960.

    Local: Garopaba - SC.

    Pioneiro do turismo na Praia de Garopaba, como se

    autodenomina: foi eu o primeiro turista a chegar a Garopaba e

    que mostrou Garopaba para os outros gachos. Garopaba era

    desconhecida por todos l fora 15

    , Manfredo Hbner, ao

    deparar-se com uma realidade completamente diferente de que

    estava acostumado em Porto Alegre, infere que as pessoas

    viviam sem preocupaes. Ser que esta viso reflete o tempo

    vivido pelos garopabenses? Quem enfrenta as adversidades do

    14

    HBNER, Manfredo. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

    Albuquerque. Garopaba, 19 de junho de 2013. Entrevista.

  • 50

    mar no tem com o que se preocupar? As preocupaes de

    quem vivem em um grande centro e de quem vive numa vila

    de pescadores, certamente, so diferenciadas; mas isso no

    significa que os segundos vivam em um paraso e tenham

    uma vida contemplativa.

    Porm, o Senhor Jair Joo Ribeiro (75 anos), pescador

    nativo e Presidente da Colnia de Pescadores de Garopaba Z

    12, afirma que quando o Senhor Manfredo Hbner chegou

    cidade, muitos hippies j haviam passado por aqui, retirando

    deste o ttulo de precursor do turismo.

    O primeiro turista foi o Hernande, na revoluo

    do Brizola16

    , ele chegou aqui numa lambreta,

    ele e a Adeli, a mulher dele, ele colocou uma

    barraca numa barranca, l na Vigia. L deu um

    temporal de chuva, muito grande, a meu pai

    falava para ns: vocs vo l ver aquele homem

    e aquela mulher, porque eles j devem ter

    morrido l. Chegamos l e eles estavam todos

    encharcados, no tinham mais roupa, no

    tinham mais nada, ns trouxemos eles e

    botamos numa casinha. Eles no tinham

    nenhum envolvimento com a Revoluo,

    vieram do Rio Grande e bateram aqui em

    Garopaba, hoje ele ainda vivo, ele mora em

    So Paulo, eles vieram muito antes do Seu

    Manfredo. A o Hernande foi embora, mas

    antes trouxe o Dino, a o Dino ficou na minha

    15

    Idem. 16

    No Rio Grande do Sul, o ento governador Leonel Brizola, cunhado de

    Jango, iniciou o movimento conhecido como Campanha da Legalidade. A

    campanha apoiava a subida de Jango Presidncia sem qualquer limitao

    ou alterao jurdica no que competia governabilidade do cargo.

    (BATISTA, Lisbeth. Brizola e a campanha pela legalidade. Disponvel em:

    . Acesso em: 20 jul. 2013.

  • 51

    casa l encima [Morro da Vigia], alis, numa

    barraquinha que eu tinha17

    .

    De acordo com a historiografia, no ano de 1961

    aconteceu, de fato, um movimento denominado Campanha da

    Legalidade, sob o comando do governador do Rio Grande do

    Sul, Leonel Brizola. Tal movimento lutava pela posse de Joo

    Goulart o Jango, cunhado de Brizola, vice-presidente de

    Jnio Quadros, que renunciou Presidncia da Repblica.

    De acordo com os relatos obtidos, os primeiros turistas

    que chegaram a Garopaba ainda nos anos de 1960 era

    constituda, majoritariamente, por hippies gachos, um povo

    que provocou grande estranhamento dentre os nativos. Em um

    tempo na qual as atividades junto ao mar se limitavam a

    pescar, pegar siri pintado, tirar mariscos das pedras do costo

    ou ajudar a puxar um lano de peixes, a presena de pessoas

    munidas de mochilas, que pernoitavam em barracas, pitavam

    um cigarro de cheiro pouco convencional (a maconha era

    novidade!), tomavam banho de mar e as mulheres apareciam

    vestidas somente de mai ou biquni, deixou os moradores

    nativos intrigados e curiosos. O senhor Jair revelou detalhes

    destes acontecimentos:

    Antigamente elas [as mulheres] usavam uma

    roupa mais tapadinha, eram uns

    macacezinhos, hoje em dia que elas andam

    quase peladas. As mulheres daqui no usavam,

    s as que vieram de fora. Se as (mulheres)

    daqui usassem iam ver s o que aconteceria

    com elas. Vou te contar uma parte. Quando a

    mulher do Dino passava de mai, que foi o

    primeiro gacho l de cima, os pescadores

    ficavam s assim (olhando) as pernas dela

    17

    RIBEIRO, Joo Jair. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

    Albuquerque. Garopaba, 10 de julho de 2013. Entrevista.

  • 52

    como eram, pois nunca tinham visto pernas de

    ningum, s os que eram casados, e olhe l. As

    mulheres daqui s iam na praia levar um

    cafezinho para o marido, iam pegar siri pintado,

    marisco. Nossas mulheres no tomavam banho

    de mar e nem de lagoa, nem de noite e nem de

    dia. A moda de tomar banho de mar e pegar sol

    veio com os gachos, minha filha18

    .

    Sobre a chegada dos hippies em Garopaba e as

    estranhezas por eles provocadas, temos ainda o depoimento do

    falecido Adlio Incio de Abreu, que foi vereador por dois

    mandatos, de 1963 a 1973, e prefeito de Garopaba entre 1977 a

    1983:

    Os hippies faziam de tudo por aqui. Eles

    chegavam e acampavam em qualquer lugar, em

    frente sua casa, faziam o que queriam. Criei a

    lei de camping e foi aquela briga. Os jornais da

    poca noticiavam que o prefeito de Garopaba

    era contra o turismo; o Correio do Povo e a

    Zero Hora, que era a que mais castigava. Na

    Avenida dos Pescadores era um acampamento

    s. Amanhecia a praia entulhada de coisas.

    Mas eu s queria pr ordem, fazer um turismo

    ordenado19

    .

    Apesar de todas as transformaes trazidas pelo

    turismo, os garopabenses procuram ainda manter sua cultura,

    como festa do divino esprito santo, quermesse, tapete de

    Corpus Christi, festas juninas entre outras festividades embora

    estas j tenham sofrido atualizaes. Os visitantes desfrutam

    de suas belezas naturais, da simplicidade de sua gente bem

    18

    Idem. 19

    ABREU, Adlio Incio de. Entrevista cedida a Carmem Luza Sant

    Anna Pires. Garopaba, 11 de agosto de 2011. Entrevista.

  • 53

    como dos requintes proporcionadas por uma estrutura de alto

    padro (os que podem pagar!). Vilson Francisco de Farias

    (2000, p. 256) destaca que As belezas naturais paisagsticas,

    representadas pelas praias, lagoas, dunas e pontas tornam

    Garopaba um dos balnerios mais procurados do sul do

    Brasil.

    Como se percebe nas falas supracitadas, entre as

    dcadas de 1960 e 1970, os hippies invadiram Garopaba,

    porm, ao que parece, era um tipo de turismo que no

    agradava muito, j que no trazia recursos financeiros, pois os

    hippies formavam uma tribo alternativa, preocupada em

    viver os slogans da poca: paz e amor em harmonia com a

    natureza. Mas, Garopaba foi descoberta por outro tipo de

    visitantes, dentre eles o j mencionado Manfredo Hbner e

    seus amigos jornalistas de Porto Alegre.

    Eu vim para Garopaba em janeiro de 1967,

    fotografei Garopaba e levei as fotos para meu

    amigo jornalista, Luiz Ribeiro Pires, que

    trabalhava no jornal Correio do Povo e na

    Folha da Tarde, no Rio Grande do Sul. Em

    seguida os gachos comearam a vir. Eles

    compravam o jornal e perguntavam: Manfredo,

    onde fica isso? Era uma atrao ler aqueles

    artigos escritos sobre Garopaba, batia a

    curiosidade para conhecer. Eles no foram para

    Imbituba ou para Laguna, eles vieram para

    Garopaba, porque, tinham uma meta, conhecer

    o lugar daquelas fotos. Foram publicadas

    muitas fotos. Por isso eu falo: foi eu um dos

    elos de ligao com as mudanas de Garopaba.

    Eu levava as fotos e meu grande amigo, que

    tinha uma habilidade incrvel, escrevia e logo

    publicava. Circulavam muitos jornais, alguns

    foram at para So Paulo, e outros lugares. Por

    isso os primeiros a conhecerem Garopaba

    foram os gachos, isso no quer dizer que

    Garopaba uma praia gacha ou dos

  • 54

    gachos. Depois dos turistas gachos, paulistas

    foram vindo para todas as praias do litoral 20

    .

    Quanto a esta descoberta de Garopaba pelos leitores

    dos jornais de maior circulao na grande Porto Alegre,

    importante mencionar as reflexes tecidas por Damzio

    (2011):

    Se os primeiros veranistas eram

    despretensiosos, movidos pelo esprito

    aventureiro inspirado no modo de vida hippie

    em moda naqueles primeiros anos da dcada de

    1970, os que vieram depois j tinham olhar

    empreendedor. Enquanto as terras eram dos

    nativos, todos podiam passar, afinal eram

    caminhos antigos, respeitados pela organizao

    social local. S que essa lgica perdeu espao

    para as at ento desconhecidas cercas de

    arame farpado. As extremas de terras eram

    feitas de gravat, ou por um valo, era assim,

    segundo as palavras do Senhor Francisco Berto

    Teixeira. (DAMAZIO, 2011, p. 57).

    Nesse sentido, bastante pertinente a fala do pescador

    Maurcio dos Passos, quando se refere venda das terras

    localizadas em frente ao mar, na atual Avenida dos

    Pescadores, no Centro de Garopaba. ntido seu

    ressentimento quando diz que as pessoas foram iludidas ao

    venderem suas propriedades:

    No, eles no venderam, foram iludidos. As

    pessoas foram vindo para Garopaba e quando

    comearam a chegar, teve muita gente se

    iludindo e o que mais iludiu essas pessoas foi a

    20

    HBNER, Manfredo. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

    Albuquerque. Garopaba, 19 de junho de 2013. Entrevista.

  • 55

    poupana, muita gente negra vendeu suas casas

    e foi embora, se iludiram. As terras da praia

    eram das pessoas negras e brancas, tinha muita

    gente preta. As famlias negras que viviam

    aqui eram do Pntano do Sul, a famlia do

    Altamiro, que at lojinha de fazenda teve. As

    terras na praia eram terras grandes, mas no

    tinha valor. Por no ter valor muita gente de

    Garopaba se perdeu. Eu comprei uma casa na

    praia, onde o camping do Jovino, a casa ficou

    dentro do camping, era uma casinha de

    madeira velha, ficou dois anos dentro do

    camping. Eu escutava eles dizerem assim:

    Maurcio eles no vo mais dar a sua casa, eu

    dizia: eles do a casa sim. Ai o irmo da Dona

    Olria veio e disse: Maurcio quer vender sua

    morada, sua casinha que est l dentro do

    camping e eu disse que queria 200 milhes, ele

    disse: Maurcio muito caro, eu dou 60

    milhes pela sua morada. Eu disse que no

    tinha comprado uma casa dentro do

    camping, vocs que fizeram um camping e

    deixaram a minha casa dentro e pra vocs

    tirarem minha casa de l vocs tem que me

    botar num terreno, eu quero uma casinha e

    um terreno para morar, aqui no centro de

    Garopaba. E l vocs no mexem numa

    telha da casa que minha, que est dentro

    do camping. [exaltado] A o Jovino me

    chamou e disse que fazia uma casa aqui no

    centro de Garopaba, atrs do posto de sade,

    foi uma casa de madeira, uma das primeiras

    casas que tinha banheiro foi a minha. Ai eu

    aceitei, pois para a poca eu sa ganhando no

    negcio21

    .

    A situao vivenciada em Garopaba comeou a ser

    desenhada pelos interesses do turismo e a lgica capitalista

    21

    PASSOS, Maurcio dos. Entrevista cedida a Mauriclia Teixeira de

    Albuquerque. Garopaba, 09 de julho de 2013. Entrevista.

  • 56

    tornou-se a propulsora de todas as aes. Brancos, negros e

    pobres foram vtimas da astcia dos empreendedores

    visionrios que ora aportavam na cidade. Como bem lembra

    Manfredo Hbner:

    Muitos chegaram e trataram logo de comprar

    uma rea de terra para construir uma casa. As

    pessoas foram rapidamente desalojadas, por

    venderem suas terras muito barato, como eles

    nunca tinham dinheiro nas mos, a chegavam

    esses gachos espertos e compravam o cho

    das casas deles, levando-os a morar em outros

    lugares do municpio 22

    .

    Assim, aconteceu com grande parte das pessoas que

    moravam em frente praia ou prximo a ela, venderam ou

    trocaram suas terras por pouco dinheiro ou carro de pouco

    valor. Porm, esse tipo de episdio no aconteceu somente em

    Garopaba, mas em quase todos os municpios do litoral

    catarinense, como por exemplo, na Praia do Rosa, no vizinho

    municpio de Imbituba. Segundo Damzio (2011):

    Quando os primeiros ganchos ou

    veronistas, como foram chamados,

    chegaram, um mundo novo foi apresentado aos

    nativos: mquinas fotogrficas, rdio e

    televiso a bateria, fogareiro a gs, foram

    algumas das muitas novidades que viriam.

    Apesar do estranhamento, os nativos

    simpa