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A arte tem como principal função social a definição do eu coletivo – e sua redefinição em função da evolução da coletividade. Suas imagens, qualquer que seja seu grau de variedade, de mistério ou de abstração, fundem- se com o espírito coletivo em algo semelhante a um rosto vacilante ante o espelho. A exposição, por seu lado, é uma tentativa ritual de agrupamento de uma comunidade em torno de uma definição de si mesma, seja uma comunidade recente ou estabelecida há muito tempo. 1 O exame aprofundado das obras de arte de qualquer cultura que seja permite fazer sobressair a visão que essa cultura tem tido ou pretendeu ter de si mesma em cada época. Um museu, enquanto depositário de tais épocas, ilustra a imagem que uma cultura tem de si, uma imagem historicamente estratificada. Poderíamos comparar a coleção permanente de um museu com as marcas feitas em uma parede para registrar o crescimento de uma criança ou com uma série descontínua de fotos de viagem, ou, ainda, com imagens em câmera rápida da evolução do curso de um rio. As exposições temporárias refletem igualmente idéias do eu, porém muito mais pelo viés de uma visão fugitiva do que por fragmentos conservados do passado, na medida em que as vitrinas diante das quais passamos nos permitem entrever o eu no detalhe de sua evolução. Cada objeto sugere definições, mas, enquanto ele não estiver exposto, essas definições permanecem em estado letárgico. É a exposição que ativa esse poder de definição e o canaliza. O objeto exposto foi isolado da matéria que rodeia as coisas e disposto deliberadamente de modo a projetar uma certa afirmação da identidade que envolve todo sujeito que se introduz em seu campo, mesmo que apenas o olhando. Os espectadores podem, é claro, rejeitar as atribuições de identidade projetadas pelos objetos expostos, mas têm de considerá- las de uma maneira ou de outra, seja por afirmação glorificadora, resistência interior, aceitação passiva, distanciamento irônico ou por qualquer outra postura. O objeto de arte exposto encerra, então, uma noção do eu em um sentido vivo e constitutivo, enquanto conjunto de sugestões e de proposições; algo de animista é aqui sugerido, estranhamente similar ao modo como falamos de obras de arte teorizando sobre a expressão ou sobre a alma. Uma exposição é uma proposta, e esta, habitualmente, se concentra sobre um ponto muito preciso, na medida em que um curador reúne, tradicionalmente, objetos que tenderão a confirmar suas recíprocas implicações com a realidade e com o papel do eu no seio dessa realidade. As propostas costumam ser distribuídas em estratos ou em séries; emergem TEMÁTICA • THOMAS MCEVILLEY 177 Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre Thomas McEvilley O texto discute o papel da exposição de arte em seu poder de definição e canalização das definições presentes, mas em estado letárgico, nos objetos expostos, os quais postulam um processo de definição do espectador, bem como determinadas afirmações sobre os grupos aos quais pertencem. Contrapondo os critérios pós-modernos de curadoria aos que regeram as exposições modernistas, o autor analisa, em particular, os pressupostos da mostra Magiciens de la Terre, realizada no Centro Georges Pompidou, em 1989, fundados na contradição, pluralidade e falta de essência. Exposição pós-moderna, arte etnológica, colonização, pluralidade.

McEvilley, Thomas. Abertura Da Cilada - A Exposição Pós-moderna e Magiciens de La Terre

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Exposições, História da Arte; Magiciens de la Terra;

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  • A arte tem como principal funo social adefinio do eu coletivo e sua redefinio emfuno da evoluo da coletividade. Suasimagens, qualquer que seja seu grau devariedade, de mistrio ou de abstrao, fundem-se com o esprito coletivo em algo semelhante aum rosto vacilante ante o espelho. A exposio,por seu lado, uma tentativa ritual deagrupamento de uma comunidade em torno deuma definio de si mesma, seja umacomunidade recente ou estabelecida h muitotempo.1 O exame aprofundado das obras dearte de qualquer cultura que seja permite fazersobressair a viso que essa cultura tem tido oupretendeu ter de si mesma em cada poca. Ummuseu, enquanto depositrio de tais pocas,ilustra a imagem que uma cultura tem de si, umaimagem historicamente estratificada. Poderamoscomparar a coleo permanente de um museucom as marcas feitas em uma parede pararegistrar o crescimento de uma criana ou comuma srie descontnua de fotos de viagem, ou,ainda, com imagens em cmera rpida daevoluo do curso de um rio. As exposiestemporrias refletem igualmente idias do eu,porm muito mais pelo vis de uma visofugitiva do que por fragmentos conservados dopassado, na medida em que as vitrinas diantedas quais passamos nos permitem entrever o euno detalhe de sua evoluo.

    Cada objeto sugere definies, mas, enquantoele no estiver exposto, essas definiespermanecem em estado letrgico. a exposioque ativa esse poder de definio e o canaliza.O objeto exposto foi isolado da matria querodeia as coisas e disposto deliberadamente demodo a projetar uma certa afirmao daidentidade que envolve todo sujeito que seintroduz em seu campo, mesmo que apenas oolhando. Os espectadores podem, claro,rejeitar as atribuies de identidade projetadaspelos objetos expostos, mas tm de consider-las de uma maneira ou de outra, seja porafirmao glorificadora, resistncia interior,aceitao passiva, distanciamento irnico ou porqualquer outra postura. O objeto de arteexposto encerra, ento, uma noo do eu emum sentido vivo e constitutivo, enquantoconjunto de sugestes e de proposies; algode animista aqui sugerido, estranhamentesimilar ao modo como falamos de obras de arteteorizando sobre a expresso ou sobre a alma.

    Uma exposio uma proposta, e esta,habitualmente, se concentra sobre um pontomuito preciso, na medida em que um curadorrene, tradicionalmente, objetos que tendero aconfirmar suas recprocas implicaes com arealidade e com o papel do eu no seio dessarealidade. As propostas costumam serdistribudas em estratos ou em sries; emergem

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    Abertura da cilada: a exposio ps-modernae Magiciens de la Terre

    T h o m a s M c E v i l l e y

    O texto discute o papel da exposio de arte em seu poder de definio e

    canalizao das definies presentes, mas em estado letrgico, nos objetos

    expostos, os quais postulam um processo de definio do espectador, bem como

    determinadas afirmaes sobre os grupos aos quais pertencem. Contrapondo os

    critrios ps-modernos de curadoria aos que regeram as exposies modernistas, o

    autor analisa, em particular, os pressupostos da mostra Magiciens de la Terre,

    realizada no Centro Georges Pompidou, em 1989, fundados na contradio,

    pluralidade e falta de essncia.

    Expos io ps-moderna, a r te etno lg ica , co lon izao, p lu ra l idade.

  • no esprito como cadeia de implicaes, paradizer a verdade, como uma discusso global,ainda que camuflada por elementos de negaoou de ambigidade. Se a exposio se prope areivindicar a qualidade da obra, essareivindicao se transforma tacitamente em umadeclaro de qualidade. Ao mesmo tempo, aafirmao da qualidade dos elementos expostosse desdobra em uma terceira afirmao relativaa sua importncia histrica, e essa proposta setransforma, por sua vez, em definio dahistria. essa corrente particular que deveracolher a noo especfica da importncia queela mesma extrai da natureza da qualidade,concretizada por essas obras particulares. Pormais que as idias dominantes relativas qualidade, importncia e histria determinemo sentido da natureza humana e de seudesenho, a pessoa do espectador termina presaem uma teia de proposies, que reforam ouameaam sua idia de identidade e sua idia dosentido da vida. Sob tal perspectiva, o eu doespectador que est em jogo em uma exposioartstica, e no o eu do artista. A exposio seapodera do espectador para inseri-lo em seusistema de definies, de implicaes e depropostas, sistema mudo, porm convergente.

    A apropriao do espectador no diz respeitoapenas ao artista ou a qualquer outro criador deobjetos para sua exposio: os objetos podemexpressar um sentido individual da noo do eusem inteno de apropriao; diz tambmrespeito ao organizador da exposio ou docurador, que transportam os objetos do ateliao espao de exposio, do privado esferapblica, colocando-os em um lugar ou posioprontos para capturar o espectador naarmadilha. Sob esse ponto de vista, amuseologia o estudo no das imagens ouobjetos, mas dos arquivos do eu humano, desua srie de definies e de redifinies, de suanudez em seu prprio passado.

    Em seu processo de definio do espectador, oobjeto exposto postula, alm disso,determinadas afirmaes sobre os grupos aosquais pertence o espectador. A hegemonia deuma comunidade de gosto atua sempre emproveito de uns sobretudo dos que ditam oscritrios e em prejuzo dos outros dos quevem as coisas de maneira distinta. Em temposnormais, as afirmaes que emanam de umaobra de arte ratificam tacitamente uma secretapretenso normalidade da opinio de umadeterminada classe ou camarilha, negando aomesmo tempo esse status aos excludos,

    implicitamente designados como detentores deuma opinio anormal. Superficialmente, o grupoque elevado ao nvel da normalidade pelaexposio de uma determinada definio dequalidade o consegue graas a seupertencimento a uma comunidade de gostos; osoutros grupos so, necessariamente, supostosde no possuir o gosto apropriado. Levando-seem considerao, porm, um meio platnico(englobando, de certa maneira, a estticakantiana e a crtica formalista que dela deriva), afaculdade do gosto uma analogia oculta daalma;2 a denegao do gosto equivale a umadenegao da humanidade dos que no fazemparte do grupo dominante. Os membros dacomunidade secreta do gosto conformamtambm a comunidade dos eleitos, daquelesque tm uma alma em um mundo de brutos.De resto, a proclamao de uma ambioespiritual mascara uma srie de outras ambies,sobretudo as manifestapes do poder; e, emcertos casos, um materialismo subjacente.3

    Ao proclamar a normalidade dos valores e dasatitudes da comunidade que ela tem porobjetivo congregar, uma exposio sugereigualmente a universalidade de sua validade.Talvez, por meio dessa afirmao queaparentemente no necessita de discusso, aexposio parea dar provas de sua veracidadeou, pelo menos, da potncia de suasproclamaes. Nos perodos de estabilidade,v-se um certo tipo de exposio se padronizar,demonstrando que a sociedade se estratifica emtorno de uma estrutura de poder que seautolegitima expondo regularmente osobjetos-fetiche do grupo no poder.Ao se identificar mutuamente comum conjunto de imagens queconsidera suas, o grupo se vreforado em seus interesses eno sentido de sua elementarexatido. dessa maneira queuma exposio umacontecimento social quecimenta ritualmente uma classeque, por mais que, em ltimainstncia, seus limites sejameconmicos, se define abertamentepela similitude do meiosociocultural. Trata-se de um rito deaproximao mais distendido e noto estritamente profissional comoum acordo comercial, mas esse ritoserve paralelamente a um gruporestrito cujos membros sabem

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  • perfeitamente quem so. Podem-se encontarno antigo Egito ou na Europa medieval aindaque no seja preciso retroceder tanto notempo casos extremos de uma arte e de umestilo de exposio ossificados ao redor deuma estrutura social estvel.

    A arte modernista de base era um mostruriode objetos-fetiche camuflados, carregados deproposies ocultas. Essas proposies atuamcomo uma espcie velada de descrio,presente de maneira complexa na arte dita nofigurativa. Sob o ponto de vista cosmogrfico[cosmogrammique], por exemplo, os pintoresabstratos modernos tendem a descrever idiasrelativas realidade como se fossem ilustraesde idias metafsicas. A similitude visual entre aspinturas de Piet Mondrian e determinados estilosclssicos da abstrao tntrica hindu do sculo18 reflete um contedo metafsico igualmenteprocurado pelos artistas desses dois domnios decomparao, como testemunham suasdeclaraes. Ambos mostram uma imagemmetafrica de um universo matemtico regido apartir de seu interior por uma rigorosapluralidade de foras eternas. Do mesmo modo,os drippings de Jackson Pollock so cosmogramasda idia de flutuao metafsica, processo emcujo curso emergem e desmoronam entidadessem perodos intermedirios permitindointerromper sua definio. Podemos fazerobservaes semelhantes acerca da artemodernista quase em sua totalidade: seusexemplos clssicos esto amide impregnadosde intervenes metafsicas.4 Tais proposiessobre a natureza do cosmo implicam outras,relativas natureza humana e realidadesocial, indicando que suas bases metafsicas seapiam em leis csmicas.

    As declaraes da obra de arte sobre aidentidade individual e suas formulaesmetafsicas conjugam-se em um s movimentodinmico de dimenso poltica, em que sedesenvolve um tipo de descritivo ou designificante, unindo o individual e o arquetpico.As reivindicaes e as proposies relativas idia do eu se estendem aqui da escala dointeresse individual ou particular do grupo escala da nao. As obras da vanguarda daEscola de Paris, por exemplo, sinalizamtacitamente a hegemonia cultural da Europanessa poca, e, em particular, da Frana; asobras de ps-guerra da Escola de Nova Yorksinalizam igualmente, entre outras coisas, aemergncia da hegemonia da Amrica. Ao

    concretizar a corrente de poder, as obras dearte de uma cultura dominante legitimamigualmente a reivindicao de uma determinadaarte de viver; as obras do expressionismoabstrato norte-americano do perodo da guerrafria, por exemplo, foram enviadas ao exteriorpara defender a legitimidade das democraciascapitalistas frente s ditaduras comunistas.5 Emum marco ainda mais amplo e mais global, aarte modernista, nico e gigantesco cone,representava a supremacia internacional daclasse rica e instruda, que apreciava, colecionavae expunha esses fetiches.

    Esse sistema de reivindicaes desprovidas depalavras produziu outros meios convincentes,como um estilo de instalao semanticamentecarregado que se desenvolveu em torno daabstrao modernista. O espao da galeria emforma de cubo branco,6 purificado comostentao, reivindica no somente auniversalidade, mas tambm a eternidade. Oespao de exposio, de um branco imaculado,muitas vezes sem abertura, apresenta para acontemplao fetiches da classe dirigente em umno-espao abstrato ou idealizado, como oscentros ritualizados das culturas arcaicas, queseus usurios consideram situados fora doespao ordinrio, fora do tempo e dacausalidade. O espao dedicado arte se subtraia todo provvel contgio de mudana, subtrai-seaos movimentos da rua, aos conflitos e sdivises sociais aparentes como aconfrontao com os sem-teto , eevidentemente a toda a sociedade comoconjunto de circunstncias em constantemudana mais do que como ordemeternamente aprovada. No interior protegido dagaleria ou do museu, como num espaoreservado a ritos religiosos, compartilha-se opo e o vinho por ocasio do vernissage. Umavez este concludo, o consumo, marca demudana e de transformao, proibido; osvisitantes no devem comer, nem beber, nemdormir, nem rir nesse lugar. Os banheiros estoocultos, como negao do processo dedefecao com a mensagem de sic transit. Onico consumo autorizado, a compra de obrasde arte, se faz em segredo, atrs de portasfechadas. A arte se apresenta num espao quesugere que o processo de mudana no mundose interrompe aqui. Como o antigo centro ritual o espao situado na cpula do zigurat ou nocorao da pirmide , o espao dedicado arte um cordo umbilical ligado eternidade; pormeio dele, a ratificao da eternidade se modela

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  • sobre certos objetos e, por extenso, sobre asatitudes e a hegemonia da classe qualpertencem por comunidade de gosto. Oaspecto quase eterno do lugar implica que aratificao dessas obras no se debilita nemmuda jamais; em conseqncia, o gosto (a alma)que se oculta por detrs das obras encontra-seprojetado sobre a eternidade como por efeitode um ditame ou de um decreto divino; aestrutura social que se apia nesse gosto seencontra, em virtude da magia benevolente queconsiste em tornar eternos esses fetiches,igualmente afastada da idia de mudana.7Assim, pois, o estilo da exposio aporta redede persuases novas proposies ocultas.

    Quando uma cultura expe os objetos de outra,o conjunto de proposies e de apropriaesencontra-se ampliado do mesmo modo. Paraalm da escala do indivduo, dos agrupamentosde interesses, da nao e da classe internacional,a exposio coloca o acento nas relaes entreas zonas de culturas multinacionais. O melhorexemplo, claro, a exposio, pelas culturascolonialistas ocidentais, de objetos pertencentess culturas colonizadas do chamado TerceiroMundo. Em tal situao, os objetos expostos,que em seu contexto original eramfreqentemente fetiches religiosos, seconvertem, ao contrrio, em fetiches da religioprofana do imperialismo, o que simbolicamentese justifica pelo fato de coagir tais objetos submisso. A demonstrao da superioridade dacivilizao ocidental graas s conquistas coloniaisfoi uma idia muito difundida na Europa desde osculo 17. No sculo 19, abrigados nosgabinetes de curiosidades e nos primeirosmuseus etnogrficos, os objetos tribaisreforaram esse ponto de vista; representavamas conquistas dos povos tradicionais pela culturaocidental modernista, um pouco maneira dobutim tomado aos povos de pele escura que seapresentavam nas marchas triunfais da Romaantiga. O butim do colonialismo tambm suavalidao e a prova de sua superioridade.Assim como os templa Augusti situados nosconfins do Imprio, como o de Barygaza nandia, os objetos capturados representam obrao da civilizao ocidental, que se estendeem volta do mundo, que toma o que quer esempre est disposto a defender seu direito aatuar dessa maneira.8

    Enquanto os crticos ocidentais de princpios dosculo 20 comearam a dar aos objetos tribaiscapturados o qualificativo de arte, e enquanto

    se comeava a transferir esses objeto dosmuseus etnolgicos aos museus de arte, essesobjetos passavam a se integrar maisprofundamente na grande srie de fetichesmodernos, penhores da superioridade doOcidente. A reinterpretao desses objetos,longe das intenes originais de seus criadores,extirpando seus desgnios para integr-los naintencionalidade de desgnio alheio, e fazendo omesmo com seu gosto, representa uma violaoperptua da integridade da cultura estrangeira.Supe, alm disso, que os criadores nocompreendem as intenes contidas em seusprprios objetos e que precisava o olhosupostamente superior do connaisseur ocidentalpara lhes explicar qual era realmente o destinode seus prprios objetos. Transferidos,atualmente, dos museus etnolgicos aos dearte, os objetos usurpados concretizam emsilncio, ainda que com eloqncia, aafirmao de que a transcendncia do olharda cultura ocidental retifica a m compreensodos outros povos da orbe.9

    A estratgia da exposio modernista consisteem supor que a instalao de objetos tribais noentorno depurado da galeria os liberta de seucontexto; essa estratgia os coloca efetivamenteno contexto da pretenso do Ocidente de sesituar fora de todo contexto. Isso os coloniza denovo, retrospectivamente, em um deleite deseus cadveres. Na exposio modernista doque se chama a arte primitiva, a idia esttica ouformalista da arte se sobrepe aos objetos quepossuem desgnios fundamentalmentediferentes. A viso historicista hegeliana imposta aos objetos percebidos em umaapreenso distinta do tempo. Os critrios dequalidade ocidentais so impostos s obras que,ainda que sejam arte, no foram criadas emconformidade com os seus princpios. Oresultado uma pretenso universalidade deuma certa idia de qualidade, ou de um certogosto uma pretenso que excede globalmenteo plano do espectador para estender-se aoplano da cultura.

    A convico de que existiam valores universais eimutveis, e de que esses valores se amparavamna poltica cultural e social de Europa Ocidentale da Amrica do Norte poltica de naesessencialmente colonizadoras tem sido tpicado modernismo e foi efetivamente um de seusamparos histricos. O modernismo hegelianoenunciava a histria como uma fora que atuavateologicamente para a consecuo de umameta; essa fora do subjetivo universal, atuando

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  • no seio dos objetivos particulares, receberia suadefinio e sua posio dominante de um grupode indivduos hiperconscientes que, medianteviso ou intuio superiores, captavam osvalores para os quais a histria secretamentetendia e a ajudariam em sua dmarche. Essepapel de vanguarda histrica foi adotado pelasnaes colonialistas, tal e como antes oscruzados haviam justificado sua conquista emnome da salvao das almas.

    O modernismo, apoiando-se em um misticismodo progresso e do mtodo cientfico,considerava-se um ponto de vista global outranscendente, capaz de se situar acima dosinumerveis pontos de vistas tribais dos demaispovos e de julg-los. Terminou, recentemente,por parecer representar ele prprio apenas umponto de vista tribal, o da cristandade ocidentaldesde o Renascimento. Sua irrefutvel auto-imagem coloca em questo seu papel deconquistadora, que remonta pelo menos aosculo 11. Da se infere talvez o fato de que ocontato com outras culturas, iniciado pelascruzadas e intensificado pelo colonialismo, nobaste para relativizar imediatamente as atitudeseuropias (ou crists) em relao a uma escalamais ampla, mais parecia refor-las pela via deuma submisso imposta aos povosestrangeiros. Mais perto de ns, a noo decomunidade de naes entendida como aldeiaglobal tem dado lugar a uma crtica e relativizao das atitudes ocidentais.

    A ameaa de ver a cultura ocidental destruir oecossistema da Terra inteira, para no falar dadestruio total da prpria Terra, da devastaodo sudeste asitico causada pelas intrusesneocolonialistas, do longo impasse da guerra fria,tudo isso e ainda muitos outros problemas,obrigou a tomar conscincia de que a culturaocidental, sob um ponto de vista histrico, nopodia mais ser indefinidamente justificada apenaspelo simbolismo. A estpida crena em seucarter universal e eterno estava abalada. Ostranstornos sociais que desse fato derivaramtiveram ressonncias em todo o mundo da arte.

    O sentimento de que sua prpria cultura nodefine um modelo que todas as demais culturasesto distantes de querer, mas simplesmenteuma posio entre outras, constitui a prpriaessncia da virada de opinio que se chama ps-modernismo, pela qual todas as comunidadesde gosto se relativizam. Isso no significa o fimda qualidade ou da autoridade do gosto, massua limitao a um grupo condicionado. Dentro

    de uma comunidade de indivduoscondicionados da mesma maneira, os padresde qualidade consensuais estabelecemdefinies, vnculos e uma justificativa, dentrodos limites desse consenso. E, no entanto, noseio de outra comunidade ou dessa mesma,mas em poca diferente, possvel que sedefinam padres totalmente diferentes, padresportanto reais em sua poca e que seguem osmesmos princpios de realidade: eles oferecem aseu grupo uma esfera de auto-reflexo e deautodefinio, um espelho que lhe serve paraexaminar as significaes de suas mudanas e desuas evolues, bem como de hipteses bsicasque sejam relativamente estveis.

    A estratgia de uma exposio ps-modernaparte da descoberta do fato de que as categoriase os critrios no possuem validade inata masto somente a validade que se lhes atribui eque sua transgresso pode ser, portanto, umcaminho para a liberdade. Em termos de culturada exposio, isso significa que os homenspodem expor aos outros homens o que querque seja e pelos motivos que sejam, desde queessas razes possam ter ressonncias no interiordo grupo a que se dirige. A exposio ps-moderna no intervm nas contendas sobre asidias de qualidade ou centralismo histrico.Graas a isso, diferentes desgnios, diferentesdefinies e padres de qualidade podem seesbarrar sem que nenhum predomine ou seimponha aos outros. Do mesmo modo, oprograma ps-moderno da histria da arteprecisa de estudos sobre os cnones, vistos emsua relatividade de uma poca a outra dentro damesma tradio, e de uma tradio a outra. Opropsito desses estudos no ser a busca deuma essncia comum a todos, mas a insistnciana prpria diferena.

    A estratgia da exposio ps-moderna deveesforar-se no para obter fragmentos deuniformidade, como ocorria com a exposiomodernista em sua tentativa de universalizaodos cnones, mas para atingir uma concentraona diferena que honra o outro e lhe permiteser ele mesmo sem tratar de reduzir ainumervel multiplicidade, estabelecendo oprincpio autoritrio de uma uniformidade oculta.Ela coloca em jogo o difcil ideal que consiste emdeixar que as coisas sejam o que so, ou aquiloque eram quando eram elas mesmas, antes deser integradas em categorias que no so assuas. Um fracasso nesse aspecto podecomportar ao menos uma tomada deconscincia, ou uma tentativa de tomada de

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  • conscincia da categoria e da qualidade implcitasem tal ttica, assim como de suas razes elimitaes. A exposio ps-moderna noenuncia um princpio da qualidade, mas simmuitos princpios pluralistas e relativizados;tampouco enuncia um princpio unificador domovimento em geral, nem da histria da arte,nem, claro, da histria, muito menos nenhumahierarquia definida. Nos anos 80, arelativizao das atitudes ocidentais deu lugara uma nova abordagem das culturas noocidentais com um sentimento fascinado emrelao realidade de sua diferena, vista nocomo um sentimento romntico do nobreselvagem, e sim como interesse pelo futuro,um interesse compartilhado e de fatomutuamente dependente.

    Magiciens de la Terre umatentativa marcante de execuo deuma estratgia de exposio ps-moderna, ou seja, uma estratgiaque tenta conscientementedesdenhar das crenas modernistasem relao aos cnones universais,da histria dominada pelo progressoe da realidade transcendente daforma pura. Redigindo este textoantes da exposio, por ora no sei(e provavelmente tampouco osaberei depois) se Magiciens de laTerre cumprir bem seucompromisso ps-moderno. Hdeterminados problemas derivadosde mtodo em parte das dimensesda exposio. Ela deve apresentar100 artistas, distribudos mais oumenos eqitativamente entreocidentais e no ocidentais. Essaseleo bipartite, apesar de suaspretenses liberais, concede aindaum claro predomnio ao grupoocidental, cuja populao muitomais reduzida. Entretanto, oscuradores da exposio tm asensao de que a distino entreocidental e no ocidental possuiautenticidade discutvel (tendo emvista a situao do Japo) bemcomo, alis, a mistura das culturasem geral; essa sensao no desprovida de plausibilidade.

    Outro problema de metodologia,em parte tambm fruto dasdimenses da exposio, reside nofato de que a seleo das obras foi

    majoritariamente efetuada por indivduosocidentais, que, embora se esforando comsinceridade para evit-lo, podem ter tendido aimpor seleo um determinado gosto. Emalguns casos, mas nem sempre, os curadorescontaram com a ajuda de especialistas locais. Oideal talvez tivesse sido que o mesmo ocorresseem todos e cada um dos casos e que as obrasde cada comunidade fossem escolhidas porespecialistas representativos de cadacomunidade em questo, valorizando assim umavariedade de critrios de qualidade, todos comigual pretenso ao reconhecimento. O fato deque os responsveis pela seleo no tenhamsido sempre especialistas no campo em quedeveriam efetuara suas escolhas e de que, emalguns casos, no tivessem podido ver uma

    amostra completa totalmenterepresentativa das obras disponveis,acrescenta um evidente grau deacaso, o que equilibra de algummodo os problemas metodolgicos,graas a sua abertura.

    Magiciens de la Terre espera, afinalde contas, oferecer um ponto devista sobre a situao global da artecontempornea, com todas as suasfragmentaes e diferenas. Esseponto de vista pode por sua vezmodificar o formato das grandesexposies internacionais queneglicenciam a arte de 80% dapopulao mundial. possveltambm que ela amplieconsideravelmente o conjunto deartistas passvel de ser mostrado eque modifique completamente ascorrentes dominantes em matriade gosto. A realidade da artecontempornea como empresacomum dos artistas da Europa, daAmrica, da ndia, da China, doJapo, da Austrlia, do Egito e deoutros pases exige uma reviso daconsiderao da histria e de suasmltiplas correntes e direes. Osartistas contemporneos da ndiaassimilam a Escola de Paris e aEscola de Nova York, da mesmamaneira que os artistas europeus eamericanos assimilaram fragmentosda arte africana e da Oceania.10 NaChina, os artistas contemporneoslutam por entremear os estilos detradies milenares e as influncias

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  • que atualmente recebem do Ocidente. NaAustrlia, os artistas aborgenes de hojedescobrem pontos de interseo entre seusestilos tradicionais e a abstrao dos anos 60.Na Grcia, os artistas contemporneosremetem-se alternativamente obra daAcrpole e obra de Joseph Beuys.

    Na medida em que esta exposio, comoqualquer outra, se esfora em preencher asduas funes de definio e de aproximao, suaescala global acarreta alguns problemas. O maiordeles talvez resida em manejar a dimensoquase universal da exposio sem enunciarprincpios universais, em evitar as afirmaesplatnicas de justificao universal e eterna quepoderiam surgir perfeitamente de um sentidoexttico da aproximao global. Sua contradiointerna oculta cuja resoluo seria gloriosapara a exposio reside no fato de que nopode existir definio que no seja em relaoao que exterior definio, e de que nopode existir aproximao no interior de umgrupo que no seja em relao a outro grupo.Em seu af de no impor categorias, mas decriar uma abertura, Magiciens de la Terre defineo indefinido ou a variedade contraditria eprope uma aproximao em torno dacontradio, da pluralidade e da falta deessncia, em torno de uma idia do eu que hde ser relativa, mutante, com mltiplas facetas,em torno, em outras palavras, de uma no-idiado eu. A dificuldade desse projeto proporcional a sua importncia.

    Thomas Mc Evilley professor de Histria da Arte na Rice University,em Houston. Publicou numerosos livros incluindo monografias sobreJulian Scnabel, Les Levine, Pat Steir, Ulay e Marina Abromovic, JannisKounellis e Anselm Kiefer , dos quais se destacam Art&Discontent:Theory at the Millenium (Nova York: McPherson & Company, 1989);Art&Otherness: Crisis in Cultural Identity.(Nova York: McPherson &Company, 1992). Colabora com as revistas Artforum e Art in America.

    McEvilley, Thomas. Ouverture du pige: lexpositionposmoderne, catlogo da exposio Magiciens de la Terre.Paris: Centre Georges Pompidou, 1989: 20-23. (tr. fr. deElisabeth Galloy). Rep. In: Guasch, Anna Maria (org.): Los man-ifiestos del arte posmoderno. Texto de exposiciones, 1980-1995.Madri: Ediciones Akal, 2000.

    Traduo: Xenia Roque Benito

    Reviso Tcnica: Glria Ferreira

    NNoottaass1 Para mais dados, ver McEvilley, T. On the Art Exhibition

    in History: The Carnegie International and theRedefinition of the American Self , no catlogo daexposio Carnegie International, Pittsburgh: TheCarnegie Museum of Art, 1988: 18-25.

    2 A idia de Kant sobre a faculdade do juzo ou do gostoretrocede na histria do pensamento at o olho daalma, idia que Plato desenvolve em A Repblica(7527, 533d). A doutrina de Plotino converteu-se no

    fundamento da teoria esttica dos sculos 18 e 19,de Shaftsbury a Kant e Goethe.

    3 Esse extremo ilustrado pela colaborao de BernardBerenson com o marchand Joseph Duveen, que lheoferecia 25% sobre a venda de obras que Berensonenaltecia diante dos clientes, valendo-se de suaautoridade no mundo do gosto assim como umpadre nas questes da alma para elevar o preo.(Ver Simpson, C. The Bilking of Jules Bache,Connoisseur, outubro 1986, e The BerensonScandal, ibid.). Os lucros que Greenberg obtinha dasvendas de obras de artistas que ele havia projetado efeito reconhecer graas a sua posio ditatorial emmatria de gosto outro exemplo.

    4 Para um conjunto de textos sobre esse aspecto da artemoderna, ver Tuchman, M. The Spiritual in ArtAbstract Painting 1890-1985, Nova York: AbbevillePress, 1986. Ver tambm McEvilley, T., TheOpposite of Emptiness, Artforum, maro 1987, eHeads Its Form, Tails Its Not Content, Artforum,novembro 1982.

    5 Ver o material recolhido em Pollock and After; The CriticalDebate, ed. Francis Frascina, Nova York: Harper andRow, 1985.

    6 Assim chamava Brian ODoherty a maneira de expor aarte moderna depois de Betty Parsons. VerODoherty, B., Inside the White Cube: The Ideology ofthe Gallery Space, prlogo de Thomas McEvilley,Santa Monica: Lapis Press, 1986.

    7 Visto supor-se que os critrios de qualidade queinformam as obras no mudam nunca, as obras dearte que os renem se convertem em objetos deinvestimento transcendentes, mais estveis do que asmoedas ou as aes, sem depender das flutuaes devalor causadas pelos fenmenos sociais. Esseprocesso se concretizou, ou se converteu em umcorrelato objetivo na quebra da Bolsa de Nova Yorkde 19 de outubro de 1987, seguido da crise domercado mundial; enquanto as aes caamdrasticamente, o valor das obras de arte aumentava.A arte se legitima de modo transcendente quandoencerra valores mais profundos e mais duradouros doque os valores do dinheiro e da realidade material emgeral. As relaes tradicionais da arte e da religio,por fim imbudas da idia de um tipo de valor acimado material, evocam-se secretamente nesse conceitode mercado, como ocorria com a crtica que insistiana forma pura.

    8 Para o templum Augusti em Barygaza, ver Sir Wheller, M.Rome Beyond the Imperial Frontiers, Londres: Nelle,1954: 177.

    9 H pouco se produziu um caso especialmente flagrantede semelhante usurpao: ocorreu na exposio doMuseum of Modern Art de Nova York, em 1984,Primitivism in Twentieth Century Art. Expostos comoacessrios da histria da arte moderna ocidental, osobjetos usurpados da frica, da Oceania e de outroslugares no ficavam somente privados de seusdesgnios e sistemas de valor de origem, mas, almdisso, se subordinavam aos objetos que de fato sederivavam desses desgnios e sistemas de valor, frenteaos quais, por uma inverso do curso histrico, osobjetos tribais no eram mais do que acessrios.Esses objetos tribais estavam imbudos de poderdentro de uma viso da histria para a qual nohaviam contribudo, uma viso que consistia em parteem sua subordinao. A funo unificadora daexposio foi levada ao extremo da perversidade.Com a identificao superficial e sem critrio dosobjetos das culturas no ocidentais, o pblicoocidental os arrancava de sua identidade prpria semlhes dar outra, deixando-os partirem deriva comum lastro demasiado frouxo por um oceano demudanas de significado imprevisveis e explosivas.

    10 Para uma discusso sobre a complexa situao dadifuso, ver Thomas McEvilley, The Common Air:Contemporany Indian Art, Artforum, vero 1986.

    T E M T I C A T H O M A S M C E V I L L E Y 183