14
Harold G. Koenig Tradução de IURI ABREU a Medicina, religião e saúde o encontro da ciência e da espiritualidade

Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 3

Harold G. Koenig

Tradução de IurI Abreu

a

Medicina,religião

e saúdeo encontro da ciência

e da espiritualidade

Page 2: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 5

Para Martha Haley

Page 3: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 7

Sumário

Introdução ........................................................................................... 3

Capítulo 1: Termos do debate ............................................................ 9

Capítulo 2: Medicina no século XXI ................................................ 21

Capítulo 3: Da mente para o corpo.................................................. 37

Capítulo 4: Religião e saúde ............................................................. 54

Capítulo 5: Saúde mental ................................................................. 68

Capítulo 6: Os sistemas imunológico e endócrino ......................... 82

Capítulo 7: O sistema cardiovascular............................................... 96

Capítulo 8: Doenças relacionadas ao estresse e ao comportamento ................................................... 113

Capítulo 9: Longevidade ................................................................. 129

Capítulo 10: Deficiência física ........................................................ 146

Capítulo 11: Aplicações clínicas ..................................................... 156

Capítulo 12: Considerações finais .................................................. 172

Apêndice: Recursos adicionais ....................................................... 175

Notas ................................................................................................ 195

Índice remissivo .............................................................................. 227

Page 4: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

8 | Introdução

Page 5: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 1

Medicina, religião e saúde

Page 6: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

2 | Introdução

Page 7: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 3

Introdução

A senhorA hArrIs morreu ontem aos 101 anos de idade. Ela estava vi-vendo em uma casa de repouso, mas a família disse que ela permane-ceu alerta até o fim. Em seus últimos dias, como fizera durante toda a vida, tentou consolar e incentivar parentes e amigos – mesmo es-tando doente. Ela destacava as boas qualidades deles. Expressava que alegria era ver alguém e que futuro especial aguardava cada um deles. A família disse que ela estava cantando um cântico religioso quando sua voz ficou mais fraca, a respiração mais lenta até, finalmente, pa-rar. A senhora Harris deixou um leve sorriso no rosto, um sorriso ao qual a família tinha se acostumado sempre que ela estava muito feliz.

Quando a senhora Harris fez cem anos, perguntaram a ela qual era o segredo de uma vida tão longa. Sem pestanejar, respondeu que era sua fé, sua família e o fato de não beber nem fumar, nessa ordem. E a ordem era importante, ela enfatizava.

Muitos médicos, assim como eu, já conheceram uma “senhora Harris” e, embora possamos imaginar encontrá-la em qualquer es-tado ou cidade, em um hospital ou casa de repouso, ela representa um benchmark de saúde da vida real, tanto física quanto mental. Seu tipo de história, ao qual as pessoas ligam crenças e comportamen-tos à saúde, é o tópico central deste livro. A senhora Harris é ba-seada em minhas duas décadas e meia de experiência com pacientes e com participantes de pesquisas, e usarei a “história” dela ao longo do livro para demonstrar os tipos de encontros que tive. As respostas da senhora Harris ilustram as próprias experiências da vida real que

Page 8: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

4 | Introdução

muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde.

As páginas seguintes abordam um terreno amplo, e nem todo ele é plano e nivelado. Nossas informações sobre os efeitos da religião e da espiritualidade sobre a saúde física e mental ainda são incom-pletas. A discussão desse tópico também é nova na medicina mo-derna. Por consequência, há muitas opiniões sobre o que realmente sabemos nesse campo, o que deve ser feito sobre isso e como fazê--lo. Indicarei onde há controvérsia sobre determinada descoberta ou aplicação, mas também argumentarei a favor de uma conexão entre religião e saúde quando a predominância das evidências, junto com o bom-senso e o raciocínio lógico, sustentar tal ligação. Este livro, portanto, não será escasso em polêmicas, e espero que o leitor fique intrigado.

Organizei o material em quatro etapas, sendo que uma se desen-volve sobre a outra. Comecei definindo os termos religião e espiritua­lidade, demonstrando como a pesquisa sobre o relacionamento com saúde e medicina cresceu drasticamente e se tornará essencial a uma possível crise futura da saúde pública. A seguir, apresento o argumento de que religião e espiritualidade podem, de fato, afetar a saúde de uma forma detectável pela ciência. Em outras palavras, é possível demons-trar que os aspectos psicológicos, sociais e religiosos da vida humana podem afetar o corpo físico.

Após ter apresentado o argumento de que tais caminhos são plausíveis, investigarei mais a fundo seis áreas específicas da saúde humana que possivelmente são afetadas pelo envolvimento religioso. Essas são as áreas em que alguém como a senhora Harris era bastante afortunado, graças a uma boa perspectiva da vida, hábitos saudáveis e um corpo forte. As seis áreas são: saúde mental, funções imunoló-gicas e endócrinas, função cardiovascular, estresse e doenças relacio-nadas a comportamento, mortalidade e deficiência física. Depois de esclarecer como a religião pode afetar a saúde e explorar as evidências científicas que dão suporte a tais alegações, examinarei a aplicação desse conhecimento ao tratamento de pacientes em contextos clíni-cos. Este livro é finalizado com um apêndice que lista recursos para o estudo posterior de religião, espiritualidade e saúde.

Page 9: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 5

Cada um dos capítulos que se seguem analisará pesquisas passadas e atuais, mas também conterá uma questão central que desejo argu-mentar ou, ao menos, deixar aberta para discussão. No Capítulo 1, por exemplo, mostrarei que há opiniões extremamente divergentes sobre a definição dos termos religião e espiritualidade. O termo espiritualidade é amplo e permite que as pessoas deem suas próprias definições. Essa abrangência é útil em ambientes clínicos em que os médicos querem ser sensíveis à ampla variedade de crenças das pessoas. Porém, no âmbito da pesquisa, esses termos devem ser definidos com maior precisão para o estudo objetivo de seu impacto na saúde, e tal exatidão é o que sempre defenderei. Do contrário, normalmente usarei religião e espiritualidade de forma intercambiável, referindo-me ao mesmo aspecto da experiên-cia humana.

No Capítulo 2, apresento a hipótese de que essa área de pesquisa em rápido crescimento será mais importante no futuro, à medida que mais limitações são impostas sobre a assistência médica, sobretudo fa-tores demográficos e financeiros. As populações em envelhecimento nos países desenvolvidos e os custos galopantes de cuidados à saúde em todo o mundo são as duas forças que motivam esse aumento de tensão. Também prevejo uma maior função de comunidades de fé em oferecer serviços de saúde, não só em hospitais, mas também em termos de educação de saúde, suporte social e atendimento de longo prazo.

Os Capítulos 3 e 4 tentam demonstrar que fatores psicológicos e sociais influenciam a saúde do corpo físico. Não muito tempo atrás, essa era uma ideia controversa. Em um editorial de 1985, por exem-plo, Marcia Angell, ex-editora do New England Journal of Medicine, afirmou que “nossa crença na doença como um reflexo direto do estado mental é, em grande parte, folclore”1. Desde que esse editorial foi publicado, muitos estudos em alguns dos melhores periódicos de ciência do mundo provaram que ela estava errada. Hoje, existe um campo que vem crescendo bastante, chamado psiconeuroimunologia – intimamente relacionado à “medicina psicossomática” – que ana-lisa como as experiências mentais e sociais podem afetar aspectos da saúde física.

Minha tese básica nos Capítulos 5 a 10 é a de que a religião tem o potencial de influenciar a saúde mental e física. No Capítulo 5, abordo

Page 10: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

6 | Introdução

religião e saúde mental cobrindo áreas da experiência humana como depressão, ansiedade e emoções positivas. O Capítulo 6 examina as-sociações entre religião, o sistema imunológico e as funções endó-crinas, com enfoque nas relações em diferentes faixas etárias e em di-ferentes doenças, como fibromialgia, câncer de mama metastático e HIV/AIDS. No Capítulo 7, exploro os efeitos da religião sobre o cora-ção e o sistema circulatório (reatividade cardiovascular, pressão arte-rial, ritmos autonômico e cardiovascular) e sobre comportamentos, como dieta, exercícios e tabagismo, que afetam as funções fisiológi-cas. O Capítulo 8 examina as consequências clínicas do envolvimento religioso sobre os índices de doença arterial coronariana e desfechos pós-cirurgia cardíaca, bem como sobre enfermidades comuns, como câncer, declínio da memória relacionado à idade, doença de Alzhei-mer e diabetes.

No Capítulo 9, reviso diversos estudos de populações grandes nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia que examinam a relação entre envolvimento religioso e longevidade. Essa é uma área bastante contestada, e analisarei as complexidades de interpretar tais estudos, mas argumentarei que, embora tenham intensidade apenas modera-da, as evidências a favor de religião e vida mais longa têm um enorme impacto na saúde pública. O Capítulo 10 aborda o que acredito ser a questão mais importante: não quanto tempo vivemos, mas a qua-lidade de nossa vida e a capacidade de realizar atividades físicas que fazem a vida valer a pena. Doenças de longa duração que persistem mais tarde na vida cobram um preço emocional e têm um impacto na capacidade de trabalhar, na vida social e nas atividades recreativas. Também discutirei a relação entre religião e deficiência em jovens com problemas de saúde adquiridos devido a doença prematura, aci-dentes ou guerra.

O livro termina com aplicações dessas novas pesquisas. No Ca-pítulo 11, argumento que as descobertas de pesquisa têm implicações para os profissionais da saúde, sobretudo no reconhecimento das muitas formas em que crenças religiosas podem influenciar a assis-tência médica, a adesão do paciente e as decisões médicas2. São moti-vos importantes para que os profissionais da saúde prestem atenção às necessidades espirituais de pacientes e estejam cientes dos limites e

Page 11: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Introdução | 7

das limitações nessa área. Descrevo como e quando a espiritualidade pode ser integrada no atendimento ao paciente e quais são as prová-veis consequências. Finalmente, o apêndice oferece resumos (a) dos principais estudos de pesquisa originais sobre religião e saúde; (b) de artigos de revisão sobre a pesquisa de religião e saúde; (c) de livros sobre religião, espiritualidade e saúde para pesquisadores, clínicos e público em geral; (d) de sites e centros acadêmicos de atividade em religião, espiritualidade e saúde nos quais podem ser encontrados re-cursos adicionais.

O objetivo principal de Medicina, religião e saúde é integrar parte das pesquisas recentes sobre religião, espiritualidade e saúde, fazendo isso de maneira relativamente concisa e em formato legível. Em razão desse enfoque, não se tentou apresentar uma discussão mais completa das questões teológicas. Lembre-se, no entanto, de que essa pesquisa levantou uma série de questões teológicas sérias que também precisam ser abordadas. Uma revisão científica abran-gente e uma discussão teológica da conexão entre religião e saúde serão apresentadas em um volume muito maior, que está atualmente sendo preparado3. Contudo, por enquanto, vamos explorar as mais recentes evidências científicas ligando religião, espiritualidade e saú-de e investigar o que isso significa para médicos, pacientes e aqueles que estão saudáveis e desejam permanecer assim.

Quando disse que os motivos de sua longa vida eram fé, família e ausência de álcool e de cigarros – nessa ordem –, a senhora Harris estava tentando comunicar algo sobre o essencial à saúde e ao bem--estar que aprendera durante sua longa e satisfatória vida. Ela fala-rá conosco mais algumas vezes nas páginas seguintes, conforme nos aprofundamos nesse tópico.

Page 12: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

8 | Introdução

Page 13: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

Termos do debate | 9

Capítulo 1Termos do debate

semPre que mInIstro uma palestra sobre questões de religião e saúde, tento evitar um tópico problemático em especial: definir a diferença entre as palavras religião e espiritualidade. Isso pode facilmente afas-tar uma proporção significativa do público, porque cada um de nós tem suas próprias definições para esses termos, às quais nos apega-mos com bastante convicção. Porém, neste livro, dou-me ao luxo de dispensar algum tempo para explorar esses termos em profundidade. O estabelecimento de definições agora para como usarei esses termos ajudará o leitor a entender o que significa a pesquisa e auxiliará os profissionais médicos na aplicação das descobertas de suas práticas clínicas.

Sem definições claríssimas, a pesquisa sobre religião, espiritua-lidade e saúde não é possível. Por exemplo, se é descoberta uma rela-ção entre “espiritualidade” e longevidade, o que isso significa? A pa-lavra longevidade é compreendida, de modo geral, como se referindo a anos de vida, o que pode ser calculado com exatidão sabendo-se as datas de nascimento e de óbito. Por outro lado, não existe um acordo universal sobre o termo mais nebuloso da espiritualidade. Contudo, se é encontrada uma relação entre espiritualidade e longevidade, pre-cisamos saber o que é “espiritualidade” para entender o que exata-mente está relacionado a uma expectativa de vida longa.

Também precisamos saber como a espiritualidade difere de outros conceitos psicossociais, como bem-estar psicológico, altruísmo, perdão, humanismo, conexão social e qualidade de vida. A espiritualidade deve ser única e diferente de tudo o mais, um fenômeno inteiramente separado, que pode, então, ser exa-minado na sua relação com a saúde. Nossa tarefa, ao conduzir

Page 14: Medicina, religião - lpm.com.br · 4 | Introdução muitíssimas pessoas relatam – experiências que são, muitas vezes, ig-noradas pelos profissionais da saúde. As páginas seguintes

10 | Capítulo 1

pesquisas, é quantificar o grau de espiritualidade de uma pessoa (determinar até que ponto ou grau essa pessoa é espiritual) e descrever de que formas ela é espiritual. Isso é absolutamente ne-cessário para determinar como a espiritualidade está relacionada com a saúde.

Para manter o foco nessas distinções, este capítulo compara quatro conceitos – religião, espiritualidade, humanismo e psicolo-gia positiva – dando atenção especial à espiritualidade, pois se tra-ta de um termo usado com frequência hoje em dia. O significado do termo espiritualidade foi ampliado recentemente para incluir conceitos psicológicos positivos, como significado e propósito, co-nexão, paz de espírito, bem-estar pessoal e felicidade. Segundo os pesquisadores Christian Smith e Melinda Denton, “a própria ideia e linguagem da ‘espiritualidade’, originalmente baseada nas práticas autodisciplinadoras da fé de crentes religiosos, inclusive ascetas e monges, separa-se de suas amarras em tradições religiosas histó-ricas e é redefinida em termos de autorrealização subjetiva”1. Essa nova versão de espiritualidade evoluiu para incluir aspectos da vida que não têm nada a ver com religião, além de, muitas vezes, excluir a religião por completo, como na afirmativa “sou espiritual, não religioso”. Isso pode tornar a espiritualidade indistinguível de con-ceitos seculares.

Há consequências positivas e negativas da ampliação do termo espiritual. Neste livro, que está centrado em pesquisas, argumenta-rei que precisamos restabelecer uma definição mais precisa de espi­ritualidade que retenha sua base histórica na religião. Apesar disso, admitirei que a ampliação do termo representa uma aplicação clí-nica valiosa. Como veremos, a espiritualidade pode ser usada pro-veitosamente de duas maneiras distintas: mais restrita na pesquisa e mais ampla no atendimento ao paciente. Porém, antes de apre-sentar uma definição de espiritualidade, primeiro definirei religião e, a seguir, revisarei tentativas feitas por outras pessoas de definir espiritualidade como algo único e diferente de religião.