Médico a Força

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  • 8/16/2019 Médico a Força

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    MÉDICOÀ

    FORÇATexto de Molière

    Adaptação de Antonio Carlos Brunet

    PERSONAGENS

    MARTINHA - Esther

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    SGANARELLO - Padilha

    ROBERTO -

    VALÉRIO - OdirleiLUCAS - Eder

    GERONTE - Leonir

    JAQUELINA - Suzi

    LUCINDA - Tamires

    LEANDRO - Notli

    NA MATA

    SGANARELLO  –  Chega mulher! Já disse que quem mandaaqui sou eu, e está acabado.

    MARTINHA – E você tem de viver do jeito que eu quero, porqueeu não me casei para agüentar as suas maluquices.

    SGANARELLO – Oh, meu Deus do céu: como é duro um sujeitoser casado! Tinha razão Aristóteles quando dizia que mulher épior que o diabo!

    MARTINHA  – Olhem só os dois sábios: esse daí e o pateta doAristóteles!

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    SGANARELLO  –  Sábio! Isso mesmo! Vê se encontra outrorachador de lenha, que saiba falar um pouco de tudo, que nemeu! Não se esqueça que eu fui, durante seis anos, criado de um

    grande médico, e aprendi muita coisa boa. E tem mais: quandomenino cheguei a estudar latim!

    MARTINHA  – Maldita seja a hora em que caí na asneira de tedar o sim!

    SGANARELLO  – Maldito é o chifrudo do Tabelião que me fez

    assinar a minha desgraça!MARTINHA – O quê?...

    SGANARELLO  –  Olha aqui, ó: vamos encerrar o assunto. Jáchega de saber o que já sabemos, ou seja, que você foi umafelizarda de me encontrar.

    MARTINHA  –  Felizarda de te encontrar? Um debochado, umtratante, que me bate, e ainda por cima come todo o meudinheiro.

    SGANARELLO – Mentira! Não como: bebo!

    MARTINHA – E que vai vender tudo o que a gente tem!

    SGANARELLO – Isso é o que se chama ‘viver do que se tem’. MARTINHA  –  Até a cama: até a cama que eu tinha essebandido vendeu!

    SGANARELLO  –  E fiz muito bem. Foi o único jeito queencontrei para você levantar antes do meio-dia.

    MARTINHA – Não vai me sobrar móvel nenhum em casa!

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    SGANARELLO – Assim a mudança fica mais fácil!

    MARTINHA – E o que é que eu faço meu Deus, com as minhas

    quatro crianças, sendo que dois ainda são de colo?SGANARELLO – Tira do colo e bota no chão.

    MARTINHA (Furiosa)  –  Seu bêbado! Então você pensa queisso vai continuar sempre assim? Que eu não procure te botarna linha?

    SGANARELLO  – Minha querida esposa: você sabe que eu nãotenho o gênio lá muito bom, e que o meu braço é braço mesmo.

    MARTINHA – Acho até graça!

    SGANARELLO (Como quem dá um aviso de que algo ruimpoderá acontecer)  –  Mulherzinha, vidinha: você já está comcomichões, como de costume...

    MARTINHA – Chega para cá! Vou mostrar que não tenho medode você.

    SGANARELLO  –  Minha cara metade: seu corpinho andapedindo pancada.

    MARTINHA – Não adianta que essa conversa não me assusta!

    SGANARELLO  –  Doce objeto dos meus amores: você queruma fricçãozinha nas orelhas?

    MARTINHA – Bêbado!

    SGANARELLO – Olha que eu te amasso a cara!

    MARTINHA –

     Garrafão de pinga!

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    SGANARELLO – Eu te desmonto!

    MARTINHA – Desgraçado!

    SGANARELLO – Eu te arrebento!MARTINHA  –  Bandido, vadio, sem-vergonha, porco, covarde,besta, burro, cavalo, estúpido, sujo e ladrão!

    SGANARELLO  –  Então você quer mesmo, não é? (Pega umpedaço de pau e bate nela.).

    MARTINHA – Ai, ai, ai!...SGANARELLO  –  Só assim que você sossega! (Continuabatendo nela, freneticamente.).

    ROBERTO (Entrando)  – Mas o que é isso? Que vergonha! Oque é isso? Que brutalidade! Bater assim na sua mulher?

    MARTINHA (Com as mãos na cintura, fazendo-o recuar)  – Ese eu quiser que ele me bata?

    ROBERTO – Ah, nesse caso, que bata à vontade!

    MARTINHA – O que é que o senhor tem a ver com isso?

    ROBERTO – Desculpe.

    MARTINHA – É da sua conta?

    ROBERTO – Não.

    MARTINHA (Para a platéia)  – Vejam só, esse metido, que nãoquer deixar os maridos baterem nas suas mulheres!

    ROBERTO – Não está mais aqui quem falou.

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    MARTINHA  –  Não! Ainda mais depois da surra que você medeu!

    SGANARELLO –

     Tá bom, vai? Eu te peço perdão! Agora, toca!MARTINHA (Contrariada) – Está perdoado. (Aperta-lhe a mão.À parte.) Você me paga!

    SGANARELLO  – Bobinha: isso é bom que aconteça de vez emquando. Nada como uns trancos para avivar as labaredas doamor. (Recolhendo suas coisas.) Bom, agora vou pro mato.

    Prometo trazer cem feixes de lenha, hoje! (Sai.).

    MARTINHA  –  Por boa cara que te faça não me passará oressentimento. Enquanto eu não me vingar das pancadas quelevei, não sossego. Sei que uma mulher tem sempre certosmeios de se vingar de um marido. Mas isso é muito pouco.Quero uma vingança que doa. (Senta-se a um canto, num

    tronco, matutando. Entram, pelo lado oposto, Lucas eValério.).

    LUCAS (Para Valério. Os dois não percebem que Martinhaestá em cena)  –  Que diabo! Estamos num beco sem saída!Como é que nós vamos fazer?

    VALÉRIO (Para Lucas, sem ver Martinha)  – Meu pobre Lucas:temos que fazer o que o patrão mandou. E, se não fosse porisso, seria pelo interesse que temos pela saúde da filha, que é,também, nossa patroa. Você vai ver que o casamento dela, quefoi adiado por causa da doença, vai nos render alguma coisa.Olha que Horácio é generoso e é ele quem vai acabar casando

    com ela. Essa história dela ter amizade por um tal de Leandro,

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    não quer dizer nada, pois o patrão nunca quis aceitar esse moçocomo genro.

    LUCAS – Mas, afinal de contas, que diabo de doença terá ela, aponto dos médicos perderem todo o seu latim?

    VALÉRIO  – Às vezes, depois de muito procurar, a gente acabaachando aquilo que não achou, logo no começo. E, muitasvezes, de onde menos se espera. (Pausa.) Enfim, cada qualtem os seus problemas nesta vida. (Vendo Martinha.) Ei moça:

    nós estamos procurando alguém que não encontramos.MARTINHA – Se é alguma coisa que eu possa ajudar...

    VALÉRIO  –  Quem sabe? Estamos procurando um homementendido, um médico particular, que possa curar a filha donosso patrão, que está doente e ficou sem fala. Uma porção demédicos já foi lá, e não conseguiu nada. Mas, muitas vezes,

    acontece que tem gente que conhece segredos para curar, comremédios particulares, e consegue o que os outros nãoconseguiram. É isso que nós estamos procurando!

    MARTINHA (À parte, exultante)  – Ah, é o próprio céu que meinspira para a vingança! (Para Lucas e Valério, ardilosa.) Nãopodiam ter batido em melhor porta. Tenho aqui, um homem, ohomem mais maravilhoso do mundo, para a cura das doençasinesperadas.

    VALÉRIO – Que felicidade! Onde é que ele está?

    MARTINHA – Ele está por aí, rachando lenha.

    LUCAS – Um médico rachando lenha?

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    MARTINHA  – Entendido? Faz milagres! Seis meses atrás, umamulher foi desenganada pelos médicos. Todo o mundo pensavaque ela estava morta, e já iam dar-lhe o enterro. Daí levaram

    esse tal homem! Ele botou na língua dela uma gota de não sei oquê, e a mulher, no mesmo instante, levantou da cama ecomeçou a andar pelo quarto, como se não tivesse acontecidonada.

    LUCAS (Admirado) - Ah!...

    VALÉRIO – Então, eu acho que era ouro em gotas!...MARTINHA  – Pode ser, pode ser... Não faz três semanas, ummenino de doze anos caiu lá da torre da igreja, e esmigalhou nochão, os braços, as pernas e a cabeça. Mas daí levaram lá o talhomem, e o moleque pulou da cama para ir brincar deamarelinha.

    LUCAS (Boquiaberto) – Ah!...

    VALÉRIO – Esse homem descobriu o remédio dos remédios!

    MARTINHA – Que dúvida!

    LUCAS – Puxa! É esse o homem que nós precisamos!

    VALÉRIO – Muito obrigado pela ajuda!MARTINHA – Não há de quê! E quando ele aparecer, lembrem-se das recomendações que eu fiz.

    LUCAS  –  Deixe por nossa conta! (Ouve-se a voz deSganarello, cantando, fora de cena.).

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    VALÉRIO  –  Estou ouvindo alguém cantando! (Martinha sai,sorrateiramente, enquanto pelo outro lado, entra Sganarellocom uma garrafa na mão e um feixe de lenhas nos ombros,

    sem ver Lucas e Valério.).

    SGANARELLO – Bom, já trabalhei bastante, agora posso tomaruma pinga. Vou respirar um pouco. (Bebe um trago.) Oh, lenhasalgada! Dá uma sede!... (Beijando a garrafa.) Garrafa: minhaquerida!

    VALÉRIO (Para Lucas) – Deve ser esse!LUCAS – Parece que sim.

    SGANARELLO (Abraçando a garrafa)  – ah, peste: como eu tequero, danada! (Canta. Ao perceber Valério e Lucas, vaibaixando a voz. Fala, consigo mesmo, desconfiado.) Quediabo! O que é que aqueles estão olhando pra mim? (Coloca a

    garrafa no chão. Valério se abaixa para saudá-lo, mas elepensa que este deseja tomá-la. Coloca-a, então, do outrolado. Em seguida, Lucas faz o mesmo. Sganarello retoma-ae a coloca contra o estômago.) Por que vocês ficam meespiando e cochichando? O que é que vocês querem comigo?

    VALÉRIO  –  O senhor é que se chama Sganarello, não éverdade?

    SGANARELLO (Sem entender) – Ahn?...

    VALÉRIO – Pergunto se o senhor é que se chama Sganarello?

    SGANARELLO (Olhando para um e para o outro)  –  Sim enão, conforme o caso.

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    VALÉRIO  –  Nós pretendemos prestar ao senhor Sganarellotodas as honras de que ele é digno.

    SGANARELLO  –  Nesse caso sou eu que me chamoSganarello.

    VALÉRIO  –  O senhor não imagina o prazer que temos emencontrá-lo. Estamos aqui, porque viemos suplicar o seu auxílio.

    SGANARELLO  –  Se é coisa que depende aqui, do meunegócio, estou pronto a servir.

    VALÉRIO  – É muita gentileza sua. E o senhor não deve acharestranho que a gente o venha importunar: as pessoashabilidosas são sempre ocupadas, e nós sabemos de suagrande capacidade.

    SGANARELLO  –  Bom: isso é verdade! Ninguém faz um feixe

    de lenha, como eu faço.VALÉRIO (Repreendendo-o) – Ah, senhor!

    SGANARELLO  –  Os meus são de primeira. Não tapeioninguém.

    VALÉRIO – Não é isso!

    SGNARELLO – É verdade: eu vendo a cento e dez o cento e...

    VALÉRIO (Interrompendo) – Não falemos disso, faça o favor!

    SGANARELLO – Mais barato é impossível...

    VALÉRIO – Nós já sabemos de tudo. Ouça...

    SGANARELLO (Interrompendo) –

      Se já sabem, já sabem opreço!

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    VALÉRIO – O senhor está brincando!

    SGANARELLO – Brincando nada. Mais barato não posso.

    VALÉRIO – Vamos deixar esse assunto, por favor.SGANARELLO  – Podem encontrar mais barato em outro lugar.Mas acontece que há feixes e feixes, e os meus feixes...

    VALÉRIO (Interrompendo, já perdendo a paciência)  –  Peloamor de Deus, senhor! Não falemos mais nisso!

    SGANARELLO  –  De jeito nenhum. Não posso fazer nem umtostão mais barato!

    VALÉRIO – Deixe disso.

    SGANARELLO  –  Se quer fazer o negócio: é assim! Não souhomem de dois preços!

    VALÉRIO  –  Será possível, que um homem como o senhor sedivirta, com tão grosseiros fingimentos, e se rebaixe a falardesse modo? Será possível, que um homem tão sábio, ummédico tão famoso queira ocultar-se aos olhos do mundo, econservar enterrado o talento que tem?

    SGANARELLO (À parte) – É maluco!...

    VALÉRIO – Por favor: não finja mais!

    SGANARELLO (Sem entender) – Ahn?...

    LUCAS  –  Não adianta: nós não somos tontos! Nós bemsabemos o que sabemos.

    SGANARELLO –

      O que é que sabem? O que é que queremdizer com isso? Quem estão pensando que eu sou?

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    VALÉRIO – Um grande médico.

    SGANARELLO  –  Médico é você. Eu é que não sou e nem

    nunca fui.VALÉRIO – Não adianta negar o que a gente já sabe.

    LUCAS – Não venha com desculpas, porque não adianta!

    SGANARELLO – Disse e repito: não sou médico!

    VALÉRIO – Não é médico?

    SGANARELLO – Não.

    LUCAS – Não é médico?

    SGANARELLO – Não: já disse!

    VALÉRIO  –  Bom, já que o senhor quer... (Olha para Lucas,com cumplicidade, e ao mesmo tempo, os dois agarram umpedaço de pau e batem em Sganarello.).

    SGANARELLO – Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!...

    VALÉRIO – Por que obrigar a gente a praticar violências?

    LUCAS – Para que dar este trabalho a gente?

    VALÉRIO – Eu garanto que sinto - de todo o coração!LUCAS – Eu também fico com muita pena!

    SGANARELLO  –  Mas que diabo é isso, meus senhores?Querem se divertir às minhas custas? Ou estão malucos oucismaram de me fazer médico à força!

    VALÉRIO – Como? Ainda continua negando que é médico?

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    SGANARELLO – O diabo que me carregue se sou médico.

    LUCAS – Ainda embirra que não é médico?

    SGANARELLO  –  Não sou médico! (Os dois continuam abater-lhe.) Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!... Sou. Sou, sou médico, soumédico, meus senhores! Sou tudo o que vocês quiserem. Atéveterinário, se for preciso...

    VALÉRIO  – Até que enfim, meu senhor. Sinto-me satisfeito porver que é uma pessoa de juízo.

    LUCAS  –  Sinto uma alegria aqui no coração, só de ouvir osenhor falar assim.

    VALÉRIO  –  Eu peço, encarecidamente, que o senhor medesculpe.

    LUCAS – Eu também, pela liberdade que eu tomei.

    SGANARELLO (À parte)  – Será que me diplomei, virei médicoe nunca percebi isso?

    VALÉRIO  –  Senhor: nunca se arrependerá de ter dito a nós,quem é. Há de ficar, certamente, satisfeito.

    SGANARELLO  –  Mas me digam uma coisa: os senhores não

    estão enganados? Têm certeza de que eu sou médico?

    LUCAS  – Certos de toda a certeza: o senhor é um médico, quecurou um montão de pessoas.

    SGANARELLO – Ahn?...

    VALÉRIO  – Uma mulher morta - que ia para a cova - com uma

    gota não sei do quê, ressuscitou e saiu andando!

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    SGANARELLO – Puxa!

    LUCAS – Um menino de doze anos, que caiu do alto da torre daigreja, quebrou a cabeça, as pernas e os braços, o senhorpassou um remédio, e o menino saiu pulando para ir brincar deamarelinha.

    SGANARELLO – Puxa!

    VALÉRIO  –  O senhor vai ficar contente! Vai ganhar quantoquiser! Só precisa ir para onde a gente o levar.

    SGANARELLO – E ganho quanto eu quiser?

    VALÉRIO – Sim, senhor!

    SGANARELLO  –  Então, eu sou médico: sem discussão! Eutinha esquecido, mas agora me lembrei. Muito bem: qual é ocaso? É preciso ir até lá?

    VALÉRIO  –  Sim, senhor. A gente leva o senhor. Trata-se devisitar uma moça que perdeu a voz.

    SGANARELLO  – Mas e onde é que eu vou encontrar a voz damoça?

    VALÉRIO – Ele gosta um pouco de brincar. Vamos senhor!

    SGANARELLO – Sem roupa de médico?

    VALÉRIO – No caminho arranjamos uma.

    SGANARELLO (Dá a garrafa a Valério)  –  Tome: é aí queguardo os meus calmantes. (Cospe. A Lucas.) E você: esfregueo pé aí, para não escorregar. Receita o médico. (Lucas

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    obedece, desconfiado. Abraçam-se e saem, bebendo econversando, como se fossem velhos amigos.).

    NA SALA DA CASA DE GERONTE

    VALÉRIO  –  Acho que o patrão vai fica bastante satisfeito:trouxemos o maior médico do mundo.

    LUCAS  –  Depois desse não tem mais ninguém. Não vaiencontrar nenhum que mereça lamber a sola de seu sapato!

    VALÉRIO – É um homem que tem feito curas maravilhosas.

    LUCAS – Que curou um defunto que estava morto.

    VALÉRIO  –  É meio maníaco, e, às vezes, até parece que

    perdeu o juízo. E não parece só, não. De vez em quando, perdemesmo, mas no fundo, é um poço de sabedoria. Às vezes dizcoisas que a gente fica bobo!

    LUCAS – Quando começa a falar, fala, fala, fala, que até pareceum livro!

    VALÉRIO –

     A fama dele já se espalhou por aí. Todo o mundovem procurar esse médico!

    GERONTE  –  Estou impaciente por vê-lo. Mandem buscar,depressa, esse homem!

    VALÉRIO – Vou imediatamente! (Sai.).

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    JAQUELINA  – Eu acho que isso é conversa. Esse daí vai ser amesma coisa que os outros. São todos da mesma laia. Eu achoque o melhor remédio, para a sua filha, é um bom marido.

    GERONTE  –  Sabe de uma coisa, Jaquelina? Acho que vocêestá se metendo onde não foi chamada. Desde quando ama-de-leite dá palpite?

    LUCAS  –  Cala a boca, Jaquelina! Deixe de ser xereta! É issomesmo: ama-de-leite não dá palpite!

    JAQUELINA  –  Eu digo e redigo que esses médicos não vãoconseguir nada. Não é de sangria nem de ventosas, que a suafilha precisa: mas de um marido  – o remédio que cura todas asdoenças das mocinhas!

    GERONTE  – Quem vai querer, agora, essa menina, no estadoem que está? Além disso, quando eu quis que ela se casasse,

    ela não se opôs à minha vontade?

    JAQUELINA  – Engraçado! O senhor queria dar pra menina umhomem de quem ela não gostava. Por que não deu a ela oSenhor Leandro, por quem ela tinha um bom xodó? Desse: e iaver como ela obedecia. E eu garanto que agora, doente mesmo,ela não deixava ele escapar.

    GERONTE  –  Esse Leandro não é o homem que lhe convém.Não tem fortuna como o outro.

    JAQUELINA  – Mas tem um tio que é podre de rico, e de quemele vai herdar tudo.

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    GERONTE  –  Todos esses bens que devem vir parecem-mehistórias. Arrisca-se a morrer de fome aquele que, para viver,espera a morte de alguém.

    JAQUELINA  –  Seja como for, eu sempre ouvi dizer que, nocasamento, como em tudo, coração contente não precisa dabolsa recheada. Deste mundo só se leva o que se goza. Eu, pormim, dava a minha filha, para o homem que ela gostasse.

    LUCAS  – Cala a boca, mulher! Não seja intrometida! O patrão

    sabe o que faz. (Jaquelina faz um muxoxo, e fica num canto,emburrada.).

    VALÉRIO (Entrando) – Senhor: prepare-se! Eis o nosso médicoque entra! (Entra Sganarello, vestido de médico.).

    GERONTE  – Caro Senhor: tenho muito prazer em vê-lo aqui. Egrande é a necessidade que temos de seus serviços!

    SGANARELLO  –  Senhor Doutor: vim a saber de coisasmaravilhosas!

    GERONTE – Com quem o senhor está falando?

    SGANARELLO – Com o senhor.

    GERONTE – Mas eu não sou médico!SGANARELLO – Não, mesmo?

    GERONTE – Não, senhor!

    SGANARELLO - Mas não, mesmo? O senhor tem certeza?(Pega um pau e bate em Geronte, como bateram nele.).

    GERONTE – Ai, ai, ai!... Ai, ai, ai!...

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    SGANARELLO  –  Agora já é médico! Eu, por mim, o únicodiploma que recebi, foi esse!

    GERONTE (A Valério)  –  Que diabo de homem é esse quetrouxeram à minha casa?

    VALÉRIO  –  Eu bem lhe disse que era um médico meioesquisito!

    GERONTE  – Estou vendo. Mas vou mandá-lo passear com assuas esquisitices!

    LUCAS – Não faça caso, patrão! É para fazer graça!

    GERONTE – Não gosto dessas graças.

    SGANARELLO  –  Peço desculpas, senhor, pela liberdade quetomei!

    GERONTE –

      Não falemos mais nisso, e vamos ao queinteressa: tenho uma filha, que foi tomada por uma doença forado comum, senhor...

    SGANARELLO  –  Fico muito contente em saber que sua filhaprecisa de meus serviços. Desejaria até, que o senhor, e toda asua família precisassem deles, para lhes dar prova do desejo

    que tenho de servi-los. Como se chama sua filha?GERONTE – Lucinda.

    SGANARELLO  –  Lucinda! Ah, que lindo nome para se fazerreceitas: Lucinda!

    GERONTE – Vou ver onde ela está! (Faz menção de sair.).

    SGANARELLO – Quem é aquela mulher, lá?

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    GERONTE  –  É a ama-de-leite de meu filho caçula! (Sai,acompanhado por Valério.).

    SGANARELLO (À parte)  –  Oba: que pedaço! (Para ela.) Ah,ama do meu coração: minha medicina é uma humilde criada devossa leiteria! Se eu fosse nenê, verias como eu mamava.(Tenta pegar-lhe os seios.) Os meus remédios, toda a minhaciência, toda a minha capacidade estão ao seu serviço...

    LUCAS  –  Com sua licença, senhor médico: largue da minha

    mulher!SGANARELLO – O quê? Ela é sua mulher?

    LUCAS – É, sim, senhor!

    SGANARELLO  –  Ah, mas eu não sabia! Estimo, porém, pelaamizade que tenho por um e pelo outro. (Faz como que

    querendo abraçar Lucas, e abraça Jaquelina.).LUCAS (Puxando Sganarello e interpondo-se entre ele e amulher) – Devagar: faça o favor!

    SGANARELLO  –  Garanto que fico muito satisfeito em saberque estão unidos um ao outro. Dou aos dois os meus parabéns.A ela, por ter um marido como o senhor; e, ao senhor, por ter

    uma mulher tão bonita, tão séria, tão... (Repete a manobra doabraço.).

    LUCAS (Puxando, outra vez) – Não é preciso tanta gentileza!

    SGANARELLO – Então, não quer que eu me regozije convoscopor um enlace tão feliz?

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    SGANARELLO (Ameaçando)  – Hei de te aplicar um purgante,em dose dobrada.

    JAQUELINA (Agarra Lucas pelo braço, fazendo com que eledê uma reviravolta)  –  Sai daí! Você pensa que eu sou tãocriança assim, que não vou saber me defender, se ele quiserbancar o atrevido comigo?

    LUCAS – Não quero que te ponha as mãos em cima!

    SGANARELLO – Que vergonha: ter ciúmes da mulher!

    GERONTE (Anunciando)  – Senhores: eis a minha filha! (EntraLucinda.).

    SGANARELLO – Essa aí é que é a doente?

    GERONTE  – É: não tenho outra filha, e sentiria muito se essamorresse.

    SGANARELLO  –  Não se deve morrer, sem a autorização domédico. (Lucinda senta, enquanto Sganarello a examina.)Ora: aqui temos uma doente que não é das piores. Ainda agradaa qualquer homem são!

    GERONTE – Ela já está sorrindo.

    SGANARELLO  – Ótimo! Quando um médico faz a doente rir, éo melhor sinal do mundo. Bom, vamos ver! (ExaminandoLucinda.) De que se trata? O que é que você tem? O que estásentindo?

    LUCINDA (Responde por sinais, indicando a boca e agarganta) – Han, hin, han, han.

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    SGANAELLO – Como é que é?

    LUCINDA – Han, hin, han, han.

    SGANARELLO – Ahn?...LUCINDA – Han, hin, han, han.

    SGANARELLO (Repete os mesmos gestos de Lucinda)  – Han, hin, han, han? Que diabo de língua é essa?

    GERONTE  – É a doença dela, doutor! Ficou muda, e, até hoje,

    ninguém sabe o por que. Esse acidente é que lhe atrasou ocasamento.

    SGANARELLO – Por quê?

    GERONTE  – Aquele, com quem minha filha vai se casar: estáesperando que ela se cure, para depois acertar o negócio.

    SGANARELLO  – Mas quem é esse burro, que não quer que amulher dele seja muda? Ah, quem me dera que a minha mulherpegasse essa doença! Eu é que não ia tratar dela!

    GERONTE  –  Senhor: suplicamos que empregue toda a suasabedoria na cura dessa doença.

    SGANARELLO –

     Ah, meu senhor: não se preocupe! Faz muitotempo que ela está doente?

    GERONTE – Sim, senhor.

    SGANARELLO  –  Mas, que ótimo! (Recompõe-se.) Ela sentedores?

    GERONTE –

     Muito fortes.

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    SGANARELLO  –  Formidável! (Geronte começa a ficarimpaciente.) Ela tem ido naquele lugar que o senhor sabe?

    GERONTE –

     Tem.SGANARELLO – Muitas vezes?

    GERONTE – Ah, isso eu não sei.

    SGANARELLO – E o resultado é satisfatório?

    GERONTE – Oh, eu não entende dessas coisas, ora!

    SGANARELLO (À doente)  – Me dá o seu braço! (Mede-lhe opulso. Para Geronte.) Esse pulso diz que a sua filha estámuda.

    GERONTE  –  É exatamente a doença que ela tem! Puxa: osenhor acertou logo de primeira!

    SGANARELLO – Ahn, ahn...JAQUELINA (Já encantada com Sganarello)  –  Como eleadivinhou logo, a doença?

    SGANARELLO (De peito estufado)  –  Nós - os médicos defama - conhecemos bem o assunto. Um ignorante ia ficar meio

    atrapalhado: ia dizer que isto era aquilo, mas eu não! Acertologo no ponto: sua filha está muda!

    GERONTE – Bom, mas eu gostaria de saber qual é a causa.

    SGANARELLO – Nada mais fácil: é porque ela perdeu a fala!

    GERONTE  – Muito bem! Mas a causa, por favor, a causa de ter

    perdido a fala.

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    SGANARELLO – Todos os nossos bons autores lhe dirão que éporque a língua não funciona.

    GERONTE –

     Mas, repito: por que a língua não funciona?SGANARELLO  –  Ah... Aristóteles, sobre o assunto, diz...(atrapalhado.) coisas... admiráveis!

    GERONTE – Acredito.

    SGANARELLO – Foi um grande homem.

    GERONTE – Sem dúvida.SGANARELLO (Erguendo o braço) - Grande homem mesmo:bem mais alto do que eu! (Percebendo que Geronte nãogostou muito da piada.) Bom, mas voltando ao nosso assunto,eu acho que a língua não funciona, por causa de certoshumores, que nós  –  sábios  –  chamamos pecantes... Pecantes

    quer dizer... Humores Pecantes! Tanto mais é, que os vaporesformados pelas exalações das influências que se elevam naregião das doenças, vindos... por assim dizer... Sabe latim?

    GERONTE – Não, senhor!

    SGANARELLO – Nem um pouquinho?

    GERONTE – Não.

    SGANARELLO  – Cachorrias, arci Tum, catalamus, singularitus,nominativo, haeo musa, abusa bonus, bona bonum, Deussanctus este arorario latinas? Etiam porque quaro, ninguém quiasubstantivo et adjetivum concordat in generi, numerum et casus.

    GERONTE – É nestas horas que eu sinto não ter estudado!

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    JAQUELINA (Encantada)  –  Esse sim é que é homeminteligente!

    LUCAS (Enciumado) –

     Eu não pesco patavina!SGANARELLO  –  Ora: esses vapores de que estou falando -passando do lado esquerdo, onde está o fígado, para o direito,onde está o coração, resulta no pulmão  –  que em latimchamamos armyan  –, tendo comunicação com o cérebro, queem grego chamamos nasus, por meio da veia cava, que em

    hebreu se chama cubile - topam no caminho com os vaporesque enchem os ventrículos da omoplata... (Para Geronte.)Procure compreender bem o que estou dizendo, por favor. E,como os ditos vapores têm certa malignidade... (Chamando aatenção de Geronte.) Preste atenção, por que...

    GERONTE (Compenetrado) – Sim, senhor.

    SGANARELLO  –  E como os ditos vapores têm certamalignidade, que é causada pela... (Batendo palmas,repreendendo Geronte.) Ora: preste atenção! Vamos!

    GERONTE – Estou prestando.

    SGANARELLO  –  Que é causada pela acidez dos humores

    engendrados na concavidade do diafragma, acontecendo, queesses vapores... ossabandus, nequeys, nequer, potarinum,quipsa milus! Aí está, portanto, o porquê de sua filha estarmuda!

    JAQUELINA – Mas tudo o que ele disse é formidável!

    LUCAS – Que bom se eu soubesse falar assim!

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    GERONTE  –  Uma coisa só parece novidade: a posição dofígado e do coração! O senhor trocou de lado, porque o coraçãoestá no esquerdo e o fígado no direito!

    SGANARELLO  –  É verdade! Antigamente era assim mesmo,mas nós já mudamos isso tudo! A Medicina agora é muitodiferente da antiga!

    GERONTE (Muito admirado)  –  É mesmo?... (Mudando detom.) Mas, o que o senhor acha que se pode fazer com a

    doente?SGANARELLO – O que eu acho que se deve fazer?

    GERONTE – É.

    SGANARELLO – Bom: a minha opinião é a de que ela deve ir jápara a cama, e comer muito pão ensopado de vinho.

    GERONTE – Por quê?

    SGANARELLO  – Porque o vinho e o pão, quando misturados,têm a virtude de fazer falar. O senhor sabia que os papagaiosgostam muito de pão com vinho, e é por isso que eles aprendema falar?

    GERONTE  – Ah, isso é verdade! Que grande homem! (Para oscriados.) Depressa! Depressa! Vamos fazer um caldeirão depão com vinho! (Saem Valério e Lucas, afobados.).

    SGANARELLO  – À noite voltarei a examinar a minha paciente.Só um momentinho, senhor: gostaria de lhe informar que suaama está precisando, urgentemente, de uns remediozinhos

    meus!

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    JAQUELINA (Saindo) – Ah não! Eu é que não vou deixar o meucorpo virar farmácia ambulante! (Sai.).

    SGANARELLO (Gritando)  –  Muito bonito! É rebelde aosremédios, é? (Para Geronte.) Vou dar um jeito nessa rebeldia.Adeusinho! (Faz menção de sair.).

    GERONTE – Um momento, senhor.

    SGANARELLO – O que o senhor deseja?

    GERONTE –

     Dar-lhe dinheiro, senhor.SGANARELLO (Com as mãos para trás, enquanto Geronteestá abrindo a bolsa) – Não posso aceitar meu senhor.

    GERONTE – Senhor!...

    SGANARELLO – Impossível.

    GERONTE – Um momento, senhor...SGANARELLO – De maneira nenhuma!

    GERONTE – Por favor!

    SGANARELLO – O senhor só pode estar brincando.

    GERONTE  –  Apenas isso!... (Mostra-lhe um monte dedinheiro.).

    SGANARELLO – Já disse que não.

    GERONTE – Ora...

    SGANARELLO – Não é o interesse que me move.

    GERONTE – Acredito.

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    SGANARELLO (Depois de pegar o dinheiro)  –  Eu não soudesses médicos mercenários, que andam por aí... (EntraLeandro, sorrateiramente, e esconde-se a um canto,

    observando a cena.).

    GERONTE – Eu sei disso.

    SGANARELLO – Não é o dinheiro que me governa.

    GERONTE  –  Longe de mim tal pensamento! Agora, se mepermite... (Sai, acompanhado por Lucinda. Sganarello fica

    em cena, contando o dinheiro.).

    SGANARELLO  – A coisa vai indo muito bem. E depois, pareceque...

    LEANDRO (Sai de onde estava escondido, e entra em cena) – Meu senhor: estou escondido aqui há muito tempo, esperando

    um momento para lhe falar e implorar o seu auxílio.SGANARELLO (Tomando-lhe o pulso)  –  O seu pulso estámal, muito mal...

    LEANDRO  –  Eu não estou doente, meu senhor, e não é pordoença que eu vim incomodá-lo.

    SGANARELLO  –  Ora, se não está doente, por que não disselogo?

    LEANDRO (Falando baixo e controlando para ver se nãoentra ninguém em cena e o descubra)  – Vou dizer, em duaspalavras, o que desejo: eu sou Leandro, namorado de Lucinda,aquela que o senhor veio visitar. Por causa do mau gênio do pai,

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    não posso falar com ela, por mais que me esforce. Por isso éque me atrevo a pedir que me auxilie...

    SGANARELLO (Interrompendo)  – Com quem é que o senhorpensa que está falando? Que atrevido ousa dirigir-se a mim,para auxiliá-lo no seu amor, rebaixando a minha dignidade demédico a funções dessa espécie?

    LEANDRO – Por favor: não faça barulho!

    SGANARELLO (Empurrando-o)  – Pois eu faço: está ouvindo?

    O senhor é um desaforado!

    LEANDRO – Por favor!

    SGANARELLO – Não pense que sou um homem que se sujeitaa essas coisas. É uma insolência inaudita...

    LEANDRO (Puxa um maço de dinheiros do bolso)  – Senhor...

    SGANARELLO – Querendo me corromper... (Pega o dinheiro.)Não digo por sua causa, porque o senhor parece ser um bomrapaz, e eu gostaria muito de lhe ser útil. Mas é que nestemundo, tem tanta gente impertinente, que pensa que todo omundo é aquilo que não é. E isso me dá uma raiva!

    LEANDRO – Peço desculpas pela liberdade que tomei.SGANARELLO – Imagine! Bem, de que se trata?

    LEANDRO  – Fique sabendo, doutor, que a doente de quem osenhor veio tratar é uma doente de mentira! Os médicosdiscutiram muito, por causa dela. Uns diziam que a doençavinha do cérebro, outros do baço, outros do fígado, mas, o amor

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    é a verdadeira causa de tudo! Lucinda se fingiu de doente paraescapar de um marido que o pai queria dar-lhe à força!

    SGANARELLO  –  Pois eu estou comovido com a sua história,rapaz! Por isso, empregarei toda a minha Medicina: ou o senhorfica com a doente, ou eu arrebento com ela! Agora temos quetraçar um plano! Espere um momento aqui neste canto, que eu já volto. (Leandro esconde-se. Sganarello sai e volta emseguida, com uma peruca e um avental, que veste emLeandro.) Pronto: esta peruca e este avental de farmacêutico,

    os criados trouxeram para mim, mas acabei não precisandodeles. Agora encontramos uma utilidade para os mesmos.

    LEANDRO  –  Até que como farmacêutico eu não estou nadamal! E, já que o pai não me conhece bem, acho que esta roupae esta cabeleira já chegam para me disfarçar.

    SGANARELLO – Sem dúvida!LEANDRO  – Eu gostaria de saber uma meia dúzia de palavrasdifíceis sobre Medicina, para enfiar no meio da conversa, ebancar o entendido.

    SGNARELLO  –  Não se preocupe: a roupa só já chega! Osenhor entende do assunto tanto quanto eu!

    LEANDRO – Como assim?

    SGANARELLO  –  O diabo que me carregue se eu entenderalguma coisa de Medicina!

    LEANDRO (Impressionado)  – O quê?... Então o senhor não éefetivamente...

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    SGANARELLO  –  Não. Foram eles que me fizeram médico àforça! Mandei ao diabo as conseqüências e a minha famacorreu, e todo o mundo acabou acreditando que eu sou uma

    sumidade. Todos me procuram. Se a coisa continuar assim, megrudo à Medicina e não largo mais. Acho que é a melhorprofissão que existe. Estando o serviço bem feito ou mal feito, odinheiro sempre entra. Nunca temos culpa do serviço mal feito.A gente recebe o pano e mete a tesoura à vontade, sem darsatisfação. Um sapateiro, por exemplo, sempre paga o couro

    que estraga. Nós liquidamos um homem e ninguém diz nada. Aburrada nunca é do médico, mas do doente, que morreu. E,além de tudo, mais uma vantagem: os defuntos são muitoeducados, nunca se queixam aos médicos que os mataram.(Percebendo que vem gente.) Acho que aí vem gente: vamoslá para dentro, antes que lhe descubram! (Saem. Jaquelina e

    Lucas atravessam o palco carregando um caldeirãofumegante de vinho com pão. Atrás deles, entra Geronte.).

    GERONTE (Chamando)  – Lucas! (Lucas entra.) Você não viupor aqui, o nosso médico? Sabe, por acaso, onde ele está?

    LUCAS – Não sei, mas queria que estivesse no inferno!

    GERONTE –

     Vai lá dentro ver o que a minha filha está fazendo.(Sai Lucas. Entram Sganarello e Leandro.) Oh, senhor: estava justamente perguntando pela sua pessoa.

    SGANARELLO – Como vai a doente?

    GERONTE – Um pouco pior, depois do seu remédio.

    SGANARELLO –

     Isso é bom! Sinal de que está fazendo efeito.

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    GERONTE  –  Mas eu tenho medo de que, fazendo efeito, oremédio acabe sufocando a minha filha.

    SGANARELLO  –  Não tenha medo! Meus remédios riem dasdoenças.

    GERONTE (Vendo Leandro) – Quem é esse homem aí?

    SGANARELLO (Gesticula, procurando mostrar que é umboticário) – É um...

    GERONTE –

     Um o quê?...SGANARELLO  –  É... o boticário! Sua filha vai precisar muitodele. (Entra Jaquelina, acompanhando Lucinda.).

    JAQUELINA – A menina quer andar um pouco, patrão!

    SGANARELLO  –  Ah, isso é ótimo! (Para Leandro.) Senhor

    farmacêutico: vá tomar o pulso da menina, para que possamosfalar sobre a doença! (Sganarello vai para um canto, levandoGeronte. Conversa com Geronte, mantendo-o de costaspara os outros. Sempre que Geronte tenta olhar para trás,Sganarello não deixa, segurando-o pelo queixo.) Entre osdoutores, há muito tempo que se debate a questão de se saberse as mulheres são ou não são mais fáceis de curar, que os

    homens. Preste atenção, por favor! Uns dizem que não, outrosdizem que sim e que não. Fundo-me em que a incongruidadedos humores opacos que se encontram no temperamentonatural das mulheres, como sendo causa da parte brutal emquerer sempre tomar império sobre a sensitiva. Vê-se que adesigualdade de opiniões depende do movimento oblíquo do

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    círculo da lua, e, como o sol, que dardeja os seus raios naconcavidade da Terra. Acha...

    LUCINDA (Para Leandro)  –  Não! Nunca mudarei desentimentos!

    GERONTE (Espantadíssimo)  –  Minha filha está falando! Oh,remédio maravilhoso! Oh, médico admirável! (Joga-se de joelhos, aos prantos, aos pés de Sganarello.) Quanto lhedevo por esta cura milagrosa? Como poderei pagar esse

    serviço?LUCINDA  –  Sim, meu pai: recuperei a fala, mas recuperei-apara dizer-lhe que nunca hei de ter outro marido que não sejaLeandro, e que é inútil pretender que eu me case com Horácio...

    GERONTE – Mas...

    LUCINDA – Ninguém mudará a resolução que tomei...GERONTE – O quê?

    LUCINDA – Não me interessam as razões que apresentar...

    GERONTE – É que...

    LUCINDA – Tudo o que disser, não adiantará nada...

    GERONTE – Eu...

    LUCINDA – É coisa decidida...

    GERONTE – Mas...

    LUCINDA  –  Não há poder paterno que possa obrigar-me a

    casar contra a vontade...

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    GERONTE – Eu...

    LUCINDA – Por mais que o senhor faça...

    GERONTE – Ele...LUCINDA – O meu coração nunca se submeteria a tal tirania...

    GERONTE – A...

    LUCINDA  – Eu prefiro, antes, me meter num convento, do quecasar com um homem de quem não gosto...

    GERONTE – Mas...

    LUCINDA (Ensurdecedoramente)  –  Não! De modo nenhum!Nunca! O senhor perde seu tempo! Nunca, nunca e nunca! Estádecidido!

    GERONTE  –  Puxa: que matraca! (Para Sganarello.) Senhor:

    pelo amor de Deus faça essa mulher ficar muda outra vez!SGANARELLO  –  Isso é impossível! Não posso! O mais queposso fazer, é deixar o senhor surdo, se quiser...

    GERONTE – Não, muito obrigado! (Levanta-se. Para Lucinda.)Então você pensa...

    LUCINDA – Não. Seus argumentos nada conseguirão.GERONTE – Você se casará com o Horácio ainda hoje.

    LUCINDA – Prefiro casar-me com a morte!

    SGANARELLO (A Geronte)  – Esperem: eu arranjo um médicopara esta questão. É uma doença, que está deixando com que

    ela fique assim. Eu sei o remédio!

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    GERONTE – Será possível que o senhor tenha remédio para asdoenças do espírito?

    SGANARELLO – Eu tenho remédio para tudo! (Dá uma olhadapara Jaquelina.) E, o nosso farmacêutico vai nos ajudar notratamento. (Para Leandro.) Uma palavrinha: como vê; a paixãoque ela tem pelo tal de Leandro, é completamente contrária àvontade do pai. Também vê que não temos tempo a perder,porque os humores estão muito azedos, e que é preciso achar,prontamente, o remédio para curar essa doença, e que toda a

    demora é um perigo. E, por mim, acho que só existe umremédio: a fuga purgativa! Vá com ela, dar uma volta pelo jardim, para lhe preparar os humores. Enquanto isso, euentretenho o pai. Sobretudo, não perca tempo! Ao remédio:depressa! Ao remédio! (Saem Leandro e Lucinda.).

    GERONTE  – Que remédios são esses que o senhor acaba dereceitar? Parece que nunca ouvi falar neles.

    SGANARELLO  –  São remédios que só servem para casosurgentes.

    GERONTE – Já se viu insolência igual?

    SGANARELLO  –  As mocinhas costumam ser um poucopeitudas mesmo. (Faz gestos, como se estivesse ajeitandoos peitos, de olho em Jaquelina.).

    GERONTE  –  O senhor não imagina como ela anda doida poresse tal de Leandro!

    SGANARELLO – É o calor do sangue, nessa idade!

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    GERONTE  – Mas eu, quando descobri a coisa, tranquei minhafilha a sente chaves.

    SGANARELLO –

     Agiu prudentemente.GERONTE  –  E tomei as providências para que eles nãopudessem se falar.

    SGANARELLO – Muito bem feito!

    GERONTE  –  Porque se eles se encontrassem, poderia

    acontecer alguma besteira.SGANARELLO (Olhando para Jaquelina) – Sem dúvida.

    GERONTE – Seriam capazes até de fugir.

    SGANARELLO – O senhor pensou com muito juízo.

    GERONTE  – Me disseram que ele anda tentando por todos os

    meios falar com ela!SGANARELLO (Já com a pulga atrás da orelha)  –  Quetratante!

    GERONTE – Mas ele está perdendo seu tempo.

    SGANARELLO – Ah, ah! Deve estar!

    GERONTE – Farei tudo para que ele não a veja!

    SGANARELLO  –  É isso mesmo! Ele não está tratando comnenhum tonto. O senhor é mais esperto do que ele pensa. Paraser mais esperto do que o senhor, é preciso não ser um burro!

    LUCAS (Entra agitado, juntamente com Valério)  –  Meu

    senhor! Ah, meu senhor: que desgraça! Sua filha fugiu com o

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    senhor Leandro. Era ele quem estava disfarçado defarmacêutico e (aponta para Sganarello.) foi este senhordoutor, que fez essa beleza de operação. (Agarra-se

    ostensivamente em Jaquelina, como que provocandoSganarello.).

    GERONTE  –  O quê? Querem me matar? Depressa: vamos,mexam-se! Polícia! Polícia! (Sganarello tenta fugir.) Não odeixem escapar! (Lucas e Valério seguram Sganarello.) Ah,traidor! A Justiça te castigará! (Para Jaquelina.) Jaquelina:

    traga uma corda! Vamos! (Jaquelina sai e volta com umaforca, que Lucas, com muito prazer, enfia no pescoço deSganarello, que foge para fora de cena, onde fica aos gritos,pedindo socorro. Lucas mantém-no preso pela corda. Nesteínterim, entra Martinha, esbaforida.).

    MARTINHA  –  Puxa: como custei a achar esta casa! (ParaLucas.) E que tal o médico que lhe recomendei?

    LUCAS  –  Olhe e tire as suas conclusões! (Puxa a corda,trazendo Sganarello arrastado.).

    MARTINHA  –  Meu Deus: o que é isso? Vocês vão enforcar omeu marido? O que foi que ele fez?

    LUCAS – Raptaram a filha do patrão, com a ajuda do doutor!

    MARTINHA  –  Ai, maridinho da minha vida: será verdade quevão te enforcar?

    SGANARELLO  –  Tudo indica. Já estou sentindo a corda nopescoço. Sai daí, porque você me faz doer o coração.

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    MARTINHA  –  Isso é que não! Eu quero ficar para te encorajarna morte. Não arredo o pé antes de te ver enforcado!

    SGANARELLO –

     Você é um anjo!GERONTE (A Valério) – Valério: vá buscar a polícia, para trataresse doutor com todas as honras que merece. (Valério sai.).

    SGANAELLO (De joelhos)  – Será que não dava para dar um jeitinho de trocar isso tudo por algumas lambadas?

    GERONTE  – Não senhor! A Justiça decidirá!

    (Entram, numrompante, Lucinda e Leandro, acompanhados de Valério.)Mas o que significa isso?

    LEANDRO  –  Senhor: venho trazer Leandro à sua presença edevolver Lucinda ao seu poder. (Tira a peruca e o avental.)Pretendíamos fugir juntos, e casar em seguida, mas, ao invés

    disso, resolvemos tomar uma atitude mais digna. Não pretendoroubar sua filha: é de sua mão que desejo recebê-la! Outrossim,desejo comunicar que acabo de receber uma carta, queparticipa a morte de meu tio, deixando-me herdeiro de todos osseus bens! (Jaquelina dá um soluço, e cai em prantos.).

    GERONTE (Arranca a carta das mãos de Leandro e a lê.

    Depois, devolve-a)  –  Senhor: seu modo de proceder é-memuito grato, e por isso, concedo-lhe a mão de minha filha, com amaior alegria e satisfação. (Jaquelina soluça copiosamente.).

    SGANARELLO (À parte) – A Medicina está salva!

    MARTINHA  –  Bem, já que não te enforcam mais, venha meagradecer, porque se você agora é médico, fui eu quem te deu odiploma!

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    SGANARELLO – É: e uma porção de cacetadas!

    LEANDRO (A Sganarello)  –  Mas, como tudo acabou bem,

    deixemos de lado os ressentimentos.SGANARELLO  –  Está bem! (À Martinha.) Perdôo-te pelaslambadas que tomei, levando em conta a alta dignidade que meconferiu. Mas você prepare-se para tratar com muito respeito umhomem de minha categoria, não se esquecendo nunca de quedeve tomar muito cuidado, quando o médico ficar com raiva!

    (Martinha dá-lhe uns tapas, mantendo-o preso à corda. Osdois começam um bate-boca infernal. Jaquelina soluça,loucamente. A música vai subindo, enquanto todoscomeçam uma grande discussão. Fecha o pano.).

    FIM