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VKAUCUC m^AltwA^kí de liberdade se explicaria pela multiplicidade de séries causais que se combinam para produzir uma ação. A cada uma dessas influências, concebemos que uma outra se oponha, acreditamos que nosso ato é independente de todas es- sas influências, ainda que não esteja sob a dependência exclusiva de nenhuma delas. Então nos damos conta de que na verdade ele resulta de seu conjunto e está sempre dominado pela lei da causali- dade. Aqui, da mesma forma, como a lembrança reaparece em fun- ção de muitas séries de pensamentos coletivos emaranhados e porque não podemos atribuí-la exclusivamente a nenhuma, imaginamos que é independente delas e contrapomos sua unidade à sua multiplicidade. E como acreditar que um objeto pesado, suspenso no ar por uma porção de fios tênues e entrecrazados, permaneça suspenso no vazio, e ali se sustenta. 70 JjLo o.ty Capítulo II ^vmcVU CO\ô\\\)A. 6 memórtA. kiétóricVA Ainda não estamos habituados a falar da memória de um grupo nem por metáfora. Aparentemente, uma faculdade desse tipo só pode existir e permanecer na medida em que estiver ligada a um corpo ou a um cérebro individual. Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais. Portanto, existiriam memórias indivi- duais e, por assim dizer, memórias coletivas. Em outras palavras, o indivíduo participaria de dois tipos de memórias. Não obstante, con- forme participa de uma ou de outra, ele adotaria duas atitudes muito diferentes e até opostas. Por um lado, suas lembranças teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal — as mes- mas que lhes são comuns com outras só seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evo- car e manter lembranças impessoais, na medida em que estas inte- ressam ao grupo. Se essas duas memórias se interpenetram com freqüência, especialmente se a memória individual, para confirmar algumas de suas lembranças, para tomá-las mais exatas, e até mes- mo para preencher algumas de suas lacunas, pode se apoiar na me- mória coletiva, nela se deslocar e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixará de seguir seu próprio caminho, e toda essa contribuição de fora é assimilada e progressivamente in-

Memória Coletiva e Memória Histórica - Maurice Halbwachs

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Memória Coletiva e Memória Histórica

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  • VKAUCUC m^AltwA^k

    de liberdade se explicaria pela multiplicidade de sries causais que se combinam para produzir uma ao.

    A cada uma dessas influncias, concebemos que uma outra se oponha, acreditamos que nosso ato independente de todas es-sas influncias, ainda que no esteja sob a dependncia exclusiva de nenhuma delas. Ento nos damos conta de que na verdade ele resulta de seu conjunto e est sempre dominado pela lei da causali-dade. Aqui, da mesma forma, como a lembrana reaparece em fun-o de muitas sries de pensamentos coletivos emaranhados e porque no podemos atribu-la exclusivamente a nenhuma, imaginamos que independente delas e contrapomos sua unidade sua multiplicidade. E como acreditar que um objeto pesado, suspenso no ar por uma poro de fios tnues e entrecrazados, permanea suspenso no vazio, e ali se sustenta.

    7 0 J jLo o.ty

    Captulo II

    ^vmcVU CO\\\\)A. 6 memrtA. kitricVA

    Ainda no estamos habituados a falar da memria de um grupo nem por metfora. Aparentemente, uma faculdade desse tipo s pode existir e permanecer na medida em que estiver ligada a um corpo ou a um crebro individual. Admitamos, contudo, que as lembranas pudessem se organizar de duas maneiras: tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as v de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual so imagens parciais. Portanto, existiriam memrias indivi-duais e, por assim dizer, memrias coletivas. Em outras palavras, o indivduo participaria de dois tipos de memrias. No obstante, con-forme participa de uma ou de outra, ele adotaria duas atitudes muito diferentes e at opostas. Por um lado, suas lembranas teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal as mes-mas que lhes so comuns com outras s seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evo-car e manter lembranas impessoais, na medida em que estas inte-ressam ao grupo. Se essas duas memrias se interpenetram com freqncia, especialmente se a memria individual, para confirmar algumas de suas lembranas, para tom-las mais exatas, e at mes-mo para preencher algumas de suas lacunas, pode se apoiar na me-mria coletiva, nela se deslocar e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixar de seguir seu prprio caminho, e toda essa contribuio de fora assimilada e progressivamente in-

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  • dt\v)AcV.s A dkcmoriA Co\c\\\)a

    vezes uma historinha ou uma citao: o epitafio dos fatos de ou-trora, to curto, geral e pobre de sentido como a maioria das inscri-es que lemos sobre os tmulos. A histria parece um cemitrio em que o espao medido e onde a cada instante preciso encon-trar lugar para novas sepulturas.

    Se o ambiente social passado subsistisse para ns somente em tais representaes histricas e, se, de modo mais geral, conti-vesse apenas datas associadas a acontecimentos definidos em ter-mos gerais ou recordaes abstratas de acontecimentos, a memria coletiva permaneceria muito exterior a ns. Em nossas sociedades nacionais to vastas, muitas existncias transcorrem sem contato com os interesses comuns do nmero maior dos que lem os jornais e prestam alguma ateno aos negcios pblicos. Ainda que no nos isolemos a esse ponto, quantos perodos durante os quais, ab-sortos pela sucesso dos dias, no sabemos mais "o que est aconte-cendo"? Mais tarde, acerca de tal parte de nossa vida, talvez nos lembremos de reagrupar os acontecimentos pblicos contempor-neos mais notveis. O que aconteceu em meu pas, em 1877, quan-do nasci? Foi o ano do 16 de maio, quando a situao poltica se transformava de uma semana para outra, quando realmente nasceu a repblica. O ministrio de Broglie estava no poder. Gambetta de-clarava: "Temos de nos sujeitar ou pedir demisso". O pintor Courbet morre nesse momento. Tambm nesse momento Victor Hugo publi-ca o segundo volume de A lenda dos sculos. Em Paris, terminam o Boulevard Saint-Germain e comeam a abrir a Avenue de Ia Republique. Na Europa, toda a ateno est concentrada na guerra da Rssia contra a Turquia. Depois de uma longa defesa herica, Osm Pax entregar Plevna. Assim, reconstituo um contexto, um panorama muito amplo, em que me sinto singulannente perdido. A partir desse momento fui apanhado na corrente da vida nacional, mas sem muita convico. Eu era como um viajante num barco. As duas margens passam sob seus olhos, a travessia se enquadra muito bem nessa paisagem, mas suponhamos que o viajante esteja absorto em alguma reflexo ou distrado pelos companheiros de viagem ele s se ocupar com o que acontece na margem de vez em quando; mais tarde saber lembrar a travessia sem pensar muitos nos detalhes

    da paisagem, ou seguir o traado dessa travessia num mapa assim talvez volte a encontrar algumas lembranas esquecidas, detalhar mais as outras (ele as compreender melhor). No entanto, entre a regic percorrida e o viajante realmente no ter havido contato.

    Mais de um psiclogo gostar talvez de imaginar que, come auxiliares de nossa memria, os fatos histricos no desempenhan um papel muito diferente das divises do tempo marcadas num re-lgio ou determinadas pelo calendrio. Nossa vida escoa num mo-vimento contnuo. Contudo, quando nos voltamos para o que assin j transcomeu, podemos sempre distribuir suas diversas partes entn os pontos de diviso do tempo coletivo que encontramos fora de ns e que se impem de fora a todas as memrias individuais, preci-samente porque no tm sua origem em nenhuma delas. O tempe social assim definido seria totalmente exterior s duraes vivida; pelas conscincias. Isto evidente num relgio que mede o tempe astronmico mas o mesmo acontece com as datas marcadas nc quadrante da histria, que correspondem aos fatos mais notveis vida nacional, que s vezes ignoramos quando ocorrem ou cuja importncia s reconhecemos mais tarde. Nossas vidas estaran postas na superfcie dos corpos sociais, scgui-los-iam em suas re-volues, experimentariam as repercusses de seus abalos. Um acon-tecimento s toma lugar na srie dos fatos histricos algum tempe depois de ocorrido. Portanto, somente bem mais tarde que pode-mos associar as diversas fases de nossa vida aos acontecimento; nacionais. Nada provaria melhor a que ponto artificial e exterior E operao que consiste em nos relacionarmos com as divises ds vida coletiva, como se fossem pontos de referncia. Tambm nade mostraria mais claramente que na realidade estudamos dois objeto; distintos quando fixamos nossa ateno quer na memria individu-al, quer na memria coletiva. Os acontecimentos e as datas que cons-tituem a prpria substncia da vida do grupo no podem ser para c indivduo mais do que sinais exteriores, aos quais ele no se relaci-ona a no ser sob a condio de se afastar de si.

    Claro, se no tivesse outra matria a no ser sries de data; ou listas de fatos histricos, a memria coletiva desempenharia ape-nas um papel secundrio na fixao de nossas lembranas. Nc

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    obstante, esta uma concepo especialmente estreita, que no corresponde realidade. Por essa mesma razo, foi difcil para ns apresent-la dessa forma. Entretanto, era necessrio, pois ela est de acordo com uma tese em geral aceita. mais comum considerar-se a memria uma faculdade propriamente individual ou seja, que aparece numa conscincia reduzida a seus nicos recursos, iso-lada dos outros, e capaz de evocar, por vontade ou por acaso, os estados pelos quais passou antes. No entanto, como no possvel questionar o fato de que freqentemente reintegramos nossas lem-branas em um espao e em um tempo sobre cujas divises nos entendemos com os outros, de que nos situamos tambm entre da-tas que no tm sentido seno em relao aos grupos de que faza-mos parte, admitimos que seja assim mesmo. Entretanto, esta uma espcie de mnima concesso que, no esprito daqueles que a consen-tem, no poderia atingir a especificidade da memria individual.

    Stendhal observava: "Escrevendo minha vida em 1835... nela fao muitas descobertas... Ao lado de pedaos de areseos bem conser-vados, no h datas; tenho de sair atrs das datas... A partir de mi-nha chegada a Paris em 1799, como a minha vida estava entremeada aos acontecimentos da gazeta, todas as datas so seguras... Em 1835, descubro a fisionomia e o porqu dos acontecimentos" (Pie de Henri Brulard). Pelo menos em aparncia, as datas e os fatos histricos ou nacionais que elas representam (pois exatamente neste sentido que Stendhal os entende) podem ser inteiramente exteriores s cir-cunstncias de nossa vida; no entanto, mais tarde, quando refleti-mos sobre eles, fazemos "muitas descobertas", entendemos "o porqu de muitos acontecimentos". Isto pode ser entendido em muitos sentidos. Quando folheio uma histria contempornea e passo em revista os diversos acontecimentos franceses ou europeus que se sucederam desde a data de meu nascimento, durante os oito ou dez primeiros anos de minha vida, tenho realmente a impresso de um contexto exterior cuja existncia eu ignorava ento, e aprendo a situ-ar minha infncia na histria de meu tempo. Todavia, se assim escla-reo exteriormente esta primeira fase de minha vida, nem por isso a minha memria foi muito enriquecida no que tem de pessoal e no

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    d\CWfA Col t f l lOA

    vejo brilharem novas luzes no meu passado de criana ou surgirem e se revelarem novos objetos. Talvez porque eu ainda no lia os jornais e (ainda que os fatos fossem mencionados a minha volta) no me metia nas conversas da gente grande. No presente, posso fazer uma idia, mas uma idia necessariamente arbitrria, das circunstncias pblicas e nacionais pelas quais meus pais deviam se interessar: no tenho nenhuma lembrana direta desses fatos, no mais do que das reaes que eles determinaram nos meus. Parece-me que o primeiro acontecimento nacional que penetrou na trama das minhas impres-ses de criana foi o enterro de Victor Hugo (eu tinha oito anos). Eu me vejo ao lado de meu pai, subindo na vspera at o Arco do Triun-fo na Place de 1'toile, onde havia sido montado o catafalco e, no dia seguinte, assistindo ao desfile de uma sacada na esquina da rue Soufflol com a Gay-Lussac. At essa data no repercutiram em mim ou nc crculo estreito de minhas preocupaes quaisquer dos abalos sofri-dos pelo grupo nacional a que eu estava confinado. No entanto, eu estava em contato com meus pais, abertos a muitas influncias; em parte, eles eram o que eram porque viviam em tal poca, tal pas, em tais circunstncias polticas e nacionais. Em seu aspecto habitual, nt tonalidade geral de seus sentimentos, eu talvez no encontre o trace de eventos "histricos" determinados. Certamente houve na Frana durante o perodo de dez, quinze e vinte anos que seguiu guerra dt 1870-1871, uma atmosfera psicolgica e social singular, que no s< encontraria em nenhuma outra poca. Meus pais eram franceses des sa poca, foi ento que adotaram certos hbitos e assumiram certo: traos que no deixaram de fazer parte de sua personalidade e qui logo devem ter-se imposto minha ateno. Portanto, a questo j ; no mais de datas e de fatos. claro, a histria, mesmo contempo rnea, freqentemente se reduz a uma srie de idias abstratas dema mas posso complet-las, posso troc-las pelas idias de imagens i impresses, quando olho os quadros, os retratos, as gravuras daque les tempos, quando sonho com os livros que apareciam, com as pea representadas, com o estilo da poca, as piadas e o tipo de espnh cmico ento na moda. No imaginemos agora que esse panorama d um mundo desaparecido h pouco, assim recriado por meios artifici ais, v se tornar o fundo um tanto factcio sobre o qual projetarem-o

    T.

  • 4\A\Kf\CC nA.\\/\)AcV.S

    os perfis de nossos pais e que l exista uma espcie de ambiente qu-mico em que voltaremos a mergulhar nosso passado para "revel-lo". Muito pelo contrrio, se o mundo de minha infncia tal como o reen-contro quando me lembro entra to naturalmente no contexto que o estudo histrico desse passado prximo me permite reconstituir, porque j trazia sua marca. Descubro que com um esforo de ateno suficiente eu poderia encontrar em minhas lembranas a imagem do ambiente que abrangia esse pequeno mundo. Agora se destacam e se juntam muitos detalhes dispersos, talvez familiares demais para que eu sonhasse em relacion-los uns a outros e houvesse procurado seu significado. Aprendo a distinguir na fisionomia de meus pais e na aparncia desse perodo o que no mais se explica pela natureza pes-soal dos seres, pelas circunstncias tais como teriam podido se repro-duzir em qualquer outro tempo, mas pelo ambiente nacional contemporneo. Meus pais, como todas as pessoas, pertenciam a seu tempo, assim como seus amigos e todos os adultos com quem eu tinha contato naquela poca. Quando quero imaginar como viva-mos, como pensvamos naquele perodo, para eles que volto minha reflexo. E isso que faz a histria contempornea me interessar de maneira completamente diferente da histria dos sculos preceden-tes. Sim, claro, no posso dizer que me lembro em detalhes dos acontecimentos, pois s os conheo pelos livros. Contudo, diferente de outras pocas, esta vive em minha memria, pois nela estive mer-gulhado e toda uma parte de minhas lembranas de ento apenas seu reflexo.

    Assim, mesmo quando se trata de lembranas de nossa in-fncia, melhor no fazer distino entre uma memria pessoal, que reproduziria mais ou menos as nossas impresses de outrora, que absolutamente no nos permitir sair do estreito crculo de nos-sa famlia, da escola e dos amigos, e uma outra memria, que se poderia chamar de histrica, contendo apenas acontecimentos naci-onais que no poderamos conhecer ento embora com uma, nossa revelia, tivssemos acesso a um ambiente em que nossa vida j se desem-olava, ao passo que a outra s nos deixaria em contato conosco mesmos ou com um eu realmente ampliado at os limites do grupo que encerra o mundo da criana. Nossa memria no se

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    A 'AvewrlA C O U I I O A

    apoia na histria aprendida, mas na histria vivida. Por histria, devemos entender no uma sucesso cronolgica de eventos e da-tas, mas tudo o que faz com que um perodo se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemtico e incompleto.

    Seremos censurados por despojar essa forma da memria coletiva que seria a histria desse carter impessoal, dessa preciso abstrata e dessa relativa simplicidade que dela fazem um contexto em que nossa memria individual poderia se apoiar. Se nos ativermos s impresses que esses acontecimentos nos deram, seja a atitude de nossos pais diante de fatos que mais tarde teriam um significado histrico, sejam somente os costumes, as maneiras de agir e de falar de uma poca... em que elas se distinguem de tudo o que ocupa nossa vida de criana, e que a memria nacional no reter? Como a criana seria capaz de atribuir valores diferentes s partes sucessi-vas do quadro que a vida lhe apresenta e, principalmente, por que se espantaria com os fatos ou os episdios que retm a ateno dos adultos porque estes dispem, no tempo e no espao, de muitos tennos de comparao? Uma guerra, um tumulto, uma cerimnia nacional, uma festa popular, um novo modo de locomoo as obras que transformam as ruas de uma cidade podem ser pensadas de dois pontos de vista diferentes. So fatos singulares em seu g-nero, que modificam a existncia de um grupo. Entretanto, por ou-tro lado, esses fatos se transformam em uma srie de imagens que trespassam as conscincias individuais. Quando se retm apenas essas imagens, no esprito de uma criana elas podero se destacai das outras por sua singularidade, seu fragor, sua intensidade; mas o mesmo acontece com muitas imagens que no correspondem a acon-tecimentos de semelhante alcance. Uma criana chega noite em uma estao de trens cheia de soldados. O fato de estarem retornando das trincheiras ou voltando para l, ou simplesmente estejam em manobras, no a impressionaro nem mais, nem menos. O que ere de longe o canho de Waterloo, se no um ribombar confuso < trovo? Um ser como a criancinha, reduzido a suas percepes guardar de tais espetculos apenas uma lembrana frgil de pouc durao. Para que atinja a realidade histrica atrs da imagem, el

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  • skAUtice rtA.\buAcVs

    ter de sair de si mesma, ter de ser posta no ponto de vista do grupo, para que possa ver como tal fato marca uma data porque entrou no crculo das preocupaes, dos interesses e das paixes nacionais. Mas nesse momento o fato deixa de se confundir com uma impresso pessoal. Retomamos o contato com o esquema da histria. Portanto, na memria histrica que temos de nos basear. atravs dela que esse fato exterior minha vida vem assim mes-mo deixar sua impresso tal dia, tal hora, e a vista dessa impresso me far recordar a hora ou o dia a impresso em si uma marca superficial, feita de fora, sem relao com minha memria pessoal e minhas impresses de criana.

    Na base de uma descrio como essa h ainda a idia de que os espritos esto separados uns dos outros to nitidamente quanto os organismos que seriam seu suporte material. Cada um de ns est em primeiro lugar e em geral permanece encerrado em si mes-mo. Como explicar ento que se comunique com os outros e harmo-nize o pensamento deles com os seus? Admitiremos ento que esse indivduo crie para si uma espcie de ambiente artificial, exterior a todos esses pensamentos pessoais, mas que os envolve, um tempo e um espao coletivos, e uma histria coletiva. nesse tipo de con-texto que se juntariam os pensamentos (impresses) dos indivdu-os, o que pressupe que cada um de ns deixasse por um momento de ser quem . Logo voltaria a si, introduzindo em sua memria pontos de referncia e divises que traz prontas de fora. Neles pren-deremos nossas lembranas, mas entre essas lembranas e esses pontos de apoio no haver nenhuma relao ntima, nenhuma co-munidade de substncia. por isso que as noes histricas e ge-rais desempenhariam aqui apenas um papel secundrio, pois elas pressupem a existncia preliminar e autnoma da memria pesso-al. As lembranas coletivas viriam se aplicar sobre as lembranas individuais e assim poderamos agarr-las mais cmoda e mais se-guramente; mas para isso ser preciso que as lembranas individu-ais j estejam ali seno a nossa memria funcionaria no vazio. assim que certamente houve um dia em que pela primeira vez en-contrei tal colega ou, como diz Blondel, houve um primeiro dia em que fui escola. Esta uma memria histrica: mas se no guardei,

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    A vhswVlA Co\t\\Oa

    interiormente, uma lembrana pessoal desse primeiro encontro ou desse primeiro dia, essa noo permanecer no ar, o quadro perma-necer em branco, e nada recordarei. Tudo isso parece demonstrai que em todo ato de memria haja um elemento especfico, que a prpria existncia de uma conscincia individual capaz de se bastar.

    Podemos verdadeiramente distinguir, por um lado uma memria sem contextos, ou que s disporia da linguagem e algumas idias tiradas da vida prtica para classificar suas lembranas e, por outro lado, um panorama histrico ou coletivo, sem memria, ou seja, que absoluta-mente no seria construdo, reconstrudo e conservado nas memrias individuais? No acreditamos nisso. Depois que ultrapassa a etapa da vida puramente sensitiva, a partir do momento em que se interessa pelo significado das imagens e dos quadros que v, pode-se dizer que a criana pensa em comum com as outras pessoas, e que seu pensa-mento se divide entre o fluxo de impresses inteiramente pessoais e as diversas correntes do pensamento coletivo. A criana j no est mais encerrada em si mesma, pois seu pensamento agora domina pers-pectivas inteiramente novas, e onde ela sabe muito bem que no est s a passear seus olhares; entretanto, ela no saiu de si e, para se abril a essas sries de pensamentos que so comuns aos membros de ser grupo, no obrigada a esvaziar seu esprito, porque em algum as-pecto e sob alguma relao, essas novas preocupaes voltadas pan fora sempre interessam o que chamamos aqui de homem interior, oi seja: elas no so inteiramente estranhas nossa vida pessoal.

    Stendhal criana assistiu, da galeria da casa em que moravi seu av, a uma revolta popular que explodiu no comeo da Revolu-o Francesa, em Grenoble: o Dia das Telhas. Diz ele: "A imagen: no pode estar mais ntida para mim. Talvez j se tenham passadc quarenta e trs anos. Um operrio chapeleiro ferido nas costas poi um golpe de baioneta caminhava com muita dificuldade, sustenta-do por dois homens, sobre as costas dos quais havia passado o braos. No estava uniformizado, sua camisa e sua cala de algo-do cru estavam cheias de sangue. Ainda o vejo. O ferimento dt onde o sangue saa em abundncia era na parte baixa de suas costas quase oposto ao umbigo... Revi esse infeliz em todos os andares d;

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    escadaria (fizeram-no subir at o sexto andar). Como natural, esta a lembrana mais ntida que me restou daquele tempo" {Vie de Henri Brulard, p. 64). uma imagem, mas uma imagem que est no centro de um quadro, de uma cena popular e revolucionria da qual Stendhal foi espectador mais tarde, ele deve ter escutado muitas vezes sua descrio, principalmente quando essa revolta aparecia como o incio de um perodo poltico muito agitado e de uma im-portncia decisiva. Embora naquele momento ele ignorasse que esse dia teria seu lugar na histria de Grenoble, pelo menos a inusitada animao da rua, os gestos e os comentrios de seus pais bastariam para que tivesse compreendido que o acontecimento ultrapassava o crculo de sua famlia ou do bairro. Da mesma forma, num outro dia desse perodo, ele se v na biblioteca, escutando o av numa sala cheia de gente. "Mas por que essa gente? Em que ocasio? o que a imagem no diz. apenas uma imagem" (ib., p. 60). Contudo, teria ele conservado essa lembrana, se ela no se situasse, como o Dia das Telhas, num contexto de preocupaes que devem ter sur-gido nele durante esse perodo, atravs das quais eleja se envolvia numa corrente mais ampla do pensamento coletivo?

    Talvez a lembrana no tenha sido apanhada de repente nes-sa corrente, e que passe algum tempo antes que compreendssemos o sentido do acontecimento. O essencial que o momento em que compreendemos vem logo, quando a memria ainda est viva. As-sim, da prpria lembrana, em tomo dela, que vemos de alguma forma raiar seu significado histrico. Pela atitude da gente grande diante do fato que nos impressionara to vivamente, sabamos mui-to bem que ele merecia ser retido. Se nos lembramos, porque sen-tamos que a nossa volta todos se preocupavam com ele. Mais tarde, compreenderemos melhor por qu. No comeo, a lembrana estava muito dentro da corrente, mas foi retida por algum obstculo, per-maneceu perto demais da borda, agarrada nas ervas das margens. Da mesma forma, as correntes de pensamento social atravessam o esprito da criana, mas somente com o tempo arrastariam consigo tudo o que lhes pertence.

    Eu me recordo ( uma de minhas lembranas mais antigas) que diante da nossa casa, na rue Gay-Lussac, onde hoje o Instiru-

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    A 'AMSWOVIA C O U I I V A

    to Oceangrafico, vizinho a um convento havia um pequeno hotel em que estavam alojados uns russos. Ns os vamos com bons e tnicas de pele, sentados diante da porta, vamos suas mulheres e seus filhos. Talvez, apesar da estranheza de suas vestes e seus tipos, eu no tenha dado muita importncia a eles por tanto tempo, se no houvesse observado que os passantes paravam e que at meus pais iam sacada para v-los. Eram habitantes da Sibria, que haviam sido mordidos por lobos com raiva e h algum tempo estavam ins-talados em Paris, nas proximidades da rue de Ulm e da Escola Nor-mal, para serem tratados por Pasteur. Ouvi este nome pela primeira vez e tambm pela primeira vez entendi que existiam sbios que faziam descobertas. Para falar a verdade, s compreendi tudo isse plenamente bem mais tarde mas no creio que essa lembrana houvesse permanecido to clara em meu esprito se, na ocasio err que essa imagem se formou, meu pensamento no j estivesse vol-tado para novos horizontes, para regies desconhecidas em que ei me sentia cada vez menos isolado.

    Essas ocasies em que, depois de alguma comoo do meie social, a criana v bruscamente se entreabrir o crculo estreito que a encerrava, essas revelaes, por sbitas escapadas, de uma vide poltica, nacional, ao nvel da qual ela no se eleva normalmente so bastante raras. Quando se envolver nas conversas srias do adultos, quando comear a ler os jornais, ter a sensao de desco-brir uma terra desconhecida. No entanto, no ser a primeira ve; que ela entra em contato com um meio mais amplo do que sua fam-lia ou o grupinho de seus amigos e dos amigos de seus pais. A gente grande, os pais, tm seus interesses, as crianas tm outros e h; muitas razes para que o limite que separa essas duas zonas n( seja transposto. A criana tambm tem um relacionamento com um; categoria de adultos a que a simplicidade habitual de suas concep es aproxima. Esses adultos so, por exemplo, os empregados do mestios. Com eles a criana se entretm espontaneamente i compensa a reserva e o silncio a que a condenam seus pais en relao a tudo o que "no para a sua idade". Os empregados do mestios s vezes falam com muita liberdade diante da criana oi com ela, e as compreendem, porque eles s vezes se expressam comi

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  • vtvAUflr-c 'rt'AlLWAks

    seu av. Tanto verdade, que os quadros coletivos da memria no conduzem a datas, a nomes e a frmulas eles representam cor-rentes de pensamento e de experincia em que reencontramos nos-so passado apenas porque ele foi atravessado por tudo isso.

    A histria no todo o passado e tambm no tudo o que resta do passado. Ou, por assim dizer, ao lado de uma histria escri-ta h uma histria viva, que se perpetua ou se renova atravs do tempo, na qual se pode encontrar novamente um grande nmero dessas correntes antigas que desapareceram apenas em aparncia. Se no fosse assim, teramos o direito de falar de memria coletiva, e que servios nos prestariam contextos que subsistiriam apenas na qualidade de noes histricas, impessoais e despojadas? Os gru-pos, nos quais concepes foram outrora elaboradas, e um esprito que por algum tempo dominaram toda a sociedade, logo recuam e do lugar a outros que, por sua vez, detm por algum perodo o cetro dos costumes e moldam a opinio segundo novos modelos. Poderamos acreditar que este mundo sobre o qual ainda vivemos, com nossos avs idosos, sumiu de repente. Como quase no nos restam lembranas que ultrapassem o crculo da famlia, desde o tempo intennedirio entre aquele muito anterior ao nosso nascimento e a poca em que os interesses nacionais contemporneos se apode-raro de nosso esprito, tudo acontece como se houvesse uma inter-rupo durante a qual o mundo das pessoas idosas lentamente se apagou, enquanto o painel se recobria de novas caractersticas. Di-gamos que talvez no exista um ambiente nem um estado de pensa-mentos ou sensibilidades de outrora dos quais no subsistem vestgios, ou mais do que vestgios enfim, tudo o que necess-rio para recri-lo temporariamente.

    Parece-me ter sentido as ltimas vibraes do romantismo no grupo que formei e reformei algumas vezes com meus avs. Por romantismo, no entendo apenas um movimento artstico e liter-rio, mas um modo particular de sensibilidade que absolutamente no se confunde com as almas sensveis do final do sculo XVIII, mas que tambm no se distingue muito claramente dele, e que em parte desapareceu na frivolidade do Segundo Imprio, mas que sub-sistia com maior tenacidade nas provncias mais distantes (l en-

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    'ftemdflA CcUIlvu

    contrei seus ltimos vestgios). Ora, perfeitamente lcito recons truirmos esse ambiente e reconstituirmos ao nosso redor essa at mosfera, especialmente por meio de livros, de gravuras, de quadros No se trata principalmente dos grandes poetas e suas obras mai importantes, que certamente produzem sobre ns uma impressa' completamente diferente da que tiveram sobre seus contemporne os. Temos tambm as revistas de poca e toda aquela literatura "da famlias," em que de alguma forma est encerrado esse gnero d esprito que penetrava tudo e se manifestava sob todas as formas Folheando essas pginas, parece-nos ver ainda os velhos pais qu tinham os gestos, as expresses, as atitudes e os costumes que a gravuras reproduzem, temos a impresso de escutar suas vozes reencontrar as mesmas expresses que eles usavam. Essas "revista pitorescas" e esses "museus das famlias" talvez tenham subsistid por acidente. Talvez jamais sejam tirados de suas prateleiras e abei tos. No entanto, quando volto a abrir esses livros, se volto a encor trar essas gravuras, esses quadros, esses retratos, no absolutament porque, levado por uma curiosidade de erudito ou por gostar d coisas velhas, eu v consultar esses livros numa biblioteca ou ext minar esses quadros num museu. Eles esto na minha casa, na cas de meus pais, eu os encontro na casa de amigos, eles prendem meu olhares nas margens do Sena, nas vitrines das lojas dos antiqurio;

    No final, tirando-se gravuras e livros, o passado deixou c sociedade de hoje muitos vestgios, s vezes visveis, e que tambi percebemos na expresso das imagens, no aspecto dos lugares e ai nos modos de pensar e de sentir, inconscientemente conservados reproduzidos por tais pessoas e em tais ambientes. Em geral nei prestamos ateno nisso... mas basta que a ateno se volte dess lado para notarmos que os costumes modernos repousam sobre c; madas antigas que afloram em mais de um lugar.

    s vezes preciso ir muito longe para descobrir ilhotas d passado conservadas como eram, e to bem conservadas que c repente nos sentimos transportados a cinqenta ou sessenta anc atrs. Na ustria, em Viena, um dia, na casa da famlia de ui banqueiro para onde fui convidado, tive a impresso de me ei contrai' num salon francs dos anos 1830. Era menos a decorai

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    superficial, o mobilirio, era mais uma atmosfera mundana bas-tante singular, a maneira como se formavam os grupos, um no-sei-qu um tanto convencional e compassado, como um reflexo do ancien regime. Na Arglia, em uma regio em que as moradias europias eram um tanto dispersas, e onde s se chegava de dili-gncia, tambm me aconteceu observar cheio de curiosidade tipos de homens e mulheres que me pareciam familiares, porque eram parecidos com os que eu tinha visto em gravuras do Segundo Im-prio e imaginava que, nesse isolamento e nesse distanciamento, os franceses tinham vindo se estabelecer ali logo depois da con-quista e seus filhos deviam ter vivido sobre um pano de fundo de idias e costumes que datavam ainda dessa poca. De qualquer maneira, essas duas imagens, reais ou imaginrias, reuniam em meu esprito lembranas que me transportavam a semelhantes ambientes: uma tia velha que eu via muito bem em tal salo, um velho oficial aposentado que vivera na Arglia no incio da colo-nizao. Todavia, sem sair da Frana nem de Paris ou de uma ci-dade em que sempre vivemos, fcil e freqente fazer observaes do mesmo gnero. Embora em meio sculo os aspectos urbanos tenham mudado muito, h de um quarteiro em Paris, at mais de uma rua ou um aglomerado de casas que sobressai do resto da cidade e que mantm sua fisionomia de outrora. Os habitantes se parecem com o bairro ou a casa. Em cada poca h uma estreita relao entre as atitudes, o esprito de um grupo e o aspecto dos lugares em que este vive. Existiu uma Paris de 1860, cuja imagem est estreitamente ligada sociedade e aos costumes contempor-neos. Para evocar, no basta procurar as placas que comemoram as casas em que viveram e em que morreram alguns personagens famosos dessa poca, nem ler uma histria das transformaes de Paris. na cidade e na populao de hoje que um observador nota muitos traos de outrora, principalmente nas zonas menos nobres em que se refugiam as pequenas oficinas e ainda certos dias ou certas noites de festas populares na Paris comercial e operria, que mudou menos do que a outra. Talvez encontremos a Paris de outrora melhor nessas cidadezinhas da provncia, de onde no de-sapareceram os tipos, os prprios costumes, e as maneiras de falar

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    A 0\twr\A CoUlloa

    que j esteve na me de Saint-IIonor e nos boulevards parisiense; do tempo de Balzac.

    No mesmo crculo de nossos pais, nossos avs deixaram sui marca. Antigamente no nos dvamos conta dessas coisas, pois ra-mos mais sensveis em relao ao que distinguia uma gerao d outra. Nossos pais caminhavam nossa frente e nos guiavam para c futuro. Chega um momento em que eles se detm e ns passamos i frente. Agora temos de nos voltar para eles e nos parece que nc presente foram tomados pelo passado e se confundem agora entn as sombras de antigamente. Marcel Proust, em algumas pgina; emocionadas e profundas, descreve como, a partir das semanas qu< seguiram a morte de sua av, lhe parecia que bruscamente, nos tra os, na expresso e em toda a aparncia, sua me pouco a pouco si identificava que acabava de desaparecer e apresentava sua ima gem como se, atravs das geraes, um mesmo tipo se reprodu zisse em dois seres sucessivos. Ser este um simples fenmeno di transformao fisiolgica e ser preciso dizer que, se reencontra mos nossos avs em nossos pais, porque nossos pais envelhecen e, na escala das idades, os lugares deixados livres so rapidamend ocupados, pois estamos sempre descendo? Isso talvez acontea por que nossa ateno mudou o sentido. Nossos pais e nossos avs re presentavam para ns duas pocas distintas e nitidamente separadas No percebamos que nossos avs estavam mais envolvidos no pre sente e nossos pais no passado do que poderamos imaginar. Entre < momento em que despertei no meio de gente e de coisas, dez ano haviam decorrido desde a guerra de 1870. O Segundo Imprio re presentava a meus olhos um perodo longnquo, correspondendo ; uma sociedade que quase havia desaparecido. No presente, de doz> a quinze anos me separam da grande guerra e imagino que par; meus filhos a sociedade de antes de 1914, que eles no conhece ram, recua da mesma forma a um passado que sua memria acredit no alcanar. Para mim, entre esses dois perodos, no h uma in terrupo. a mesma sociedade: transformada por experincia novas, talvez aliviadas de preocupaes ou preconceitos antigos enriquecida com elementos mais jovens, at certo ponto adaptad pois as circunstncias mudaram mas a mesma. H uma part

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    mais ou menos grande de iluso em mim, assim como em meus filhos. Chegar um momento em que, olhando minha volta, no encontrarei seno um nmero pequeno dos que viveram e pensaram comigo e como eu antes da gueixa, em que compreenderei, como algumas vezes tive a sensao e a inquietude, que novas geraes brotaram em cima da minha e que uma sociedade que em grande medida me estranha por suas aspiraes e costumes tomou o lugar dessa a que me ligo mais estreitamente e meus filhos, mudando de ponto de perspectiva, se surpreendero ao descobrir de repente que estou muito longe deles e que, por meus interesses, minhas idias e minhas lembranas, eu estava muito perto de meus pais. Eles e eu certamente estaremos sob a influncia de uma iluso inversa: no estarei to longe deles, pois meus pais no esto assim to longe de mim mas, conforme a idade e tambm as circunstncias, nos espantamos sobretudo com as diferenas e semelhanas entre as geraes que ora se fecham sobre si mesmas e se afastam uma da outra, ora se juntam e se confundem.

    Assim, como acabamos de demonstrar, a vida da criana mergulha mais do que se imagina nos meios sociais pelos quais ela entra em contato com um passado mais ou menos distanciado, que como o contexto em que so guardadas suas lembranas mais pessoais. neste passado vivido, bem mais do que no passado apreendido pela histria escrita, em que se apoiar mais tarde a sua memria. Se antes ela no fazia distino entre esse contexto e os estados de conscincia que nele ocorriam, verdade que, pouco a pouco, a separao entre seu pequeno mundo interno e a sociedade que o circunda acontecer em seu esprito. Entretanto, do momento em que essas duas espcies de elementos inicialmente estiveram estrei-tamente fundidas, que tero parecido fazer parte de seu eu de crian-a, no se pode dizer que, mais tarde, todos os que correspondem ao meio social se apresentaro a ela como um contexto abstrato e artificial. Neste sentido que a histria vivida se distingue da hist-ria escrita: ela tem tudo o que necessrio para constituir um pano-rama vivo e natural sobre o qual se possa basear um pensamento para conservar e reencontrar a imagem de seu passado.

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    A vheworlA COUIIVA

    Porm, agora devemos ir mais longe. Ao crescer, especial-mente quando se toma adulta, a criana participa de modo mais distinto e mais refletido com relao vida e ao pensamento desses grupos de que fazia parte, no incio quase sem perceber. Como isso no modificaria a idia que ela tem de seu passado? Como as novas noes que ela adquire, noes sobre fatos, reflexes c idias, no reagiriam sobre suas lembranas? J repetimos muitas vezes: em medida muito grande, a lembrana uma reconstruo do passado com a ajuda de dados tomados de emprstimo ao presente e prepa-rados por outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a imagem de outrora j saiu bastante alterada. Claro, se pela mem-ria somos remetidos ao contato direto com alguma de nossas anti-gas impresses, por definio a lembrana se distinguirla dessas idias mais ou menos precisas que a nossa reflexo, auxiliada por narrativas, testemunhos e confidencias dos outros, nos permite fa-zer de como teria sido o nosso passado. No obstante, ainda que seja possvel evocar de maneira to direta algumas lembranas, impossvel distinguir os casos em que assim procedemos e aqueles em que imaginamos o que teria acontecido. Assim, podemos cha-mar de lembranas muitas representaes que, pelo menos parcial-mente, se baseiam em testemunhos e dedues mas ento, a parte do social, digamos, do histrico na memria que temos de nosso prprio passado, bem maior do que podemos imaginar. Isso, por-que desde a infncia, no contato com os adultos, adquirimos muitos meios de encontrar e reconhecer muitas lembranas que, sem isso, teramos esquecido rapidamente, em sua totalidade ou em parte.

    Aqui deparamos com uma objeo j mencionada, que mere-ce ser examinada mais de perto. Ser que basta reconstrui) (reconstituir) a noo histrica de um fato que certamente aconte-ceu, mas do qual no guardamos nenhuma impresso, para se cons tituir uma lembrana em todas as suas peas? Eu sei, por exemplo porque algum me disse e porque, refletindo, me pareceu correto que houve um dia em que pela primeira vez fui escola. Contudo no tenho nenhuma lembrana pessoal e direta desse evento. Tal vez porque tendo ido durante muitos dias sucessivos mesma esco Ia, todas essas lembranas se confundiram. Quem sabe ainda, porqu

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    eu estava emocionado naquele primeiro dia disse Stendhal: "No tenho nenhuma memria de pocas ou momentos em que tenha sen-tido muito vivamente" (Vie de Henri Brulard). Ser que basta que eu reconstitua o contexto histrico desse acontecimento para poder dizer que recriei sua lembrana?

    Sim, se eu realmente no tivesse nenhuma lembrana desse acontecimento e se me ativesse a essa noo histrica a que estou reduzido, a conseqncia viria em seguida: um contexto vazio no pode se encher sozinho interviria o saber abstrato, no a mem-ria. Em todo caso, sem nos lembrarmos de um dia, podemos recor-dar um perodo; no exato que a lembrana do perodo seja simplesmente a soma das lembranas de alguns dias. A medida que se distanciam os acontecimentos, temos o hbito de record-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais s vezes se destacam alguns dentre eles, que abrangem muitos outros elementos sem que pos-samos distinguir um do outro nem jamais enumer-los por comple-to. assim que, tendo estado sucessivamente em muitas escolas, pensionatos e colgios, tendo entrado a cada ano em uma turma nova, tenho uma lembrana geral de todos esses primeiros dias de aula, abrangendo o dia especial em que pela primeira vez entrei numa escola. No entanto, no posso dizer que me lembro desse pri-meiro dia, mas tambm no posso dizer que no lembro. Por outro lado, a noo histrica de minha entrada na escola no abstrata. Para comear, desde ento eu li certo nmero de narrativas, reais ou fictcias, em que so descritas as impresses de uma criana que entra pela primeira vez numa sala de aula. Pode ter acontecido que, depois de ler esses relatos, a lembrana pessoal que eu tinha de semelhantes impresses se tenha fundido com a descrio de algum livro. Lembro dessas descries, talvez nelas estejam conservadas e delas retomo sem o saber tudo o que subsiste de minha impresso assim transposta. Seja como for, assim enriquecida, a idia no mais um simples esquema sem contedo. Acrescente-se que, da es-cola em que entrei pela primeira vez, conheo e encontro algo mui-to diferente de um nome, ou o lugar num plano. Ali estive cada dia naquela poca, e a revi muitas vezes desde ento. Mesmo que no houvesse revisto, conheci muitas outras escolas, levei meus filhos

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    A AiumcVlA C O U I I O A

    escola. Do ambiente familiar que deixava quando ia s aulas, lem-bro muitos traos, pois permaneci em contato com os meus: no uma famlia em geral, mas um grupo vivo e concreto, cuja imagem se encaixa naturalmente no quadro do meu primeiro dia de aula, exatamente como eu o recrio. Que objeo se tem desde ento a que, refletindo sobre o que deve ter sido o nosso primeiro dia de aula, consigamos recriar sua atmosfera e sua aparncia geral? Ima-gem flutuante, incompleta, com certeza e principalmente, imagem reconstruda: mas quantas lembranas que acreditamos ter conser-vado fielmente e cuja identidade no nos parece duvidosa, so tam-bm forjadas quase inteiramente sobre falsos reconhecimentos, conforme relatos e testemunhos cuja origem esquecemos! Sozinho, um contexto vazio no pode criar uma lembrana exata e pitoresca. No entanto, aqui o contexto est cheio de reflexes pessoais, lem-branas familiares, e a lembrana uma imagem introduzida em outras imagens, uma imagem genrica transportada ao passado.

    Por isso melhor no se falar em nenhuma memria histrica, pois a histria corresponde a um ponto de vista adulto e as lembranas da infncia s so conservadas pela memria coletiva porque nc esprito da criana estavam presentes a famlia e a escola.

    Da mesma forma, diremos: se quero juntar e detalhar con exatido todas as minhas lembranas que poderiam me restituir imagem e a pessoa de meu pai tal como o conheci, intil passa em revista os acontecimentos da histria contempornea, duranti o perodo em que ele a viveu. Contudo, se encontro algum que i conheceu e sobre ele me conta detalhes e circunstncias que e ignorava, se minha me amplia e completa o painel de sua vida dela me esclarece determinadas partes que para mim permaneci am obscuras, no ser verdade, dessa vez, que eu tenha a impres so de voltar a descer no passado e aumentar toda uma categori de minhas lembranas? Esta no uma simples iluso retrospect va, como se eu encontrasse uma carta dele que houvesse lido et quanto ele vivia, embora essas novas lembranas, corresponden a impresses recentes, viriam se justapor s outras sem realmen se confundir com elas. Contudo, em seu conjunto, a lembrana <

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    preenchendo essas lacunas aparentes? Na realidade, o que toma-mos por espao vazio era apenas uma zona um tanto indecisa, da qual nosso pensamento desviava porque ai encontrava muito pou-cos vestgios. No presente, se nos indicarem com preciso o cami-nho que seguimos, esses vestgios se destacam, ns os ligamos uns aos outros, eles se aprofundam e se renem por si mesmos. Eles existiam, mas estavam mais acentuados na memria dos outros do que em ns. Claro, ns reconstrumos, mas essa reconstruo funci-ona segundo linhas j marcadas e planejadas por nossas outras lem-branas ou por lembranas de outros. As novas imagens so atradas ao que permaneceria indeciso e inexplicvel sem essas outras lem-branas, mas nem por isso so menos reais. assim que, quando percorremos os bairros antigos de uma cidade grande, sentimos uma especial satisfao quando nos contam a histria dessas mas e des-sas casas. So novas informaes que nos parecem bastante famili-ares porque esto de acordo com nossas impresses, no ser difcil tomarem lugar no cenrio remanescente. Parece-nos que este mes-mo cenrio, e somente ele, poderia evoc-las, e o que imaginamos no seno o desdobramento do que j percebamos. O quadro que se desenrola sob nossos olhos estava carregado de um significado que permanecia obscuro para ns, do qual adivinhvamos alguma coisa. A natureza dos seres com quem vivemos deve ser descoberta e explicada luz de toda a nossa experincia, tal como ela se for-mou nos perodos seguintes. O novo painel projetado sobre os fatos que j conhecemos, nos revela mais de um trao que ocorre neste e que dele recebe um significado mais claro. assim que a memria se enriquece com as contribuies de fora que, depois de tomarem razes e depois de terem encontrado seu lugar, no se distinguem mais de outras lembranas.

    Para que a memria dos outros venha assim a reforar e completar a nossa, como dizamos, c preciso que as lembranas desses gru-pos no deixem de ter alguma relao com os acontecimentos que constituem meu passado. Cada um de ns pertence ao mesmo tempo a muitos grupos, mais ou menos amplos. Ora, se fixamos nossa ateno nos grupos maiores, como a nao por exemplo, embora a

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    A /Aemf\A CO\C\\\)A

    nossa vida e a de nossos pais ou nossos amigos estejam contidas na vida da nao, no se pode dizer que esta se interesse pelos destinos individuais de cada um de seus membros. Admitamos que a histria nacional seja um resumo fiel dos acontecimentos mais importantes que modificaram a vida de uma nao, que se distingue das histrias locais, provinciais, urbanas pelo fato de reter apenas os fatos que interessam ao conjunto de cidados ou melhor, dos cidados, enquanto membros da nao. Para que a histria assim entendida, mesmo sendo muito detalhada, nos aju-de a conservar e reencontrar a lembrana de um destino individu-al, preciso que o indivduo considerado tenha sido ele mesmo um personagem histrico. Claro, h momentos em que todos os homens de um pas esquecem seus interesses, sua famlia, os gru-pos restritos em cujos limites normalmente seu horizonte se de-tm. Existem acontecimentos nacionais que modificam ao mesmo tempo todas as existncias. So raros. No obstante, eles podem oferecer a todos os indivduos de um pas alguns pontos de refe-rncia no tempo. Em geral a nao est distanciada demais do indivduo para que este considere a histria de seu pas algo dife-rente de um contexto muito amplo, com o qual sua histria pesso-al tem pouqussimos pontos de contato. Em muitos romances que traam o destino de uma famlia ou de uma pessoa, no importa l muito saber a poca em que se desenrolam os acontecimentos, que no perderiam nada de seu contedo psicolgico se os trans-portssemos de um perodo para outro. No verdade que a vida interior se intensifica medida que se isola das circunstncias exteriores, que passam ao primeiro plano da memria histrica? Se mais de um romance ou pea de teatro so situados por seu autor em um perodo afastado muitos sculos de ns, no ser este em geral um artifcio para separar o contexto dos fatos do presen-te e permitir sentir-se melhor a que ponto do jogo dos sentimentos independente dos eventos da histria e se parece consigo mes-mo atravs dos tempos? Se, por memria histrica, entendemos a seqncia de eventos cuja lembrana a histria conserva, no ser ela, no sero seus contextos que representam o essencial disso que chamamos de memria coletiva.

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    No entanto, entre o indivduo e a nao h muitos outros gru-pos, mais restritos do que esta, que tambm tm suas memrias, e cujas transformaes reagem bem mais diretamente sobre a vida e o pensamento de seus membros. Quando um advogado guarda lem-brana de causas que defendeu e um mdico, dos doentes que tra-tou, se um e outro se lembra dos colegas de profisso com quem manteve contato, no avanar muito ao fixar sua ateno em todas essas imagens, no detalhe de sua vida pessoal, e no evocar tanto assim preocupaes e pensamentos ligados a seu prprio eu de an-tigamente, aos destinos de sua famlia, a suas relaes de amizade a tudo o que constitui sua histria? Sim, este apenas um aspec-to de sua vida. Mas, repetimos, cada pessoa est mergulhada ao mesmo tempo ou sucessivamente em muitos grupos. Cada grupo se divide e se contrai no tempo e no espao. Nessas sociedades sur-gem outras tantas memrias coletivas originais, e por algum tempo mantm a lembrana de eventos que s tm importncia para elas, mas interessam tanto mais porque seus membros no so muito nu-merosos. fcil ser esquecido numa grande cidade, mas os mora-dores de uma aldeia no param de se observar, e a memria de seu grupo registra fielmente tudo o que se pode observar em fatos e gestos de cada um, porque eles reagem e influenciam toda essa pequena sociedade e contribuem para modific-la. Nesses meios, to-dos os individuos pensam e se lembram em comum. Cada um, cla-ro, tem seu ponto de vista e em relao e correspondncia to estreitas com os dos outros que, se suas lembranas se distorcem, basta que se ponham no ponto de vista dos outros para endireit-las.

    De tudo o que foi dito antes, conclumos que a memria coletiva no se confunde com a histria e que a expresso memria histri-ca no muito feliz, pois associa dois termos que se opem em mais de um ponto. A histria a compilao dos fatos que ocupa-ram maior lugar na memria dos homens. No entanto, lidos nos livros, ensinados e aprendidos nas escolas, os acontecimentos pas-sados so selecionados, comparados e classificados segundo neces-sidades ou regras que no se impunham aos crculos dos homens que por muito tempo foram seu repositrio vivo. Em geral a hist-

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    A h&w.ria. Cotillo-A

    ria s comea no ponto em que termina a tradio, momento em que se apaga ou se decompe a memria social. Enquanto subsiste uma lembrana, intil fix-la por escrito ou pura e simplesmente fix-la. A necessidade de escrever a histria de um perodo, de uma so-ciedade eat mesmo de uma pessoa s desperta quando elas j esto bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrana. Quando a memria de uma seqn-cia de acontecimentos no tem mais por suporte um grupo, o pr-prio evento que nele esteve envolvido ou que dele teve conseqncias, que a ele assistiu ou dele recebeu uma descrio ao vivo de atores e espectadores de primeira mo quando ela se dispersa por alguns espritos individuais, perdidos em novas socie-dades que no se interessam mais por esses fatos que lhes so deci-didamente exteriores, ento o nico meio de preservar essas lembranas fix-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrera. Se a condio necessria para que exista a memria que o sujeito que lembra, indivduo ou grupo, tenha a sensao de que ela remonta a lembranas de um movimento contnuo, como poderia a histria ser uma memria, se h uma interrupo entre a sociedade que l essa histria e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de acon-tecimentos que nela so relatados?

    claro, um dos objetivos da histria talvez seja justamente lanar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. Mas como recriar comentes de pensa-mento coletivo que tomam seu impulso no passado, enquanto s temos influncia sobre o presente? Por meio de um trabalho minu-cioso, os historiadores podem redescubrir e atualizar certa quanti-dade de fatos grandes e fatos pequenos, que se acreditava perdidos para sempre, especialmente quando tm a sorte de encontrar mem-rias inditas. Contudo, por exemplo, se as Memrias de Saint-Simon foram publicadas no incio do sculo XIX, pode-se dizer que a soci-edade francesa de 1830 realmente retomou contato um contato vivo e direto com o final do sculo XVII e o tempo da Regncia? O que foi passado dessas Memrias nas histrias elementares, aque-

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    os fatos se deixam assim agrupar em conjuntos sucessivos e separa-dos, cada perodo tem um comeo, um meio e um fim. Mas a hist-ria que se interessa principalmente pelas diferenas e pelas oposies, assim como enfoca e relata uma determinada figura, de modo a dei-xar muito visveis os traos dispersos no grupo, tambm relata e se concentra num intervalo de alguns anos de transformaes que, na realidade, se realizaram em tempo bem mais longo. possvel que logo depois de um evento que abalou, destruiu em parte, renovou a estrutura de uma sociedade, comece um novo perodo. S percebe-remos isto mais tarde, quando uma sociedade nova realmente hou-ver arrancado de si mesma novos recursos e se tiver proposto novos objetivos. Os historiadores no podem levar a srio essas linhas de separao, e imaginar que elas tenham sido observadas pelos que viviam durante os anos que elas atravessam, como o personagem de uma comdia que grita: "Hoje comea a guerra dos cem anos"! Quem sabe se, depois de uma guerra, de uma revoluo, que tenha escava-do um fosso entre duas sociedades, como se houvesse desaparecido uma gerao intermediria, a sociedade jovem ou a parte jovem da sociedade, em harmonia com a poro idosa, no se preocupa prin-cipalmente em apagar os traos dessa ruptura, em reaproximar ge-raes extremas, e apesar de tudo manter a continuidade da evoluo? preciso que a sociedade viva; mesmo que as instimi-es sociais estejam profundamente transformadas, e ento, sobre-tudo quando estiverem, o melhor meio de fazer com que elas criem razes fortalec-las com tudo o que se puder aproveitar de tradi-es. A, logo depois dessas crises, repetimos: temos de recomear no ponto em que fomos interrompidos, preciso retomar as coisas a partir do incio. Em pouco tempo, imaginamos que nada mudou porque reatamos o fio da continuidade. Esta iluso, da qual logo nos livraremos, pelo menos ter permitido que passemos de uma etapa a outra, sem que em momento algum a memria coletiva te-nha sentido qualquer interrupo.

    Em realidade, no desenvolvimento contnuo da memria co-letiva na realidade no h linhas de separao claramente traadas, como na histria, mas apenas limites irregulares e incertos. O pre-sente (entendido como o perodo que se estende por certa durao,

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    a que interessa sociedade de hoje) no se ope ao passado como dois perodos histricos vizinhos se distinguem. O passado no existe mais, enquanto para o historiador os dois perodos tm tanta reali-dade um como o outro. A memria de uma sociedade se estende at onde pode quer dizer, at onde atinge a memria dos grupos de que ela se compe. No absolutamente por m vontade, antipatia, repulsa ou indiferena que ela esquece uma quantidade to grande de fatos e personalidades antigas, porque os grupos que guarda-vam sua lembrana desapareceram. Se a durao da vida humana dobrasse ou triplicasse, o campo da memria coletiva, medido em unidades de tempo, seria bem mais extenso. Na poca no estava claro que esta memria ampliada tivesse um contedo mais rico, se a sociedade ligada por tantas tradies evoluisse com maior dificul-dade. Da mesma forma, se a vida humana fosse mais curta, uma memria coletiva, cobrindo uma durao mais restrita, talvez no empobrecesse porque, numa sociedade assim aliviada, as mudan-as se precipitariam. Em todo caso, como se esboroa lentamente pelas bordas que marcam seus limites, medida que cada um de seus membros, especialmente os mais velhos, desaparecem ou se isolam, a memria de uma sociedade no pra de se transformar, e o prprio grupo est sempre mudando. Alis, difcil dizer em que momento desapareceu uma lembrana coletiva, e se ela saiu real-mente da conscincia do grupo, precisamente porque basta que se conserve em uma parte limitada do corpo social para que ali sempre se consiga reencontr-la.

    Na realidade, existem muitas memrias coletivas. Esta a segunda caracterstica pela qual elas se distinguem da histria. A histria uma e se pode dizer que s existe uma histria. isso que entende-mos por histria. Claro, podemos distinguir a histria da Frana, a histria da Alemanha, a histria da Itlia, e ainda a histria de tal perodo ou de tal regio, de uma cidade (c at mesmo de um indiv-duo). As vezes reprovamos ao trabalho histrico esse excesso de especializao e o gosto extremo do estudo detalhista que se desvia do conjunto e de alguma forma toma a parte pelo todo. Examine-mos mais de perto. O que aos olhos do historiador justifica essas

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    pesquisas de detalhe, que detalhe somado a detalhe dar um con-junto, que se acrescentar a outros conjuntos e no quadro total re-sultante de todas essas somas sucessivas, nada est subordinado a nada, qualquer fato to interessante quanto qualquer outro e tanto quanto qualquer outro merece ser posto em destaque e transcrito. Ora, esse gnero de avaliao acontece quando no se leva em con-ta o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo existiram, para os quais, ao contrrio, todos os aconteci-mentos, todos os lugares e todos os perodos esto longe de apre-sentar a mesma importncia, pois no foram afetados por eles da mesma maneira. Em todo caso, o historiador acredita ser muito ob-jetivo e imparcial. Mesmo quando escreve a histria de seu pas, ele se esfora por reunir um conjunto de fatos que poder ser justapos-to a tal outro conjunto, histria de outro pas, de tal maneira que no haja nenhuma interrupo de um a outro e que, no panorama total da histria da Europa, no encontremos a reunio de diversos pontos de vista nacionais sobre os fatos, mas a srie e a totalidade de fatos tais no a favor de tal pas ou tal grupo e sim, independen-tes de qualquer opinio de grupo. A partir da, num quadro assim, as prprias divises que separam os pases so fatos histricos, com o mesmo peso dos outros. Est tudo no mesmo plano. O mundo histrico como um oceano para onde afluem todas as histrias parciais. No de surpreender que desde a origem da histria e at mesmo em todas as pocas, se tenha pensado em escrever tantas histrias universais. Essa a orientao natural do esprito histri-co. Essa a inclinao fatal, sobre a qual seria arrastado qualquer historiador, se no fosse retido no contexto de obras mais limitadas, por modstia ou falta de flego.

    Sim, a musa da histria Polmnia. A histria pode se apresentar como a memria universal da espcie humana. Contudo, no existe nenhuma memria universal. Toda memria coletiva tem como su-porte um grupo limitado no tempo e no espao. No podemos reu-nir em um nico painel a totalidade dos eventos passados, a no ser tirando-o da memria dos grupos que guardavam sua lembrana, cortar as amarras pelas quais eles participavam da vida psicolgica

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    A vhewdflA C C U I I V A

    dos ambientes sociais em que ocorreram, deles no reter somente o esquema cronolgico e espacial. No se trata mais de reviv-los em sua realidade, mas de recoloc-los nos contextos em que a histria dispe os acontecimentos, contextos esses que permanecem exterio-res aos grupos, e defini-los cotejando uns com os outros. E dizer que a histria se interessa principalmente pelas diferenas, e abstrai as semelhanas sem as quais, contudo, no haveria nenlruma memria, pois ns s nos lembramos de fatos que tm por trao comum perten-cer a uma mesma conscincia, o que lhe permite ligar uns aos outros, como variaes sobre um ou alguns temas. Somente assim ela conse-gue nos proporcionar uma viso abreviada do passado, juntando em um instante, simbolizando em algumas mudanas bruscas, em alguns avanos dos povos e dos indivduos, lentas evolues coletivas. E assim que ela nos apresenta sua imagem nica e total.

    Ao contrrio, para termos uma idia da multiplicidade das memrias coletivas, imaginemos o que seria a histria de nossa vida se, enquanto a contamos, nos detivssemos a cada vez que nos lem-brssemos de um dos grupos pelos quais passamos, para examin-lo em si e dizer tudo o que dele sabemos. No bastaria distinguir determinados conjuntos: nossos pais, a escola, o ginsio, nossos amigos, os colegas de profisso, nossas relaes sociais, e mais tal sociedade poltica, religiosa ou artstica a que nos ligamos em al-gum momento. Essas grandes divises so cmodas, mas respon-dem a uma viso ainda exterior e simplificada da realidade. Essas sociedades compreendem grupos bem menores que ocupam apenas uma parte do espao, e s tivemos contato com uma seo local de um ou outro dentre eles. Esses grupos menores se transformam, se segmentam, e embora permaneamos no mesmo lugar sem sair de um grupo, este vai se transfoimando em outro grupo, por uma reno-vao lenta ou rpida de seus membros, que s ter poucas tradi-es em comum com os que os constituam no inicio. assim que, vivendo por muito tempo em uma mesma cidade, temos amigos novos, amigos antigos e at dentro da famlia, os lutos, os casa-mentos, os nascimentos so outros pontos sucessivos de partida e de recomeo. Sim, esses grupos mais recentes s vezes no passam de subdivises de uma sociedade que se ampliou, ramificou, na qual

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    novos conjuntos vieram se enxertar. Neles discernimos zonas dis-tintas e quando passamos de uma para outra, no so as mesmas correntes de pensamento e as mesmas sries de lembranas que atra-vessam nosso esprito. dizer que a maioria desses grupos, mesmo quando atualmente no esto divididos, como dizia Leibniz, repre-senta todavia uma espcie de matria social indefinidamente divis-vel, segundo as mais diversificadas linhas.

    Consideremos agora o contedo dessas memrias coletivas mltiplas. No diremos que, diferente da histria, ou melhor, da memria histrica, a memria coletiva retm apenas semelhanas. Para que se possa falar de memria, preciso que as partes do per-odo sobre o qual ela se estende sejam diferenciados em certa medi-da. Cada um dos grupos tem uma histria. Neles distinguimos personagens e acontecimentos mas o que chama a nossa ateno que, na memria, as semelhanas passam para o primeiro plano. No momento em que examina seu passado, o grupo nota que conti-nua o mesmo e toma conscincia de sua identidade atravs do tem-po. A histria, como j dissemos, deixa passar esses intervalos em que aparentemente nada acontece, em que a vida se limita a se repe-tir, sob formas um tanto diferentes, mas sem alterao essencial, sem ruptura nem perturbao. Mas o grupo que vive no primeiro instante e, sobretudo, para si mesmo, visa perpetuar os sentimentos e as imagens que formam a substncia de seu pensamento. o tem-po decorrido, durante o qual nada o modificou profundamente, que ocupa o maior espao em sua memria. Os eventos que ocorreram na famlia e os diversos caminhos e descaminhos de seus membros, sobre os quais insistiramos se fssemos escrever a histria dessa famlia, para ela retiram todo o sentido daquilo que permite ao gru-po de parentes mostrar que ele tem realmente uma caracteristica prpria, distinta de todos os outros, e praticamente no muda. Se, ao contrrio, o acontecimento, a iniciativa de um ou de alguns de seus membros ou, enfim, se circunstncias exteriores introduzis-sem na vida do grupo um elemento novo, incompatvel com seu passado, surgiria um outro grupo, dotado de memria prpria, em que subsistiria apenas uma lembrana incompleta e confusa do que precedeu essa crise.

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    A histria um painel de mudanas, natural que esteja convencida de que as sociedades esto sempre mudando, porque fixa seu olhar no conjunto e quase no passa um ano sem que ocor-ra alguma transformao em alguma regio desse conjunto. Para a histria tudo est ligado, por isso cada uma dessas transformaes deve reagir sobre as outras partes do corpo social e preparar aqui ou ali uma nova mudana. Aparentemente, a srie de acontecimentos histricos descontnua, cada fato est separado do que o precede ou o segue por um intervalo, em que se pode at acreditar que nada aconteceu. Na realidade, os que escrevem a histria e observam principalmente as mudanas, as diferenas, compreendem que para passar de uma a outra preciso que se desenvolva uma srie de transformaes, das quais a histria s percebe a soma (no sentido de clculo integral) ou o resultado final. Esse o ponto de vista da histria, porque ela examina os grupos de fora e abrange um pero-do bastante longo. A memria coletiva, ao contrrio, o grupo vis-to de dentro e durante um perodo que no ultrapassa a durao mdia da vida humana, que de modo geral, lhe bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesma que certamente se de-senrola no tempo, j que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele sempre se reconhea nessas imagens sucessivas. A mem-ria coletiva um painel de semelhanas, natural que se convena de que o grupo permanea, que tenha permanecido o mesmo, por-que ela fixa sua ateno sobre o grupo e o que mudou foram as relaes ou contatos do grupo com os outros. Como o grupo sem-pre o mesmo, as mudanas devem ser aparentes: as mudanas, ou seja, os acontecimentos que ocorreram no grupo, se resolvem em semelhanas, pois parecem ter como papel desenvolver sob diver-sos aspectos um contedo idntico, os diversos traos essenciais do prprio grupo.

    No final das contas, como seria possvel uma memria... no l muito paradoxal pretender conservar o passado no presente, ou introduzir o presente no passado, se no podem existir duas zonas de um mesmo domnio e se o grupo no tendesse a se fechar em uma forma relativamente imvel, medida que entra em si mesmo, em que ao lembrar, toma conscincia de si e se isola dos outros?

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