6
Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº12 – 10/4/2013 Ignez Magdalena Aranha de Lima Barroso, cantora, atriz, instru- mentista, folclorista, professora, apresentadora de rádio e televisão, fez 88 anos agora em março. Para Assis Ângelo, que a conhece há cerca de 30, ela é simplesmente Inezita, Inezita Barroso. Ele diz que, no caso, simplesmente não é força de expressão, porque, apesar do nome pomposo e do imenso cabedal de conhecimento e cultura, Inezita é a simplicidade em pessoa. Admira tanto a ami- ga que foi sobre a infância dela o primeiro livro infanto-juvenil que escreveu: A menina Inezita Barroso (Cortez Editora, 2011, São Paulo). E é a ela que dedi- ca esta edição de aniversário de J&Cia Memória da Cultura Popular, reproduzindo uma en- trevista publicada em 8/1/1990 no extinto suplemento D. O. Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo, que integra o acervo do seu Instituto Memória Brasil (IMB). Entrevista atualíssima, apesar de passados já 23 anos. Sobre o IMB, Assis conta ter começado o ano recebendo a doação dos originais do filme Chapéu de couro, o último com a participação do rei do baião Luiz Gonzaga, que teve locações em Serrita (PE), Juazeiro (CE), Avaré e Embu (SP), em 1978, com direção de Salo Falzen. No elenco, Jorge Paulo, Anas- tácia (rainha do forró), Zé Nilton, Jofre Soares, Venân- cio, entre outros. Boa leitura! Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli Simplesmente Inezita Inezita Barroso... Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções fotográficas de Clarissa de Assis, Daniel Justi e Darlan Ferreira Assis, no acervo do IMB, e com Jorge Paulo e os rolos do filme Chapéu de couro Faz uns 30 anos que conheço Inezita, uma das pessoas mais envolventes e ad- miráveis com que, até aqui, topei na vida. Ela é alegre, risonha e cheia de histórias incríveis e fáceis de contar – e de ouvir. E de uma simplicidade que se traduz até no desejo puro e simples de conhecer o México e morar numa praia qualquer e morrer no mar. Um exagero dela, certamente. Na entrevista que o amigo leitor vai ler ou reler agora, originalmente publicada há vinte e poucos anos, no extinto suplemento cultural D. O. Leitura, de São Paulo, estão revelações e passagens curiosas da vida dessa encantadora mulher. Ela nasceu num dia de carnaval; ali, exa- to, pela metade dos anos 20. Inezita estudou, formou-se em Biblio- teconomia na Universidade de São Paulo, para ter acesso livre e rápido aos livros dos autores de que sempre gostou – entre os quais o paulista Monteiro Lobato e o paulis- tano Mário de Andrade –, e foi depois disso tocar e cantar por aí devidamente prepara- da, com o apoio principalmente da mãe. A história dela eu conto no livro A me- nina Inezita Barroso (Cortez Editora, 2012). O marco da carreira de Inezita está na gravação – com ela própria acompanhan- do-se ao violão – e lançamento de seu primeiro disco de 78 rpm pelo selo Sinter, em outubro de 1951. Mas o ponto alto – ainda assim inicial – da sua discografia, pra valer mesmo, segundo ela, foi o dia 3 de agosto de 1953, quando entrou no estúdio da extinta RCA Victor, no Rio de Janeiro, e gravou o disco 2º da carreira, que ela considera ótimo. No lado A desse disco foi inserida a moda de viola Marvada pinga, também conhecida como Moda da pinga, de domínio público, creditada, porém, ao sorocabano Laurea- no, de batismo Ochelcis Aguiar Laureano (1909-1996). No lado B, foi inserido o sam- ba Ronda, do cientista paulistano Paulo Vanzolini, compositor nas horas mais ou menos vagas. Marvada pinga foi gravada pela primeira vez em disco de 78 rpm no dia 5 de outubro de 1939 pela dupla Mariano e Laureano, e lançada à praça em março do ano seguinte. Moda da pinga, essa creditada ao violeiro Cunha Jr., foi gravada originalmente por Raul Torres e Serrinha no estúdio Victor, no dia 25 de abril de 1940, e lançada no mês de agosto do mesmo ano. O detalhe é que, gritantemente, a letra de uma é diferente da outra. A gravação de Marvada pinga se inicia com o seguinte diálogo: – Ê, Mariano! Eu trouxe uma moda de viola boa procê cantar comigo. – Ô, barbaridade! – Então vamos cantar essa moda. De quem é essa moda? – Ah! Essa moda quem me deu foi Zé Inocêncio, de Mogi das Cruzes (SP). – Barbaridade! – É a Marvada pinga. – Então, sapeca! Inezita Barroso é corintiana “roxa”, da- quelas de bater boca com adversário que nem conhece e xingar sem sentir culpa o juiz e a mãe do juiz, como, aliás, o fazem milhões e milhões de brasileiros, como Miro e Mário, gêmeos que por décadas pilotaram dia e noite o Parreirinha de tantas e tantas histórias hoje armazenadas na me- mória de cada um de seus frequentadores, patrimônio histórico e artístico, etílico, da humanidade boêmia da capital paulista que findou sem ser devidamente tombado. Miro, diminutivo de Waldomiro, e Mário, de batismo Waldemar, estão hoje longe, bem longe da gente, no céu, no vento, na eternidade, e deles já não temos nem notícia. O Parreirinha, que começou ali na rua Conselheiro Nébias e partiu por um tempo momentâneo para um ponto da avenida Ipiranga, morreu num dia de carnaval, sem ninguém saber. E não houve nem missa de sétimo dia... O último endereço do Parreirinha foi a rua General Jardim, 284, na Vila Buarque. Frequentei muito o Parreirinha.

Memória da Cultura Popular Nº12

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Concluida a primeira etapa da parceria combinada do Instituto Memória Brasil, IMB, com o newsletter Jornalistas&Cia, de editarmos especiais no caderno virtual Memória da Cultura Popular que foi criado para essa finalidade. Este mês o caderno traz a cantora e folclorista paulistana Inezita Barroso falando das origens da moda de viola, dos desconhecidos que ainda reivindicam para si a autoria de Marvada Pinga, das lembranças que guarda do presidente Juscelino...

Citation preview

Page 1: Memória da Cultura Popular Nº12

Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº12 – 10/4/2013

Ignez Magdalena Aranha de Lima Barroso, cantora, atriz, instru-mentista, folclorista, professora, apresentadora de rádio e televisão, fez 88 anos agora em março. Para Assis Ângelo, que a conhece há cerca de 30, ela é simplesmente Inezita, Inezita Barroso. Ele diz que, no caso, simplesmente não é força de expressão, porque, apesar do

nome pomposo e do imenso cabedal de conhecimento e cultura, Inezita é a simplicidade em pessoa. Admira tanto a ami-ga que foi sobre a infância dela o primeiro livro infanto-juvenil que escreveu: A menina Inezita Barroso (Cortez Editora, 2011, São Paulo). E é a ela que dedi-ca esta edição de aniversário de J&Cia Memória da Cultura Popular, reproduzindo uma en-

trevista publicada em 8/1/1990 no extinto suplemento D. O. Leitura, do Diário Oficial do Estado de São Paulo, que integra o acervo do seu Instituto Memória Brasil (IMB). Entrevista atualíssima, apesar de passados já 23 anos.

Sobre o IMB, Assis conta ter começado o ano recebendo a doação dos originais do filme Chapéu de couro, o último com

a participação do rei do baião Luiz Gonzaga, que teve locações em Serrita (PE), Juazeiro (CE), Avaré e Embu (SP), em 1978, com direção de Salo Falzen. No elenco, Jorge Paulo, Anas-tácia (rainha do forró), Zé Nilton, Jofre Soares, Venân-cio, entre outros.

Boa leitura!

Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

Simplesmente Inezita

Inezita Barroso...Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções fotográficas de Clarissa de Assis, Daniel Justi e Darlan Ferreira

Assis, no acervo do IMB, e com Jorge Paulo e os rolos do filme Chapéu de couro

Faz uns 30 anos que conheço Inezita, uma das pessoas mais envolventes e ad-miráveis com que, até aqui, topei na vida.

Ela é alegre, risonha e cheia de histórias incríveis e fáceis de contar – e de ouvir.

E de uma simplicidade que se traduz até no desejo puro e simples de conhecer o México e morar numa praia qualquer e morrer no mar.

Um exagero dela, certamente.Na entrevista que o amigo leitor vai ler

ou reler agora, originalmente publicada há vinte e poucos anos, no extinto suplemento cultural D. O. Leitura, de São Paulo, estão revelações e passagens curiosas da vida dessa encantadora mulher.

Ela nasceu num dia de carnaval; ali, exa-to, pela metade dos anos 20.

Inezita estudou, formou-se em Biblio-teconomia na Universidade de São Paulo, para ter acesso livre e rápido aos livros dos autores de que sempre gostou – entre os

quais o paulista Monteiro Lobato e o paulis-tano Mário de Andrade –, e foi depois disso tocar e cantar por aí devidamente prepara-da, com o apoio principalmente da mãe.

A história dela eu conto no livro A me-nina Inezita Barroso (Cortez Editora, 2012).

O marco da carreira de Inezita está na gravação – com ela própria acompanhan-do-se ao violão – e lançamento de seu primeiro disco de 78 rpm pelo selo Sinter, em outubro de 1951.

Mas o ponto alto – ainda assim inicial – da sua discografia, pra valer mesmo, segundo ela, foi o dia 3 de agosto de 1953, quando entrou no estúdio da extinta RCA Victor, no Rio de Janeiro, e gravou o disco 2º da carreira, que ela considera ótimo. No lado A desse disco foi inserida a moda de viola Marvada pinga, também conhecida como Moda da pinga, de domínio público, creditada, porém, ao sorocabano Laurea-no, de batismo Ochelcis Aguiar Laureano

(1909-1996). No lado B, foi inserido o sam-ba Ronda, do cientista paulistano Paulo Vanzolini, compositor nas horas mais ou menos vagas.

Marvada pinga foi gravada pela primeira vez em disco de 78 rpm no dia 5 de outubro

de 1939 pela dupla Mariano e Laureano, e lançada à praça em março

do ano seguinte.Moda da pinga, essa

creditada ao violeiro Cunha Jr., foi gravada originalmente por Raul Torres e Serrinha no estúdio Victor, no dia 25 de abril de 1940, e lançada no mês de agosto do mesmo ano.

O detalhe é que, gritantemente, a letra de uma é diferente da outra.

A gravação de Marvada pinga se inicia com o seguinte diálogo:

– Ê, Mariano! Eu trouxe uma moda de viola boa procê cantar comigo.

– Ô, barbaridade!– Então vamos cantar essa moda. De

quem é essa moda? – Ah! Essa moda quem me deu foi Zé

Inocêncio, de Mogi das Cruzes (SP).– Barbaridade!– É a Marvada pinga.– Então, sapeca!Inezita Barroso é corintiana “roxa”, da-

quelas de bater boca com adversário que nem conhece e xingar sem sentir culpa o juiz e a mãe do juiz, como, aliás, o fazem

milhões e milhões de brasileiros, como Miro e Mário, gêmeos que por décadas pilotaram dia e noite o Parreirinha de tantas e tantas histórias hoje armazenadas na me-mória de cada um de seus frequentadores, patrimônio histórico e artístico, etílico, da humanidade boêmia da capital paulista que findou sem ser devidamente tombado.

Miro, diminutivo de Waldomiro, e Mário, de batismo Waldemar, estão hoje longe, bem longe da gente, no céu, no vento, na eternidade, e deles já não temos nem notícia.

O Parreirinha, que começou ali na rua Conselheiro Nébias e partiu por um tempo momentâneo para um ponto da avenida Ipiranga, morreu num dia de carnaval, sem ninguém saber.

E não houve nem missa de sétimo dia...O último endereço do Parreirinha foi a

rua General Jardim, 284, na Vila Buarque.Frequentei muito o Parreirinha.

Page 2: Memória da Cultura Popular Nº12

nº 1210/4/2013

Pág. 2

Em sua mesa cativa no Parreirinha

Esse restaurante foi uma espécie de clube de amigos e subsede do Corinthians, digamos assim.

Teve vida longa: 74 anos.Quando sentíamos fome e vontade de

trocar ideias tomando cerveja, cachaça ou uísque ao lado de amigos, íamos lá onde a madrugada, nossa cúmplice, virava criança sem denotar nenhum resquício de sono, pesar, penar, cansaço ou o que fosse.

Coisa melhor não havia.E aí relaxávamos e comíamos bem;

falávamos, bebíamos, batucávamos e can-távamos com voz enrolada, mas de modo todo normal.

E no dia seguinte tínhamos pauta para o jornal.

E éramos mais ou menos jovens, e Ja-melão era o cara.

O cara também eram Adoniran, que ja-mais pagou uma conta lá; Miltinho, sempre afável com sua voz doce; Fagner, na dele; Belchior, com aquele ar de intelectual sabe--tudo que levava para onde quer que fosse, mas receptível, acolhedor, sempre; Cauby...

Pelo restaurante Parreirinha, de boas lembranças, passaram Ataulfo Alves, que se vangloriava de frequentar um lugar onde podia tomar o seu caldinho verde tranquilo sem que lhe pedissem para cantar Amélia, sucesso retumbante de sua autoria e de Mário Lago, e esse lugar era o Parreirinha... Zé Kétti, que não se cansava de batucar na mesa mais um sambinha seu; Lupicínio Rodrigues, que chegava à hora do Angelus e saia ao raiar do dia seguinte; Ary Barroso, de tempos mais atrás; Luís Vieira, João Bosco, João Nogueira, Luís Ayrão, Ivan Lins, Grande Otelo, Noite Ilustrada, Rolando Boldrin, Silvio Caldas, Roberto Luna, Erlon Chaves, Ciro Monteiro, Jair Rodrigues, Eval-do Gouveia, Nélson Gonçalves, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Moraes Sarmento, Fernando Faro, Elifas Andreato, Ary Toledo, Ronald Golias...

Golias me aprontou uma.Certa noite, eu cheguei acompanhado

e me sentei à mesa. Ele veio atrás, rindo, com aquela cara

que ninguém esquece; cumprimentando,

alegre, brincando de modo ingênuo dos santos, e dizendo com modo travesso:

– Poxa, Assis, hoje você arrasou. Essa é linda.

“Essa é linda” foi a frase curta e grossa que “pegou”, pois se tratava da mulher com quem eu dividia lençóis e destinos... E assim, sem mais, a mesa foi desfeita, jun-to com copos e garrafas que alcançaram alturas.

Enfim, um barraco foi feito.E Jamelão era um chato, tanto que nem

participava das rodas de samba que lá ocorriam.

Quase sempre só na mesa do canto, engolindo cerveja, ele justificava sua au-sência dizendo que “quem canta de graça é passarinho”.

O Parreirinha era frequentado por jorna-listas e cronistas da cidade, como Lourenço Diaféria; poetas como Fernando Coelho e Cassiano Ricardo, em épocas diferentes; ro-mancistas como Loyola Brandão e Marcos Rey; atores como Jô Soares e Lima Duarte...

Passavam também por lá as cantoras

Márcia, Ângela Maria, Fafá de Belém, Lecy Brandão, Isaurinha Garcia, Edith Veiga, Eliana Pittman, Beth Carvalho, Virgínia Lane, Maria Alcina, Marly Marley, Aracy de Almeida...

Há registro de diversas dessas persona-lidades no álbum do restaurante (http://migre.me/e2dlL)

Inezita Barroso tinha mesa cativa, a de nº 23.

Ela recorda no livro Com a espada e a viola na mão (Imesp, 2012) que “lá [no

Parreirinha] a gente revia amigos como o João Pacífico, o Arley Pereira, e descobria se alguém estava gravando um novo disco ou fazendo um filme, estreando uma peça.

Lá eu encontrava o Adauto Santos, ótimo músico, companheiro e compositor que levou a viola para a música da noite e dos bares paulistanos”.

Inezita sentava-se à mesa e logo lhe tra-ziam o seu uisquinho predileto, sem gelo, claro, junto com o prato preferido, invaria-velmente rã empanada. (Veja também box O homem do Parreirinha)

Na entrevista que o amigo leitor vai ler ou reler agora, Inezita fala sobre as origens da moda de viola, dos autores de araque de Marvada pinga, das lembranças que guarda do presidente Juscelino, do amigo radialista Moraes Sarmento, com quem inicialmente apresentou o programa Viola, minha viola, da sua presença no cinema nacional, da sua participação no primeiro filme colorido feito no País, do samba Ronda que lançou e de Túlio Tavares, pianista do Rio Grande do Norte, que escreveu a primeira partitura de Ronda...

No correr da conversa, o amigo leitor vai saber que ela não gosta de ouvir os

seus discos, mas gosta de ouvir os discos dos outros, como os de Chico, Milton, Noel.

Ela diz também, na entrevista, do seu receio de passar na frente de hospital e do

medo que tem de entrar num palco. Mas ao entrar...

E você sabia que Inezita Barroso foi fazer pesquisa sobre cultura popular no Nordes-te, dirigindo um Jeep, em 1957?

Da sua discografia constam a gravação de 26 discos de 78 rpm, muitos LPs e CDs.

Por muitos anos, Inezita andou pro-curando o disco original, de 78 rpm, que gravou com Marvada pinga e Ronda; e aí um dia eu lhe dei de presente, para fechar a sua própria discografia.

Inezita Barroso deixa para o Brasil uma marca, a marca da autenticidade musical.

Viva Inezita!

Inezita, no livro da série Aplauso

Em 1957, Inezita fez um giro pelo Nordeste dirigindo um Jeep e colhendo saberes da cultura popular

Com o original de Ronda em 78 rpm, presente de Assis

Você sabia?Que o Instituto Memória Brasil

tem aberto seu acervo a estudantes universitários?

Que saiu do acervo do Instituto Memória Brasil a exposição multimí-dia Roteiro Musical da Cidade de São Paulo, que o Sesc Santana apresentou em 2012?

Que está no Instituto Memória Bra-sil o maior acervo musical sobre Luiz Gonzaga, o Rei do Baião?

Page 3: Memória da Cultura Popular Nº12

nº 1210/4/2013

Pág. 3

(Íntegra da reportagem publicada na edição nº 92 do D. O, Leitura, suplemento do Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 8/1/1990)

A caipira

InezItaIgnez Magdalena Aranha de Lima, a popularmente conhecida  e festejada cantora Inezita Barroso, está completando 36 anos de carreira artística ininterrupta.

Inezita Barroso, que mestre Paulo Van-zolini, do alto do seu saber, chama carinho-samente de “Inês”, foi a primeira artista a gravar Ronda, composição – letra e música – mais que perfeita do próprio Vanzolini. A obra fala de alguém que procura desespe-radamente a cara-metade nas ruas e bares noturnos da capital paulista. Um clássico. Inezita:

– Gravei Ronda no meu disco de estreia,

em 1953. No mesmo disco, um 78 rpm nº 801149, gravei também Moda da pinga, que até hoje dá o que falar. A moda, pelo que me consta, é de domínio público. Ronda foi feita lá em casa.

Até agora Inezita Barroso gravou quase 70 discos, entre os quais vários Lps. Grande parte do seu repertório é constituído de músicas folclóricas. Durante todos esses anos, porém,   ela não se negou a em-

prestar a sua privilegiada voz a obras de Villa-Lobos, Guerra Peixe, Hekel Tavares, Hervê  Cordovil, Waldemar Henrique, Dori-val  Caymmi, Luiz Vieira, Capiba,, Sivuca, Zé do Norte, Teddy Vieira, Luiz Gonzaga, Raul Torres, João Pacífico, Capitão Furtado, Noel Rosa, Almirante, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira, Mário de Andrade, Cecília Meirelles e muitos e muitos. Isso, quando boa parte desse pessoal estava surgindo ou se firman-do no panorama artístico nacional.  Grande Inezita! Hoje, certamente, ela tem muita história para contar. A começar pela sua.

Estudante de classe média, iniciou os estudos na Escola Estadual Caetano de Campos, na capital paulista, onde nasceu. Nessa escola fez o Primário, Ginasial e Normal; depois, no Colégio Estadual, fez o Clássico; em 1946, estava apta a assumir as funções  de biblioteconomista do curso que concluíra  na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – cinco anos antes, fizera cursos de canto, violão e declamação. Inezita, porém, sempre foi uma pessoa dinâmica. “Eu sem-

pre quis saber mais; pra mim, o conhecimento é fundamental na vida”. Em 1948, concluiu o curso de Música e Harmonia. Também estudou Balé e Danças Folclóricas, além de Literatura Brasileira. Virou professora.

Entre 1945 e 1973, ensinou canto, violão e piano. Nesse período, formou cerca de 200 pro-fissionais. Lembra:

– Foi uma época ma-ravilhosa.

Desde 1986, Inezita Barroso é titular da cadeira de Folclore Brasileiro na Universi-dade de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo. Ao mesmo tempo, desde 1985,  ela também ministra a mesma matéria nas Faculdades Capital, para alunos do curso de Turismo. Diz, feliz:

– Ah, me sinto muito bem ensinando os jovens!

Pode-se dizer que Inezita Barroso nas-ceu para aprender, pesquisar, formar. Ela defende com unhas e dentes – se neces-sário , com baionetas e canhões – a cultura popular do Brasil. Andou pelos países do Cone Sul e embrenhou-se mundo afora em busca da nossa identidade cultural. Foi até Portugal e voltou dizendo que “a nossa historia começa mesmo é aqui”.

Esforçada, verdadeira. Inezita Barroso talvez seja, da década de 1950 para cá, a única intérprete da música popular brasi-leira que, além de fiel aos princípios,  pode ser considerada unanimidade nacional. Nos arquivos dos jornais e revistas não há registro de crítica contra o seu trabalho. Humilde, explica a razão:

– Eu sempre procurei fazer o melhor.Já faz algum tempo que não grava disco.

Não que não queira:– As gravadoras têm-se esquecido de

mim. Estou à disposição, basta me cha-marem...

Embora sumida dos discos, Inezita Barroso mantém há anos dois programas

musicais de grande audiência em São Pau-lo. Um na TV Cultura (Viola, minha viola; aos domingos, das 9 às 10h) e outro na Rádio USP (Mutirão; às 6as.feiras, a partir das 21h). Fora isso, é raro o dia em que não está em alguma parte do Brasil apresentando, ao vivo, o que ela mais gosta: música brasileira, para brasileiros.

Nesta entrevista ao jornalista Assis Ângelo, que durou cerca de cinco horas – aqui, um resumo –, Inezita Barroso fala de si, da sua carreira como cantora e atriz (participou de vários filmes, entre 1951 e 1960), dos seus gostos pessoais, amigos, vida e sonhos:

– Eu quero conhecer o México, morar na praia e morrer no mar.

Assis Ângelo – Esta nossa conversa não poderia começar sem abordarmos a famosa Moda da pinga. Aliás, você bebe pinga?

Inezita Barroso (rindo) – Não, não. Pin-ga me faz mal. Com ela, a minha pressão cai. Bebo cerveja, que até faz bem à saúde. De vez em quando, um conhaque ou uísque.

AA – Pinga, então, de jeito nenhum?

IB – De jeito nenhum. Ela me derruba. Pinga é cana-de-açúcar. O meu negócio é sal.

AA – Como surgiu a Moda da pinga?IB –  Eu conheço essa música desde

criança. Tinha uns cinco anos de idade quando comecei a ouvi-la na fazenda dos meus tios, no interior de São Paulo. Ouvia muito os caipiras cantá-la. Achava engra-çada, não sei por quê. É engraçada, não é?

AA – Talvez pela melodia ou pela letra humorística.

IB – Pode ser. É regional, é bem brasileira.AA – A história dessa moda  é antiga,

controvertida, polêmica. Foi lançada por Raul Torres e Serrinha no final dos anos 1940, não foi?

IB – Torres e Serrinha cantavam uma moda que se chamava Festa no Rio Tietê, cujos versos finais eram os mesmo da Moda da pinga: “Eu fui numa festa no Rio Tietê...”, entende? “Eu lá fui chegando no ama-nhecê...”. Havia uma opção para a história sobre pinga: “Já me dero pinga pra mim bebê...”. Bom, aprendi essa música quando

Page 4: Memória da Cultura Popular Nº12

nº 1210/4/2013

Pág. 4

era criança e a gravei como a aprendi; só anos depois é que mudaria um ou outro verso. Quando gravei a Moda pela primeira vez, sequer conhecia a versão de Torres e Serrinha. Gravei assim: “Co’ a marvada pinga é que me atrapaio/Eu entro na venda e já dô meu taio/Pego no copo e dali num saio/Ali memo eu bebo, ali memo eu caio...”. Os versos são colossais!

AA – Moda da pinga e Marvada pinga têm a mesma música e versos diferentes, não?

IB – Sim. Aliás, a título de esclarecimento, devo dizer o seguinte: a primeira gravação que fiz da Moda da pinga foi para a RCA Victor (hoje BMG/Ariola), num disco de 78 rpm e em cujo selo se lê: “Marvada pinga, de Laureano, com Inezita Barroso e Conjunto Regional do Canhoto”. A Marvada está no lado A. Já então sabíamos dela inteira, mas por falta de espaço no disco foram gravadas apenas cinco estrofes.

AA – Além de sucesso, essa moda (de viola) provocou muita polêmica a respeito de sua autoria, não foi?

IB – Sim. E essa polêmica perdura até

hoje. De vez em quando ainda aparece um cara de 25, 30 anos, dizendo: “Eu sou autor da Moda da pinga e no disco você não pôs o meu nome”. Engraçado (rindo), né? O detalhe é que eu gravei essa música há 36 anos. E no meu primeiro disco, como profissional!

AA – Mas o crédito, nesse primeiro disco, você dava a Laureano, correto?

IB – Errado! Quem pôs no disco o nome de Laureano não fui eu, foi a gravadora. Ali-ás, devo dizer que sempre conheci a Moda ou a Marvada pinga, ou qualquer nome que se dê a essa música, como coisa do povo, do folclore do interior de São Paulo.

AA – Domínio público, portanto.IB – Sim. E não sei por que a gravadora

(RCA) resolveu creditar a autoria a Laurea-no. Aliás, tempos depois a mesma gravado-ra resolveria trocar o crédito noutras pren-sagens do disco, primeiro para um tal de Pedro Cunha – que até hoje não sei  quem é – e logo em seguida para Raul Torres. Dá pra entender? Bom, um dia o Paulo Vanzo-lini e eu resolvemos fazer uma brincadeira

em torno dessa música. Ele disse: “Inezita, eu vou escrever umas estrofes para essa moda e vou registrá-las. Você grava e vamos ver o que acontece”. Sou testemunha. Isso foi em 1958, ano em que deixei a RCA e fui para a Copacabana Discos.

AA – E aí?IB – E aí que foi uma grande surpresa

para nós o fato de logo que o disco foi lançado surgirem vários “artistas” dizendo serem os “verdadeiros” autores da Moda, incluindo-se, portanto, os novos versos de Paulo. É engraçado, não é?

AA – Quais foram os novos versos incluí-dos à Moda da pinga?

IB – Duas estrofes: “Cada veis que eu caio, caio deferente/Meaço pra trais e caio

pra frente/Caio devagá, caio de repente/Vô de corrupio, vô diretamente/Mais seno de pinga, eu caio contente/Oi, lá//Pego o garrafão e já balanceio/Que é pra mode vê se tá memo cheio/Num bebo de veis, porque acho feio/No primeiro gorpe chego inté no meio/No segundo trago é que eu desvazeio/Oi, lá!”. Eram estes os versos. Então, ficou provado para nós que sendo ou não folclore, e dependendo das circunstâncias, sempre aparecerão espertos garantindo ser autores dessa ou daquela música. Além das duas estrofes citadas, Paulo Vanzolini escreveu, na ocasião, uma terceira. Essa não gravamos, mas é assim: “Eu bebo da pinga nem que tome pito/O que é de incrinação eu acho bonito/C’o chero da pinga eu já fico afrito/Bebo uma garrafa já quero um litro/É bebeno a pinga que eu crio esprito/Oi, lá!” Bom, a Moda da pinga hoje já faz parte do cancioneiro popular, do inconsciente coletivo do povo brasileiro, E isso é o que importa. Uma pes-soa que conheci há anos, e que se chamava João Joaquim de Sant’Ana, infelizmente já

falecido, nos garantiu  conhecer essa moda desde 1915. Veja: 1915! E que essa mesma moda era muito apreciada pelos cantado-res de viola da época... E pensar que depois que gravei a Moda já me apareceram mais de 50 “autores”... Um absurdo, né? Tem cara que chega para mim e diz: “Essa música é minha, porque é do meu irmão fulano de tal que morreu; porque é do meu pai...”. E por aí vai.

AA – Bom, esse assunto já rendeu muito pano pra manga. Você até chegou a escrever um longo e detalhado artigo a respeito Moda na revista Folclore (nº 15, Ano XII, de 22 de agosto de 1985). Nesse artigo você vai fundo nas explicações, não é?

IB – Achei que era obrigação minha escrever o que escrevi. A minha pretensão foi esclarecer, explicar a história dessa moda o mais minuciosamente possível. Acho que consegui.

AA – Também acho que sim. Você fala até do vocábulo, das variantes da música, da história, das gravações. Aliás, a linguagem por você empregada  nos esclarecimentos é

muito bem apurada. Coisa mesmo de quem entende do riscado. Você também é folclo-rista, não é?

IB – Sou professora de Folclore Brasileiro.AA – Viva o Brasil!IB – Acho que nossas tradições são in-

tocáveis, embora haja quem não dê muito valor a isso. Há muito desconhecimento a respeito da nossa cultura. Pra muita gente, a música do interior de São Paulo é a mesma do interior de Minas Gerais. Não é. Cada região tem suas características.

AA – Esse desconhecimento deve-se a quê?

IB – Á falta de informações, basicamente. A imprensa, os meios de comunicação já não têm, pelo visto, interesse em informar a população. Pena. Acho que as crianças deveriam primeiro aprender sobre o Brasil e sua cultura e depois sobre a cultura e costumes dos povos de outros países. Na prática, não vemos isso. Na prática, o que vemos é uma grande inversão de valores.

AA – Há bem pouco tempo houve, em São Paulo, um cidadão chamado Marcus Pereira preocupado com o tipo de informação a que você se refere. Ele estava conseguindo passar

essas informações, quando caiu no meio do caminho.

IB – Marcus foi meu amigo. Acho que sempre haverá alguém disposto, como ele, a levar adiante esse ideal. O diabo é que o dia só tem 24 horas! Mas vamos em frente, que atrás vem gente.

AA – Você tem um programa no rádio e outro na TV, não é?

IB – É. Eu e o Morais Sarmento apresen-tamos Viola, minha viola há dez anos, na TV Cultura, canal 2, São Paulo. O programa vai ao ar todos os domingos, a partir das 9

A maioria das músicas gravadas por Inezita Barroso foi transcrita em partituras

Inezita foi capa e tema de reportagens de grande revistas

O homem do ParreirinhaCheguei a frequentar o Avenida Danças, ali na Ipiranga. Car-

tão picotado etc.. Cervejinha gelada, que ninguém é de ferro. Fins dos 1970. E era por ali que o Parreirinha ficava. Essa ouvi do próprio Miro:

Uma noite, dessas raras noites inexplicáveis, ele estava lá, junto com amigos. De repente, um deles o cutuca, alertando: “Baixa a voz que o ‘homem de Cuba’ tá aí ao lado”.

E apontou.

E Miro, na dele:– Ele é o homem? Eu também sou. Eu sou o homem do Par-

reirinha, rapaz!O cara ao lado do Miro era o chê, o Chê Guevara, sem trajes

de guerra e tranquilamente fumando charuto.Começavam os anos 1960 e Guevara viera ao Brasil, como

ministro de Cuba, para receber uma condecoração do presidente Jânio Quadros.

Page 5: Memória da Cultura Popular Nº12

nº 1210/4/2013

Pág. 5

horas. É líder de audiência. Somos espontâ-neos. Nesse programa, como no programa Mutirão, que também apresento na Rádio USP, às 6as.feiras, a partir das 21h (com reapresentação às 8h de domingo), tudo é espontâneo, verdadeiro, sem maquiagem e sem ensaio. Nada é postiço. O que importa é a arte, o artista; não importando a cor, a raça, o credo. O que importa, de fato, é o que se tem a dizer.

AA – Como anda a música caipira?

IB – Bem, obrigado. Ela jamais desa-parecerá. Estão aí Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Liu e Léo e muitos e muitos que não nos deixam mentir. Tião Carreiro e Pardinho também estão aí, firmes. Aliás, foram eles os primeiros artistas do gênero a gravar no tom grave.

AA – De onde vem a música caipira?IB – A música caipira é uma tradição pau-

lista. Ela vem do índio, daí aquela voz gritada, aguda, máxima. O nosso caipira tem muito a ver com o índio. E aí surgiram Tião Carreiro e Pardinho, que mudaram um pouco a forma, aquele jeitão de cantar. A dupla, na verdade, acrescentou algo novo, diferente à maneira até então conhecida de cantar. No começo era estranho, pouca gente gostava. Mas os dois sabiam a que vinham. E aí estão, com aquela voz grave, bonita. Antes o negócio era o agudo gritado, hoje não. Antes nêgo ti-nha de berrar para ser bonito, hoje não. Tião Carreiro e Pardinho realmente são muito importantes. Os dois cantam naturalmente. É assim que tem de ser.

AA – Antes, na verdade, nêgo cantava era

com a goela, com o gogó. Se esgoelava, como diz o vulgo. Os músicos eruditos classificam essa forma de canto como “vibrato de cabra”. A dupla Milionário e Zé Rico pode ser um exemplo disso, não?

IB – Mais ou menos, porque eles já cantam num tom mais baixo, mais grave. Além do mais, esses dois já estão noutro setor da música...

AA – São “sertanojos”?IB (rindo) – São. “Sertanojo” é um termo

inventado por Morais Sarmento. Não dá pra mudar a música caipira no tapa, de repente. Dar forma diferente à interpreta-ção musical não é pôr apenas instrumento eletrônico. Não basta, é preciso algo mais: talento, sensibilidade...

AA – É preciso originalidade e ter o que dizer.

IB – Pois é.AA – É por isso que Ronda, Moda da pin-

ga, Lampião de gás e outras e outras músicas permanecerão eternas na interpretação de Inezita Barroso, não é? A isso dá-se o nome de originalidade.

IB – O  que é bom fica.AA – Você não compõe. Por quê?IB – Não. Cada macaco no seu galho.AA – Também nem precisava. Com Hekel

Tavares, Hervê Cordovil e outros e outros compondo pra você...

IB – Pois é. Pra que me meter num ter-reno que não domino?

AA – Você gravou Bandeira e Cecília Mei-relles, entre ouros grandes poetas. Você gosta tanto assim de poesia?

IB – Música é poesia.AA – O que você lê, além de poesia?IB – Literatura brasileira. Veríssimo,

Jorge Amado, Zé Mauro. Cecília Meirelles era incrível!

AA – Você a conheceu bem?IB – Sim. Viajamos algumas vezes juntas.

Estivemos até em Ouro Preto, Minas, ao lado de Juscelino Kubitschek. Juscelino era uma grande pessoa cultural e musicalmen-te. Ele costumava promover serestas com estudantes e profissionais da música, antes mesmo de ser eleito presidente da Repú-blica. Fazia espetáculos lindos, na Praça

Tiradentes. A esses espetáculos comparecia muita gente. Era lindo! Juscelino tocava violão, cantava e dançava.

AA – Então era mesmo justa a fama de “pé de valsa”.

IB – Ora, se era! Ele dançava mesmo. Nas comemorações a Tiradentes, Juscelino saía às ruas à frente de 200, 250 violões, tocando e cantando músicas regionais. No meio dessa alegria toda, eu e Cecília.

AA – Brincadeira!IB – Verdade!AA – Pôxa, já não se fazem presidentes

como antigamente.IB – Pois é, perderam-se as formas. Aca-

bou. Pra fazer isso, precisa ser gente, confiar no povo e ter amor à Pátria. Tinha também Ascenso Ferreira participando da animação.

AA – Sem dúvida, um grande poeta. De Pernambuco.

IB – Capiba, Nelson Ferreira. Todo esse pessoal participava das festas organizadas por Juscelino... Pôxa, parece que estou vendo e ouvindo Ascenso declamar seus poemas... E eu cantando seus poemas

musicados por Waldemar Henrique, Hekel Tavares e outras figuras maravilhosas que o tempo levou.

AA – “Vais ganhar um colar, meu amor/Um colar de conchinhas do mar...”

IB – Pois é, Cecília Meirelles! AA – Um esclarecimento: antes de pro-

fissionalizar-se, você gravou um disco pela Sinter, não?

IB – Mais por brincadeira, em 1952. Era um 78 rpm, nº 0000091. De um lado, Funeral de um Rei Nagô, de Hekel Tavares e Murilo Araújo; e do outro, Curupira, de Waldemar Henrique. Na época eu era uma mocinha da sociedade, que cantava e tocava viola e violão, embora essa fosse uma prática con-siderada inadmissível pra gente de bem, entende? Mas eu gostava disso.

AA – Ronda e a Moda foram gravadas em seguida.

IB – Certo. As duas integraram o meu primeiro disco como cantora profissional e alcançaram um enorme sucesso. Gosto dessas duas músicas até hoje, tanto que só da Moda da pinga gravei três versões. Sou intérprete, canto o que sinto. Ou melhor, sou uma atriz que canta.

AA – Cantriz.IB – Pode ser, no bom sentido.AA– Na área cultural, você tem brilhado

em várias frentes. Inclusive no cinema, né?IB – Você lembra? Minha estreia ocorreu

no dia 13 de julho de 1951. Atuei no filme Ângela, produzido pela Vera Cruz. Um ano depois, participei do primeiro filme colori-do do Brasil, Destino em apuros. Em 1953 participei de outros dois filmes, O canto do

mar, de Alberto Cavalcanti, e É proibido bei-jar, também produzido pela Vera Cruz. Em 1954, participei de mais dois filmes: Mulher de verdade, que me rendeu o troféu Saci de Cinema como Melhor atriz; e Carnaval em Lá Maior. Nesse eu apenas cantava. Também participei de O craque e o Preço da vitória, de 1957 e 1960, respectivamente. Fora isso, na área do cinema, fiz um filme para a TV educativa dos Estados Unidos, cantando em cenários naturais e explicando os temas folclóricos abordados. Esse filme foi exibido em 118 canais e em cinemas das Américas.

AA – Há pouco, você citou Zé Mauro. É o mesmo de Meu pé de laranja lima?

IB –  Sim. Gosto muito da literatura de Zé Mauro. Cheguei a gravar coisas dele, inclusive.

AA – Como?!

Você sabia?Que no acervo do Instituto Me-

mória Brasil há músicas em inglês, francês, japonês e espanhol, entre outras línguas?

Que Peggy Lee, Dizzy Gislepie e Carmen Miranda gravaram músicas de Luiz Gonzaga?

Que o Instituto Memória Brasil preserva o maior acervo de poesias gravadas em discos de todos os for-matos, incluindo os de 78 RPM?

Assis, com Morais Sarmento (1922-1998) no acervo hoje denominado IMB

Inezita foi tema de reportagem sobre festejos juninos na edição da revista Radiolância de 26/5/1956

Page 6: Memória da Cultura Popular Nº12

nº 1210/4/2013

Pág. 6

Inezita, em vídeos e músicas • Assis Ângelo e Inezita Barroso (Parque da Água Branca – 2/4/2011) – http://migre.me/e2hj1 • TV Cocoricó com Inezita Barroso – 22/8/12 – http://migre.me/e2hyp • Inezita Barroso e Assis Ângelo no Sesc Santana (25/1/2012) – http://migre.me/e2hM9 • O Brasil tá na moda, com Assis Ângelo (e Inezita Barroso) – http://migre.me/e2i2V • A brasileira Inezita, música de Assis Ângelo e Papete – http://migre.me/e2isd

IB – Isso mesmo! Zé Mauro e Guerra Peixe compuseram coisas muito bonitas. No filme O canto do mar eu canto duas músicas deles: Maria do ar e a que dá título ao filme.

AA – Pouca gente sabe disso. Como pouca gente, aliás, sabe que a trilha sonora do filme O cangaceiro ficou a cargo de Zé do Norte.

IB – Pois é. Zé do Norte era uma espécie de consultor musical do filme, cuja trilha sonora foi fornecida por ele.

AA – Incrível, né? E nem o nome dele foi creditado.

IB – Ele ia muito à minha casa. Era uma grande figura. Guardo com carinho até hoje muitas gravações dele, inéditas em discos e fitas. São gravações domésticas, nas quais aparecem ruídos, buzina,  janela batendo... À minha casa ia muito gente boa, naquela época. Ronda foi composta lá. Túlio Tava-res, um pianista do Rio Grande do Norte, foi quem escreveu a partitura. Túlio é um advogado famosíssimo, mora em Brasília e não toca mais. Ele era da nossa roda. Todo sábado e domingo tinha choro o dia inteiro.

Chorinho e pizza. Com guaraná, ninguém bebia. No meio, Sílvio Caldas. A gente fazia serenata até às onze da madrugada... Era bonito aquilo, sadio.

AA – Você também cantou muito na noite. É bom?

IB – É. A gente conhece muita gente. Co-nheci Adauto Santos, Carlos Paraná, Papete, Evandro, Manezinho da Flauta.

AA – Manezinho, primo do Pixinguinha. Conheço. Você conheceu bem o Pixinguinha?

IB – Não, de longe. Ele e Donga. Canta-mos num festival de música, acho que na Record. Presente Almirante, outra grande figura. Na noite conheci Ary Barroso, Lu-cio Rangel, Antônio  Maria. Eram o fino. Cantei pra eles. Na época, Nora Ney estava aparecendo, fazendo grande sucesso com Menino grande. Eu morava no Rio de Janeiro e tinha um programa na TV Tupi, em São Paulo. Acho que o ano era 1956. O progra-ma Vamos falar de Brasil.

AA – Ao vivo, uma vez por semana?IB – Sim. Ia ao ar às 6as.feiras. Foi até

1961, 1962.

AA – Nas horas vagas, quem você gosta de ouvir? Inezita Barroso?

IB (rindo) – Não, detesto! Sério!! Acho horrível ficar me ouvindo, ouvindo meus discos. Pior ainda é quando me ouço cantar em lugar público. Quero morrer! Enfim, não gosto de ouvir Inezita Barroso cantar.

AA – Se você não gosta de Inezita, de quem gosta?

IB – Chico Buarque, Milton Nascimen-

to, Noel Rosa, Téo Azevedo, Adau-to Santos. Esse pessoal.

AA – Ne-nhuma dupla caipira?

IB – Pelo a m o r d e Deus! Ado-ro ouvir Tião C a r r e i r o e

Pardinho, Pena Branca e Xavan-

tinho, Tonico e Ti-noco, Vieira e Viei-

rinha, Liu e Léo. Sem falar na Orquestra de Violeiros de Guarulhos.

AA – Você é católica?IB – Sou. Mas sou daquelas pessoas que

comungam uma vez por ano, assistem uma Missa de Sétimo Dia e pronto.

AA – Missa de Sétimo dia... Você é chegada a velório?

IB – Deus do céu! Cê tá doido? Não pas-so em frente a hospital de jeito nenhum. Velório? Nunca! De velório quero distância.

AA – Time?IB – Corinthians. Nasci corintiana. AA – Brasil?IB – Brasileiríssima. Brasil, Brasil, Brasil.

Amo o Brasil!AA – Arte?IB – Popular.AA  – Sonho?IB – Conhecer o México. Estranho?AA – Onde a professora Inezita Barroso dá

aulas de Folclore Brasileiro? Ela tem muitos alunos?

IB – A professora Inezita Barroso dá aulas de Folclore Brasileiro na Universi-dade de Mogi das Cruzes, interior de São Paulo; e nas Faculdades Capital, no Bairro paulistano da Mooca. Tenho bastante alunos.

AA – Quais as perguntas mais frequentes que te fazem?

IB – “Como é ser cantora e dar aulas, é difícil?”. Esta pergunta é feita diariamente, e não só pelos alunos. Pelos pais também. Eles não entendem direito o fato de uma artista, uma cantora como eu, dar aulas para seus filhos.  Então, há sempre pais querendo me conhecer.

AA – Curiosidade?IB – Também. Acho até normal que seja

assim. Na sala de aula, eu sou professora de Folclore Brasileiro; no palco, eu sou cantora, intérprete da música popular brasileira.

AA – É fácil fazer a distinção?IB – É. Difícil é subir num palco e cantar.

Morro de medo.AA – Você está brincando. IB (rindo) – Não, é verdade. Eu morro de

vergonha e medo antes de subir num palco, por isso me preparo muito. Não como nem bebo. A minha concentração é total.

AA – Não é charme?IB – De jeito nenhum, imagina! Basta

dizer que sou míope, miopíssima. Mas não uso óculos nem lentes de contato. Sabe por quê? Para não ver o público à minha frente.

Com Marta, sua única filha

AA – Ué, e como é que você canta tão bem no palco? De onde é que vem essa desenvoltura?

IB – Aí é que está o segredo do artista. A magia, o encantamento da vida. Depois de cantar uma música, não há quem me segure no palco. É isso, o difícil é o come-ço; o difícil é subir no palco. Canto até o outro dia. Me transformo, entro em transe. Quando começo a ouvir os aplausos, então, sou outra.

AA – Você é casada?IB – Sou separada. Tenho uma filha.AA – Que mais faltou dizer?IB – Você perguntou qual é o meu sonho.

Eu disse que era conhecer o México. Mas o meu maior sonho, mesmo, é morar na praia. Claro, se antes não morrer num palco, cantando feito uma cigarra. Quero morar na praia e morrer no mar.

AA – “É doce, morrer no mar...”IB – Caymmi.Com Assis, na Rádio Capital

Aos três anos

Expediente – Jornalistas&Cia Especial Memórias da Cultura Popular é uma publicação mensal da Jornalistas Editora Ltda. (Tel. 11-3861-5280) em parceria com o Instituto Memória Brasil • Diretor: Eduardo Ribeiro ([email protected]) • Produção do conteúdo: Assis Ângelo ([email protected]) • Editor-executivo: Wilson Baroncelli ([email protected]) • Diagramação e Progra-mação visual: Paulo Sant’Ana ([email protected]). É permitida a reprodução desde que citada a fonte.