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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA MEMÓRIA, GÊNERO E DISCURSO NA CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS EM EURICO, O PRESBÍTERO PRISCILLA CLÁUDIA PAVAN MANSO Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Valíria Aderson de Mello Vargas Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. São Paulo 2013

MEMÓRIA, GÊNERO E DISCURSO NA CONSTITUIÇÃO DOS … · Manso, Priscilla Cláudia Pavan. Memória, gênero e discurso na constituição dos sujeitos em Eurico, o presbítero / Priscilla

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

MEMÓRIA, GÊNERO E DISCURSO NA CONSTITUIÇÃO DOS

SUJEITOS EM EURICO, O PRESBÍTERO

PRISCILLA CLÁUDIA PAVAN MANSO

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Valíria Aderson de Mello Vargas

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

São Paulo

2013

AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

M249m

Manso, Priscilla Cláudia Pavan. Memória, gênero e discurso na constituição dos sujeitos em

Eurico, o presbítero / Priscilla Cláudia Pavan Manso. -- São Paulo; SP: [s.n], 2013.

94 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Maria Valíria Aderson de Mello Vargas. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Ethos discursivo 3. Romance –

Literatura Portuguesa 4. Discurso (análise) I. Vargas, Maria Valíria Aderson de Mello. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 82’42(043.3)

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MEMÓRIA, GÊNERO E DISCURSO NA CONSTITUIÇÃO DOS

SUJEITOS EM EURICO, O PRESBÍTERO

Priscilla Cláudia Pavan Manso

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela Banca Examinadora em 08/08/2013.

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Maria Valíria Aderson de Mello Vargas

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha

Universidade Cruzeiro do Sul

Profa. Dra. Eliana Nagamini

Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo

À minha mãe Iracema, a minha heroína romântica.

AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus, o Clemente e Misericordioso, minha fonte

inesgotável de fé.

Agradeço imensamente à minha família, mãe, vó Santa, tia Clarice e tio Flávio,

raízes fortes que ajudaram no crescimento desta árvore frondosa.

Agradeço à minha querida orientadora profa. Dra. Maria Valíria, por ter

acreditado em mim desde o inexperiente projeto de Iniciação Científica.

Agradeço ainda à professora Guaraciaba Micheletti e à CAPES por me confiar

uma bolsa, crédito que foi de grande valia para que eu pudesse continuar

meus estudos.

Agradeço a todos os professores da Universidade Cruzeiro do Sul por

compartilharem os seus conhecimentos, sabedorias e vivências. Aqui,

agradeço, em especial, ao prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha, por me fazer

amar Alexandre Herculano, Almeida Garret, Camilo Castelo Branco e tantos

outros autores da literatura portuguesa, desde a época da graduação.

Agradeço à profa. Dra. Eliana Nagamini, por sua presença ilustre na minha

defesa de mestrado e por seus comentários sempre imprescindíveis sobre

teoria literária e comunicação.

Agradeço ao meu noivo Leandro pela paciência e compreensão nos diversos

finais de semana em que namoramos à distância.

Agradeço, por fim, meus amigos e parentes por compreenderem minha

ausência em tantos churrascos e viagens.

“A Espanha romano-germânica transformou-se na Espanha rigorosamente moderna, no terrível cadinho da conquista árabe. A obra literária (novela ou poema – verso ou prosa – que importa?) relativa a essa transição deve combinar as duas fórmulas – indicar as duas extremidades a que se prende; fazer sentir que o descendente de Teodorico ou de Leovigildo será o ascendente do Cid ou do Lidador; que o herói se vai transformar em cavaleiro; que o servo, entidade duvidosa entre homem e coisa, começa a converte-se em altivo e irrequieto burguês.” (Notas do autor - Eurico, o presbítero, p. 14)

MANSO, P. C. P. Memória, gênero, e discurso na constituição dos sujeitos em Eurico, o presbítero. 2013. 94. f. Dissertação (Mestrado em Linguística)– Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

RESUMO

Este trabalho insere-se na linha de pesquisa Discurso, gênero e memória, do

Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul, na medida

em que se propõe a identificar o modo como é construída a imagem dos sujeitos que

se manifestam em Eurico, o presbítero, tendo por base teórica principal os

elementos da análise do discurso de linha francesa. Busca-se analisar os recursos

linguístico-discursivos utilizados na obra, dentre eles palavras e expressões de

origem árabe, bem como identificar os variados gêneros que se manifestam e o

discurso literário, em confluência com o discurso histórico. Expõem-se,

primeiramente, as relações dialógicas entre a obra e seu contexto social,

enfatizando-se os aspectos da memória discursiva, do discurso literário e do ethos

discursivo. Em seguida, abordam-se as características relacionadas aos gêneros

que se intercalam na obra, bem como ao contexto histórico e social do período

romântico da literatura portuguesa. Posteriormente, desenvolve-se a relação de

algumas palavras de origem árabe selecionadas, com uma breve descrição dos

aspectos históricos e discursivos revelados na obra, uma vez que se pretende

verificar em que medida ocorre a legitimação do discurso histórico, em confluência

com o literário, por meio também das escolhas lexicais. Por fim, demonstra-se que

todos esses elementos contribuem para compreender a constituição dos sujeitos

que se revelam em Eurico, o presbítero.

Palavras-chave: Gêneros, Memória, Ethos discursivo, Discurso literário, Alexandre

Herculano.

MANSO, P. C. P. Memory, gender and speech in the constitution of the subject in Eurico, o presbítero. 2013. 94 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)– Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2013.

ABSTRACT

This project is part of the search line Discourse, gender and memory, of the Masters

Program in Linguistics at the University Cruzeiro do Sul, in so far as identify how the

subject image is constructed in Eurico, o presbítero with the support of Discourse

Analysis of the French line. For this, the dissertation aims to analyze the linguistic

and discursive resources used in the work, such as words and phrases of Arabic

origin, the presence of various genders, and analysis of romantic discourse in

confluence with the historical discourse. First, the dialogical relations between the

work and its social context are exposed, emphasizing the aspects of discursive

memory, literary discourse and discursive ethos. Then the project discusses the

characteristics related to genders that are inserted in the work, as well as the

historical and social context of the romantic period of portuguese literature.

Thereafter, a few words of arabic origin will be related to a historical and discursive

context revealed in the work, since it happens the legitimation of historical discourse,

in confluence with the literary and also by means of lexical choices. Finally, it is

intended with these elements, understand the constitution of subjects revealed in

Eurico, o presbítero.

Keywords: Gender, Memory, Discursive ethos, Literary discourse, Alexandre

Herculano.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9

CAPÍTULO 1 – EURICO, O PRESBÍTERO: DISCURSOS EM DIÁLOGO ............... 14

1.1 Relações dialógicas: intertexto e interdiscurso ........................................ 14

1.2 Memória discursiva e discurso literário como discurso constituinte ...... 32

1.3 Cenas da enunciação e ethos discursivo ................................................... 39

CAPÍTULO 2 – PASSADO HISTÓRICO E PRESENTE ROMÂNTICO:

GÊNERO E CONTEXTO EM QUESTÃO.................................................................. 47

2.1 Contextualizando Eurico, o presbítero ....................................................... 47

2.2 Eurico, o presbítero: um romance histórico ou uma crônica-poema? .... 56

CAPÍTULO 3 – OS SUJEITOS REVELADOS EM EURICO, O PRESBÍTERO ........ 65

3.1 A presença árabe na Península Ibérica: uma influência linguística,

cultural, e social em Eurico, o presbítero ................................................... 65

3.1.1 As palavras árabes na constituição do discurso histórico-literário

em Eurico, o presbítero ................................................................................ 74

3.2 Godos X árabes: sujeitos e ideologias reveladas ...................................... 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 89

REFERENCIAS ......................................................................................................... 92

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INTRODUÇÃO

“A língua faz o homem sentir sua profunda ligação com a sociedade e

associa a geração futura com a herança histórica e os conhecimentos conquistados

pelos seus antepassados”. Assim se inicia o livro de Zaidan: Letras e Histórias: mil

palavras árabes na língua portuguesa (2010, p. 17), com o trecho atribuído ao mártir

libanês, Kamal Jumbalat, que deixa explícita a importância da língua para

estabelecer-se uma comunicação entre os membros de uma sociedade, e,

sobretudo, para deixar, por meio da história desse grupo, os vestígios de sua

cultura.

Cada língua possui particularidades, reveladoras de modos de pensar de

seus usuários, e possui também unidades lexicais específicas, utilizadas na

interação desse grupo social. Essas unidades são resultados do que, no decorrer da

história, foi absorvido de vocabulário e o que culturalmente está enraizado em dada

sociedade.

Por exemplo, a língua portuguesa carrega uma história que influenciou a

formação de seu léxico, pelo contato de diferentes povos na Península Ibérica, como

os romanos, os germânicos, os árabes, sem contar as assimilações decorrentes dos

contatos com os povos colonizados, na expansão da língua por variadas regiões dos

quatro continentes. Ou seja, a língua portuguesa que hoje conhecemos é uma língua

que se marca por uma profunda miscigenação de povos e culturas, observada tanto

na fala quanto no modo de comportar-se dos usuários. Dentre esses povos

destacamos os árabes, que, por questões geográficas, sociais e políticas, trocaram

informações linguísticas e culturais por um longo período com os visigodos1, fato que

contribuiu posteriormente para muitas influências lexicais significativas na língua

portuguesa.

1 A raça dos godos, segundo o próprio Herculano em Eurico, o presbítero (p.32), dividia-se em duas famílias; a

primeira, dos ostrogodos, referia-se aos godos da região leste, ou seja, aqueles que habitavam a região próxima

ao oriente; já a outra família, a dos visigodos, da qual descendeu Eurico, era da região oeste, e estes foram se

estabelecer no sul das Gálias e na Península Ibérica. Ambas as raças godas eram asiáticas na origem, mas

germânicas na língua.

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Temos na língua árabe uma significativa fonte de empréstimos ao português

que foram ocorrendo aos poucos por diversos caminhos. Interessa-nos, em especial,

a entrada dos árabes na Península Ibérica e sua permanência ali por quase oito

séculos (de VIII a XV d.C.), já que se trata do período histórico retratado na obra

Eurico, o presbítero, objeto de nosso estudo.

O quadro histórico que envolve os árabes na região peninsular permite

verificar a influência cultural e linguística que esse povo deixou na língua

portuguesa. Essa foi uma das razões de nosso interesse em estudar a obra de

Alexandre Herculano, que, sem dúvida, contribui para comprovar a presença

significativa de vocábulos de origem árabe, “aclimatados” ao português, por meio

das relações entre os “povos do deserto” e os visigodos, antecessores dos

portugueses na Península Ibérica. Julgamos que a identificação dessas palavras

poderá contribuir para o alcance do objetivo maior da pesquisa, que é a análise da

construção da imagem dos sujeitos que se fazem presentes na obra de Herculano.

Este trabalho insere-se na linha de pesquisa Discurso, gênero e memória, do

Programa de Mestrado em Linguística da Universidade Cruzeiro do Sul, na medida

em que se propõe a identificar o modo como é construída a imagem dos sujeitos que

se manifestam em Eurico, o presbítero, considerando-se, entre outros aspectos, os

recursos linguístico-discursivos utilizados na obra.

Assim, interessa-nos destacar certas palavras e expressões de origem

árabe, bem como seus significados, que aparecem em alguns capítulos da obra em

questão e que podem contribuir para o resgate de um importante momento histórico

de Portugal, quando ocorrem os primeiros contatos com os árabes durante os

conflitos por domínio territorial.

Além disso, temos por objetivo a identificação dos variados gêneros que se

manifestam na obra, bem como a análise do discurso romântico que se dá, entre

outras características, pelo resgate do passado do povo português. Todos esses

elementos devem contribuir para compreender a constituição dos sujeitos que se

revelam em Eurico, o presbítero.

Nessa obra escolhida para análise, vale dizer, há ênfase nos fatos históricos

da Espanha visigótica, deixando-se a história dos personagens como pano de fundo.

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Esse destaque parece justificar-se pela inclinação historicista de Herculano, já que

resgata quase sempre o cenário conflituoso da Idade Média, no período do domínio

árabe na Península Ibérica e que traz, em várias de suas obras, arcaísmos da língua

portuguesa e uma opção pelo uso de vocábulos de origem árabe, sobretudo os que

se referem a termos religiosos e bélicos. Para o alcance dos objetivos desta

pesquisa, foram necessários os estudos dos elementos da linguística voltados para

o texto literário, principalmente de acordo com Maingueneau, entre eles os espaços

interdiscursivos, as cenas da enunciação, o discurso literário e a noção de ethos na

forma de construção do sujeito inscrito no discurso, como um instrumento de análise

e compreensão dos sentidos do texto.

Interessaram-nos, ainda, as contribuições de outros estudiosos, como

Foucault (2005), quanto ao espaço em que o sujeito toma posição para falar dos

objetos de que se ocupa em seu discurso, e Pêcheux (1997), no que tange à

formação discursiva e memória discursiva, que permitem a análise das condições de

produção que tornam possível um enunciado, abrindo para a dimensão social e

histórica.

Também as ideias de Orlandi (2003, 2012) foram fundamentais, pelas

considerações sobre o processo de produção de sentidos, posição do sujeito e as

condições de produção do discurso. Em uma de suas obras, a autora afirma:

Não há sujeito, nem sentido, que não seja dividido, não há forma de estar no discurso sem constituir-se em uma posição-sujeito e, portanto, inscrever-se em uma ou outra formação discursiva que, por sua vez, é a projeção da ideologia no dizer. (ORLANDI, 2012, p.55)

Em obra anterior, a mesma autora já ponderara:

Podemos considerar as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico. (ORLANDI, 2003, p.30)

No interior das condições de produção, portanto, encontram-se os valores

ideológicos dos sujeitos enunciadores, e, por eles pertencerem a determinado

contexto histórico, seus enunciados revelam características pertinentes à sociedade

em que se inserem.

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Em nossa pesquisa sobre a obra de Alexandre Herculano, que passaremos

a abreviar como EP (Eurico, o presbítero), investigamos esses sujeitos que

enunciam na instância discursiva, aquela que ultrapassa a dimensão do autor que

assina a obra, ou seja, do sujeito empírico, da realidade. Concentramo-nos em

sujeitos que se inserem na instituição literária como locutores, responsáveis pelo

dizer, em determinadas circunstâncias temporais e espaciais, e seus respectivos

interlocutores, “chamados” a participar da construção do sentido daquilo que se

enuncia. Tais sujeitos manifestam-se na obra, ora como enunciadores, ora como

coenunciadores, num constante processo de troca de turnos. A observação desse

quadro polifônico caminhará pelo viés da análise do discurso de linha francesa, que

é a base teórica principal de nossa pesquisa.

Pretende-se, enfim, neste trabalho, identificar certos elementos linguístico-

discursivos que se manifestam no corpus, entre eles as palavras e expressões de

origem árabe, e também definir os vários gêneros presentes na obra e, sobretudo, o

discurso histórico que ali predomina.

Procura-se verificar em que medida a presença desses elementos contribui

para a construção da imagem de sujeitos marcados literária e historicamente. Para

isso, tornar-se-á necessário traçar um panorama histórico da permanência dos

árabes na Península Ibérica e da influência da língua e dos costumes desse povo na

obra de Alexandre Herculano. O momento histórico e a estética literária que situam a

obra em questão também serão objeto de discussão.

Dados o tema, a problematização, os vieses de pesquisa e objetivos,

passamos a expor a composição das partes da dissertação.

No primeiro capítulo, tratamos das relações dialógicas entre a obra e seu

contexto social, enfatizando os aspectos da memória discursiva, do discurso literário

e do ethos, que permitem a construção de sentido do texto.

No segundo capítulo, abordamos as características relacionadas aos

gêneros que se manifestam na obra, bem como ao contexto histórico e social do

período romântico da literatura portuguesa.

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No terceiro capítulo, desenvolvemos a análise propriamente dita do corpus,

apontando inicialmente a influência árabe nos costumes e na língua dos povos

ibéricos. Em seguida, apresentamos uma relação das palavras de origem árabe,

com uma breve descrição dos aspectos históricos e discursivos revelados na obra,

uma vez que se pretende verificar em que medida ocorre a legitimação do discurso

histórico, em confluência com o literário, por meio também das escolhas lexicais.

Para concluir, buscamos demonstrar que essas escolhas contribuíram para

a construção do ethos dos sujeitos que são marcados literária e historicamente.

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CAPÍTULO 1 – EURICO, O PRESBÍTERO: DISCURSOS EM DIÁLOGO

1.1 Relações dialógicas: intertexto e interdiscurso

Segundo Bakhtin (2003) um enunciado não pode ser compreendido

isoladamente, pois sempre estará em diálogo com outros textos. O conceito de

dialogismo de Bakhtin e de seu círculo − composto por estudiosos da linguagem

como Valentin N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev − situa-se na questão da

dinamicidade das vozes na interação social: para que haja uma interação, de modo

geral, é necessário que estejam presentes um “eu” e um “tu” no discurso, ou seja,

um enunciador que diz algo e um coenunciador que interage com ele. Bakhtin

preocupou-se com isso e tratou de demonstrar que, a partir desse conceito dialógico

no interior de um discurso, é possível perceber também o diálogo entre a linguagem

e a sociedade.

Segundo o próprio Bakhtin (2003, p. 162), “o texto só ganha vida em contato

com outro texto (com contexto)”, e isso ocorre porque o enunciador, ao dizer, leva

em consideração o discurso alheio, construindo assim um sentido entre dois

enunciados. O dialogismo, para Bakhtin, dar-se-á sempre entre discursos, e o

interlocutor, por sua vez, só existirá enquanto inserido em algum discurso.

Em meados da década de 60, Julia Kristeva, em contribuição aos estudos da

linguística textual, e fundamentando-se nas ideias bakhtinianas, cunhou o termo

intertextualidade, conceito que mostra um avanço teórico e revela a relação

discursiva e dialógica materializada em textos. Segundo Kristeva (1974, p. 60),

“qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e

transformação de um outro texto”, ou seja, os textos sempre terão alguma relação

com outros textos, bem como os discursos terão relação com outros discursos.

Indo mais além, no domínio da semiótica literária, surge o interesse de

Gerárd Genette pelas questões dialógicas, tanto que insere a noção de

arquitextualidade e transtextualidade, isto é, conceitos que tratam das relações

intertextuais, ou seja, daquilo que transcende o texto. Em sua obra Palimpsestos

(1979, no original, e traduzido em 2010), o autor comenta:

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O arquitexto, ou, se preferirmos, a arquitextualidade do texto (como se diz, em certa medida, é quase o mesmo que a “literariedade da literatura”), isto é, o conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipos de discurso, modos de enunciação, gêneros literários etc. – do qual se destaca cada texto singular. Eu diria hoje, mais amplamente, que este objeto é a transtextualidade, ou transcendência textual do texto, que definiria já, grosso modo, como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos”. A transtextualidade ultrapassa então e inclui a arquitextualidade, e alguns outros tipos de relações transtextuais (...) (GENETTE, 2010, p. 13)

Genette também menciona a hipertextualidade, que se configura como toda

a relação que une um texto a outro, estabelecendo a conexão do hipotexto (texto de

origem) a um hipertexto (derivado de um texto anterior). Para tratar dessas relações

dialógicas, Genette dividiu as relações transtextuais em cinco tipos: o primeiro,

intertextualidade (inspirado por Kristeva), incluindo a citação, plágio e alusão; o

segundo, paratexto, elemento mediador entre o leitor e o livro, conceito que

explicitaremos mais adiante; o terceiro, metatextualidade, que inclui o recurso

“comentário” e que expressa a união de um texto a outro por uma relação de

afinidade; o quarto, hipertextualidade, e o quinto, arquitextualidade, que apresenta

uma relação do texto com a instituição/estatuto a que pertence, aparecendo em

vários momentos com indicadores paratextuais. Todos esses conceitos estabelecem

uma ligação com os estudos bakhtinianos e com os de Kristeva, por tratarem das

relações dialógicas existentes entre textos. Podemos assim resumir: o dialogismo

bakhtiniano serviu como base e origem teórica; a intertextualidade, de Kristeva,

como uma evolução e atualização das relações dialógicas, e ambos contribuíram

para as pesquisas de Genette, cujas ideias serão utilizadas por nós, para explicitar,

sobretudo, os aspectos inerentes ao paratexto, que se manifestarão em EP, corpus

de nosso estudo.

O paratexto, conforme definiu Genette, engloba

título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; release, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios, autógrafos ou alógrafos, que fornecem ao texto um aparato (variável) e por vezes um comentário, oficial ou oficioso, do qual o leitor, o mais purista e o menos vocacionado à erudição externa, nem sempre pode dispor tão facilmente como desejaria e pretende (...) (GENETTE, 2010, p. 15)

Essas relações textuais, propostas por Genette, podem ser identificadas, em

geral, em trabalhos científicos e obras literárias e contribuem para a revelação de

uma personalidade ou imagem que se busca construir no texto.

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Em Eurico, o presbítero, os paratextos aparecem como epígrafes, no início

de cada capítulo, ou como notas de rodapé, em alguns capítulos que exigem

esclarecimento sobre determinado assunto ou, ainda, como prólogo, na abertura da

obra. Esses elementos funcionam como “portas de entrada” para o texto, pois

estabelecem uma relação entre o texto em si e o que está envolto nele, isto é, uma

relação interdiscursiva da obra com o contexto social em que o autor se insere.

As epígrafes em EP podem ser interpretadas como marcas da necessidade

do autor de tornar o texto mais próximo da realidade histórica, visto que cada uma

delas se relaciona a textos históricos comprovados. No capítulo I, por exemplo, o

fragmento escolhido pelo autor traz um trecho de um Chronicon, uma narrativa de

relatos históricos medievais, que, neste caso, trata da decadência do povo godo,

corroborando assim o assunto narrado no desenrolar do capítulo. O fragmento

selecionado diz: “A um tempo toda a raça goda, soltas as rédeas do governo,

começou a inclinar o ânimo para a lascívia e soberba”2 (EP, 2007, p.17). Herculano,

utilizando-se desse fato histórico, desenvolve seu texto explicitando:

A raça dos godos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península havia mais de um século (...) A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhes o pior dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que morrera e que ela substituíra. Toletum quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução política por via da dissolução moral. (EP, p. 18-19)

O autor, apoiando-se no conteúdo desenvolvido no capítulo, selecionou uma

epígrafe que dialoga com o assunto tratado, e assim o fez em todos os demais

capítulos. O uso desse recurso paratextual, além de antecipar o que será dito no

corpo do texto, inibirá, de certo modo, a liberdade interpretativa do leitor, já que trará

ideias pré-construídas, oferecendo também uma mediação discursiva com a

realidade, ou seja, com o discurso que estabelece uma relação com o mundo, mais

uma vez aqui confirmando o caráter histórico e verossímil que Herculano procura dar

à obra.

Charaudeau (2010) explica que a reprodução de um dito ou um excerto de

outro texto dá uma garantia maior ou menor de seriedade. Nesse caso, os 2 Fragmento de MONGE DE SILOS, Chronicon, c. 2.

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fragmentos escolhidos por Herculano representam a voz de um monge, cujo

discurso está arraigado no mito; sendo assim, a dicotômica visão religiosa e histórica

fundem-se. Na obra em questão, escolher um dito ou parte de um texto como

recurso paratextual, contribui, sem dúvida, para dar credibilidade ao texto que o

segue, na medida em que mescla conceitos do tempo histórico e mítico. Sendo

assim, Herculano constrói uma representação daquilo que ele considerava como a

realidade histórica.

Charaudeau (2010) explica também os lugares de fabricação do discurso

midiático, e para isso entra no mérito da mensagem que é transmitida. Ele propõe

que a análise da mensagem seja feita na troca entre duas instâncias: a de produção

e a de recepção. Essas instâncias determinam três lugares de pertinência: “o da

instância de produção, submetida a certas condições de produção; o da instância de

recepção, submetida a condições de interpretação; o do texto como produto, que se

acha, enquanto tal, submetido a certas condições de construção” (idem, p. 24).

Quanto à instância de produção, vale lembrar aquilo que Charaudeau

considerou como espaço que compreende as condições semiológicas, isto é, aquele

espaço que preside a realização do produto midiático (texto). Em EP, o espaço é o

jornal Panorama, veículo em que foi publicada pela primeira vez a obra em questão.

O jornal é um suporte bem variado, mas de forma geral, as pessoas costumam lê-lo

para se informarem de fatos que ocorrem na sociedade. Logo, o assunto escolhido

para a divulgação em um folhetim (gênero que explicitaremos mais adiante), tinha

que cumprir com o objetivo de informar algo ao leitor. Para se alcançar o objetivo

esperado, levam-se em consideração também as condições de recepção. Nesse

ponto, cabe também pensar no que Charaudeau (2010) definiu como público ideal e

público real. O primeiro é aquele que é imaginado, idealizado pela instância

midiática, que pode ser, nesse contexto, o público romântico; o segundo é aquele

que interpreta as mensagens recebidas segundo suas próprias condições de

interpretação, que naquela situação poderia ser o público liberal e interessado em

fatos históricos. Herculano certamente sabia que a estética literária que vigorava

naquele momento valorizava os feitos do passado e a própria pátria. Por essa razão,

pensar nas condições de produção e no público leitor não foi apenas uma questão

de sondagem e exposição de conteúdos, mas uma busca por instituir, na obra,

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sujeitos marcados sócio-historicamente, capazes de interagir numa determinada

instância discursiva.

Quanto ao terceiro item proposto por Charaudeau (2010), o texto como

produto, infere-se que há diversas possibilidades interpretativas para um mesmo

texto, podendo ele atingir apenas uma parte dos receptores ou alcançar parte das

intenções iniciais do autor. Em EP, essa multiplicidade interpretativa e receptiva se

mostra na própria questão do gênero, que é amplo e difuso - como especificaremos

mais adiante - fator que permitiu diversas leituras do texto, confundindo muitas

vezes o leitor quanto ao que é real e ao que é alegoria.

Essas três instâncias permitem explicar a informação como resultado de

uma cointencionalidade (entre produtor e receptor) que compreende os vários

efeitos possíveis para o texto. Essas instâncias, bem como os recursos paratextuais

propostos por Genette, são dispositivos mediadores entre o leitor e o autor e a

mensagem que será transmitida.

Outro recurso presente em EP, as notas de rodapé, elaboradas pelo próprio

Herculano, podem ser, além de um paratexto, também um recurso metatextual, por

incluir o comentário, revelando, assim, uma preocupação em relatar dados históricos

com verossimilhança. Examinemos duas dessas notas:

Hesitei muito tempo se conviria usar dos nomes próprios, quer de pessoas quer de lugares, como as sucessivas alterações (...) Outros nomes, porém, havia, sobretudo nas designações corográficas, tão completamente alterados, que me repugnava substituir o moderno ao antigo. (...) Assim, Toletum, Emérita seriam sem dificuldade representados por Toledo e Mérita (...) (EP, p. 17)

Deus é só grande! Era para os árabes a voz do acometer, como, depois, foi para os cristãos o grito de Santiago! (EP, p.72)

No primeiro fragmento acima transcrito, o autor afirma estar em dúvida

quanto a usar os nomes dos lugares e das pessoas que de fato existiram, e por fim

decide utilizar as denominações mais modernas em razão de todas as

transformações que já haviam ocorrido. Nesse excerto temos um sujeito mais

criterioso, um Herculano que se dirige em primeira pessoa a um leitor com quem

compartilha o anacronismo toponímico.

19

Já no segundo fragmento, a nota vem acompanhada de uma explicação de

Allah hu Acbar (“Deus é só grande” ou “Deus é maior”), expressão em árabe que

consta no capítulo para se referir ao grito de guerra islâmico. O uso dessa

expressão, entre outras, revela o conhecimento linguístico e cultural de um sujeito

histórico, um Herculano que confirma seu interesse em manter elementos históricos

na obra. Nesse trecho, revela-se um sujeito mais didático, que se dirige a um leitor

menos habituado às expressões de origem árabe e que, portanto, mais aprende do

que compartilha conhecimentos.

Essa seleção de informações escolhidas revela além de um interesse pelos

aspectos históricos, motivos nacionalistas e engajamento político por parte do autor,

uma intenção de atingir diferentes níveis de leitores.

Sem dúvida, a primeira fase do Romantismo português (1825 – 1865 é

considerada por estudiosos da literatura como a mais marcante para o povo lusitano,

pois propiciou a retomada do período medieval, trazendo à tona aspectos da

formação da sociedade portuguesa, e, de certa forma, promovendo uma

diversidade de gêneros textuais, visto que houve um resgate dos gêneros

medievais, como as lendas e as novelas de cavalaria, que se misturaram aos novos

gêneros que surgiram no período romântico, como, por exemplo, o gênero romance.

Evidentemente, o Romantismo em Portugal era mais propício a prosadores

do que a poetas, mas, apesar disso, escritores da primeira fase se arriscaram como

poetas. Herculano, por exemplo, identificava-se mais com o espírito clássico, e suas

poesias não eram a parte mais importante de sua obra, mas, mesmo assim, elas

traziam características importantes para se compreender o estilo dele e os ideais da

primeira fase romântica. Em A Harpa do Crente e A cruz mutilada, a temática versa

sobre a religião cristã, Deus e a morte, o exílio e a liberdade. Esses temas

aparecerão também na sua obra de maior destaque, Eurico, o presbítero.

O homem fala, de acordo com Charaudeau (2010), para se colocar em

relação com o outro, e falando ele descreve e estrutura o seu mundo de maneira

representativa. O homem representa uma relação com o mundo e assume um

posicionamento perante ele e, dessa forma, constrói o saber. Os temas religiosos e

20

saudosistas serão constantes nas obras de Herculano e vão representar sua visão

do mundo de acordo com a escola literária à qual pertenceu.

Quanto às escolhas discursivas, que se farão presentes na visão do mundo

do autor, Charaudeau (2010, p. 43) pondera:

O saber se estrutura segundo a escolha da atividade discursiva à qual se entrega o homem para dar conta do mundo: ele pode decidir descrevê-lo, contá-lo ou explicá-lo, e nisso tanto pode aderir a seu dizer quanto tomar distância para com o dizer. Esse conjunto de atividades discursivas configura os sistemas de interpretação do mundo, sem os quais não há significação possível.

Toda estratégia discursiva, portanto, sugere uma determinada ideologia que

refletirá o posicionamento do sujeito enunciador. Herculano se preocupa em

descrever e explicar detalhes históricos e linguísticos presentes em sua obra,

principalmente aqueles que fizeram parte de sua cultura, o que também justifica a

presença das notas de rodapé, mas, mais do que isso, preocupa-se em transmitir

um conhecimento que permitirá ao interlocutor resgatar suas próprias crenças e

valores.

Quando Herculano seleciona um fragmento de um Chronicon de Sebastião

de Salamanca como epígrafe, que diz: “desprezamos essa multidão de pagãos, e

nenhum temor há em nós” (EP, p. 153), ou quando escolhe palavras com ideias

similares para o corpo do texto, como “os olhos esverdeados de cólera, faiscantes,

desvairados dos infiéis” (EP, p. 151), ao se referir aos árabes, sugere que esse povo

não era crente, pois não seguia a mesma doutrina religiosa dos cristãos; eram, na

verdade, segundo o dizer dos visigodos, “pagãos”, porque eram adeptos de outra

crença. Dessa forma, Herculano passa-nos a imagem de que os árabes são

antagonistas, por apresentarem uma ameaça à religião de Cristo.

Quanto ao fenômeno das representações, como reveladoras de normas e

valores sociais, Charaudeau ainda completa (2010, p. 47)

as representações, ao construírem uma organização do real através de imagens mentais transpostas em discurso ou em outras manifestações comportamentais dos indivíduos que vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo dadas como se fossem o próprio real. Elas se baseiam na observação empírica das trocas sociais e fabricam um discurso de justificativa dessas trocas, produzindo-se um sistema de valores que se erige em norma de referência. Assim é elaborada uma certa categorização social do real, a qual revela não só a relação de “desejabilidade” que o grupo entretém com sua experiência do cotidiano, como também o tipo de

21

comentário de inteligibilidade do real que o caracteriza – uma espécie de metadiscurso revelador de seu posicionamento. Em resumo, as representações apontam para um desejo social, produzem normas e revelam sistemas de valores.

O sujeito empírico, portanto, por meio dos discursos dos sujeitos

enunciadores, dispõe os fatos históricos narrados como reais; por essa razão, faz as

interferências com os recursos paratextuais e metatextuais, como os comentários

nas notas de rodapé e o prólogo. Ele se preocupa com os interlocutores e com o que

eles poderão inferir sobre os fatos narrados. Se EP era uma obra historicista e com

temática romântica, de valorização do passado e heroísmo patriótico, os detalhes no

interior da narrativa tinham que fazer jus a esses objetivos. Um momento da obra,

em que é possível perceber o posicionamento de Herculano, encontra-se já no

prólogo. Ali, ele explicita sua opinião sobre o celibato clerical, conforme se pode

notar nos trechos:

Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente grosserias, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula social aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. (EP, p. 11)

Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez em mim a ideia de irremediável solidão da alma, a que a igreja condenou os seus ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra. (EP, p. 11)

Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia, e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. (EP, p. 11)

Ao sacerdote cumpre aceitar esta por verdadeiro desterro: para ele o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao despovoar-mo-lo daquelas por quem e para quem vivemos. (EP, p. 12)

O primeiro fragmento explicita o que é o celibato e para quem se aplica tal

“fórmula social”, nesse caso, para os outros, “certa classe de indivíduos”. O segundo

mostra a voz de um sujeito que, ao que tudo indica, pode ser a do próprio

Herculano, que considera o celibato uma “amputação espiritual”. O terceiro

fragmento enfatiza que o mundo sem as paixões e sem a mulher é melancólico e

triste, assim como a vida do personagem Eurico, que não concretiza seu amor por

Hermengarda e que, por isso, perde a razão de viver. O quarto fragmento, enfim,

22

mostra a condição em que se deve encontrar o sacerdote, segundo os preceitos

cristãos, “desconsolado e triste”.

Esses fragmentos deixam à vista marcas da construção de um sujeito que

expõe seus valores e ideais, que vão se estender a um outro sujeito enunciador, no

caso, ao protagonista Eurico, já que, por causa do celibato, ele não consegue se

entregar à sua paixão e, por isso, morre melancólico e sozinho, como se supõe que

todo celibatário há de perecer.

Todos esses elementos paratextuais e metatextuais revelam, portanto, as

relações entre obra (ficção) e realidade, e a junção deles contribui para a construção

do que estamos considerando como um ambiente interdiscursivo.

Ainda no âmbito das relações dialógicas, podemos citar Orlandi e

Maingueneau, que contribuíram para difundir o termo interdiscursividade, a

“conversa” entre textos. Em uma das obras de Maingueneau, ele resgata uma

observação de Courtine:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos". (COURTINE, apud MAINGUENEAU, 2009, p. 12)

A ideia é, portanto, a de que a partir do interdiscurso também se definem as

formações discursivas, conceito bem explorado por Pêcheux e Foucault e que será

explicado mais adiante.

Ainda para a definição de interdiscurso, Maingueneau propõe outros

conceitos complementares: universo discursivo, campo discursivo e espaço

discursivo.

O primeiro, Maingueneau (1997, p.115) considera como “o conjunto de

formações discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem em

uma conjuntura”. Campo discursivo é definido como “um conjunto de formações

discursivas que se encontram em relação de concorrência, em sentido amplo, e se

delimitam, pois, por uma posição enunciativa em uma dada região”. Por fim, o

espaço discursivo, que “delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo

23

menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm relações privilegiadas,

cruciais para a compreensão dos discursos considerados”.

Com esses três conceitos, Maingueneau pondera que não há nenhum

discurso que exista isoladamente, pois de alguma forma estará ligado a outro, seja

no sentido de concorrência, seja no de parceria. Da mesma forma que, para Bakhtin

e seu círculo, a voz humana englobará outras vozes, e para Kristeva o texto evocará

outros textos, para Maingueneau o discurso, consequentemente, evocará outros

discursos.

O Interdiscurso envolve também a questão da memória discursiva, já que

algo aparecerá antes em outro lugar; é o que Maingueneau e outros analistas do

discurso chamaram de o “já-dito”. Essa memória produzirá discursos sobre o espaço

e o tempo, de acordo com sua motivação.

Em Eurico, o presbítero, a interdiscursividade se dá, por exemplo, por meio

do diálogo entre a realidade, com fatos historicamente confirmados, e a ficção,

adornada com elementos fantasiosos, como a presença de um cavaleiro negro e a

descrição minuciosa das batalhas. No capítulo X- Traição, podemos confirmar essa

preocupação com o detalhamento das batalhas no momento exato de confronto

entre os árabes e godos:

- Cristo e avante! – bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos. São como dois bulcões enovelados, que, em vez de correrem pela atmosfera nas asas da procela, rolam na Teerã, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquela tempestade de homens. O ruído abafado e bem distinto do mover dos dois exércitos vai-se gradualmente confundindo num som único, ao passo que o chão intermédio se embebe debaixo dos pés dos cavalos. Essa distância entre as duas muralhas de ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas nuvens de pó. Desapareceu! (...) Cada cavaleiro árabe travou-se com um cavaleiro godo, e os dois contendores esquecem-se de tudo quanto os rodeia: são dois inimigos, cujo ódio nasceu e encaneceu num momento, e num momento esse rancor é intenso quanto o fora, se por largos dias se acumulara sem poder resfolegar. (EP, p.72-73)

Herculano não poupa adjetivações e minúcias para representar o momento

de batalha entre os dois povos, manifestando, com isso, sua preocupação em situar

o leitor naquela instância espacial e temporal que fez parte da história do povo

português. Além disso, podemos verificar pelo jogo dos tempos verbais, passado e

presente (destacados em negrito), um embate entre o sujeito historiador e o sujeito

24

ficcionista, já que o enunciador/narrador presentifica as ações do passado por meio

do presente histórico, dando à batalha um tom mais dramático.

O trecho acima é o cumprimento de uma profecia, já que, no capítulo VII – A

visão, narra-se que Eurico havia sonhado com esse acontecimento. Deus enviou ao

presbítero um sonho enigmático com uma terrível significação, conforme revelara o

próprio Eurico. Nesse sonho, ele encontrava-se no ponto mais alto do Calpe e viu o

mar e o oceano cessarem, bem como o sibilar das rajadas de vento e, logo, uma

vermelhidão apossou-se do céu e dois castelos de nuvens negras começaram a se

levantar, uma do lado da Europa e outro do lado da África. Em seguida houve gritos,

choros e o tinir de milhares de espadas batendo nos elmos dos guerreiros e, por fim,

a região de Calpe se reduzia a pó. Essa visão era a representação da batalha entre

os godos e os árabes, isto é, o fim do império godo e o surgimento de uma nova era

na Península Ibérica com a vinda dos povos árabes, cenário que não agradava a

Eurico - “terra em que nasci, se o teu dia de morrer é chegado, eu morrerei contigo”

(EP, p. 49) -, e que de fato se consumara, pois o Império godo se desfez e Eurico

morreu em batalha.

No trecho selecionado, a interdiscursividade se revela não somente pela

relação dos fatos históricos com os ficcionais detalhados por Herculano, mas

também pela relação entre a profecia recebida em sonhos por Eurico e a

concretização dessa revelação misteriosa.

A concepção de interdiscursividade está relacionada também ao conceito de

intertextualidade. Em Charaudeau & Maingueneau (2008, p.288), a ideia de

intertextualidade aparece tanto como uma propriedade constitutiva de qualquer

texto, quanto como “o conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou

um grupo de textos determinado mantém com outros textos”.

Reforçando o caráter histórico da obra, há menção, por exemplo, a várias

regiões que até hoje permanecem, conforme nos comprovam os trechos que

aparecem no capítulo I – Os Visigodos, e no capítulo IX – Junto de Críssus:

Assim, Toletum, Emérita seriam sem dificuldade, representados por Toledo e Mérida; mas como substituir, sem anacronismo na expressão, Sevilha e Híspalis, Leão e Légio, Guadalete e Críssus, e, finalmente, Burgos e Augustóbriga (...) (EP, I, nota do autor, p.17)

25

Aos nomes individuais dos primeiros visigodos procurei conservar, quando aludi a eles, os vestígios da origem visigótica (...) (EP, I, nota do autor, p.18)

Desde que o exército destes, semelhante à serpe monstruosa, tinha cingido estreitamente a montanha do Calpe, não se passara um dia em que não se fortalecesse e engrossasse. As encostas do Ábila e os despenhadeiros do Atlas, os vales da Mauritânia e os areais do Saara e de Barca de contínuo arrojavam para a Europa, através do Estreito, os seus filhos tostados ao sol fervente de África. (EP, IX, p.64).

Os nomes de lugares, por nós destacados nos trechos acima, correspondem

a diversos lugares reais e essa preocupação em citá-los já se mostra nas notas de

rodapé do prólogo do autor. Calpe, por exemplo, é a região espanhola que hoje em

dia corresponde a Gibraltar. Ábila (ou Ávila) se refere a um município da Espanha,

que foi ocupado pelos árabes no século VIII. Atlas é uma região de Marrocos (as

montanhas de Atlas), e a Mauritânia, hoje correspondente à região que compreende

o oeste da Argélia, mas antigamente, na época citada na obra, referia-se a um reino

berbere, de onde advinham as tribos mouras. Já Toledo, Mérida, Sevilha, Leão,

Guadalete e Burgos, outras cidades mencionadas, correspondem a províncias e

cidades espanholas, heranças do período peninsular.

Quanto aos personagens, Herculano também trouxe nomes que constam da

história da Península Ibérica, como Tárique, líder dos árabes, Roderico, também

conhecido como Rodrigo, rei dos godos, Sisibuto e Ebas, filhos do imperador Vitiza,

o conde Juliano, que facilitou a entrada dos árabes na Península Ibérica, entre

outros personagens secundários. Eurico e Hermengarda, os protagonistas, são,

talvez, os únicos personagens de que não se tem um registro histórico, mas, em

compensação, a junção de seus nomes pode sugerir o nome do primeiro rei da

Galiza, Hermerico (Hermengarda + Eurico), que, à frente dos povos suevos, guiou-

os para a Península, em meados de 441 d.C, anos antes dos fatos mencionados na

obra. Novamente se dá um cruzamento de fatos históricos com a ficção.

O terceiro fragmento anteriormente citado, além de conter referências

históricas e apontar para a relação interdiscursiva com a realidade, sugere a

construção de imagens demoníacas, na referência aos árabes como “serpe

monstruosa”, conotação que se fará presente em diversos momentos da obra.

Nesse ponto, vale lembrar as concepções de Frye (1957) acerca do

“demoníaco” na literatura. O autor define três tipos de imagens: as apocalípticas, as

26

demoníacas e as analógicas. As duas primeiras representam os mundos, o

desejável e o indesejável. As apocalípticas constituem as imagens associadas ao

desejo humano, apropriadas ao modo mítico, retratando o mundo idealizado pelo

homem; as demoníacas, por outro lado, expressam o mundo rejeitado pelo homem,

apropriadas ao modo irônico na fase em que este se volta para o mito. Já as

imagens analógicas ligam-se à tendência romanesca. São aquelas que se

encontram entre o apocalíptico e o demoníaco. Elas demonstram elementos míticos

presentes nas experiências humanas. De acordo com Frye (idem, p. 152),

O modo da estória romanesca apresenta um mundo idealizado: na estória romanesca os heróis são bravos, as heroínas belas, os vilões cheios de vilania, e as frustrações, ambiguidades e obstáculos da vida comum são desconsiderados. Por isso suas imagens apresentam uma contrapartida humana do mundo apocalíptico, que podemos chamar a analogia da inocência.

O período romântico apresenta características do modo “imitativo elevado”, e

da analogia da inocência, definida por Frye, já que essa estética traz figuras divinas

ou espirituais que transbordam virtude, castidade e a inocência, como eram os

casos dos cavaleiros do Santo Graal, e mais especificamente do protagonista em

EP, que se mostra como um homem virtuoso e incorruptível.

No modo “imitativo baixo”, encontra-se, segundo Frye (1957), a analogia da

experiência, que mantém uma relação com o mundo demoníaco ou o indesejável.

No conjunto das imagens demoníacas que compõem a narrativa de Herculano,

encontramos aquelas que se referem aos árabes, por seus costumes “pagãos”, sua

invasão na região e sua suposta afronta aos vestígios da cruz. Outro fragmento do

capítulo IX – Junto de Críssus ilustra bem a imagem que o enunciador constrói do

povo árabe:

A torrente dos inimigos descera, enfim, do Calpe ou Gebal Tárique, cujo nome de muitos séculos o capitão árabe tinha apagado, para escrever o próprio nome no colar servil das muralhas que lhe lançara. O estandarte do profeta de Meca já flutuava nos campos da Béltica, e a sua passagem era assinalada com ruínas, sangue e incêndios. Por onde quer que os muçulmanos tinham atravessado ficavam assentados o silêncio do sepulcro e a assolação do aniquilamento. Tárique era o anjo exterminador mandado por Deus às Espanhas, e a sua espada, o raio despedido do céu para fulminar o império dos godos. (EP, p. 65)

Os árabes são vistos como inimigos da cruz e da cultura goda, a começar

pelo general árabe Tárique, que, ao invadir o Calpe, fortificou seu exército naquela

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região e alcunhou-a com seu próprio nome. Além disso, a imagem de Tárique é

construída, apesar de ser comparado a um anjo, como um homem impiedoso que

por onde passava deixava rastros de ruínas e sangue, muito similar àquela imagem

de Deus do Velho Testamento, que punia os homens com ira. Pela figura de

Tárique, percebe-se, portanto, que os muçulmanos, de forma geral, eram

considerados responsáveis pela morte e aniquilamento, ou seja, constrói-se aqui

uma verdadeira imagem demoníaca dos seguidores do Alcorão que se transfiguram

em seres cruéis e destrutivos.

Quanto ao conjunto de imagens apocalípticas, ou seja, relacionadas aos

desejos humanos, encontramos o império godo idealizado, antes da corrupção de

seu povo, que teve início na decadência de valores, passando pela disputa da coroa,

e, por fim, pelo enfraquecimento da monarquia, para o qual também contribuiu a

invasão dos árabes. O paraíso para Eurico e o povo godo estará, portanto, no

passado histórico, já que é lá que eles se consolam e se refugiam. Eurico revela que

antes a Península era uma região justa, porque não era prostituída pelas paixões

dos poderosos, nem esmagada pelo peso dos tributos. A região era “opulenta”, “as

suas muralhas haviam sido extensas e sólidas”, “os seus edifícios foram cheios de

magnificência”, “a sua povoação era numerosa e ativa” e “os curtos anos de

esplendor da monarquia visigótica tinham sido para ela como um dia formoso de

inverno” (EP, p. 21).

Considerando-se a construção das imagens analógicas, ou seja, as imagens

romanescas, percebe-se que é a mais próxima da realização do sonho humano,

mas ela carrega características tanto das imagens apocalípticas quanto das

demoníacas, porque há a aparição de heróis (o desejável) que confrontam vilões e

enfrentam perigos (o indesejável). De forma geral, as histórias romanescas vão

trazer estes elementos: “os virtuosos heróis e as belas heroínas representam os

ideais, e os vilões, as ameaças à supremacia daqueles” (FRYE, 1957, p. 183).

A história romanesca também traz um caráter nostálgico, extraordinário e

aventureiro que vai se acentuar pelo papel desenvolvido pelo protagonista. Eurico,

por exemplo, tem características que o tornam um herói romanesco, porque ele está

acima dos outros homens, apesar de ter seus momentos de fraqueza - e aí ele se

mostra abaixo de Deus -, e revela-se como uma pessoa obstinada, corajosa e

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ousada que vive aventuras que estão acima do esperado de qualquer outro homem.

Frye (1957, p. 39) define esse tipo de herói como

superior em grau aos outros homens e seu meio (...) cujas ações são maravilhosas, mas que em si mesmo é identificado como um ser humano. O herói da estória romanesca move-se num mundo em que as leis comuns da natureza se suspendem ligeiramente: prodígios de coragem e persistência, inaturais para nós, são naturais para ele.

Na obra em questão, Eurico deixa transparecer essa imagem de superior e

persistente diante de seus companheiros. Pelágio, irmão de Hermengarda, por

exemplo, confia a Eurico a guarda da irmã, e em determinado momento exalta as

características do cavaleiro:

– Vós, Eurico, ficareis aqui: vós que salvastes minha irmã, sereis o seu guardador. Quem melhor vigiaria por Hermengarda do que esse homem que nela tem um testemunho perene do mais indizível esforço, da mais pura e generosa lealdade? Desejaria ver junto de mim no combate o melhor guerreiro de Espanha: ter-vo-lo-ia, até, pedido quando o mistério em que vos envolvíeis nos fazia suspeitar a todos que vós, o cavaleiro negro, éreis um ente privilegiado e não um mortal como nós. (EP, p.160)

Pelágio confia em Eurico como o salvador da pátria, assim como os

cavaleiros templários o eram nas novelas de cavalaria, isto é, heróis que defendiam

a honra e a pátria fervorosamente e que estavam acima de qualquer mortal por sua

coragem e bravura.

O próprio Herculano afirma que resgatou fatos históricos e misturou-os à

ficção.

a minha intenção, porém, foi, como já notei, pintar os homens da época de transição, digamos assim, dos tempos heroicos da história moderna para o período da cavalaria, brilhante ainda, mas já de dimensões ordinárias. O meu herói do Críssus é como o último semideus que combate na terra, os foragidos de Covadonga são os primeiros cavaleiros da longa, patriótica e tenaz cruzada da Península contra os sarracenos (EP, notas do autor, 177)

Esse fragmento pode comprovar o que foi dito até aqui: Herculano serviu-se

de informações históricas para compor sua obra e uniu-as aos elementos ficcionais.

Segundo Frye (1957), apontar os padrões apocalípticos ou demoníacos na obra

literária eleva-a a uma categoria histórica, pois são estruturas de uma identidade

metafórica, logo cumprindo a função de uma representação da realidade.

Em EP, evidencia-se a relação interdiscursiva, pois perpassam no texto uma

ideologia e um processo de ressignificação das palavras aludidas, entre elas, os

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nomes de lugares e de personalidades que existiram no período histórico referido. O

interdiscurso, ou seja, a relação entre discursos é mais do que a transmissão de

mensagens; segundo Orlandi (2003, p. 21), é uma relação de “sujeitos e sentidos

afetados pela língua e pela história”. O discurso, portanto, será a construção de

múltiplos sentidos para um texto repleto de palavras que carregarão diferentes

valores ideológicos e históricos.

Em determinado momento do capítulo V-Meditação, por exemplo, o

enunciador utiliza expressões que sugerem esses valores. Para “príncipes do povo”

(referindo-se aos godos do passado) é utilizada a expressão “capitães das hostes”,

equiparando-se um sentido ao outro. Mais adiante, emprega-se “anjo da terra” para

se referir ao “sacerdote” de antes. Com a seleção de palavras como essas, o

enunciador mostra seus valores e suas crenças, pois manifesta a ideia do passado

como algo positivo e dos sacerdotes cristãos como juízes do povo, responsáveis

pela justiça e organização social.

Conforme já mencionado, a noção de interdiscurso remete ao conceito de

formação discursiva (FD), expressão utilizada por Foucault (1969) para referir-se à

ideia de que a palavra institui o objeto (a coisa) em cada situação. Para Foucault, o

sujeito e o objeto só vão existir se constituídos em alguma prática dentro de uma

sociedade. Posteriormente, o conceito de FD foi reformulado por Pêcheux (1997),

sob uma perspectiva política e ideológica baseada nos ideais althusserianos, como

uma releitura das ideias marxistas das lutas de classes.

As ideias de Foucault e Pêcheux estabelecem um diálogo em alguns

momentos, mas em certo ponto elas divergem, pois o primeiro contempla as

relações entre os saberes e os poderes, não envolvendo a questão das classes

sociais, e o segundo observa as FDs como as relações sócio-históricas ou como a

luta ideológica das classes. Pêcheux discorre sobre o fato de que a “história da

produção dos conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de

classes, como o ‘bom lado’ da história se oporia ao ‘mau lado’; essa história está

inscrita, com sua especificidade, na luta de classes” (1997, p. 190).

Nas duas acepções, porém, a expressão formação discursiva “permite, com

efeito, designar todo conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscrito que

30

pode relacionar-se a uma identidade enunciativa” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,

2008, p.242). Amparada por esse conceito, Mussalim (2004, p. 119) discorre sobre a

multiplicidade dos discursos na FD, ao afirmar que

o espaço de uma FD é atravessado pelo ‘pré-construído’, ou seja, por discursos que vieram de outro lugar (de uma construção anterior e exterior) e que são incorporados por ela numa relação de confronto ou aliança. Uma FD, portanto, é constituída por um sistema de paráfrases, já que é um espaço onde enunciados são retomados e reformulados (...)

Assim, um discurso dificilmente será homogêneo, já que combinará outros

discursos. Como ocorre em Eurico, o presbítero que carrega o discurso histórico

para compor o discurso literário e ficcional. A essa pluralidade discursiva denomina-

se heterogeneidade, conceito que será marcante na AD, ao lado das noções de

ethos e de cenas da enunciação, desenvolvidas por Maingueneau.

Maingueneau (1997) destaca dois tipos de heterogeneidade: a constitutiva,

que não é marcada em superfície, e a mostrada, que se explicita. Charaudeau &

Maingueneau (2008, p.261) consideram que a heterogeneidade constitutiva se dá

“quando o discurso é dominado pelo interdiscurso”. A heterogeneidade mostrada

pode ser marcada, ou seja, explícita, pelo uso de aspas ou mesmo do discurso

direto e indireto, e não-marcada, pelo uso de discurso indireto livre, alusões, ironia

etc.

Na obra analisada, constatamos um posicionamento, que evidencia algumas

crenças e ideologias dos sujeitos envolvidos, como a desaprovação do celibato

clerical, que se explicita no prólogo, e o descontentamento com a situação atual do

povo, percebido tanto por Herculano, quanto por Eurico, daí o escapismo ao

passado e o sentimento saudosista. Ambos revelam um sentimento patriota e

religioso, em evidente contraste com o de todos aqueles que não fazem parte da sua

cultura, como, por exemplo, os árabes, a quem chamam de “pagãos”.

Destacamos trechos do capítulo VIII – O Desembarque, que comprovam

essa afirmação.

Teodomiro! Teodomiro! Um dia tremendo se aproxima, em que a Espanha deve ser túmulo da raça goda. Em sonhos antevi esse dia, e após os sonhos, a medonha realidade aí se me alevanta diante dos olhos. (...) As cidades despovoam-se, e, como elas, os campos convertem-se em ermos. Embora ainda sorriam no vicejar das searas, no florescer dos pomares, no murmurar das fontes: semelhante sorrir consterna; porque o homem

31

desapareceu no meio desta cena formosa, e o ruído da vida converteu-se em silêncio de morte. – Os árabes! – eis o único grito que o interrompe; e esta palavra maldita é como a peste quando passa: seguem-na o susto e o desacordo. A vileza do coração humano surge após ela em toda a hediondez do seu aspecto. O terror acabou com os mais santos afetos e, até, com amor filial e paterno. Cada qual busca salvar-se a si próprio. Os netos dos nobres godos converteram-se num bando desprezível de covardes egoístas. (EP, p.52)

É necessário esforço e vigilância, já que as dissensões civis quiseram que os golpes do franquisque godo hajam de se vibrar sobre a fronte de godos que combatem ao lado do estrangeiro infiel (...) (EP, p. 56)

Para mim, de todos estes incentivos, apenas restam dois: o amor à terra natal e a crença do evangelho. (EP, p.57)

Os três fragmentos foram proferidos por Eurico, ao relatar a situação das

Espanhas, por meio de cartas, ao seu amigo Teodomiro. Fica perceptível no

primeiro fragmento que o sujeito/enunciador nutre um sentimento nacionalista, já

que descreve, preocupado, as paisagens da sua terra natal que estão sendo

corrompidas com a chegada dos árabes, e também o caráter dos godos, que,

momentos antes tornaram-se pessoas egoístas e corruptas. No segundo fragmento,

Eurico se refere ao povo árabe como “estrangeiro infiel”, numa evidente

contraposição à religião deles, o Islam. Por fim, no terceiro fragmento, Eurico afirma

que só lutará em nome de sua terra natal e da crença do evangelho, mais uma vez

enfatizando a religiosidade e o sentimento patriótico, próprios do Romantismo.

O primeiro fragmento resgata também uma visão apocalíptica cristã,

ocorrendo aqui o interdiscurso, dessa vez entre a ficção e o discurso bíblico, já que o

trecho descreve a cena trágica antevista em sonhos por Eurico, uma visão que

dramatiza a extinção do homem, assim como no livro sagrado dos cristãos.

O excerto “o homem desapareceu no meio desta cena formosa, e o ruído da

vida converteu-se em silêncio da morte” (primeiro fragmento acima) faz do conflito

iminente algo mais nefasto do que é, representando toda a angústia dos godos

diante da invasão árabe. No livro Apocalipse, da Bíblia cristã, há fragmentos que se

assemelham aos sonhos de Eurico (presentes no capítulo VII - A visão), pois há

referência ao arrebatamento da Igreja, uma visão metaforizada de uma mulher

prestes a dar à luz e um dragão cor de fogo com sete cabeças e dez chifres:

E viu-se um grande sinal no céu, uma mulher vestida de sol e tendo a lua debaixo dos seus pés, e na sua cabeça havia uma coroa de doze estrelas e ela estava grávida (...) E viu-se outro sinal no céu, e eis um grande dragão

32

cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres, e nas suas cabeças sete diademas (...) E o dragão ficou parado diante da mulher, que estava para dar à luz, para que, quando desse à luz, pudesse devorar-lhe o filho. (Bíblia sagrada, p. 1536)

Trata-se, de acordo com uma interpretação comum desse trecho bíblico, de

uma representação das batalhas espirituais na terra. Os chifres do dragão podem

ser referência aos domínios políticos mundiais; a cor de fogo pode representar o

sangue ou as mortes na terra, e as sete cabeças, a inteligência, que é capaz de

seduzir e enganar as pessoas, ou seja, tudo isso nos leva a uma imagem

demonizada, talvez a representação do próprio Diabo da fé cristã. A mulher, por sua

vez, pode representar o povo de Deus, a luz da esperança, num mundo de trevas

liderados pelo dragão.

Na visão de Eurico, o que causará a destruição serão os árabes, que nesse

contexto são quase equiparados ao dragão, pois vieram astutamente trazer a

destruição da nação goda. O livro Apocalipse revela o fim do sistema de coisas na

terra em decorrência da corrupção dos homens, assim como ocorre em Eurico, já

que a sua nação sofrerá as consequências da destruição por ter sido corrompida

pelos prazeres mundanos.

Sabendo o quanto Alexandre Herculano era a favor de um Portugal mais

liberal – o que é comprovado pela história de vida do autor, já que lutou ao lado de

Almeida Garret e D.Pedro I contra a ideologia absolutista e tradicional de D. Miguel -

e o quanto era partidário do pensamento livre e romântico da sua época, podemos

inferir que os sujeitos que se instituem na obra revelam características marcantes da

estética literária e da ideologia românticas, o que fica comprovado também pela

presença forte do pensamento religioso cristão, reveladas nos trechos da obra acima

expostos, e ainda, por outras características como o medievalismo e o patriotismo

que serão abordados de forma mais abrangente no decorrer da nossa análise.

1.2 Memória discursiva e discurso literário como discurso constituinte

A concepção de “memória” exposta em dicionários, como o Houaiss (2009),

por exemplo, é a de faculdade de conservar ideias, lembranças ou noções de um

objeto. Assim, as pessoas, em geral, carregam uma memória de algo do passado,

uma lembrança boa ou ruim de algo que aconteceu em sua vida.

33

Para a análise do discurso, falar de “memória” implica falar de interdiscurso,

já que o que é dito em um discurso já foi dito em outro lugar antes. Orlandi (2003, p.

33) afirma sobre a memória: “(...) só podemos dizer (formular) se nos colocamos na

perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na realidade, se

encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da

atualidade (formulação)”.

Em Eurico, o presbítero, não tratamos da memória de um sujeito específico,

como Eurico ou o general Tárique, mas sim de uma memória coletiva, pertencente a

um grupo, que nesse caso abrange, respectivamente, a do povo português

romântico e liberal, que não adere aos dogmas religiosos do celibato, e a do povo

pré-português (os visigodos), que travava uma luta para manter presentes a cultura

e a religião, mediante a invasão dos árabes e a dissolução de valores, numa época

de transição.

Ao resgatar dados históricos da Península Ibérica para expô-los em sua

obra, recriando um novo universo com personagens ficcionais, e mantendo alguns

reais, Herculano não só reconstrói a memória de seu povo, mas também promove a

interação de interlocutores e novas possibilidades históricas, fazendo-os refletir se,

de fato, os sujeitos agiram de tal forma ou se existiram naquele contexto. A história

refere-se a fatos do passado, porém, quando se une história à literatura, os fatos

tornam-se intemporais, pois, a cada leitura do texto, o conteúdo acionará uma

lembrança ou momento específico, promovendo a retomada de informações

históricas mencionadas na obra.

Por exemplo, em Eurico, o presbítero, há menção a uma disputa a largo

tempo entre os irmãos Sisebuto e Ebas, pela coroa deixada pelo pai Vítiza, mas que

acabaram cedendo, como afirma o enunciador: “não à usurpação, porque o trono

gótico não era legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso soldado

(Roderico), que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de dignidades

militares” (EP, p. 19). Esse fragmento mostra que, por ambição e comodismo os

irmãos abriram mão do poder para o guerreiro godo Roderico. Cabe lembrar que, no

período romântico, em Portugal, houve também uma disputa pela coroa, dessa vez

liderada por D. Pedro I e D. Miguel, após a morte de D. João VI, o que gerou uma

34

série de conflitos civis no país, deixando o povo português completamente dividido,

assim como ocorreu na obra de Alexandre Herculano.

Tratando ainda da questão da memória para a AD, verificamos em

Charaudeau (2008, p. 326) a divisão da memória em três tipos:

(...) uma memória de discurso, que se constitui em torno de saberes de conhecimento e de crença sobre o mundo e que forma comunidades discursivas; uma memória das situações de comunicação, que se constitui em torno de dispositivos e contratos de comunicação, e que forma comunidades comunicacionais; uma memória das formas, que se constitui em torno de maneiras de dizer e de estilos de falar, e que forma comunidades semiológicas.

Já Foucault (2008, p. 139) atribui a mesma importância aos termos leitura,

traço, decifração e memória, colocando-os como sistema que permite tirar o discurso

passado de sua inércia e reencontrar, num dado momento, algo de sua vivacidade

perdida.

Para Pêcheux (1997), a memória discursiva é um saber que permite a

construção de sentido pelas palavras, e este corresponderá a algo falado

anteriormente em outro lugar. O já-dito, para Pêcheux, torna possível todo o dizer, e

este está relacionado a um saber discursivo, que, por sua vez, se relaciona a uma

formação discursiva. Essa formação vai ponderar aquilo que o sujeito pode e deve

dizer em determinada situação. Para Pêcheux, portanto, sujeito, língua e história

estarão ligados. E, por essa razão, a noção de memória, para o autor, estará

relacionada a um grupo social.

Orlandi (2010, p. 01), em um artigo publicado para a revista RUA,

estabeleceu três denominações para a memória: a primeira, a memória discursiva,

que diz respeito àquela observada por Pêcheux, como interdiscurso de que “algo

fala antes, em outro lugar, independentemente”; a segunda, a memória institucional,

que é também chamada de arquivo,

(...) aquela que não esquece, ou seja, a que as Instituições (Escola, Museu, políticas públicas, rituais, eventos etc.) praticam, alimentam, normatizando o processo de significação, sustentando-o em uma textualidade documental, contribuindo na individualização dos sujeitos pelo Estado, através dos discursos disponíveis, à mão, e que mantêm os sujeitos em certa circularidade.

35

E, por fim, a terceira, a memória metálica, produzida pela mídia, pelas novas

tecnologias de linguagem. A memória da máquina, da circulação, que não se produz

pela historicidade, mas por um construto técnico (televisão, computador, etc.).

Dessas definições, a que mais nos interessa discutir é a que Charaudeau

denominou como memória de discurso e que Orlandi definiu como memória

discursiva, que, como se viu, não deixa de contemplar, até certo ponto, as definições

de Pêcheux e Foucault, pois tanto uma definição quanto a outra dizem respeito ao

aspecto discursivo da memória e das formações ideológicas.

A memória, na verdade, permeia a produção discursiva e é acionada pelas

condições de produção que compreendem os sujeitos envolvidos e a situação

enunciativa.

Um texto, de modo geral, é consagrado através de sua circulação social.

Alexandre Herculano, ao atribuir a sua obra uma dimensão histórica, proporcionou a

ativação, mesmo que inconsciente, da memória coletiva de seu público, ao tratar da

história da sociedade visigótica, que, segundo o próprio autor, deixou contribuições

significativas ao povo espanhol e posteriormente ao português, conforme trechos

contidos na nota de rodapé do prólogo:

O esplendor dos paços, as fórmulas dos tribunais, os ritos dos templos, a administração, a milícia, a propriedade, as relações civis são menos nebulosas e incertas para nós nas eras góticas, que durante o longo período da restauração cristã. E, contudo, o reproduzir a vida dessa sociedade, que nos legou tantos monumentos, com as formas do verdadeiro romance histórico temo-lo por impossível, ao passo que o representar a existência dos homens do undécimo ou dos seguintes séculos será para o que os tiver estudado, não digo fácil, mas, sem dúvida, possível. (EP, p. 13)

Dos godos restam-nos códigos, história, literatura, monumentos escritos de todo gênero (...) (Ibidem)

Não cabe numa nota o fazer sentir esse não-sei-quê de majestade escultural que conserva sempre a raça visigótica, por mais que tentemos galvanizá-la, nem o contrapor-lhe as gerações nascidas durante a reação contra o islamismo, que surgem e agitam-se e vivem quando lhes aplicamos a corrente elétrica e misteriosa que, partindo da imaginação, vai despertar os tempos que foram, do seu calado sepulcro. (Ibidem)

O período visigótico deve ser para nós como os tempos homéricos da Península. (Idem, p.14)

Esses fragmentos demonstram que o passado histórico resgatado, unido a

elementos fictícios, é importante para a compreensão do contexto literário (o período

romântico) na obra, mesmo sendo esse passado decadente em alguns aspectos,

36

conforme o próprio Herculano alega, pois, por meio dos fragmentos evidenciados

acima, obtêm-se detalhes para a construção de um enredo e de um personagem.

Ainda quanto à relação entre fatos reais e fatos históricos, é importante

lembrar os conceitos de Aristóteles que, em Poética (1990), apresenta a mimese, o

mito e a catarse como base da arte poética (portanto literária). A mimese

corresponderá à imitação do que é possível no mundo real; o mito será a

representação de uma ação, com partes ordenadas em começo, meio e fim, de

acordo com os critérios de necessidade e verossimilhança; a catarse, por sua vez,

será a capacidade de purificação das emoções do espectador, ou seja, de promover

o bem estar social.

O filósofo grego tratou especialmente desses conceitos no universo da

tragédia e da epopeia, gêneros literários que se manifestarão também eu Eurico, o

presbítero. A tragédia se caracteriza por um conflito entre um personagem e um

poder de estância superior. Segundo Aristóteles (1990), a função da tragédia é

provocar, por meio de sentimentos, como a compaixão ou o temor, a purificação dos

sentimentos, daí o termo catarse. Nas tragédias encontramos um herói, que de

acordo com Frye (1957, p. 204) é muito grande, se comparado conosco, pois

(...) há algo nele, algo que fica do lado oposto à audiência, comparado com o que ele se mostra pequeno. Esse algo pode ser chamado Deus, deuses, fado, acaso, fortuna, necessidade, circunstância ou qualquer combinação entre eles, mas, seja o que for, o herói trágico fica entre nós e esse algo.

O herói trágico situa-se tipicamente no topo da roda da fortuna, a meio caminho entre a sociedade humana, no solo, e algo maior, no céu.

Esse herói trágico, na obra em questão, será o próprio Eurico, já que ele se

situa entre os homens e entre os deuses, num patamar superior aos de seus

companheiros. Eurico tem uma dimensão quase crística por aparecer como o

salvador de seu povo, por receber mensagens apocalípticas em sonhos e por não se

integrar à sociedade como os outros personagens.

A epopeia, para Aristóteles (1990), definida a partir de obras como a Ilíada e

Odisseia, de Homero, e a Eneida, de Virgílio, deve seguir algumas regras para ser

considerada uma obra épica, entre elas a utilização de versos heroicos. Mas, apesar

de a obra de Herculano não apresentar esse modelo exposto por Aristóteles, ela

37

apresenta a imitação de homens superiores e a presença do maravilhoso, sobretudo

pelo ato heroico de Eurico como cavaleiro negro.

A esses gêneros somam-se, na obra em questão, os três elementos

anteriormente expostos: a mimese, o mito e a catarse. O primeiro, pela

verossimilhança dos fatos narrados, ou seja, pelo reconhecimento ou identificação

com a forma original, isto é, a realidade; o segundo, pela aparição de um guerreiro

(cavaleiro negro) que salvará o seu povo e que sofrerá todas as consequências por

seu heroísmo − o “bom” deve ser imitado, porém embelezado e melhorado; e o

terceiro, por fim, pela identificação do leitor com a história e a possibilidade de

“purificar” seu espírito, por meio da purgação de suas paixões, provocada pelo

enredo.

Tem-se na obra, portanto, as características necessárias para tratar da

teoria poética de Aristóteles, por exemplo, pela ação heroica de um homem (Eurico)

de caráter elevado na sociedade em que vive. Ação que certamente influenciará a

autenticação da estética literária de Alexandre Herculano, já que segundo Frye

(1957) o romanesco floresce no período romântico como parte do pendor arcaico

dessa estética.

A estética romântica, segundo França (1999), consistiu numa revolução

literária, por trazer uma nova maneira de enfrentar os problemas da vida,

mesclando-os a diversas áreas do conhecimento humano como a filosofia, as

religiões, a ciência, a moral, a política e os costumes sociais. O período romântico

em Portugal durou de 1825 a 1865, e o contexto histórico envolvendo o país nessa

época não era dos melhores. E será nesse conturbado contexto que o espírito

nacionalista dos autores românticos em Portugal emergirá, bem como todas as

outras características, como o escapismo, o retorno à religiosidade medieval e o

descontentamento com a realidade atual. Os autores fugirão, então, de um universo

real conturbado e passarão para um universo literário em que se constrói um mundo

idealizado.

Ainda de acordo com França (1999), Herculano, em uma revista do Porto,

publicada em 1835, expôs seu ideal romântico, ao afirmar qual deveria ser a postura

do povo português para a literatura nacional no período romântico:

38

Diremos somente que somos românticos querendo que os portugueses voltem a uma literatura sua (...): que amem a pátria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos tempos históricos, os quais o cristianismo com a sua doçura, e com o seu entusiasmo e o caráter generoso e valente destes homens livres do Norte que esmagaram o vil império de Constantino, tornaram mais belos que os dos antigos (...) que substituam (os versos dos gregos) por nossa mitologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela filosofia e pela moral na lírica. (HERCULANO, apud FRANÇA, 1999, p. 97)

Por meio do trecho citado acima, reforçam-se alguns valores, como a

religiosidade acentuada e o patriotismo, características muito comuns nos escritos

românticos de Portugal.

A questão de valores e coletividade remete-nos à concepção de discurso

constituinte, como auxiliar na construção de sentidos dos enunciados.

Para Maingueneau (2012, p. 61), trata-se de “discursos que conferem

sentido aos atos da coletividade”, ou seja, uma das características do discurso

constituinte é a relação com a comunidade que o produz, obtendo-se, assim, um

sentido dentro de determinada organização social. O autor enfatiza que “cada

discurso constituinte aparece ao mesmo tempo como interior e exterior aos outros,

outros que ele atravessa e pelos quais é atravessado” (MAINGUENEAU, 2008,

p.40).

Ainda segundo Maingueneau (2012), os discursos constituintes terão a seu

cargo o que se poderia denominar o archeion de uma coletividade, ou seja, uma

função simbólica para aquilo que representa a sede da autoridade, a fundação no e

pelo discurso, que tem sua origem no étimo do termo latino archivum. Pressupõe-se,

a partir daí, a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores

consagrados, e à elaboração de uma memória.

A noção de archivum (ou arquivo) foi sugerida por Maingueneau em

substituição à noção de formação discursiva, indicando nessa situação que os

enunciados são inseparáveis da memória, mas essa concepção deixou de ser

empregada pelo linguista por não contemplar o uso que se dá a arquivo na

linguagem corrente, portanto, a expressão formação discursiva tornou-se mais usual

para explicar a reunião de enunciados advindos de um mesmo posicionamento.

39

No período romântico, o discurso literário era uma das formas de expressão

dos sentimentos dos artistas, mas não era o único; o período também era

atravessado pelo discurso histórico, em virtude da consciência patriota dos artistas,

ligada aos fatos passados.

Na sociedade portuguesa do século XIX, a junção do discurso constituinte

literário, ou seja, o discurso de origem, com o discurso histórico, não gerou

estranhamento, mas uma aceitação maior do que apenas o discurso histórico de

forma isolada, uma vez que esses discursos estão interligados: o primeiro é o que

“funda” o discurso e o segundo é o que se utiliza do discurso literário para impor o

seu discurso. Esses “agrupamentos discursivos” podem se apresentar de forma

distinta, com propriedades comuns aos discursos e com propriedades diversas.

Em Eurico, o presbítero, tem-se, na “voz” (ou fala) do sujeito enunciador, um

discurso fundador que já se manifesta no prólogo da obra; logo em seguida, surge a

voz de outro sujeito, o responsável pela enunciação, pelo “dizer”, e ainda aparece a

voz de um sujeito protagonista, e todos mostram-se marcados pela mesma

ideologia religiosa e nacionalista. Isso remete a Maingueneau (2012, p. 61), para

quem todo discurso é “dotado de um estatuto singular: zonas de fala entre outras e

falas que se pretendem superiores a todas as outras”.

Percebem-se, na obra, vozes que se misturam, mas que ainda mantêm sua

essência, afinal, como sugere Maingueneau (idem), cada discurso atravessa e é

atravessado por outros e, para os discursos se legitimarem, devem estar ligados a

uma fonte legitimadora. No caso da obra, essa fonte é o próprio Herculano, sujeito

que cede a voz a outros enunciadores, como o historiador, o romancista, o

nacionalista e o inimigo. Os discursos, enfim, “são ao mesmo tempo

autoconstituintes e heteroconstituintes, duas faces que se pressupõem mutuamente”

(MAINGUENEAU, 2012, p. 61).

1.3 Cenas da enunciação e ethos discursivo

Sabe-se que todo ato de produzir um enunciado está ligado a um locutor,

aquele que “ganha voz”, que “tem a palavra”, que mobiliza a língua e a coloca em

prática. Ao tomar a palavra, o sujeito constrói uma imagem de si para seu público, já

40

que ambos se relacionarão de forma recíproca. Para Benveniste (1974), a

enunciação instaura duas figuras igualmente necessárias: a origem, e o destino da

enunciação. Nos dois extremos estarão, portanto, o locutor e o interlocutor.

A importância da construção da imagem de um sujeito já era reconhecida

nos estudos retóricos de Aristóteles, mais precisamente, na concepção de ethos

retórico. Essa expressão relacionava-se à credibilidade do orador, que, por meio da

transmissão de uma imagem de si ao auditório, levava-o a crer na verdade, para

isso, adotando alguns procedimentos, como certo tom de voz e a escolha das

palavras e argumentos adequados.

Convém lembrar que a retórica aristotélica fundamentava-se em três pilares:

o logos, que condizia com os argumentos utilizados para convencer o público; o

pathos, que se associava ao jogo emocional que o orador utilizava para conquistar o

público; e o ethos, responsável por tornar o orador digno de fé por seu “caráter”.

Esses elementos, segundo Maingueneau (2008), estavam relacionados à própria

enunciação e não a um saber extradiscursivo do locutor. Relacionavam-se à

verdade que o orador deveria transmitir, portanto, à concepção retórica, que não

contempla de forma ampla as ciências humanas contemporâneas, como o estudo do

discurso. Assim, o modo de caracterizar a imagem do sujeito do discurso é

denominado ethos discursivo.

Apoiada nos estudos de Benveniste, nos conceitos da construção do ethos

retórico e no posterior estudo de ethos discursivo de Maingueneau, Amossy (2005,

p. 9) assim explica a construção da imagem do locutor no interior do discurso:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si.

Isso quer dizer que, de forma proposital ou não, o locutor construirá uma

imagem de si para o seu interlocutor, imagem que poderá ser positiva ou negativa,

dependendo do seu posicionamento e do uso de seu conhecimento linguístico e

cultural.

41

O ethos discursivo encontra raízes na teoria polifônica da enunciação de

Ducrot, ou seja, em uma “pragmática semântica”, de acordo com Amossy (2005,

p.14). A autora esclarece:

A pragmático-semântica abandona o sujeito falante real para se interessar pela instância discursiva do locutor, mas o faz colocando radicalmente em xeque sua unicidade. Ela diferencia o locutor (L) do enunciador (E) que é a origem das posições expressas pelo discurso e é responsável por ele; ela divide o locutor em ‘L’, ficção discursiva, e em ‘λ’, ser do mundo, aquele de quem se fala (‘eu’ como sujeito da enunciação e ‘eu’ como sujeito do enunciado)

A pragmática semântica trata dos processos de interpretação dos

enunciados dentro de um contexto e traz a fala como ação que visa influenciar o

parceiro do discurso por meio da argumentação, tripartindo o sujeito enunciador em

sujeito falante (ou empírico), locutor e enunciador. Ducrot ainda não tinha

desenvolvido a noção de ethos. Maingueneau é considerado como o responsável

pela propagação desse termo na AD.

A noção de ethos na retórica estava ligada à oralidade e não abrangia a

questão de vocalidade, que será levada em conta na visão de ethos de

Maingueneau. A vocalidade relaciona-se a um fiador que por meio de seu tom

(noção que substituirá “voz”) confirma o que é dito (oralmente ou por escrito).

Com essa noção, Maingueneau atribui determinações físicas e psíquicas ao

fiador, indo além da dimensão verbal. “Acaba-se por atribuir ao fiador um ‘caráter’ e

uma ‘corporalidade’” (MAINGUENEAU, 2008, p.65). O caráter relacionar-se-á aos

traços psicológicos do fiador, e a corporalidade à aparência física e ao modo de se

vestir de uma forma mais específica, mas podendo se referir também, no âmbito do

discurso, à sua formação discursiva.

Em alguns pontos, a visão de ethos explorada por Maingueneau dialoga com

a concepção aristotélica, conforme ele próprio expõe:

- o ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma ‘imagem’ do locutor exterior à fala;

- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;

- o ethos é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de

42

uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada. (MAINGUENEAU, 2008, p.63)

Mas, apesar desse diálogo com a concepção aristotélica, a visão de

Maingueneau torna-se mais ampla, na medida em que engloba a ideia de que cabe

ao leitor a criação de uma imagem apoiada na dupla figura do enunciador (caráter e

corporalidade), além da identificação de “um conjunto difuso de representações

sociais, avaliadas positiva ou negativamente, de estereótipos, que a enunciação

contribui para reforçar ou transformar.” (Idem, p.63)

O ethos retórico assumia um compromisso com a verdade: passar uma

imagem real do enunciador por meio do discurso. Já o ethos discursivo é “distinto

dos atributos reais do locutor” (MAINGUENEAU, apud MOTTA & SALGADO, 2008,

p. 14), já que é do exterior que esse ethos caracterizará o locutor. Mas, de qualquer

forma, a noção do ethos está ligada à da construção de uma identidade.

O ethos, em geral, segundo Maingueneau (2008, p.60), produz-se no ato de

enunciação, mas pode ser ainda construído antes dela, sendo, neste caso,

denominado ethos pré-discursivo, terminologia não presente nos estudos retóricos

de Aristóteles. O ethos pré-discursivo vincula-se ao público/interlocutor e diz respeito

às representações prévias do ethos do locutor tornando assim o ambiente discursivo

um universo já conhecido.

Em relação à obra de Herculano, pode-se falar tanto em ethos discursivo

quanto em ethos pré-discursivo. O primeiro relaciona-se à imagem construída do

sujeito discursivo por meio do enunciado e o segundo, aos saberes históricos

prévios do público, que reconhece o discurso histórico na obra, por meio dos fatos

retratados, o que facilita a compreensão e a aceitação do texto em sua totalidade.

Outro detalhe que contribui para a formação de um ethos pré-discursivo é a

expectativa provocada pelo fato de o texto pertencer a um gênero, que, nesse caso,

aproxima-se mais do romance, que, além de outras características, permite a

representação/imitação da realidade de uma forma mais contemplativa.

Maingueneau (2010, p.148) refere-se, ainda, a outros elementos que giram

em torno do texto literário e que auxiliam na construção da imagem do autor: a

43

personagem, a cenografia, os gêneros, o autor-garante, o nome do autor e o ethos

editorial.

A personagem, de acordo com Maingueneau (Idem), facilita a

“contaminação” com o autor, pois refletirá em vários momentos a imagem e os

valores dele. De fato, em Eurico, o presbítero, revela-se o personagem-protagonista

Eurico, passando por um período de transição política e moral, pois o rei Vítiza, que

fora um dos responsáveis pelo nascimento do espírito patriota de seu povo, foi

substituído por Roderico, último rei dos godos, que naquele momento governava

com dificuldades, em uma sociedade com valores dissolvidos, visto que o povo

estava “esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos bandos

civis, prostituídos às paixões dos poderosos” (HERCULANO, 2007, p. 19).

Herculano, por sua vez, vivia numa situação similar à de seu personagem

Eurico, pois Portugal, na sua época, vivenciava um momento de grandes mudanças

políticas, sociais e econômicas, originadas de um novo sentimento nacionalista, que

se opunha à realidade que os portugueses presenciavam. Um exemplo disso foi a

fuga da família real para o Brasil, em razão das invasões napoleônicas e da

revolução liberal contra o regime absolutista.

A cenografia, por sua vez, conforme explica Maingueneau (2010, p. 149),

condiz com o “clima” da narrativa de que as personagens participam, sendo

instituída não pelo tipo de texto ou gênero, mas pelo próprio discurso. Na obra em

análise, a cenografia consiste numa instância que facilita a criação da imagem do

próprio Herculano como historiador, por meio de todos os elementos históricos e

sociais expostos anteriormente.

Os gêneros, para Maingueneau (idem), podem ser vistos como uma

consequência do posicionamento do autor em determinado período literário.

Herculano, certamente, não escolheu arbitrariamente um gênero que englobasse

características históricas e lendárias; sem dúvida, foi influenciado pela estética

literária que estava surgindo e pela predileção dos leitores por determinadas formas

genéricas.

44

Maingueneau (idem, p. 150) refere-se também ao autor-garante,

responsável por liberar um ethos advindo do paratexto, pela aparição de “título,

epígrafe, prefácio, posfácio...”

O nome do autor, grafado na capa, pode também criar imagens específicas,

conforme explica Maingueneau (idem). Alguns autores até escolhem usar

pseudônimos para manipular a construção de uma imagem de si, mas Herculano

não apelou para isso, visto que, sua condição de historicista português já sugeria

uma imagem positiva de si, como um defensor ferrenho de seu povo.

O ethos editorial, enfim, de acordo com Maingueneau (2010), origina-se da

coleção, capa e formato em que o livro é publicado. Eurico, o presbítero, por

exemplo, foi publicado inicialmente em folhetins, no jornal Panorama e na Revista

Universal Lisboense, em 1843, veículos de comunicação de grande circulação

social. No ano seguinte, publicou a obra em volumes, juntamente com o Monge de

Cister, inspirado no cronista Fernão Lopes. Sob a denominação de O Monasticon, as

duas obras retratam acontecimentos históricos unidos à ficção: Eurico, o presbítero,

a invasão árabe na Península Ibérica e a degradação do povo godo, e O Monge de

Cister, as intrigas do reinado de D. João I, em 1383.

Em ambos os trabalhos, Herculano reconstrói a história de Portugal por meio

de reflexões levadas a efeito por figuras religiosas que discutem os conceitos morais

da igreja. No primeiro, um presbítero que é contra o celibato clerical, mas o respeita

pelo amor à igreja, e, no segundo, um monge que deixará transparecer as questões

morais e religiosas em embate com a paixão e a vingança fraternal.

Todos esses elementos cooperam para a construção da imagem do autor,

mas não são somente essas atividades relacionadas a ele que gerarão essa

construção. A interação com o público também será essencial. Para que ocorra uma

harmonia entre público e autor, é necessário que o ambiente em que eles participam

seja legitimado, isto é, que o leitor reconheça o lugar que é de direito do autor, para

assim determinar qual é a posição que podem e devem ocupar esses indivíduos que

interagem.

45

O lugar de interação, definido por Maingueneau (2008, p. 116-117) como

cena da enunciação, abrange três tipos: a cena englobante, a cena genérica e a

cenografia.

A cena englobante é aquela que corresponde ao tipo de discurso numa

perspectiva pragmática. Ela define o estatuto dos parceiros e o quadro espácio-

temporal. No caso do corpus de nossa pesquisa, a cena englobante da obra é, sem

dúvida, a literária.

A cena genérica, por sua vez, está relacionada aos gêneros de discurso

dentro de um contexto específico, como “papéis, circunstâncias (em particular, um

modo de inscrição no espaço e no tempo), um suporte material, uma finalidade etc”

(MAINGUENEAU, 2008, p. 116). O texto de Herculano revela um diálogo entre

diversos gêneros, pois apresenta características do romance, da lenda, do poema,

da crônica e da novela, além de ter sido publicado inicialmente em folhetins.

Proporciona, ainda, o aparecimento de subgêneros que se manifestam em epígrafes

(como trechos de poemas, hinos, chronicons) e nas cartas trocadas entre os

personagens Eurico e Teodomiro.

Para Maingueneau (2008, p. 116), as cenas englobante e genérica

definem em conjunto o espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido, isto é, o espaço do tipo e do gênero do discurso. Em muitos casos, a cena de enunciação reduz-se a essas duas cenas; porém, outra cena pode intervir, a cenografia, a qual não é imposta pelo tipo ou pelo gênero de discurso, sendo instituída pelo próprio discurso.

A cenografia, desse modo, institui-se pelo próprio discurso. Consideremos,

por exemplo, Eurico, o presbítero, do ponto de vista genérico. Ocorre na obra uma

mistura de gêneros, conforme já expusemos. Se pensarmos na cenografia,

observaremos um ambiente histórico que será legitimado pelo público no ato da

leitura, pela ativação da memória histórica. Afinal, de acordo com Maingueneau

(2008, p. 117), “em uma cenografia associam-se uma figura de enunciador e uma

figura correlata de coenunciadores. Esses dois lugares supõem igualmente uma

cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar)”.

Em Eurico, o presbítero, descreve-se um momento histórico e um lugar que

se supõe serem de conhecimento do leitor. É o momento da dissolução do povo

46

godo e do aparecimento dos novos povos da Península Ibérica, ou seja, dos futuros

portugueses e espanhóis, e os lugares em que se passam as ações são espaços

fictícios que podem remeter à própria história de Portugal. Portanto ocorre por meio

da cenografia uma legitimação dos enunciados produzidos na obra.

Quanto ao coenunciador ainda de acordo com Maingueneau (2008, p. 118),

à medida que avançar sua leitura no texto, será persuadido de que aquela

cenografia mostrada é a que “corresponde ao mundo configurado pelo discurso”. O

autor explica:

o escritor constrói uma apresentação de si através de seus comportamentos verbais ou não verbais, que mostram o que é ser escritor, de acordo com representações coletivas, modelos estereotipados que circulam numa época e num local determinados. (MAINGUENEAU, 2010, p. 147)

Herculano, portanto, construiu sua imagem como autor através de seus

trabalhos que circularam num meio e numa época em que o público leitor os

aceitava muito bem; o suporte (jornal), na verdade, contribuía para essa aceitação,

por essa razão suas atividades fizeram sentido naquele contexto social e

contribuíram para a criação de sua imagem como historiador.

Além disso, a escolha da cenografia de EP ambientada na Idade Média

(cronografia) e num espaço Ibérico (topografia), apresenta uma relação com a

memória discursiva pertencente ao período medieval, repleto de caos, mistério,

magia e sonho, validando, assim, a constituição romanesca e atribuindo um caráter

mais fantástico à obra e ao estilo de Herculano, instituindo aqui, portanto, uma

imagem de Herculano como artista.

Esses dois lados de Herculano, o artístico (ficcional) e o histórico ficam bem

evidentes na personalidade de Eurico, que, como personagem marcado por suas

contradições interiores, servirá de exemplo para uma estética romântica que

propunha tanto a evasão para um mundo transcendente através da morte, quanto a

fuga para um mundo idealizado (passado).

47

CAPÍTULO 2 – PASSADO HISTÓRICO E PRESENTE ROMÂNTICO:

GÊNERO E CONTEXTO EM QUESTÃO

2.1 Contextualizando Eurico, o presbítero

Alexandre Herculano não viveu no período da formação de Portugal,

tampouco presenciou as guerras entre árabes e cristãos na Península, mas

vivenciou um período de transição, em que o país protagonizava uma guerra

civil, tendo como causa central a disputa da coroa portuguesa, e no momento em

que se encontravam, em lados opostos, o partido tradicionalista de D. Miguel e o

partido constitucionalista de D. Pedro I (IV de Portugal), defensor das ideias

liberais.

Em Portugal, o Romantismo, período literário ao qual pertenceu

Herculano, entrelaçou as ideias liberais com a história de Portugal, e Herculano

esteve engajado com esses ideais. Juntamente ao escritor também liberalista

Almeida Garret, participou da primeira geração romântica. Garret era a favor de

uma instauração religiosa e Herculano manifestava um pensamento cético

quanto à salvação de sua pátria. Os dois autores estiveram na base do

Romantismo lusitano, mesmo que ambos negassem o título de românticos.

França (1999, p. 94) menciona as declarações de Garret e Herculano

sobre a recusa do rótulo. O primeiro afirma: “romântico, Deus me livre de ser”, e

o segundo o apoia: “não somos românticos nem esperamos sê-lo nunca”. Não

que eles não possuíssem as características pertinentes a esse período ou não

concordassem com o pensamento vigente, mas “Garret condenava a moda”

(FRANÇA, idem, p.94) e Herculano repugnava o pensamento e o modo de agir

na realidade sem moralidade e religião, que era o que estava ocorrendo na

sociedade.

Paralelamente, em Eurico, o presbítero, temos o protagonista, Eurico,

que também vivencia um período turbulento, a passagem do fim do Império Godo

para o surgimento das novas sociedades na Península Ibérica, fase embrionária

48

da formação de Portugal. Coincidência ou não, esses fatos transitórios dão

respaldo à percepção de uma estreita relação entre a vida e a obra de

Herculano, tanto é que Eurico parece constituir-se como o alter ego de Herculano

do que meramente um personagem criado para dar vida à obra. Eurico não é

apenas um reflexo de Herculano, mas transmite a ideia de um ideal de ego que

Herculano não pôde concretizar na vida real.

Essa ligação entre personagem e autor se dá por vários fatores que se

mostram no desenrolar da obra, como a propensão de Herculano ao isolamento

e à meditação, e que se assemelham aos da vida monástica de Eurico; pelo forte

pensamento religioso do autor, que coincide com o do personagem; pela aptidão

poética de Herculano que também se fará presente no poeta Eurico, quando ele

escreve poemas e hinos à igreja; e até mesmo pelas passagens heroicas, pois

tanto Herculano quanto Eurico estiveram presentes em campos de batalhas, um,

em defesa dos pensamentos liberais, e o outro, em defesa do povo godo e do

cristianismo. Essa relação entre criador e personagem, unida às características

românticas da época, ficará evidente em várias obras do autor.

A estética romântica surgiu como uma reação ao pensamento racional do

“século das Luzes”, surgido na Europa em meados do século XVIII, indo de

encontro ao racionalismo que predominava naquela época. Os escritores e

artistas românticos retratavam, em suas obras, todo o descontentamento com a

realidade da época, por suas mudanças sociais, filosóficas e econômicas. O

artista se vê deslocado diante do mundo real e busca um refúgio no passado

medieval, segundo Proença Filho (1989, p.221), em virtude do “ambiente

misterioso e transcendental que o (passado) caracteriza”.

Em Portugal, os problemas começaram em 1807, com a invasão das

tropas napoleônicas no país, obrigando a família real a transferir-se para o Brasil.

Os anos posteriores foram monitorados ora pelos franceses, ora pelos ingleses.

Em 1815, com a derrota do Império napoleônico, alguns liberais

portugueses se reuniram e propuseram uma nova ordem social ao governo. De

1820 a 1823, o período conhecido como Vintismo desnudou o extremismo dos

49

liberais e as Cortes Constituintes - primeiro parlamento português que visava

elaborar uma constituição para Portugal -, numa tentativa de pôr fim ao

Absolutismo, substituindo-o por uma monarquia parlamentarista. O Vintismo teve

fim com a intervenção de D. Miguel num evento conhecido como Vilafrancada,

denominação atribuída à localização do evento: a província portuguesa de Vila

Franca de Xira.

Tal evento resultou na dissolução do regime liberal e da Constituição de

1822, que não ia ao encontro dos interesses da rainha Carlota Joaquina. Ainda

no mesmo ano, a monarquia portuguesa nutria um sentimento de perda, já que o

Brasil se tornara independente com a ajuda dos liberais. D. Miguel foi nessa

ocasião condecorado como comandante-chefe do exército português, momento

em que os irmãos D. Miguel e D. Pedro (IV de Portugal) não tinham as melhores

das relações, já que D. Pedro defendia as ideias liberais.

Em 1828, os irmãos fizeram as pazes, a ponto de D. Pedro oferecer sua

filha, Maria da Glória, como esposa para o irmão, que se casou com a sobrinha e

prometeu restabelecer a Constituição de 1822. D. Miguel, porém, faltou com seu

compromisso e os anos seguintes foram, para os irmãos, de muito conflito, até

1847.

Esse clima nada amistoso em Portugal influenciou os portugueses, que,

insatisfeitos com a situação, começaram a desenvolver um pensamento mais

nostálgico, supervalorizando o passado célebre, que resultou numa postura

romântica e saudosista.

Há características bem específicas do período romântico, entre elas, a

subjetividade, ou seja, a percepção interior de um “eu”, na reprodução de um

mundo exterior idealizado, já que nesse período o romântico adquire

independência, característica que fica evidente pela presença de uma linguagem

mais emotiva, com o uso de pronomes em 1ª pessoa e de avaliações pessoais

do autor, como verificamos no prólogo de EP, pelo posicionamento contrário do

autor em relação ao celibato clerical, conforme trecho já citado anteriormente.

50

Outra característica do período é o escapismo psicológico, seja ele na

direção da natureza, seja na busca do passado. Quando o romântico cria um

mundo idealizado, naturalmente ele foge da sua condição atual, por não estar

satisfeito com ela. Quando ele volta ao passado, expressa-se de forma

saudosista.

Guinsburg (1985, p.95) faz uma observação quanto a esse saudosismo

romântico, afirmando: “os românticos comprazem-se em sua insatisfação;

podemos dizer que a satisfação consiste em permanecer insatisfeito e, portanto,

nostálgico, eternamente saudoso.” O romântico então será aquele que vive

inteiramente insatisfeito com o seu presente, e o passado, para ele, será a sua

inspiração e o tempo em que ele buscará refúgio.

O autor romântico, segundo Guinsburg (1985), extrai da sua realidade o

sumo para compor suas obras, mas não o utiliza por completo, pelo menos, não

de forma crua e isolada, mas sim combinada à fantasia, até transformar sua obra

no cenário perfeito para destrinchar a realidade.

Em Eurico, o presbítero, o universo fantasioso se dá por meio das

batalhas extraordinárias entre árabes e godos e pelo lirismo do par romântico

Eurico e Hermengarda. O casal se ama, mas não consegue concretizar esse

amor, por causa da opção de Eurico pelo sacerdócio. Enquanto Eurico sofre

exageradamente pela ausência da amada - fato fictício – segue, como pano de

fundo, uma história repleta de descrições das batalhas ocorridas na Espanha

(visigótica).

No capítulo XVIII - Impossível, fica bem evidente em vários momentos o

sentimento que Eurico nutre por Hermengarda, que aparenta ser um amor

legítimo, porém impossível, como o próprio título do capítulo sugere. Nos

fragmentos abaixo é possível notar, no momento em que finalmente Eurico fica a

sós com Hermengarda, a manifestação do seu desejo pela amada e a lembrança

do juramento e o amor pelo sacerdócio.

Apenas Pelágio transpôs o escuro portal da gruta, Eurico alevantou-se. Aspirava com ânsia, como se aquele ambiente tépido não bastasse a saciá-lo. O desgraçado resumia num pensamento devorador, numa síntese atroz,

51

o seu longe e doloroso passado e o seu torvo irremediável futuro. Como voltara àquele lugar? Como, sem lhe vergarem os joelhos, tinha ele descido das alturas do Vínio com Hermengarda nos braços? Que tempo durara essa carreira deliciosa e ao mesmo tempo infernal? Não o sabia. (EP, p. 162)

(...) No meio destas recordações incertas e materiais, outras passavam íntimas, ardentes, voluptosas, negras, desesperadas. Por horas, que haviam sido para ele uma eternidade de ventura, o respirar daquela que amava como insensato se misturara com o seu alento; por horas sentira o ardor das faces dela aquecer as suas, e o coração bater-lhe contra o seu coração. (Ibidem)

Depois, avultavam-lhe no espírito a imagem veneranda de Sisberto e o altar da sé de Híspalis, junto do qual vestira a pura estringe de sacerdote, e Carteia, e o presbítero e as noites de agonia volvidas nos ermos do Calpe. E tudo isso se contradizia, se repelia, se condenava, o amor pelo sacerdócio, o sacerdócio pelo amor, o futuro pelo passado; e aquela alma, dilacerada no combate destes pensamentos, quase cedia ao peso de tanta amargura. (Idem, p. 162-163)

Nos três trechos acima reitera-se o conflito interno vivido por Eurico, que fica

dividido entre o amor ao sacerdócio e a entrega à amada; entre a saudade do

passado e o desespero pelo futuro “torvo”. Nesse momento de divagações, Eurico

se perde pensando na morte como solução para sua desventura: “Engolfado

naquelas cogitações dolorosas, o guerreiro conservou-se por algum tempo imóvel e

com os olhos cravados nos astros cintilantes, que pareciam sorrir-lhe e chamá-lo

para o seio imenso do Senhor” (Ibid).

Outras características do período romântico, percebidas em Eurico, o

presbítero, e descritas por França (1999), são o medievalismo, relacionado ao

interesse pelas origens do povo português, com o resgate de características

trovadorescas, como a valorização da figura feminina, vista como um anjo de pureza

e perfeição; também as particularidades das novelas de cavalaria, e por fim a

religiosidade, como uma reação ao materialismo que impregnava a sociedade da

época. O romântico, conforme explica França (idem), é crente em Deus e na vida

eterna; por essa razão a morte não é temida, mas muitas vezes, é a salvação para

esse mundo indesejado.

Essas características são observadas nos trabalhos de Herculano, e ficam

evidentes por meio de um questionário francês a que Herculano, já com sessenta

anos, fora submetido. Em 1871, foram feitas algumas perguntas ao escritor, e suas

respostas refletiram alguns temas constantes em suas obras. França (Idem, p.128)

expõe alguns fragmentos dessas perguntas e suas respectivas respostas:

52

Qual é a sua virtude favorita? – A lealdade. As suas qualidades favoritas: no homem? A franqueza; na mulher? A timidez. O traço principal do seu caráter? – Não poder conter a indignação. (...) Quais os seus pintores e compositores favoritos? – Deus, que compôs os quadros do nascer e do pôr do sol (...), o rouxinol que canta ao luar. Os seus heróis favoritos na vida real? – Não amo heróis nem heroínas. Nos romances, os heróis e as heroínas agradam-me quando os seus caracteres têm algo de terrível e de profundo. São pesadelos escritos em vez de sonhados. O pesadelo dá, por vezes, aquilo a que chamo o prazer do horror, e quem me atrai. Quais os caracteres que mais detesta na história? – Os tiranos. Creio, porém, que detesto ainda mais os falsos amigos do povo. Qual a sua divisa favorita? – Pode quem quer. Toda a gente deseja; só os grandes caracteres querem.

As respostas dadas por Herculano de alguma forma criam uma

representação dos temas que estarão presentes em Eurico, o presbítero. Por

exemplo, a lealdade humana é assunto que se reflete no posicionamento ideológico

e patriótico de Eurico; a timidez da mulher pode ser associada à pureza de

Hermengarda, que é virgem e venerada; a menção de Deus como seu pintor favorito

e ao rouxinol que canta ao luar como compositor que pode revelar tanto o seu lado

religioso quanto o seu lado mais introspectivo e sombrio, já que a predileção de

Herculano é por um pássaro que canta à noite.

Em Eurico, o presbítero, são recorrentes as manifestações religiosas das

personagens, sobretudo as do protagonista Eurico, que crê incondicionalmente no

Cristianismo, a ponto de abdicar de sua amada pela fé. Manifesta-se também o

gosto de Herculano pelos ambientes ermos e sombrios. Quando questionado sobre

os heróis, deixa bem claro que os que mais o agradam (isso na ficção, pois em vida

parece não venerar nenhum) são aqueles com algum problema, ou de dimensão

trágica, assim como se revela o personagem Eurico, que é infeliz no amor, e ainda

por cima morre em batalha. Esses estereótipos de heróis sofredores e terríveis

parecem atrair o autor mais do que outros tipos de herói. Indo mais além, ele revela

na referida entrevista, detestar os falsos amigos do povo, o que pode ser associado

a Juliano, visigodo que traiu seu povo e se uniu aos árabes.

Os personagens da obra, portanto, manifestam as características típicas do

período romântico e passam a representar o estilo de Herculano. O personagem

Eurico, principalmente, incorpora-se como sujeito religioso, mártir da história,

desgostoso com o amor e com a realidade que o cerca, trafega por ambientes

ermos, como o convento, e hostis, como o local de batalha. Eurico é, enfim, um

personagem que se mostra como um típico representante do período romântico.

53

Em vários capítulos da obra, o protagonista se revela insatisfeito com seu

presente, mas no capítulo V - A meditação, isso fica bem mais evidente. Nesse

capítulo, as palavras que se referem ao passado do personagem trazem uma carga

semântica positiva, ao passo que as palavras relacionadas ao presente revelam

conotações negativas.

As escolhas lexicais, ou frames, que, segundo Koch (2001, p. 60), são

“conjuntos de conhecimentos armazenados na memória debaixo de um certo ‘rótulo’,

sem que haja qualquer ordenação entre eles”, evidenciam essa insatisfação do

sujeito. Nos trechos abaixo, podemos exemplificar, por meio das escolhas lexicais

do sujeito (por nós negritadas), como o presente é insatisfatório, ao passo que o que

se refere ao passado é digno, virtuoso e satisfatório.

Quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra de Espanha?

Uma geração degenerada pisa os restos de heróis: homens sem crença, blasfemos ou hipócritas, sucederam aos que criam na grandeza moral do gênero humano e na providência de Deus. (EP, p. 38)

Hoje, a cobiça assentou-se no lugar da equidade: o juiz vende a consciência no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babilônia vendiam a pudicícia nas praças públicas aos que passavam, diante da luz do dia. (Idem, p.39)

Dantes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam curvavam-se para beijar a fímbria da sua estringe; porque a paz e a sua esperança entravam em todas as moradas sobre que desciam as bênçãos dele. (Idem, p.38)

Dantes, o juiz era o pai do oprimido, o tribunal, o abrigo do inocente, a justiça, o nervo do império gótico. (EP, p.38)

Os dois primeiros fragmentos acima falam da Espanha “hoje”, ou seja, no

tempo presente do personagem, e revelam uma região que está tomada por

pessoas descrentes, cobiçosas e sem recato; mostra, portanto, uma geração

degenerada. Já os fragmentos seguintes referem-se ao passado do personagem e

da sua pátria, como se fosse para relembrar que sua nação era justa, pudica e

imersa em valores religiosos.

Esses conjuntos de conhecimentos ou de palavras e expressões, que são

classificadas como boas ou ruins, de acordo com os ideais do enunciador, por

diversas vezes acentuam a formação ideológica romântica.

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Na manifestação de Eurico, ainda no capítulo V – A meditação, encontramos

diversas palavras que justificam a defesa de que o passado e a religião, para ele,

eram melhores do que o seu presente, relacionado ao mundano, ou seja, ao que é

efêmero e ruim.

Organizando algumas das palavras encontradas no capítulo, que fazem jus

a essa afirmação, em uma tabela comparativa, podemos observar a distinção feita

por Eurico:

Religioso/Sagrado (passado bom)

Mundano/ Profano (presente ruim)

Cristo, cruz, divinas, celeste, almas, evangelizavas, convertias, amor, sublime, céus, sublimidade, cristianismo, evangelho, larários, crença, Deus, sacerdote, anjo, bênçãos, prelados, auréola, templo, paz, esperança, crucificado, claustros, catedrais, altares, pudicícia, igreja, sudário, santo, cajado de pastor.

Guerra, ruínas, susto, fome, indomáveis filhos de Gótia, almas rudes, gozo material, bárbaros, corrompidos, selvagens, escravos, césares, escuridão, frialdade, tristeza, mesquinhos, geração degenerada, homens sem crença, blasfemos, hipócritas, cutelo de algoz, príncipes na embriaguez, prostituição, sangue, covarde, vilmente, cobiça, desonrado vencedor de pelejas, terra condenada, homem cruel, involuntário terror, presente horrendo e maldito, alma árida.

O passado e a religião, no quadro, são representados por palavras que

podem ser classificadas como positivas (“passado bom”), e aquelas relacionadas à

vida presente e mundana, como negativas (“presente ruim”).

Essas concepções de palavras positivas e negativas são expostas por

Barros (1990). Poderão variar de sentido, de acordo com sua disposição no texto. As

palavras de cunho negativo são chamadas de disfóricas, e as positivas, de

eufóricas. As disfóricas, portanto, na obra em questão, estarão relacionadas ao

presente indesejável, e as eufóricas, ao passado idealizado. Vale lembrar que a

valorização afetiva é dada pelo enunciador Eurico, que vive um presente que o torna

infeliz, por experimentar um desencontro amoroso, por saber da traição de Juliano e

por prever a invasão dos árabes que ameaçam sua nação e religião. Por essas

razões, ele se apega às lembranças do passado, vividas pelos godos e por ele.

55

É consensual a ideia de que o que se diz num enunciado está sempre ligado

às suas condições de produção. Para Orlandi (2003), aos sujeitos, à situação e à

memória. A autora pondera que é possível considerar as condições de produção em

sentido estrito e no sentido amplo e que a memória será responsável pelo

acionamento do conteúdo enunciado, neste caso, funcionando como o interdiscurso.

O contexto imediato (sentido estrito) é a própria obra de Herculano e o

espaço onde o texto está inserido. No caso, a obra, traz características de diversos

gêneros, como veremos mais adiante, e insere-se num discurso literário. Já o

sentido amplo se dá pelos valores cultivados naquele momento e no contexto

histórico que envolve a obra em questão, permitindo assim que seja validado o

discurso sócio-histórico presente nos enunciados.

A questão da memória afeta mais diretamente o leitor, que deverá ser capaz

de interpretar as características do período literário e dos fatos históricos que

resultarão na ideologia revelada no comportamento de Eurico.

Ainda no capítulo V – A meditação, o personagem constrói uma imagem de

um indivíduo romântico, já que expressa sua religiosidade e mostra-se insatisfeito

com os fatos que vêm ocorrendo com seu povo. Para compor seu discurso, as

palavras constroem mecanismos enunciativos que geram um sentido, conforme as

condições histórico-discursivas que envolvem esse sujeito. Essa é, afinal, a forma

como o enunciador percebe e descreve o seu mundo, categorizando-o como bom ou

ruim, seguindo os valores da época.

Herculano, reconhecidamente marcado pela forte tendência para escrever

obras de cunho historiográfico (estava, aliás, diretamente envolvido na organização

da Biblioteca Pública Nacional) possuía certamente conhecimentos históricos

suficientes para compor seus trabalhos, pois teve, como bibliotecário, acesso a

muitos dados que remetiam à história de Portugal, entre eles, evidentemente, os que

tratavam da invasão árabe na Península Ibérica. O uso dos dados históricos

selecionados constitui, sem dúvida, uma estratégia argumentativa para promover a

verossimilhança.

56

2.2 Eurico, o presbítero: um romance histórico ou uma crônica-poema?

Um recurso bastante utilizado por Herculano e predominante na obra em

questão é a diversidade de gêneros textuais. Cabe lembrar que ele foi romancista,

historiador, cronista, poeta e ainda crítico literário. Tanto conhecimento certamente

influenciou a composição de Eurico, o presbítero, já que Herculano deixa indícios de

que a obra não apresenta um único gênero. O próprio autor confessa, no início da

nota de rodapé, inserida no prólogo da obra:

Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige demasiado. Sem ambicionar para ele a qualificação de poema em prosa – que não o é por certo – também vejo, como todos hão de ver, que não é um romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a desesperação de todos os romancistas, o imortal Scott. (EP, p. 13)

A obra, na verdade, consiste numa multiplicidade de gêneros. A começar

pelo folhetim, que foi a primeira forma genérica em que a obra foi publicada.

Segundo Rafael (2012), a imprensa em Portugal começa a se desenvolver em 1834

numa sociedade burguesa com um pensamento mais liberal, e naquele momento as

questões que interessavam essa classe atingiam também as classes mais baixas.

Foi um momento em que se adquiriu o hábito da leitura de periódicos, como O

Panorama (Lisboa, 1837), dirigido por Herculano, e Revista Universal Lisboense

(Lisboa, 1841), de António Feliciano de Castilho. Junto ao jornal, importante veículo

de comunicação da época, surgia o folhetim. No início, o folhetim era uma espécie

de nota de rodapé que ocupava as primeiras páginas dos jornais, mas

posteriormente, em 1840, com o surgimento do romance, esse gênero assumiu

outra forma, e daí passou a ser caracterizado como capítulos de obras publicados

semanalmente. A utilização do folhetim era uma forma do autor prolongar as ações

da trama e criar uma expectativa no público leitor, que nesse momento era bem

heterogêneo.

Essa publicação parcial e sequencial em periódicos atraia muito a atenção

do público leitor em Portugal no século XIX, por estabelecer uma relação entre as

classes sociais e por permitir, de acordo com Rafael (2012) que as classes mais

baixas tivessem acesso a bens culturais. Por ser um gênero publicado em jornais,

aproximava-se do realismo literário, manifestando, portanto um compromisso com a

veracidade dos fatos. A identificação do espaço de circulação do folhetim é

importante para compreender a preocupação de Herculano em trazer informações

57

que soassem verídicas aos seus leitores, porque, querendo ou não, o jornal tinha o

compromisso com a verdade dos fatos e com as narrativas do cotidiano.

EP apresenta características de um romance com detalhes históricos e

lendários e também de uma crônica, por trazer à tona certas questões relativas à

vida em sociedade e os ecos do contexto histórico do século XIX. Apresenta, ainda,

características poéticas.

No capítulo III - O poeta, por exemplo, manifesta-se o lirismo da obra, com a

revelação do lado poético de Eurico, que à noite, no presbitério, ocupava sua mente

escrevendo cânticos religiosos. Destacamos alguns trechos desse capítulo, que

mostram, primeiramente, o momento de descoberta do poeta Eurico no vilarejo; em

segundo lugar, o momento em que transparece o sentimentalismo de Eurico nutrido

por um amor não correspondido e pela decepção com os fatos ocorridos na sua

terra; em terceiro, um momento em que se evidenciam outros dois gêneros: o hino e

a elegia; e, por fim, um quarto fragmento que corresponde a um dos textos que

Eurico escrevia à noite.

Não tardou em espalhar-se na povoação e nos lugares circunvizinhos que Eurico era o autor de alguns cânticos religiosos transcritos nos hinários de vânias dioceses, e uma parte dos quais brevemente foi admitida na própria catedral de Híspalis. O caráter de poeta tornou-o ainda mais respeitável. A poesia, dedicada quase exclusivamente entre os visigodos às solenidades da igreja, santificava a arte e aumentava a veneração pública para quem a exercitava. (EP, p.27)

A ferida afizera-se ao ferro que estava dentro dela, e Eurico supunha-a sarada. Quando um novo afeto veio espremê-la é que sentiu que não se havia cerrado, e que o sangue manava ainda, porventura, com mais força. Um amor de mulher mal correspondido a tinha aberto: o amor da pátria, despertado pelos acontecimentos que rapidamente sucediam uns aos outros na Espanha despedaçada pelos bandos civis, foi a mão que de novo abriu essa chaga. (EP, p.29)

(...) recordando-se dos tempos em que era feliz porque tinha esperança, escrevia com lágrimas os hinos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do presbítero alguns fragmentos que duraram até hoje diziam assim: (EP, p. 30)

Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; eu e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos. (EP, p. 35)

Todos os gêneros que são mencionados nesses fragmentos, como os

cânticos e hinos (composições de louvor e adoração), as elegias (poesias tristes e

58

fúnebres) revelam a presença de um eu lírico que manifesta suas emoções e

sentimentos, confirmando, portanto, a inclinação poética na obra.

A poesia no Romantismo beirou o sentimentalismo individualista e

confessional. Segundo Coutinho (1975, p. 149), “o romantismo reduz toda poesia ao

lirismo, como a forma natural e primitiva, oriunda da sensibilidade e da imaginação

individuais da paixão e do amor. Poesia tornou-se sinônimo de autoexpressão”.

Apesar de Herculano não demonstrar um ar mais melancólico e sentimental (sua

poesia era mais refletida do que sentida), em Eurico, o presbítero, o

enunciador/protagonista apresenta traços temáticos do lirismo romântico, por

abdicar de sua amada ao entrar para a vida celibatária como presbítero.

A presença da crônica, em fragmentos que aparecem nas epígrafes, a

lenda, pela aparição de um cavaleiro que remete às histórias de novela de cavalaria,

a historiografia e o romance, que vamos explicitar mais adiante, também circularam

no período de publicação da obra, auge da estética romântica em Portugal.

Para Maingueneau, em Discurso literário (2012), os gêneros, em geral, estão

associados a um dado modo de vida, e contribuem para manter vínculos sociais,

manifestando-se em circunstâncias apropriadas. No Romantismo, o gênero romance

estava em evidência, pois nasceu concomitantemente à estética romântica, e trouxe,

em sua composição, os dramas coletivos de um povo e suas práticas sociais.

A escolha do gênero não é uma decisão exterior à criação, como explica

Maingueneau (idem), pois é preciso, mais do que definir terminologias, como

“Romantismo”, vinculá-las aos gêneros que elas englobam. No Romantismo,

permitiu-se, como estética literária, a denominação “romance” a gêneros mais

extensos. Apenas por isso já teríamos uma situação favorável que permitiria, de

forma mais geral, atribuir tal denominação à obra de Herculano.

A novela, que é resultante do folhetim, apresentava similaridades com o

romance; por essa razão, em alguns momentos, era difícil distingui-los, pois na

maioria das vezes apresentavam-se de forma híbrida. Apesar de suas pequenas

diferenças, a novela tinha por objetivo a distração do leitor em uma sucessão linear

de episódios ligados, e o romance aparecia como um prisma de vários planos

dramáticos. Não podemos falar em romance no período romântico, sem fazer uma

59

aliança com a novela. Se levarmos em consideração que a obra de Herculano fora

publicada primeiramente em folhetins, no jornal Panorama e na Revista Universal

Lisbonense, em 1843, e somente no ano seguinte é que foi publicada em volume,

poderemos considerá-la também como uma novela, sobretudo, pela divisão de suas

partes, no início de sua publicação.

A historiografia e os romances históricos tinham por objetivo tratar da

verdade histórica, e o historiador, por sua vez, dava um caráter pessoal à

interpretação dos fatos, baseando-se em documentos fidedignos.

Herculano foi, sem dúvida, um importante autor historicista de seu tempo,

pois se esforçou para reconstruir o passado de seu povo em narrativas, usando a

ficção e a imaginação, mas sem comprometer a verdade histórica. Eurico, o

presbítero é uma das obras que trouxe detalhes históricos condensados a dados

fictícios; segundo o autor, a obra não poderia ser vista como um romance histórico

pleno: “o verdadeiro romance histórico, temo-lo por impossível” (EP, p. 13). Mais

adiante, completa: “o romance histórico, como concebeu Walter Scott, só é possível

aquém do oitavo – talvez só aquém do décimo século”. Por fim, trata sua obra como

uma “crônica-poema”, como se evidenciasse sua dupla vocação: a de artista e a de

historiador.

A menção a Walter Scott, por Herculano, leva a pressupor que ele considera

o escritor escocês uma fonte profunda de conhecimento do romance histórico, uma

inspiração para ele, principalmente pela abordagem dos temas nacionalistas. Os

romances históricos de Walter Scott, como Ivanhoé (1819), tratam de assuntos

locais, mas também trazem conflitos e situações de caráter mais universal. A

sociedade descrita nas obras de Scott é vista em constante transformação, rumo ao

progresso, e, apesar de retomar os feitos do passado, expõe uma visão mais

otimista do que a que se apresenta nas obras de Herculano, que buscava refúgio no

passado para se esquivar dos problemas presentes. Scott, mais especificamente,

propunha a formação do futuro por meio do resgate das tradições do passado.

Para Lukács (2007), o romance histórico é uma narrativa de um

acontecimento da história de uma nação, que leva o leitor a perceber que se trata de

uma pré-história da atualidade, por fazer parte de sua formação. Herculano adequou

60

o modelo de romance histórico descrito por Lukács, pois, como deixou claro no

prólogo da obra, tal modelo não se encaixava no estilo de romance de Walter Scott,

o primeiro autor a escrever romance histórico. Herculano revela que preferiu seguir

um estilo próprio, de acordo com suas convicções e fiel à cultura do povo português,

que era diferente da do povo retratado por Scott.

Lukács (2011), ao analisar o romance histórico, tema que dá título a sua

obra, começou pelos textos de Walter Scott e averiguou que esse autor não era

somente romântico, já que seus romances traziam heróis medianos e prosaicos, fato

suficiente para distanciá-los das características do Romantismo. Mais

detalhadamente, Lukács (2011, p. 53) ponderou:

Os heróis scottianos têm, como personagens centrais do romance, uma função oposta. Sua tarefa é mediar os extremos cuja luta ocupa o romance e pela qual é expressa ficcionalmente uma grande crise da sociedade. Por meio da trama, que tem esse herói como ponto central, procura-se e encontra-se um solo neutro sobre o qual forças sociais opostas possam estabelecer uma relação humana entre si.

Por Scott tratar das crises e motivações sociais, trazer a concepção de um

herói do povo a partir do que os homens pensavam, e transformar isso em uma

realidade histórica, ele serviu de inspiração a muitos escritores. Nesse aspecto, ele

traz uma similaridade com os romances históricos escritos por Herculano.

Lukács (idem) observou a constância de alguns elementos que definem o

gênero romance histórico, entre eles: a época histórica resgatada, que serve como

um pano de fundo histórico para o romance; a presença de uma trama fictícia, com

personagens fictícios que se encaixam no pano de fundo e época reconstruída, e,

ainda, a presença de uma relação amorosa com final trágico (em poucos casos,

feliz). Esses elementos se fizeram presentes em EP, confirmando, portanto, a sua

identificação com o gênero romance histórico.

Em relação aos relatos de feitos dos povos, a crônica manifesta-se como um

gênero adequado para a propagação da história. A crônica da época de Herculano

já consistia numa narrativa de ações cotidianas, não diferindo muito das crônicas

que eram produzidas até o final do século XV.

Convém lembrar que, na Idade Média, a história nacional era retratada por

meio de crônicas, chamadas também de chronicons. Os chronicons mais remotos,

61

de acordo com Herculano (In História de Portugal, 1989), eram uma espécie de

resumo da história geral do país, representando a vida doméstica de forma singela e

pictórica. O cronista daquela época era quem alevantava dos túmulos os seus

cadáveres e dava-lhes de novo a vida por meio das histórias, mesmo porque a

realidade histórica era baseada nas crônicas históricas, de acordo com França

(1999).

De forma similar, fez Herculano ao resgatar personagens e acontecimentos

históricos em Eurico, o presbítero. Talvez, por essa razão, em alguns momentos,

referiu-se à sua obra apenas como uma crônica: “essa crônica de amarguras,

procurei-a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das nossas

transformações políticas” (EP, 2007, p.12).

Como se não bastassem todas essas denominações - crônica, poema,

romance histórico, novela - o autor ainda sugere que a obra seria também uma

lenda: “por isso, na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão

assinalar, dei cabida à crônica-poema, lenda ou o que quer que seja do presbítero

godo” (EP, 2007, p. 13). A lenda, por sua vez, era um dos gêneros, que, ao lado do

romance, inspirava a ficção, e estava associada às novelas de cavalaria medieval e

às histórias acerca do rei Arthur, que era uma figura lendária, assim como Eurico,

para seu povo.

Mediante tantas designações, pode haver dúvidas em relação ao gênero da

obra em questão, mas é certo afirmarmos que há uma combinação de poesia, pelo

subjetivismo e sentimentalismo acentuado de Herculano, ao trazer um personagem

que guarda para si um amor interminável e não concretizado; de crônica, pela

narração de fatos cotidianos ou de fatos que remetem ao passado histórico, e da

lenda, pela inclusão de elementos de caráter maravilhoso na narrativa de fatos

históricos.

62

Essa multiplicidade de gêneros é garantida pelo discurso constituinte3, que

nesse caso é o próprio discurso literário (conforme já explicitado), e pela pretensão

tipicamente romântica de transcender um gênero previamente codificado.

De acordo com Marcuschi (2002, p.19), os gêneros estão vinculados à vida

social e cultural, uma vez que

contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. (...) surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais.

São, portanto, responsáveis por organizar a comunicação entre os membros

de uma sociedade, tendo em vista que cada grupo social fará uso dos gêneros que

mais se adequarem a sua realidade. Por exemplo, se voltarmos à Idade Média,

notaremos uma ênfase nas canções, odes, elegias e poesias palacianas; já na Idade

Moderna os gêneros mais usados serão o romance, o conto e a crônica.

Partindo da premissa de que toda atividade discursiva se dará por meio de

algum gênero textual, todos os gêneros que produzimos, portanto, legitimarão o

nosso discurso.

Para Maingueneau (2012), aprendemos a moldar nosso discurso em formas

de gênero e, por esta razão, quando ouvimos um discurso alheio, já adivinhamos a

qual gênero se refere, por conhecer as características que lhe são inerentes.

Herculano, por exemplo, ao escrever Eurico, o presbítero, na certa tinha em

mente um público alvo, o qual saberia identificar o discurso histórico pelo gênero,

pelo estilo e pela construção composicional. Dirigia suas histórias, principalmente,

ao povo português, já que naquela época o objetivo era despertar o sentimento

patriótico no país, e, se a forma de demonstrar o seu nacionalismo era escrevendo

obras que tratassem ou realçassem a história portuguesa, um romance histórico

seria a melhor das opções.

De fato, Herculano escreveu obras genuinamente históricas, como História

de Portugal (em 4 volumes, 1846, 1847, 1850 e 1853) e História da origem e 3 Noção introduzida no artigo denominado L’analyse des discours, de 1995, de D. Maingueneau e F. Cossuta, e

que diz respeito aos discursos “que se propõem como discursos de origem, validados por uma cena de

enunciação que autoriza a si mesma.” (MAINGUENEAU, 2012, p. 60)

63

estabelecimento da inquisição em Portugal (1854-1859). Eurico, o presbítero, porém,

por trazer a concepção de um herói como representação do povo português,

mesclado aos registros históricos que eram apreciados pelo público na época do

romantismo, teve maior aceitação do que as obras puramente históricas de

Herculano. Os romances ensinavam história, mas de forma mais liberta do que os

documentos históricos propriamente ditos.

Segundo Adam & Heidmann (2011, p. 24), a variação do uso de gêneros

“caracteriza toda realização textual”, ou seja, para cada situação, os gêneros

cumprem suas funções comunicativas e se realizam ao atingir o leitor. Para o

período romântico, o romance foi perfeitamente aplicável por ser um gênero híbrido

e complexo, e, dessa forma, absorveu muito bem os outros gêneros que foram

vinculados à vida cultural e social de Portugal naquele momento,

consequentemente, realizando-se textualmente e estabelecendo uma comunicação

com o público leitor.

Ideia similar é discutida na obra de Maingueneau (2004), que recorreu às

concepções de “contrato”, “papel” e “jogo”, para explicar a participação ativa do leitor

no reconhecimento dos gêneros. Com o termo “contrato”, Maingueneau ressalta o

cooperativismo entre os parceiros da linguagem e as normas estabelecidas pelo

gênero do qual participam:

Todo gênero de discurso exige daqueles que dele participam que aceitem um certo número de regras mutuamente conhecidas e as sanções previstas para quem as transgredir. (...) É justamente porque o contrato de comunicação é fundador do ato de linguagem que ele inclui sua própria validação. (MAINGUENEAU, 2004, p.69)

Com o termo “papel”, o autor destaca a questão das interações sociais, ou

seja, dos parceiros que assumem determinadas posições no âmbito do discurso:

Falar de papel é insistir no fato de que cada gênero de discurso implica os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas determinações possíveis. (...) De um certo modo, nossa personalidade é tecida com os “papéis” em que atuamos. (Idem, p.70)

E por fim, com o termo “jogo”, Maingueneau (idem) enfatiza a dimensão

teatral, com a participação do leitor na identificação e aceitação de um determinado

gênero, conforme as regras preestabelecidas para este.

64

Falar de jogo é, de alguma forma, cruzar as metáforas do contrato com as do teatro, enfatizando simultaneamente as regras implicadas na participação em um gênero de discurso e sua dimensão teatral. Como um jogo, um gênero implica um certo número de regras preestabelecidas mutuamente conhecidas e cuja transgressão põe um participante “fora do jogo” (...) as regras do discurso possuem zonas de variação, os gêneros podem se transformar. (Ibidem)

Maingueneau utilizou essas metáforas emprestadas dos domínios jurídico

(contrato), lúdico (jogo) e teatral (papel), para evidenciar a possibilidade de

adequação do leitor diante dos múltiplos gêneros que podem circular no seu meio

social.

O coenunciador, assim, aceitará o contrato discursivo proposto pelo

enunciador, que, por meio da mescla dos gêneros e das escolhas lexicais, transmite

a mensagem ao seu público leitor. O coenunciador só conseguirá atribuir um sentido

para o texto, se durante a leitura forem ativados certos valores que fazem parte de

sua realidade, caso contrário não ocorrerá um estímulo para a leitura, menos ainda

uma identificação com a obra.

Sobre a ativação de certos valores do leitor, temos em Iser (1999, p.25)

também algumas considerações relevantes, como:

o estímulo textual ativa a consciência do leitor, pela qual o contexto memorizado aparece como horizonte, a configuração de sentido daí emergente se relaciona com o momento agora despertado daquela perspectiva textual, em que o ponto de vista em movimento se encontra nesse instante.

Se houver, portanto, uma identificação do leitor com o texto lido, o sentido

será construído pela interação dinâmica entre ele e o texto; ao contrário, não será

configurado o sentido do texto.

Alexandre Herculano escreveu, portanto, um conteúdo baseado em

documentos fidedignos, e usou os fatos históricos para estimular a percepção leitora

do seu público, bem como a diversidade de gêneros textuais, contemplando, assim,

em sua proposta a complexidade do Romantismo que favoreceu tanto o hibridismo

dos gêneros, quanto a utilização de um tempo mítico e um tempo histórico,

dicotomias que evidenciaram um autor ao mesmo tempo artista e historiador.

65

CAPÍTULO 3 – OS SUJEITOS REVELADOS EM EURICO, O

PRESBÍTERO

3.1 A presença árabe na Península Ibérica: uma influência linguística,

cultural, e social em Eurico, o presbítero

Sabe-se que os árabes tiveram um importante papel na construção identitária

da Espanha e de Portugal, pois contribuíram de forma significativa para a cultura e

os avanços científicos daquelas regiões. Alexandre Herculano mostrou em suas

obras essa presença marcante dos árabes, mesmo que de forma negativa, por

exemplo, em O alcaide de Santarém, uma das histórias que compõem sua obra

Lendas e Narrativas. Há ali uma descrição pejorativa dos árabes (2000, p. 4):

A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos sumptuosos, do cativeiro e da imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.

Mas, apesar de atribuição do título pejorativo de “raça vagabunda” a eles,

Herculano não deixou de incorporar em seu vocabulário palavras da língua árabe.

Essas palavras são encontradas tanto em Eurico, o presbítero, como no próprio

Alcaide de Santarém e ainda em outras lendas de Herculano, que contêm detalhes

históricos.

Os árabes ocuparam a Península Ibérica após o ano de 711, durante a

expansão do islamismo. A região dominada pelos árabes muçulmanos, inicialmente

denominada Al-Andalus, foi uma região muito próspera econômica e culturalmente.

Segundo Farinha (2009, p.114), que trata da presença dos árabes em Portugal, a

região tinha duas derivações linguísticas, uma língua de influência árabe e outra de

influência latina:

no Al-Andalus a população beneficiava-se do progresso material, a cultura espalhava-se em todos os domínios e a língua era a aravia ou os falares neolatinos. O árabe evoluía mesmo para um dialeto local, que os linguistas designam de Árabe-hispânico.

Isso quer dizer que naquela época ainda não havia um falar português ou

espanhol definido, mas sim indícios do que viriam a ser esses idiomas.

66

É certo que os árabes exerceram um importante papel na formação da

cultura portuguesa e espanhola, o que pode ser percebido até hoje nos monumentos

históricos e nos costumes dos dois países. Sua língua foi fonte de influência lexical

em ambas as nações.

Essa influência ocorreu em dois momentos: o primeiro, por meio da invasão

árabe na região da Península, e o segundo, após a expulsão dos árabes de

Portugal, em 1250, pela tentativa portuguesa de resgatar a fé cristã, dominando

regiões árabes como a cidade de Fez, em Marrocos, o que garantiu por mais algum

tempo as trocas linguísticas entre falantes da língua árabe e da portuguesa, tanto

que na língua marroquina também é possível perceber a influência de palavras de

origem portuguesa.

Essa troca não se deu apenas durante os conflitos entre os povos, mas

também durante um período pacífico entre eles, quando a região da Península

estava sob domínio árabe.

Para Farinha (1999, p.119), o povoamento árabe durante vários séculos

revelou a capacidade de entendimento entre os povos, já que se verificou “um

enriquecimento mútuo de experiências na vida quotidiana e de produção de bens

materiais e culturais”.

Segundo Zaidan (2010, p.62), os árabes, como governantes, foram justos

com os habitantes das regiões que conquistaram. Eles “mantiveram seus bens, suas

leis canônicas, suas igrejas, além do direito de serem julgados por seus juízos

naturais”. Até então os povos das regiões Ibéricas eram dominados por

governadores visigodos semi-bárbaros (como os classifica Zaidan), que os tratavam

como escravos. Enquanto os árabes estiveram no poder, houve uma harmonia entre

os povos, e nesse ambiente amistoso, ainda de acordo com Zaidan, houve uma

influência maciça dos árabes na sociedade Ibérica.

Para Adoum (1992, p. 149), “os árabes foram a levedura de todas as nações

com as quais estiveram em contato e, quando o império árabe desapareceu, seus

conquistadores continuaram mantendo suas tradições e apresentando-se ao mundo

como continuadores de sua influência” . Isso quer dizer que os árabes foram

67

responsáveis pela transmissão e pela manutenção de grande parte de seus

conhecimentos aos povos conquistados.

Em Andaluzia, região que compreendia o Sul da Espanha, Leão, Castela,

Catalão, Aragão e Portugal, houve um grande enriquecimento industrial, com a

produção da seda, artigos de couro e porcelana, esse último por herança dos Persas

e Babilônicos.

Zaidan (2010) destaca que, além dessas atividades, os árabes foram

responsáveis pela confecção de espadas e escudos, artesanato de ouro, prata e

pedras preciosas. No que se refere à agricultura, os árabes levaram para a

Península Ibérica sementes e plantas de Damasco (Síria). Desenvolveram também o

comércio exterior, construindo grandes embarcações em que exportavam seus

produtos para diversos lugares, entre eles Alexandria, Damasco e Constantinopla.

Andaluzia foi sem dúvida um polo cultural árabe; o povo era amante da

música, arte e literatura, tanto que traduziu os livros dos músicos persas e gregos,

bem como diversas obras literárias.

Hoje em dia, a língua árabe é associada ao islamismo, por ser o Alcorão

todo escrito em árabe, e os seguidores ganharem espaço na mídia, porém não foi

sempre assim.

No período da invasão árabe na Península Ibérica, a língua árabe sofreu

uma mutação em razão da mistura entre os povos do deserto e os habitantes da

Península, o que resultou num árabe muito mais “profano” do que “sagrado”,

segundo Zaidan (2010, p.77). O autor afirma que

a Andaluzia foi terra onde a língua árabe e poesia conheceram uma mutação devido ao fato de que a mistura racial fora acompanhada por uma miscigenação linguística e cultural completa. Na península, a língua árabe perdeu a dimensão sagrada e fez “concessões” à vida cotidiana, ao profano. Assim nasceu uma literatura que amava descrever os encantos da natureza, os movimentos das estações do ano, em suma, um paisagismo lírico. Ao mesmo tempo surgiam gêneros musicais particulares chamados muwachach e zajal, dedicados ao delicado amor dos cortesãos, que dariam origem aos carjas portugueses e estariam na base das músicas dos trovadores do flamenco e do fado.

A língua árabe era, portanto, a língua do comércio, da arte, da literatura e

das convenções sociais, e, apesar de ter contribuído com alguns vocábulos

68

religiosos, teve mais destaque e divulgação por meio dos trabalhos científicos e

filosóficos.

A expulsão dos árabes da região peninsular se deu, segundo Zaidan (2010,

p. 77), de forma bárbara e impiedosa, movida por sentimentos fundamentalistas

religiosos. Em 1495, a rainha Izabela nomeou Francisco Ximenes de Cisneros,

cardeal da cidade de Granada, como encarregado de banir a língua árabe do reino.

Além de fazê-lo, o cardeal queimou mais de 1.300.000 livros árabes, obras que,

segundo Zaidan (2010, p. 106), “guardavam em suas páginas a mais brilhante

cultura universal da Idade Média”.

Os árabes foram de fato expulsos pela “Santa” Inquisição. Houve por essa

razão um grande atraso cultural na região, visto que muitas manufaturas foram

destruídas, muitos livros queimados, e a população foi impedida de se ocupar de

outras atividades que não fossem as religiosas.

Clemesha (2010), em um artigo publicado para o I simpósio de Arabistas da

UFRJ, afirma que tratar da história dos árabes como um tema à parte da história do

mundo é uma falha, visto que eles contribuíram para o avanço tecnológico das

civilizações, sobretudo a europeia, que até hoje detêm o título de nação modelo em

razão de suas descobertas e avanços históricos, entre eles, a renascença e o

surgimento dos principais sistemas econômicos que regem o mundo moderno:

capitalismo e socialismo.

Clemesha afirma ainda (idem, p.92) que “muito daquilo que vários

historiadores apresentam como resultado do desenvolvimento europeu existiu na

realidade como resultado do desenvolvimento autóctone de diferentes sociedades

em diferentes partes do mundo.” Entre essas sociedades encontram-se os árabes,

que, pelos conflitos constantes com o povo ibérico, foram obrigados a abdicar não

somente da região em que habitavam, mas também de uma participação social mais

ampla na história da civilização europeia.

Após a expulsão da Península Ibérica, os árabes começaram a emigrar para

outros países, e, na segunda metade do século XIX, ocorreu uma grande imigração

para o Brasil, com a permissão de D. Pedro II, que era admirador da língua e cultura

árabes. Nesse período especificamente houve também trocas culturais e linguísticas

69

entre os falantes da língua portuguesa e os falantes de língua árabe, de diferentes

nacionalidades: sírios, libaneses e palestinos.

Antes desse período houve, ainda, a tentativa de reconquista cristã dos

territórios “usurpados” pelos árabes no período peninsular. O povo português, agora

já consolidado como país, tentou construir em 1515 uma fortaleza em Mamora

(Marrocos), mas a princípio sua tentativa não fora bem sucedida, em razão da

localização que não favorecia a construção.

Mas os portugueses permaneceram firmes em seu objetivo, e as viagens ao

norte de Marrocos tornaram-se cada vez mais constantes. Nesse período de invasão

portuguesa ao Magrebe (conjunto de territórios de que fazem parte a Tunísia,

Argélia e Marrocos) a língua árabe passou a ser alvo de estudos de diversos

escritores, dentre eles, o de David de Melo Lopes, professor português, que

desenvolveu entre tantos trabalhos sobre a língua árabe, um, em especial:

Expansão da Língua Portuguesa no oriente nos Séculos XVI, XVII e XVIII 4, ao qual,

infelizmente, não tivemos ainda acesso.

Como decorrência das relações entre os árabes e os portugueses (antes,

visigodos), no dia a dia, diversas palavras de origem árabe foram incorporadas à

língua portuguesa (e às línguas que originaram o português), divididas em diversos

ramos, como o alimentício (almeirão, alfafa, alface, ameixa, almôndega, alcachofra,

arroz), o de aromas e fragrâncias (bálsamo, almíscar, alfazema, alecrim), o da área

das ciências (algarismo, álgebra, bússola), entre outros campos.

Outras tantas palavras aclimatadas no convívio entre árabes e portugueses

podem ser encontradas no artigo de Farinha (1999), classificadas como

toponímicas; entre elas, “Alcácer”, que significa “castelo”, “Alcântara”, que significa

“ponte”, e “Alcaria”, que é “aldeia”. Esses nomes de lugares permanecem até hoje; o

primeiro corresponde a uma vila no Marrocos Setentrional; o segundo nomeia uma

freguesia em Lisboa, e o terceiro corresponde a uma freguesia no distrito de Castelo

Branco, também em Portugal.

4 A Expansão da Língua Portuguesa no oriente nos Séculos XVI, XVII e XVIII, Barcelos: portucalense, 1936 (a 2ª edição é de

1969, com notas de Luís de Matos).

70

Em Eurico, o presbítero, encontramos vários vocábulos árabes, já

aportuguesados e adaptados ao contexto sócio-histórico, associados principalmente

aos ramos político, toponímico, religioso, militar e aos nomes próprios dos líderes e

governantes de origem árabe.

Em diversos momentos da leitura da obra, deparamo-nos com palavras e

expressões árabes, algumas, por diversas vezes, repetidas. Os capítulos em que

mais aparecem essas palavras são aqueles em que há uma narrativa voltada ou

para os feitos árabes ou uma alusão a um de seus personagens, o que torna

evidente o quão amplo era o conhecimento de Herculano quanto à cultura do povo

“inimigo”.

Os significados de cada palavra encontrada podem ser conferidos nas obras

de Zaidan (2010), Nimer (2005) e nas próprias notas de rodapé, do próprio autor

(Herculano).

No capítulo VIII - O desembarque, quando o líder Tárique se pronuncia pela

primeira vez, é possível notar no seu enunciado algumas palavras e expressões de

origem árabe-islâmica, como:

1. “Alcorão” (p.54): que provém do árabe al-qur'ān, o livro sagrado da religião

islâmica;

2. “Maomé” (p.54): do árabe Muhammad, profeta do islam;

3. “Deus é grande” (p.54), que corresponde à expressão árabe Allahu akbar.

Ainda no mesmo capítulo surge a palavra “Váli” (p.55), do árabe Uali, que

se refere ao governador árabe, às vezes independente do rei ou califa. Nas notas do

autor (Herculano), registra-se a concepção de governador de província ou general

do exército.

Nos capítulos VI - Saudade e IX- Junto de Críssus, reconhecem-se muitos

nomes de lugares da antiga Espanha, alguns nomeados ou renomeados pelos

árabes, entre eles “Gibraltar” (p.65), que antes era conhecida como Calpe, mas

que, pela interferência do comandante Tárique, levou o seu nome, ficando a junção

71

de Gebal que em árabe é montanha e Tárique, o comandante, resultando

primeiramente em Gebaltariq e posteriormente Gibraltar.

No mesmo capítulo surge ainda a palavra “Almenara” (p.66), que, segundo o

próprio Herculano na nota de rodapé, significa farol ou fogueira noturna. Outra

palavra que será atribuída aos árabes é Aljeziras (p.41), que de acordo com

Herculano é o nome do lugar onde o general Tárique aportara ao sair de Ceuta para

conquistar a Espanha. É também conhecido como Ilha verde, tradução de Jazira

Alcadra.

No capítulo X-Traição, novamente ocorre a expressão “Allahu akbar” (p.72),

agora como grito de guerra dos árabes, seguida das palavras:

1. “Agarenos” (p.73), que é a denominação do povo descendente de Agar, serva

de Abraão, a qual teve um filho com ele, Ismael. Segundo a religião islâmica, Ismael

fez descender o profeta Mohammed;

2. “Maometano” (p. 73): forma pejorativa de designar o seguidor do islamismo;

3. “Muguite” (p.73), que corresponde ao Amir da cavalaria africana;

4. “Arrume” (p.74), que era a designação dada pelos árabes a todo europeu cristão;

5. “Xeques” (p.77): do árabe sheikh, chefe religioso, chefe da tribo ou chefe do

latifúndio;

6. “Muçulmano” (p.77), que é a denominação correta do seguidor do islam.

O capítulo XI- Dies irae traz uma diversidade de vocábulos de ramos

variados, entre eles um título do exército, objetos diversos e nomes de lugares:

1. “Almogaures” (p.80): em árabe Almugawir, guerrilheiros, guerreiros valentes,

que praticam ataque suicida;

2. “Anafis” (p.80): segundo Herculano, trombetas árabes;

3. “Cimitarra” (p.81): espada árabe de lâmina curva proveniente da Índia;

72

4. “Iatribe” (p.82): cidade que corresponde à atual Medina, lugar sagrado para os

muçulmanos;

6. “Nenúfares” (p.81): do árabe Nainufar: planta aquática parecida com a vitória-

régia. Os antigos egípcios fizeram dela assunto de arte;

7. “Ibliz” (p.82): em árabe Iblis, aparece também no alcorão como Shaitan

(Satanás), ele é chefe dos espíritos malignos;

8. “Açude” (p. 82): em árabe, As-sudd, represa de água. Os árabes foram os

primeiros povos que construíram os açudes no Iêmen;

9. “Arraial” (p.85), para Nimer (2005), do árabe alhillah, corresponde à multidão

acampada.

No capítulo XII – O mosteiro, descreve-se em detalhes o mosteiro da Virgem

Dolorosa, lugar em que Hermengarda fora acolhida pela monja Cremilde, e que

posteriormente foi invadido pelos árabes. Nesse capítulo surge o personagem

Abdulaziz, filho do Amir da África, e relacionado a ele o vocábulo “Califa” (p.94), do

árabe Khalifa, que se refere ao sucessor do profeta Maomé (Mohammed), além da

expressão “Harém do oriente” (p.96).

A palavra “harém” tornou-se famosa na língua portuguesa como a parte da

casa onde ficam as esposas do muçulmano. Em árabe, a expressão é Haram-beit El

harim; beit é “casa” e harim, mulheres ou “casa de mulheres”. A palavra harim vem

do haram, que significa proibido; assim torna-se proibido que um estranho entre na

casa das harim.

Logo que os árabes invadiram o mosteiro, Cremilde tentou o suicídio, mas

vacilou, o que a fez receber um golpe desferido na garganta com o “Alfanje” de

Abdulaziz (p.103), palavra que vem do árabe Al-khandjar, espada curva, curta,

conhecida no oriente como espada do povo curdo.

As outras freiras imitaram o gesto de Cremilde, para assim evitarem o

estupro pelos árabes. Hermengarda não tentara o suicídio, mas fora raptada por

Abdulaziz, que proferiu as seguintes palavras aos seus guerreiros: “Filhos valentes

do Açudane, conduzi-a (Hermengarda) à minha tenda. As outras, que as asas do

73

anjo Azrael se estendam sobre seus cadáveres”(p.104). “Azrael” também é uma

palavra de origem árabe e se refere ao anjo da morte, Ezrail, citado no Alcorão.

O capítulo XIV- A noite do Amir é talvez o momento em que mais aparecem

vocábulos de origem árabe, já que aqui há uma descrição de um espaço físico e de

diálogos entre personagens árabes. Encontramos diversos vocábulos que

apareceram anteriormente e outros novos que ajudaram a construir esse capítulo.

Dentre essas palavras, destacamos:

1. “Atalaias noturnos” (p. 118): do árabe At-Talia, significa sentinela dos postos

avançados em época de guerra;

2. “Almadraque” (p.120): do árabe Al-matrah, significa almofadão cheio de palha

grossa;

3. “Alcatifa” (p.120): do árabe Al-katifa, tapete grande, alfombra, tudo que cobre ou

se estende com tapete;

4. “Abdalá” (p.120) do árabe Abdallah, que significa servo de Deus, no enredo,

porém, é um dos xeiques;

5. “Alfaqui” (p.121): do árabe Al-faqih, que significa sábio ou teólogo muçulmano.

Para Herculano, é o título que os africanos dão aos seus sacerdotes e sábios da lei;

6. “Andaluz” (p.121): segundo o próprio Herculano (2007, p.121), “os árabes

conheciam a Espanha, antes da conquista, pelo nome de Andalôs ou Andalúz, nome

que, depois, aplicaram em especial ao território entre Guadalquivir e Guadiana, isto

é, à moderna Andaluzia”;

7. “Cavaleiros do Garbe” (p. 121): expressão que corresponde ao Al-gharb, ou

seja, ocidente. Segundo Herculano, as quatro divisões da Espanha; segundo a

geografia árabe, eram: Algarb, o ocidente; Axarque, o oriente; Alquibia, o meio-dia;

Alfuje, o norte;

8. “Almogrebe” (p.121): Mauritânia (Al- Moghreb), país da região do Saara;

9. “Iça” (p. 124): no árabe Isa, é Jesus, o mesmo da fé cristã;

74

10. “Alcaides” (p.124), do árabe Al-caída: alicerce de obras gigantes como

edifícios, torres etc. Significa igualmente comandante e chefe de exército.

Essas são algumas das palavras de origem árabe que se encontram no

interior dos capítulos de Eurico, o presbítero. Elas colaboram para constatarmos o

amplo conhecimento histórico e linguístico de Alexandre Herculano, que de certa

forma criam uma imagem de um autor que se preocupa com os detalhes históricos,

mesmo porque ele não poupou detalhes na descrição das batalhas entre visigodos e

árabes.

O importante papel dos árabes não foi menosprezado pelo autor, que, de

qualquer modo, deixou claro que o “povo do deserto” legou uma rica herança cultural

e linguística aos visigodos, que posteriormente afetou as culturas espanhola e

portuguesa.

Se Herculano teve acesso a todas essas palavras, foi porque em algum

momento fizeram parte do vocabulário português; algumas de fato caíram em

desuso, mas outras compõem os dicionários de língua portuguesa, entre eles o

Houaiss (2009), até os dias atuais.

Manifesta-se, assim, uma temática histórica e também uma presença

marcante de vocábulos que fazem referência ao universo cultural árabe daquela

época. Por essa escolha temática e pela inclusão de palavras árabes, entre outros

recursos utilizados para dar veracidade às suas obras, Herculano ficou conhecido

pelo seu público como um autor historiador e romântico.

3.1.1 As palavras árabes na constituição do discurso histórico-literário em

Eurico, o presbítero

Os árabes são tratados na literatura portuguesa, de forma geral, como

inimigos da cruz, opressores e invasores. O mito que gira em torno desse povo faz

até referência a entidades demoníacas, como já expusemos, mas até que ponto

podemos considerar o povo árabe como opressor e inimigo dos cristãos?

A Península Ibérica, antes da presença árabe, já presenciava um Império

godo decadente. Os árabes, na realidade, enriqueceram a região e tornaram-na

75

próspera por muito tempo, exatamente o período em que permaneceram nela, ou

seja, quase oito séculos.

Assim como há uma lenda em torno de Eurico e o cavaleiro negro, no plano

fictício, há também uma lenda em torno dos árabes. Alguns historiadores, segundo

Parafita (2005), em sua tese de doutoramento, questionam a natureza da invasão

dos árabes, considerando-a mais como uma expansão pacífica, cultural e religiosa

do que uma jornada opressora e bélica como a que aparece na obra de Herculano.

A ideia é que os árabes trouxeram mais benefícios do que malefícios.

Dentre os árabes da região da Andaluzia, destacaram-se poetas, como Ibn

Khafaja, Ibn Khaldown, considerado o fundador do ensino de sociologia, Averróis II,

jurista e autor de diversas obras sobre leis, Abu Wahb Bin Abdalla Al Hubaibi,

cientista e astrônomo, entre outros especialistas citados na obra de Zaidan (2010) .

Em contato com outros povos, os árabes aprenderam e repassaram

conhecimentos em diversas áreas. Entre esses conhecimentos estão as palavras,

que contribuíram posteriormente para a formação do léxico da língua portuguesa.

Do ponto de vista semântico, essas palavras emprestadas do árabe

provavelmente passaram pelo processo de implicatura, termo cunhado por Paul

Grice e retomado por Rodolfo Ilari (1999), em que os vocábulos ou expressões, em

determinadas situações, podem assumir o significado literal ou um outro sentido, de

acordo com o contexto conversacional em que elas estão inseridas, considerando o

máximo possível de variáveis presentes.

Por exemplo, a palavra “álgebra” (do árabe Al-jabra), que tem, como

significado inicial, a redução ou arranjo das partes luxadas, destroncadas ou

quebradas do corpo humano, ou literalmente: "a arte de reunir ossos quebrados ou

deslocados". Tanto é verdade que na Espanha chamava-se de algebrista o

cirurgião-barbeiro especializado em remendar ossos quebrados. E somente depois

da publicação do livro Al-jabr w'al muqabalah, no ano 825, pelo matemático Al

Khwarizmi (cujo nome nos deu o vocábulo "algarismo"), é que “álgebra” começou a

ter um novo significado nas línguas que se apoderaram desse termo, ficando seu

significado atual como: parte da matemática que estuda as leis e processos formais

de operações com entidades abstratas. Redução de cálculos matemáticos e

76

fórmulas simples e práticas, empregando letras do alfabeto em lugar de números.

(NIMER, 2005, p. 346)

Se adotarmos um ponto de vista mais discursivo, podemos retomar a

concepção de Bakhtin (2003, p.368), no que diz respeito ao diálogo entre culturas:

O encontro dialógico de duas culturas não lhes acarreta a fusão, a confusão; cada uma delas conserva sua própria unidade e sua totalidade aberta, mas se enriquecem mutuamente.

Um sentido revela-se em sua profundidade ao encontrar e tocar outro sentido, um sentido alheio; estabelece-se entre eles como que um diálogo que supera o caráter fechado e unívoco, inerente ao sentido e à cultura considerada isoladamente.

Podemos, assim, deduzir que tanto o árabe quanto o português, ou a língua

gótica (se pensarmos que na época de Eurico ainda não existia uma língua

portuguesa), foram enriquecidos cultural e linguisticamente em virtude das

interações sociais, e que o significado de cada palavra aclimatada foi resultado das

relações dialógicas entre os interlocutores, que durante a transposição dessas

palavras mantiveram ou ocasionaram uma nova configuração semântica para elas,

durante a situação interacional.

Em EP, a presença das palavras de origem árabe pode ser encarada como

resultante da relação dialógica entre os povos godos e árabes, no contexto histórico

retratado na obra.

Retomando Pêcheux e a definição de memória discursiva, que permite a

construção de sentido pelas palavras, podemos dizer que em Eurico, o presbítero,

ocorre uma legitimação dos discursos histórico e literário, pelas escolhas lexicais, já

que palavras, como as selecionadas e apresentadas acima, mostram, em primeiro

lugar, indícios da cultura árabe presentes no período medieval, o que aponta para

uma herança histórica resgatada. Em segundo lugar, pela construção de sujeitos

enunciadores que se mostram como tipicamente românticos, por revelarem

ideologias que combinam com a estética literária do romantismo português.

Há, em EP, um diálogo entre língua e sociedade, já que as escolhas

linguísticas possíveis para esse contexto serão responsáveis pela representação de

uma memória social.

77

O romance, conforme já afirmamos, abre-se para a presença de vários

outros gêneros, mas não é somente essa a sua relevância, ele comporta vários

discursos ao mesmo tempo, como podemos conferir em EP: o discurso religioso

cristão, proferido pelo personagem Eurico, seus aliados e até mesmo pelo sujeito

empírico; o discurso religioso islâmico, proferido pelos personagens árabes, e um

discurso histórico, proferido em vários momentos pelos personagens godos e

árabes.

A tabela abaixo mostra algumas palavras e expressões que aparecem na

obra e que legitimam os discursos referidos, permitidos pelo gênero híbrido

romance.

Discurso religioso/islâmico Discurso religioso/cristão Discurso histórico

Alcorão”, “Maomé”, “Deus é

grande”, “Agarenos”,

“Xeque”, “Iatribe” e “Alá”

“Cristo”, “cruz”, “mártires”,

“céus”, “evangelho”,

“sacerdote” e “Deus”

“Gibraltar”, Aljeziras”,

“Andaluz” e “Al-gharb”

Esses discursos são garantidos, convém lembrar, pelo discurso constituinte

literário, e mostram os embates ideológicos presentes: discurso islâmico X discurso

cristão. Já as palavras da terceira coluna indicam os nomes de lugares que têm sua

origem na língua árabe, e que, além de serem históricos, confirmam a influência

desse povo sobre os godos naquela época.

Por meio da observação das palavras selecionadas podemos construir uma

imagem do ambiente em que ocorrem as ações da narrativa, bem como criar uma

imagem dos sujeitos nela envolvidos.

Por exemplo, pela escolha de palavras e expressões como “Alcorão”,

“Maomé” e “Deus é grande”, percebemos um ambiente religioso, já que são palavras

e expressões que remetem ao discurso muçulmano.

Em contraposição a essas palavras encontraremos outras que remeterão a

um discurso cristão, e que aparecerão de forma mais abrangente, no capítulo V – A

meditação, entre elas: “Cristo”, “cruz” e “evangelho”.

78

O título do capítulo já deixa indícios de que se trata de um momento de

conflitos ideológicos que serão constantes na obra. Eurico, como enunciador, deixa

claro, no decorrer dos capítulos, que é a favor do cristianismo e contra o islamismo,

já que os muçulmanos apresentam uma ameaça para a sua religião.

Com o emprego de palavras como “cimitarra”, “almogaures” e “anafis”, por

exemplo, cria-se uma imagem dos árabes como guerrilheiros mais bem preparados

para a guerra do que os godos, porque dispunham de uma espada de um gume

cortante, ágil e preciso, de uma infantaria ligeira e de uma trombeta potente para

anunciar com veemência o ataque.

Já nas referências aos godos, Eurico leva a entender que, apesar de

dispostos a enfrentar os árabes, temiam por suas vidas, revelando-se como pessoas

“imaculadas”, em relação à “vileza” dos árabes, conforme se comprova no trecho: “A

ansiedade era indizível. Demudadas as faces, olhávamos uns para os outros. Eles

(os godos) temiam por si; eu, pela sorte da Espanha” (EP, p. 53). Aqui surge a voz

de Eurico como abnegado e um representante da Espanha.

Em relação aos armamentos godos, narra-se que dispunham de armaduras

pesadas e machadinhas de dois gumes, conforme corrobora o trecho: “divisavam-se

muitos godos, pelas armaduras pesadas, pelos largos ferros dos franquisques e

pelas estringes mais curtas que as amplas vestiduras dos filhos do oriente” (EP,

p.53).

As palavras árabes, selecionadas e empregadas na situação discursiva da

obra, contribuem para a caracterização tanto do discurso literário quanto do discurso

histórico, o primeiro como discurso constituinte e validador do segundo, o discurso

histórico.

Quanto à apropriação de palavras pertencentes a outra língua, podemos

recorrer à seguinte reflexão de Maingueneau (2012, p.181):

A contestação do preconceito segundo o qual o escritor, por sua obra, pertence plenamente à sua língua materna requer que tomemos distância das representações impostas pela estética romântica, preocupada em afirmar o pertencimento orgânico das obras a uma língua. Em vez de viver sua língua em termos imediatos, o escritor teria o destino de se reapropriar dela mediante o trabalho criador. Não obstante, em muitas outras configurações da literatura, o escritor não fabrica seu estilo a partir de sua

79

língua, mas antes impõe a si, quando deseja produzir literatura, uma língua e códigos coletivos apropriados a gêneros de texto determinados. [Grifos do autor.]

Assim, as palavras árabes que aparecerão em Eurico, o presbítero, serão

como esses “códigos coletivos apropriados a gêneros de texto determinados”. Tais

“códigos” propiciam a interação de línguas que se farão presentes no texto literário e

que Maingueneau (2012, p. 182) denomina interlíngua:

relações que entretêm, numa dada conjuntura, as variedades da mesma língua, mas também entre essa língua e as outras, passadas ou contemporâneas. É a partir do jogo dessa heteroglossia profunda, dessa forma de “dialogismo” (Bakhtin), que se pode instituir uma obra.

Essa gestão da interlíngua permite ao escritor negociar, segundo

Maingueneau (2012, p.182), um “código de linguagem que lhe é próprio”. No caso

de Eurico, o presbítero, a utilização de algumas palavras da língua árabe para

construir o discurso do inimigo, bem como a apropriação da língua portuguesa para

enfatizar os atos do povo godo (mesmo que essa língua não se fizesse presente na

Idade Média), são as formas encontradas por Herculano para expressar o que

pretendia; são, na verdade, recursos que funcionam como força argumentativa para

compor o campo semântico de cada universo discursivo e também para reafirmar o

ethos de historiador.

Por meio dessas escolhas, o autor parece romper com a homogeneidade

linguística e atestar sua própria língua materna, de certa forma, mostrando que,

apesar da invasão e domínio árabe na Península Ibérica e da supremacia sobre os

godos, foi a língua portuguesa que prevaleceu entre os portugueses.

3.2 Godos X árabes: sujeitos e ideologias reveladas

Ducrot (1987) aponta três funções distintas do sujeito no enunciado, quanto

a sua posição de produção: a de um sujeito empírico, que é o autor do que é

produzido, exterior a todo ato de linguagem; a de um locutor, que aparece em

primeira pessoa e é responsável pelo seu enunciado, e por fim um enunciador, que

está na origem e determina os pontos de vista que o locutor apresenta. No que

tange à posição de recepção do discurso, seguindo a mesma linha de Ducrot,

temos, respectivamente, o leitor, o interlocutor e o coenunciador.

80

Charaudeau (2008), por sua vez, propõe distinguir um sujeito comunicante,

de um sujeito interpretante, no nível situacional, e um sujeito enunciador, de um

sujeito destinatário, no nível discursivo.

Apesar de ser uma pesquisa mais atual do ato de linguagem, para nossos

objetivos de análise não cabem as denominações de Charaudeau, pois não

contemplam as múltiplas vozes presentes na obra, já que especificam apenas dois

parceiros do discurso e não as sobreposições de vozes que encontramos em Eurico,

o presbítero.

É fato que todo sujeito é polifônico, por carregar consigo vários discursos e,

portanto, várias vozes e possibilidades enunciativas. Charaudeau & Maingueneau

(2008, p.458) reiteram essa ideia, ao asseverarem que o sujeito

é dividido, pois carrega consigo vários tipos de saberes, dos quais uns são conscientes, outros não-conscientes, outros ainda, inconscientes. Enfim, ele se desdobra na medida em que é levado a desempenhar alternativamente dois papéis de bases diferentes: papel de sujeito que produz um ato de linguagem e o coloca em cena, imaginando como poderia ser a reação de seu interlocutor, e papel de sujeito que recebe e deve interpretar um ato de linguagem em função do que ele pensa a respeito do sujeito que produziu esse ato.

Em Eurico, o presbítero, instituem-se vários sujeitos, e todos eles deixarão

explícitas as suas formações ideológicas (conforme comprova a tabela acima

exposta sobre os discursos), ou os seus saberes, de forma consciente, de maneira

que construirão uma imagem de si para o outro por meio de seus discursos.

Para a análise do corpus selecionado, portanto, optamos pelos conceitos de

sujeitos definidos por Ducrot, por contemplarem de forma mais precisa as

sobreposições dos sujeitos que se manifestam na obra de Herculano.

As sobreposições se dão em Eurico, o presbítero, na medida em que

encontramos um sujeito explicitamente clivado, multifacetado. A noção de sujeito

clivado é tomada, por exemplo, por Mussalim (p. 2004), que considera o surgimento

desse conceito como consequência da descoberta dos estudos sobre o inconsciente

de Freud, para quem o sujeito é um ser dividido entre o consciente e o inconsciente.

O inconsciente para Mussalim “é o lugar desconhecido, estranho, de onde emana o

discurso do pai, da família, da lei, enfim do Outro e em relação ao qual o sujeito se

define, ganha identidade” (Idem, p. 107)

81

A noção de sujeito clivado cabe bem na obra de Alexandre Herculano, que

se confunde com o sujeito responsável pela enunciação (enunciador). No prólogo

(do autor) ele se refere à escrita da obra e sua fonte histórica:

Essa crônica de amarguras, procurei-a já pelos mosteiros quando eles desabavam no meio das transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lájeas que cobriam os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei-as mudas. (EP, p.12)

Da ideia do celibato religioso, das suas consequências forçosas e dos raros vestígios que destas achei nas tradições monásticas nasceu o presente livro. (EP, p.12)

Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua forma primitiva? É o de – só e triste (EP, p.13)

Até aqui, portanto, encontra-se um enunciador que, estabelecendo uma

espécie de “contrato” com o coenunciador, refere-se a aspectos históricos que

envolvem a obra, expondo suas impressões sobre a decadência religiosa e o

celibato e mais adiante, no capítulo I – Os visigodos, em que efetivamente

começa a narrativa, temos a sensação de que esse sujeito se confunde com um

sujeito empírico:

O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos bandos civis, prostituído às paixões dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras de seus avós (...)

(...) Tal era, em resumo, o estado político e moral da Espanha na época em que aconteceram os sucessos que vamos narrar (EP, p.19-20).

Como já sabemos pelo prólogo, o sujeito que ganha “voz” acredita que a

sociedade era decadente na época dos acontecimentos da narrativa. Sugere-se no

trecho acima, portanto, que essa voz que enuncia seja também a voz do autor, ou

seja, de um sujeito empírico que transcende o plano ficcional e não apenas um

sujeito enunciador que figurará numa cena enunciativa.

A mistura das vozes desses sujeitos pode ser compreendida pela intenção

de Herculano de estabelecer-se como historiador, já que ele parece se preocupar

com a verossimilhança dos fatos históricos, e com as causas coletivas, tanto é

verdade, que em seu opúsculo de espírito político, A voz do profeta, o sujeito poético

aparece como um guia, quase como um profeta para seu povo, que tem por missão

82

orientar e revelar-lhes a verdade sobre o ideário político que emergia na época,

liderado por Passos Manuel, o Setembrismo.

O fragmento a seguir comprova o aspecto profético de um dos poemas: “O

espírito de Deus passou pelo meu espírito, e disse-me: ‘Vai, e faze ressoar nos

ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade’” (HERCULANO, 1993, p.49).

Nesse livro de poemas, Herculano não somente entretém seus leitores, mas oferece

uma utilidade social, ao criticar a corrupção que ocorria nesse partido de esquerda.

Como poeta, Herculano deixou aflorar seu lado crítico e engajado e como

romancista, o seu impulso sentimental, duas características que coexistirão em sua

obra de forma geral, tornando-a heterogênea.

Pela combinação de vozes presentes na obra de Herculano, temos uma

heterogeneidade mostrada não-marcada, pois de acordo com Authier-Revuz (apud

MUSSALIM, 2004, p.128), percebe-se a presença de um Outro “mostrada no espaço

do implícito, do sugerido, como nos casos do discurso indireto livre, da antífrase, da

ironia, da imitação, da alusão”.

Notamos, nos trechos acima destacados, a presença implícita de um sujeito

que se institui como autor, que se coloca como aquele que vai impulsionar ou

conduzir a narração da história, e não como aquele que já estaria na posição de

sujeito enunciador, responsável pela narrativa.

Nos capítulos I - Os Visigodos, II – O presbítero e III - O poeta, manifesta-se

um enunciador (E1) que se coloca como o sabedor dos fatos e conhecedor dos

sentimentos dos personagens que aparecerão ao longo da narrativa:

A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas, subjugara toda a Península Ibérica havia mais de um século (EP, p. 17).

As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinham nascido para os godos logo que, assentando o seu domínio nas Espanhas, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade. Nestes corações, onde reinavam afetos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o caráter tenaz dos povos do norte, a moral evangélica revestia esses afetos de uma poesia divina, e a civilização ornava-os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia. (EP, p. 19)

83

Por fim, vários locutores e interlocutores se manifestarão e revezarão seus

turnos em alguns momentos da obra.

Do capítulo IV- Recordações, até o capítulo VII- A visão, por exemplo, é o

próprio Eurico que enuncia, sendo, portanto, dentro da enunciação, o locutor, visto

que o enunciador (narrador) cede espaço para que esse personagem expresse seus

pensamentos em primeira pessoa, em forma de diários confessionais, mais uma vez,

portanto, comprovando-se o aspecto híbrido do gênero romance.

No capítulo VII - O desembarque, surge um outro sujeito, um interlocutor

(E2), que se manifesta através de uma carta ao seu amigo de Eurico. Esse sujeito é

o duque Teodomiro, que também é responsável por parte da enunciação do

capítulo. Ora se lê a carta de Eurico, que pede ajuda ao seu amigo, e relata detalhes

da iminente invasão árabe, ora se lê a carta de Teodomiro, que responde às

angústias de Eurico.

Por essa troca de turnos entre os interlocutores e outros personagens que

assumirão essa posição, ocorre, nesse capítulo VII, uma heterogeneidade mostrada

e marcada no discurso, visto que identificamos diversas vozes administradas por

uma principal, a de Eurico (E1). Ele cede lugar também à voz de Juliano (E3),

visigodo que se aliou ao exército árabe e ainda a Tárique (E4), líder do exército

árabe, por meio de travessões, caracterizando o discurso direto. Ao permitir que

Juliano e Tárique enunciem, Eurico muda de função, tornando-se, portanto, um

coenunciador, condição que também caberá aos outros enunciadores.

A partir do capítulo IX- Junto de Críssus, o enunciador retoma a palavra,

cedendo em alguns momentos a voz para os diversos locutores que aparecem,

como a freira (E5), que teve seu convento invadido pelos árabes, Hermengarda (E6),

que trava uma conversa com Eurico e com o amir (E7) que a sequestra, e ainda

Pelágio (E8 - irmão de Hermengarda) e seus guerreiros que também conversam

com Eurico. Ou seja, em vários momentos, o enunciador principal (E1) permitirá que

outras vozes se sobressaiam, mas sempre vinculadas ao seu ponto de vista, já que

a partir do capítulo IX será ele o responsável pela narrativa dos fatos que se

sucederão.

84

No capítulo XIV – A noite do Amir, podemos conferir o momento do diálogo

entre Abdulaziz, o amir, com Hermengarda, que fora sequestrada por ele:

- Dize tudo – interrompeu o Amir, apertando com força o braço da cativa e fitando nela os olhos onde lutavam amor profundo e cólera violenta: - exala em injúrias a tua dor orgulhosa: sê, até, amas um godo e que ele fora capaz de te vir roubar da minha tenda.

- Aquele que eu cria viesse em meu socorro – tornou com voz firme a cativa - não se esconderá de ti no dia em que estiverem em volta dele todos os seus irmãos em esforço e amor da terra natal; porque nesse dia de grandes vinganças vê-lo-ás face a face. (EP, p. 123)

Hermengarda diz ao amir que Eurico vai salvá-la, e mais, afirma que ele se

vingará dos árabes pela invasão na sua terra natal. Esses diálogos mostram que o

enunciador (narrador) cede a voz para dois interlocutores que sustentam seus

próprios discursos.

Além desses sujeitos, outras vozes se manifestam, mas também atreladas

ao enunciador principal (E1). Essas vozes apresentam-se em forma de epígrafes, no

começo de cada capítulo, proporcionando uma relação intertextual e paratextual

com gêneros diversos.

Herculano selecionou trechos de documentos de concílios, cronicões, livros

litúrgicos da comunidade visigótica e hispânica, hinos e trechos dos livros de

personalidades religiosas e poemas, todos de alguma forma conectados ao enredo

do livro e ao aspecto histórico e real dos fatos narrados. Com a escolha dessas

epígrafes, e por meio do enunciador principal, Herculano acaba construindo uma

imagem de si, como um sujeito conhecedor de detalhes minuciosos da história e de

diversos documentos e gêneros textuais de sua época, fatos que se justificam,

talvez, por sua formação.

A essa altura, convém lembrar que Alexandre Herculano de Carvalho e

Araujo (1810-1877) nasceu em Lisboa, Portugal, e até seus 15 anos estudou em

colégio de padres, onde recebeu uma formação clássica. Estudou também latim,

retórica e lógica no Palácio das Necessidades e matemática na Academia da

Marinha Real, ambos em Lisboa; em 1830, fez o curso de Paleografia (estudo de

manuscritos antigos e medievais) na Torre do Tombo.

85

Alguns anos depois, devido à situação política de Portugal, exilou-se na

França. No ano seguinte, foi para o Açores, como soldado liberal. Em 1833, já em

Portugal, após desembarcar com o exército da liberdade, e depois da deposta de D.

Miguel, trabalhou na Biblioteca Municipal do Porto como segundo-bibliotecário, e

passou muito tempo estudando teorias filosóficas da arte e literatura, e, nesse

ínterim, escreveu alguns poemas.

Depois de alguns anos, associou-se ao jornal Panorama, e lá permaneceu

até 1844. Nesse período, escreveu várias obras de ficção e ganhou fama como

historiador. Nessa mesma época, intensifica suas ações em prol das ideias liberais.

Em 1842, começou a publicar Eurico, o presbítero em folhetins e somente em 1844

publica a sua obra em volume.

Esses dados comprovam a educação religiosa, cultural e histórica de

Herculano, que serão determinantes na produção de suas obras mais famosas.

Fica evidente, portanto, que a formação de Herculano contribuiu para a

construção de seu perfil como escritor, tornando-o conhecido principalmente pela

utilização de temas históricos em suas obras. Essas informações, unidas ao período

literário que vivenciou e ainda a seus ideais a favor do liberalismo, foram peças-

chave para a criação da imagem de um autor historicista que zelava pela veracidade

dos fatos históricos, mas que tinha muita criatividade para atrelá-los a elementos

ficcionais.

O lado histórico de Herculano torna-se evidente, não apenas em suas obras

históricas, mas também em seus opúsculos, compilados em dez volumes, e

compostos dos textos que se achavam dispersos nos vários jornais em que

Herculano colaborou. Entre esses opúsculos estão A voz do profeta, obra a que já

nos referimos, e várias cartas contidas nos volumes. Destacamos aqui alguns

trechos da Carta II, por conter detalhes relevantes que comprovam a inclinação

histórica, cristã e saudosista de Herculano.

Quando volvendo os olhos para os tempos remotos, indagamos a história de nossos antepassados e da terra em que nascemos, a primeira pergunta que nos ocorre para fazermos às tradições e monumentos é naturalmente a seguinte: onde, quando, e como nasceu este indivíduo moral chamado Nação? O berço da sociedade deve ser, com efeito, a primeira página da sua história.

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Tanto que o império visigodo desabou em ruínas ao embate violento do entusiasmo e perícia militar dos árabes, e a polícia e a civilização destes substituiu nas Espanhas a muito mais viciosa e incompleta civilização dos godos, a reação cristã europeia contra a violência maometana e asiático-africana começou imediatamente.

Durante mais de cinco séculos a Península foi um caos, e a sua história é um misto confuso e monstruoso de todas as virtudes e de todas as atrocidades. Entre os árabes, apesar da cultura intelectual, predominava a barbaria moral; as letras e as ciências, levadas a um alto grau de esplendor, não suavizaram jamais os costumes ferozes dos maometanos, porque a civilização moral nunca existiu na terra senão por benefício do Cristianismo.

(HERCULANO, opúsculos, 10 vols., Lisboa, Rio de Janeiro, Bertrand/Francisco Alves, s.d., t. V, 5ªed., p. 39-40, apud MOISÉS, 1974, p. 71-72)

O primeiro fragmento acima citado aponta para o desejo de um sujeito

(empírico) de resgatar as origens de seu povo, ao indagar onde, quando e como

eles nasceram. O segundo e o terceiro fragmento revelam um pouco de sua crença

na fé cristã ao proferir que a civilização moral só existiu na terra por causa do

Cristianismo, e mostra também que, para ele, a invasão árabe não apresentava

nenhum efeito positivo na sociedade, apesar da cultura intelectual que predominava

entre eles.

Os opúsculos de Herculano ocupam também um lugar de destaque na sua

obra, pois eles ajudam a inferir que o autor se posicionou perante diversos assuntos

de seu tempo, como a política, a cultura, a sociedade e a história de seu povo.

Posicionamentos que vão ajudar na construção de uma imagem que irá ao encontro

daquela construída em EP.

O personagem Eurico, apoiado nos valores de Herculano, vai construir ao

longo da obra, uma imagem de um sujeito saudosista, destemido, religioso e

apaixonado, que vai representar uma ideologia godo-cristã, conforme revelam

trechos da obra, como os que se seguem:

Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, por que sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos. E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado. (EP, p. 35)

Dir-to-ei, duque de Córduba: também eu não amo Roderico; porque a memória de Vítiza nunca morrerá no coração do seu antigo gardingo. Sei por quais meios Roderico subiu ao trono, que não obteria pela eleição dos godos. Mas não é a sua coroa que os filhos das Espanhas têm hoje que defender; é a liberdade da pátria; é a nossa crença; é o cemitério em que jazem os ossos dos nossos pais; é o templo da cruz, o lar doméstico, os

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filhos e as mulheres, os campos que nos sustentam e as árvores que nós plantamos. (EP, p.57)

Eurico estava disposto a afrontar o inimigo (os árabes e o traidor godo

Juliano) em nome de sua religião e em memória de seus antepassados. Ele deixa

explícito que não concorda com o governo atual de Roderico, que é sem moral e

corrompe o povo, porém, em nome do passado memorável dos godos, ele consente

que a melhor saída é enfrentar os seus opositores. Ele chega a colocar a liberdade

da pátria acima das discussões familiares que levaram à disputa da coroa.

Além de Eurico, outros sujeitos que enunciam constroem uma imagem de si

que combina com a ideologia de Eurico, entre eles, o duque Teodomiro, amigo de

Eurico e Pelágio, filho de Fávila. Ambos lutam em prol das Espanhas e mostram-se

a favor da religião de Cristo. O trecho abaixo confirma a ideologia dos companheiros

de Eurico. O fragmento é o discurso de Teodomiro quando este recebe uma carta de

Eurico com as novas sobre os árabes:

Hoje, tu despirás a estringe sacerdotal e cingirás de novo a deposta e esquecida espada. Em Córduba, onde se ajuntam já as tiufadias da Bética, Eurico achará bom número dos seus antigos guerreiros, e os mais ousados mancebos, que ora encetam a vida dos combates em defesa da pátria e da fé, aceitarão com júbilo para seu capitão o homem que deixou um nome que não morrerá enquanto durar a memória do desbarato dos vascônios e francos. (EP, p. 58)

Teodomiro é a favor da guerra contra os árabes e tem fé em seu amigo

Eurico como capitão dos exércitos dos visigodos.

Em contraposição, encontramos o discurso e a ideologia árabe-muçulmana,

que são reveladas por alguns personagens de origem árabe, entre eles o general do

exército árabe, Tárique, e o Amir Abdulaziz, que tenta seduzir Hermengarda.

Destacamos a seguir um trecho de um dos enunciados de Tárique e outro do Amir:

Váli dos cristão! Quem te fez crer que Tárique podia ser vencido? Vi em sonhos o profeta de Deus, que me disse: - “A Espanha curvar-se-á ao Alcorão” – e Maomé não mente! Ainda sem ti, eu ,e teria arrojado sobre o império godo, e a minha lança o faria cair a meus pés moribundo, quando Sebta me tivesse fechado as portas; quando todos vós os godos estivisséis unidos contra mim. Deus é grande, e Maomé, o seu profeta! (EP, p.54)

Alfaqui dos romanos – respondeu o Amir – a lei do profeta não consente que eu aceite a saudação que atravessou por lábios tintos no licor amaldiçoado por ele. (EP, p.121)

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O primeiro fragmento remete ao discurso religioso islâmico, proferido por

Tárique, enquanto planeja, junto com Juliano, o ataque à região do Calpe. O

segundo fragmento corresponde ao diálogo entre o bispo de Híspalis, Opas, e o

Amir, que utiliza a palavra “profeta” para se referir ao profeta do Islam, Mohammed.

Os discursos de Tárique e Abdulaziz revelam sujeitos religiosos, mas

impiedosos, pois um é arrogante com Juliano, e o outro sequestra Hermengarda

para satisfazer seus desejos carnais. Essa visão dos árabes como corruptos e

cruéis, reforça a construção da imagem do sujeito empírico, que por meio dos

discursos de seus personagens se constitui e revela suas crenças e ideologias.

Herculano, em muitas de suas obras, comprovou ser verdadeira a imagem

dos árabes como inimigos, incrédulos e amorais, e em EP, essa representação

também se fará presente. Enquanto os árabes têm um ethos construído como

pessoas ruins, os visigodos revelam um ethos de pessoas boas, religiosas e

salvadoras da pátria. Assim como planejou Herculano, enquanto escritor romântico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Charaudeau (2010) afirmou que os saberes inerentes do conhecimento e da

crença constroem-se no interior de um processo de representações. Essas

representações serão parte da verdade do que se quer dizer, pois dependerá do

imaginário de cada grupo social. O resgate das memórias coletivas do povo

português, por exemplo, tanto pelo autor, quanto pelo público leitor configura uma

possibilidade de ser real aquilo que está no plano discursivo literário, pois está

relacionado ao que Charadeau definiu como “acreditar ser verdadeiro”.

Na obra em questão, os guerreiros godos caíram e Eurico tomou força e foi

para cima dos árabes proferindo palavras dignas de um profeta, de um sábio e

talvez de um representante legítimo de Deus: “– As almas dos dois mártires sobem

neste momento ao céu: eles orarão ao Senhor para que salve a liberdade e a vida

de seus irmãos, que só querem uma e outra para combaterem pelos altares de

Cristo. (...) – avante!” (EP, p.140).

Essas palavras de Eurico remetem-nos a um discurso cristão, de um profeta

abençoando as almas dos mártires que serviram como redentores para os outros

companheiros que fugiram da batalha. O ato da redenção nos leva também à própria

figura de Cristo, que morre para livrar os pecados dos homens.

Outro fragmento que comprova o aspecto divinizado de Eurico diz: “Eurico

era como um anjo tutelar dos amargurados. (...) Servo ou homem livre, liberto ou

patrono, para ele todos eram filhos.” (EP, p. 26). Esse fragmento reforça que Eurico

estava num patamar acima de seus companheiros, pois os concebia como seus

protegidos, comprovando até o aspecto fraternal do cristianismo. Resgatamos aqui,

uma imagem ou memória coletiva que ajuda a compor o discurso religioso de Eurico.

São muitos, enfim, os momentos na obra de Herculano em que conseguimos

resgatar a memória do povo português, seja a memória religiosa, cultural ou

histórica, e assim, inferimos os valores incutidos nesse povo.

O autor teve formação clássica, conforme mencionamos, e transpôs seus

conhecimentos para a sua literatura. A literatura romântica resgatou os mitos

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cristãos e histórias medievais e a relação divino e humano, esta, porém, dada

através da natureza afável do homem. O homem, no romantismo chega a ser

divinizado por seu heroísmo e astúcia, e, dentre os mais corajosos surge um líder de

natureza divina, como se mostra Eurico.

Por meio de personagens nacionalistas (os visigodos), extremamente

impiedosos (os árabes) e de natureza divina, Herculano conseguiu construir um

universo ficcional baseado em histórias verídicas. Resgatou fatos do passado para

explicar o seu presente, tomando como referência o que ocorria em Portugal

naquele momento, e assim construiu um sentido para a sua obra. Le Goff explica tal

fenômeno:

Esta interação entre passado e presente é aquilo a que se chamou a função social do passado ou da história. Também Lucien Febvre [1949]: "A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história' (LE GOFF, 1949, p. 438).

Herculano selecionou, não por acaso, um determinado período histórico para

resgatar a memória de seu povo; escolheu, então, aquilo que fazia sentido naquele

momento. Portugal passava por uma crise identitária e um conflito fraternal, e o

período retratado em EP trazia o mesmo cenário, ou seja, Herculano adequou

aqueles fatos passados às suas necessidades atuais, que incluíam desde informar,

até criar um pensamento mais liberal nos portugueses.

Tomando como premissa que a realidade se encontra na confluência do eixo

da memória e no eixo da atualidade, temos no resgate do passado uma afirmação

do que vem a ser o presente e uma possível recriação da verdade.

A questão do gênero em EP, também se evidencia como um importante

recurso para a compreensão do presente, porque o artifício de Herculano, ao afirmar

que não sabia se sua obra era uma crônica, um poema, uma lenda ou um romance,

reforçou aquilo que estava na moda no período romântico: o hibridismo dos gêneros.

O romantismo extirpou a ideia de gêneros puros. Segundo Hugo (2002),

houve uma mistura de temas e dualidades nesse período, como o aparecimento do

grotesco e do sublime ao mesmo tempo, principalmente nas obras poéticas. Sendo

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assim, o único procedimento artístico que daria conta dessas questões duais era o

hibridismo dos gêneros.

Vale lembrar também que o período romântico era marcado por ideias mais

liberais, que, transferidas para o fazer literário, contribuíram para evitarem a

produção de obras com formas e estilos padronizados.

Vários discursos apoiados nas formações discursivas que permearam o

contexto sócio-histórico de Herculano são construídos ao longo de Eurico, o

presbítero. Como buscamos demonstrar, encontramos o discurso árabe-muçulmano,

que se evidencia pela escolha de palavras árabes como recurso para criar uma

atmosfera mais próxima da realidade. Além disso, encontramos o discurso cristão-

godo, o discurso histórico, o discurso romântico, e todos eles são amparados por um

discurso maior: o discurso constituinte, isto é, o discurso literário. Esse discurso se

constrói pela possibilidade ficcional que a obra proporciona de criar, de inserir, de

imaginar fatos como aconteceram ou como poderiam ter acontecido. Todos esses

discursos são responsáveis pela construção da imagem dos sujeitos que enunciam,

pois cada um deles traz um valor ideológico inserido em seus enunciados.

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