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1 Memorial às vítimas do Césio 137 Por: Hevlyn Celso Ao escrever o livro “Sobreviventes do Césio- 20 anos depois”, a jornalista goiana Carla Lacerda, 27 anos, não imaginava que seu trabalho receberia menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog, maior prêmio do jornalismo brasileiro. A tragédia retratada no livro aconteceu em Goiânia, Goiás, em 13 de setembro de 1987. Na época, dois rapazes encontraram um velho equipamento do Instituto Goiano de Radioterapia, e pensaram em vendê-lo para ganhar algum dinheiro. Ao desmontá-lo, encontraram um pó branco que no escuro se tornava brilhante e de cor azulada. Após 5 dias o equipamento foi vendido para um ferro-velho, e os donos do local ficaram fascinados com a descoberta, chamando algumas pessoas da família para ver o fenômeno. Ingenuamente, naquele momento, provocavam o pior acidente radioativo do Brasil. Somente duas semanas depois, descobriu-se que os doentes não tinham uma doença contagiosa, mas estavam com contaminação radioativa aguda. Um mês depois, o saldo era de 400 pessoas contaminadas e quatro mortos. Os 19 gramas de Césio originais geraram 13,4 toneladas de lixo atômico, enterrado no aterro sanitário especial de Abadia de Goiás. A entrevista aconteceu no dia da entrega do prêmio, 27 de outubro de 2008, em São Paulo, no Tuca, teatro da PUC, em um ambiente lotado e barulhento. Já a gravação, esta aconteceu num local bastante inusitado, mas silencioso: o banheiro feminino. O que a motivou a escrever o livro? Foi muito interessante todo o processo de produção. O editor queria uma série especial por conta dos 20 anos do acidente, me chamou e me deixou bastante livre Carla Lacerda Buffet após premiação Entrega dos prêmios Hevlyn Celso

Memorial às vítimas do césio 137

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Memorial às vítimas do Césio 137

Por: Hevlyn Celso

Ao escrever o livro “Sobreviventes do Césio- 20 anos depois”, a jornalista goiana Carla Lacerda, 27 anos, não imaginava que seu trabalho receberia menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog, maior prêmio do jornalismo brasileiro. A tragédia retratada no livro aconteceu em Goiânia, Goiás, em 13 de setembro de 1987. Na época, dois rapazes encontraram um velho equipamento do Instituto Goiano de Radioterapia, e pensaram em vendê-lo para ganhar algum dinheiro. Ao desmontá-lo, encontraram um pó branco que no escuro se tornava brilhante e de cor azulada. Após 5 dias o equipamento foi vendido para um ferro-velho, e os donos do local ficaram fascinados com a descoberta, chamando algumas pessoas da família para ver o fenômeno. Ingenuamente, naquele momento, provocavam o pior acidente radioativo do Brasil. Somente duas semanas depois, descobriu-se que os doentes não tinham uma doença contagiosa, mas estavam com contaminação radioativa aguda. Um mês depois, o saldo era de 400 pessoas contaminadas e quatro mortos. Os 19 gramas de Césio originais geraram 13,4 toneladas de lixo atômico, enterrado no aterro sanitário especial de Abadia de Goiás. A entrevista aconteceu no dia da entrega do prêmio, 27 de outubro de 2008, em São Paulo, no Tuca, teatro da PUC, em um ambiente lotado e barulhento. Já a gravação, esta aconteceu num local bastante inusitado, mas silencioso: o banheiro feminino.

O que a motivou a escrever o livro? Foi muito interessante todo o processo de produção. O editor queria uma série especial por conta dos 20 anos do acidente, me chamou e me deixou bastante livre

Carla Lacerda Buffet após premiação

Entrega dos prêmios

Hevlyn Celso

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para pesquisar, dar o enfoque e elaborar; meu primeiro passo foi procurar o presidente da Associação das Vítimas do césio, que é o tio da Leide das Neves. Ele me repassou todas as informações, me levou no local onde a bomba foi descoberta pelos catadores, que na verdade não eram catadores, e eu pedi para ele fazer comigo o caminho que a pedra fez, saindo de onde hoje é o Centro de Convenções de Goiânia e que era o antigo Instituto de Radioterapia de Goiânia e indo até a casa do Roberto, que foi um dos jovens que encontrou o equipamento. Como foi feita a pesquisa? Eu pedi para o Odesson, presidente da Associação das Vítimas todas as matérias que tinham saído nesses 20 anos. Ele tem um calhamaço de matérias, e,normalmente não empresta isso,mas ele confiou em mim, me emprestou, e eu fiquei dias lendo tudo o que tinha saído e pesquisando, e o que eu vi é que até hoje se fala muito sobre o Césio, as pesquisas científicas, mas as vítimas mesmo, estas nunca tiveram o papel principal e minha intenção foi relatar o que elas lembram desse acidente, como ficaram as marcas, quem eram essas pessoas, porque muitas delas morreram e muitos no país não sabem o que aconteceu, nem mesmo lá em Goiânia. Muitos jovens lá não sabem quem são essas pessoas e ainda tem a questão do preconceito, da discriminação. Precisamos esclarecer que a pessoa contaminada com o Césio não vai transmitir a radiação, que eles fizeram tratamento, enfim, desmistificar e poder mostrar isso para a nova geração. É o primeiro livro que fala sobre o Césio 137 na perspectiva das vítimas? Eu creio que na perspectiva das vítimas sim, no próprio ano de 87 saiu um livro feito por um jornalista do Correio Brasiliense que acompanhou e relatou tudo o que acontecia, tem um livro também do Fernando Gabeira, que tentou agora a prefeitura do Rio de Janeiro, mas eu creio que as vítimas sendo protagonistas, do jeito que eu fiz, cada capítulo sobre um personagem, e o relato dele, ainda não havia sido feito. A intenção foi realmente mostrar à sociedade quem são estas pessoas. Seu livro está na íntegra no site Literatura do Brasil (https://literaturadobrasil.websiteseguro.com). Disponibilizar um livro na Internet contribui na sua divulgação? Eu creio que ajuda sim, inclusive quando eu fui falar com o editor, ele me pediu autorização por escrito para colocar, e eu concordei, porque realmente ajuda a divulgar. É uma história que tem que ser compartilhada e nem todos podem ter acesso, pois o livro foi publicado por uma editora local, e quem tiver interesse tem que ligar e solicitar o livro, ele não está nas livrarias. Então é um meio que os estudantes podem usar como subsídio para suas pesquisas. Você sabe me dizer o número de vítimas desde o acidente até hoje? A Associação das Vítimas do Césio diz que são 1500, mas o Governo Federal e o Estadual reconhecem menos, cerca de 700 pessoas. Elas estão divididas em 3 grupos: grupo 1, 2 e 3. O grupo 1 são aqueles que tiveram contato com o material radioativo e tiveram lesões, o grupo 2 são vizinhos que foram irradiados pelo Césio e o grupo 3 seriam os bombeiros e policiais militares que foram chamados para tentar contornar e conter a situação, além do pessoal do CRISA, que demoliu as casas e

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levaram os rejeitos radioativos para Abadia de Goiás, que é onde eles estão desde o final de 1987. O que é o CRISA? Era o Consórcio Intermunicipal Rodoviário, é algo que não existe mais. Lá em Goiânia é como se fosse a AGETOP, Agência Goiana de Transporte; então eles eram os responsáveis por transportar esses rejeitos radioativos. Era um órgão do Governo Estadual, mas já foi extinto. Esses rejeitos foram para algum aterro especial, o que foi feito? Eles foram primeiro para um aterro provisório em Abadia de Goiás ,depois foi feito um aterro definitivo lá. Tudo isso não se passou sem controvérsias e polêmicas, porque ninguém da cidade queria deixar que os rejeitos radioativos fossem para lá, temiam que vazasse, contaminasse, mas segundo os físicos e cientistas da CENEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), que é um órgão federal lá em Abadia, não há risco de contaminação. Este aterro foi construído com sete barreiras, sob o solo. O ano passado houve um incêndio no local, o aterro está localizado no parque estadual, mas não chegou a atingir os rejeitos do Césio. Qual o maior desafio que você enfrentou ao entrevistar as vítimas? Eu acho que é a questão que a gente aprende na faculdade, da imparcialidade, objetividade. Você vê que na sua lida diária, isso realmente não existe. Você se solidariza sim, com o sofrimento daquelas pessoas e tenta relatar, se colocar no lugar delas, e eu acho que o mais triste de tudo isso é saber que essa história está esquecida, como eu disse, lá em Goiânia, não se fala nisso. As vítimas mesmo fazem essa reivindicação; quando chega setembro, que é o mês do acidente, elas recebem os remédios porque a mídia está lá entrevistando, analisando, quando chega dezembro, falta medicamento na Superintendência Leide das Neves, que foi criada pra dar assistência para eles, uma superintendência do governo estadual, diga-se de passagem, o governo federal eu creio que foi bastante omisso em tudo isso. Você sabe me dizer se após a tragédia em Goiânia foram criadas leis de descarte específicas para materiais radioativos? Que eu saiba até o momento não. Conversei com físicos, professores universitários de Brasília e do Rio de Janeiro durante a apuração da série, que foram 10 matérias e eles me disseram: se ocorrer outro acidente radiológico no Brasil, vai acontecer tudo de novo, o pessoal está despreparado e o saldo vai ser novamente negativo. Existe a questão da duração da radioatividade no ambiente. Você sabe quanto tempo leva para que essa radioatividade desapareça? Os físicos dizem que o Césio fica 300 anos no ambiente. Existe uma distinção; pessoa contaminada é aquela que tocou o material radiativo e irradiada é, por exemplo, se você estiver contaminada e eu chegar perto de você, você irradia material radioativo para mim. O que acontece: a partir do momento que você passa pelo processo de descontaminação no hospital, toma medicamentos, banhos e tudo mais para fazer você suar pra eliminar essa substancia, dava muita cerveja, que é diurética, você pode viver em sociedade não há o risco, agora o lixo radioativo que ta

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em Abadia no aterro, enterrado, 300 anos. Há relatos de nascimentos de crianças com algum problema, defeitos físicos derivado da radioatividade? Existem vários relatos, só que nem o Governo Federal, nem o Estadual fazem a associação com as vítimas. Reconhecem apenas 4 vítimas que morreram por causa do Césio, que foi a menina Leide das Neves, Maria Gabriela, que era esposa do dono do ferro-velho e mais dois funcionários. Eu conversei com um policial militar cujos filhos nasceram com problemas no coração; tem outro policial militar que também atuou, inclusive apareceu no programa de televisão Linha Direta , que está com um tumor no cérebro, isso sem falar em problemas psicológicos de depressão, tentativa de suicídio, tudo isso eles chegaram a relatar. Acho que os traumas não são só físicos e ficam para a vida toda. O governo tem dado suporte financeiro às vítimas? O governo tenta, a Superintendência Leide das Neves presta assistência psicológica, fornece medicamentos, só que sempre falta algum medicamento, as vítimas reclamam da demora.que é um processo muito burocrático. Hoje mesmo saiu uma notícia em um jornal popular de Goiânia, que cortaram parte do abono das vitimas do grupo 2 e do grupo 3. Cortaram 25 reais do grupo 2, que recebe 400 reais e 50 reais do grupo 3. Vale lembrar que muitas dessas pessoas receberam essas pensões porque não conseguiram emprego; por exemplo, o tio da Leide das Neves tentou abrir uma frutaria e depois uma loja de roupas, mas teve que fechar as portas; as pessoas falam: tocou no césio, foi vitima do césio, então nada prospera. É muito preconceito, eles perderam a identidade, a liberdade de ir e vir, estão rotulados. É muito interessante o relato, porque é de desabafo, eles não pediram para estar nessa situação, eles não estão mendigando para o governo e tem a assistência do Governo Estadual, que é mais presente do que a do Governo Federal O que representa a menção honrosa de seu livro em um prêmio da importância do Vladimir Herzog? Representa muito, é uma felicidade imensa você poder ver que o seu trabalho está frutificando e que está sendo reconhecido profissionalmente fora de onde você mora , principalmente quando a gente está no Centro-Oeste e consegue sair para o Rio de Janeiro,São Paulo, é muito bom. Qual a sua grande esperança nessa questão das vítimas? Que essa questão possa se perpetuar, que as pessoas tenham memória, o próprio Prêmio Vladimir Herzog evoca essa questão de lutas de direitos, então que a gente possa realmente passar e conscientizar as pessoas, para que não aconteça uma tragédia dessas novamente. Entrevista efetuada durante o curso de Jornalismo na Universidade Cruzeiro do Sul (2006-2009).