12
1 Hospital Militar de Área de São Paulo (HMASP) Endereço: Rua Ouvidor Portugal, 230, Vila Monumento, SP. Classificação: Órgão das Forças Armadas Identificação numérica: 094-08.016 Responsável pelo atendimento aos soldados e à população em geral da região de São Paulo, o Hospital Militar de Área de São Paulo (HMASP) é uma das mais antigas instituições de atendimento médico da capital, tendo sido criado ainda durante o período colonial em 07 de abril de 1766. Sua primeira sede foi o Palácio de Governo da Capitania de São Paulo, que ocupava o antigo Colégio dos Jesuítas 1 ; mas o HMASP teve, posteriormente, outras sedes em distintas regiões da capital: de 1801 até 1832 funcionou no Vale do Anhangabaú, no atual Palácio dos Correios, sendo depois desativado e instalado, como Enfermaria Militar, na região de Santana, onde permaneceu até 03 de maio de 1920. Nesta data o comandante da 2ª Região Militar inaugurou o novo hospital do Exército localizado no Morro da Pólvora, no bairro do Cambuci. O HMASP, cujo edifício foi modernizado no ano de1986, atende mais de 5 mil pessoas por mês e funciona em uma área de 140 mil m 2 , sendo que 35 mil m 2 são de área verde preservada. Além de ocupar distintas sedes ao longo de seus mais de duzentos anos, o Hospital também foi conhecido por diferentes nomes: Em 1803 foi intitulado como Real Hospital Militar, e no mesmo ano elaborou o primeiro regulamento hospitalar da América Latina, formando, no ano seguinte, a primeira turma de cirurgiões. Como 1 O Colégio dos Jesuítas foi edificado em 1554 pelo padre Manoel de Paiva e por José de Anchieta e serviu de residência aos padres da Companhia de Jesus até a expulsão da Ordem em 1759, quando Marquês de Pombal publicou em Portugal um decreto que os expulsava da Corte e de suas colônias, confiscando também os bens da Ordem. A edificação passou então a servir de residência aos Governadores da Capitania de São Paulo, passando a ser denominado de “Palácio do Governo”. Para mais informações, ver o portal i nterativo dos Jesuítas em: http://interativo.jesuitasbrasil.org/timeline/. Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA ......7. Tito de Alencar Lima: frei da Igreja Católica. Suicídio em 10 de agosto de 1974. Após três dias seguidos de interrogatórios

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Page 1: Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA ......7. Tito de Alencar Lima: frei da Igreja Católica. Suicídio em 10 de agosto de 1974. Após três dias seguidos de interrogatórios

1

Hospital Militar de Área de São Paulo

(HMASP)

Endereço: Rua Ouvidor Portugal, 230,

Vila Monumento, SP.

Classificação: Órgão das Forças Armadas

Identificação numérica: 094-08.016

Responsável pelo atendimento aos soldados e à população em geral da região

de São Paulo, o Hospital Militar de Área de São Paulo (HMASP) é uma das mais

antigas instituições de atendimento médico da capital, tendo sido criado ainda durante

o período colonial em 07 de abril de 1766. Sua primeira sede foi o Palácio de Governo

da Capitania de São Paulo, que ocupava o antigo Colégio dos Jesuítas1; mas o

HMASP teve, posteriormente, outras sedes em distintas regiões da capital: de 1801

até 1832 funcionou no Vale do Anhangabaú, no atual Palácio dos Correios, sendo

depois desativado e instalado, como Enfermaria Militar, na região de Santana, onde

permaneceu até 03 de maio de 1920. Nesta data o comandante da 2ª Região Militar

inaugurou o novo hospital do Exército localizado no Morro da Pólvora, no bairro do

Cambuci. O HMASP, cujo edifício foi modernizado no ano de1986, atende mais de 5

mil pessoas por mês e funciona em uma área de 140 mil m2, sendo que 35 mil m2 são

de área verde preservada. Além de ocupar distintas sedes ao longo de seus mais de duzentos anos, o

Hospital também foi conhecido por diferentes nomes: Em 1803 foi intitulado como Real

Hospital Militar, e no mesmo ano elaborou o primeiro regulamento hospitalar da

América Latina, formando, no ano seguinte, a primeira turma de cirurgiões. Como

1 O Colégio dos Jesuítas foi edificado em 1554 pelo padre Manoel de Paiva e por José de Anchieta e serviu de residência aos padres da Companhia de Jesus até a expulsão da Ordem em 1759, quando Marquês de Pombal publicou em Portugal um decreto que os expulsava da Corte e de suas colônias, confiscando também os bens da Ordem. A edificação passou então a servir de residência aos Governadores da Capitania de São Paulo, passando a ser denominado de “Palácio do Governo”. Para mais informações, ver o portal interativo dos Jesuítas em: http://interativo.jesuitasbrasil.org/timeline/.

Memorial da Resistência de São Paulo

PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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mencionado, da década de 1830 o Hospital foi convertido em Enfermaria Militar, só

retornando à categoria de hospital em 1890, quando Marechal Deodoro o nomeia

Hospital Militar de 3ª Classe. Em 1920 passou a ser conhecido como Hospital Militar

de São Paulo, em 1953, Hospital da 2ª Região Militar, em 1955, Hospital Geral de São

Paulo e, finalmente, em 2010 passou a denominar-se Hospital Militar de Área de São

Paulo2.

2 Para essa apresentação sobre a história da instituição foram consultados o portal do HMASP, disponível em: http://www.hmasp.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=119&Itemid=311; e o vídeo institucional, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q6BODwAtoJk. Acessos em 03/11/2015.

Imagem 01: Fazenda

Santana em 1915. Uma

importante propriedade

dos Jesuítas em São

Paulo, confiscada pelo

Marques de Pombal. A

edificação foi

posteriormente ocupada

pelo Hospital Militar.

Hoje o local abriga o

Centro Preparatório de

Oficias da Reserva de

São Paulo. Foto: Autor

desconhecido. Fonte:

Acervo Fotográfico do

Museu da Cidade de

São Paulo.

Imagem 02: Sede do Hospital

anterior à reforma da década de

1980. Foto: Autor desconhecido.

Fonte: Hospital Militar da Área de

São Paulo.

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3

O HMASP é uma organização de saúde do Exército brasileiro diretamente

subordinado a 2ª Região Militar do Comando Militar do Sudeste. É responsável pelo

atendimento hospitalar de militares da força terrestre, seus dependentes, pensionistas

e de servidores civis do Exército. Além disso, o HMASP atua na capacitação e

atualização profissional dos militares da área da saúde, sendo um espaço médico de

referência do Exército, realizando 300 cirurgias por mês, 7000 exames diagnósticos e

internação em 236 leitos3.

3 Informações divulgadas pelo HMASP por meio de seu vídeo institucional, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q6BODwAtoJk. Acesso em 03/11/2015.

Imagem 03: Sede atual do HMASP, cuja inauguração oficial ocorreu em dezembro de 1986.

Foto: Autor desconhecido. Fonte: Hospital Militar da Área de São Paulo.

Imagem 04: Estrutura

Organizacional do

Comando Militar do

Sudeste com destaque

ao HMASP. Fonte:

Comando Militar do

Sudeste. Destaque da

autora.

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4

A ligação organizacional do Hospital com a 2ª Região Militar do Sudeste

rendeu a esse espaço memórias da repressão e resistência durante o período da

ditadura civil-militar no país (1964-1985). A Comissão Nacional da Verdade (CNV),

criada pela Lei 12.528/2011, investigou entre 2012 e 2014 denúncias de graves

violações de Direitos Humanos ocorridas no Brasil entre 18 de setembro de 1946 e 05

de outubro de 1988. Em seu relatório final4, a CNV identifica a entrada de sete

militantes da esquerda no HMASP, alguns dos quais vieram a morrer nesse hospital

devido às torturas sofridas em outras dependências do aparato repressivo, como o

DOI-Codi e o Deops em São Paulo5. Destacamos cada um desses militantes

juntamente com a passagem do relatório da CNV que registra a vinculação do Hospital

com agentes da repressão:

1. João Domingos da Silva: operário com atuação na Vanguarda Armada

Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Morto em 23 de setembro de

1969.

A CEMDP [Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos

Políticos], ao julgar o processo relativo ao caso, entendeu, a partir do

confronto entre os dados do laudo de exame de corpo de delito com

os dados do laudo de exame necroscópico, que João Domingos,

preso com um ferimento no tórax e levado ao Hospital das Clínicas,

foi submetido a tortura e maus tratos ao ser transferido para o HGE

[Hospital Geral do Exército], onde morreu em consequência de

“ferimentos perfuro-contundentes no abdômen”6.

2. Olavo Hanssen: operário metalúrgico com atuação no Partido Operário

Revolucionário Trotskista (PORT). Morto em 09 de maio de 1970.

Os presos políticos exigiram que fosse chamado um médico para lhe

prestar assistência, o que só foi realizado em 6 de maio. Além dos

ferimentos visíveis por todo o corpo, ele apresentava sinais evidentes

de complicações renais, anuria e edema das pernas. O médico que o

assistiu, José Geraldo Ciscato, lotado no DOPS/SP, na época,

recomendou somente que ingerisse água, providenciando curativos

em alguns ferimentos superficiais. [...] Somente em 8 de maio,

quando Olavo já se encontrava em estado de coma, Ciscato voltou a

vê-lo, dando ordens para que fosse removido para um hospital,

deixando claro que ele não tinha a mínima chance de sobrevivência.

4 Relatório disponível em http://www.cnv.gov.br. Acesso em 04/11/2015. 5 Para informações sobre o DOI-Codi, órgão das Forças Armadas utilizado como centro clandestino de tortura, e o Deops/SP, presídio político da ditadura civil-militar, conferir os documentos produzidos pelo Memorial da Resistência de São Paulo e disponível no site da instituição em: http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/. 6 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014, Volume 3, p.336.

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5

Foi levado às pressas para o Hospital do Exército no bairro do

Cambuci7.

3. Raimundo Eduardo da Silva: operário metalúrgico com atuação na Ação

Popular (AP). Morto em 05 de janeiro de 1971.

[...] no dia 23 de novembro de 1970, o operário Raimundo fora

golpeado por um pontaço de faca, em uma briga comum. Fora

operado, estava internado em uma casa de saúde, sendo retirado do

leito hospitalar por investigadores quando ainda necessitava de

tratamento médico. Apurou mais que o rapaz morrera cerca de um

mês e meio depois de haver recebido a facada, no dia 5 de janeiro,

no Hospital do Exército em São Paulo, onde se encontrava a

disposição do CODI, conforme documentos oferecidos pelo DEOPS

e que se encontram às folhas 138 e 1418.

4. Luiz Eduardo da Rocha Merlino: jornalista com atuação no Partido Operário

Comunista (POC). Morto em 19 de julho de 1971.

[...] a penúltima vez que eu soube do Merlino, foi um torturador,

Oberdan, [...] ele me contou a versão da morte do Merlino. [...] Ele

me disse o seguinte, “olha, seu amigo esteve aqui e ele quis dar uma

de durão, acabou com as pernas gangrenadas e foi levado para o

Hospital do Exército”. Ele disse Hospital do Exército exatamente. “E

de lá telefonaram dizendo que precisavam amputar as pernas dele

para ele sobreviver. O Major Ustra fez aqui uma votação, eu votei”,

diz ele, o torturador, “votei para amputarem as pernas e salvarem a

vida dele, mas fui voto vencido”. Vê a conversa do cara. “E venceu a

ideia de deixar ele morrer. Foi assim que seu amigo que esteve aqui

morreu”9.

5. Juan Antônio Carrasco Forrastal: estudante sem atuação em organização

de esquerda. Suicídio em 28 de setembro de 1972.

Ao saber da prisão do irmão [durante a invasão do Conjunto

Residencial da USP em 1968] Juan Antônio seguiu ao II Exército à

sua procura e também acabou preso. Na prisão, arrancaram-lhe a

bengala e a prótese que utilizava na perna em razão da hemofilia; os

golpes sofridos lhe causaram derrames pelo corpo inteiro. [...] O

cônsul boliviano em São Paulo, Alberto Del Caprio, solicitou que o

jovem fosse removido para o Hospital das Clínicas, onde

7 Ibidem, p.442. 8 Sobre o caso de Raimundo Eduardo da Silva a CNV informa que essa afirmação consta na Apelação nº 38.650, no Superior Tribunal Militar (STM), referente à defesa do padre Giulio Vicini e da assistente social Yara Spadini. Entretanto, o irmão do resistente, Hélio Jerônimo da Silva, contestou que a morte tivesse ocorrido no Hospital Geral do Exército. Segundo Hélio, na ocasião em que foi ao referido hospital procurar notícias sobre o irmão, foi informado por um agente da repressão, não identificado nominalmente, que Raimundo estava, na verdade, no DOI-Codi. BRASIL. op. cit., Volume 3, p.510. 9 Depoimento de Joel Rufino dos Santos à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e incluída no Relatório final da Comissão Nacional da Verdade. BRASIL. op. cit., Volume 3, p.654.

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permaneceu por curto período, retornando em seguida para a guarda

do Exército, no Hospital Militar do Cambuci. Mesmo internado e

debilitado, Juan continuou submetido a torturas psicológicas. Tiros

disparados na madrugada e ameaça à vida dos seus pais faziam

parte da rotina10.

6. Helber José Gomes Goulart: datilógrafo e apontador com atuação na Ação

Libertadora Nacional (ALN). Morto em 16 de julho de 1973.

De acordo com testemunhos, Helber foi visto no DOI-CODI por

presos políticos dias antes de sua morte. Com a saúde fragilizada em

função das torturas a que fora submetido [...] foi levado para ser

atendido no Hospital Geral do Exército [...]. De acordo com o laudo

necroscópico, o corpo de Helber apresentava equimoses e a causa

da morte teria sido “choque hemorrágico oriundo de ferimento

transfixiante do pulmão no seu lobo inferior”. Consideradas as

características do ferimento descrito no laudo, o relator chamou

atenção para o fato do disparo que causou a morte de Helber ter sido

feito de cima para baixo, característica de disparo efetuado contra

corpo caído ao chão. Na foto do corpo, em que Helber aparece sem

barba, são visíveis marcas de ferimentos na altura do pescoço que

não são mencionadas no laudo11.

7. Tito de Alencar Lima: frei da Igreja Católica. Suicídio em 10 de agosto de

1974.

Após três dias seguidos de interrogatórios e torturas, Tito acordou na

sexta-feira, dia 20 de fevereiro de 1970, atormentado pela

perspectiva de que seus irmãos pudessem sofrer o mesmo destino

que ele [...] valeu-se de uma lâmina de barbear para levar adiante o

ato de coragem. Inconsciente, depois de muito sangue perdido, foi

levado ao Hospital das Clínicas de São Paulo e, em seguida, ao

Hospital Central do Exército. Lá, ouviu o desespero do capitão

Maurício, que gritava com os médicos que Tito não poderia morrer de

jeito nenhum. Ficou sob a guarda de seis soldados da Oban e, desde

que acordou, enfrentou severa pressão psicológica de seus

torturadores, que passaram a chamá-lo de “padre terrorista e

suicida”. Teve a sensação de que os militares buscavam enlouquecê-

lo, como uma estratégia para fugir da responsabilidade por sua

eventual morte. No hospital, recebeu a visita do juiz auditor Nelson

da Silva Machado Guimarães, acompanhado de um padre e do bispo

auxiliar de São Paulo [...]12.

Os casos mencionados acima se referem ao levantamento realizado pela

Comissão Nacional da Verdade sobre os mortos e desaparecidos durante a ditadura,

no entanto, destacamos a existência de outros casos de tortura nas dependências do

Hospital, que, ainda que não tenham levado à morte da vítima, revelam-se como

10 BRASIL. op. cit., Volume 3, p.1067-1068. 11 Ibidem, p.1269. 12 Ibidem, p.1717-1718.

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ações de violação aos direitos humanos. Destacamos, como exemplo, o testemunho

de Francisco Ferreira de Oliveira ao Memorial da Resistência de São Paulo:

Aí eu fiquei 15 dias lá [no DOI-Codi], depois eles me mandaram pra

cá [Deops/SP]. Mandaram pra cá pra montar o processo. Mas o...

esse delegado que eu falei pra você – eu tava internado no Hospital

Militar – ele foi lá, me torturou, me deu choque elétrico, porque ele

disse que não podia montar o processo porque não tinha os objeto,

que era a matéria, que era os fuzis [...]. Foi quando ele me marrou

um cordinha do testículo e ficava batendo o punhal no meu testículo

e falou assim: “Eu vou te castrar seu fila... – com licença da palavra –

Seu fila da puta!” E deu um corte em mim assim. E eu tenho o corte

até hoje, e eu fui pro Hospital Militar, eles não costuraram, sarou e

ficou aquela parte branca no testículo assim, sarou sem costurar13.

O encaminhamento dos presos políticos para o Hospital Militar de Área de São

Paulo está relacionado à necessidade, por parte dos agentes da repressão, de

manterem os militantes sempre sob vigilância, ainda que hospitalizados. Assim, os

presos mais severamente debilitados pelas torturas decorrentes dos interrogatórios, ou

que procuraram resistir a elas em tentativas de suicídio, eram encaminhados ao

HMASP garantindo a permanência deles nas “mãos” do Exército, que controlava os

cuidados e visitas que os militantes recebiam. Mas, o mais importante, era que, dentro

das dependências militares, os agentes da repressão poderiam manter os presos

políticos sob tortura psicológica ou até mesmo física (ainda que praticada de forma

menos evidente), o que seria mais difícil caso eles fossem encaminhados a outros

hospitais. Quando o paciente não falecia nas dependências do Hospital, o objetivo dos

militares era fazê-los retornarem às prisões e, consequentemente, às sessões de

interrogatórios (e torturas), como nos casos destacados pelo Relatório da CNV e dos

testemunhos colhidos pelo Memorial da Resistência de São Paulo. Outro ponto

importante na manutenção dos presos hospitalizados sob a custódia militar está

relacionado ao controle da produção e circulação da documentação gerada sobre a

entrada dos militantes no Hospital, o que tinha por objetivo dificultar o acesso dos

familiares aos seus entes.

O DIFÍCIL ACESSO AOS DOCUMENTOS DAS FORÇAS ARMADAS

Em relação a esta sensível questão dos documentos produzidos pelos órgãos

de repressão é importante destacarmos que esses arquivos são importantes fontes

documentais para os familiares de mortos e desaparecidos, que podem buscar e

13 OLIVEIRA, Francisco Ferreira de. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida Karina Alves e Marcela Boni Evangelista em 24/05/2013.

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acessar informações que os ajudem a localizar os restos mortais de seus entes e rever

as falsas versões de morte legitimadas pelos médicos legistas colaboradores da

ditadura14. Mas os documentos produzidos por essa instituição também são

fundamentais para a sociedade como um todo, pois se constituem como fontes de

pesquisa para investigações sobre a colaboração de distintos setores sociais com os

órgãos envolvidos na repressão política, ampliando ainda o debate sobre os alcances

da ditadura civil-militar no país.

A Comissão Nacional da Verdade, durante os seus dois anos de investigação

sobre as violações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro durante a

ditadura, tratou de solicitar informações e arquivos produzidos pelas Forças Armadas.

Em 2012 foram cinco ofícios ao Ministério da Defesa, sendo quatro referentes à

solicitação de informações. A estes ofícios o Exército e a Marinha responderam não

terem localizado os documentos solicitados. A CNV destaca ainda, como importante

solicitação, o Ofício n. 405 de 6 de dezembro de 2012 por meio do qual foi solicitado o

envio, em dez dias, de documentos relativos ao Departamento de Ordem Política e

Social do Rio Grande do Sul (DOPS/RS), arquivos da Divisão de Segurança e

Informações do Ministério da Educação e Cultura (DSI/MEC), cópia de termo de

inventário e de termo de transferência dos documentos classificados como

ultrassecretos e listagem dos documentos classificados como ultrassecretos e

secretos e reavaliados. Ao responder a tal requerimento, o Exército informou não

possuir os documentos do DOPS/RS e a Marinha aduziu não ter encontrado registros

sobre documentos recebidos da DSI/MEC15. Em 2013 foram 27 ofícios ao Ministério

da Defesa, sendo 23 referentes a solicitação de informações, um de encaminhamento

de informações requeridas pelo Ministério da Defesa, dois concernentes a diligências

e um envio de resposta. O objetivo da CNV era ter acesso às folhas de controle dos

militares da reserva, com vistas à identificação de estruturas, instituições, órgãos e

locais associados às graves violações de direitos humanos16.

Apesar dos esforços da CNV em reunir a documentação das Forças Armadas,

avançando nas pesquisas e investigações sobre as violações do Estado, o retorno às

suas solicitações deu poucos resultados, apontando para a direção de que a

promoção da verdade a partir da abertura dos arquivos da repressão ainda é um

caminho a ser percorrido na luta por memória, verdade e justiça no país.

O direito à verdade é um direito fundamental a ser exercido por todo e qualquer

cidadão de receber e ter acesso às informações de interesse público que estejam em

14 Para esse tema ver o documento sobre o Instituto Médico Legal (IML) produzido pelo Memorial da Resistência de São Paulo e disponível no site da instituição. 15 BRASIL. op. cit., Volume 1, p.63. 16 Idem.

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poder do Estado. Este é um dever do Estado, que “deve revelar e esclarecer às

vítimas, aos familiares e à sociedade as informações de interesse coletivo sobre os

fatos históricos e as circunstâncias relativas às graves violações de direitos humanos

praticadas nos regimes de exceção”17.

Além dos pedidos de informação junto aos arquivos militares, buscou-se

também, através da CNV, que as Forças Armadas instaurassem sindicância para a

averiguação da prática de violações aos direitos humanos em dependências militares.

O Ofício da CNV – acompanhado de relatório que demonstrava que dependências

militares foram palco de graves violações de direitos humanos durante a ditadura –

solicitava que as Forças Armadas apurassem “de que forma sete instalações militares

localizadas nos estados de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco

foram utilizadas contínua e sistematicamente para a prática de tortura e execuções

durante o regime militar”18.

Em 17 de junho de 2014, por meio do Ofício no 6.749/MD, foram

encaminhados à CNV pelo Ministério da Defesa os relatórios das três

sindicâncias, nos quais, de forma homogênea, se concluiu não ter

havido nenhum desvio de finalidade quanto ao uso daquelas

instalações. No relatório do Exército, asseverou-se que “não foram

encontrados, no acervo pesquisado, registros formais que permitam

comprovar ou mesmo caracterizar o uso das instalações dessas

organizações militares para fins diferentes dos que lhes tenham

prescritos em lei” (fl. 168 do relatório do Exército). Já no relatório da

Marinha, a conclusão se deu na forma seguinte: “[...] como podemos

verificar no tópico ‘USO DA ILHA DAS FLORES PELA MARINHA’, o

uso das mesmas instalações não se constituiu, de modo algum, em

desvio de finalidade, tendo em vista que, ao ser criado pelo aviso

ministerial no 3.907 de 26 de dezembro de 1968, o destacamento

especial da ilha das Flores recebeu como missão principal o

acautelamento de presos, sendo esta, portanto, a sua principal

finalidade. Nesse mesmo diapasão, a alocação de militares para o

desenvolvimento das atividades relacionadas ao recebimento e à

guarda de presos se deu por meio do aviso no 3.908 do Ministério da

Marinha, também de 26 de dezembro de 1968, onde foi fixada a

lotação de pessoal para o funcionamento do destacamento especial

da ilha das Flores” (fl. 255 do relatório da Marinha). Por fim, em seu

relatório, a Aeronáutica concluiu que “[...] a análise histórica dos fatos

documentados descreve a efetiva realização de diversas missões

pelas unidades aéreas sediadas na Base Aérea do Galeão, servindo

de demonstração de estrita obediência às determinações legalmente

17 DOS SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça e SOARES, Ricardo Maurício Freire. As Funções do Direito à Verdade e à Memória. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n.19, jan./jun. 2012, p.273. 18 BRASIL. op. cit., Volume 1, p.64.

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expressas, sem qualquer referência a uso diverso do regularmente

destinado” (fl. 135 do relatório da Aeronáutica).

Diante da resposta das Forças Armadas observa-se a relutância dos militares

em reavaliar a atuação da corporação na perpetuação da violência política no país

entre 1964 e 1985. As Forças Armadas foram um dos pilares de sustentação e ação

de um regime ditatorial que levou à morte 434 pessoas das quais 210 ainda seguem

desaparecidas (o que significa que os corpos jamais foram entregues às famílias) e 33

tiveram seu paradeiro posteriormente localizado, permitindo serem enterrados

conforme os desejos de seus familiares, que, finalmente, puderam viver o luto dessa

perda19. Isso sem avaliar a enorme quantidade de exilados e banidos que tiveram que

abandonar o país sob o risco de vida, a incalculável cifra de torturados e as graves

violações perpetradas contra camponeses e povos indígenas, o que resulta, portanto,

em um quadro de violência generalizado no Brasil durante os 21 anos de governo

militar que produziu um expressivo número de vítimas.

Além disso, é importante ressaltar que as respostas enviadas pelos

comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica – afirmando não ser possível o

reconhecimento oficial pelas Forças Armadas de graves violações de direitos humanos

cometidas em instalações militares – contradiz as atuais ações do Estado brasileiro no

campo das políticas públicas de memória que têm empreendido uma série de esforços

no sentido de promover reparações às vítimas e à sociedade pelas violências do

período ditatorial. Há nesse sentido um conflito entre as Forças Armadas e o Estado

Brasileiro no que tange a temática da “responsabilização pelos crimes da ditadura civil-

militar”, pois não compartilham da mesma avaliação histórica.

Diante do quadro apresentado, destacamos o Hospital Militar de Área de São

Paulo como um lugar de memória por sua vinculação a atos de repressão durante a

ditadura civil-militar. As dependências médicas militares colaboravam com a ditadura

na medida em que permitiam a manutenção do isolamento de presos políticos assim

como não evitaram ações de tortura (psicológica ou física) em pacientes bastante

debilitados pela tortura, como eram os casos dos militantes enviados para os

hospitais. A partir dessas violações, o HMASP atuou no sentido de aumentar ainda

mais as angústias das vítimas, permitindo que o ambiente hospitalar tivesse seus

propósitos invertidos: ao invés de ser um espaço para a reabilitação do paciente,

tornou-se uma extensão do cárcere, mantendo as violências policiais.

19 Dados do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade reconhecido pelo Estado brasileiro como número oficial de mortos e desaparecidos no país.

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ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES:

Mesmo diante das políticas públicas de memória, o Hospital, por estar

diretamente subordinado a 2ª Região Militar do Comando Militar do Sudeste, recusa-

se a oferecer documentos aos familiares, cabendo a eles a luta pela abertura desses

arquivos e a revelação da verdade sobre a cooperação entre o hospital e a repressão

militar entre 1964-1985.

Em janeiro de 2011, o Hospital Militar de Área de São Paulo lançou o livro "244

anos de Medicina Militar – Hospital Militar de Área de São Paulo 90 anos de história"

que conta a história da medicina militar buscando entrelaçá-la à história da medicina

em São Paulo e no Brasil por meio de imagens e relados de membros da própria

instituição. A intenção do livro é apresentar o HMASP como um hospital escola de

excelência no campo de saúde militar.

ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA

O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a registrar,

por meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos políticos,

familiares de mortos e desaparecidos e de outros cidadãos que

trabalharam/frequentaram o antigo Deops/SP. O Programa Coleta Regular de

Testemunhos tem a finalidade de formar um acervo, cujo objetivo principal é ampliar o

conhecimento sobre o Deops/SP e outros lugares de memória do Estado de São

Paulo, divulgando, desta forma, o tema da resistência e repressão política no período

da ditadura civil-militar.

- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da

Resistência

LOPES, Guiomar Silva. Entrevista sobre militância, resistência e repressão

durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista

concedida a Karina Alves Teixeira e Paula Salles em 08/04/2014.

OLIVEIRA, Francisco Ferreira de. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo,

entrevista concedida Karina Alves e Marcela Boni Evangelista em 24/05/2013.

RODRIGUES, Darcy. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante

a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida

a Ana Paula Brito e Paula Salles em 11/03/2014.

Page 12: Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA ......7. Tito de Alencar Lima: frei da Igreja Católica. Suicídio em 10 de agosto de 1974. Após três dias seguidos de interrogatórios

12

Outras entrevistas JOVEM PAN. Medicina militar comemora 244 anos de vida. Entrevista de José Luiz

Menegatti com o coronel-médico Fernando Storte. São Paulo, 14 de janeiro de 2011.

Disponível em < http://jovempan.uol.com.br/noticias/medicina-militar-comemora-244-

anos-de-vida.html >. Acesso em 03/11/2015.

JORNAL DA GAZETA. Lançamento do Livro HMASP. Entrevista de José Luiz Filho

com o Diretor do HMASP, Marcelo Paiva de Oliveira, e o coronel-médico Fernando

Storte. São Paulo, gravado em 21 de janeiro de 2011 e exibido em 16 de fevereiro de

2011. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=_o0LmHyEuIY >. Acesso

em 03/11/2015.

REMISSIVAS: Quartel General do II Exército; Departamento Estadual de Ordem

Política e Social de São Paulo (Deops/SP).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Comissão Nacional da Verdade.

Brasília: CNV, 2014.

DOS SANTOS, Claiz Maria Pereira Gunça e SOARES, Ricardo Maurício Freire. As

Funções do Direito à Verdade e à Memória. Revista Brasileira de Direito

Constitucional, n.19, jan./jun. 2012.

HMASP. Histórico. Hospital Militar de Área de São Paulo. Disponível em:

http://www.hmasp.eb.mil.br/index.php?option=com_content&view=article&id=119&Item

id=311. Acesso em 03/11/2015.

HMASP. Vídeo Institucional. Hospital Militar de Área de São Paulo. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=q6BODwAtoJk. Acesso em 03/11/2015.

COMO CITAR ESTE DOCUMENTO: Programa Lugares da Memória. Hospital Militar

de Área de São Paulo (HMASP). Memorial da Resistência de São Paulo, São Paulo,

2015.