MEMÓRIAS DE UM BURRO

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  • MEMRIAS DE UM BURRO

    CONDESSA DE SGUR

    Composto e impresso por Primter Portuguesa, Indstria Grfica, Lda. Mem Martins Sintra para a

    EDITORIAL PUBLICA, com sede na Avenida Poeta Mistral, 6-B - 1000 Lisboa Edio N. " 67/CS7

    Abril de 1985

    AO MEU JOVEM DONO O SR. HENRIQUE DE SGUR

    O meu jovem dono foi sempre muito bom para mim, mas a verdade que sempre o ouvi falar com

    grande desprezo dos burros em geral. Pois para que fique conhecendo melhor os burros que escrevi

    estas Memrias, que lhe ofereo. Nelas ver, meu querido e jovem dono, a injustia com que os homens

    nos tm tratado, a mim e aos meus amigos burros, burrinhos e burrinhas. Conhecer o nosso espirito e as

    excelentes qualidades que possuimos; ver tambm como fui mau na minha mocidade, a maneira como

    fui castigado e maltratado, e como o arrependimento me transformou e me devolveu a amizade dos meus

    companheiros e dos meus donos. Ver, enfim, ao terminar a leitura deste livro, que em vez de se dizer:

    Estpido como um burro, teimoso como um burro, se dever antes dizer: Espirituoso como um burro,

    dcil como um burro, sbio como um burro, e que tanto o meu dono como os seus pais se sentiro

    orgulhosos com estes elogios. Desejo-lhe, meu bom dono, que na primeira ocasio da sua vida se no

    assemelhe ao seu servo fiel.

    CADICHON. (Burro sbio)

    No me lembro da minha infncia. Fui, provavelmente, infeliz como todos os burrinhos, bonito e

    gracioso como sempre somos; tive, certamente, muito espirito, porque ainda hoje, apesar de velho, tenho

    mais do que todos os meus companheiros juntos. Escoucinhei, mais de uma vez, os meus pobres donos,

    que, sendo apenas homens, no podiam ter, por consequncia, a intelign cia de um burro.

    Comearei por contar uma das partidas que lhes fiz, nos tempos recuados da minha primeira

    mocidade.

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    A feira

    Como os homens no so obrigados a saber tudo o que os burros sabem, o senhor decerto ignora uma

    coisa que todos os meus amigos burros conhecem: h na cidade de Laigle, todas as teras-feiras, uma

    feira onde se vendem legumes, manteiga, ovos, queijo, frutas e outras coisas magnficas. Essas teras-

    feiras so uns dias de suplcio para os meus pobres companheiros. E o mesmo se dava comigo antes de

    ser comprado pela minha bondosa e velha dona, em casa de quem agora vivo. Pertencia, nesse tempo, a

    uma lavradeira exigente e m. Imagine que ela levava a sua maldade at ao ponto de me pr em cima do

    lombo cestos cheios de ovos das suas galinhas, toda a manteiga e queijo que lhe dava o

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    leite das suas vacas, e todos os legumes e frutos que amadureciam durante a semana!

    E quando eu j estava to carregadinho que mal podia dar um passo, a malvada ainda se escarranchava

    em cima dos cestos, obrigando-me a trotar debaixo daquele peso at feira de Laigle, que distava uma

    lgua da propriedade. A clera refervia-me c dentro, mas no me atrevia a manifestar-lha, com medo das

    pauladas dadas com um pau muito grosso e cheio de ns, que muito me magoavam. Todas as vezes que

    eu via ou ouvia os preparativos para a feira, suspirava, gemia, chegava mesmo a roncar com a esperana

    de enternecer os meus donos.

    Anda, madrao -diziam-me, quando me iam buscar- e cala a boca, no nos atordoes com essa zurrada Hi

    han hi han. Olha que uma bonita msica! Jlio, meu filho, traz esse preguioso para ao p da porta,

    para a tua me lhe pr a carga nos costados!. . . Um cesto de ovos. . . mais um!. . . Os queijos, a manteiga.

    A vo agora os legumes. Bem. Levas a um carregamento que nos dar algumas moedas. Marieta, minha

    filha, vai buscar uma cadeira para a tua me cvalgar este madrao!. . . Assim! Boa viagem, e faz trotar

    bem este figuro. Leva o pau e no lhas poupes.

    Pau, pau, Com mais algumas carcias desse gnero, j ele no ter vontade de se espreguiar.

  • O pau volteava no ar e caa- me nos rins, nas pernas, no pescoo; e eu trotava, galopava. A lavradei ra

    continuava a bater-me. Indignado com to grande injustia e crueldade, tentei dar uma parelha de coices

    para atirar com a minha dona ao cho, mas, como a carga era muito pesada, apenas baloiava o corpo

    para a direita e para a esquerda. Tive, porm, o prazer de a

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    sentir desequilibrar-se.

    Malvado burro! Burro teimoso. Eu j te arranjo.

    Efectivamente, bateu-me tanto que mal me pude arrastar at cidade. Mas por fim chegmos. Tiraram-

    me ento as cestas de cima do lombo, que por sinal estava em carne viva, e a minha dona, depois de me

    ter prendido a uma estaca, foi almoar, enquanto eu morria de fome e de sede, sem ter sequer uma paveia

    de palha nem uma gota de gua. Mas l achei meio de me aproximar dos legumes, durante a ausncia da

    lavradeira, e assim pude refrescar-me enchendo o estmago com um molho de alface e outro de couves.

    Nunca na minha vida tinha comido um tal petisco; estava a acabar a ltima couve e a ltima folha de

    alface, quando a minha dona voltou. Quando deu com o cesto vazio, ps-se a gritar, enquanto eu a olhava

    com um ar to insolente e satisfeito que ela adivinhou o que eu tinha feito.

    No repetirei as injrias com que me mimoseou. Tinha uma linguinha de prata, a minha dona! Quando se

    punha a injuriar, era cada palavro que eu, por mais burro que fosse, corava de vergonha.

    Depois de me ter alcunhado com os mais infamantes e humilhantes eptetos, a que eu respondia lambendo

    os beios e voltando-lhe as costas, comeou a zurzir-me com tal fria que acabei por perder a pacincia e

    atirei-lhe trs coices que Lhe partiram o nariz, dois dentes e um pulso, acabando por a atirar ao cho.

    Mais de vinte pessoas me saltaram em cima, zurzindo-me de pancada e injuriando-me. Levaram a minha

    dona no sei para onde e deixaram-me preso estaca, ao p das mercadorias que tinha transportado.

    Vendo que ningum fazia caso de mim, comi segundo cesto cheio de excelentes legumes, cortei com os

    dentes a corda que me prendia e voltei sossegadamente para casa.

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    As pessoas que me encontravam pelo caminho ficavam a olhar para mim, admiradas de me verem

    sozinho. Diziam:

    - Este burro, a arrastar uma corda, vai com certeza fugido.

    - um evadido das gals - disseram outros.

    E todos desataram a rir.

    - A carga no pesa muito - disse um terceiro.

    - O patife fez alguma das suas! - exclamou outro.

    - Agarra-o pela corda, homem, e pe o pequeno s cavalitas - disse uma mulher.

    E o marido respondeu:

    - Montas tu e o petiz.

    Querendo dar mostras da minha brandura e da minha complacncia, aproximei-me devagarinho da

    camponesa e parei ao p dela para a deixar montar.

    - O burro parece que no mau! - disse o homem, ajudando a mulher a sentar-se na albarda.

    Sorri de compaixo, ouvindo estas palavras. Mau! Como se um burro bem tratado tivesse razes para ser

    mau! Ns s somos desobedientes e teimosos quando queremos vingar- nos das pancadas e das injrias

    que recebemos. Quando nos tratam bem, somos bons, muito melhores do que os outros animais.

    Conduzi a mulher e o rapazinho a sua casa. O petiz tinha dois anos, era bonito, fazia-me festas e o seu

    desejo era ficar comigo. Mas reflecti e pensei que no seria honesto deixar-me ficar ali, uma vez que os

    meus donos me tinham comprado. Tinha partido o nariz, dois dentes e um pulso da minha dona. Estava

    vingado. Percebendo que a mulher ia ceder aos desejos do filho, dei um salto de lado, e antes que

    pudessem agarrar a corda, fugi a galope e voltei para casa.

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    A primeira pessoa que me viu foi Marieta, a filha do meu dono.

    - Olha, o burro! Voltou cedo. Jlio, vem tirar-lhe a albarda.

    - Maldito burro que s me d trabalhos! - disse Jlio. - Mas porque voltou ele s? Aposto que vem fugido.

    Patife! - acrescentou ele, dando- me um pontap nas pernas; - se soubesse que tinhas fugido, dava-te uma

    sova!

  • Depois de me tirarem a albarda e o freio, safei-me a galope. Mal chegara ao prado, ouvi grandes gritos

    que partiam da herdade. Aproximei a cabea de uma sebe e vi que tinham trazido a minha dona. Eram os

    pequenos que davam aqueles gritos. Arrebitei as orelhas e ouvi Jlio dizer para o pai:

    - Pai, vou buscar o chicote do carroceiro, prendo o burro a uma rvore e dou-lhe tantas que o maldito

    nunca mais se levanta.

    - Pois sim, meu rapaz, mas no o mates porque perdamos o dinheiro que ele nos custou. Vend-lo-ei na

    prxima feira.

    Fiquei a tremer de susto ao ouvi-los, e pior ainda quando vi o Jlio correr cavalaria para trazer o

    chicote. No tive mais hesitaes, nem escrpulos, e corri para uma sebe que me separava dos campos,

    partindo os ramos altos. Fugi por ali, julgando sempre que era perseguido. No podendo correr mais,

    parei, pus-me escuta. . . No ouvi nada. No vi ningum. Respirei com fora e regozijei-me por me ver

    livre daqueles malfeitores.

    Mas, que ia fazer agora? Se ficasse naquela terra, todos me reconheceriam e me levariam aos meus donos.

    Para onde havia de ir?

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    Olhei em volta de mim. Encontrei-me isolado e infeliz, e j as lgrimas me assomavam aos olhos quando

    vi que estava na orla de um bosque: era a floresta de Saint vroult.

    - Que felicidade! - exclamei. - Encontrarei nesta floresta erva tenrinha, gua e musgo fresco. Ficarei aqui

    alguns dias e irei depois para outra floresta, ainda mais longe da herdade dos meus donos.

    Embrenhei-me no bosque, comi com prazer a erva macia e bebi a gua cristalina de uma fonte. Como a

    noite descia, deitei-me em cima do musgo, por baixo de um velho pinheiro, e dormi tranquilamente at ao

    dia seguinte.

    2

    A perseguio

    No dia seguinte, depois de ter comido e bebido, pensei na minha felicidade.

    Agora estou salvo -pensava eu;- ningum me tornar a encontrar, e daqui a dois dias, irei para mais longe.

    Mal acabava estas reflexes, ouvi os latidos de um co, e momentos depois, latidos de uma

    matilha completa.

    Inquieto, aterrado, levantei-me e dirigi-me para um ribeirinho que tinha descoberto logo de manh. Mas

    quando me meti gua, ouvi a voz de Jlio, que aulava os ces.

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    Busquem bem, encontrem-me esse miservel burro, mordam-no, dilacerem-no e tragam-mo para eu o

    deslombar com o chicote.

    O terror ia-me fazendo cair; mas reflecti que, metendo-me pela gua dentro, os ces no encontrariam

    vestgios dos meus passos. Pus-me portanto a correr pelo ribeiro, que era orlado, felizmente para mim,

    por altas moitas de arbustos. Caminhei sem descanso durante muito tempo; os latidos dos ces e a voz do

    medonho Jlio j mal se ouviam, e acabei por no os ouvir de todo.

    Arquejante, esgotado de foras, parei por um instante, comi algumas folhas de arbustos que se

    debruavam para a gua; estava transido de frio, mas no me atrevia a sair da gua, com medo de que os

    ces me vissem ou me farejassem. Logo que me vi mais descansado, recomecei a correr, seguindo o curso

    do ribeiro, at sair da floresta; achei-me num prado muito grande, onde pastavam mais de cinquenta bois.

    Deitei-me ao sol e pude comer e descansar vontade, porque os bois no faziam caso de mim.

    tarde entraram dois homens no prado.

    - Irmo - disse o mais velho -, se recolhssemos os bois esta noite? Dizem que andam lobos no bosque.

    - Lobos! Quem te meteu essa patranha?

    - Foi gente de Laigle. Dizem at que levaram para a floresta o burro da quinta dos Olaios e o devoraram

    depois.

    - Ora! Patacoadas! A gente dessa fazenda to m que bem capaz de ter matado o burro com pancada.

    - Ento, para que que eles dizem que foram os lobos que o comeram?

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    - Para que ningum saiba que foram eles que o mataram.

    - Pelo sim, pelo no, melhor recolhermos os bois.

  • - Pois sim, irmo. Faz como entenderes.

    Eu no me mexia, com medo de que me vissem. A erva alta escondia-me e, felizmente, os bois no

    estavam do lado em que eu me encontrava escondido. Levaram-nos para a quinta onde os donos

    habitavam.

    Eu, por mim, no tinha medo dos lobos, porque o burro em questo era eu, e no tinha lobrigado sinal de

    lobo na floresta onde passara a noite. Dormi, portanto, com todo o descanso, e acabava de almoar

    quando os bois voltaram para o prado, acompanhados por dois grandes ces.

    Olhava para eles tranquilamente, quando um dos ces se ps a ladrar furiosamente, correndo para mim

    seguido pelo companheiro. Que fazer para lhes escapar? Corri para as paliadas que tapavam o prado, por

    onde serpenteava o ribeiro que me trouxera at ali. Saltei e ouvi a voz de um dos homens da vspera

    chamar os ces. Continuei tranquilamente o meu caminho at outra floresta, cujo nome ignoro. Devia

    estar j a mais de dez lguas da quinta dos Olaios. Estava salvo e podia, portanto, aparecer, sem receio de

    ser levado de novo para casa dos meus antigos donos.

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    Novos donos

    Vivi nessa floresta um ms, regalado e tranquilo. A verdade que tinha momentos de grande

    aborrecimento, mas preferia viver s a viver infeliz. Um belo dia, porm, reparei que a erva ia rareando e

    se tornava mais dura; as rvores despiram-se das folhas, a gua gelava e a terra humedecia.

    Que vai agora ser de mim - pensava eu - se me deixo ficar aqui, morro de frio, de fome e de sede. Para

    onde que hei-de ir? Quem me querer?

    fora de reflectir, encontrei um meio de encontrar abrigo. Sa da floresta e dirigi-me para uma pequena

    aldeia que ficava prximo. Vi uma casinha isolada e muito limpa; uma mulher fiava, sentada na soleira da

    porta. Fiquei comovido com o seu aspecto triste e

    bondoso; aproximei-me dela e encostei a cabea ao seu ombro. A boa mulher deu um grito, ergueu-se

    com precipitao e olhou para mim cheia de medo. Mas eu no arredei p e olhei para ela com um olhar

    terno e suplicante.

    - No me pareces mau. Pobre animal! -disse ela,

    Se no tens dono, de bom grado ficarei contigo. Virias substituir o meu pobre Russo, que morreu de

    velhice. Poderia continuar a ganhar a minha vida indo vender os meus legumes feira. Mas tu no

    ests para a sem dono -acrescentou ela, suspirando.

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    - av, com quem est a falar? -disse uma vozinha carinhosa, vinda do interior da casa.

    - Converso com um burro que veio encostar a cabea no meu ombro e que est a olhar para mim com um

    ar to triste que no tenho nimo de o enxotar.

    - Vamos l a ver - replicou a vozinha.

    E logo apareceu no limiar da porta um rapazinho dos seus seis a sete anos. Vestia pobremente, mas as

    roupas eram limpinhas. Ps-se a olhar para mim com curiosidade e receio.

    - Posso fazer-lhe festas, av? -disse ele.

    - Porque no, meu Gino? Mas cuidado, no te v morder.

    O rapazinho estendeu o brao e comeou a acariciar-me o lombo.

    Eu no fazia um movimento com medo de o aterrorizar, mas voltei a cabea para ele e lambi-lhe a mo.

    GINO - av, que meigo que ele ! Lambeu-me a mo

    AV- O que esquisito ele vir sozinho. Onde estar o dono? Gino, vai at aldeia e pergunta na

    estalagem onde os viajantes costumam albergar-se se est l o dono deste burrinho.

    GINO- Levo o burrinho comigo, av?

    AV - No te seguiria. Deixa-o ir onde ele quiser. Gino desatou a correr e eu trotei na peugada dele.

    Quando viu que o seguia, voltou atrs e disse, fazendo-me festas: burrinho, visto me seguires, tambm me

    deixars montar em cima de ti? E escarranchou-se em cima do meu lombo.

    Larguei a galope, o que encantou Gino.

    - Alto! -disse ele ao passar porta da estalagem. Eu parei logo. Gino apeou-se e eu fiquei ao p da porta,

    to quieto como se estivesse preso.

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    - Que queres, meu rapaz? -perguntou o dono da estalagem.

    -Venho saber, Sr. Duval, se este burrico lhe pertence ou a algum dos seus fregueses.

    O Sr. Duval veio porta e olhou para mim atentamente.

    - No, no meu nem de ningum que eu conhea. Procura por outro lado.

    Gino montou outra vez e eu parti a galope. Caminhmos, caminhmos, perguntando de porta em porta a

    quem eu pertencia. Como ningum me reconhecesse, voltmos para casa da boa av, que continuava a

    fiar a sua estriga de linho na soleira da porta.

    GINO - Av, o burrico no pertence a ningum c da terra. Que vamos fazer dele? No quer deixar-me, e

    foge quando algum pretende tocar-lhe.

    AV- Nesse caso, meu Gino, no o deixemos ao relento, que poderia fazer-lhe mal. Vai lev-lo para a

    cocheira do nosso pobre Russo, d-lhe um molho de feno e pe-lhe uma selha com gua. Vamos amanh

    feira com ele; talvez o dono aparea.

    GINO - E se no aparecer, av?

    AV-Ficaremos com ele at que o reclamem. No podemos deixar o pobre animal morrer de frio durante

    o Inverno, ou cair nas mos de gente m que o encha de pancada e o deixe sucumbir de fadiga e de fome.

    Gino deu-me de beber e de comer, acariciou-me e saiu. Ouvi-lhe dizer quando fechava a porta:

    Deus queira que no tenha dono e que fique connosco.

    No dia seguinte, Gino, depois de me ter dado de almoar, ps-me um cabresto e levou-me para a porta,

    onde a av me ps uma albarda muito leve, sentando-se em cima. Gino trouxe-lhe um pequeno cesto com

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    legumes, que ela ps nos joelhos, e partimos para a feira de Mamers. A boa mulher vendeu os seus

    legumes com um lucro razovel, ningum me reconheceu e eu voltei para os meus novos donos.

    Vivi em casa deles durante quatro anos. Era feliz, no fazia mal a ningum, cumpria bem o meu dever;

    gostava muito do meu jovem dono, que nunca me batia; no me cansavam nunca e alimentavam-me com

    fartura. No sou guloso. De Vero, comia os restos dos legumes, ervas que os cavalos e as vacas

    rejeitavam; de Inverno, comia feno e cascas de batatas, cenouras, nabos. Esta a alimentao de que ns,

    os burros, precisamos.

    Havia, no entanto, alguns dias de que no gostava nada. Eram aqueles em que a minha dona me alugava a

    rapazes da vizinhana. Como no era rica, nos dias em que no me dava trabalho, ganhava uns cobres

    alugando-me aos rapazes que habitavam no palcio, e que, vamos l, no eram nada simpticos nem bons.

    Vou contar o que me sucedeu um dia, num desses passeios.

    4

    A ponte

    Havia seis burros alinhados no ptio; eu era o mais bonito e o mais forte. Trs pequenitos trouxeram-me

    aveia. Enquanto comia, ouvia as crianas tagarelarem.

    CARLOS - Vamos l escolher os nossos burros. Eu fico com este (e apontava para mim).

    - Tu escolhes sempre o que te parece melhor - disseram ao mesmo tempo as cinco crianas.

    - melhor tirar sorte.

    CARLOS - Como que queres tir-lo sorte, Carolina? Os burros no se podem meter dentro de um

    saco como se fossem bolas.

    ANTNIO- No sabes o que dizes! Ento no se podem numerar: 1, 2, 3, 4, 5, 6, meter os nmeros num

    saco e cada um tirar o seu ao acaso?

    - verdade, verdade! - exclamaram os outros. - Ernesto: escreve tu os nmeros, enquanto ns os

    escrevemos no corpo dos animais.

    Estas crianas so tolas - pensava eu. - Se tivessem esprito, como um burro, em vez de se darem ao

    trabalho de escrever os nmeros nos nossos corpos, encostavam-nos simplesmente ao muro: o primeiro

    seria 1, o segundo 2, e assim por diante.

    Entretanto, Antnio escreveu com um carvo um enorme 1 na minha garupa. E passou ao companheiro

    que estava a meu lado; mas eu, para lhe demonstrar que a sua inveno no era coisa por a alm, fiz um

    movimento e o carvo desapareceu.

    - Imbecil! - exclamou ele. - Tenho de recomear.

  • E ps-se de novo a rabiscar o seu n. 1; mas o meu companheiro, que vira o que eu tinha feito e era um

    finrio, sacudiu-se de tal modo que o n. 2 desapareceu. Antnio comea a irritar-se e os outros riam e tro

    avam dele. Fao sinal aos companheiros e ningum se mexe. Ernesto volta com os nmeros num leno e

    todos metem a mo. E enquanto eles olhavam para os

    seus nmeros, um novo sinal aos companheiros e todos nos pomos a sacudir o corpo. Adeus, carvo,

    adeus nmeros.

    20

    preciso voltar ao princpio. As crianas esto furiosas. Carlos triunfa e caoa; Ernesto, Alberto,

    Carolina, Ceclia e Lusa gritam contra Antnio, que bate com os ps. Injuriam-se uns aos outros, e eu e

    os meus companheiros comemos a relinchar. O tumulto faz acudir os paps e as mams. Explicam-lhes

    o que se passa. Um dos paps encosta-nos ao muro. As crianas tiram os nmeros.

    - Um - grita Ernesto. (Um era eu.)

    - Dois! - diz Cecilia. (Era um dos meus amigos. )

    - Trs! -disse Antnio. E assim seguidamente, at ao ltimo.

    - Agora, toca a partir - disse Carlos. - Eu vou adiante.

    - Eu te apanharei, no tarda - disse vivamente Ernesto.

    - A apostar que no - replicou Carlos.

    -Pois eu aposto que sim - respondeu Ernesto.

    Carlos deu uma paulada no seu burro que partiu a galope. Antes de dar tempo a Ernesto de me chicotear,

    larguei atrs de Carlos e passei-lhe adiante. Carlos fica furioso e o seu burro que paga as favas. Ouo os

    outros que nos seguem rirem s gargalhadas.

    Bravo ao burro n. 1, que corre como um cavalo. O amor-prprio d-me coragem; continuo a galopar at

    que chegamos entrada de uma ponte. Paro bruscamente; acabava de notar que uma das pranchas, a mais

    larga, estava podre. No queria cair gua com Ernesto. Voltei para trs, para ir ter com os outros que

    ainda vinham longe.

    - Anda, burrico - gritava Ernesto. - Para a ponte, meu amigo, para a ponte!

    Eu resisto e ele d-me uma paulada.

    Continuo a caminhar de encontro aos outros.

    21

    - Maldito burro! Teimoso! Voltas ou no voltas para atravessarmos a ponte?

    Eu continuava a caminho ao encontro dos meus companheiros e alcancei-os, por fim, apesr das injrias e

    das pancadas do malvado rapaz.

    22

    - Porque ests a bater no teu burro, Ernesto?exclamou Carolina. - Pois olha que excelente; trota bem.

    -Bato-lhe, porque teima em no atravessar a ponte - respondeu Ernesto. - Voltou para trs sem eu querer.

    -Talvez por estar s. Vais ver que a atravessa, agora que estamos todos.

    Desgraados - pensei eu. - Vo cair ao rio. Preciso de lhes mostrar que h perigo.

    E galopei para a ponte com grande satisfao de Ernesto e no meio dos gritos de alegria dos outros

    pequenos.

    Mas logo que cheguei ponte, estaquei bruscamente como se tivesse medo. Ernesto, admirado, quer

    forar-me a prosseguir; recuo com mostras de terror, o que surpreendeu mais ainda Ernesto. O imbecil

    no viu nada. Pois a tbua podre estava bem vista! Os outros estavam junto de ns e riam-se muito,

    vendo os esforos que Ernesto fazia para me obrigar a entrar na ponte, sem conseguir que eu desse mais

    um passo. Desceram dos burros e comearam a empurrar-me, batendo-me sem d nem piedade. Mas eu

    no arredei p.

    - Puxem-lhe pelo rabo! - gritou Carlos. - Os burros so to teimosos que, quando a gente quer que eles

    andem, recuam.

    Como queriam agarrar-me a cauda, atiro-lhes um par de coices. Batem-me todos uma, sem que isso me

    demova do meu propsito.

    - Espera a, Ernesto - disse Carlos. - Vou passar adiante. Vers como o teu burro me segue logo.

    Mas como eu me colocasse atravessado entrada da ponte, os rapazes deram-me bordoada de criar bicho.

    23

    Pensei com os meus botes:

  • Ai, sim! Esse malvado quer afogar-se? Pois que se afogue. Pela minha parte fiz todos os esforos para o

    salvar.

    Mal o seu burro tinha dado uns passos, a tbua podre partiu-se, e Carlos e o burro caem de cambulhada na

    gua. No havia perigo para o meu companheiro, que sabia nadar como todos os burros, mas Carlos que

    gritava e se debatia aflitivamente.

    - Uma tbua! uma tbua. - dizia ele.

    Os pequenos corriam em todas as direces, fazendo uma gritaria ensurdecedora. Por fim,

    Carolina encontrou uma grande vara e estendeu-a a Carlos, que a agarrou com sofreguido. Mas o seu

    peso arrastou Carolina, que se ps a gritar por socorro. Ernesto, Antnio e Alberto correm para ela, e

    conseguem, com grande custo, tirar Carlos da gua, ensopado dos ps cabea. Foi ento o momento de

    todos se encangalharem a rir com a cara de parvo que ele fazia, aconselhando-o a voltar para casa, a fim

    de mudar de fato. Todo alagado, Carlos salta para cima do seu burro. Eu ria-me,

    sucapa, da sua figura ridcula. A corrente levara-lhe o chapu e os sapatos, a gua escorria pelo cho, os

    cabelos colavam-se-lhe cara. Os pequenos riam-se a bom rir, os meus companheiros saltavam e corriam

    para testemunhar a sua alegria.

    Devo acrescentar que o burro que Carlos montava no tinha as simpatias de nenhum de ns, porque era

    quezilento, guloso e estpido, o que coisa rara entre os burros.

    Carlos desapareceu e tudo voltou calma ordinria. Todos me acariciaram e admiraram o meu esprito sa

    gaz. Pusemo-nos de novo a caminho, indo eu frente do bando.

    5

    O cemitrio

    amos agora a passo e estvamos prximo do cemitrio da aldeia que fica a uma lgua do palcio.

    - No seria melhor voltarmos? - disse Carolina.

    - Atravessaremos a floresta.

    - Porqu? - disse Cecilia.

    CAROLINA - No gosto de cemitrios.

    CECLIA (com ar de troa) - No gostas de cemitrios, porqu? Tens medo de ficar l?

    - No, mas penso nas pessoas que esto l enterradas, e faz-me pena.

    Todos se puseram a troar de Carolina e foram passar, propositadamente, rente ao muro. Iam j a dobrar a

    esquina, quando Carolina, inquieta, fez parar o seu burro, apeou-se e correu para a porta do cemitrio. . .

    - Que , Carolina? Aonde vais? - exclamaram os pequenos.

    Carolina no respondeu; empurrou precipitadamente o porto, entrou no cemitrio, olhou em roda e

    correu para um coval cuja terra estava remexida de fresco.

    Ernesto seguira-a com inquietao e alcanou-a no momento em que ela se abeirava de um tmulo,

    erguendo nos braos um rapazinho de trs anos, cujos gemidos ouvira.

    - Que tens, pequeno? Porque choras?

    A criana soluava e no podia responder; era mui to bonita e estava vestida pobremente.

    CAROLINA - Quem te deixou aqui sozinho?

    CRIANA (a soluar) - Abandonaram-me aqui. Tenho fome.

    CAROLINA- Quem que te abandonou?

    CRIANA (continuando a soluar) - Os homens de

    preto. Tenho fome.

    Ernesto aparecia seguido de todo o grupo que viera atrado pela curiosidade. O pequeno comeou a

    comer, com sofreguido, frango frito e po. medida que ia comendo, secavam-se-lhe as lgrimas

    e retomava o aspecto risonho. Logo que o viu saciado, Carolina perguntou-lhe porque que estava

    deitado naquele tmulo.

    CRIANA - Meteram l a minha av e estou espera de que ela saia.

    CAROLINA- Onde est o teu pai?CRIANA

    - No sei; no o conheo.

    CAROLINA- E a tua me?

    CRIANA - No sei. Os homens vestidos de preto levaram-na, como levaram a av.

    CAROLINA - Mas quem que trata de ti?

  • CRIANA - Ningum.

    CAROLINA - Quem te d de comer?

    CRIANA - Ningum; mamava na minha ama.

    CAROLINA - Onde est ela?

    CRIANA- Est em casa.

    CAROLINA - Que faz ela?

    CRIANA - Passeia, come erva.

    26

    CAROLINA - Erva?

    Os pequenos entreolharam-se, com surpresa.

    - Estar doido? - disse Ceclia em voz baixa. ANTNIO-No sabe o que diz, ainda muito novo.

    CAROLINA - Porque que a tua ama no te levou consigo?

    CRIANA- No pode, no tem braos.

    A surpresa dos pequenos redobrou.

    CAROLINA-Ento como que ela te pega ao colo?

    CRIANA - Ponho-me s cavalitas dela.

    CAROLINA - Dormes com ela?

    CRIANA- No! No podia ser.

    CAROLINA - Onde que ela dorme? No tem cama?

    A criana ps-se a rir e disse:

    - No, dorme em cima da palha.

    - Que quer dizer isto? - disse Ernesto. - Vamos pedir-lhe que nos conduza a sua casa e ali veremos a ama,

    que no deixar de nos explicar o que ele quer dizer.

    - Confesso que no compreendo nada - disse Antnio.

    CAROLINA - Podes voltar para casa, meu pequeno?

    CRIANA-Posso, mas no hei-de ir s. Tenho medo dos homens de preto, que esto todos no quarto da

    minha av.

    CAROLINA - Iremos todos contigo. Indica-nos o caminho.

    Carolina montou no seu burro e ps o pequenito ao colo. Cinco minutos depois chegmos todos cabana

    27

    da tia Thibaut, que morrera na vspera e fora enterrada nessa manh. A criana correu para casa, e gritou:

    - Ama, ama! Logo uma cabra saiu do curral, que tinha ficado aberto, correu para o pequenito e

    testemunhou a sua alegria de o tornar a ver, com mil saltos e carcias. A criana beijou-a e disse:

    - Mamar, ama.

    A cabra estendeu-se logo no cho, e o petiz aninhou-se junto dela e ps-se a mamar como se no tivesse

    comido nem bebido.

    - Agora j est explicado o caso da ama - disse Ernesto. - Que vamos fazer desta criana?

    - Nada - disse Antnio -; deixemo-la com a sua cabra.

    Todos gritaram, indignados.

    CAROLINA -Seria um crime abandonar este pobre pequeno. No tardaria a morrer, por falta de cuidados.

    ANTNIO-Que queres fazer dele? Vais lev-lo

    para tua casa?

    CAROLINA- Sim. Pedirei mam que mande averiguar quem ele , se tem parentes, e enquanto no

    sabemos nada, ficar em nossa casa.

    ANTNIO -Ento o nosso passeio de burro? Voltamos j para casa?

    CAROLINA - No. Ernesto vai fazer o favor de me acompanhar e vocs continuam o seu passeio. So

    quatro, podem bem dispensar-me e ao Ernesto.

    - A Carolina tem razo - disse Antnio. - Montemos e continuemos o nosso passeio.

    E abalaram, abandonando a boa Carolina com o seu primo Ernesto.

    - Que felicidade no me terem dado ouvidos, quando eu pretendi afastar-me do cemitrio! -dizia

    28

    Carolina. - Nunca teria ouvido chorar este pequeno, que teria passado a noite sobre a terra fria e hmida!

    Ernesto montava-me. Compreendi, com a minha habitual inteligncia, que era foroso chegar depressa ao

    palcio. Comecei portanto a galopar, seguido de perto pelo meu camarada, e da a meia hora,

  • chegvamos. Todos se assustaram com o nosso regresso to cedo. Carolina contou o que lhes tinha

    acontecido, e sua me ficou perplexa sem saber o que havia de fazer da criana. Felizmente, apareceu

    naquele momento a mulher do guarda, que se ofereceu para o criar, visto ter um filho da mesma idade. A

    me aceitou o oferecimento e mandou perguntar aldeia o nome do rapazinho e o que era feito dos seus.

    Soube-se, ento, que o pai tinha morrido no ano anterior e a me seis meses depois; a criana tinha ficado

    com uma velha av muito m e avarenta, que tinha morrido na vspera. Ningum fizera caso da criana,

    que seguira o enterro at ao cemitrio.

    A av tinha de seu, pelo que o pequenito no ficava pobre. Mandaram buscar a cabrinha para casa do

    guarda e o rapazinho cresceu, sendo sempre bom. Conheo-o; chama-se Joo Thibaut, nunca fez mal aos

    animais, o que prova o seu bom corao; e gosta muito de mim, o que prova a sua inteligncia.

    6

    O esconderijo

    J disse, mais atrs, que vivia feliz. Mas a minha felicidade devia ser sol de pouca dura. O pai de Gino era

    soldado; voltou terra com dinheiro, e uma medalha que lhe tinha sido concedida. Comprou uma casa em

    Mamers, levou consigo o pequenito e a velha me, e vendeu-me a um vizinho que era proprietrio de uma

    pequena quinta. Fiquei muito triste por ter de deixar a minha velha dona e o meu pequeno Gino, que to

    bons tinham sido para mim.

    O meu novo dono no era m pessoa, mas tinha a pretenso de querer que todos trabalhassem. Para isso

    atrelava-me a uma carrocinha, onde transportava terra, estrume, mas, lenha. Eu comeava a fazer-me

    preguioso. No gostava de me ver atrelado, principalmente nos dias de feira. Verdade que no me

    carregavam muito nem me batiam, mas ficava, nesses dias, sem comer at s trs ou quatro horas da

    tarde. Quando o calor apertava, morria de sede, e tinha de esperar que vendessem tudo, que o meu dono

    recebesse o dinheiro, que se despedisse dos amigos na taberna, onde beberricavam sade uns dos outros.

    Nessas ocasies, eu no era nada bom; queria que me tratassem com amizade, caso contrrio, vingava-

    me. Vou-lhes contar o que um dia imaginei. Vero que os

    30

    burros no so estpidos e que eu comeava a tornar-me mau.

    No dia da feira, toda a gente na quinta se levantava mais cedo do que habitualmente. Iam apanha dos

    legumes, batia-se a manteiga, ajuntavam-se os ovos. Durante o Vero eu dormia ao ar livre, num vasto

    prado, donde via e ouvia os preparativos, e sabia que s dez horas da manh deviam vir buscar-me para

    me atrelar carroa, j cheia de tudo o que era destinado venda. J disse que essas idas feira me

    aborreciam e fatigavam. Tinha visto que havia no prado uma grande cova cheia de silvas; pensei que

    podia esconder-me ali de modo que no me encontrassem quando me fossem buscar. No dia da feira, logo

    que vi comear a azfama na quinta, desci devagarinho para a cova e escondi-me to bem que era

    impossvel darem comigo. Estava ali havia uma hora, encolhido debaixo das silvas, quando ouvi o rapaz

    chamar-me, correndo em todas as direces, e voltar depois para a quinta. Certamente, avisou o patro de

    que eu tinha desaparecido, porque momentos depois ouvi a voz do lavrador a chamar a mulher e os

    criados da quinta para me procurarem.

    - Talvez passasse pela sebe - dizia um.

    - Por onde querias tu que ele se metesse?A sebe no tem nenhuma abertura. . .

    - Talvez deixassem a cancela aberta - disse o patro. - Corram-me esses campos, rapazes, que ele no

    deve estar longe, e tragam-mo depressa, porque o tempo passa e vamos chegar tarde.

    Cada um por seu lado, percorreram campos e bosques chamando por mim. E eu a rir-me baixinho no meu

    esconderijo! Os pobres diabos voltaram suados, arquejantes, depois de uma hora de pesquisas inteis. O

    patro jurou-me pela pele, disse que provavelmente

    31

    me deixara roubar estupidamente, mandou atrelar um cavalo e partiu a resmungar. Logo que vi tudo em

    sossego e que ningum podia ver-me, meti com precauo a cabea de fora, olhei em volta e, no vendo

    ningum, sa da cova, corri at ao fim do prado, para que no pudessem adivinhar onde estivera, e

    comecei a zurrar com quanta fora tinha.

    Ao ouvirem o barulho, os criados acudiram.

    - Olha, j voltou! - exclamou o pastor.

  • - Donde vir ele? - disse a patroa.

    - Por onde que ele passaria? - observou o carroceiro.

    Alegre e contente por me ter visto livre da feira, corri para eles. Receberam-me com carcias, disseram-

    me que tinha sido um valente por ter fugido s pessoas que me tinham roubado, e outros cumprimentos

    deste gnero que muito me envergonharam, porque bem sabia que no eram merecidos. Deixaram-me

    pastar tranquilamente e teria passado um belo dia se a minha conscincia me no censurasse por ter

    enganado os meus donos.

    Quando o patro voltou e soube do meu aparecimento, ficou muito contente, mas surpreendido. No dia

    seguinte deu uma volta pelo prado e tapou com todo o cuidado todos os buracos que havia na sebe.

    -Vamos a ver agora se ele desaparece -disse ele. - Tapei com silvas os mais pequenos buracos. Nem um

    gato pode passar.

    A semana decorreu tranquilamente, tendo sido esquecida a minha aventura. Mas no dia da feira seguinte,

    fui meter-me outra vez na cova para me poupar caminhada. Procuraram-me como na semana anterior e

    julgaram que tinha sido habilmente levado por um ladro.

    32

    - Desta vez - disse o meu dono com tristeza - est perdido definitivamente. Nem que quisesse voltar, no

    o poderia fazer, porque tapei cuidadosamente todos os buracos da sebe.

    E foi-se embora suspirando, atrelando um dos cavalos carroa. Como na semana anterior, sa do

    esconderijo logo que no avistei ningum; mas julguei mais prudente no anunciar o meu regresso com

    zurros.

    Quando me viram a pastar tranquilamente e quando o meu dono soube que eu tinha voltado pouco tempo

    depois da sua partida, percebi que ficaram de p atrs, porque ningum me elogiou ou acariciou, olharam

    para mim desconfiados e notei que era mais vigiado do que dantes.

    - Ri-me deles e pensei de mim para mim:

    Meus bons amigos, dou-lhes um doce se descobrirem a partida que Lhes fao. Sou mais fino do que vo

    cs todos juntos.

    Escondi-me pela terceira vez, muito satisfeito com a minha esperteza. Mas, ainda bem no me acomodara

    no fundo da cova, quando ouvi os latidos formidveis do grande co de guarda e a voz do meu dono, que

    dizia:

    -Agarra, Sulto, agarra; agarra! Desce cova, morde-lhe as pernas e tr-lo. Agarra, agarra!

    Sulto meteu-se na cova e comeou a morder-me as pernas e a barriga; e ter-me-ia devorado se eu no

    sasse precipitadamente do esconderijo. Ia j a correr para a sebe, a fim de procurar uma passagem,

    quando o lavrador me atirou um lao que me fez parar subitamente. Depois, chicoteou-me sem d nem

    piedade, enquanto o co continuava a morder-me e eu me arrependia amargamente da minha preguia.

    Cansado de me maltratar, o lavrador mandou embora o co, ps-me

    33

    o cabresto e atrelou-me carroa, que j estava pronta a partir.

    Soube mais tarde que um dos pequenos da quinta tinha ido para junto da cancela, a fim de ma abrir se eu

    voltasse e, tendo-me visto sair da cova, avisara o pai. O pequenino traidor!

    Fiquei a querer-Lhe mal pelo que eu chamava a sua malvadez, at ao momento em que as minhas

    desgraas e a minha experincia me fizeram perceber melhor.

    Desde ento trataram-me com muita severidade; quiseram fechar-me, mas tive meio de abrir todos os

    obstculos com os dentes: se era um aloquete, levantava-o; se era um fecho, dava-lhe uma volta; se era

    um ferrolho, empurrava-o. Entrava em toda a parte e saa de toda a parte. O lavrador praguejava e batia-

    me; era cada vez mais spero comigo e eu odiava-o. Sentia-me desgraado por minha culpa: comparava a

    minha vida miservel com a que levava outrora em casa destes mesmos donos; mas, em vez de me

    corrigir, tornava-me cada vez pior e mais teimoso. Um dia entrei na horta e comi todas as alfaces; noutro,

    atirei ao cho o rapaz que me tinha denunciado; uma vez, bebi uma selha de nata que tinham posto ao ar

    para fazer manteiga. Matava os franguinhos, os peruzinhos, mordia os porcos. A coisa foi to falada que a

    minha dona pediu ao mari do que me vendesse na feira de Mamers, que era da a quinze dias. Estava

    magro e escanzelado, fora de pancadas e falta de bom alimento. Quiseram pr-me na engorda para

    obterem mais lucro com a minha venda. Proibiram todos os maus tratos, no me fizeram trabalhar e

    alimentaram- me bem. Durante quinze dias fui um rei pequeno.

    O meu dono levou-me feira e vendeu-me. Ao deix-lo, apeteceu-me dar-lhe uma dentada, mas receei

  • 34

    que os meus novos donos ficassem a fazer mau conceito de mim e contentei-me em lhe virar o lombo, em

    sinal de desprezo.

    O medalho

    Fui comprado por um homem e uma senhora que tinham uma filha de l2 anos, doente e triste, que no

    acompanhava com amigos porque os no tinha no campo. O pai no se importava com ela, mas era o

    enlevo da me. Porm no podia admitir que ela gostasse de outra pessoa, nem mesmo de nenhum

    animal. Mas como o mdico tinha recomendado distraces, pensou que os passeios de burro seriam para

    ela um prazer. A minha pequena dona chamava-se Paulina e era muito boazinha, meiga e linda. Montava-

    me todos os dias e eu levava-a a passear por bonitas alamedas de bosques que conhecia. Ao princpio, ia

    connosco um criado ou uma criada; como vissem, porm, que eu era manso e cauteloso, deixaram-na ir

    sozinha. Ela comeou a chamar-me Cadichon, nome que ficou para sempre.

    - Vai passear com Cadichon - dizia-lhe o pai. Com um burro assim, no h perigo. to inteligente como

    um homem e saber reconduzir-te sempre a casa.

    Saamos, portanto, os dois. Quando a sentia fatigada, encostava-me a um muro baixo ou descia a um

    valado para que ela se pudesse apear facilmente. Levava-a debaixo de nogueiras carregadas de nozes, e

    parava

    35

    para a deixar apanhar nozes vontade. A pequenita gostava muito de mim, apaparicava-me, acariciava-

    me. Quando chovia e no podamos sair, vinha visitar-me cavalaria; trazia-me po, erva fresca, folhas

    de alface, cenouras; e ficava comigo muito tempo, falando-me, julgando que eu no a comprendia;

    contava-me as suas arrelias. e s vezes at chorava.

    u Oh! meu pobre Cadichon - dizia ela - s um

    burro e no podes compreender-me, mas s o meu nico amigo; s a ti que posso dizer tudo o que

    penso. A minha me gosta de mim, mas muito ciumenta;

    quer que eu goste s dela; no conheo ningum da

    minha idade e ando muito aborrecida.

    E Paulina chorava e fazia-me festas. Eu tambm

    gostava muito dela e lastimava-a. Quando a via ao p

    de mim, ficava muito quieto para no a magoar.

    Um dia, Paulina veio ter comigo, a correr cheia de

    alegria.

    cCadichon, Cadichon - exclamou ela. - A minha

    me deu-me um medalho com os seus cabelos; quero ter tambm os teus, porque sei que s muito meu

    amigo.

    E Paulina cortou plos da minha crina, abriu o medalho e misturou-os com os cabelos da me.

    Confesso que estava orgulhoso por ver os meus plos num medalho de Paulina, que tanto gostava de

    mim, mas devo confessar que era deplorvel o efeito

    que eles faziam, rijos, cinzentos e espessos, junto dos cabelos sedosos da mam. Paulina no o notava e

    mirava e remirava o medalho quando a sua me entrou.

    - Que ests aqui a fazer? - disse ela.

    - Estou a olhar para o medalho, minha me respondeu Paulina, escondendo-o na mo.

    ME - Porque que o trouxeste para aqui?

    36

    PAULINA - Para o mostrar a Cadichon.

    ME -Tola! parece que perdes a cabea com o teu Cadichon, Paulina! Como se ele pudesse compreender

    o que um medalho com cabelos!

    PAULINA-Oh! minha me! Olhe que ele compreende tudo. At me lambeu a mo quando. . . quando. . .

    (Paulina corou e calou-se. )

    ME - Acaba. Porque que Cadichon te lambeu a mo?

    PAULINA (confusa) - No digo. Tenho medo de que a me me ralhe.

    ME (com vivacidade) - Que tolices ters tu feito? Vamos, diz l. . .

  • PAULINA - No fiz nenhuma tolice, minha me. Pelo contrrio.

    ME - Ento que medo esse? Aposto que deste aveia de mais ao burro.

    PAULINA- Pelo contrrio. . minha me. . - Pelo contrrio!

    - Comeo a perder a pacincia, Paulina. Quero que me digas o que fizeste e porque andas c por fora h

    perto de uma hora.

    Efectivamente, a colocao dos meus plos dentro do medalho tinha sido demorada: tirar o papel colado

    na tampa do medalho, depois o vidro, meter l dentro os plos e tornar a colar tudo.

    Paulina ainda hesitou, mas por fim disse em voz baixa:

    - Cortei os plos a Cadichon para. . .

    ME (com impacincia) - Para qu? Vamos, diz. Para qu?

    PAULINA - (em voz baixa) - Para meter no medalho.

    ME (furiosa) - Qual medalho?

    PAULINA - Aquele que a me me deu.

    37

    ME (no mesmo tom) - O que te dei com os meus cabelos? E que fizeste dos cabelos?

    - Esto no medalho. Olhe - respondeu a pobre Paulina mostrando o medalho.

    -Os meus cabelos misturados com os plos do burro! - exclamou ela com arrebatamento. - Essa agora de

    mais! No merecias o presente que te dei. Pr-me ao nvel de um burro! Ter por um burro a mesma

    ternura que tens por mim!

    E arrancando o medalho das mos da infeliz Paulina, atirou-o ao cho, pisou-o aos ps e f-lo em mil

    bocados. Depois, saiu da cavalaria sem olhar para a filha, atirando a porta com violncia.

    Paulina, surpreendida e aterrada com esta clera sbita, ficou imvel alguns instantes. Mas no tardou a

    38

    chorar copiosamente, e abraando-me pelo pescoo, disse-me:

    - Cadichon, Cadichon, vs como me tratam? No vs como me tratam? No querem que eu goste de ti,

    mas hei-de gostar, quer queiram quer no, porque tu s bom e no ralhas comigo; nunca me ds um

    desgosto e procuras divertir-me quando me levas a passear. Ah! Cadichon, que pena no poderes

    compreender e falar! Quantas coisas te diria!

    Paulina calou-se, deitou-se no cho e continuou a soluar baixinho. Eu estava comovido com os seus

    desgostos, mas no podia consol-la, nem sequer demonstrar-Lhe que a compreendia. Sentia-me irritado

    contra aquela me que, por estupidez ou excesso de ternura pela filha, a fazia infeliz. Se pudesse, ter -lhe-

    ia dito que fazia mal em dar desgostos a Paulina, pois, assim, poderia agravar o seu estado, mas como no

    podia falar, olhava com tristeza para o seu rosto banhado de lgrimas.

    Um quarto de hora depois da partida da me, uma criada abriu a porta, chamou Paulina e disse-lhe:

    - A sua me chama-a; no quer que fique na cavalaria com Cadichon, nem que volte c.

    -Cadichon, meu pobre Cadichon! -exclamou Paulina. - Nem querem que te torne a ver!

    -No, menina, no bem isso. V-lo- quando for passear. A sua me diz que o seu lugar na sala e no

    na cavalaria.

    Paulina no replicou porque sabia que sua me gostava de ser obedecida. Abraou-me e beijou-me pela

    ltima vez, e senti correr as suas lgrimas no meu pescoo. Saiu e no voltou mais. Desde ento comeou

    a entristecer, a tossir, a empalidecer, a emagrecer. O mau tempo no permitia que fssemos passear.

    Quando me levavam para o ptio Paulina montava-me sem me

    39

    dirigir a palavra; mas quando estvamos longe das vistas dos outros, apeava-se, acariciava-me e contava-

    me os seus desgostos para aliviar o corao, pensando que eu no podia compreender. Foi por isso que

    soube que sua me tinha ficado muito aborrecida e de mau humor depois da cena do medalho, e que

    Paulina se aborrecia e entristecia cada vez mais, fazendo com que a doena progredisse e se tornasse de

    dia para dia mais grave.

    8

    O incndio

    Uma noite, quando comeava a adormecer, fui despertado por gritos de Fogo! Fogo! Inquieto e aterrado,

    procurei soltar-me da correia que me prendia, mas por mais puxes que lhe desse, nada consegui. Tive

  • ento a feliz ideia de a cortar com os dentes. O claro do incndio iluminava a minha pobre cavalaria; os

    gritos e o rumor aumentavam; ouvia as lamentaes dos criados, o ruir das paredes e dos sobrados; o

    fumo j entrava na cavalaria e ningum pensava em mim, ningum tinha tido a ideia caritativa de me

    abrir a porta. As chamas alteavam-se com violncia; sentia um calor incmodo que comeava a sufocar-

    me.

    No h nada a fazer! - pensava eu. - Estou condenado a morrer queimado vivo. Que morte horrvel! Oh!

    Paulina, minha dona querida, esqueces-te de mim?

    40

    Mal tinha, no pronunciado, mas pensado estas palavras, a porta abriu-se com violncia e ouvi a voz

    aterrada de Paulina que me chamava. Contente por me ver salvo, corri para ela e amos j a sair, quando

    se fez ouvir um desmoronamento espantoso. Tinha desabado uma parte do edifcio que ficava defronte da

    cavalaria, e os seus destroos impediam a passagem; a minha pobre dona ia morrer por ter querido

    salvar-me. Paulina deixou- se cair junto de mim. Tomei subitamente um partido perigoso, mas que era a

    nica maneira de nos podermos salvar. Agarrei com os dentes no vestido da minha pequenina dona

    desmaiada e saltei por cima das traves a arder. Tive a felicidade de atravessar tudo sem que o fogo se

    pegasse aos seus vestidos, parei com o fim de ver para que lado havia de me dirigir, mas estvamos

    cercados pelas chamas. Desesperado, desanimado, ia poisar no cho Paulina completamente desmaiada,

    quando vi uma das adegas aberta. Entrei precipitadamente, sabendo que estaramos em segurana nos

    subterrneos abobadados. Depus Paulina ao p de uma selha cheia de gua, a fim de que ela pudesse

    molhar as fontes quando voltasse a si, o que no tardou a suceder. Quando se viu salva e ao abrigo do

    perigo, ajoelhou-se e orou a Deus por t-la preservado de to grande calamidade. Depois agradeceu-me

    com um carinho e um reconhecimento to fervoroso que fiquei enternecido. Bebeu alguns golos de gua e

    ps-se escuta. O fogo continuava os seus destroos; tudo ardia; ainda se ouviam alguns gritos mas

    vagamente e sem se distinguirem as vozes.

    - Minha pobre me e meu pobre pai! - disse Paulina. - Devem julgar que morri desobedecendo-lhes para

    ir salvar Cadichon. Agora preciso esperar que o fogo se extinga. Passaremos provavelmente a noite

    41

    nesta adega, bom Cadichon - acrescentou ela - e graas a ti que estou viva.

    No disse mais nada, sentou-se num caixote e vi que adormecia, com a cabea encostada a um tonel

    vazio. Eu sentia-me fatigado e com sede. Bebi a gua da selha e estendi-me ao p da porta, no tardando a

    adormecer tambm.

    S acordei ao romper do dia. Paulina ainda dormia. Levantei-me devagarinho e fui porta, que entreabri.

    Estava tudo queimado e apagado. Podia facilmente saltar por cima dos escombros e alcanar o ptio do

    palcio. Zurrei, para acordar a minha dona. Efectivamente, ela abriu os olhos e vendo-me porta correu

    para mim e olhou em volta.

    - Tudo queimado! - disse ela tristemente. - Tudo perdido! Nunca mais verei o palcio; morrerei antes que

    o reconstruam, porque estou fraca e doente, apesar da minha me o no acreditar. . .

    - Vamos, meu Cadichon -continuou ela, depois de ter ficado por instantes pensativa e imvel -, saiamos

    agora. Vamos procurar os meus pais para os tranquilizar, porque me julgam morta. . .

    Saltou por cima das pedras e das traves fumegantes, e eu segui atrs dela. No tardmos a chegar ao

    prado. Paulina montou-me e eu dirigi-me para a aldeia, onde no tardmos a encontrar a casa onde se

    tinham refugiado os seus pais. Quando estes a viram deram um grito de alegria e correram para ela. A

    pequenita contou-lhes com que inteligncia e coragem eu a tinha salvado.

    Em vez de correrem para mim, para me agradecerem e acariciarem, a me olhou para mim com um ar

    indiferente e o pai nem se dignou olhar.

    42

    - Foi por causa dele que tu ias morrendo, minha filha - disse a me. - Se no tivesses tido a ideia

    disparatada de ir abrir-lhe a porta da cavalaria e solt-lo, no teramos passado uma noite to horrvel,

    teu pai e eu.

    - Mas - replicou vivamente Paulina - foi ele que. .

    - Cala-te - disse a me interrompendo-a. - No me fales mais deste animal que detesto e que esteve a

    ponto de te causar a morte.

    Paulina suspirou, olhou para mim compadecida e calou-se.

  • Nunca mais a tornei a ver. O terror que o incndio lhe causara, o cansao de uma noite mal passada sem

    se deitar na cama, e principalmente o frio da adega, fizeram progredir a doena de que padecia havia

    muito tempo. Nesse dia ficou a arder em febre, que nunca a abandonou. Meteram-na na cama donde

    nunca mais se devia levantar. O resfriamento daquela noite acabou o que a tristeza e o aborrecimento

    tinham comeado; morreu um ms depois, sem lamentar a vida, nem recear a morte. Falava muitas vezes

    em mim e chamava-me no seu delrio. Eu estava abandonado; comia o que encontrava, dormia ao ar livre,

    ao frio e chuva. Quando vi sair o caixo que levava o corpo da minha pobre ama, senti uma dor enorme;

    sa daquela terra onde nunca mais voltei.

    9

    A corrida de burros

    Eu vivia miseravelmente, por ser Inverno. Escolhi uma floresta onde mal encontrava o preciso para no

    morrer de fome e de sede. Quando o frio gelava os

    ribeiros, apagava a sede com a neve, tinha por nico alimento cardos e dormia debaixo dos pinheiros.

    Comparava a minha triste existncia com a que levara

    em casa do meu dono Gino e do lavrador que me tinha vendido. Enquanto no fora preguioso, mau e

    vingativo, a vida corria-me bem. No tinha maneira de sair deste estado miservel, porque queria ser livre

    e senhor das minhas aces. Ia amide aos arredores de uma aldeia que ficava prxima da floresta, para

    saber o que se passava no Mundo. Um dia - era Primavera e estava um tempo magnfico - fiquei

    surpreendido ao ver um movimento extraordinrio; a aldeia estava em festa; grupos de passeantes com os

    seus fatos domingueiros e

    todos os burros da regio, presos pelas rdeas, bem escovados e penteados; muitos tinham flores na

    cabea, roda do pescoo, e nenhum tinha albarda ou selim.

    singular! - pensei eu. - Hoje no h feira! Que faro aqui todos estes meus companheiros, assim to

    elegantes? E como esto gordos! Bem se v que os alimentaram bem este Inverno.

    44

    Olhei ento para mim mesmo; vi-me magro, esqueltico, com as crinas muito compridas, os plos

    eriados, mas sentia-me forte e vigoroso.

    Prefiro ser feio - pensava eu - mas lpido e cheio de sade; os meus companheiros, que vejo to bonitos,

    to gordos e bem tratados, no suportariam as fadigas e as privaes que eu suportei este Inverno.

    Aproximei-me para saber o que queria dizer aquela reunio de burros, quando um rapaz, que segurava um

    deles, me avistou e se ps a rir.

    - Eh! rapaz! - exclamou ele. -Vejam l o burro que nos chega ltima hora! No est to bem pen teado?

    - E bem tratado, bem alimentado! - exclamou outro. - Vir para a corrida?

    - Se essa a sua vontade, deix-lo correr - disse um terceiro. - No h perigo de que ganhe o prmio.

    Uma gargalhada geral acolheu estas palavras. Eu estava contrariado, arreliado com estes gracejos idiotas;

    mas fiquei sabendo que se tratava de uma corrida. Mas como? Era o que eu desejava saber. Continuei,

    portanto, a escutar e a fingir que no compreendia o que diziam.

    - Quando partimos? - perguntou um dos rapazes.

    - No sei. Esto espera do presidente da Cmara.

    - Onde que correm os burros? - perguntou uma mulher que chegava.

    JOOZINHO - No prado grande do moinho, tia Tranchet.

    TIA TRANCHET- Quantos burros esto aqui?

    JOOZINHO -Dezasseis sem contar consigo, tia Tranchet. (Nova gargalhada acolheu este gracejo. )

    45

    TIA TRANCHET (rindo) - s esperto. . . E que ganha o primeiro que chegar?

    JOOZINHO - Primeiro, a honra; depois, dinheiro e um relgio de prata.

    TIA TRANCHET-Quem me dera ter um burro para ganhar o relgio! Nunca tive dinheiro para comprar

    um.

    JOOZNHO- pena, . . . sempre era uma probabilidade de ganhar.

    TIA TRANCHET - Pois era. Mas onde que eu ia buscar de comer para ele?

  • Aquela boa mulher agradava-me. Parecia-me alegre e boa pessoa. Tive, por isso, a ideia de a fazer ganhar

    os prmios. Estava habituado a correr na floresta durante horas, no Inverno, para me aquecer, e tivera a

    fama de correr durante tanto tempo e to depressa como um cavalo.

    Tentemos - pensei eu. -Se perder, no perco grande coisa; se ganhar, farei ganhar um relgio tia

    Tranchet, que deseja ter um.

    Parti a trote e fui colocar-me ao lado do ltimo burro, com ares de fanfarro e zurrando com vigor.

    - Acaba l com essa msica - exclamou Andr. No tens dono, ests sujo, no podes correr.

    Calei-me, mas no arredei p. Uns riam, e outros zangavam-se, e j comeavam a questionar, quando a tia

    Tranchet exclamou:

    - Se no tem dono, vai ter uma dona. Reconheo-o. Cadichon, o burro da pobre menina Paulina.

    Soltaram-no quando a pequena j no o podia proteger e creio que viveu todo o Inverno na floresta,

    porque ningum lhe ps mais a vista em cima. Fica desde j ao meu servio, vai correr para mim.

    46

    - Cadichon! - gritaram de todos os lados -; eu ouvi falar desse famoso Cadichon.

    JOOZINHO - Se quer faz-lo correr por sua conta, tia Tranchet, tem de depositar uma moeda branca.

    TIA TRANCHET - L por isso no seja a dvida, meus filhos. A vai a minha moeda - acrescentou, de

    satando uma ponta do leno- Mas no me peam mais, porque no tenho.

    JOOZINHO - Se ganhar, no lhe faltaro moedas, porque toda a aldeia deitou no saco.

    Aproximei-me da tia Tranchet e fiz uma pirueta com um ar to decidido que os rapazes comearam a

    recear que eu ganhasse o prmio.

    - Ouve, Joozinho - disse Andr, baixinho. - Fizeste mal em deixar a tia Tranchet meter a moeda no saco.

    Agora tem ela o direito de fazer correr Cadichon, que bem capaz de nos levar o relgio e o dinheiro.

    JOOZINHO - Tolo! No vs a figura desse pobre Cadichon! Quanto muito, far-nos- rir.

    ANDR - Sei l! E se lhe mostrasse um molho de aveia, a ver se ele se safa?

    JOOZINHO - E a moeda da tia Tranchet?

    ANDR - Se o burro se safar, restitui-se-lha.

    JOOZINHO - Realmente, Cadichon tanto dela como teu ou meu. D-lhe a aveia, mas sem que a tia

    Tranchet veja a manobra.

    Eu ouvira e compreendera tudo, de modo que, quando Andr voltou com a aveia, eu dirigi-me para a tia

    Tranchet, que estava a conversar. Andr seguiu-me e Joozinho agarrou-me pelas orelhas, fazendo-me

    voltar a cabea, julgando que eu no vira a aveia. No me mexi, apesar da tentao de provar o petisco.

    Joozinho ps-se ento a puxar por mim, Andr a empurrar-me

    47

    e eu a zurrar, de tal modo que a tia Tranchet se voltou e viu a manobra do Andr e do Joozinho.

    - O que vocs esto a fazer, meus meninos, no est bem. Exigiram que metesse a minha moeda no saco e

    querem agora levar-me Cadichon. Parece que esto com medo dele!

    ANDR- Medo de um burro to feio? Era o que faltava!

    TIA TRANCHET - Ento para que estavam a puxar por ele?

    ANDR - Era para lhe dar aveia.

    TIA TRANCHET (maliciosa) - Ah! Ento o caso muda de figura. Deitem a aveia no cho para ele comer

    vontade. E eu a julgar que era partida! Como a gente se engana!

    Andr e Jooxinho estavam envergonhados e descontentes, os colegas riram-se por eles terem sido

    descobertos, a tia Tranchet esfregava as mos e eu estava encantado, comendo a aveia com avidez. De

    repente produziu-se grande agitao: era o presidente da Cmara que dava ordens para os burros

    alinharem. Eu fiquei, modestamente, no ltimo lugar. Todos perguntavam quem era o meu dono.

    - No tem dono - disse Andr.

    - meu! - gritou a tia Tranchet.

    PRESIDENTE DA CMARA - Tem de meter no saco uma moeda de prata, tia Tranchet.

    TIA TRANCHET- J meti, senhor presidente.

    - Bem. Inscrevam a tia Tranchet.

    - J est inscrita - disse o secretrio.

    - Est tudo pronto? - perguntou o presidente. Um, dois, trs!

    48

  • Os rapazes que seguravam os burros largaram-nos, dando uma chicotada em cada um. Todos partiram.

    Apesar de no estar preso por ningum, esperei honestamente a minha vez, levando os outros, portanto,

    um certo avano. Mas no tinham ainda dado cem passos e eu j os alcanava, indo frente do bando sem

    fazer um grande esforo. Os rapazes gritavam, fazendo estalar os chicotes para excitarem os seus burros.

    De vez em quando voltava a cabea, para ver as suas caras e contemplar o meu triunfo, rindo-me dos seus

    esforos. Os meus companheiros, furiosos por ficarem para trs, redobraram de esforos para me

    alcanarem e passarem frente. Ouvia atrs de mim gritos roucos, chicotadas; o burro do Joozinho

    esteve quase a passar-me frente por duas vezes; com um salto vigoroso ultrapassei-o, mas o Joozinho

    agarrou-me pela cauda com tanta fora que a dor esteve quase a fazer-me cair. O desejo da vingana,

    porm, deu-me asas, e corri com uma tal velocidade que no s cheguei em primeiro lugar, mas deixei

    muito longe os meus rivais. Estava arquejante, esgotado, mas contente e triunfante. Ouvi com alegria os

    aplausos dos espectadores espalhados pelo prado. Como um vencedor, voltei a passo at tribuna do

    presidente da Cmara, que devia distribuir os prmios. A boa tia Tranchet veio ao meu encontro, fez-me

    festas e prometeu-me uma boa rao de aveia.

    J ela estendia a mo para receber o relgio e o saco do dinheiro, quando Andr e Joozinho acorreram,

    gritando:

    - No justo, senhor presidente. Ningum conhece este burro, que pertence tanto tia Tranchet como a

    mim prprio. Este burro no conta, os nossos que chegaram primeiro. O relgio e o saco devem ser para

    ns.

    49

    - A tia Tranchet no meteu a moeda no saco?

    - Sim, senhor presidente, meteu.

    - Algum se ops quando ela o fez?

    - No. Mas. . .

    - Opuseram-se antes da partida dos burros?

    - No. Mas.

    - O burro da tia Tranchet que ganhou o relgio e o saco.

    - O senhor presidente no tem o direito de deliberar sozinho, deve reunir a Cmara para resolver a

    questo.

    O presidente ficou indeciso. Quando vi que ele hesitava, agarrei no relgio e no saco com os dentes e

    coloquei-os nas mos da tia Tranchet que, inquieta e trmula, esperava a deciso do presidente.

    Esse acto inteligente ps toda a multido do nosso lado e valeu-me uma torrente de aplausos.

    - A questo foi resolvida pelo vencedor a favor da tia Tranchet - disse o presidente, rindo-se. - Senhores

    50

    vereadores! Vamos deliberar se estou ou no no meu direito deixando administrar um burro. Meus

    amigos! - acrescentou ele maliciosamente, olhando para Andr e Joozinho. - Creio bem que o mais burro

    de ns no o burro da tia Tranchet. . .

    - Bravo! Bravo! - gritaram de todos os lados.

    E todos desataram a rir, excepto Andr e Joozinho, que foram corridos e me ameaaram de longe. E eu,

    estava contente? No! O meu orgulho revoltava-se; achei que o presidente tinha sido insolente a meu

    respeito, julgando injuriar os meus inimigos quando os classificou de burros. Era ingrato e cobarde. Eu

    tivera coragem, moderao e pacincia, e era aquela a minha recompensa! Depois de me terem insultado,

    abandonaram-me. A tia Tranchet, at essa, com a alegria de possuir um relgio e cento e trinta e cinco

    francos esquecia o seu benfeitor, no pensando mais na promessa de uma boa refeio de aveia, e ia-se

    embora no meio da multido sem me dar a recompensa que eu ganhara.

    10

    Os bons donos

    Fiquei sozinho no meio do prado, muito triste, com o meu ferimento na cauda, que me enchia de dores.

    Pensava se os burros no seriam melhores que os homens, quando senti mos muito macias correrem-me

    no

    51

    plo, e ouvi uma voz cheia de ternura dizer-me:

  • Pobre burrinho! Foram bem maus para ti! Vem comigo para casa da minha av, que te dar de comer e te

    tratar melhor do que os teus donos perversos! Como est magro, meu pobre burrinho!

    Voltei-me e vi um lindo rapaz de cinco anos; a irm, que teria talvez trs anos, vinha a correr com a

    criada, direita a ns.

    JOANA - Que ests a dizer a esse pobre burrinho, Tiago!

    TIAGO- Disse-lhe que viesse connosco para casa da av. Est to desamparado!

    JOANA - Leva-o, Tiago. Espera. Eu monto-o. Pe-me em cima do burro - disse ela criada.

    A criada montou a pequenita e Tiago queria levar-me, mas eu no tinha rdeas.

    - Vou atar-lhe o leno ao pescoo - disse ele. E tentou faz-lo, mas o meu pescoo era grosso de mais para

    o seu leno. Nem o da criada servia.

    - Que vamos fazer? disse Tiago, quase a chorar. CRIADA-Vamos aldeia buscar o cabresto. Desce do

    burro, Joaninha.

    JOANA (agarrando-se ao meu pescoo) - No quero apear-me. Quero que o burro me leve a casa.

    CRIADA - Mas no temos corda para o levar. No vs que ele nem se mexe?

    TIAGO- Vais ver como ele me segue, quando eu lhe fizer festas. J sei que se chama Cadichon. Foi a tia

    Tranchet que o disse.

    Tiago aproximou-se da minha orelha e disse baixinho, acariciando- me:

    - Vamos, meu lindo Cadichon.

    52

    A confiana do rapazinho comoveu-me; notei com prazer que, em vez de pedir um pau para me bater, s

    pensou nos meios de persuaso. Assim, logo que ele acabou a sua frase, pus-me a andar.

    - Vs como ele me compreende e gosta de ns?

    -exclamou Tiago, corado de alegria, os olhos brilhantes de felicidade e correndo adiante de mim para me

    ensinar o caminho.

    CRIADA- Como que um burro pode compreender o que se lhe diz? Ele anda porque est aborrecido de

    estar aqui.

    TIAGO- Mas ele segue- me.

    CRIADA - Porque lhe cheirou o po que o menino traz no bolso.

    TIAGO- verdade, pobre Cadichon! E eu que no me lembrava de lhe dar o meu po!

    E tirando do bolso um grande bocado de po, estendeu-mo, para que o comesse.

    Eu ficara ofendido com os dizeres da criada e, para lhe provar que me tinha julgado mal, que no era por

    interesse que seguia o Tiago e levava Joana, mas sim por bondade e complacncia, recusei o po e

    contentei-me em lamber a mo do pequenito.

    TIAGO - Olha, est a beijar-me a mo; e no quer comer! Como eu gosto de ti, meu pobre Cadichon! J

    vs que por gostar de mim que ele me segue.

    CRIADA-Tanto melhor para si se julga que o burro um modelo. Eu no gosto dos burros, que so muito

    maus e teimosos.

    TIAGO- O pobre Cadichon muito bom para mim!

    CRIADA- Veremos se isso dura muito tempo.

    53

    - No verdade, meu Cadichon, que sers sempre bom para mim e para Joana? - disse Tiago, fazendo-me

    festas.

    Voltei-me para ele e olhei-o com um olhar to terno que ele o notou, apesar de ser muito novinho.

    depois, voltei-me para a criada e deitei-lhe um olhar furioso, que ela tambm viu, porque disse

    imediatamente:

    - Que olhar to mau que ele tem! Est a olhar para mim como se quisesse devorar-me!

    - Oh! Como que podes pensar assim? Pois ele olhou para mim com um olhar cheio de ternura, como se

    quisesse beijar-me.

    Ambos tinham razo e eu tambm. Prometi a mim mesmo ser bom para Tiago, Joana, e todas as pessoas

    da casa que fossem boas para mim; e tive o mau pensamento de o no ser para os que me maltratassem ou

    insultassem, como tinha feito a criada. Esta necessidade de vingana foi, mais tarde, a causa dos meus

    infortnios.

  • Iam conversando e caminhando, e chegmos deste modo ao solar da av de Tiago e de Joana. Deixaram-

    me porta, onde fiquei como um burro bem- educado, muito quieto, sem nem sequer estender o focinho

    para a erva do caminho.

    Dois minutos depois, Tiago voltou, a puxar pela mo da av.

    - Venha ver, av; venha ver como manso e gosta de mim! No acredite na criada -disse ele, pondo as

    mos.

    - No, av, no acredite -disse Joana, por sua

    vez.

    - Vamos l ver esse famoso burro! - disse a av

    sorrindo.

    54

    E aproximando-se de mim, acariciou-me, puxou-me as orelhas, ps-me a mo na boca, sem que eu fizesse

    um movimento.

    AV- Efectivamente, muito manso. E dizia voc, Amlia, que era mau!

    TIAGO-No verdade, av? Vamos ficar com ele, sim?

    AV-Sim, o burro bom. Quanto a ficarmos com ele, no pode ser, no nosso. preciso entreg- lo ao

    dono.

    TIAGO- No tem dono, av.

    - No tem no, avozinha - disse Joana, que repetia tudo o que o irmo dizia.

    AV - No possvel.

    TIAGO- verdade, av; foi a tia Tranchet que disse.

    AV - Ento como que ele ganhou o prmio da corrida para ela? porque o pediu emprestado a al

    gum.

    TIAGO- No, av, veio sozinho e quis correr com os outros. A tia Tranchet pagou, para ele poder correr,

    mas no tem dono: Cadichon, o burro da pobre Paulina, o que os pais expulsaram, depois da morte da

    filha. Viveu todo o Inverno na floresta.

    AV - Cadichon! O famoso Cadichon, que salvou do incndio a dona?! Tenho grande prazer em o

    conhecer; , na verdade, um burro extraordinrio e admirvel.

    E ps-se a andar minha roda. Eu sentia-me orgulhoso da minha fama, abria as narinas e sacudia a crina.

    - Est to magro! Pobre animal! A sua dedicao no foi recompensada! -disse a av, num tom de

    55

    censura. - Fiquemos com ele, meu filho, visto terem-no abandonado aqueles que tinham obrigao de

    tratar dele. Chama Bouland; que o leve para a cavalaria.

    Tiago, encantado, correu a procurar Bouland, que chegou imediatamente.

    AV - Bouland, est aqui um burro que os pequenos trouxeram. Meta-o na cavalaria e d-lhe de comer

    e de beber.

    BOULAND- E depois entrega-se ao dono?

    AV - No tem dono. Parece que o famoso Cadichon, que puseram fora, depois da morte da dona. Veio

    aldeia, e os meus netos encontraram-no abandonado no prado. Fica connosco.

    BOULAND - A senhora faz bem em o conservar. No h outro igual, c nestas bandas. Contaram-me

    dele coisas admirveis. Dir-se-ia que ele ouve e compreende tudo o que se diz. A senhora vai ver. . . E

    dirigindo-se a mim: - Vamos, Cadichon, vem comer a tua rao de aveia.

    Eu voltei-me logo e segui Bouland.

    - admirvel - disse a av. - Comprendeu perfeitamente.

    Enquanto a av se retirava para casa, Tiago e Joana acompanharam-me cavalaria, onde me puseram

    uma manjedoura. Tinha por companheiros dois cavalos e um burro. Bouland, ajudado por Tiago, fez-me

    uma boa cama e foi buscar a rao de aveia.

    - Mais, mais, Bouland - disse Tiago. - Ele corre tanto!

    BOULAND - Mas, menino Tiago, se lhe damos aveia de mais, ele fortalece-se a tal ponto, que no

    poder mont-lo, nem a menina Joana to-pouco.

    TIAGO - Ele to bom! Poderemos mont-lo na mesma.

    56

  • Deram-me muita aveia e puseram ao p de mim uma selha cheia de gua. Comecei por beber metade da

    gua, porque estava cheio de sede; em seguida dei conta da aveia. Ainda fiz algumas reflexes sobre a

    ingratido da tia Tranchet, e depois estendi-me na palha, onde adormeci, satisfeito como um rei.

    11

    Cadichon doente

    No dia seguinte, o meu trabalho foi passear os dois meninos durante uma hora. Era Tiago quem me vinha

    dar a aveia, e, apesar das observaes de Bouland, dava-me tanta que chegava para alimentar trs burros

    do meu tamanho. E eu comia tudo e ficava radiante. Mas ao cabo de trs dias senti-me mal, com febre,

    dores de cabea e de estmago; no pude comer aveia nem feno e fiquei estendido na palha.

    Quando Tiago apareceu, exclamou:

    - Ah! o Cadichon ainda est deitdo! Levanta-te que so horas. Vou dar-te a aveia.

    Quis levantar-me, mas a cabea caiu-me, pesadamente, na palha.

    -Ai! que o Cadichon est doente! -gritou o pequeno Tiago. - Bouland! Venha c depressa!

    - Que ter ele! - disse Bouland. - J Lhe deram a sua rao da manh. . .

    57

    Aproximou-se da manjedoura, olhou e disse:

    - No tocou na aveia, porque est doente. Tem as orelhas quentes. . . Bate-lhe a anca. . .

    - Que que isso quer dizer, Bouland? - perguntou Tiago, alarmado.

    - Isto quer dizer, menino Tiago, que Cadichon tem febre, porque Lhe deu aveia de mais, e preciso

    mandar chamar o veterinrio.

    - Que um veterinrio? - disse Tiago, cada vez mais alarmado.

    - um mdico de animais. Eu bem lhe dizia, menino Tiago. Este pobre burro passou grande misria o

    Inverno passado, o que se v bem no plo e na magreza. Cansou-se na corrida. Devamos ter-lhe dado

    pouca aveia, e erva para refrescar, e o menino Tiago deu-lhe quanta lhe apeteceu.

    - Meu Deus! Pobre Cadichon! s capaz de morrer, e por culpa minha! -disse o pobre pequeno, soluando.

    -No morre, esteja descansado, mas preciso p-lo a rao de erva e trat-lo.

    - No quero ver - gritou Tiago, fugindo.

    Levei oito dias a recuperar a sade. Entretanto, Tiago e Joana trataram-me com uma bondade que jamais

    esquecerei: vinham ver-me muitas vezes ao dia; apanhavam erva para que no tivesse o trabalho de me

    abaixar; traziam-me folhas de alface da horta, couves, cenouras, levavam-me todas as noites para a

    cavalaria, onde encontrava a manjedoura cheia de coisas de que mais gostava: cascas de batata com sal.

    Um dia, o bom Tiago quis dar-me o seu travesseiro, porque, dizia ele, tinha a cabea muito baixa quando

    dormia. Doutra vez, Joana quis cobrir-me com o cobertor da sua cama para que eu no tivesse frio de

    noite. Outro dia, ainda,

    58

    envolveram-me as pernas com pedaos de l. Eu estava desolado por no lhes poder testemunhar o meu

    reconhecimento, mas tinha a infelicidade de compreender tudo e no poder dizer nada. Acabei de me

    restabelecer e soube que se projectava uma burricada na floresta, com os primos e primas.

    12

    Os ladres

    As crianas estavam reunidas no ptio e tinham arranjado burros em todos os lugarejos. Reconheci-os

    quase todos, porque tinham tomado parte na corrida; o do Joozinho olhava para mim com um ar feroz,

    enquanto eu o contemplava com certa zombaria no olhar. A av de Tiago tinha em casa quase todos os

    netos: Camila, Madalena, Isabel, Henriqueta, Joana, Pedro, Henrique, Lus e Tiago. As mes dos meninos

    deviam ir com eles de burro, e os pais segui- los-iam a p, armados de paus para fazerem andar os mais

    preguiosos. Antes da partida, discutiam todos, como costume nestes divertimentos, quem que iria no

    melhor burro: todos me queriam e, por isso, resolveram tirar-me sorte. Coube ao pequeno Lus, primo

    de Tiago, que era bom rapazinho, e me agradaria, se no visse Tiago limpar, s furtadelas, os olhos rasos

    de gua. Tinha pena dele, mas no podia consol-lo. Precisava de ter, como eu, resignao e pacincia.

    Acabou, pois, por tomar

  • 59

    o seu partido, e montou no burro que lhe tocava, dizendo ao primo:

    - Irei sempre ao p de ti, Lus; no faas galopar Cadichon para eu no ficar para trs.

    LUS- Porque que ficarias para trs? Porque no galopas como eu?

    TIAGO - Porque Cadichon galopa mais depressa do que todos os burros c da terra.

    LUS- Quem to disse?

    TIAGO- Vi-os correr a todos no dia da festa da aldeia e Cadichon passou-lhes frente.

    Lus prometeu no ir muito depressa e os dois partiram a trote. O meu companheiro no era mau, no

    tendo eu muito trabalho para no lhe passar adiante. Os outros vinham atrs de ns. Chegmos a uma

    floresta onde as crianas visitaram as runas de um velho convento e de uma antiga capela, que tinham m

    fama e aonde no se ia seno em boa companhia. Dizia-se que noite saiam dos escombros rudos

    estranhos, gemidos, gritos, arrastar de correntes; e muitos viajantes, que se tinham rido dessas histrias e

    quiseram ver com os prprios olhos, no tinham voltado nem se ouviu mais falar neles.

    Quando todos se apearam dos burros e nos deixaram pastar, com as rdeas soltas, os pais e as mes

    pegaram nas crianas pela mo, proibindo-as de se afastarem ou de ficarem para trs.

    Vi-os afastarem-se na direco das runas e fiquei inquieto. Afastei-me tambm dos meus companheiros e

    pus-me ao abrigo do sol sob um arco meio arruinado, prximo do bosque e num stio mais distante do

    convento. Estava ali havia um quarto de hora, quando ouvi um rudo perto do arco; escondi-me num

    ngulo do muro arruinado, donde via tudo sem ser visto. O

    60

    rudo, apesar de surdo, aumentava, e parecia vir debaixo da terra.

    No tardou muito que eu visse aparecer uma cabea de homem, que saa com precauo de entre as

    silvas.

    - Nada. . . - disse ele em voz baixa, depois de ter olhado em roda. - Ningum!. . Podem vir. Agarre cada

    um em seu burro e toca a safar.

    Apareceu, ento, uma dezena de homens, aos quais disse a meia voz:

    -Se os burros fugirem, no corram atrs deles. Depressa e nada de barulho.

    Os homens deslizavam com precauo ao longo do bosque; os burros, que procuravam a sombra, comiam

    erva. A um sinal, cada ladro puxou pelas rdeas de um burro, e todos eles, em vez de darem o alarme, se

    deixaram levar como imbecis. Um carneiro no teria sido mais estpido. Cinco minutos depois, os ladres

    chegaram ao macio prximo do arco, onde fizeram entrar os meus companheiros, um a um, e

    desapareceram. Ouvi o rudo dos seus passos debaixo do cho, ficando depois tudo em silncio.

    Ora aqui est a explicao dos rudos que aterram a gente da regio: um bando de ladres que est

    escondido nos subterrneos do convento. preciso faz- los prender. Mas como?

    Continuei escondido debaixo da abbada, donde avistava todas as runas, e s sa quando ouvi as vozes

    dos pequenos que procuravam os burros. Corri para os impedir de se aproximarem do arco e das silvas

    que ocultavam a entrada dos subterrneos.

    - Cadichon est aqui! - gritou Lus.

    - Mas onde esto os outros? - disseram todos ao mesmo tempo.

    - No devem estar longe - disse o pai de Lus.

    - Vamos procur-los.

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    - Talvez do lado da ravina, por trs do arco que vejo acol - disse o pai de Tiago. - Talvez tenham

    escolhido aquele stio, onde a erva mais tenra.

    Tremi, pensando no perigo a que se iam expor, e precipitei-me para os lados do arco, a fim de os impedir

    de passar. Quiseram afastar-me, mas eu resisti-lhes com tanta violncia que o pai de Lus fez parar o

    cunhado para lhe dizer:

    - A insistncia de Cadichon tem qualquer coisa de extraordinrio. Sabe o que nos contaram da

    inteligncia deste animal. Obedeamos-lhe e voltemos para trs. Os burros com certeza no foram para l

    das runas.

    - Tem razo, meu caro - respondeu o pai de Tiago. - Tanto mais que vejo a erva pisada perto do arco.

    Julgo que nos roubaram os burros.

  • Voltaram para ao p das senhoras, que no tinham consentido que os pequenos se afastassem. Segui-os,

    contente por lhes ter evitado uma desgraa terrvel. Conversaram baixinho, todos em grupo. Depois,

    chamaram- me.

    - Que vamos fazer? - disse a me de Lus. - Um burro s no pode levar todas as crianas.

    - Pem-se os mais pequenos em cima de Cadichon e os maiores vo connosco - disse a me de Tiago.

    - Anda c, Cadichon; vamos a ver como te portas

    - disse a me de Henriqueta.

    Comearam por colocar Joana, que era a mais pequena, depois Henriqueta, depois Tiago, depois Lus.

    Como no pesavam muito, larguei a trote.

    - Devagar, Cadichon -xclamaram os pais - para que possamos segurar os pequenos.

    Comecei a andar a passo, rodeado pelos maiores e pelas senhoras, seguindo os pais atrs de todos.

    62

    - Porque que o pai no procurou os nossos burros? - perguntou Henrique, o mais novo do bando, que j

    ia cansado de andar.

    ME- Parece que foram todos roubados, sendo, portanto, intil procur-los.

    HENRIQUE- Roubados? Por quem, se no estava l ningum estranho?

    ME- Tambm no vi ningum, mas havia ao p do arco vestgios de passos.

    PEDRO- Nesse caso, devamos ter procurado os ladres.

    ME- Teria sido imprudente. Para levarem treze burros deviam ser muitos homens, provavelmente

    armados, e podiam ter matado ou ferido os vossos pais.

    PEDRO - Que armas teriam eles?

    ME - Paus, facas, talvez pistolas.

    CAMILA - Era realmente perigoso e o pai fez muito bem em voltar com os tios.

    ME - Vamos depressa para casa, porque os tios e os vossos pais tm de ir cidade logo que cheguemos.

    PEDRO - Que vo eles fazer?

    ME- Prevenir a polcia e procurar os burros.

    CAMILA - No devamos ter ido s runas.

    MADALENA- Mas era um passeio to bonito!

    CAMILA - Sim, mas muito perigoso. Se em vez dos burros, os ladres nos tivessem levado a ns?

    ISABEL - ramos muitos. . .

    CAMILA- E se os ladres tambm fossem muitos?

    ISABEL - Defendamo-nos.

    CAMILA-Com qu? Nem sequer tnhamos um pau.

    ISABEL- E os nossos ps, os nossos punhos, os nossos dentes? Eu c mordia-os, arranhava-os e tirava-

    lhes os olhos com as unhas.

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    PEDRO - E o ladro matava-te, ora a est.

    ISABEL- Matava-me? E o nosso pai? E a nossa me? Julgas, ento, que me deixavam roubar ou matar?

    MADALENA-Os ladres matavam-nos tambm, antes de te matarem a ti.

    ISABEL-Para isso era preciso que eles fossem muitos.

    MADALENA- Bastava uma dzia deles!

    ISABEL - Ah! Tu julgas que os ladres andam por a s dzias, como as ostras? Que tolice!

    MADALENA - Ests sempre a gozar! Pois eu aposto que, para roubarem treze burros, eles no eram

    menos de uma dzia.

    ISABEL-Sim, talvez tenha razo. O dcimo terceiro foi como contrapeso.

    As senhoras e as outras crianas riram-se desta conversa, que j ia degenerando em discusso. Por isso a

    me de Isabel mandou-a calar, dizendo-lhe que Madalena talvez tivesse razo quanto ao nmero dos la

    dres.

    Estvamos j perto de casa e no tardmos a chegar. Quando viram que todos vinham a p e eu,

    Cadichon, com quatro crianas em cima, a surpresa foi enorme. Mas depois de os pais contarem o

    desaparecimento dos burros e a minha teimosia em no os deixar aproximar de um arco por onde queriam

    passar para procurarem os animais perdidos, a gente da casa abanou a cabea e fez uma srie de

    suposies; diziam uns que os burros tinham sido levados pelos diabos; outros pretendiam que as

    religiosas enterradas na capela se tinham apoderado deles para percorrerem a terra; outros, ainda,

  • afirmavam que os anjos que guardavam o convento reduziam a p e cinza todos os animais que se

    aproximassem do cemitrio, onde vagueavam as almas

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    das religiosas. Ningum se lembrou de dizer que havia ladres nos subterrneos.

    Logo que regressaram, os pais foram contar av o roubo provvel dos burros. Atrelados os cavalos ao

    carro, foram polcia da cidade vizinha depor a sua queixa e voltaram duas horas depois com o oficial e

    seis guardas. Eu tinha uma tal reputao de inteligncia que julgaram o caso grave, logo que souberam da

    resistncia que eu tinha oposto passagem debaixo do arco. Vinham todos armados de pistolas e

    carabinas, como para uma campanha. No entanto, aceitaram a refeio que a av lhes ofereceu e

    sentaram-se mesa com os senhores.

    13

    Os subterrneos

    O almoo no foi demorado, porque os guardas tinham pressa de ir fazer a sua inspeco antes que

    chegasse a noite. Pediram av licena para me levarem.

    - Ser-nos- muito til na nossa expedio - disse o oficial. - Este Cadichon no um burro vulgar; j fez

    coisas mais difceis do que a que lhe vamos pedir.

    - Levem-no, senhores, se isso lhes pode ser til - respondeu a av -; s o que lhes peo que no o

    fatiguem demasiado. O pobre animal j andou muito esta manh e carregou para c com os meus quatro

    netos.

    65

    - Pode ficar descansada, minha senhora - disse o oficial. - Trat- lo-emos o melhor possvel.

    Tinham-me dado de comer: um molho de aveia, uma braada de alface, cenouras e outros legumes.

    Bebido e comido, estava preparado para partir. Vieram buscar-me, e pusemo-nos a caminho, indo eu

    frente a servir de guia aos guardas, que no se sentiram humilhados porque eram boas pessoas. H quem

    julgue que

    66

    os guardas so maus e severos, mas isto no verdade: no h gente mais caritativa, mais generosa e mais

    paciente do que eles. Tiveram para comigo, durante o percurso, toda a espcie de cuidados, abrandando o

    passo dos seus cavalos quando me supunham cansado, e convidando-me a beber quando atravessvamos

    algum ribeiro.

    A tarde comeava a cair quando chegmos ao convento. O oficial deu ordens para seguirem todos os

    meus movimentos e para andarem todos juntos. Deixaram os cavalos numa aldeia prxima da floresta, e

    eu conduzi-os sem hesitar entrada do arco, perto das silvas, por onde tinha visto sair os doze ladres. Vi

    com inquietao que ficavam prximo da entrada. Para os afastar dali, dei alguns passos por detrs do

    muro e eles seguiram-me. Logo que os vi todos ali, voltei s silvas, impedindo-os de se adiantarem

    quando pretendiam seguir-me. Eles compreenderam e ficaram escondidos

    atrs do muro.

    Aproximei-me ento da entrada dos subterrneos e comecei a zurrar com quanta fora tinha. No tardou

    que obtivesse os resultados que desejava. Todos os companheiros encerrados debaixo do cho

    responderam minha chamada. Dei um passo para os guardas, que adivinharam a minha manobra, e

    voltei para a entrada dos subterrneos, recomeando a zurrar; mas desta vez ningum me respondeu. Vi

    logo que os ladres, para evitar que os meus companheiros os trassem, lhes tinham pendurado pedras nas

    caudas.

    Toda a gente sabe que ns levantamos a cauda quando zurramos; com o peso das pedras, torna-se

    impossvel faz-lo, e os meus camaradas calaram-se.

    Eu continuava a dois passos da entrada quando vi uma cabea de homem surgir das silvas e olhar em roda

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    com precauo; e vendo-me s a min, disse:

    - C est o patife que no pudemos apanhar esta manh. Vais j fazer companhia aos teus companheiros.

    Mas quando ele ia a deitar-me a mo, afastei-me dois passos e ele seguiu-me; afastei-me mais, at o levar

    esquina do muro por detrs do qual estavam escondidos os guardas. Antes que o ladro tivesse tempo

  • de soltar um grito, caram sobre ele e estenderam-no no cho. Voltei para a entrada do esconderijo e

    comecei a zurrar, na certeza de que aparecia outro ladro para ver o que era feito do companheiro.

    Efectivamente, ouvi o rudo das silvas e vi aparecer outra cabea, que se ps a olhar com precauo; no

    podendo deitar-me a mo, o segundo fez como o primeiro, e eu executei a mesma manobra. E assim, at

    ter feito cair seis na ratoeira. Depois do sexto, por mais que zurrasse, no aparecia mais ningum. Pensei

    que, no vendo voltar nenhum dos homens que tinham vindo c fora, os ladres haviam suspeitado de

    uma armadilha e no se atreviam a aparecer. Entretanto, a noite tinha cado completamente e no se via

    quase nada. O oficial da guarda destacou um dos seus homens para ir buscar reforos a fim de capturarem

    os ladres nos subterrneos, e levar amarrados, dentro de uma carroa, os seis ladres j aprisionados. Os

    guardas que ficaram, receberam ordem de se dividirem em dois grupos para vigiarem as sadas do

    convento e deixarem-me proceder como entendesse, depois de me terem acariciado e elogiado a minha

    conduta.

    - Se no fosse um burro - disse um dos polcias -, merecia ser condecorado.

    - No vs que j tem uma cruz no lombo? - disse outro.

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    - Cala-te, meu grande trocista - disse o outro. No sabes que esta cruz foi marcada nos burros como

    recordao de Nosso Senhor Jesus Cristo ter montado um?

    - por isso que uma cruz de honra - replicou o outro.

    - Silncio! - disse o oficial em voz baixa. - Cadichon arrebitou as orelhas.

    Ouvi, efectivamente, um barulho extraordinrio do lado do arco; no era um rudo de passos, mas antes

    como que um desmoronamento e gritos abafados. Os guardas tambm os ouviram, mas sem poderem

    adivinhar o que seria.

    Por fim, um fumo espesso saiu das chamins e janelas baixas do convento, e as chamas iluminaram a

    noite; instantes depois, tudo estava a arder.

    -Deitaram fogo s caves, para fugirem pelas portas - disse o oficial.

    - Vamos apag-lo, meu tenente! -alvitrou um guar