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ESTUDOS AVANÇADOS 14 (40), 2000 59 ESTADO brasileiro é velho de quase 200 anos, se se toma a transfe- rência da família real como o evento que marca a inversão das rela- ções entre a antiga metrópole e a colônia americana, instalando-se o aparato estatal português no Rio, espraiando-se pelo imenso território. Mais rigorosamente, na metade dos oitocentos o Estado brasileiro já estava plenamente constituído, sendo-lhe indisputado, externa e internamente, o monopólio legal da violência. Que, aliás, exerceu ao longo e ao largo do território nacional com a mais implacável determinação, e em poucas aven- turas internacionais bem sucedidas do ponto de vista de seus interesses: Guerra do Paraguai e anexação do Acre, para exemplificar. O paradoxo é que desde a Independência o regime de dominação estatal foi, com as exceções conhecidas, constitucional. Talvez esteja mes- mo entre os regimes constitucio- nais mais precoces e de longa du- ração. Mas aí, todas as exceções comparecem e quase se transfor- mam em regra. Ao ponto em que uma outra inversão pode se ver autorizada: o regime tem sido estavelmente despótico com breves perío- dos de abertura ou relaxamento; democráticas propriamente seria uma te- meridade, ainda quando o formalismo reinante nas ciências da política e da sociologia não tenha muitos pruridos em chamá-las assim. Os 200 anos de solidão – empréstimo a Garcia Márquez – são com- pactados, para nossos fins, nos últimos 60 da história nacional, o período que vai desde a Revolução de 30 aos nossos dias – a República Velha já foi tratada como o da hegemonia oligárquica e basta, por enquanto. A inversão já é mais nítida: nestes 60 anos, 35 foram de ditaduras abertas e declaradas, contando-se os 15 do primeiro período varguista e os 20 da ditadura mili- tar. Estabilidade da exceção e instabilidade da forma dita democrática, niti- damente à la brasileira, pois mesmo a ditadura de 1964-1984, manteve, salvo durante o breve período do AI-5, as duas casas do Congresso abertas e funcionando. Que não foi o caso da ditadura varguista. Nos 60 anos assinalados ocorreu um golpe plenamente realizado, ou tentativas de golpe parcialmente frustradas, a cada três anos, em média. Memórias do despotismo FRANCISCO DE OLIVEIRA O o regime tem sido estavelmente despótico com breves períodos de abertura . . .

Memorias Do Despotismo

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FRancisco OLiveira

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  • ESTUDOS AVANADOS 14 (40), 2000 59

    ESTADO brasileiro velho de quase 200 anos, se se toma a transfe-rncia da famlia real como o evento que marca a inverso das rela-es entre a antiga metrpole e a colnia americana, instalando-se

    o aparato estatal portugus no Rio, espraiando-se pelo imenso territrio.Mais rigorosamente, na metade dos oitocentos o Estado brasileiro j estavaplenamente constitudo, sendo-lhe indisputado, externa e internamente, omonoplio legal da violncia. Que, alis, exerceu ao longo e ao largo doterritrio nacional com a mais implacvel determinao, e em poucas aven-turas internacionais bem sucedidas do ponto de vista de seus interesses:Guerra do Paraguai e anexao do Acre, para exemplificar.

    O paradoxo que desde a Independncia o regime de dominaoestatal foi, com as excees conhecidas, constitucional. Talvez esteja mes-mo entre os regimes constitucio-nais mais precoces e de longa du-rao. Mas a, todas as exceescomparecem e quase se transfor-mam em regra. Ao ponto emque uma outra inverso pode sever autorizada: o regime tem sido estavelmente desptico com breves pero-dos de abertura ou relaxamento; democrticas propriamente seria uma te-meridade, ainda quando o formalismo reinante nas cincias da poltica e dasociologia no tenha muitos pruridos em cham-las assim.

    Os 200 anos de solido emprstimo a Garcia Mrquez so com-pactados, para nossos fins, nos ltimos 60 da histria nacional, o perodoque vai desde a Revoluo de 30 aos nossos dias a Repblica Velha j foitratada como o da hegemonia oligrquica e basta, por enquanto. A inversoj mais ntida: nestes 60 anos, 35 foram de ditaduras abertas e declaradas,contando-se os 15 do primeiro perodo varguista e os 20 da ditadura mili-tar. Estabilidade da exceo e instabilidade da forma dita democrtica, niti-damente la brasileira, pois mesmo a ditadura de 1964-1984, manteve,salvo durante o breve perodo do AI-5, as duas casas do Congresso abertase funcionando. Que no foi o caso da ditadura varguista.

    Nos 60 anos assinalados ocorreu um golpe plenamente realizado, outentativas de golpe parcialmente frustradas, a cada trs anos, em mdia.

    Memrias do despotismoFRANCISCO DE OLIVEIRA

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    o regime tem sidoestavelmente desptico com

    breves perodos de abertura . . .

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    Executados pelos militares, sugeridos e caucionados pelos civis represen-tantes mais acabados do domnio vigente; em apenas dois casos, o de 1935com a Aliana Nacional Libertadora que passou histria como IntentonaComunista, e o de 1937, o putsch integralista, estiveram envolvidas fraesmilitares notoriamente minoritrias. Uma outra caracterstica da exceocomo regra: as foras armadas, recurso de ltima instncia do poder paramanter o monoplio legal da violncia, so utilizadas, sempre, em primeirainstncia. Nomeando: Revoluo de 30, Revoluo Constitucionalistapaulista de 1932, eleio indireta de Vargas em 1934, revolta da AlianaNacional Libertadora em 1935, putsch integralista de 1937, Estado Novovarguista em 1937, deposio de Vargas em 1945, cassao do Partido Co-munista do Brasil em 1947/48, deposio de Vargas pelo suicdio em 1954,tentativa golpista de impedir a posse de Juscelino Kubistchek em 1955,golpe frustrado de Jacareacanga em 1956, golpe frustrado da renncia deJnio Quadros em 1961, parlamentarismo como soluo para a posse deJoo Goulart ainda em 1961, golpe militar definitivo em 1964, inauguran-do a segunda ditadura do perodo, AI-2 dissolvendo os partidos polticospr-64, impedimento da posse do vice-presidente Pedro Aleixo e Junta Mi-litar em 1967, AI-5 em 1968 com o fechamento do Congresso, impedi-mento da posse de Ulysses Guimares como sucessor temporrio de TancredoNeves, com a soluo de posse de Jos Sarney, em 1984. Fazendo-se ascontas: 60 / 18 = 3,3 anos. Diferir, de um para outro autor, de uma paraoutra interpretao, a aritmtica da exceo permanente e mesmo algunsdos eventos aqui listados, mas dificilmente poder ser negada a permann-cia de solues extraconstitucionais, para sermos mais suaves.

    H, certamente, um lastro histrico para sustentar essa exceo per-manente, uma espcie de antidemocracia na Amrica, sobejamente co-nhecida para necessitar ser relembrada aqui; desde o lugar central do traba-lho escravo na economia e na reproduo social, passando pelo patriarcalismoda formao social e pelo patrimonialismo prebendatrio. Essas frmulas,dos clssicos dos anos 30 formulaes que surgem, no por acaso, quandoessas mesmas formas comeam a perder a capacidade de processar os confli-tos de uma sociedade que ganhava em complexidade pela entrada de umanova classe social no centro da estrutura social, o operariado devem serreinterpretadas na chave da revoluo passiva ou como uma modalidadesubdesenvolvida da via prussiana ou, ainda, na sugesto de WerneckVianna, como iberismo.

    Embora existam fortes resistncias entre os historiadores para aceitaraceleraes na histria, foroso convir que os ltimos 60 anos da hist-ria brasileira condensam transformaes to intensas que dificilmente as es-

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    truturas polticas poderiam suportar. Mesmo que no se faa a interaomecnica entre movimentos da estrutura social e a institucionalidade polti-ca, quase impossvel conceber uma funcionalidade to plstica: moldespelos quais a poltica institucionalizada poderia adequar-se a mudanas demonta nos modos da produo e reproduo material da sociedade.

    Reproduzindo sumariamente: de forma acelerada, a sociedade brasi-leira passou de agrria a industrial e desta para os servios, inclusive eletr-

    nicos. Isto se expressa na forma-o do PIB, no qual a contribui-o das atividades primrias j noalcana 15%; a indstria chega,hoje, ao mximo de 25% no seuauge foi at 34% e os servios

    compem a outra parte, maior. O local de residncia e atividades mudoutambm radicalmente: de uma sociedade 80% rural e 20% urbana, para ooposto: 80% urbana e 20% rural. Mas esse rural urbano, pois as atividadesso quase totalmente mercantilizadas, com a interferncia ou mediao deprocedimentos urbanos: bancos, corretoras, bolsas de mercadorias, centraisde abastecimento, o agrobusiness, em suma, para no descrevermos mono-tonamente.

    necessrio levar em conta que a economia brasileira acusou, nomundo capitalista, a taxa mais alta e mais persistente de crescimento a longoprazo no sculo que foi de 1870 a 1980. A partir da entrou em oscilao edesacelerao, sem uma direo claramente perceptvel. Tal crescimento sefez por cima, sendo decisivo nesse desempenho, a mudana do papel doEstado na economia, cuja visibilidade notvel desde a dcada de 30. Operodo de 1870 at 1930 abriu-se com uma interveno do Estado, noestilo do far west norte-americano, de implacvel acumulao primitiva,pouco reportada pela nossa historiografia econmica e pela teorizao so-bre a economia. Que cedeu o passo golden age do liberalismo, sob a gideda poltica cambial para o caf: abundncia de divisas e comrcio livre, cujodesastre j estava prenunciado no Acordo de Taubat, inaugurando as pol-ticas de sustentao do preo de nossa praticamente nica exportao e,pois, denunciando sua insustentabilidade.

    A partir dos anos 30, fazendo parte da transio mundial do capitalis-mo concorrencial para o oligopolista, a acumulao primitiva estatal entrade novo em curva ascensional, realizando o trnsito para a economia indus-trial. Seu intrprete mais notvel ser Celso Furtado, cuja teorizao a res-peito carregada da dramaticidade de O Dezoito Brumrio de Marx. Umapoderosa e regionalmente diversificada classe dominante rural varrida para

    a sociedade brasileirapassou de agrria a industrial

    e desta para os servios . . .

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    um lugar secundrio e, em seu lugar, a nova burguesia industrial assumepapel protagnico; um deslocamento desse porte no pode menos que de-sacreditar as formas da representao. Mas a transformao lampedusiana,pois o novo poder no se resolve de forma revolucionria: o compadrio sua marca. O partido da revoluo industrial agrrio, o Partido SocialDemocrtico. O setor produtivo estatal cresce sem interrupo at os diasda agonia de Sarney e da ascenso do bufo Collor de Mello, para entrar emdeclnio com o prncipe Cardoso.

    Entre as tenazes da subordinao imperialista e a nova contestaosurgida das entranhas da questo social, o capitalismo tupiniquim se re-solve numa melancolia da impotncia, e apela recorrentemente para afora bruta. Acossada permanentemente pelos trabalhos de Ssifo dosdominados, que buscam, por fortuna e virt, acessarem os meios pblicos,logo polticos, para complementarem a prpria reproduo, a dominaoperde sua capacidade revolucionrio-hegemnica. E se refugia no simula-cro de constitucionalidade, que mal disfara uma dominao que, outravez, inverte a frmula, gramsciana, de 80% de consenso e 20% de violncia,para as propores opostas.

    As conseqncias sobre a sociabilidade no poderiam ser insignifican-tes. O favor como moeda de troca e o patriarcalismo como forma de orga-nizao social, nucleada na famlia, no conseguem processar as novas rela-es. Uma sociedade tradicional, cuja reproduo se dava com a regularida-de dos ciclos do tempo j muito abalada desde o boom do caf no ncleomas ainda conservada na periferia v-se, em curto perodo, atravessada etrabalhada pelos novos smbolos e signos das massas, da industrializao dacultura, de um simulacro do individualismo possessivo, da nova regra deconsumo, do homem-massa, annimo, da feroz disputa do trabalho, dolugar da mulher no mercado de trabalho, da ascenso e queda da famlianuclear, do oprbrio de Capitu liberao sexual. Estava aberta a chancepara o mrito e a escolha.

    Mas a conjuno, em outra quadra histrica, das necessidades da acu-mulao sustentada pelas novas formas do fundo pblico projeta um conede sombra sobre as relaes entre o pblico, nunca constitudo, e o priva-do, tampouco formado. O deslocamento no campo das foras burguesastem a carga total das bombas no jogadas na Guerra Fria: nada menos que30% do patrimnio burgus mudou de mos nos ltimos cinco anos. Noh institucionalidade que possa resistir. A corrupo como forma endmicadesse cone de sombra e os Eduardos Jorges tornam-se a marca desse capita-lismo perifrico, bandido, incapaz de erguer e sustentar sua prpria

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    institucionalidade, incapaz de impor o monoplio legal da violncia. Aspermanentes excees tornam-se a exceo permanente. Transita-se dachance da hegemonia, rpida e constrangida pelo novo ciclo da terceirarevoluo industrial, da regulao para o ad hoc.

    No mbito da sociabilidade, os efeitos no podem ser menos quedesagregadores. Jogada dos ritmos e tempos tradicionais ao vrtice de po-derosas transformaes das quais no o sujeito, o que poderia ser osurgimento do privado na sociedade transforma-se em privatismo, fuga de-sesperada do informal, do azar e sorte, do medo do outro, dos gradis aoscarros blindados da alta burguesia. Nos ghettos dos ricos, o isolamento, ba-seado numa sociabilidade antipblica; nos ghettos dos pobres, fome, misriae criminalidade violenta.

    Chamei a isso de totalitarismo neoliberal; os gramscianos mais rigoro-sos chamam-no de sociedade regulada. Epitfio de um despotismo, pou-cas, pouqussimas vezes, iluminado.

    Francisco de Oliveira, professor titular, aposentado, do Departamento de Sociolo-gia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP, diretor doCentro de Estudos dos Direitos da Cidadania, da mesma Faculdade. autor, entreoutros, dos livros Os direitos do antivalor: a economia poltica da hegemonia im-perfeita (Vozes, 1977) e Sentidos da democracia: polticas do dissenso e hegemoniaglobal (Vozes, 1999).