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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 3, jan./jul. 2013
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MEMÓRIAS DO SUBSOLO DE DOSTOIEVSKI: ENTRE A LITERATURA E AS
CIÊNCIAS SOCIAIS
________________________________________________________________
Igor Costa Pereira de Souza1
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo relacionar possíveis interpretações da modernidade presentes na obra Memórias do Subsolo de Fiódor Dostoievski (2000). Para tanto, a análise desta obra é realizada a partir de questões oferecidas por autores de outras áreas das ciências sociais na problematização dos significados e significantes da existência do indivíduo nas grandes cidades oitocentistas, tendo por escopo tanto relações sociais quanto dilemas internos apresentados por Dostoievski.
Palavras-chave: Fiódor Dostoievski. Modernidade. Ciências Sociais. ABSTRACT This work aims to relate possible interpretations of modernity written in the novel Notes from Underground by Fyodor Dostoyevsky. Therefore, the analysis of this work is set from issues offered by authors from other areas of the social sciences research fields when it comes to significations and signifiers of the individual's existence in large nineteenth century cities. Our purposes range from social relations to personal dilmmas as presented to us by Dostoyevsky.
Keywords: Fyodor Dostoyevsky. Modernity. Social Sciences. Introdução
Memórias do Subsolo é considerado o precursor dos grandes romances de
Dostoievski. Escrita em 1864, essa breve novela, procura retratar o estado e as
contradições do homem moderno. Situado entre ideologias eslavófilas e ocidentalizantes,
Dostoievski, procura retratar os choques que sua sociedade enfrenta após o contato
frenético com a Europa Ocidental (BERLIN, 1988) resultado das guerras napoleônicas: o
contato sociocultural com o ocidente acontecerá em uma Rússia controlada por forças
repressoras e autoritárias baseadas em um governo absolutista e centralizador, situação
1 Pós-Graduado em Psicopedagogia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas(FMU(, graduado em História pela Universidade de Santo Amaro (UNISA), aluno da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e cursando Bacharelado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). E-mail: [email protected].
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essa, que reforçará o entusiasmo dos jovens russos pelas ideologias (teorias de revoluções
sociais e econômicas – comunismo e liberalismo), literatura (em especial a escola
romântica) e costumes ocidentais.
Ao definir o tráfico das ideias na Rússia oitocentista Isaiah Berlin nos diz:
É preciso imaginar, portanto, uma sociedade extremamente impressionável, dotada de uma capacidade inaudita de absorver ideias – ideias que poderiam circular do modo mais casual o possível, só porque alguém trouxera de Paris um livro ou uma coleção de folhetos (ou porque algum livreiro corajoso os contrabandeara), porque alguém assistira às conferências de um neo-hegeliano em Berlim ou se tornara amigo de Schelling ou conhecera um missionário inglês com estranhas ideias. Uma autêntica excitação era provocada pela chegada de uma nova “mensagem”difundida por algum discípulo de Saint-Simon ou Fourier, ou de um livro de Proudhon (...) Os profetas sociais e econômicos da Europa pareciam plenos de confiança no novo futuro revolucionário, e suas ideias exerciam um efeito inebriante (BERLIN, 1988, p.134)
É nesse contexto de circulação e absorção de ideais que Dostoievski, em 1864,
escreveu Memórias do Subsolo, organizando-o em duas partes: a primeira diz respeito
ao “presente da personagem”, uma paródia com a geração de 1860. Quando narra o
homem do subsolo, atormentado por seus conflitos interiores e com autoconsciência de
si, ou seja, compreende a razão e a si mesmo, mas isso não o serve de consolo
(DOSTOIEVSKI, 2000, p.20). Para Joseph Frank, em sua extensa biografia de
Dostoievski, o que vemos na primeira parte de Memórias do Subsolo é justamente a
dilaceração do homem do subsolo em um aspecto moral: egoísmo e altruísmo. É
interessante notar que os conflitos internos do personagem resultam em sua inércia, ou
seja, sua incapacidade agir de maneira totalmente egoísta (racional) ou mesmo de agir de
maneira irracional (altruísta). Sua autoconsciência concede ferramentas de ação - a
racionalidade – sobre o mundo, mas seu hibridismo2 faz com que retorne ao subsolo,
nesse contexto, o homem do subsolo não consegue portar-se de maneira normal fazendo
com que oscile entre a desconfiança e o desespero, sua insuportável situação presente e
seu desencantamento com o mundo – racionalização da realidade - em contraposição ao
2 Conceito será desenvolvido mais para frente.
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misticismo religioso3. Frank ressalta, que mesmo desesperado, o homem do subsolo não
cansa de procurar algo que dê substância para sua existência, daí talvez, o suposto apelo
à religião ortodoxa no capítulo X da primeira parte.
A segunda parte das Memórias do Subsolo versa sobre a infância e juventude do
personagem, sua solidão, sua formação intelectual e sua descrença no Palácio de Cristal,
que seria uma referência ao materialismo e ao utilitarismo do socialismo utópico
humanitário. As relações travadas com antigos amigos e os conflitos que disso resultam,
seriam para Frank, uma tentativa, por parte do homem que se esconde no subsolo, de
sair de sua solidão auto-imposta. É interessante observar que ao negar o Palácio de
Cristal4, Dostoievski, reafirma que ao homem deve ser concedido o benefício da dúvida,
da soberba, de seu olhar enviesado.
(...) com toda nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um meu olhar” uma “ilimitada vaidade (DOSTOIEVSKI, 2000, p. 56)
Já nas primeiras páginas da segunda parte vê-se que o personagem assume uma
imagem negativa de si mesmo que é contrabalanceada por ser ele “...doentiamente
cultivado, como deve ser um homem de nossa época” (DOSTOIEVSKI, 2000, p.58). O
homem do subsolo encontra-se sozinho e sem semelhantes. O seu entorno é inteligível,
porém, através de sua consciência ele nega seus valores e preceitos isolando-se em seu
3 Desencantamento do mundo é um conceito presente na obra de Max Weber ao analisar o processo de racionalização que o homem moderno passa a partir do século XVIII. Esse conceito weberiano perpassa o “...sentido específico de repressão/supressão da magia como meio de salvação”. Ver: Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, capítulo I parte II. 4 Anne McClintock (2010), procura demonstrar como diversos marcadores sociais (classe, raça, gênero, etc)
não são estruturalmente equivalentes entrei si e que variam de acordo com o contexto histórico e social. A expansão imperialista das potências européias, em especial do Reino Unido, sobre outras áreas do globo e a inundação destas áreas com os novos produtos da moderna indústria, surgida entre os séculos XVIII e XIX, possuem em 1851, ano de realização da primeira Grande Exposição Mundial, ocorrida em Londres, um grande espaço de celebração do capitalismo europeu. Para esta autora, a Grande Exposição seria o primeiro grande evento do fetichismo da mercadoria. Da oficina para a grande indústria, do local para o global. A realização física máxima do período seria marcada pela construção do célebre Palácio de Cristal para sediar a Grande Exposição de 1851.
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esconderijo, o subsolo5.
Nos embates travados na segunda parte da obra vê-se uma clara tentativa de
controle e de afastamento das situações em que o personagem se encontra, seja com
seus amigos ou com Liza. Ao tentar mostrar-se igual em status social – a importância do
capital financeiro é vista no trecho “Com meu último meio rublo aluguei um carro de luxo
e cheguei como um grão-senhor ao Hôtel de Paris” (DOSTOIEVSKI, 2000, p.85) - e
superior em inteligência a Símonov, Zvierkóv, Trudoliubov e Fierfítchkin o homem cai
em desgraça e humilhação6. Mesmo não admitindo a situação como degradante no
momento do jantar, o personagem, comentará, vinte anos depois, que foi esse o
momento mais humilhante, imundo e terrível de sua vida.
Tanto o encontro do homem com seus amigos quanto o encontro posterior com
Liza, uma prostituta, demonstram uma clara tentativa do personagem em tentar controlar
as situações que se desenrolam ao seu redor. Ao aproximar-se de outras
pessoas/discurso/vidas, a consciência ou a inércia do homem, fazem com que ele
provoque um afastamento para que retorne novamente ao seu subsolo.
Frank chama atenção que o encontro com Liza, uma paródia com o estilo do
romantismo social contemporâneo de Dostoievski, concede, ao homem, uma espécie de
poder redentor sobre a mulher, já que, ele assume para si um falso papel de salvador que
será desmascarado quando Liza lhe visita. De salvador e pessoa segura de si, o homem do
subsolo, se mostra frágil, humilhado e até mesmo submetido ao seu mordomo (FRANK,
2002, p.466-467). Nos momentos derradeiros, antes de Liza sumir para sempre de sua
vida, o homem afirma para si mesmo “Queria ‘tranquilidade’, ficar sozinho no subsolo. A
‘vida viva’, por falta de h|bito, comprimira-me tanto que era difícil respirar”
(DOSTOIEVSKI, 2000, p.142).
As opções pelo ego e pela consciência nos levam a fazer um paralelo entre a
incapacidade de amar o Palácio de Cristal, exposto na primeira parte do texto, e a
incapacidade de se arriscar em uma jornada irracional, como a intranquilidade de amar
5 FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo.São Paulo; EDUSP,1992. p. 38. 6 Pode-se traçar aqui um paralelo com a teoria dos três tipos de capitais presentes na obra do sociólogo Pierre Bourdieu. São esses os capitais: cultural, social e econômico. Para ver mais, por favor, consultar: BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 73-79 (3. ed., 2001).
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Liza. O homem do subsolo, em suas derradeiras páginas e assumindo um grande
sofrimento moral, faz ao seu interlocutor “...uma pergunta ociosa: o que é melhor, uma
felicidade barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?” (DOSTOIEVSKI,
2000, p.144), sugerindo assim, uma tomada de posição entre um homem de pensamento
ou um homem de ação7.
Razão e Sociedade: Dostoievski e a antropologia contemporânea
O capítulo VII, da primeira parte de Memórias do Subsolo, pode remeter seus
leitores para uma discussão interessante acerca do pensamento de Dostoievski sobre o
racionalismo ocidental, que ganha força a partir da consolidação das ciências naturais no
século XVII. Em diversas partes do texto, Dostoievski, apresenta-se enquanto partidário de
uma ideologia eslavófila, logo, para esse autor o discurso da racionalização da vida humana
não forneceria respostas às contradições da existência do homem. O homem, não sendo
totalmente racional e/ou lógico pode, escolher assim, seu próprio prejuízo ao invés da
vantagem. Como nos diz o autor:
(...)oh, dizei-me, quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem comete ignomínias unicamente por desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente deixasse de cometer essas ignomínias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo suas reais vantagens, veria no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade, ele passaria a praticar o bem? Oh, criancinha de peito!” (DOSTOIEVSKI, 2000, p.35)
O trecho, acima citado, é acompanhado de uma nota de roda pé na versão original
traduzida para o português. A nota faz uma referência clara à polêmica, que o autor, faz
com Tchernichévski e seu egoísmo racional. Dostoievski se manifesta, claramente contra
essa teoria, segundo a qual, como diz Joseph Frank, em sua biografia de Dostoievski,
7 Considero que o autor questiona ao seu interlocutor/leitor que tipo de homem ele seria em uma situação análoga com a sua. É uma interpretação inteiramente pessoal.
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postulava que “...o homem era congenitamente bom e receptivo { razão e que, uma vez
esclarecido quanto a seus verdadeiros interesses, seria capaz de construir, com a ajuda da
razão e da ciência, uma sociedade perfeita” (FRANK, 2002, 430). O homem, para o autor
das Memórias, é capaz tanto de fazer o bem, assim como, de realizar o mal – existe sim
um fosso entre o racional e o irracional.
A escolha do personagem em não ir ao médico e ter consciência de suas dores e
estado de saúde mostra como o homem possui livre-arbítrio de escolher suas ações. O
homem, assim, não é uma máquina que pode ser ajustada através dos tempos. O autor,
ao polemizar com Tchernichévski, faz uma opção pelo eslavofilismo, ou seja, confia no
hibridismo do povo russo8. O homem não poderia, assim, ser confinado em padrões de
comportamentos e ações específicas, pois o que ele tem de realmente humano são suas
contradições e o livre-arbítrio.
Neste ponto gostaríamos de traçar um paralelo entre o pensamento de
Dostoievski e sua opinião acerca da ciência ocidental e o pensamento do filósofo e
antropólogo Bruno Latour.
Bruno Latour (2000), apresenta a proposta de uma antropologia simétrica, aquela
em que a pressuposta divisão dos modernos entre natureza e cultura/sociedade seja
eliminada já que não é possível pensá-los separadamente. Seu principal argumento para
o fim dessa divisão segue no sentido de que os modernos nunca foram capazes de
eliminar nem diminuir a proliferação dos seres híbridos, aqueles que possuem mistos de
natureza e cultura, daí vem a afirmação do autor quando nos diz que jamais fomos
modernos. Para o autor, a antropologia atual, não permite aos modernos pensarem a si
próprios e exercerem uma prática de reflexividade:
Formada pelos modernos para compreender aqueles que não o eram, ela interiorizou, em suas práticas, em seus conceitos, em suas questões, a impossibilidade da qual falei anteriormente ... ela mesma evita pensar os objetos da natureza e limita a extensão de suas pesquisas apenas às culturas. Permanece assimétrica. Para que se torne comparativa e possa ir e vir entre os modernos e os não-modernos, é preciso torná-la simétrica (LATOUR, 2000, p.91)
8 Na Terceira parte de seu “O Nascimento da Intelligentsia Russa”, Isaiah Berlin, menciona como os
eslavófilos viam na suposta “fraqueza” do povo russo seu trunfo mais glorioso para salvar a humanidade.
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É importante ressaltar que, para esse autor, a simetria é alcançada quando
pensarmos humanos e não-humanos (objetos e natureza) de maneira inter-relacionada
(ideia de rede composta por vários atores humanos e não-humanos que possuem sentidos
entre si e diferenças de dimensão dos atores envolvidos – o autor observa a tendência
moderna de pensar suas próprias redes enquanto “totalidades sistem|ticas e globais”
(LATOUR, 2000, 95-114) que teriam efeitos profanos) e desierarquizada tanto no quesito
natureza e sociedade quanto no aspecto verdadeiro-falso. A ciência e sua grande divisão,
seriam para esse autor, as grandes marcas distintivas do Ocidente moderno, que vê no
monismo de outras sociedades, sua contraposição, ou seja, os pré-modernos. Nesse ponto,
vale a pena ressaltar que é justamente esse monismo, que Dostoievski enxerga na
sociedade russa, seu maior trunfo – aquele que impediria a decadência da Rússia e
garantiria seu futuro glorioso de salvar a humanidade. Joseph Frank (1992), ainda nos
adverte que essa visão messiânica de uma Rússia com papel redentor pela fé ortodoxa
pode ser substituída pela visão de uma Rússia que salvaria o mundo através do
comunismo (FRANK, 1992).
Ao questionar os pressupostos da antropologia moderna, Latour, expõe a
incapacidade da antropologia, quando volta dos trópicos, de pensar o mundo moderno em
que surgiu. Exceções superficiais surgiriam quando antropólogos se propuseram a
pensar a partir das margens, ou seja, em situações que as divisões modernas são tênues –
o que expressaria uma perda de existência do antropólogo perante o moderno (LATOUR,
2000, p.100). Além disso, ao defender o conceito de natureza-cultura9 em oposição ao
conceito de cultura, que seria uma consequência da divisão natureza e sociedade imposta
pela Constituição moderna, o autor demonstra que uma antropologia simétrica e de centro
permite eliminar “ (...)toda e qualquer afirmação a respeito daquilo que distinguiria os
ocidentais dos Outros” (LATOUR, 2000, p.102).
A antropologia simétrica introduz o mundo do não-humano, da autoridade das
9 “Todas as naturezas-culturas são similares por construírem ao mesmo tempo os seres humanos, divinos e não-humanos. Nenhuma delas vive em um mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente impostos a uma natureza exterior que apenas nós conhecemos. Nenhuma delas, e sobretudo não a nossa, vive em um mundo de coisas. Todas distribuem aquilo que receberá uma carga de símbolos e aquilo que não receberá...se existe uma coisa que todos fazemos da mesma forma é construir ao mesmo tempo nossos coletivos humanos e os não-humanos que os cercam” (LATOUR, 2000, p.104)
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coisas com sentidos atribuídos entre os homens, enquanto objeto de investigação e
defende o fim das fronteiras rígidas entre as ciências “verdadeiras” (naturais) e as “falsas”
(humanas): as primeiras supostamente desprovidas de valor ideológico porque romperam
com eles na grande divisão moderna (político/social) e as últimas permeadas por valores
ideológicos. O que Bruno Latour nos mostra é que, ao não ser moderno, o ocidente não é
“(...) radicalmente { parte de todas as culturas” (LATOUR, 2000, p.110).
Os pensamentos, de ambos os autores, devem ser devidamente contextualizados –
o primeiro produzido no século XIX, o último produzido do século XXI; o primeiro procura
na crítica ao pensamento ocidental diferenciar a Rússia e o homem russo do mundo
ocidental, o último procura destruir o conceito de pensamento científico-racional que
separa os ocidentais do resto dos povos do mundo. Mas o paralelo evidente, entre ambos os
autores, é que pensar o papel da ciência e da racionalização em oposição ao da religião e
do livre-arbítrio foi e, provavelmente, ainda será uma constante no pensamento humano,
na medida em que esse procura substituir, romper, hierarquizar ou modificar as relações
sócio-culturais de diversos grupos sociais distintos.
O Transeunte na Modernidade e o Homem do Subsolo
A historiadora Maria Stella Bresciani, (2004) procura demonstrar como o
fenômeno da multidão foi de especial assombro para os europeus do século XIX,
ressaltando assim, as multidões que se formavam nos novos grandes centros urbanos
como Paris e Londres. A multidão torna-se tema da literatura10. Autores como Baudelaire,
10 A preocupação de Dostoievski em apresentar problemas éticos, filosóficos e práticos através das diversas
personagens de suas obras fica evidente, daí Joseph Frank (1992, p.32)) afirmar que as personagens do
autor russo sofrem de uma autoconsciência excruciante em que “...ofrecía la posibilidad de um proceso
nuevo de an|lisis psicológico de personages, situaciones y problemas, desde El interior hacia El exterior”
(LO GATTO, 1973, p.309). Nessa linha, para Lo Gatto, o homem do subsolo seria a representação típica das
contradições humanas em que o choque exterior das personagens refletiriam suas condições internas.
Esse choque interior marcaria um caráter formal de inversão da forma narrativa do realismo, invertendo
assim, o pensamento cronológico e lógico da narrativa. A novidade conceitual seria marcada pela verdade
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Dickens, Victor Hugo e Edgar Alan Poe põe-se a descrever a monstruosidade do
movimento sinuoso de milhares de pessoas, das mais diversas classes sociais e origens
dentro de um mesmo espaço físico-temporal. A vida cotidiana assumiria assim, a
dimensão de um espetáculo e o acaso teria papel de grande destaque junto aos
deslocamentos de homens e mulheres (BRESCIANI, 2004, p.10-11). Tanto o dia quanto a
noite reservariam aos seus frequentadores o anonimato da multidão, os espaços de lazer e
os fluxos do crime e da desordem.
Durante a década de 1850, o império russo, tinha uma população de quase
cinquenta milhões de pessoas e contava com menos de cinco por cento de sua população
vivendo nas grandes cidades (cidades com cem mil habitantes ou mais). Somente cinco
cidades ultrapassavam a cinquenta mil habitantes – para nível de comparação no mesmo
período a França contava nove cidades e o Reino Unido com dezessete cidades com
população superior aos cinquenta mil habitantes (HOBSBAWN, 1996). Moscou e
Petersburgo, se apresentavam assim, como os corações da vida urbana da Rússia
oitocentista. Dostoievski não deixou de retratar em suas Memórias do Subsolo um
episódio característico das grandes cidades modernas, que trataremos logo abaixo.
O primeiro capítulo da Parte II, de Memórias do Subsolo, revela aos leitores tanto
um exemplo do cotidiano das grandes cidades quanto uma das principais características do
homem do subsolo.
Numa certa noite, o personagem de Dostoievski, decide sair de seu subsolo e ao
caminhar pelas ruas escuras percebe uma briga dentro de um bar, que terminaria com
uma pessoa sendo arremessada janela afora. Ao ficar intrigado, com o que presencia, o
homem, cogita uma briga como tentativa de sair de sua solidão constante, mas ao sofrer a
indiferença, por parte de um oficial do exército e ter se sentido próximo a uma mosca, o
homem, desenvolve um fascínio por essa figura intrigante.
Nas p|ginas seguintes, Dostoievski, revela como “a princípio, comecei (o homem),
aos pouquinhos, a recolher informações sobre aquele oficial” (DOSTOIESVKI, 2000,
interior do homem, verdade essa que também seria parte da vida social. É importante ressaltar, como o faz
Lo Gatto, que é impossível tratar as obras de Dostievski de forma unitária, pois essas possuem uma
diversidade enorme de significados.
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p.64), sempre escondido pelo “subsolo” da multidão, pelo anonimato que os transeuntes
das cidades modernas provêm aos seus membros. O homem do subsolo escreve uma carta,
que não é publicada, para um jornal, na qual faz uma denúncia do comportamento vil do
oficial e depois escreve uma carta endereçada diretamente ao oficial em que “...se o oficial
compreendesse um pouco sequer o ‘belo e o sublime’, seguramente viria correndo {
minha casa, para se atirar ao meu pescoço e oferecer a sua amizade” (DOSTOIEVSKI,
2000, p.65).
Ainda relatando a mesma situação, o autor, menciona as tentativas frustradas do
homem do subsolo em abordar o oficial - é nesse trecho do livro que Dostoievski fará uma
paródia de O Capote de Gogol – resultando, essas tentativas, em situações humilhantes,
mas que o personagem as utilizará para reafirmar sua dignidade posteriormente.
Para pensarmos a questão da cidade moderna, descrita nesse capítulo, é
interessante enumerar algumas características apontadas pelo autor que ajudam a pensar
o anonimato e a relação com os estranhos na multidão: I) a indiferença para com o outro;
II) anonimato ao perseguir alguém/cometer um delito; III) moda enquanto código de
coerção social e marcador de distinção; iv) a solidão.
O fluxo constante de pessoas, das mais diversas classes sociais, frequentando
espaços transitórios acabou resultando no desenvolvimento da indiferença como
mecanismo pelo qual o homem moderno pode viver socialmente. Como apontou Simmel
(2005), em contraposição à vida comunitária, a cidade moderna não permite aos seus
membros a preocupação constante com tudo/todos ao seu redor. A cidade moderna, dessa
maneira, possibilitou o surgimento da figura do homem blasé, da indiferença alheia, do
desprezo. Nosso personagem cai vítima dessa característica moderna ao ser deslocado
fisicamente pelo oficial, que nada o diz, simplesmente ignorando sua presença, daí o que
nos leva ao segundo ponto: o anonimato.
Ainda em contraposição à vida comunitária das pequenas cidades, as grandes
metrópoles oferecem a chance do anonimato, ou seja, permitem o olhar, o fazer, o
descobrir – o permitido e o não permitido, o normal e o desviante, a regra e a exceção –
sem que isso resulte em prejuízos social e identitário ao seu perpetrador. Nosso homem
do subsolo investiga a vida de seu “amigo” oficial de diversas maneiras, sem jamais, ter
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sua identidade revelada e ainda tenta realizar uma denúncia pública para um jornal de
grande circulação, ameaçando assim, a carreira daquele que o mal tratou.
Émile Durkheim (2007), reconhece um fenômeno social na medida em que ele se
impõe sobre o indivíduo, ou seja, se esse fenômeno possui uma força coercitivo. A moda,
para esse autor, seria um fenômeno social na medida em que manifesta um código social,
um caráter de distinção: não são os indivíduos que criam a moda, mas sim a sociedade
que se manifesta através dela. O homem do subsolo, em seu esforço de ser notado pelo
oficial, procura vestir-se de acordo com os frequentadores da Avenida Niévski, para que
desse modo, seu comportamento vingativo para com o oficial não seja diminuído por sua
classe social inferior.
Por último, e não menos importante, uma das maiores características das grandes
cidades é justamente seu fator desagregador. Ao mesmo tempo em que conseguem
concentrar enormes quantidades de pessoas de uma diversidade infinita de lugares de
origem, esses locais, as desterritorializam fazendo com que a solidão seja uma de suas
maiores características. A desagregação familiar e dos círculos sociais próximos causados
por migrações, mortes e guerras geram no homem moderno um sentimento de não
pertencimento ou mesmo de desenraizamento.
Autor, jornalista, polemista, crítico, eslavófilo, religioso e pensador das condições
sociais, Dostoievski, seja ele naturalista, romântico ou humanista mostrou, na extensão e
diversidade de sua obra, um desprezo pelas condições sociais e ideológicas da Europa
ocidental, uma admiração pela Rússia tradicional, a vida no exílio e na prisão, a vida e
morte por ideais políticos, a vida camponesa e a tragédia do amor. O que Dostoievski
tentou diminuir foi a distâncias entre os que pensam e o povo (LO GATTO, 1973, p,335),
entre a realidade e a ficção.
Referências
BERLIN, Isaiah. Os pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São
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Paulo;Brasiliense, 2004. DOSTOIEVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: 34, 2000. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FRANK, Joseph. Dostoievski 1860 a 1865: os efeitos da liberdade.São Paulo;EDUSP, 2002. _______. Pelo prisma russo. São Paulo; EDUSP, 1992. HOBSBAWM, Eric. The age of revolution: 1789 – 1848. New York; Vintage Books, 1996. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São Paulo: 34, 2000. LO GATTO, E. La literatura rusa moderna.Trad. M. Mascialino, Buenos Aires: Losada, 1973. MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas: Unicamp, 2010. SIMMEL, G. As grandes cidades e a vida do espírito. MANÁ, Rio de Janeiro, v.11, n.2, 2005. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132005000200010>. Acesso em: 18 jun. 2012 WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo; Companhia das Letras, 2009.
Artigo aceito em julho/2013