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MENÉNDEZ PELAYO E ANDRÉ FALCÃO DE RESENDE (*) O estudo de Horácio c do horacianismo na literatura portuguesa está ainda por fazer. Com efeito, nem as notas avulsas contidas em comentários de tradutores de Horácio, como as do Visconde de Seabra 111, nem o capítulo que em cada dos dois volumes do seu Horácio dedicou a Portugal esse infatigável trabalhador que foi D. Marcelino Menéndcz Pclayo, logram preencher esta lacuna. A documentação de Menéndez Pclayo é abundante, e ao ilustre professor madrileno devem os portugueses um trabalho que até hoje nenhum deles se decidiu a empreender. Mas seria faltar à verdade e à franqueza que mutuamente nos devemos, como vizinhos e amigos, se alírmasse que tudo na exposição de Menéndcz Pelayo agrada igual- mente aos estudiosos do meu país. Não vamos discutir aqui a estranha ideia de que o rumo da vida literária em Portugal, diferente do seguido pelas letras espanholas, conduzia inevitavelmente à decadência cultural dos portugueses. Este princípio, afirmado quase dogmàiicamente por Pclayo. quando tinha pouco mais de vinte anos, levou-o a proclamar com um vigor e uma rigidez, um tanto excessivos, a absoluta identidade cultural entre os dois países. Como manifestação vocabular desta sua ideia básica, aparece o uso indistinto do adjectivo espanhol, com o valor de peninsular ou ibérico, em frases assim (2): «En cl prólogo pasa revista (*) Comunicação lida pelo Autor no «Primer Congreso Espanol de Estúdios Clásicos», realizado cm Abril de 195f>, em Madrid, onde foi especialmente cele- brado o centenário do nascimento de Menénde/ Pclayo (1856-1912). (1) Antonio Luiz de Seabra, Satyras e Epistolas de Quinto Ilotado Ffacco. I oino Primeiro (Satyras) e Tomo Segundo (Epistolas), Porto,-MDCCCXLVI, (2) Os dois tomos do Horatio en Espana foram reimpressos em um su volume, o vi (1951), da Bibliografia liispano-lalina elásica, incluída na Eclición nacional de his obras completas de Menéndez Pelayo. publicada pelo Consejo Superior de lines- tigaciones Cientificas, cm edição preparada por Enrique Sanchez Reyes. Os dois tomos do Horácio en Espana reproduzem a Segunda edición, refundida, vinda a lume em 1885: tomo i (Traductoresy comentadores), tomo u (La poesia horaciana). As páginas que cito, são as da edição de Sanchez Reyes, publicada em 1951. A frase em questão encontra-sc na página 201.

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MENÉNDEZ PELAYO E ANDRÉ FALCÃO DE RESENDE (*)

O estudo de Horácio c do horacianismo na literatura portuguesa está ainda por fazer. Com efeito, nem as notas avulsas contidas em comentários de tradutores de Horácio, como as do Visconde de Seabra 111, nem o capítulo que em cada dos dois volumes do seu Horácio dedicou a Portugal esse infatigável trabalhador que foi D. Marcelino Menéndcz Pclayo, logram preencher esta lacuna.

A documentação de Menéndez Pclayo é abundante, e ao ilustre professor madrileno devem os portugueses um trabalho que até hoje nenhum deles se decidiu a empreender. Mas seria faltar à verdade e à franqueza que mutuamente nos devemos, como vizinhos e amigos, se alírmasse que tudo na exposição de Menéndcz Pelayo agrada igual­mente aos estudiosos do meu país. Não vamos discutir aqui a estranha ideia de que o rumo da vida literária em Portugal, diferente do seguido pelas letras espanholas, conduzia inevitavelmente à decadência cultural dos portugueses. Este princípio, afirmado quase dogmàiicamente por Pclayo. quando tinha pouco mais de vinte anos, levou-o a proclamar com um vigor e uma rigidez, um tanto excessivos, a absoluta identidade cultural entre os dois países. Como manifestação vocabular desta sua ideia básica, aparece o uso indistinto do adjectivo espanhol, com o valor de peninsular ou ibérico, em frases assim (2): «En cl prólogo pasa revista

(*) Comunicação lida pelo Autor no «Primer Congreso Espanol de Estúdios Clásicos», realizado cm Abril de 195f>, em Madrid, onde foi especialmente cele­brado o centenário do nascimento de Menénde/ Pclayo (1856-1912).

(1) Antonio Luiz de Seabra, Satyras e Epistolas de Quinto Ilotado Ffacco. I oino Primeiro (Satyras) e Tomo Segundo (Epistolas), Porto,-MDCCCXLVI,

(2) Os dois tomos do Horatio en Espana foram reimpressos em um su volume, o vi (1951), da Bibliografia liispano-lalina elásica, incluída na Eclición nacional de his obras completas de Menéndez Pelayo. publicada pelo Consejo Superior de lines-tigaciones Cientificas, cm edição preparada por Enrique Sanchez Reyes. Os dois tomos do Horácio en Espana reproduzem a Segunda edición, refundida, vinda a lume em 1885: tomo i (Traductoresy comentadores), tomo u (La poesia horaciana).

As páginas que cito, são as da edição de Sanchez Reyes, publicada em 1951. A frase em questão encontra-sc na página 201.

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Cândido Lusitano a los comentadores y traductores de Horácio que él conocía. De los cspanoles cita a Aquiles Staço, Tomás Corrêa, cl Broccnsc. Benito Pereira, Espinel y Villon de Biedma».

Sendo três dos mencionados, a saber, Aquiles Estaco, Tomás Correia e Bento Pereira, de nacionalidade portuguesa, seria mais natu­ral chamar aos seis tradutores peninsulares. Este emprego de espanolcs

soa hoje como inusitado e francamente pouco animador aos ouvidos dos meus compatriotas.

Todavia, — é-mc grato afirmá-lo neste ano em que M. Pelayo completaria cem anos, se fosse vivo — todavia, o grande investigador documentou-sc satisfatoriamente, no que toca à menção de portugueses no seu Horácio. Por isso, lhe devemos todos ficar muito gratos. Oxalá o seu exemplo fosse seguido, e quantos em Espanha nos dão a honra de incluir em seus trabalhos um capítulo sobre Portugal, tivessem igual cuidado em informar-se!

A abundância de documentação não impede naturalmente, em estudos desta ordem, que faltem autores e obras, e que, na parte refe­rente a Portugal, se verifique uma relativa pressa e descuido na elabo­ração do trabalho.

Servir-mc-á de exemplo típico o poeta quinhentista português, André Falcão de Resende, nascido em 1527. ou talvez antes, c falecido com largos anos. em 1599.

André Falcão de Resende ou André Falcão, como os seus con­temporâneos lhe chamaram mais frequentemente, talvez para o não confundirem com seu tio. o famoso humanista André de Resende, merece a atenção de Menéndèz Pelayo. tanto no tomo i, como no tomo li do seu Horácio en Espana (1). Esta última referência é muito breve e quase se reduz a afirmar o «prosaísmo c tendência didáctica» das composições originais do poeta. Todavia, embora Falcão de Resende não seja vate de primeira grandeza, não seria difícil encontrar na sua obra manifestações de horacianismo muito mais valiosas, em número e significado, do que a vulgar quintilha da ode sexta (a que M. Pelayo, não sei porquê, chama sétima), transcrita no Horácio en

Espana.

Entretanto, é no tomo i, o dos tradutores, que se encontra a maior parte das referências a André Falcão. E quer-me parecer que o leitor não pode deixar de sentir-se um tanto perplexo ante o carácter vago,

(I) Pp. 196-198 e 487-488, respectivamente,

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impreciso, contraditório mesmo, das apreciações do mestre madrileno. Aí se escreve: «Interpreto Andres Falcão treinta y dos odas de Horácio y la sátira 9.a dei libro I. Se había propuesto traducir, a lo que parece, por lo menos toda la parte lírica; peio, como se ve, apenas pasó dei primer libro. Que sus fuerzas eran inferiores a tan difícil empresa, mostraránlo algunos ejemplos».

Cita depois textos de Resende, quer para louvar, quer para censurar o tradutor de Horácio, mencionando em último lugar o começo da ode iv do livro L de que infelizmente omite o verso 6 (Já deixa a seu presepe o manso gado):

Já o pesado inverno o rigor perde, E ao Favônio brando

Obedecendo vai, e a<> verão verde: E as máquinas tirando

Vêm os secos navios. Ao fundo mar, dos porros e dos rios.

Já deixa a seu presepe o manso gado, Deixa o rústico ao fogo,

Nem alva geada já embranquece ao prado: Em doce e alegre jogo

Por clara lua e fria Já Vénus aprazíveis danças guia.

E conclui, reconhecendo ao autor das versões de Horácio méritos que umas linhas atrás lhe negara: «Atendicndo a los frequentes aciertos dei trabajo de Resende, es de sentir que este distinguido humanista y fácil versificador no hubiese dotado a su país natal de una traduction completa dei lírico latino».

Esta a conclusão, a bem dizer, inesperada. Mas a descrição da obra de Resende, feita no período que acima transcrevemos, é ainda mais surpreendente. Com efeito, nem o poeta quinhentista traduziu trinta e duas odcs( l ) ; nem há nada que nos autorize a supor que se tinha proposto traduzir toda a parte lírica: nem «apenas pasó del primer libro» que, no vate romano, consta de trinta c oito odes. Quanto ao

(I) Tal é a indicação do Dicionário bibliográfico de Inocêncio Francisco da Silva, tomo vin (1867).

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juízo de que o poeta não estava à altura da empresa, já vimos como Mencndcz Pclayo. logo de seguida, parece dcsdizê-lo.

A verdade é que André Falcão de Resende traduziu trinta e três odes e o epodo n, além da sátira ix do livro T. E essas trinta e três odes, escolhidas dos quatro livros de Horácio (c não apenas do pri­meiro) são as seguintes: i. li, IH, iv, v, vi, vil, viu, XI, xix. xxu, xxiv, xxvi, xxviii, xxxi, xxxiv, xxxv. do livro i; II, in, x, xiv, xvm. xx do livro li ; i. 11. in, vi, xvi, xxm. xxiv, xxix do livro ni; vu e x do livro iv.

O conhecimento da restante obra de Falcão de Resende leva-me a crer que o poeta quinhentista não se proporia traduzir toda a lírica de Horácio, onde nem tudo se coaduna com as suas preocupações mora­lizadores. Na mesma parte que traduziu, é visível uma tendência para cristianizar a doutrina ou os exemplos da poesia horaciana. Assim, na ode in do livro m, de tão elevadas preocupações morais em Horácio, substitui por figuras cristãs as personagens mitológicas do poeta latino, e escreve uma ode que só tem de Horácio as duas estâncias iniciais, a sugestão do tema e a linha gera! do seu tratamento, como se pode ver por estes versos:

O que for justo e forte Na virtude, e dum ânimo constante,

Nem que o ameace à morte Algum feroz tirano e arrogante.

Nem força ou poder basta A mudar-lhc a vontade santa e casta:

Nem de seu bom intento O poderá mover o fulminoso

Júpiter, ou austro vento. Que o Adriático mar move furioso;

E em que a máquina caia Do mundo, nem se abate, nem desmaia.

Tais se mostraram quantos Com pura vida e luz a Deus seguiram:

Tais os felizes Santos, Que aos Céus por caridosos graus subiram.

Indo lá pelo atalho Do desprezo do mundo, e do trabalho.

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É o sangue d'Abel justo O primeiro, que em terra se derrama

Por mão do irmão robusto, Cujo vão sacrifício Deus não ama;

Clama o sangue vingança, Cança Caim, e em glória Abel descança.

Os conceitos que concluem a ode m do livro i:

Nil mortalibus ardui est: caelum ipsum petimus stultitia neque

per nostrum patimur scelus iracunda louem ponere fulmina.

sío vertidos desta maneira:

Que trabalho intentado O homem deixa, a que não faz violência ?

Se aos céus combate ousado, E com vã insolência

Já não sofre usar Deus da sua clemência?

Os dois últimos versos, geralmente omitidos em edições escola­res, da ode iv do livro i:

nec tenerum Lycidan mirabere, quo calet iuuentus nunc omnis et mox uirgines tepebunt.

aparecem assim transformados:

Nem das fermosas damas os toucados Ricos, louros topetes A ti espantarão tanto,

Quanto o mortífero e infernal quebranto.

André Falcão foi atraído pelo encanto particular da ode.vji_do_ livro iv de Horácio, a mais extensa das duas que verteu desse livro.

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Tal composição, a que um fino poeta e grande latinista (1) chamou «o mais perfeito poema da língua latina», seduziu igualmente Luís de Camões, contemporâneo de quem Resende fala com admiração e simpatia (2). Da versão correcta de Resende para o tratamento livre c pessoal das odes vil do livro iv e ív do livro i de Horácio, na inspirada ode íx de Camões, vai toda a distância que separa os dois poetas lusitanos.

Mas onde ambos procedem de igual modo, é no espírito cristão de que impregnam um a sua tradução, outro a sua ode de inspiração horaciana.

Os versos 19 c 20 da ode vil do livro ív, tão terrenos em seu egoísmo epicurista,

Cuncta meatus auidas fugient her edis, amico quae dederis animo.

são moralizados na versão de Resende:

Só livras das famintas nulos do herdeiro Os bens que dás aos dinos.

E Camões reflecte idêntica preocupação, ao dizer cristãmente:

O bem que aqui se alcança não dura por possante, nem por forte; que a bem-aventurança, durável de outra sorte, se há-de alcançar na vida para a morte.

Concluindo esta série de exemplos, afigura-se-mc pouco provável que André Falcão de Resende projectasse (não o diz em parte alguma)

(1) O Prof. A. E. Housman, de Cambridge. (Cf. L. P. Wilkinson, Horace and his lyric poetry. Cambrigc, 1946, p. 40; Gilbert Highet, The classical tradition, Oxford, 1951 (reimpressão da éd. de 1949), p. 497).

(2) Satyra II. A Luiz de Camões, pp. 283-292, e, possivelmente, também na Écloga Despois que o portuguez rio Mondego, vv. 266-286 (p. 430). As páginas aqui indicadas sào as da colecção de folhas impressas, conhecida por Edição de Coim­bra. Sobre esta odivílo não concluída, cf. A. Costa Ramalho, Breves notas sobre André Falcão de Resende in Bibios xxvu (1952), pp. 443-454.

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traduzir todas as líricas de Horácio. Na parte que verteu para por­tuguês, foi um dos primeiros, na Península Ibérica, a traduzir em verso as odes do Venusino, e de algumas delas talvez mesmo o primeiro tradutor peninsular. Com efeito, há razões para crer que estas versões são obra da mocidade, e não da sua queixosa velhice de pretendente insatisfeito, à qual pertencem muitas das composições que chegaram até nós. Penso que terão sido escritas nos meados do século dezasseis, assim como a sátira IX do livro I de Horácio, traduzida em décimas de redondilha maior.

Menéndez Pelayo que no «índice general de traduetores de Horá­cio», impresso a fechar o tomo i do seu «Horácio en Espana», lhe atribui a tradução de todo o livro i das odes, que só menciona uma tradução avulsa, em toda a Península, do epodo 11 (a do tio de Almeida Garrett, Frei Alexandre da Sacra Família), e que esquece a versão de Falcão de Resende, da sátira ix do livro í, apesar de mencioná-la no contexto, veio a título póstumo, com tantas inexactidões, por certo involuntárias, cumular a pouca sorte de que toda a vida se lamentou este membro da ilustrada família dos Resendes de Évora.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO