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Mergulho

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Poemas Língua Portuguesa Literatura

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Page 1: Mergulho
Page 2: Mergulho

Título : MERGULHOAutora: Tânia Amares BuenoPlataforma de Edição e Leitura ISSUUAno: 2015Local: São Paulo, BrasilIdioma: PortuguesNúmero de páginas: 25Literatura: Poemas

A meus filhos

Carina Bueno e Guilherme Bueno

osAos meus pais

Sebastião Telles Bueno e Arlete Amares Bueno

Page 3: Mergulho

quebra-se palavra por palavra

o encanto

nem uma letra me consola

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Sorriam

Pessoas costuram-se à máscarascoloridas em biotintas,dias e noites escorridas,esvaídas do corte rasgado

aberto nas artérias da vida.Da paleta-corpo das criançasretiram a própria fragilidadetransfigurada em força.

Alguns frequentam bailes,outros adoecem nas fotosmofadas nos álbuns de família.

Memórias dispostas na farra daspalavras recolhidas dos varaisonde secaram vermelhas fantasias.

Page 5: Mergulho

um bebê navegava

no escuro

crescia e dormia

ouvia vozes

sentia ondas

até que uma tempestade

virou o barco

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Soneto da estranha sorte

em dias de namorados as noitescantam historietas em si bemolmitos antigos, longínquos açoitesde linguas conservadas em formol.era uma vez um bravo guerreiroencantado em gosmento caracoldestinado a encontrar menina-moçapescadora de arpão, linha e anzol.chegado o dia, fim do tormentoa moça achou o pequeno animale pensou logo num peixe dourado.aterrorizado o pobre moluscocaiu aos pés da linda donzelae foi casualmente esmigalhado

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Mundanas

múltiplas as mães dividem-selargam pedaços vivosperdem-seespalham-se

amam e odeiamao mesmo tempoem tempos diferentesesvaziam-se

enquanto preenchemo mundo

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dias e dias e diasuma chama de vela sacolejaa pomba da moura tortaestremece na portada enorme sala vazia

a vida é uma históriarepetidamente desfiadana lida dos que fiamenfiados em nenhumabsolutamente nenhumsentido

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Momento

Na intimidade daquela madeiraentre fibras e tempo, mora voce.No oco da matéria repleta de vibração, força e prazer.

Não cabe a mim entender o motivo,meu olhar o consome e constrange.Vejo que insiste em manter-se longe,na certa teme que o faça cativo.

Guardo distância, sigo e procuro.Quero testar esse constragimento,tocar o não no limite do gesto.

A justa recusa me faz ausência.Molda, transforma meus sentimentosem tranlucidez a invadir-lhe a essência.

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um verso

atravessou-lhe o olho direitoenviesado foi descendo semsaber o lugar de seu paradeirofoi indo, como tudo vai e vem

mas não veio, foi indo até achara sala do relógio vermelhoocupante indevido e renitentedaquela casa sem portas, sem ar

parou num chão rejuntado de cacospiso vermelho quebrado um diarearranjado em alguns mosaicos

o morador ferido reviviaa explosão impune do artefatodestruidor da cor e da poesia

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Comédia dos erros

passo a passo ouço o som abstratodistraído da vida convergidaem veias, artérias e quimerasensopadas no vermelho contato

correnteza de tédio encharcadano assédio obscuro da loucuramelancólica e grotesca charada

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entre novos rufares

desejos explodem

no movimento do peito

rápido descompasso

ofegante

é preciso criar

o tempo

entre amanhã

e antes

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as sete moradas

dentro do meu labirintoum minotauro

ouço Borgesbecos sem saída

um grande portal:arena do sacrifício

um ser adentra o recintosinto seu cheiro e choro

vem buscar meu segredocaçar minha fera

devoro-opuro instinto, fome

saio marcadahá sangue na luta

volto repleta,jamais completa

tela Minotauro de Picasso

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O MONGE E A MORTE

então escrevia, apenas por isso. Sem essa mania de querer ser escritora ou poeta, mas pelo prazer de. Era seduzida pelas possibilidades das letras, pela brancura do papel, pelo vermelho que, de dentro, rompia a veia, vertia, hemorragicamente, do corte sagital feito em sua história de vida. Certamente era sua a história, ainda que a voz falasse em terceira pessoa, o tempo utilizado fosse o passado ou a forma aparecesse em versos bobos, rimados na mais pura miséria literária. O monge sabia o que dizia. Ela escrevia nada e, entre todos os nadas, o seu era o mais tosco, menos preparado para o ato. Todo religioso sabe da importância dos rituais e, para uma boa escrita, ocorre o mesmo. Faz-se absolutamente necessária a pesquisa, o preparo do conteúdo em esquemas, a organização e as escolhas rítmicas, os modelos e a roupagem das palavras espalhadas em formas condizentes com o tema e o tempo escolhidos. A meditação prévia propicia a paz adequada para se obter o relaxamento criativo essencial. Mas ela não fazia nada disso. Escrevia de qualquer jeito. De dia, no meio da noite ou à tarde. Bastava para isso um certo arrepio na nuca. Ou mesmo um cheiro de romã. Tudo acontecia de repente, totalmente ao contrário do que o monge sugeria, do que a crítica recomendava. Mesmo assim o movimento dos dedos nas teclas, o gemido de cada a ou ó seguidos de seus agás, as aspirações em sshhh e os sussurros de dois esses colados um ao outro deixavam-na em paz consigo mesma. Amava o ronrronado dos erres, tudo era sexo e texto. Tudo era o x da questão. O resultado era exatamente como o de qualquer vida conjugal. A maior parte das vezes, uma expressão medíocre, somente em alguns momentos um alcance maior. Não interessa a ninguém a maneira como ela amava as palavras. Assim como não interessa a ninguém o sexo feito a dois, três ou em orgias particulares. A não ser aos que se aprazem visualmente com esse tipo de coisas, aos que precisam assistir aos derramamentos. Ela precisava cansar as letras no papel. Consequentemente, cansar-se também. Talvez fosse farinha do mesmo saco, adepta do voyerismo ou exibicionismo, religiões seguidas pelos que ouvem esses chamados. Opostos caminham na mesma corda bamba, em direções contrárias, um para o outro. Leitora de ais nos versos alheios, de dramas e epopéias em que prazer e dor intercalam-se em narrativas suadas de humanidades, ela expunha seus conflitos para olhos escondidos atrás das telas, atrás das máscaras de todo dia. Expunha a crueza do vazio que há no tempo, o oco dos homens nas trincheiras da I Grande Vida, ou nas explosões da II Grande Vida. Quantas vidas havia na história? Na sua, uma apenas. E estava no fim. Despediu-se das letras com todas as cores do arco-íris. Desejou que Buda e Cristo escutassem os tambores das florestas e rodopiassem bêbados ao som dos atabaques. Deitou-se na mesa de sacrifícios e fechou os olhos. Nunca mais abriu.

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Ommmmm

Flutua a flor em mimenquanto eu,peixe-mulherolho o céu dentro do seu azul.é tempo de corujasbrotam por toda parte cantandoAcross the Universee o mundo envelhece em suacadeira giratórita

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voltagem

no parque, a grama verde recitava o orvalhochorado durante a noitenao pise, nao pise

voltei a cabeça para verporque as pessoas sempre fazem issominha mãe na poltrona, o crochêpegou o dinheiro do lanche?vai voltar que horas?

segui pela grama do parquea seringueira, alta, tinha barbaera homem, enorme

quieta, nao grite, a bolsapreciso dos documentosagora um beijo

virei o rosto e vi a seringueirao vento espalhava seu riso

peguei sim, umas sete horasa gota brilhava transparenterente, recorrente

insisti e a grama parecia gostarmeus pés pareciam gostaro orvalho parecia voltar

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seis lugares, todos vaziosmenos umela estava ali descansandoparecia bonita, calma

olhei-a bem demoradamenteenternecida que estavapodia mesmo sentir meu coração palpitarviria dela a emoção que me tomava por inteira?

não, certamente não

era por ti que me sentia agora palpitantepor ti, menina do tarotmenina torta, arroxeadaquis buscar-te

vi novamente os cinco lugares vaziose ela, sozinha, em pazfechei o compartimentoo clack soou como o acorde inicial

olhei o céu, azuldecidi te encontrar

girei a roletainiciei o big bang

deu certoacabou

Roleta

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Projeto

um projeto analgesico de mil Adalgisas

feitas em uma so’

gota a gota

que fosse dado a todos os que

nao precisam de remedios

mas mesmo assim

dizem que sim

um projeto Adaljoso

escapuloso

populosamente forte

de sorte a remediar o mundo

de tudo o que se faz mudo

enquanto os surdos

ouvem gritos

saindo pelas janelas

Page 19: Mergulho

RIZOMA.abaixode todas as mortesno centrodo humano segredoháo entrelaçamento.fios orgânicossímbolos(res) sentidostorcidosna lidano amorna raiva das derrotasna garra das disputasna farra das conquistas.abaixode todas as morteso centrodo humano segredofaz-se de corposdecompostostransformadosem seivano cernedo grande rizoma.eis a fôrmaque repete moldescria brotosoutrosportadores do mesmo.fusãoinferno e céubreu e luzcaos e cosmo.: vidaémorte.

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FEMME

um esquecimento no ar na hora de se concentrar

o olhar preso na surpresa da criança vendo o gato pular

vontade de comer brigadeiro de colher antes da reunião

e o pranto inconsolável com a lembrança súbita do pai

ao ver a garrafa de vinho no encontro para o jantar

.

a flor na salada, a cor no cabelo, o salto que dói, o esmalte vermelho,

presença vibrante no protesto contra canalhas a céu aberto,

contra canalhas em ambientes fechados,

contra canalhas armados,

contra canalhas de fe’ ou sem fe’,

sem um pingo de noção

do que quer uma mulher !

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Um carneiro virá envolto em branca lã

vidas aquecidas em cachos

bondade encarolada

Virá manso, o carneiro

acalmando desesperos

trazendo de volta o sossego

Será um carneiro inteiro

para ser partido ao meio

e ofertado em vários pedaços

Depois de imolado o carneiro

a paz reinará nas almas

devoradoras de santos

Ano Chines

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Dissestes que a raiva voltariaExatamente como o amor.

Tenho um olhar sombrio do qual não gosto.É uma máscara que me acompanha.

Eu a atravesso e ela se senta como um sapoSobre meus lábiosE defeca. Sua miséria a mantém em privação.Não lhe ofereço qualquer proteção.

Há uma bondade que vistoComo túnica.Costurei-a no lado esquerdo do peito.Fiz dela vocação. O DesejoPlantou-se aí.Este lugar é o teu, aí coloqueiA teta que alimenta tua criança..

A escuridão pode matar, entãoO leite promove novo recheio.Assim, as coisas seguem funcionando.

E posso beijá-lo quandoForjar uma dúzia de novos homensEntão morres e morresE morres.

tradução livre do poema de Anne Sexton "Again and again ad again"

vita dopa

mina

cara cola

ex mola

onda cri ola

cheia de graça

vem passa

_____________________________

Again & Again & Again

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enquanto dormem os anjos

enquanto formam-se prantos

enquanto calam recantos.

eu, Dulce e Néia

alço meu vôo

último.

do alto de um edifício

manifesto sonho latente

perversamente

interrompido

Voo

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For Hecuba!

What's Hecuba to him, or he to Hecuba ? W.Shakespeare, Hamlet, Act II scene 2

Sempre gostei de estender roupa no varal. Erguer os braços, levantar o rosto com o céu ao fundo, sentir a luz e o calor do sol impregnados com o cheiro da roupa limpa. O espírito vive de sensações.

Há quem negue o fato ou prefira legar à alma um mundo sem cheiros ou calores. Não a minha, essa alma que respira em mim é diferente. Sente que nunca irá pisar em qualquer lado outro que não seja esse aqui, agora.

Alguns querem as suas eternamente limpas. Não entendo pois a minha requer constantes lavagens, gosta de se sujar. Talvez o pó, essa aspereza de onde viemos, seja responsável pelo anseio pela terra, pela vida da lama que seca em nós. Sim, minha alma se suja e gosto de lavá-la sempre que está sol.

As roupas estendidas balançando são formas ao vento. O movimento chama-me a atenção. A forma dos seres, suas habilidades diferentes. Roupa é um ser que seca. Alguns outros, do mesmo tipo que secam, dispõem de linguagem. Um acaso, lance de sorte, talvez.

Um dia senti-me muito próxima a uma cobra, ou melhor, uma salamandra. Precisei escrever sobre o fato. Foi um encontro intrigante, contava então 43 anos, mas as palavras e idéias eram quase e ao mesmo tempo infantis e profundas. Eu e ela conversando no pátio de um restaurante.

Perdi o caderno, o texto. Lembro-me, no entanto, da angústia em meu peito diante da possível morte daquela alma. Tinha medo que as pessoas pisassem naquele pequeno ser que se movia estranhamente e eu acabara de descobrir.

Dizia eu à salamandra para tomar cuidado com os sapatos enormes que andavam sem olhos por ali. De repente, sentindo-me na mesma condição e junto dela, vislumbrei as possibilidades do nosso atropelamento. Tentei explicar-lhe que nós, rastejantes, quase não somos percebidas. E se formos esmagadas, ninguém sentirá falta, o mundo seguirá acordando e dormindo entre manhãs e noites.

Enquanto eu falava (ou pensava), cuidava para que não a atropelassem. Até então era para mim uma cobra, mas vi que tinha patas. O que era? Cobras têm patas? Bem, eu tenho patas ou pernas, se ela também, éramos primas. Depois desse dia, nunca mais a vi. Deve ter escolhido esconder-se entre as folhagens. Sem dúvida, é sempre melhor.

No dia em que a vi, esperava, pacientemente, por uma palavra, do lado de fora de um restaurante. Sabia da mínima probabilidade, mas talvez. Talvez é forma escassa, é quase nada. Não, não chegou (o som que eu esperava ouvir). Apenas olhos passaram, olhares. Ali eu permaneço até hoje impressa em minha memória. Eu e ela, duas rastejantes.

Se agora sorrio, é porque percebo alguma ironia no destino. Ah! aproxima-se algo de melancolia. Saudade de outro tempo com menos medo. Bobagem minha, devia saber que é praticamente impossível sustentar a esperança pela palavra livre, mas ainda gosto de varais e do cheiro de alma lavada.

De Alma Lavada

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Meia Noite

exatamente meia noite

telefone tocou doze vezes

veio aviso do correio

teto partiu ao meio

real ou devaneio?

fragmentos de eus

espalhados

pelo chão de fevereiro

Em tempo

meninas embriagam-se de formol gelado

brindando o agora

meninos brincam de existência

nas dores que então vigoram

insones

boiam na piscina de suor

enquanto a vida

nada