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Maurice Merleau-Ponty, escritor e fil6sofo, lider do pensa- mento fenomenol6gico na nasceu em 14 de de 1908, em Rochefort, e faleceu em 4 de maio de 1961, em Paris. Estudou . na Ecole Normale Superieure em Paris, graduando-se em filosofia em 1931. Em 1945 foi nomeado professor de filosofia da Universi- dade de lyon e em 1949 foi charnado para lecionar na Sorbonne, em Paris. Em 1952 ganhou a cadeira de filosofia no College de France. Entre suas obras, encontram-se: Sigrws, Fenomeriologia dil percep,ao, A natureza. I $ Maurice Merleau-Ponty Conversas - 1948 Organizac;ao e notas de STEPHANIE MENASE Tradu<;ao FABIO LANDA EVA LANDA Revisao da tradUl;ao MARINA APPENZELLER Martins Fontes sao Paulo 2004 &. 0= =

MERLEAU - PONTY. Conversas, 1948

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Page 1: MERLEAU - PONTY. Conversas, 1948

Maurice Merleau-Ponty, escritor e fil6sofo, lider do pensa­mento fenomenol6gico na Fran~a, nasceu em 14 de mar~ode 1908,em Rochefort, e faleceu em 4 de maio de 1961, em Paris. Estudou

. na Ecole Normale Superieure em Paris, graduando-se em filosofiaem 1931. Em 1945 foi nomeado professor de filosofia da Universi­dade de lyon e em 1949 foi charnado para lecionar na Sorbonne, emParis. Em 1952 ganhou a cadeira de filosofia no College de France.Entre suas obras, encontram-se: Sigrws, Fenomeriologia dil percep,ao,A natureza.

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Maurice Merleau-PontyConversas - 1948

Organizac;ao e notas deSTEPHANIE MENASE

Tradu<;aoFABIO LANDAEVA LANDA

Revisao da tradUl;aoMARINA APPENZELLER

Martins Fontessao Paulo 2004

&. 0= =

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Esta ohra fai plIhlicoda or;lIinafmtnle em fronch com (J Ii/ulo

CAUSERIES 1948110r Edirions dll Seuil. Pllris.

CopyriKhl © Editions du Seu;I, 2002.

Copyrj~hre 2004. Lhororio Martins Fonus Ediloro LIdo..sao Paulo, para a prul!l1u t'dit;iio.

lledi~o

ou/ubra dl! 2004

Tradu.;ioFMJOUtNDA

EV.... LANDA

Revisao da tnldu~o

Morino Appt.'n::dfu

AcompanhameDlo editorialLu:ia ApaTl!ddo dos Somas

RevlsOc:s gr.ificasutido Broun

Moria Funando AlvarrsDinanl! Zorulfrelli da SUra

Produ~ grificaGuoldo Ah'l!s

Pagina~alFotolitos

Studio 3 Dl!st.'nI'o!vimLnto Editorial

Dados Inler'oadon:ais de~ ua Publical;io (CIP)(Omara Bras:iIeira do U\TO, SF. Brasil)

Merleau-Ponty. Maurice. 1908-1961.Conversas. 1948/ Maurice Merleau-Ponty: organizaifao e nOl:as

de Sc(:phanie Mt;nast ; tradu~ao Fabio Landa. Eva Landa : revisiocia tradu~iio Marina Appenzeller. - Sao Paulo : Manins FOfUCS,2004. - (T6picos)

Tftulooriginal: Causeries 1948Bibliograf13.ISBN 85-336-2071-3

I.~ (FilosoflS.) L Mmase. Stephanie. n. Tltulo. m.Sene.

As sete conferencias desta coletfinea foramencomendadas pela Radio Nacional Francesa etransmitidas pela rede Programa Nacional de Ra­diodifusao francesa (RDF) nofinal de 1948e con­servadas no INA* para uso de pesquisadores eprofissionais.

04-6848 CDD-12134

1Adices para cat2Iogo sistemitko:1. Pelcep;lo: Epistemologia: FLiosoflA 121.34

(

Todos 'os direitos desta ediriio para 0 Brasil reseTVados dUvrori/z Martins Fonles EdUora Ltda.

Rua Conse/heiro Rama/ho. 330 01325-000 Sao Paulo SP BrasilTel. (11) 32413677 Fax (ll) 3105.6867

e-mail: [email protected] http://w....w.martinsfontes.com.br

• INA: Institut National de rAudiovisuei [Instituto National doAudiovisuall. (N. dos T.)

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suMARIo

Advertencia IX

1. 0 mundo percebido e 0 mundo daciencia...................................................... 1

II. Explorat;ao do mundo percebido: 0 es-pat;o 9

ill. Explorat;ao do mundo percebido: as coi-.sas senslveis , 19

N.·Explorat;ao do mundo p'ercebido: a ani-malidade 29

V. 0 homem visto de fora 4l-VI. A arte e 0 mundo percebido 55VII. Mundo c1<issico e mundo modemo 67

Bibliografia 77tndice onomastico ················ 81Obras de Maurice Merleau-Ponty 83

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ADVERTENCIA

Estas sete "conversas" redigidas porMauriceMerleau-Ponty para interven~5es em programas denidio foram proferidas por ele em 1948. Segundoo Programa Definitivo da Radiodifusiio Francesa, seisdelas foram transmitidas em cadeia nacional se­manalmente, aos sabados, de 9 de outubro a 13de novembro de 1948. Gravadas para 0 programa"Hora da Cultura Francesa", estas conversas foramlidas sem nenhuma interven~aoexterna. A grava­~ao esta preservada no INA

No sabado, 0 programa tinha como tema ge­raJ HA forma~ao do pensamento". As conversasde Maurice Merleau-Ponty eram'tiansmitidasnomesmo dia que as de Georges Davy (psicolo­gia dos primitivos), de Emmanuel Mounier (psi­cologia do carMer), do doutor Maxime Laignel-

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x CONVERSAS - 1948 ADVERT~NCLA XI

Lavastine (psicancilise) e do academico Emile Hen­riot (temas psicol6gicos na literatura). Segundo osarquivos do INA parece que nenhum vestigio depreambulo, de apresenta<;ao dos participantes edo tema preciso de cada programa foi conservado.

o conjunto das conversas foi concebido pelofil6sofo como uma serie, da qual ele organizou asdiferentes partes e seus titulos: I. 0 mundo perce-

,I bido e 0 mundo da ciencia; II. Explora<;ao do mun­do percebido: 0 espa<;o; III. Explora<;ao do mundopercebido: as coisas sensiveis; N. Explora<;ao domundo percebido: a animalidade;V. 0 homem vis­to de fora; VI. A arte e 0 mundo percebido; VII.Mundo classico e mundo moderno.

A presente edi<;ao foi estabelecida a partir dostextos datilografados por Maurice Merleau-Pon­ty seguindo um plano manuscrito. Estas paginas(£Undo privado) trazem as corre<;oes do pr6prio

punho do autor.A grava<;ao corresponde, em sua maior parte,

a lima leitura fiel, porMerleau-Ponty, dos textosque ~le redigiu. Por vezes, 0 fil6sofo suprime paIa­vras} acrescenta outras, modifica um encadeamen­to, muda uma palavra ou parte de uma frase. Nasnotas de rodape, mencionamos a maioria dessasdiferen<;as de expressao. As mudan<;as ocorridaspo~ ocasiao da grava<;ao sao introduzidas, nas no-

7

tas, por uma letra. As cita<;oes bibliogrMicas saoprecedidas por um algarismo arabico. Procuramosencontrar as edi<;oes que Merleau-Ponty e seus con­temporaneos poderiam ter consultado. Essas pes­quisas revelam 0 extremo cuidado do fil6sofo paracom os trabalhos recentes e as Ultimas publica<;oes.As referencias foram reunidas numa bibliografiano final do volume. Como ilustra<;ao, escolhemostres dos artistas mencionados nas conversas.

Agradecemos especialmente as pessoas doINA que nos ajudaram nas pesquisas relativas adivulga<;ao das conversas.

STEPHANIE MENASE

...~.

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CAPtruLOIo MUNDO PERCEBIDO E 0 MUNDODACIENCIA

o mundo da percep~ao, isto e, 0 mundo quenos e revelado par nossos sentidos e pela expe­riencia de vida, parece-nos aprimeira vista 0 quemelhor conhecemos, ja que nao sao necessariosinstrumentos nem calculos para ter acesso a ele e,aparentemente, basta-nos abrir os ollios enosdeixarmos viver para nele penetrar. Contudo, issonao passa de uma falsa aparencia. Eu gostaria demostrar nessas conversas que esse.mundo e em·grande medida ignorado par nos enquanto per­manecemos numa postura pratica ou uJ:Uitana, que

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faram necessarios muitcitempo, esfor~os e cultu-ra para desnuda-Io e que Urn dos meritos da artee do pensamento modemos (entendo por moder­nos a arte e 0 pensamento dos Ultimos cinqiienta

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2 CONVERSAS -1948 o MUNDO PERCEBIDO E 0 MUNDO DA OlNCIA 3

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ou setenta anos) e 0 de fazer-nos redescobrir essemundo em que vivemos mas que somos sempretentados a esquecer.

Isso e particularmente verdadeiro na Fran~a.

Reconhecer, na ciencia enos conhecimentos cien­tificos, um valor tal que toda nossa experienciavivida do mundo se encontra imediatamente des­valorizada e uma caracteristica, nao apenas das fi­losofias francesas, mas tambem do que se chama,mais 01.1 menos vagamente, de espirito frances. Sedesejo saber 0 que e a luz, nao e ao fisico que devome dirigir? Nao e ele que me dira se a luz e, comose pensava numa certa epoca, um bombardeio deprojeteis incandescentes' ou, como tambem se acre­ditou, uma vibra~ao do Her, ou finalmente, comoadmite uma teoria mais recente, urn fenomeno as­similavel as oscila~5es eletromagneticas? De queserviria aqui consultar nossos sentidos ou nos de­termos naquilo que nossa percep~ao nos informasobre as cores, os reflexos e as coisas que os trans­portam, ja que, com toda evidencia, sao m~rasaparencias _e apenas 0 saber met6dico ,do cientis­tal suas medidas, suas experiencias podem noslibertar das ilus5es em que vivem nossos senti~os

e fazer-nos chegar averdadeira natureza das coi-

. a. Segundo a grava<;ao: "bombardeio de partfculas incandescentesll'.

sas? 0 progresso do saber nao consistiu em es­quecer 0 que nos dizem os sentidos ingenuamen­te consultados, e que nao tem lugar num quadroverdadeiro do mundo, a nao ser como uma par­ticularidade de nossa organiza~ao humana, daqual a ciencia fisiol6gica dara conta um dia, damesma maneira como ela ja explica as ilus5es domfope ou do presbfope'. 0 mundo verdadeironao sao essas luzes, essas cores, esse espetaculosensorial que meus olhos me fornecem, 0 mun­do sao as ondas e os corpusculos dos quais a cien­cia me fala e que ela encontra par tras dessas fan­tasias sensfveis.

Descartes dizia ate que, somente pelo examedas coisas sensiveis e sem recorrer aos resultadosdas pesquisas cientificas, sou capaz de descobrir airnpostura dos meus sentidos e aprender a me fiarapenas na inteligenciab1• Digo que vejo um peda­~o de cera. Porem 0 que e exatamente essa cera?

a. Quando da grava<;ao, 0 segmento de frase M a·nao ser como umaparticularidade[...]" £oi suprimido.

b. Segundo a grava<;ao: ....Descartes dizia ate que apenas 0 exame dascoisas sensfveis e sem recorrer aos re~tados das pesquisas·centfficas mepermite descoblir" a impostura dos meus sentidos e me ensina a tiar-meapenas na inteligencia.n

1. Rene Descartes, Meditations mitaphysiques [lrad. bras. Medita,oesmetajisicas, Sao Paulo, Martins Fontes, 2000], II Meditation. In CEU1lres, ed.A.T., vol. 9, Paris, Cert 1904, reed. Paris,Vrin, 1996, pp. 23 SS.; in: CEU1lres etlettres, Paris, Gallimard, col. "La Pleiade", 1937, reed. 1993, pp. 279 ss.

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Certamente, nao e nem a cor esbranqui<;ada, nemo cheiro de £lor que talvez ela ainda conserve,nem a moleza que meu dedo sente, nem 0 ruidosurdo que a cera faz quando a deixo cairo Nadadisso e constitutivo da cera, ja que ela pode per­der todas essas qualidades sem deixar de existir,por exemplo se a derreto e ela se transforma numlfquido incolor,sem odor preciso e que ja nao ofe­rece nenhuma resistencia ao meu dedo. Contudo,digo que a mesma cera ainda existe. Como deve­mos entao entende-la? 0 que permanece apesarda mudan<;a de estado e apenas urn fragmento demateria sem qualidades e, no maximo, uma certacapacidade de ocupar espa<;o, de receber diferen­tes formas, sem que 0 espa<;o ocupado au a formaadquirida sejam determinados. Esse e a nucleoreal e permanente da cera. Ora, e evidente queessa realidade da cera naa se revela apenas aossentidos, pois estes me oferecern sempre abjetosde grandeza e de fonna determinadas. A verda-. \

deira cera, portanto, riao e vista com os allios,'. S6podemos. concebe-lo,pela inteligencia. Qtikdoacredito ver acera com meus allios, s6 estou ren-

. sando atraves das qualidades que as sentidos ca.p-

tam da cera nua e sem qualidades que e sua fontecomum. Para Descartes, portanto, e essa ideia per­~an:ceu por muito tempo onipotente na tradi<;aofilosofica da Fran<;a', a percep<;ao e apenas urn inf­c~o de ciencia ainda confusa. A rela<;ao da percep­<;ao com a ciencia e a mesma da aparencia com arealidade. Nossa dignidade enos entregarmos ainteligencia, que sera 0 unico elemento a nos re­velar a verdade do mundo.

Quando disse, ha pouco, que 0 pensamento ea arte moderna reabilitam a percep<;ao e 0 mun­do percebido, naturalmente nao quis dizer queeles negavam 0 valor da ciencia como instrumen­to do desenvolvimento tecnico ou como escola deprecisao e de verdade. A ciencia foi e continuasendo a area na qual e preciso aprender 0 que euma verifica<;ao, 0 que e uma pesquisa rigorosa, 0

que ea crftica de si mesmo e dos pr6prios pre­conceitos. Foi born que se tenha esperado tudodela numa epoca em que ainda nao existia. Po­rem, a questao que a pensamento modemo colo­ca em rela<;ao aciencia nao se destina a contestarsua existencia ou a fechar-lhe qualque~ domfni~.

.Trata-se de saber se a ciencia oferece QU oferece­ra uma representa<;ao do mundo que seja com-

.a; Segundo a grava~ao: HA verdadeira cera. diz Descartes, nao se ve

pais com os alhos." . a. Segundo a grava\a.o: "tradi~ao filos6fica francesa".

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6 CONVERSAS - 1948 o MUNDO PERCEBIDO E 0 MUNDO DA Clt'lCIA 7

pleta, que se baste, que se feche de alguma manei­ra sobre si mesma,. de tal forma" que nilo tenha­mos mais nenhuma questilo valida a colocar alemdela. Nilo se trata de negar ou de limitar a cien­cia; trata-se de saber se ela tern 0 direito de negarou de excluir como ilusorias todas as pesquisas quenilo procedam como ela por medic;6es, compara­c;6es e que nilo sejam concluidas por leis, como asda fisica classica, vinculando determinadas con­seqiiencias a determinadas condic;6es. Nilo so essaquestilo nilo indica nenhuma hostilidade com re­lac;ilo a ciencia.'. como e ainda a propria ciencia,nos seus desenvolvimentos mais recentes, que nosobriga a formula-la enos convida a responder ne­gativamente.

Afinal, desde 0 fim do seculo XIX, os cientistashabituaram-se a considerar suas leis e suas teo­rias, nao mais como a imagem exata do que acon­tece na natureza, mas como esquemas sempremais simples do que 0 evento natural, destinadosa ser corrigidos por\ uma pesquisa mais Plfecisa,em suma, como conhecimentos aproximados. Osfatos que a experiencia nos prop6esilo subineti­dos pela dencia a uma analise da qual nao se podeesperar que jamais se acabe, pois nilo ha limites

a. Segundo a grava<;iio: "de a1guma maneira".

para a observac;ilo, que sempre se pode imaginarmais completa e mais exata do que a efetuada emum determinado momento. 0 concreto e 0 sensf­vel conferem aciencia a tarefa de uma elucidac;ilointerminavel, e dai resulta que nilo se pode con­sidera-Ios, amaneira classica, como uma simplesaparencia destinada a ser superada pela inteli­gencia cientffica. 0 fato percebido e, de uma ma­neira geral, os eventos da historia do mundo nilopodem ser deduzidos de um certo numero de leisque formariam a face permanente do universo;inversamente, e a lei que e uma expressao apro­ximada do evento fisico e deixa subsistir sua opa­cidade. 0 cientista de hoje nilo tem mais a ilusilo,como 0 do periodo classico, de alcanc;ar 0 amagodas coisas, 0 proprio objeto. Precisamente sob esseaspecto, a fisica da relatividade confirma que a ob­jetividade absoluta e definitiva e um sonho ao nosmostrar" cada observac;ao rigorosamente depen­dente da posic;ao do observador, inseparavel desua situa<;ao, e ao rejeitarl' a ideia de urn observa-'dor absoluto. Em ciencia, nao podemos nos van­gloriar de chegar, pelo exercicio de u~a inteligen­cia pura e nao situada, aurn objeto livre de qual-

a. Segundo a grava<;iio: "e1a nos mostra [.. .]".b. Segundo a grava<;iio: "e ela rejeita".

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8 CONVERSAS - 1948

CAPiTULO II

EXPLORA<;AO DO MUNDO PERCEBIDO:o ESPAC;:O

Observou-se, com frequencia, que a arte e 0

pensamento modemos sao diffceis: e mais diffcilcompreender e apreciar Picasso do que Poussin ouChardin, Giraudoux ou Malraux mais do que Ma­rivaux ou Stendhal. E, assim, algumas vezes a par­tir disso concluiu-se (como Benda, em La Francebyzantine1

) que os escritores modemos eram bi­zantinos, diffceis apenas porque nao tinham nadaa dizer e substitufam a arte pela sutileza. Nao existejulgamento mais cego do que este. 0 pensamen~

to modemo e diffcil, inverte 0 sensa comum por-/

" - - ~.

'0,

1. Julien Benda, La France byzantine ou leTriomphe de 1a litterature pure,Mallanne, Gide, Valery, Alain, Giraudou.x, Suares, les 5urrealistes, essai d'unepsycho/agie originelle du litterateur, Paris, Gallimard, 1945; reed. Paris, UGE,coL "10/18", 1970.

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quer vestigio humano e exatamente como Deus 0

veria. 1550 em nada diminui a rrecessidade da pes­quisa cientifica e combate apenas 0 dogmatismode uma ciencia que se considerasse 0 saber abso­luto e total. 1550 simplesmente faz justi~a a todosos elementos da experiencia humana e, em parti­cular, anossa percep~ao sensfvel.

Enquanto a ciencia e a filosofia das cienciasabriam, assim, as portas para uma explora~ao domundo percebido, a pintura, a poesia e a filosofiaentravama decididamente no domfnio que lhes eraassim reconhecido e davam-nos uma visao, extre­mamente nova e caracterfstica de nosso tempo,das coisas, do espa~o, dos animais e ate do ho­mem visto de fora tal como aparece no campo denossa percep~ao. Em nossas pr6ximas conversas,gostarfamos de descrever algumas das aquisi~6es

dessa pesquisa.

a. Segundo a grava~ao: "'Enquanto a,ciencia e" a filosofia das cienciasabrlam assim as portas a uma explora\8.o dp mundo Percebido, verifica-seque a pintura, a poesia e a filosofia entravam [...]"

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10 CONVERSAS - 1948 EXPLORA9\O DO MUNDO PERCEBIDO, 0 ESPA<;:O 11

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que tem a preocupa<;ao da verdade, e a experien­cia nao the permite mais ater-se honestamente asideias claras ou simples as quais 0 senso comumse apega porque elas the trazem tranqiiilidade.

Costaria de encontrar hoje um exemplo desseobscurecimento das no<;oes mais simples, dessa re­visao dos conceitos c!<issicos, que 0 pensamentomoderno persegue em nome da experiencia, naideia que parece, a princfpio, a mais clara de todas:a ideia de espa<;o. A ciencia classica baseia-se numadistinc;ao clara entre espa<;o e mundo fisico. 0 es­pac;o e 0 meio homogeneo onde as coisas estaodistribuidas segundo tres dimensoes e onde elasconservam sua identidade, a despeito de todas asmudan<;as de lugar. Existem muitos casos em quese observa as propriedades de um objeto mudaremcom 0 seu deslocamento, por exemplo 0 peso, setransportamos 0 objeto do p6lo aoequador, oumesmo a forma, quando 0 aumento de temperatu­~a deforma 0 s6lido. Porem, justamente, essas mu­danc;as de propriedades nao sao imputaveis aopr6prio deslocamento, 0 espac;o e 0 mesmo no ~61o

e noeqUadOriSaO as condi<;oes fisicas de tempera­turaque variam aqui eali, 0 dominio dageometria

,permanece rigorosamente distinto do dommio dafisica, a forma e 0 conteudo do mundo nao se mes­clam. As propriedades geometricas do objeto per­maneceriamas mesmas durante seu deslocamen-

to, nao fossem as condi<;oes fisicas variaveis asquais ele e submetido. Este era 0 pressuposto daciencia classica. Tudo muda quando, com as geo­metrias ditas nao euclidianas, chega-se a concebercomo que uma curvahira pr6pria do espac;o, umaaltera<;ao das coisas devida apenas ao seu deslo­camento, uma heterogeneidade das partes do es­pa<;o e de suas dimensoes que nao sao intercam­biaveis e afetam os corpos que nele se deslocam,com algumas transformac;5es. No lugar de urnmundo em que a parte do identico e a parte da mu­danc;a estao estritamente delimitadas e se referema princfpios diferentes, temos um mUIldo em queos objetos nao conseguiriam estar em identidadeabsoluta com eles mesmos, onde forma e conteu­do estao como que baralhados e mesclados, e que,por fim, nao oferece mais essa estrutura rigida quelhe era fomecida pelo espa<;o homogeneo de Eu­elides.Toma-se impassivel distinguir rigorosamen­te 0 espac;o das coisas no espac;o, a ideia pura doespac;o do espetaculo concreto que nossos senti­dos nos oferecern.

Ora, as pesquisas sobre apintura modema con­cordam curiosamente com as da ciencia 0 ensina­mento classico distingueio desenho da cor": dese-

a. Segundo a grava~ao: H O ensinamento classico, em pintura, distin­gue 0 desenho da cor [...]"

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12 CONVERSAS - 1948 EXPLORA(j\O DO MUNDO PERCEBlDO; 0 ESPACO 13

nha-se 0 esquema espacial do objeto, depois estee preenchido por cores. Cezapne, ao contrano, diz:"a medida que se pinta, desenha-se"2 - querendodizer que, nem no mundo percebido, nem no qua­draa que 0 exprime, 0 contorno e a forma do ob­jeto sao estritamente distintos da cessa~ao ou daaltera~ao das cores, da modula~ao colorida quedeve conter tudo: forma, cor propria, aspecto doobjeto, rela~ao do objeto com as objetos vizinhos.Cezanne quer gerar 0 contorno e a forma dos ob­jetos como a natureza as gera diante de nossosolhos: pelo arranjo das cores. E dill decorre que ama~a que ele pinta, estudada com urna pacienciainfinita em sua textura colorida, acaba por inflar-se,por romper os limites que 0 desenho bern compor­tado Ihe imporia. Nesse esfor~o para reencontraro mundo tal como 0 captarnos em nossa expe­riencia vivida, todas as precau~5es da arte classica

. sao despeda~adas. 0 ensinamento classico da pin­tura baseia-se na perspectiva - ou seja, no fato deque, diante de urna paisagem, por exemplo, 0 pin-,tor decidia so transportar para sua tela urna repre-senta~aOJotalmenteconvencionaldo que via. Ve.. ,

2. Emile Bernard, Souoenirs sur Paul cezanne, Faris. Ala renovalibn es­thelique, 1921, p. 39; retornado em Joachim Gasquet, Cezanne, Faris, Ber­nheim-Jeune, 1926; reedi,iio Grenoble, Cynara, 1988, p. 204.

. a. Segundo a grava,iio: "dentro do quadro".

uma arvore perto dele, depois fixa seu olhar maisadiante, na estrada, por fim, leva-o ao horizontee, de acordo com 0 ponto que fixa, as dimens5esaparentes dos outros objetos sao a cada vez modi­ficadas. Em sua tela, dara urn jeito de representarapenas urn compromisso entre essas diversas vi­s5es e ira esfor~ar-se por encontrar urn denomi­nador comum a todas essas percep~5es, atribuin­do a cada objeto nao 0 tamanho, as cores e 0 as­pecto que apresenta quando 0 pintor 0 fixa, masurn tamanho e urn aspecto convencionais, os quese ofereceriam a urn olhar fixado na linha do ho­rizonte num certo ponto de fuga para 0 qual seorientam a partir de entao todas as linhas da pai­sagem que VaG do pintor ao horizonte. As paisa­gens assim pintadas tern, portanto, urn aspectotranqililo, decente, respeitoso, provocado pelo fatode serem dominadas por urn olhar fixado no infi­nita. Elas estao longe, 0 espectador nao esta com­preendido nelas, elas sao afaveisa, e 0 olhar deslizacom facilidade sobre uma paisagem sem aspere­zas quenada op5e asua facilidade soberana. Po­rem, nao e assim que 0 mundo se apre?enta a nosno contato com ele que nos e fornecido pela per­cep~ao. A cada momenta, 'enquanto nosso olhar

a. Segundo a grava~ao: H elas sao, seria possivel dizer, afaveis·.

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viaja atraves do espetaculo, somos submetidos aurn certo ponto de vista, e esses instantaneos su­cessivos nao sao passlveis de sobreposi<;:ao parauma determinada parte da paisagem. 0 pintor soconseguiu dominar essa serie de vis6es e delas ti­rar uma unica paisagem eterna porque interrom­peu 0 modo natural de ver: muitas vezes fecha urnolho, mede com seu lapis 0 tamanho aparente deurn detalhe que ele modifica gra<;:as a esse proce­dimento e, submetendo todas essas vis6es livres auma visao analltica, constroi desta forma ern suatela uma representa<;:ao da paisagem que nao cor­responde a nenhurna dasVis6es livres, domina seudesenvolvirnento movirnentado, mas tarnbem su­prime sua vibra<;:ao e sua vida. Se muitos pintores,a partir de Cezanne, recusaram curvar-se alei daperspectiva geometrica, e porque queriam recu­perar e representar 0 proprio nascimento da pai-

. sagem diante de nossOS olhos, e porque nao secontentavarn corn urn relatorio analitico e queriarnaproximar-se do estilo propriamente dito da ex­periencia perceptiva.·As diferentes partes de seusquadros sao .entao vistas de angulos distintos, ofe­recendo ao espectadorpouco atento a impressaode "erros de perspectiva", mas dando aos que ob­servarn atentarnente 0 sentirnento de urn mundoe~ que jamais dois objetos sao vistos simultanea-

mente, ern que, entre as partes do espa<;:o, semprese interp6e 0 tempo necessario para levar nossoolhar de uma a outra, em que 0 ser portanto naoesta determinado, mas aparece ou transparece atra-yes do tempo. .

o espa<;:o, assim, nao e mais esse meio das coi­sas simultaneas que poderia ser dominado por urnobservador absoluto, igualmente proximo de todaselas, sem ponto de vista, sem corpo, sem situa<;:aoespacial, pura inteligencia, em suma - 0 espa<;:o dapintura modema, dizia recentemente Jean Paulhan,e "0 espa<;:o senslvel ao cora<;:aO"3, onde tambernestarnos situados, proximos de nos, organicamen­te ligados a nos. "Pode ser que em urn tempo con­sagrado a medida tecnica e como que devoradopela quantidade", acrescentava Paulhan, "0 pintorcubista celebre, asua maneira, num espa<;:o me­nos concedido anossa inteligencia do que ao nos­so cora<;:ao, algurn casamento secreta e urna recon­cilia<;:ao do mundo com 0 homem"'.

Depois da ciencia e da pintura, tambem a fi­losofia e sobretudo a psicologia parecem atentar

.. .- .

3. "La Peinture modeme ou l'espace sensible au cceur", lA Table ron­de, n? 2, fev. 1948, p. 280; "0 espa<;o sensfvel ao cora<;ao", a expressao ere­tomada nesse artigo remanejado para La Peinture cubiste, 1953, Paris, Galli­mard, col. "Folio Essais", 1990, p. 174.

4. La Table ronde, ibid., p. 280.

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ao fato de que nossas rela~6es com 0 espa~o naosao as de um puro sujeito desencarnado com umobjeto longfnquo, mas as de um habitante do es­pa~o com seu meio familiar. Como, por exemplo,a compreensao da famosa ilusao de 6tica ja estu­dada por Malebranche, que faz com que a lua, aonascer, quando ainda esta no horizonte, pare~a­

nos muito maior do que quando atinge 0 zenite5•

Malebranche supunha aqui que a percep~ao hu­mana, por uma especie de raciodnio, superestimao tamanho do astro. Com efeito, se 0 observarmosatraves de um tuba de papelao ou de uma caixade f6sforos, a ilusao desaparece. Ela deve-se por­tanto ao fato de que, quando nasce, a lua se apre­senta a n6s alem dos campos, dos muros, das ar­vores, de que esse grande numero de objetos in­terpostos nos torna sensfveis a sua grande distan­cia, do que conelufmos que, para resguardar agrandeza aparente que conserva, estando contu­do tao distante, a Iua deve ser muito grande. 0sujeito que percebe seria aqui comparavel ao sa­bio que julga, estima! tonelui, e 0 tamanho perce­bido seria na realidade julgado. Nao e assim que

5. Malebranche, De la recherche de la vente, 1.1, cap. 7, § 5, ed. G. Le­wiS, Paris, Vrin, t. L 1945, pp. 39-40; in: CEuvres completes, Paris, Gallimard-

col. eLa Pleiade", 1979, t. L pp. 70-1. .

a maioria dos psic610gos hoje compreende a ilu-sao da lua no horizonte. Descobriram por meiode experiencias sistematicas que comportar umaconstancia notavel das grandezas aparentes noplano horizontal corresponde a uma proprieda-de geral de nosso campo de percep~ao, enquan-to, ao contrario, elas diminuem bern rapidamen-te com a distancia em um plano vertical, e issoindubitavelmente porque 0 plano horizontal, paranos, seres terrestres, e aquele em que se fazem osdeslocamentos vitais, em que se desenvolve nos-sa atividade. Assim, aquilo que Malebranche in­terpretava como atividade de uma inteligenciapura, os psic610gos dessa escola relacionam comurna propriedade natural de nosso campo de per­cep~ao, n6s, seres encarnados e obrigados a nos,movimentar sobre a terra. Em psicologia, assimcomo em geometria, a ideia de urn espa~o homo­geneo completamente entregue a urna inteligen-cia sem corpo e substitufda pela ideia de urn es­pa~o heterogeneo, com dire~6es privilegiadas, que "tern rela~ao com nossas particu1aridades corporaise com nossa situa~ao de seres jogados no mundo.Encontramos aqui, peia prlmeira vez, e;sa ideiade que 0 homem nao e urn espfrito e urn corpo,mas urn espfrito com urn corpo, que s6 alcan~a averdade das coisas porque seu corpo esta como

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18 CONVERSAS -1948

que cravado nelas. A pr6xima conversa nos mos­trara que isso nao e apenas verdadeiro para 0 es­pa<;o e que, em gera!, todo ser exterior s6 nos eacessfvel por meio de nosso corpo e e revestido deatributos humanos que fazem dele tambem umamescla de espfrito e de corpo.

1I~4l

CAPfTuLo IIIEXPLORA<;:AO DO MUNDO PERCEBIDO:AS COISAS SENSfvEIS

Se, depois de examinar 0 espa<;o, considerar­mos as pr6prias coisas que 0 preenchem e con­sultarmos a esse respeito urn manual classico depsicologia, nele verificaremos que a coisa e urn sis­tema de qualidades oferecidas aos diferentes sen~

tidos e reunidas por urn ato de sfntese intelectual.Por exemplo, 0 limao* e essa forma oval infladanas duas extremidades, mais a cor amarela, mais 0

contato refrescante, mais 0 sabor acido... Esta ana­lise, con~do, nos deixa insatisfeitos, porque naovemos 0 que une cada uma dessas qualidades oupropriedades as outras e,'entretanto; parece-nosque olimao possuia unidade de urn ser, do qual

"" a autor se refere ao limao siciliano. (N. dos T.)

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20 CONVERSAS - J948II EXPLORA~O DO MUNDO PERCEBIDO: AS COISAS SENsiVEIS 21

todas as qualidades sao apenas diferentes mani-festa<;6es. -

A unidade da coisa permanece misteriosa en­quanta considerarmos suas diferentes qualidades(sua cor, seu sabor, por exemplo) como dados quepertencem aos mundos rigorosamente distintosda visao, do olfato, do tato etc. Porem a psicologiamodema, seguindo nesse aspecto as indica<;6esde Goethe, observou justamente que cada uma.dessas qualidades, longe de ser rigorosamente iso­lada, tern uma significa<;ao afetiva que a coloca emcorrespondencia com ados outros ·sentidos. Porexemplo, como sabem muito bern aqueles que ti­veram de escolher tapetes e papel de parede paraurn apartamento, cada cor configura uma especiede atmQsfera moral, toma-a triste ou alegre, depri­mente ou revigorante; e, como 0 mesmo ocorrecom os sons ou com os dados tateis, pode-se di­zer que cada uma equivale a um certo som ou auma certa temperatura. E e isso que faz com quecertos cegos, quando lhes descrevemos as cd)."es,

. \consigam imagimi-las por analogia., por exemplo,comum som. Portantd, desde que se tome a sifuar'a qualidade na experiencia humana que the c~n­

fere uma certa significa<;ao emocional, come<;a atornar-se compreensfvel sua rela<;ao com outrasqualidades que nao tern nada em comum coin

.

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ela. Existem ate qualidades, bastante numerosasem nossa experiencia., que nao tern quase nenhumsentido se as separarmos das rea<;6es que provo­cam em nosso corpo. Por exemplo, 0 melado. 0mel e um fluido denso, tern uma certa consisten­cia, e possfvel pega-lo, mas, em seguida, trai<;oeira­mente, escorre entre os dedos e volta a si mesmo.Nao apenas se desfaz assim que the moldamos,mas ainda, invertendo os papeis, e ele que agarraas maos daquele que queria pega-lo. A mao viva,exploradora, que acreditava dominar 0 objeto, en­contra-se atraida por ele e colada no ser exterior."Num certo sentido", escreve Sartre, a quem deve­mos essa bela analise, "e como que uma docilida­de suprema do possufdo, uma fidelidade caninaque se dd mesmo quando nao queremos mais e,num outro sentido, sob essa docilidade, e comoque uma apropria<;ao trai<;oeira do possuidor pelopossufdo."1 Vma qualidade como 0 melado - e eo que a toma capaz de simbolizar toda uma con­duta humana - s6 e compreendida pelo debateque estabelece entre mim como sujeito encamadoeo objeto exterior que e seu,portador. Dessa qua­lidade, s6 existe uma defini~aohumana.

1.Jean-Paul Sartre, r:£treet Ie Neant, Paris, Gallimard, 1943; reed. col."Tel", 1976, p. 671.

. . 1.

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22 CONVERSAS -1948 EXPLORAy40 DO MUNDO PERCEBIDO: AS COISAS SENsfVEIS 23

Forem, assim considerada, cada qualidade abre­se para as qualidades dos outIos sentidos. 0 mele a<;ucarado. Ora, 0 a<;ucarado - "doc;:ura indelevel,que permanece indefinidamente na boca e sobre­vive a deglutic;:aO"2 - e, na ordem dos sabores, essapropria presenc;:a pegajosa que a viscosidade domel realiza na ordem do tatoo Dizer que 0 mel eviscoso e dizer que e a<;ucarado sao duas manei-

" ras de dizer a mesma coisa, ou seja, urna certa re­lac;:ao da coisa conosco ou uma certa conduta queela nos sugere ou nos imp6e, uma certa maneiraque ela tern de seduzir, de atrair, de fascinar 0 su­jeito livre que se encontra confrontado com ela. 0mel e urn certo comportamento do mundo comrelac;:ao a meu corpo e a mim. E e 0 que faz comque as diferentes qualidades que possui nao sejammeramente justapostas nele, mas, pelo contrmo,identicas na medida em que elas todas manifes­tam a mesma maneira de ser ou de se comportarnomel. A unidade da coisa nao se encontra partras de cada urna de s:ucis qualidades: ela e reafir­mada por cada urna de-las, cada urna delas e a'coi­sa mteira.,Cezanne dizia que devemos poder pin­,tar 0 cheiio das arvores3• No mesmo sentido, Sar-, .

...

. 2. Ibid.. 3. Joachim Gasquet, Cizanne, Faris, Bernheim-Jeline, 1926; reed. Gre-

noble, Cynara, 1988, p. 133. .

tre escreve em [;Etre et Ie Neant [0 ser e 0 nadajque cada qualidade e "reveladora do ser" do ob­jet04• "0 [amarelo dojlimao", prossegue, "esten­de-se inteiramente atraves de suas qualidades, ecada uma de suas qualidades estende-se inteira­mente atraves de cada uma das outras. Ea acidezdo limao que e amarela, e 0 amarelo do limao quee acido; comemos a cor de urn bolo, e 0 gosto des­se bolo e 0 instrumento que desvela sua forma esua cor, ao que chamaremos de intuic;:ao alime,l­tar [...j. A fluidez, a temperatura morna, a cor azu­lada, 0 movimento ondulante da agua de uma pis­cina sao dados concomitantes que se expressamuns atraves dos outros [...]5."

As coisas nao sao, portanto, simples objetosneutros que contemplariamos diante de nos; cadaurna delas simboliza e evoca para nos uma certaconduta, provoca de nossa parte reac;:6es favara­veis ou desfavoraveis, e e por isso que os gostosde urn homem, seu carater, a atitude que assurniuem relac;:ao ao mundo e ao ser exterior sao lidosnos objetos que ele escolheu para tera sua volta,nas cores que prefere, nos lugares onde apreciapassear. Oaudel diz que os chineses constroemjardins de pedra, onde tudo e rigorosamente seco

4. r:t.tre et Ie Neant, Gp. cit., p. 665.5. Ibid., p. 227.

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24 CONVERSAS - 1948

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EXPLORA<;:Ao DO MUNDO PERCEBIDO: AS COISAS SENStvEIs 25

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e desnudad06. Nessa mineraliza~ao do ambiente,deve-se ler uma recusa da umidade vital e comoque uma preferencia pela morte. Os objetos quepovoam nossos sonhos sao, da mesma forma, sig­nificativos. Nossa rela~ao com as coisas nao eumarela~ao distante, cada uma fala ao nosso corpo e anossa vida, elas estao revestidas de caracteristicashumanas (doceis, doces, hostis, resistentes) e, in­versamente, vivem em nos como tantos emble­mas das condutas que amamos ou detestamos. 0homem esta investido nas coisas, e as coisas es­tao investidas nele. Para falar como as psicanalis­tas, as coisas sao as complexos. E0 que Cezannequeria dizer quando falava de urn certo "halo" dascoisas que se transmitirem pela pintura7

E isso tambem a que quer dizer urn poetacontemporaneo, Francis Ponge, que eu gostaria decitar como exemplo agora. Em urn estudo que Sar­·tre consagrou a Ponge, ele escreveu: as coisas "ha-

6. Paul OaudeL Omnaissance de rEst (1895-1900), Paris, Mereu", deFrance, 1907; reed. 1960, p. 63: "Da mesma forma que uma paisagem MO econstituida pela relva e pelacor da folhagem, mas pela harmonia de suaslinhas e pelo movimento de seus terrenos, os chineses amstroern seus jar­dins literalmente com pedras. EscuIpem em vez de pintar. Suscetfvel de

, elevac;6es e de profundidades, de contornos e de saliencias pela variedadede seus pIanos e de seus aspectos, a pedra pareceu-lhes mais d6cil e maisadequada para criar 0 local humano do que 0 vegetal, reduzido ao seu pa­pel natural de decorat;ao e omamento.'"

, 7. Joachirn Gasquet, cezanne, op. cit., p. 205.

bitaram nele por longos anos, elas 0 povoam, for­ram 0 £Undo de sua mem6ria, estavam presentesnele [...]; e seu esfor~o atual e muito mais para pes­car no £Undo de si mesmoesses monstros pululan­tes e floridos e para revelli-los do que para fixar suasqualidades ap6s observa~6es detalhadas"B. E, efe­tivamente, a essencia da agua, por exernplo, assimcomo a de todos os elementos, encontra-se menDsem suas propriedades observaveis do que naqui­10 que nos dizem. Ponge diz a seguinte da agua:

"Ela ebranca e brilhante, infonne efresca, passi­va e obstinada em seu unico vicio: 0 peso; dispoe demeios excepeionais para satisfazer esse vieio: contor­nando, penetrando, eradindo, filtrando.

Dentro dela mesma esse vicio tambbn age: ela des­marona ineessantemente, renuncia a eada instante aqualquerforma, s6 tende a humilhar-se, esparrama-sede brufOs no chao, quase cadaver como os manges dealgumas ordens [...]

Paderiamos quase dizer que a tigua elouca deoi­do a essa necessidade histenca de s6 obedecer ao seupeso, que a possui como uma ideiajixa [...]

UQUIDO epor definiifw 0 que prefere abedecer aopeso a mantersuaforma, a qUe recusa todo. forma para

8. Jean-Paul Sartre, L'Homme et les CJwses, Paris, Seghers, 1947, pp. 10-1;retomado em Situations, L Paris, Gallimard. 1948, p. 227.

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26 CONVERSAS -1948 EXPLORA(:JiO DO MUNDO PERCEBIDO: AS CQISAS SENSfVEJS 27

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obedecer a seu peso. E que perde toda compostura parcausa dessa ideia fixa, desse escrnpulo doentio [...]

Inquietude da rigua: senslvel amenor mudam;ade inclinaf;iio. Saltando as escadas com as dais pes aomesmo tempo. Brincalhona, de uma obediencia pueril,voltando logo que a chamamos mudando a inclina~ao

para este lado."9Voces encontrarao uma analise do mesmo tipo

que se estende a todos os elementos na serie detextos que Gaston Bachelard consagrou sucessiva­mente ao arlO, a aguall, ao fogo12 e a terra13, naqual ele mostra em cada elemento uma especiede patria para cada tipo de homem, 0 tema deseus devaneios, 0 meio favorito de uma imagina­<;:ao que orienta sua vida, 0 sacramento naturalque lhe da for<;:a e felicidade. Todas essas pesqui-

9. Francis Ponge, Le Parti pris des choses, Paris, Gallimard, 1942; reed.col. "Poesie", 1967, pp. 61-3.

10. Gaston Bachelard, L'Air et Ies Songes, Paris, Jose Corti, 1943 [trad.bras. a ar e os sonhos: ensaio sobre a imagina¢o do movimento, Sao Paulo,Martins Fontes, 1990]. ;

11. L'Eau et Ies Reves, Paris, Jose Corti, 1942 [trad. bras. A tlgua kos 50­

nhos: ensaio sobre a imagina¢o do materia, Sao Paulo, Martins Fontes;1989].. 12 La Psychana1yse du feu, Paris, Gallirnard, 1938 [trad. bras. A psicmuf­

lise do fogo, Sao Paulo, Martins Fontes, 1994].13. LA Terre et Ies Reveries de la volontJ!, Paris, Jose Corti, 1948 [trad.

bras. A terra e os deoaneios do vontade: ensaios sobre a iTfUlgina¢o lias jorfllS,Sao Paulo, Martins Fontes, 1991]; e LA Terre et Ies Reveries du repos, Paris,Jose Corti, 1948 [trad. bras. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre asimagens da intimidade, Sao Paulo, Martins Fontes, 1990J. .

sas sao tributanas da tentativa surrealista que hatrinta anos ja procurava nos objetos no meio dosquais vivemos e, sobretudo nos objetos encontra­dos aos quais nos ligamos as vezes por uma pai­xao singular, os "catalisadores do desejo", comodiz Andre Breton14

- 0 local onde 0 desejo huma­no se manifesta ou se IIcristaliza".

Eassim uma tendencia bastante geral reconhe­cermosa entre 0 homem e as coisas nao mais essar€la<;:ao de distancia e de domina<;:ao que existe en­tre 0 espfrito soberano e 0 peda<;:o de cera na cele­bre analise de Descartes, mas urna rela<;:ao menDscla.ra- uma proximidade vertiginosa que nos impedede nos apreendermos como urn espfrito puro se­parado das coisas, ou de definir as coisas comopuros objetos sem nenhum atributo humano.Vol­taremos a essa observa<;:ao quando, no final dessasconversas, examinarmos como elas nos conduzema imaginar a situa<;:ao do homem no mundo.

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14. Sem duvida uma a1usao a L'Amour fou, Paris, Gallirnard, 1937;reed. 1975.

a Segundo a grava,ao: "E assim uma tendencia bastante geraI denosso tempo reconhecer [...J"

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. ,

.Georg~s Braque (1882-1963)Compoteira e carlas6leo real,ado a lapis e a ~arviio

sobre tela, 0,810 x0,600, 1913, Paris,Centro Pompidou-MNAM-CO.

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Paul Cezanne (1839-1906)ArvoresAquarela, 0,470 x 0,300, seculo XIX, .Paris, Museu do Louvre, A A. G. (£undo Orsay).

Page 21: MERLEAU - PONTY. Conversas, 1948

.. ' , Pablo Picasso (1881-1973)o acrobata6leo sobre tela, 1,620 x 1,300, 1930,Paris, Museu Picasso.

cezanne © Foto RMN - Michele BellotBraque © Foto CNACIMNAM Dist. RMNPicasso © Foto RMN - R. G. Ojeda

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CAPfTuLON

EXPLORAQ,.O DO MUNDO PERCEBIDO:AANIMALIDADE

Quando se-passa da ciencia, da pintura e dafilosofia .classicas aciencia, apintura e afilosofiamodernas observa-se, como diziamos nas tres con­versas anteriores, uma especie de despertar domundo percebido. Reaprendemos aver 0 mundoao nosso redor do qual nos havfamos desviado,convictos de que nossos sentidos niio nos ensi­nam nada de relevante e que apenas 0 saber rigo­rosamente objetivo merece ser lembrado.Voltamosa ficar atentos ao espa~o onde nos situamos e ques6 e considerado segundo uma perspeqiva limi­tada, a nossa, mas que e tambem nossa residen­cia e com 0 qual mantemos rela~6es carnais - re­descobrimos em cada coisa urn certo estilo de serque a torna urn espelho das condutas humanas-,

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30 CONVERSAS -1948 EXPLORA<;:AO DO MUNDO PERCEBIDO: A ANIMAUDADE 31

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enfim, entre nos e as coisas estabelecem-se, naomais puras rela<;5es entre um pensamento domi­nador e um objeto ou um espa<;o completamenteexpostos a esse pensamento, mas a rela<;ao ambf­gua de urn ser encamado e limitado com um mun­do enigmatico que ele entreve, que ele nem mes­mo para de freqiientar, mas sempre por meio deperspectivas que the escondem tanto quanto Iherevelam, por meio do aspecto humano que qual­quer coisa adquire perante urn olhar humanoa

Porem, nesse mundo assim transformado naoestamos sos, nem apenas entre homens. 0 mundose oferece tambem aos animais, as crian<;as, aosprimitivos, aos loucos que 0 habitam asua manei­ra, que tambem coexistem com ele, e hoje vamosobservar que, ao reencontrar 0 mundo percebidob

,

tomamo-nos capazes de encontrar mais sentido e

a. 0 come~o dessa ~/conversan foi abreviado por ocasiao de sua gra­vac;ao. Merleau-Pontycom~a assim.: NDiziamos, nas conversas precedentes,que~ quando com 0 pensamento modemo se volta ao mundo da ~ercep­

¢o, observa-se desaparecer entre 0 homem e as coisas as puras rela~<;>es en­tre urn pensamento dominador e urn objeto ou urn espa~completam~n:e

expostos a ele.W-5O aparecer a~o ambfgua de urn ser encamado e limi­tado rom urn mundo enigmatico que ele entreve, que nem mesmo cessa defreqiientar, mas sempre por meio de perspectivas que !he escondem tant.o

. quanto!he revelam, por meio do aspecto humano que quaiquer COlsa adqw-

re perante urn olhar humano."" . . .. ~ .b. Segundo a grava~o: "tambem 50 oferece aos arumaJS, as man",", aos

primitives, aos loucos que 0 habi~ como nOs, que asua m~eira c~mcom ele, e hoje veremo~ que, ao reencontrar 0 mundo percebldo [...] .

mais interesse nessas formas extremas ou aberran­tes da vida ou da consciencia, de modo que, porfim, e 0 espetaculo integral do mundo e 0 do pro­prio homem que recebem um novo sigrlificadoa•

Sabemos que 0 pensamento classico nao damuita aten<;ao ao animal, acrian<;a, ao primitivo eao louco. Lembramos que Descartes nao via noanimal nada alem de urna soma de rodas, alavan­cas, molas1, enfirn, de uma maquina; quando naoera uma maquina, 0 animal era, no pensamentoclassico, um esbo<;o de homem, e muitos entomo­logistas nao hesitaram em projetar nele as caracte­rfsticas principais da vida hurnana. 0 conhecimen­to das crian<;as e dos doentes permaneceu pormuito tempo rudirnentar justamente em virtudedesses preconceitos: as quest5es que 0 medico ou .o experimentador lhes colocavam eram quest5esde homemb; procurava-se menos compreendercomo viviam por conta propria do que calcular adistiincia que os separava do adulto ou do homem

a. Por ocasiao da leitura, 0 Ultimo 5Ogmento de £rase "de modo quepor fim [...Jurn novo significado" foi suprimido. . . _.

1. Discours de la methode [trae!. bras. Discurso do mitodo, sao Paulo, Mar­lins Fontes, 2~ ed., 1996.]V parte. In: CEuvres, ed.AT., Paris, Cerf.1902; reed.Paris,Vrin, 1996, vol.VI- pp. 57-8; in: CEuvres et lettres, Paris, Gallimard, col."La Pleiade", 1937, reed. 1953, p. 164.

b. Segundo a grava<;1io:"as quest6es que 0 medico ou 0 experimenta­dor lhes colocavam eram questOes de homens sadios ou de adultos....

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32 CONVERSAS - 1948 EXPLORA<;:AO DO MUNDO PERCEBIDO: A ANIMALIDADE 33

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sadio em seus desempenhos comuns. Quanto aosprimitivos, ou procurava-se ndes urna imagem em­belezada do civilizado ou ao contnmo, como Vol­taire em Essai sur les moeurs [Ensaio sobre os cos­tumesF, encontrava-se em seus costumes ou emsuas cren"as apenas uma serie de absurdos inex­plicaveis. Tudo acontece como se 0 pensamentoclassico tivesse se mantido preso em urn dilema:ou 0 ser com 0 qual nos defrontamos e assimilavela urn homem, sendo entao permitido atribuir-lhepor analogia as caracterfsticas geralmente reco­nhecidas no homem adulto e sadio, ou ele nadamais e do que urn mecanismo cego, urn caos vivo,e nao ha entao nenhum meio de encontrar urnsentido em sua conduta.

Por qlle, entao, tantos escrjtores classicos mos­tram indiferen"a com respeito aos animais, as crian­"as, aos loucos, aos primitivos?" Eque estao con­vencidos de que existe urn homem rematado, des­tinado a ser "senhor e possuidor" da natureza,como dizia Descartes3>capaz, assim, por principio,de penetrar ate 0 ser das coisas, de constituir urn. - .

2. Essai sur l'hisroire gtnlrale et sur res =rs et l'espril des natians, de­puis Charlemagne jusqu'a nos jours (1753, ed. aumentada 1761-1763).

a. Frase interrogativa suprimida quando da grava~ao.

,3, Discours de la mtthode,VI parte. In: CErrores, ed. AT., loc. cil., vol.VLp. 62, 1. 7-8; in: CErrores et lettres, loco cil, p. 168.

conhecimento soberano, de decifrar todos os feno­menos e nao somente os de natureza ffsica, masainda aqueles que a historia e a sociedade huma­nas nos mostram, de explica-los por suas causase finalmente de encontrar, em algum acidente deseu corpo, a razao das anomalias que mantern acrian"a, 0 primitivo, 0 louco, 0 animal a margemda verdade". Para 0 pensamento classico, existeuma razao de direito divino que efetivamente con­cebe a razao humana como reflexo de uma razaocriadora, ou postula, como ocorrefrequentemente, urnacordo de princfpio entre a razao dos homens e 0

ser das coisas, mesmo apos ter renunciado a todateologiab

• Sob tal perspectiva, as anomalias de quefalamos so podem ter 0 valor de curiosidades psi­cologicas, as quais se atribui, com condescenden­cia, urn lugar num canto qualquer da psicologia eda sociologia "normais".

3. Segundo a graval)'ao: liE que 0 pensamento cIassico esta conven­cido de que existe urn homem rematado destinado a ser lsenhor e possui­dor' da natureza. como dizia Descartes, capaz assim, por principia, depenetrar ate 0 ser das coisas, de decifrar todos os fenomenos e nao ape­nas os de natureza fisica, mas ainda aqueles que a hist6ria e a socieda­de humanas nos mostram, de explica-Ios por suas causas e finalmentede encontrar em alguma causa corporal ou social a razao das anomaliasque mantem a crian~a, 0 primitivo, 0 IOlleo, Q. animal amargem da ver­dade.'"

b. Segundo a grava~ao: IIou, mesmo ap6s ter renunciado a toda teo­logia, dela reeolhe, sem dize-Io, sua heran~a e postula urn acordo de prin­cipio entre a razao dos homens e 0 ser das coisas"'.

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34 CONVERSAS - 1948 EXPLORAy40 DO MUNDO PERCEBIDO: A ANIMALIDADE 35

Porem, e precisamente essa convic<;ao, ou me­lhor, esse dogmatismo, que uma ciencia e uma re­flexao mais amadurecidas colocam em questao.Com certeza, nem 0 mundo da crian<;a, nem 0 doprimitivo, nem 0 do doente, nem, com mais razaoainda, 0 do animal, na medida em que podemosreconstitui-Io por sua conduta, constituem siste­mas coerentes, enquanto, ao contrfuio, 0 mundodo homem saelio, adulto e civilizado esfor<;a-se porconquistar essa coerencia. Porem, 0 ponto essen­cial e que 0 mundo nao tem essa coerencia, elapermanece uma id€ia ou urn limite que de fato ja­mais e atingido e, conseqiientemente, 0 "normal"nao pode fechar-se sobre si, ele deve preocupar­se em compreender as anomalias das quais naoesta totalmente isento. Ele e convidado a exami­nar-se sem complacencia, a redescobrir em si todaespecie de fantasias, de devaneios, de condutas ma­gicas, de fenomenos obscuros, que permanecemonipotentes em sua vida particular e publica, emsuas rela<;6es com osoutros h9mens, que ate, dei­xam, em seu conhecimento da natureza, todos ostipos de lacunas pelaS quais se insinua a poesia. 0pensamento adulto, normal e civilizado e preferf­vel ao pensamento infantil, m6rbido ou barbaro,milS com uma condi<;ao, a de que nao se conside­re pensamento de direito divino, que se confronte

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cada vez mais honestamente com as obscuridadese as elificuldades da vida hurnana, que nao pereacontato com as raizes irracionais dessa vida e fi­nalmente que a razao reconhe<;a que seu mundotambern e inacabado, nao finja ter ultrapassado 0

que se limitou a mascarar e nao tome por incon­testaveis uma civiliza<;ao e urn conhecimento queela tern como fun<;ao mais elevada, pelo contrfuio,contestara•

Enesse espfrito que a arte e 0 pensamentomodemos reconsideramb, com urn interesse reno­vado, as formas de existencia mais afastadas den6s, porque elas colocam em evidencia esse movi­mento pelo qual todos os seres vivos e n6s mes­mos tratamos de dar forma a urn mundo que naoesta predestinado as iniciativas de nosso conheci­mento e de nossa a<;ao. Enquanto 0 racionalismoclassico nao introdtiZiac .nenhurn meeliador entrea materia e a inteligencia e relegava os seres vi­vos, se nao inteligentes, a categoria de simples ma­quinas, e a pr6pria no<;ao de vida a categoria dasid€ias confusas, os psic610gos de hoje nos mos­tram, pelo contrfuio, que existe uma percep<;ao da

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a. Segun~o a grava,ao: "uma civiIiza>iio!' urn conhecimento que elatern como fun~ao m.ais peculiar e, pete contrario, discutir e contestar".

b. Segundo a gravac;ao: uNesse espfrito, a arte e 0 pensamento mo-demos reconsideram [...J." . .

c. Segundo a grava,ao: "via".

." "I , ..•

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.4. Albert Miehotte, La Perception de 1a causa/itt. Louvain, Institul Su­•perieur de Psychologie, 1947.

. a. Segundo a grava~ao: NNo ano passado. por .exemplo, A. Miehol-Ie [oo,.).N .

b. Segundo a grava~ao: /tum certo ser do qual entrevemos".

vida cujas modalidades tentam descrever. No anapassado, em urn trabalho inte~essante sobre a per­cep~ao do moviment04

, A. Michotte", de Louvain,mostrava que certos deslocamentos de tra~os lu­minosos sobre uma tela nos fomecem, indiscuti­velmente, a impressao de urn movimento vital. Se,por exemplo, dois tra~os verticais e paralelos seafastam urn do outro, e se em seguida, enquantoo primeiro prossegue seu movimento, 0 segundoinverte 0 seu e se recoloca, em rela~aoao primeiro,na posi~ao inicial, temos irresistivelmente 0 sen­timento de assistir a urn movimento de repta~ao,

embora a figura exposta ao nosso o!har nao se as­seme!he em nada a uma lagarta, e nem mesmoevoque sua lembran~a.Aqui e a propria estruturado movimento que se deixa ler como movimento"vital". 0 deslocamento das linhas observado apa­rece a cada instante como urn momento de urnaa~ao global na qual urn certo ser, cujo fantasma ve­mosb na tela, realiza em seu proveito urn movi­mento espacial. Durante a "repta~ao", a especta­dor acredita ver urna materia virtual, urna especiede protoplasma ficticio escorrer desdeo centro do

36 CONVERSAS - 1948 I,I~

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I1

EXPLORA(:AO DO MUNDO PERCEBIDO: A ANlMAUDADE 37

"corpo" ate os prolongamentos moveis que elelan~a diante de si. Assim, apesar do que talvez afir­masse urna biologia mecanicistaa, 0 mundo no qualvivemos, em todo caso, nao e feito apenas de coi­sas e de espa~o; alguns desses fragmentos de ma:­teria que chamamos de seres vivos se poem a de­senhar em seu ambiente e par seus gestos ou porseu' comportamento uma visao das coisas que ea sua visao das coisas e que nos aparecera apenasse .nos prestarmos ao espetaculo da animalida­de, se coexistirrnos com a animalidade, em vez de!he recusar, temerariamente, qualquer especie deinterioridade.

Em suas experiencias feitas ha vinte anos, 0psicologo alemao Kohler tratava de reconstituir aestrutura do universo dos chimpanzes5.Assinalava,precisamente, que a originalidade da vida animal'nao pode aparecer enquanto !he propuserrnos,como era 0 caso de ni.uitas experiencias classicas,problemas que nao sao os seus. 0 comportamen­to do cachorro pode parecer absurdo e maquinalquando 0 problema que ele tern de resolver e acio­nar uma fechadura ou uma alavancab. Isso nao

,,a. Inciso suprimido quando da grava~ao.5. Wolfgang Kohler, L'Intelligence des sInges suptrieurs. Paris, Alean,

1927.b. For ocasiao da gravac;ao, Merleau-Ponty acrescenta: "'isto e, utili­

zar instrumentos humanos"'.

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38 CONVERSAS - 1948 EXPLORAy\O DO MUNDO PERCEBIDO: A ANlMALIDADE 39

/

quer dizer que, considerado em sua vida espon­tanea e diante das questoes que ela eoloea, 0 ani­mal nao trate seu ambiente segundo as leis de umaespecie de nsica ingenua, nao apreenda algumasrela~oes e nao as utilize para ehegar a eertos resul­tados, enfim, nao elabore as influencias do meiode uma maneira earaeteristiea da especie.

Eporque 0 animal e 0 centro de uma especiede "eoloca~aoem forma" do mundo, e porque eletem um comportamento, e porque revela, explici­tamente, nas tentativas de uma conduta poueo se~

gura e poueo capaz de aquisi~oesaeumuladas', 0

esfor~o de uma existencia jogada no mundo cujachave nao possui, e, sem dlivida- porque a vida ani­mal nos lembra assim de nossos fracassos e de nos­sos limites que ela tem uma imensa importancianos devaneiosb dos primitivos e nose de nossa vidaocultad• Freud mostrou que a mitologia animal dos

.primitivos e reeriada por cada erian~ade cada ge-

a. Segundo a grava~ao: "0 animal e, pois, 0 centro de uma especie de~colocac;aoem forma' do mundo.. ele tern urn comportamento, nas '~entati.

vas de uma eonduta pouco segura e pouco capaz, na verdade, de.aquisi-~5es acumuladas [.,.]."' I'

·b. Segundo a grava~o: "nos mitos", ..i c. Segundo a grava~o: .w:nos devaneios"'.• d. Depois d=frase, por ocasiao da grava~o,Merleau-Pontyacres­

centa: R 0 animal nos proporciona essa surpresa e esse choque, ele que naoentra no mundo humane e se contenta com soW,-lo, com mostrar-noscontudo os emblemas de nossa vida, que, reconduzida assim ao amago danatureza originaL perde de imediato sua evidencia e sua suficiencia*.

ra~ao, que a erian~a se enxerga, enxerga a seus paise os conflitos que tem com estes nos animais queela eneontra', a tal ponto que 0 eavalo se toma nossonhos do pequeno Hans6 um poder malefieo taoineontestavel quanta os animais sagrados dos pri­mitivos. Em um estudo sobre Lautreamonf, Ba­ehelard observa que eneontramos 185 nomes deanimais nas 247 paginas dos Chants de Maldoror[Cantos de Maldoror]. Mesmo um poeta comoClaudel que, como cristao, poderia ser levado asubestirnar tudo 0 que nao e 0 homem, recupera ainspira~ao do Livro de J6 e pede que se "interro­guem os animais."8

"Existe", esereve, "uma gravura japonesa querepresenta um elefante rodeado de cegos. Eumacomissao enearregada de identifiear essa interven- .~ao monumental nos assuntos humanos. 0 pri­meiro abra~a uma das patas e diz: 'E uma more.'

a. Segundo a graval;ao: «a crian\a se enxerga, enxerga seus pais e osconflitos em que se implica com e1es nos animais que encontra"'.

6. Sigmund Freud. Onq Psychanalyses, "AnaJyse d'une phobie chezun petit gar~nde 5 ans", trad. fr. M. Bon.parte, Rernte FrtIJlfl2ise de Psycha­nalyse, t. 2, fase. 3, 1928 [trad. bras. Analise de urnafobia em ummeninodecin­co anos: 0 pequeno Hans, Rio de Janeiro, Imago, 1999];~ Paris, PUF,1954, pp. 93-198. <, .

7. Gaston Bachelard, Lautreanwnt, Paris, Jose Corti, 1939.8. Paul Gaudet "Interroge Ies anirnaux",Figaro Iitteraire, n? 129, 3? ano,

9 de outubro de 1948, p. 1; retomado em "Quelques planches du Bestiairespirituel~. In: Figu17!S et pamboles, in: CEuvres en prose, Paris, GaIIimard, col."La Pleiade", 1965, p. 982-1000.

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40 CONVERSAS -1948

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/

'E verdade', cliz 0 segundo, que descobre as orelhas,~qui estao as folhas'. 'De jeito nenhum', cliz 0 ter­ceiro, que passa sua mao pelo flanco,'e urn mura!''E uma corda', exclama 0 quarto, que pega a cauda.'E urn cana', replica 0 quinto que pega a tromba...

"Da mesma forma", prassegue Gaudel, "nossa .Mae, a Santa Igreja Cat6lica que possui do animal .sagrado a massa, 0 jeito e 0 temperamento bona­chao, sem falar dessa dupla presa de puro marfimque lhe sai da boca. Eu a vejo, as quatra patasnessas aguas que lhe chegam diretamente do pa­raiso, e com a tromba sorvendo-as para batizarcopiosamente-todo 0 seu corpo enorme."9

Gostamos de irnaginar Descartes ou Male­branche lendo esse texto' e encontrando os ani­mais, que para eles eram maquinas, encarregadosde sustentar os emblemas do humano e do so­bre-humano. Essa reabilitac;:ao dos anirnais su­poe, como veremos na pr6xima conversa, um hu­mor e uma especie de humanismo malicioso dosquais eles estavam be~distantesb.

9. Paul Oaude!, Figaro litth-aire, ibid., p. 1; "Quelques comperes au­blies", retornado em "Quelques planches du Bestiaire spirituel". In: CEuures

•en prose, op. cit., p.9!l9.a. Segundo a grava~ao: "lendo esse texto de Oaudel".

;b. Segundo a grava'lao: '"Veremos, na pr6xiIria. conversa, que· essareabijita@o dos animais sup5e urn humor e uma especie de humanismomalicioso bem alheios ao pensarnento classico.n

CAPITuLo Vo HOMEM VISTO DE FORA

Ate aqui tentamos observar 0 espac;:o, as coi­sas e os seres vivos que habitam este mundo atra­yes dos olhos da percepc;:ao, esquecendo aquiloque uma familiaridade demasiado longa com eles .nos leva a achar "completamente natural", consi­derando tal como se oferecern a uma experienciaingenua. Agora, deveriamos repetir a mesma ten­tativa com relac;:ao ao pr6prio homem'. Porque, cer­tamente, ha trinta seculos ou mais, muitas coisas

a. 0 com~ do texto foj modificado por ocasiao da gra)!a~o: "Areagora, tentamos observar 0 espac;o, as coiSas e os seres vivos que habitameste mundo atraves dos olhos da percep~ao,esquecendo aquilo que umafamiliaridade demasiado longa com eles nos'leva a achar 'totalmente na­tura!', considerando-os tal como eles se oferecem a uma experiencia inge­nua. Agora, deveriamos repetir a mesma tentativa com rela¢o ao propriohomem....

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42 CONVERSAS - 1948 o HOMEM VISTO DE FORA 43

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ja foram ditas sobre 0 homem, mas frequentemen­te foram descobertas pela reflexao. Quero dizerque, ao tentar saber 0 que e 0 homem, urn fil6so­fo como Descartes submetia a urn exame criticoas ideias que se apresentava..'11 a ele - par exemplo,as de espfrito e de corpo. Ele as purificava, expur­gava-as de qualquer especie de obscuridade oude confusao. Enquanto a maioria dos homens en­tende par esplrito algo como urna materia muitosutil, ou urna fuma<;a, ou urn sopro - seguindo nis- ..so 0 exemplo dos primitivos -, Descartes mostravalimpidamente que 0 esplrito nao corresponde anada de parecido, ele e de uma natureza comple­tamente distinta, ja que a fuma<;a e 0 sopro sao, aseu modo, coisas, ainda que bern sutis, ao passoque 0 esplrito nao e absolutamente urna coisa, naohabitando 0 espa<;o, disperso como todas as coi­sas por urna certa extensao, mas sendo, pelo con­trano, completamente concentrado, indiviso, naosendo nada mais, finalmente, do que se recolhe ese reline infaIiveImente, que conhece a si mesmoa

a 0 texto que vai de "quero dizer que, ao tentar saber 0 que e0 ho­mem· are -nao sendo finalmente'do que urn ser que se recolhe e se rel1­ne infalivelmente, que conhece a si mesmo'" foi suprimido par ocasiao dagrava¢o. Merleau-Ponty prossegue: "Descartes, por exemplo, desvia-sedo exterior e 56 chega a definir-se clararnente quando descobre urn espi­rita em si mesmo, ou seja.. uma esptkie de ser que nao 901pa nenhum es­pa~, nao se espalha pelas coisas, e nao enada a1em de \un puro conheci­mento de si mesmo·, e entao retoma a leitura.

Chegava-se assim a uma no<;ao pura do esplrito ea urna no<;ao pura da materia ou das coisas. Porem,e claro que s6 encontro esse espfrito completa­mente puro e, par assim dizer, s6 0 toco em mimmesmo. Os oUtros homens nunca sao puro espf­rito para mim: 56 os conhe<;o atraves de seus olha­res, de seus gestos, de suas palavras, em suma,atraves de seus corpos. Certamente, para mim, urnoutro esta bern longe de reduzir-se a seu corpo.Urn outro e esse corpo animado de todos os tiposde inten<;6es, sujeito de a<;6es ou afinna<;6es dasquais me lembro e que contribuem para 0 esbo­<;0 de sua figura moral para mim. Por fim, eu naoconseguiria dissociar alguem de sua silhueta, deseu estilo, de seu jeito de falar. Observando-o porurn minuto, apreendo-o de imediato, bern melhardo que enumerando tudo 0 que sei sobre ele porexperiencia e por ouvir dizer. Os outros sao paran6s esplritos que habitarri urn corpo, e a aparenciatotal desse corpo parece-nos conter todo urn con­junto de possibilidades das quais 0 corpo e a pre­sen<;a propriamente ditaa• Assim, ao considerar 0homem de fora, isto e, no outro, e.provavel que eu

(a. 0 trecho que vai de uCertamente, urn outroM ate -das quais 0 cor­

po ea presen~a propriamente dita" foi suprimido por ocasiao da grava~ao.

Merleau-Ponty conserva apenas: H eu nao conseguiria dissociar alguem desua silhueta, de seu eslilo, de seu jeito de falar". Ee retoma a leiluIa a par­tir daqui.

.....

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seja levado a reexaminar certas distin<;oes que, noentanto, parecem impor-se, cQmo a distin<;ao en­tre 0 espfrito e 0 corpo.

Observemos, entao, do que se trata essa dis­tin<;ao e vamos raciocinar a partir de urn exem­ploa. Suponhamos que eu me encontre diante dealguem que, por qualquer motivo, esteja violenta­mente irritado comigo. Meu interlocutor fica comraiva, e eu digo que ele exprime sua raiva por meiode palavras violentas, de gestos, de gritos... Po­rem, onde se encontra essa raiva? Alguem pode­ra responder: esta no espfrito do meu interlocu­tor. 15so nao e muito daro. Porque, afinal, essamaldade, essa crueldade que leio nos olhares demeu adversario, nao consigo imagina-Ias separa­das de seus gest?s, de suas palavras, de seu corpo.Tudo isso nao acontece fora do mundo e como quenum santuano distante do COrpOb do homem comiaiva. Esta bern daramente aqui, a raiva explodenesta sala e neste lugar da sala, e neste espa<;o en­tre mim e ele que ela ocorre. Concordo que a ipivade meu adversano nao acontece em seu rosto; nomesmo sentido em que talvez, daqui kpouco~ aslagrimas vao escorrer de seus ollios, uma contra-

, '. '

<;ao vai marcar sua bocaa. Porem, enfim, a raivahabita nelee aflora a superficie de suas boche­chas palidas ou violaceas, de seus ollios injetadosde sangue, dessa voz esgani<;ada... Ese, por urninstante, deixo meu ponto de vista de observadorexterior da raiva, se tento lembrar-me de comoela aparece a mim quando estou com raiva, souobrigado a confessar que as coisas nao ocorremde forma diferente: a reflexao sobre minha pr6­pria raiva nada me mostra que seja separavel ouque possa, por assim dizer, ser descolado de meucorpo. Quando me lembro de minha raiva de Pau­lo, encontro-a nao em meu espfrito ou em meupensamento, mas inteiramente entre mim que vo­ciferava e esse detestavel Paulo, tranqililamentesentado ali me escutando com ironia. Minha raiva .era somente uma tentativa de destrui<;ao de Paulo,que perrnanece verbal, se sou pacifico, ate cortes,se sou educado, mas afinal ela acontecia no espa­<;0 comum em que trocavamos argumentos emvez de golpes, e nao em mim. S6 posteriorrnente,refletindo sobre 0 que ea raiva ~ observando queela encerra uma certa avaliaS;ao (negativa),da ou­tro, que canduo: afinal, a nllva eurn pensamen-

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44 CONVERSAS - 1948 o HOMEM VISTa DE FORA 45

,a. Essa £rase foi suprimida por ocasiao da gravar;ao. ,b. Segundo a gravar;ao: U um santUano· retirado por tnis do corpal(.

a Essa £rase £oi suprirnida por ocasiao da grava~ao.Merle.u-Ponty re­toma em: Ita raiva habita nele e aflora I...]n

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46 CONVERSAS - 1948 o HOMEM VISTO DE FORA 47

to, estar com raiva e pensar que 0 outro e detes­tavel e, como mostrou DescaJj:es, esse pensamen­to, como todos os outros, nao pode residir emnenhum fragmento de materia. Eia e, portanto,espfrito. Posso perfeitamente refletir assim, mas apartir do momento em que me volto para a expe­riencia propriamente dita da raivaa que motiva mi­nha reflexao devo confessar que eia nao estavafora de meu corpo, nao era anirnada de fora, masestava inexplicavelmente nele.

Encontramos tudo em Descartes, como em to­dos os grandes fil6sofos, e e assim que eIe, que ha­via distinguido rigorosamente 0 espfrito do cor­po, chegou a afirmar que a alma era nao apenas 0

chefe e 0 comandante do corpo, como 0 piloto emseu navio1, e sim tao estreitamente unida a ele que

a. Segundo a grava~ao: "a raiva".1. Rene Descartes, Discours de /a mitlwde (1637), parte V. In: CEuvres,

. ed.AT., op. cit., voLVI, p.59,1.10-12; in CEuvres et lettres, op. cit., p.166: "Euhavia [...1demonstrado [...1como MO basta que [a almal esteja a10jada nocorpo hwnano, como urn piloto em seu navio, se mo talvez apenas paramOver seus membros, mas que enecessaria que ela esteja junto~ e unidamais estreitamente com ele. pan. ter aJem disso sentimentos e ape/ites se­melhantes aos nossos [...1"; MeditatiDnes de prima philDsophiil (1~ ed. 1641),[trad. bras. Medita¢es scmfilosofill primeim, Campinas, Cemodecon IFOi­Unicamp, 1999J,VI, Medita~o. In: CEuures, ed. AT., voL VII, p. 81,1. 2-3;MMitatlans mitaphysiques (1647), in CEuures, ed. AT., voL lX,. p. 64; in:CEuvres et lettres, op. cit., p. 326: "A natureza me ensina tambem, por essessentimentos de dor, de fome, de sede etc., que eU mo estOll apenas aloja­do em meu corpo, como urn piloto em seu navio, mas que, alem dissa, es­tall muito estreitamente unido a ele e tao confundido e mescladQ quecomponho COm ele como que urn sO todo.'" .

nele sofre, como observamos quando dizemos quetemos dor de dente.

S6 que, segundo Descartes, quase nao pode­mos falar dessa uniao da alma e do corpo, podemosapenas experimenta-Ia peia pratica da vida; paraeIe, qualquer que seja nossa condi~ao de fato emesmo se de fato vivemos, segundo seus pr6priostermos, uma verdadeira "mescla" do espirito como corpo, isso nao nos tira 0 direito de distinguir ab­solutamente 0 que esta unido em nossa experien­cia, de manter em direito a separa<;ao radical do es­pirito e do corpo, que e negada pelo fato de suauniao e, finalmente, de definir 0 homem sem sepreocupar com sua estrutura imediata e tal comoele aparece a si mesmo na reflexao: como urn pen­samento esquisitamente vinculado a urn aparelhocorporal, sem que a medinica do corpo ou a trans­parencia do pensamento sejam comprometidaspeia sua mescla. Pode-se dizer que, a partir de Des­cartes, exatamente aqueles que seguiram com maisfidelidade seu ensinamento nunca deixaram deperguntar-se, precisamente, como pode nossa re­flexao, que e reflexao sobre urn determinado ho­mem livrar-se das condi~6es as quaiseste parecesujeito em sua situa~ao iniclala•

a. Por ocasiao cia grava~ao, esse parcigrafo £oi modificado: "S6 que, sepodemos viver essa uniao da alma e do cOIj>O, quase MO podemos faJar

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48 CONVERSAS - 1948

..

o HOMEM VISTO DE FORA 49

"

Ao descreverem essa situa~ao, os psicologos dehoje insistem no fato" de que nao vivemos a prin­cipio na consciencia de nos mesmos - nem mes.~o,

alias, na consciencia das coisas - mas na expenen­cia do outro. So sentimos que existimos depois deja ter entrado em contato com os outros, e nossareflexao e sempre urn retorno a nos mesmos que,alias, deve muito anossa freqiienta~ao do outro.Urn bebe de alguns meses ja tern habilidade sufi­ciente para distinguir a simpatia, a raiva e 0 medono rosto do outro, num momenta em que aindanao poderia ter aprendido, pelo exame de se~ pro­prio corpo, os sinais ffsicos dessas emo~5es. E por­tanto porque 0 corpo do outro, com suas diversasgesticula~5es, !he aparece de imediato investido deurna significa~ao emocional, e assim que ele apren­de a conhecer 0 espfrito, tanto como comporta­mento visfvel quanta na intimidade de seu pro­-prio espfrito. E 0 proprio adultob descobre na sua

deJa e, qualquer que 50ja nossa .coridi¢o de fato e mesmo se ~e fate ,?"e­mas uma verdadeira 'mescla'do espfrito com 0 carpa, 15S0 nao nos tira 0

direit" de distinguir absolutarnerite 0 que eslii unido na nossa experiencia:de manter em principio a separa~o radical do esplrito e do corpo, que enegada pelo fato de sua uniiio:Os sucessores de Descartes dewun preo­samente pOr ern dUvida que 50 pudesse, assim, s~~arar0 que ede fato.o a

, que ,e em principi?_ Eles denunciaram. essa espeae de COmprOInlSso. Aleitura recom~a aqui. . . _

a. Segundo a gravae;a,o: "Descrevendo entao n~ssa condic;ao de fata,os psic610gos de hoje insistern em que [...J:

b. Segundo a grava,ao: "por sua vez'.

vida mesma 0 que sua cultura, 0 ensino, os livros,a tradi~ao!he ensinaram a nela ver. Nosso conta­to conosco sempre se faz por meio de uma cultu­ra, pelo menos por meio de uma linguagem querecebemos de fora" e que nos orienta para 0 co­nhecimento de nos mesmos. De modo que, afinal,o puro si-mesmo, 0 espfrito, sem instrumentos esem historia, se e de fato como uma instancia Crl­tica que opomos a intrusao pura e simples dasideias que nos sao sugeridas pelo meio, so se rea­liza, em liberdade de fato, por meio da linguageme participando da vida do mundob•

Disso resulta urna imagem do homem e da hu­manidade que e bern diferente daquela da qualpartimos. A humanidade nao e uma soma de in­dividuos, uma comunidade de pensadores em quecada urn, em sua solidao, obtem antecipadamen­te a certeza de se entender com os outros, porqueeles participariam todos da mesma essencia pen­sante. Tampouco e, evidentemente, urn Unico Sercao qual a pluralidade dos individuos estaria fun-

a Na grava~ao, 0 fim da frase foi suprimido.b. Segundo a grava,ao: "De modo que, afinal. 0 puro si-mesmo, 0

espirito sem carpo, sem instrumentos e sem hist6ria, se ede fata uma ins­tancia critica que opomos a intrusao pura e simples das ideias que nos saosugeridas pelo meio, 56 se realiza por meio da linguagem e participandoda vida do mundo.'

c. Segundo a grava,ao: 'urn grande Set'.

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50 CONVERSAS - 1948 o HOMEM VlSTO DE FORA 51

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dida e estaria destinada a se incorporar. Ela esta,por principio, em situac;ao instavel: cada urn sopode acreditar no que reconhece interiormentecomo verdade - e, ao mesmo tempo, cada urn sopensa e decide depois de ja estar preso em certasrelac;5es com 0 outro, que orientam preferencial­mente para determinado tipo de opini5es. Cadaser e so, e ninguem pode dispensar os outros, naoapenas por sua utilidade - que nao esta em ques­tao aqui -, mas para sua felicidade. Nao ha vidaem grupo que nos livre do peso de nos mesmos,que nos dispense de ter uma opiniao; e nao exis­te vida "interior" que nao seja como uma primeiraexperiencia de nossas relac;5es com 0 outro. Nestasituac;ao ambfgua na qual somos lanc;ados porquetemos urn corpo e uma historia pessoal e coleti­va, nao conseguimos encontrar repouso absoluto,precisamos lutar 0 tempo todo para reduzir nos­sas divergencias, para explicar nossas palavras malcompreendidas, para manifestar nossos aspectosocultos, para perceber 0 outro. A razao e 0 acordodos espfritos nao pertencem ao passado, estao,presumivelrnente, diante de nos, e somos tao in­capazes de atingi-losdefinitivamente quanta derenunciar a eles'.

, a. Segundo a grava~ao: IIe somos assim tao incapazes de renunciar aeles quanta de possui-Ios para sempre definitivamente".

Compreende-se que nossa especie, engajadaassim numa tarefa que jamais esta conclufda nempoderia estar, e que nao se destina necessariamen­te a conseguir termina-la, mesmo que relativa­mente, encontra nessa situac;ao ao mesmo tempourn motivo de inquietude e urn motivo de cora­gem. Na verdade, os dois motivos sao apenas um.Porque a inquietude e vigilancia, e a vontade dejulgar, de saber 0 que se faz e 0 que se prop5e. Senao existe fatalidade boa, tampouco existe fatali­dade ruim, e a coragem consiste em referir-se a sie aos outros de modo que, atraves de todas as di­ferenc;as das situac;5es ffsicas e sociais, todos dei­xem transparecer em sua propria conduta e emsuas proprias relac;5es a mesma chama, que fazcom que os reconhec;amos, que tenhamos neces­sidade de seu assentimento ou de sua critica, quetenhamos um destino comum'. Sirnplesmente, essehumanismo dos modernos nao tern mais 0 tomperemptorio dos seculos precedentes. Nao nosvangloriemos mais de ser uma comunidade de es­pilltos puros, vejamos 0 que sao realmente as re­lac;5es de uns com os outrosnas nossas sodeda-

a. Por ocasiao cia gravac;ao, 0 paragrafo a partir de IIcompreende-seque nossa especie [...]" foi suprimido. A leitura eretomada em: Ito huma­nismo dos modemos [...]".

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52 CONVERSAS -1948 o HOMEM VISTO DE FORA 53

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des: a maior parte do tempo, relat;6es de senhor eescravo. Nao nos desculpemos- por nossas boas in­tent;6es, vejamos 0 que elas se tornam assim quesaem de nasa. Existe algo saudavel nesse olhar ex­terior com que nos propomos a considerar nossaespecieb• Em outros tempos, em Micromegas, Vol­taire imaginou um gigante de um outro planetadiante de nossos costumes, que so podiam pare­cer irrisorios para uma inteligencia maior do quea nossa. Ao nosso tempo foi reservado julgar-senao de cima, 0 que e amargo e maldoso, mas dealguma maneira de baixoc

• Kafka imagina um ho­mem metamorfoseado em ortoptero2

, que consi­dera a familia com uma visao de ortoptero. Kafkaimagina as pesquisas de um cachorro que se de-

a. Segundo a grava~ao: UNao nos vangloriemos mais de ser uma.comunidade de espiritos puros, constatamos perfeitamente que as boasintenc;6es de cada urn (proletano, capitalista, frances, alemao), vistas defo~ e pelos QUtros, tern por vezes urn aspecto homvel.ll' A leitura recome-

~aaqui. . 'b. Segundo a gravac;ao: • olhar exterior com que consideramo~assim

nossa especie". - ,\c. Por ocasiao da grava~ao,Medeau-Ponty diz no lugar desta £rase:

"ExiSte, nesse~ponto, am~ maldade. Os modemos tern m.ais humorde verdade. Eles tarnam por testemunho 0 que existe de contingente nassociedades humanas, nao wna inteligencia superior anossa,. mas simples­mente wna inteligencia diferente" .

. 2. Franz Kafka, La Metamorphose, lrad. fro A VIalatte, Paris, Galli­mard, 1938 [trad. bras. A metamorfose, Sao Paulo, Companhia das ~tras,

2~ ed., 2000.]

j11

f;

1II

I

para com 0 mundo humano3. Descreve socieda­des encerradas na concha dos costumes queadotaram, e hoje Maurice Blanchot descreve umacidade fixada na evidencia de sua lei4, da qual to­dos participam tao intimamente que nao experi­mentam mais nem sua propria diferent;a, nem ados outros. Observar 0 homem de fora e a critica ea saude do espfrito. Porem nao para sugerir, comoVoltaire, que tudo e absurdo. Mais para sugerir,como Kafka, que a vida humana esta sempre amea­t;ada e para preparar, pelo humor, os momentosraros e preciosos em que acontece aos homens se..reconhecerem e se encontrarema.

3. Franz Kafka, Recherches d'un chien. In: La MUn2ille de Chine, lrad. froJ. Carrive e A. Vialatte, Villeneuve-Ies-Avignon, Seghers, 1944, reed. Paris,Gallimard, 1950 [trad. bras. MUn2lha ria China, Sao Paulo, Oube do Livro,1968J.

4. Maurice Blancho~ Le Tres-Haut, Paris, Gallimard, 1948.a Por ocasiao da grava~ao,Merleau-Ponty modifica 0 final a partir de

"Descreve as sociedades' e substitui por "au, finalmente, imagina urnpersonagem simples, de boa-fe, pronto para se reconhecer culpado e quedepara com uma lei estrangeira, com urn poder incompreensiyel, com acoletividade, com 0 Estada. Kafka nilo apela da loucura dos homens coma sabedoria de Micromegas. Ele nao' acredita gue exista urn Mia-omegas.Nao espera por nenhum no futuro. Menos otimista" mas tamrem menosmaldoso para com seu tempo do que Voltaire, ele prepara pelo humor osmomentos rams e preciosos em que acontece aos homens de se reconhe­cerem e de se encontrarem"o

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CAPiTuLo VIA ARTE E 0 MUNDO PERCEBIDO

Quando, em nossas conversas anteriores, pro­curamos reviver a mundo percebido que as sedi­mentos do conhecimento e da vida social nos es­condem, muitas vezes recorremos apintura, por­que esta toma a nos situar imperiosamente diantedo mundo vividoa• Em Cezanne, Juan Gris, Braque,Picasso encontramos objetos de diversas maneiras-lim5es, bandolins, cachos de uva, ma,.:os de ci­garro - que nao se insinuam ao olhar como obje­tos bern conhecidos, mas, ao contrano, detem aolhar, colocam-lhe quest5es, comunicam-lhe es­tranhamente sua substancia secreta, a pr0prio mo­do de sua materialidade e, par assim dizer, "san-

'i a Por ocasiao da gravallao, Merleau-Ponty suprime a parte da £rase~'. desde "porque a pintura" ate "mundo vivido".

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5 CONVERSAS - 1948 A ARTE E 0 MUNDO PERCEBID() 57

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gram" diante de nos. Assim, a pintura nos recon­duzia a visao das proprias coisas. Inversamente,como que por uma troca de favores, uma filosofiada percep~ao que queira reaprender aver 0 mun­do restituira a pintura e as artes em geral seu lugarverdadeiro, sua verdadeira dignidade enos pre­dispora a aceita-Ias em sua pureza.

o que aprendemos de fato ao considerar 0

mundo da percep¢o?Aprendemos que nesse mun­do e impossivel separar as coisas de sua maneirade aparecer. Decerto, quando defino uma mesade acordo com 0 dicionano ~ prancha horizontalsustentada por tres ou quatro suportes e sobre aqual se pode comer, escrever etc. - posso ter 0 sen­timento de atingir como que a essencia da mesa',e me desinteresso de todos os atributos que po­dem acompan:ha-Ia, forma dos pes, estilo das mol­duras etc., mas isto nao e perceber, e definir. Quan­

.do, pelo contrano, percebo urna mesa, nao medesinteresso da maneira como ela curnpre sua

. fuTI~ao de mesa, e 0 que me interessa e a manei­ra, a cada vez singular, com que ela sustenta seutampo,e,o movime~t6Unico, desde os pes ate 0

tampo, que'ela op5e ao peso e que toma cada mesaJ \ • '.

. a. Segundo a grava~ao: *'tenho 0 sentimento deatingir a essencia damesa [...]." .' ~

I

distinta de todas as outras. Aqui nao ha detalheque seja insignificante - fibra da madeira, formados pes, a propria cor, idade da madeira, riscos ouarranh6es que marcam essa idade -, e a signifi­ca~ao "mesa" s6 me interessa na medida em queemerge de todos os "detalhes" que encamam suamodalidade presente·. Ora, se sigo a escola dapercep~ao, encontro-me pronto para compreen­der a obra de arte, porque esta e tambem urna to­talidade tangivel na qual a significa~ao nao e li­vre, por assim dizer, mas ligada, escrava de todosos signos, de todos os detalhes que a manifestampara mim, de maneira que, tal como a coisa per­cebida, a obra de arte Cvista ou ouvida, e nenhu­rna defini~ao, nenhuma analise ulterior, por maispreciosa que possa ser posteriormente e para fazero inventano dessa experiencia, conseguiria substi­tuir a experiencia perceptiva e direta que tive comrela~ao a eIab.

A principio, isso nao e tao evidente. Porque,afinal,a maior parte do tempo, urn quadro repre­senta objetos, como se diz, freqiientemente urn re­trato representa alguem de quem 0 pintor nos for­nece 0 nome. Afinal, a pintura nao sera comparavel

a. Segundo a grava~ao: JJemerge de todos os 'detalhes'que a en­carnam".

b. Segundo a grava~ao: "que dela absOIvi".

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a essas flechas indicativas nas esta<;oes, cuja uni­ca fun<;ao e orientar-nos em dire<;ao asafda ou aplataforma? Ou ainda a essas fotografias exatas,que nos permitem examinar 0 objeto em sua au-

.., .. ,/1 sencia, retendo 0 essencial dele? Se isso fosse ver-'.j! dade, 0 objetivo da pintura seria 0 trompe-l'oei/*, e

, 1 . sua significa<;ao estaria inteiramente fora do qua­.dro, nas coisas que este significaa, no tema. Ora, eprecisamente contra essa concep<;ao que se cons­tituiu toda pintura valida e que os pintores lutammuito conscienciosamente ha pelo menos cemanos. Segundo Joachim Gasquet, Cezanne diziaque 0 pintor capta um fragmento da natureza"etorna-o absolutamente pintura"l. Ha trinta anos,Braque escrevia ainda mais claramente que a pin­tura nao procurava "reconstituir um fato aned6ti­co", mas "constituir um fato pictural"2. A pintura

.seria, portanto, nao uma imita<;ao do mundo, masum mundo por si mesmo. E isto quer dizer que,na experiencia de um quacjro, nao h3. nenhuma

... Se~do 0 Didonario Hoilaiss, trompe-l'oeil: estilo de aiar ~ ilusaode objetos reais em relevo, mediante artifidos de perspectiva. (N. des T.)

. a. Segundo a grava<;ao:"nas coisas que ele representan•

1. Joachim Gasquet, cezanne, Paris, Bemheim-Jeune, 1926; reed. Gre­noble, Cynara, 1988; ver, por exemplo, p. 71, 130-l.

2. Georges Braque, Cahier, 1917-1947, Paris, Maeght, 1948, p. 22 (ed.aumentada 1994, p. 30): "A pintura nao busca reconstituir uma anedotamas constituir urn fato pictural.H '

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referencia a coisa natural, na experiencia esteticado retrato, nao ha nenhuma men<;ao asua "seme­lhan<;a" com 0 modeloa (aqueles que encomendamretratos os querem, com freqiiencia, semelhantes,mas e porque tem mais vaidade do que amor pelapintura).Tomaria tempo demais aqui pesquisar porque, nessas condi<;oes, os pintores nao fabricamcompletamente, como ja fabricaram algumas ve­zes, objetos poeticos inexistentesb• Contentemo­nos com observar que, mesmo quando trabalhamsobre objetos reais, seu objetivo jamais e evocar 0

pr6prio objeto muitas vezes, mas fabricar sobre atela urn espetaculo que se basta a si mesmo. A dis­tin<;ao freqiientemente feita entre 0 tema do qua­dro e 0 procedimento do pintor nao e legftimaporque, para a experiencia esteticac

, todo 0 temareside na maneira pela qual a uva, 0 cachimbo ouo ma<;o de cigarros sao constitufdos pelo pintor natela. Queremos dizer que, em arte, apenas a for­ma importa, e nao 0 que se diz? De forma alguma.Queremos dizer que a forma e 0 conteudo, 0 quese diz e a maneira pela qual se diz nao poderiamexistir separadamente. Em suma, limitamo~nos

/

a. Segundo a grava<;ao: "semelhan,a' ao modelo realn

b. Por ocasiao d.a gravac;ao, Merleau-Ponty suprime essa £rase. £Ie re­toma: "Mesmo quando eles trabalham [...J.n

c. Segundo a grava,ao: 'para 0 artistan•

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60 CONVERSAS -1948 A ARTE E 0 MUNDO PERCEB/DO 61

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a eonstatar a evideneia de acordo com a qual, seeonsigo imaginar satisfatorial1}ente, segundo suafun<;:ao, um objeto ou urn utensflio que nunca vi,pelo menos em suas linhas gerais, as melhores ana­lises, em compensa<;:ao, nao podem me fomecer 0

menor indfcio do que e uma pinrura da qual jamaisvi nenhum exemplar. Nao se trata, pois, diante deurn quadro, de multiplicar as refereneias ao tema,acircunstancia hist6rica, se e que existe alguma,que esta na origem do c;uadro; trata-se, como napercep<;:ao, das pr6prias coisas, de eontemplare pereeber 0 quadro segundo as indiea<;:6es silen­ciosas de todas as partes que me sao fomecidaspelos tra<;:osde pinrura depositados na tela, ate quetodas, sem discurso e sem raciocinio, componham­se em uma organiza<;:ao rigorosa em que se sentede fato que nada e arbitrario, mesmo se nao tiver­mos eopdi<;:6es de dizer a razao disso.

. Embora 0 cinema ainda nao tenha produzidomuitas obras que sejam do come<;:o ao tim obras

u·n'.J\')"'Q. de arte, embora a admira<;:ao pelas estrelas, o as­pecto sensacional das mudan<;:as de plano oudasperipecias, a interven<;:ao de belas fotografias ou deum dialogo espiritual sejam para 0 filme tenta<;:6es,em que ele pode fiear aprisionado e eneontrar 0

sucesso omitindo os meios de expressao mais pro­priamente cinematograficos - apesar, portanto, de

todas essas circunstiineias que fazem com que qua-se nao tenhamos visto ate agora um filme que sejaplenamente filme, podemos entrever 0 que seriaesta obra, e veremos que, como toda obra de arte,seria ainda alguma coisa que percebemos. Por­que, finalmente, 0 que pode eonstituir a beleza ci­nematografica nao e nem a hist6ria em si, que aprosa contaria muito bern, nem, por uma razaomuito maior, as ideias que ela pode sugerir, nempor fim os tiques, as manias, esses procedimentospelos quais urn diretor de cinema e reconhecido eque nao tern mais importiincia decisiva do que aspalavras favoritas de um escritor. 0 que conta e a 'escblha dos epis6dios representados e, em cada (­um deles, a escolha das cenas que figurarao no fil­me, a extensao dada respectivamente a cada urndesses elementos, a ordem na qual se eseolhe apre- .senta-Ios, 0 som ou as palavras com as quais sequer ou nao associa-Ios, tudo isso constituindourn certo ritrno cinematografieo global. Quandonossa experiencia do cinema for maior, poderemoselaborar uma especie de 16gica do cinema, ou ateuma gramatiea e estilistiea do cinema que nos in­dicarao, a partir de nossa experiencia disobras, 0

valor a se atribuir a cada elemento numa estrutu-

a. Segundo a grava~ao: "pelos quais 50 apta",

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ra de conjunto tipica, para que cada um deles pos­sa ai se inserir sem problema, Porem, como todasas regras em materia de arte, estas so servirao paraexplicitar as rela<;:6es ja existentes nas obras bem­sucedidas e para inspirar outras obras honestas.Entao, como agora, os criadores sempre terao deencontrar novas conjuntos sem orienta<;:ao. Entao,como agora, 0 espectador, sem formar uma ideiaclara, experimentara a unidade e a necessidade dodesenvolvimento temporal em uma bela obra. En­tao, como agora, a obra deixara em seu espIrito,nao uma soma de receitas, mas uma imagem irra­diante, um ritmo. Entao, como agora, a experien­cia cinematogra£ica sera percep<;:ao.

A musica poderia fomecer-nos um exemplodemasiado facil e, justamente por essa razao, naogostarfamos de nos deter nele. Evidentemente, ficaimpassIvel aqui imaginar que a arte remeta a ou­tta coisa que nao a si mesma. A musica em tomode um tema que nos descreve urna tempestade,ou mesmo urna tristeza, constitui uma exce~ao.

Aqui; estamos incontestavelmente diante de umaarteque nao fala. E, contudo, urna rhusica estalonge de ser apenas urn agregado de sensa<;:6es 50­

noras: attaves'dos sons, vemos aparecer urna frasee, de frase em frase, urn conjunto e,por fim, comodizia Proust, urn mundo que e, no donUruo da mu-

63

3. Stephane Mallarme, passim (versua obra poetical e,por exempl?,Rtponses ades enquiles (pesquisa de luies Huret, 1891). In: CEuvn:s cmnple­les, Paris, Gallimard, coL "La PI"iade", 1945.

a. Segundo a grava~ao: "um genero de expressao que nos d~creve aestrutura essencial da coisa sem nos dar seu nome e nos for~ assun a en­trar nela".

A ARTE E 0 MUNDO PERCEBIDO

sica possIve!, a regiao Debussy ou 0 reino Bach. Sonos resta neste caso escutar, sem nos voltarmospara nos mesmos, para nossas lembran<;:as, paranossos sentimentos, sem mencionar 0 homem quecriou isso, como a percep<;:ao observa as propriascoisas sem nelas mesclar nossos sonhos,

Para terminar, podemos dizer algo de analogocom rela<;:ao aliteratura, ainda que isso tenha sidofrequentemente contestado porque a literatura em­prega as palavras, que tambem sao feitas para ex­primir as coisas naturais. Ja ha muito tempo, Mal­larme3 distinguiu a tagarelice cotidiana da utiliza­<;:ao poetica da linguagem. 0 tagarela so diz 0 nomedas coisas para indica-las brevemente, para expri­mir "do que se ttata".Ao conttano, 0 poeta, segun­do Mallarme, substitui a designa<;:ao corrente dascoisas, que as da como "bem conhecidas", por umgenero'de expressao que nos descreve a esttuturaessencial da coisa enos for<;:aassim a enttar nela.aFalar poeticamente do mundo e quase calar-se,se consideramos a palavra no sentido tla palavra

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CONVERSAS - 194862

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cotidiana, e sabemos que Mallarme nao escreveumuito. Porem, no pouco que nos deixou, encon­tramos pelo menos a consciencia mais clara dapoesia como inteiramente transportada pela lin­guagem, sem re£erencia direta ao proprio mundo,nem averdade prosaica, nem a razao, e, conse­qiientemente, como uma cria~ao da palavra quenao poderia ser completamente traduzida paraideias; e porque a poesia, como dirao mais tardeHenri Bremond4 eValery5, nao e em principio sig­nifica~ao de ideias ou significante que Mallarmee, posteriormente,Valery6 se recusavam a aprovarou a desaprovar qualquer comentario prosaico deseus poemas: tanto no poema como na coisa per­cebida', nao podemos separar 0 conteudo da £or-

4. Henri Bremond, La Poesie pure (lei~ura na sessao publica das cincoAcademias, em 24 de outubro de 1925), Paris, Grasset, 1926.

5. Paul Valery, passim e, por exemplo, "Avant-propos" (1920), Va­.riele, Paris, Gallimard, 1924; "Je disais quelquefois a Stephane Mallar­me...• (1931), 1923), Variete ill, Paris, Gallimard, 1936; "Demiere visite aMallarme", 1923, Vamte II, Paris, GaIlimar<L 1930; "Propos sur I, poesie"(1927), "Poesie et pensee abstraite" (1939), Vamlt V. Thris, Gallimard,1944 [trad. bras. Variedades, Sao Paulo, lluminuras, 1991jVer tambemFrederic Lefevre, Entretiens avec Paul Valhy, prefacio de Henri Bremon<LParis, Le Livre. 1926.' .

• 6. Paul Yalery, passim (etudes litteraires, prefaces, ecrits tMoriques,cours) e por exemplo, "Questions de poOsie" (1935), "Au sujet du Cimetie-

, re marin" (1933) e "Commentaires de Channes" (1929), Variete III,. Thris,GaIlimar<L 1936; "Propos sur la poesie" (1927), "L'homme et la coquille"(1937) e "Le,on inaugurale du cours de poetique du College de France"(1937), Varietev. Paris, Gallimard, 1944.

a Segundo a grava~ao: Duma coisa percebidaN. - .

rna, aquilo que e apresentado da maneira comose apresenta ao olhar. Hoje, autores como Mauri­ce Blanchot perguntam-se se nao seria necessarioestender ao romance e aliteratura em geral 0 queMallarme dizia da poesia7; urn romance bem-su­cedido existe nao como soma de ideias ou de teses,mas como uma coisa sensfvel e comourna coisaem movimento que se trata de perceber em seudesenvolvimento temporal, a cujo ritmo se trata denOs associarmos e que deixa na lembran~anao urnconjunto de ideias, mas antes urn emblema e 0 mo­nograma dessas ideias.

Se essas observa~6es sao corretas e se conse­guimos mostrar que urna obra de arte e percebi­da', uma filosofia da percep~ao encontra-se ime­diatamente liberada dos mal-entendidos que po­deriamos opor a ela como obje~6es. 0 mundopercebido nao e apenas 0 conjunto de coisas na­turais, e tambem os quadros, as mlisicas, os livros,tudo 0 que os alemaes chamam de urn "mundocultural". Ao mergulhar no mundo percebido, lon­ge de termos estreitado nosso horizonte e de nos

7. Maurice Blanchot Faux pas, Paris, GaIlimarcL 1943; principalmen­te "Comment la litteralure est-elle possible?" (l~ed.Paris,JoseCorti,1942)e "'La poesie de Mallarme est-eile obsc.ure?".

a. Segundo a grava,;ao: lie se everdade que a obra de arte eperce­bida".

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66 CONVERSAS - 1948

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terrnos limitado ao pedregulho ou a agua, encon­tramos.os meios de contemplar-as obras de arte dapalavra e da cultura em sua autonomia e em suariqueza originais.

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CAPfruLo VII

MUNDO CLASSICO E MUNDO MODERNO

Nesta ultima conversa, gostariamos de apre­dar 0 des~nvolvimento do pensamento modernotal como 0 descrevemos, bem ou mal, nas conver­sas anteriores. Esse retorno ao mundo percebidoque constatamos nos pintores, nos escritores, em .certos fil6sofos enos criadores da ffsica moderna,se comparado as ambi<;6es da cH~nda, da arte e dafilosofia classicas, nao poderia ser considerado umsinal de declinio? Por urn lado, temos a seguran<;ade urn pensamento que nao duvida deestar des­tinado ao conhecimento integral da natureza, nemde eliminar todo misterio dO conhecimento do ho­memo Por outro, entre os modernos, no lugar des­se universo radonal, aberto por princfpio aos em­preendimentos do conhecimento e da a<;ao, temos

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urn saber e uma arte dificeis, cheios de reservase de restri~6es,uma represent~aodo mundo quenao exclui nem fissuras nem lacunas, uma a~ao

que duvida de si mesma e, em todo caso, nao sevangloria de obter 0 assentimento de todos oshomens....

Efetivamente, e preciso reconhecer que os mo­demos (de urna vez por todas, desculpo-me peIoque ha de vago nesse tipo de expressao) nao ternnem 0 dogmatismo nem a seguran~a dos classi­cos, quer se trate da arte, quer do conhecimento,quer da a~ao. 0 pensamento modemo oferece urncarater duplo de incompletude e de ambigilidadeque permite falar, se quisermos, de declinio ou dedecadencia. Concebemos todas as obras da cienciacomo provisorias e aproximativas, enquanto Des­cartes acreditava poder deduzir de uma vez portodas as leis do choque dos corpos a partir dosatributos de Deusl . Os museus estao repletos deobras as quais parece que nada pode ser acrescen­tado,enquanto nossospintores Ievam ao publicoobras que parecem, por vezes, ser meros esbo~os.

E essas mesmas obras sao tema de interminaveis

1. Rene Descartes, Les Principes de la philosophie (1647), Parte II, art.36-42, [trad. bras. Prindpios do fikJsofia, Sao Paulo, Hemus, 1968J. In: CEuvresed. AT., op. cit., vol. IX. pp. 83-7; in: CEuvres et lettres, op. cit., pp. 632-7.

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comentanos, porque seu sentido nao e univoco.Quantas obras sabre 0 silencio de Rimbaud, aposa publica~ao dounico livro que ele proprio entre­gou aos seus contemporaneos, e como, ao con­trario, 0 silencio de Racine apos Phedre [Fedra] pa­rece ser pouco problematico! Parece que 0 artistade hoje multiplica ao seu redor enigmas e fulgu­ra~6es. Mesmo quando, como Proust, 0 artista e,sob muitos aspectos, tao claro quanto os classi­cos, 0 mundo que ele nos descreve nao e, em todocaso, nem acabado nem unlVOCO. Em Andromaque[Andromaca], sabemos que Hermione ama Pirro e,exatamente no momento em que ela envia Orestepara mataclo, nenhum espectador se confunde:essa ambigilidade do amor e do odio, que faz comque urn dos amantes prefira perder 0 amado a dei­xa-Io a urn outro, nao e uma ambigilidade £unda':mental; fica imediatamente evidente que, se Pirrose afastasse de Andromaca e se.voltasse paraHermione, Hermione seria apenas do~a aseuspes. Ao contrano, quem pode afirmar se 0 narra-

. dor, na obra de Proust, ama realmente Albertine2?o narrador constata que so quer estar perto deAlbertine quando ela se afasta, e disso c,onclui que

2.'Proust, MarceL A la recherche du temps perdu, t. 6: La Prisormiere, Pa­ris, Gallimard, 1923 [trad. bras. Em busca do tempo perdiJkJ, t. 6, furtoAlegre,Globo, 1957]. .'

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7C CONVERSAS - 1948 MUNDO CLAsSICO E MUNDO MODERNO 71

i,

nao a ama. Porem, depois de seu desaparecimen­to e da noticia de sua morte, entao, na evidenciade~se afastamento sem volta, 0 narrador pensa quetinha necessidade dela e que a amava3• Porem, 0leitor continua: se Albertine the fosse devolvida ­como ele sonha algumas vezes -, 0 narrador deProust ainda a amaria? Deve-se dizer que 0 amore essa necessidade ciumenta ou que nunca haamor, mas apenas chimes e 0 sentimento de serexclufdo?" Essas quest6es nao nascem de urnaexegese minuciosab, e 0 proprio Proust que as co­loca, sao, para ele, constitutivas do que chama­mos de amor. 0 coraC;ao dos modemos e portan­to urn coraC;ao intermitente e que nem mesmoconsegue se conhecer. Entre os modemos, nao saoapenas as obras que permanecem inacabadas, maso mundo mesmo, tal como elas 0 exprimem, e co­mo se fosse urna obra sem conclusao, da qual nao

.sabemos se jamais comportara uma. A partir domomenta em que nao se trata mais apenas da na­tureza, mas do homem, a incompletude do conhe-. \,

\

, 3. Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, t. 7: Albertine dls"arue,fum,G~l~. ,

a. Segundo a grava~o: "Deve-se dizer que 0 amor eessa necessida­de ciumenta.. ou melbor, que 0 amor nao existe, que existem apenas ci.li-mes e 0 sentimento de ser excluido?" .

, b. Segundo a grava~ao: uEssas quest5es e essas. dUvidas nao n¥Cemde uma exegese demasiado minudosa [...]."

I

II

cimento, que se deve a complexidade das coisas,reitera-se com urna incompletude de principia: porexemplo, ha dez anos, urn filosofo mostrava quenao conseguirfamos conceber urn conhecimen­to historico rigorosamente objetivo, porque a in­terpretac;ao e a colocaC;ao em perspectiva do pas­sado dependem das escolhas morais e politicas queo historiador fez por sua conta (como, alias, estase aquelas escolhas) e que a existencia hurnana, nes­.se mOOo em que esta encerrada, jamais pode fazerabstrac;ao de si mesma para chegar a uma verdadenua, comp0rtando apenas urn progresso na obje­tivaC;ao, nao urna objetividade plena".

Se deix<issemos a regiao do conhecimento paraconsiderar a da vida e da aC;ao, encontrarfamos os e,J· ."!

homens modemos as voltas com ambigilidadestalvez ate mais importantes. Nao existe mais uma50 palavra de nosso vocabulano politico que naotenha servido para designar realidades completa-mente diferentes, ou mesmo diametralmente opos-tas. Liberdade, socialismo, democracia, reconstru-,C;ao, renascimento, liberdade sindicalb, cada uma

. dessas palavras foi, pelo menos urna yez, reivin­dicada por algum dos grandes partidos existen-

a. !'or ocasiao da grava~ao,Merleau-funty nOo Ie esta. Ultima frase.b. Segundo a grava~ao: Runidade sindical

R.

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72 CONVERSAS -1948 MUNDO cLASS/CO E MUNDO MODERlvO 73

a. Par ocasiao da grava~ao, Merleau-Ponty nao diz "regimes liberais",e sUn Nliberalismo", e, conseqiientemente, faz a concordancia cia £rase nosingular ("'ele pode", "sua conduta").

Porem, precisamente, se a ambigliidade e a in­completude estao inscritas na propria textura denossa vida coletiva e nao somente nas obras dosintelectuais, seria irrisorio querer reagir a isso poruma restaurac;:ao da razao, no sentido em que sefala de restaurac;:ao a respeito do regime de 1815.Podemos e devemos analisar as ambigliidades denosso tempo e tentar, par meio delas, trac;:ar urncaminho que possa ser mantido com consciencia edentro da verdade. Sabemos porem demais a esserespeito para retomar pura e simplesmente a ra­cionalismo de nossos pais. Sabemos, par exemplo, .que nao se deve acreditar nas promessas dos re­gimes liberaisa, que estes podem ter par divisa aigualdade e a fraternidade sem exprimi-las em suaconduta, e que as ideologias nobres sao, par vezes,cilibis. Sabemos, ademais, que, para realizar a igual­dade,nao basta transferir a propriedade dos ins­trumentos de produc;:ao para 0 Estado. Nem nos­so exame do socialismo, nem nosso exame do libe­ralismo podem deixar de ter reservas au restri~6es,e permanecemos sabre esta base instavel enquan­to a cursa das coisas e a conscienciados homensI

II•

I•

a. Segundo a'8rava~ao: N cada uma dessas palavras foi, ao menos umavez, reivindicada pelos roais diferentes partidos". '..

, b.· Segundo a gravat;ao: "urn socialismo que nao se estendesse paraalem das fronteiras nacionais". .

.'

tesa• E isso, nao por estratagema de seus chefes: 0

estratagema esta nas proprias coisas; e verdade,num certo sentido, que nao existe nos EstadosUnidos nenhuma simpatia pelo socialismo e que,se 0 sociailsmo~ ou implica uma mudan~aradicaldas rela~6es de propriedade, ele nao tern nenhu­rna chance de se instaurar 11 sombra dos EstadosUnidos, e podeao contrcirio, sob certas condi~6es,

encontrar apoio do ladosovietico. Mas tambem everdade que 0 regime economico e social da URSS,com sua diferencia~aosocial acentuada, sua mao"de-obra que lembra os campos de conce~tra~ao,

nao e e nao poderia tomar-se,. por si mesmo,aquilo quesempre se chamou de regime socialis­tao E e verdade, por .fun, que um socialismo quenao procurasse apoio fora das fronteiras da Fran­~ab seiia ao mesmo tempo impossivel e, por af

, _ mesmo, destituido de sua significa~ao humana..0')c.· ,at Estamos realmente no que Hegel-ehamava uma

;> situa~aodiplomatica, isto e, uma situac;:ao em que:: as palavras querem dizer duas coisas (H~lo m~nos)

rl e em que as coisas nao se deixam denominar paruma Unic(i palavra.

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74 CONVERSAS - 1948 MUNDO CLASSICO £ MUNDO MODERNO 75

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nao tornarem possfvel a supera<;ao desses dois sis­temas ambfguos'. Decidir de-cima, optar por urn

)0'; 'O'i' dos dois, sob 0 pretexto de que a razao enxerga a, . questao com dareza, em todo caso, e mostrar que

nos preocupamos menos com a razao operante e, ;i.;., ativa do que com uma fantasia de razao, que es­

.conde suas confus6es sob ares peremptorios. Amara razao, como Julien Benda - quererb 0 eterno,

I quando 0 saber descobre cada vez melhor a rea­lidade do tempo, querer 0 conceito mais daroe,quando a propria coisa e ambfgua, e a forma maisinsidiosa do romantismo, e preferir a palavra razaoao exercfcio da razao. Restaurar jamais e restabe­lecer, e mascarar.

E mais.Temos raz6es para perguntar a nos mes­mos se a imagem que muitas vezes 0 mundoclassico nos passa e algo mais do que uma lenda,se ele tambem nao conheceu a incompletude e aambigiiidade em que vivemos, se nao se conten­tou com recusar-Ihes a existencia oficial ese, con-

• seqiientemente, longe de ser urn caso de decaden­cia, a incerteza de nossa cultura nao e, antes, aconsciencia mais aguda e mais franca do que sem-

a. Segundo a' grava~ao: 110 curse das coisas e a consciencia dos ho­mens nao tomarem passivel algo alem desses dais sistemas ambfguos".

. b. Segundo a gravac;ao: "exigir". .c. Segundo a grava~ao: lIexigir a ideia clara",

pre foi verdade, portanto, e aquisi<;ao e nao declf­nio. Quando nos falam de obra classica como deuma obra acabada, devemos lembrar-nos que Leo­nardo daVmci e muitos outros deixavam obras ina­cabadas, Balzac considerava indefinfvel' 0 famosoponto de maturidade de uma obra e admitia que, arigor,o trabalho, que sempre poderia ser prosse­guido, s6 e interrompido para deixar alguma cla­reza 11. obra, que Cezanne, que considerava toda asua pintura como uma aproxima<;ao do que elebuscava, fornece-nos contudo, mais de uma vez, 0

sentimento de acabamento ou de perfei<;ao.Talvezseja por uma ilusao retrospectiva - porque a obraesta longe demais de nos, e demasiado diferentede n6s para que sejamos capazes de retoma-la eprossegui-la - que encontramos uma plenitude in­superavel em certaspinturasb: os pintores que asexecutaram nelas so viam tentativa ou fracasso. Fa­lavamos ha pouco das ambigilidades de nossa si­tua<;ao polftica, como se todas as situa<;6es polfti­cas do passado, em sua epoca, nao comportassemtambem contradi<;6es e enigmas comparaveis aosnossos - por exemplo, a Revolu<;ao Francesa e mes­mo a Revolu<;ao Russa em seu perfodo-"classico",

a. Segundo a gravac;ao: Mindiscemivel/.b. Segundo a gravac;ao: Uencontramos em certas pinturas urn ar de­

finitive".

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78 CONVERSAS - 1948 BIBUOGRAFIA 79

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Le Primal de la perceplion el ses consequences philosophiques,(conferencia de 23 nov. 1946, Bullelin de la Socii!tl! Frant;aise dePhilosoph ie, t. XLI, n.o 4, out.-dez. 1947); precedido dos textos de1933: "Projet de travail sur la nature de la Perception" e de 1934:"La Nature de la perception", Grenoble, Cynara, 1989 [trad. bras.Primado da percep¢o e suas consequiincias filos6ficas. Campinas,Papirus, 1990].

La Nature, notas dos alunos dos cursos "Le concept de natu­re" de 1956-1957 e 1957-1958 e transcri<;aesdas anota<;aes doscursos de 1959-1960 "Nature et logos: Ie corps humain", ed. de D.Seglard, Paris, Le SeuiI, 1995 [trad. bras. A natureza, org. Domini­que Seglard, Sao Paulo, Martins Fontes, 2000].

Noles de cours (1958-1959 et 1960-1961), prefacio de ClaudeLefort, editado por Stephanie Menase, Paris, Gallimard, 1996.

"Notes de lecture et commentaires sur Theorie du champ de laconscience de Aron Gurwitsch", apresenta<;ao e transcri<;ao S. Me-

nase, Revue de mi!taphysique el de morale, n.O 3, setembro de 1997,pp.321-42.

Parcours, 1935-1951, coletanea coligida e organizada por Jac­ques Prunair, Lagrasse,Verdier, 1997.

Noles de cours sur I.:Origine de la geometrie de Husserl, edi<;aode Franck Robert, Paris, PUP, 1998.

Parcours deux, 1951-1961, coletanea estabelecida por JacquesPrunair, Lagrasse, Verdier, 2001.

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76 CONVERSAS - 1948

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.'

ate a morte de Lenin. Se isso e verdade, a cons­ciencia "modema" nao teria descoberto uma ver­dade modema, mas uma verdade de todos os tem­pos' apenas mais visivel hoje e levada asua maisalta gravidade. E essa clarividencia maiar, essaexperiencia mais integral da contesta~aonao e 0

comportamento de uma humanidade que se de­gradaa

; e 0 comportamento de uma humanidadeque nao vive mais por alguns arquipelagos ou pro­montorios, como viveu por muito tempo, masconfrol1ta a si mesma de urn extremo a outro domundo, dirige-se ela mesma a si mesma integral~

mente pela cultura ou pelos livros... No imediato,a perda de qualidade e manifesta, mas nao pode­mos remediar isso restaurando a humanidade es­treita dos classicos. A verdade e que 0 problemapara nos e fazer, no nosso tempob e por meio denossa propria experiencia, 0 que os classicos fi­zeram no tempo deles, como 0 problema de Ce­zanne era, segundo seus proprios termos, "fazerdo impressionismo algo solido como a arte dosmuseus"4.

a. Segundo a grava\,ao: He essa maior clarividencia; essa experienciamais integral da contesta\,ao entre os modemos nao e 0 comportamentode urna humanidade que se degrada [...J."

b. Segundo a gravac;ao: II averdade e, provavelmente, que se trata paranos de fazer no nosso tempo [...]."

4. Joachim Gasquet, cezanne, op. cit., p.148.A cita,ao exata e: "fazer doimpressionismo alga solido duravel como a arte dos museus".

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Page 49: MERLEAU - PONTY. Conversas, 1948

\

fNDICE oNoMAsnco

Bach (1685-1750),63.Bachelard (1884-1962),26,39.Balzac (1799-1850), 75.Benda (1867-1956), 9, 74.Blanchot (nascido em 1907),

53,65.Braque (1882-1963), 55, 58.Bremond (1865-1933), 64.Breton (1896-1966), 27.Cezanne (1839-1906),12,22,

24, 55, 75-6.Chardin (1699-1779), 9.Gaudel (1868-1955), 23, 39.Debussy (1862-1918), 63.Descartes (15%-1650),3-4,27,

31-2. 40, 42-3, 46-7,68.Euclides (sec III a.c.), 11.Freud (1856-1939),38.Gasquet (1873-1921), 58.Giraudoux (1882-1944), 9.Goethe (1749-1832), 20.Gris (1887-1927), 55.Hegel (1770-1831), 72.

Kafka (1883-1924), 52-3.Kohler (1887-1967),37.Lautreamont (1846-1870),39.Leonardo da Vrnci

(1452-1519),75.Malebranche (1638-1715), 16-7,

40.Mallarme (1842-1898),63-5.Malraux (1901-1976), 9.Marivaux (1688-1763),9.Michotte, 36.Paulhan (1884-1968), 15.Picasso (1881-1973),9,55.Ponge (1899-1988),24-6.Poussin (1594-1665), 9.Proust (1871-1922), 69-70.Racine (1639-1699); 69.Rimbaud (1854-1891), 69.Sartre (1905-1980),21-5.Stendhal (1783-1842), 9.Valery (1871-1945), 64.Voltaire (1694-1778), 32. 52.

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Humanisme et terreur, essai sur Ie probleme communiste, Paris,Gallimard, 1947; reed. col. "Idees", prefacio de Oaude Lefort, 1980[trad. bras. Humanismo e terror, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1968].

Sens et non-sens (textes de 1945 11 1947), Paris, NageL 1948,reed. Paris, Gallimard, 1996.

Eloge de la philosophie (1953) et autres essais (1947-1959: reto­mada de artigos de Signes), Paris, Gallimard, 1953 e 1960; reed. col."Folio Essais", 1989.

Les Aventures de la dialectique, Paris, Gallimard, 1955; reed.col. "Folio Essais", 2000.

Collectif, Les Philosophes ce1ebres, editado sob a dire~ao deMaurice Merleau-Ponty, Paris, Mazenod, 1956.

Signes (textes de 194711 1960), Paris, Gallimard, 1960. [Trad.bras. Signos, Sao Paulo, Martins Fontes, 1991.]

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