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Universidade Federal de São Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências Programa de Pós-Graduação em Filosofia MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques SÃO CARLOS 2011

Merleau-ponty e a Crise Da Razão

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Tese de Doutorado de Rodrigo Vieira Marques (UFSCAR)

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  • Universidade Federal de So Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO

    Rodrigo Vieira Marques

    SO CARLOS 2011

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    MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO

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    Universidade Federal de So Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Cincias

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZO

    Rodrigo Vieira Marques

    Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos como parte dos requisitos para obteno do Ttulo de Doutor em Filosofia. Orientador: Dr. Richard Theisen Simanke.

    SO CARLOS 2011

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar

    M357mp

    Marques, Rodrigo Vieira. Merleau-Ponty e a crise da razo / Rodrigo Vieira Marques. -- So Carlos : UFSCar, 2012. 380 f. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2011. 1. Filosofia francesa. 2. Merleau-Ponty, Maurice, 1908-1961. 3. Fenomenologia. I. Ttulo. CDD: 194 (20a)

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    Dedico este trabalho minha famlia, solo fecundo e afvel no qual se encontram minhas razes.

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    AGRADECIMENTOS

    Em primeiro lugar, ao Dr. Richard Theisen Simanke, por sua orientao

    segura, valiosas sugestes e, principalmente, por sua considerao de que,

    antes de tudo, o pensamento uma experincia. Tambm ao Dr. Pascal

    Dupond, especialmente por ter possibilitado meu acesso aos inditos de

    Merleau-Ponty, alm de suas sugestes e cordial ateno. Por fim, a todos os

    que, direta ou indiretamente, propiciaram a percepo que fez nascer o

    presente trabalho.

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    Una est, quae reparet seque ipsa reseminet, ales: Assyrii phoenica uocant; non fruge neque herbis, sed turis lacrimis et suco uiuit amomi. [...] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae, ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore, quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra, [...] se super inponit finitque in odoribus aeuum. inde ferunt, totidem qui uiuere debeat annos, corpore de patrio paruum phoenica renasci; cum dedit huic aetas uires, onerique ferendo est, ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [...] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponit. (Ovdio). Nichts ist drinnen, nichts ist drauen, denn was innen ist, ist auen.(Goethe).

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    RESUMO

    Este trabalho parte de uma leitura da filosofia de Merleau-Ponty centrada na

    noo de Crise da Razo, fundamentando-se no pressuposto de que se

    trata de um conceito fundamental da fenomenologia contempornea. No

    pensamento cartesiano, j era possvel encontrar a ideia de crise, porm,

    tratava-se da constatao de uma crise das cincias. Algo semelhante

    havia tambm em Valry, especialmente ao se falar de uma crise do

    esprito. A novidade de Husserl estava justamente em mostrar que a crise,

    tal como ele a vivia, era mais profunda, abalava a prpria Razo. Este

    trabalho assume a tarefa de mostrar que, no se limitando a uma crise das

    cincias, do esprito ou da prpria Razo, Merleau-Ponty discute uma crise

    presente no prprio homem, ou antes, nos diversos pontos de vista que se

    tem a seu respeito. neste sentido que o seu projeto filosfico se

    fundamenta, em primeiro lugar, na tentativa de estabelecer um dilogo entre

    os pontos de vista da filosofia e da cincia. Por conseguinte, justifica-se uma

    investigao da divergncia destes pontos, procurando elucidar no s o

    cenrio no qual o conflito se encontra, mas tambm a sua gnese. Do mesmo

    modo, partindo de uma compreenso merleau-pontiana da crise, por fim,

    este trabalho assume tambm a tarefa de se indagar acerca da repercusso

    desta mesma crise na relao do saber filosfico consigo mesmo, logo, no

    modo da prpria filosofia entender a sua histria, estando, pois, a

    importncia desta incurso no ensejo de explicitar o que, para Merleau-

    Ponty, seria uma possvel via de superao.

    Palavras-chave: Filosofia Francesa. Maurice Merleau-Ponty. Fenomenologia.

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    ABSTRACT

    This work takes its point of departure in Merleau-Pontys Philosophy,

    centered in the notion of Crisis of Reason, basing itself on the

    presupposition that this is a fundamental concept of contemporary

    phenomenology. In the Cartesian thought, already it was possible to find the

    idea of the crisis, however, it was the finding of a crisis of sciences.

    Something similar was also in Valry, especially when he speaks of a crisis

    of spirit. The novelty of Husserl was exactly in showing that the crisis, as he

    lived it, was deeper, shook the Reason itself. This work assumes the task of

    showing that, not limiting to a crisis of sciences, of the spirit or of Reason

    itself, Merleau-Ponty discusses a present crisis in the man himself, or rather,

    in the diverse points of view that has about him. In this sense, his

    philosophical project is based, primarily, on the attempt to establish a

    dialogue with the points of view of the philosophy and of the science.

    Therefore, an inquiry of the divergence of these points, is warranted,

    elucidating not only the scenario in which the conflict is, but also its genesis.

    Likewise, starting from a Merleau-Pontian understanding of the crisis,

    finally, this study also assumes the task of asking about the repercussions

    of this crisis in the relation of philosophical knowledge to itself, then, in the

    way of his own philosophy to understand its history, being, therefore, the

    importance of this incursion in the desire to explain what, according to

    Merleau-Ponty, would be a possible way of overcoming.

    Keywords: French Philosophy. Maurice Merleau-Ponty. Phenomenology.

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    RSUM

    Ce travail a son point de dpart dans la philosophie de Merleau-Ponty,

    centr dans la notion de Crise de la Raison , en sappuyant donc sur la

    prsupposition quelle sagit dun concept fondamental de la phnomnologie

    contemporaine. Dans la pense cartesienne, ctait dj possible de trouver

    lide de crise, cependant, elle sagissait de la constatation dune crise des

    sciences . Quelque chose de semblable se passait avec Valery, notamment

    quand il dit dune crise de lesprit . La noveaut de Husserl tait juste

    montrer que la crise, telle quil la vivait, tait plus profonde, brahlait la

    Raison elle-mme. Ce travail assume la tche de montrer que, en ne sen

    tenant pas une crise des science, de lesprit ou de la Raison elle-mme,

    Merleau-Ponty met en question une crise prsente chez lhomme lui-mme,

    dans les divers points de vue quon a sur lui. Cest pouquoi que son projet

    philosophique, tout dabord, se fonde sur la tentative dtablir un dialogue

    entre les points de vue de la philosophie et de la science. Une recherche de la

    divergence des ces points de vue, donc, elle se justifie en cherchant

    lucider non seulement le scnario dont le conflit se trouve, mais aussi la

    gnse de celui-ci. De mme, en partant dune comprhension merleau-

    pontienne de la crise, en fin de comptes, ce travail assume la tche de se

    demander sur la rpercussion de cette mme crise dans le rapport du savoir

    philosophique soi mme, donc, dans la manire dont la philosophie elle-

    mme comprendre son histoire, en tant, alors, limportance de cette

    incursion dans le dsir dexpliciter ce qui serait, daprs Merleau-Ponty, une

    possible voie de dpassement.

    Mots-cl: Philosophie Franaise. Maurice Merleau-Ponty. Phnomnologie.

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    SUMRIO

    INTRODUO .................................................................................... PRIMEIRA PARTE O MAL-ESTAR DA RAZO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA: O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS .................................................... Captulo I Da Crise do Esprito Crise da Razo: o Mundo-da-Vida ............................................................................................... 1.1. O mal-estar da Razo: A Crise do Esprito ............................. 1.2. A Fenomenologia e a Crise da Razo: os limites do

    cientificismo e o retorno ao Mundo-da-Vida ............................. 1.3. A Rckfrage e a reduo fenomenolgica: a Lebenswelt como

    proposta de superao do naturalismo, como Ursprungsklrung, como retorno ao mundo pr-copernicano ...

    Captulo II Os limites do Mundo Clssico e o Teatro Cartesiano: o problema da representao ............................................................. 2.1. Um ponto de partida: O mundo clssico e o mundo moderno .. 2.2. Descartes e o problema da representao: o

    operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis ..................... 2.2.1. O operacionalismo cartesiano e a identificao de lux e lumen . 2.2.2. A intuitus mentis e o positivismo da viso ............................... 2.2.3. A similitude e o arbtrio cartesiano do signo ............................ 2.2.4. Caminhos de desconstruo: a reabilitao do sensvel e o

    enigma do olhar ....................................................................... 2.2.4.1. A descorberta da afetividade das cores ............................... 2.2.4.2. Os limites da noo clssica de perspectiva ......................... 2.2.4.3. O enigma do olhar e os impasses da representao ............. 2.2.5. A transformao da luz natural e a releitura do Cogito ............ 2.3. A gnese da Crise nas relaes com a Natureza ...................... Captulo III O pseudocartesianismo e o Realismo Cientificista: o paradoxo do Menon ........................................................................ 3.1. Apresentao do problema: Descartes e o cientificismo ........... 3.2. A psicologia clssica o objetivismo cientificista ........................ 3.3. A tradio intelectualista e seus cenrios ................................. 3.4. As runas do pensamento e o conflito dos pontos de vista: a

    crise na compreenso do homem ............................................... 3.4.1. O conflito dos pontos-de-vista na compreenso do homem: a

    compreenso do intervalo do saber cientfico e do saber filosfico ...................................................................................

    3.4.2. A encarnao do sujeito e as faces da subjetividade encarnada: esquema corporal e corpo prprio ......................

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    SEGUNDA PARTE CRISE E FILOSOFIA: O SENTIDO DA FNIX .................. Captulo IV A Crise do Entendimento e o Sentido da Histria: a Historiografia Filosfica .................................................................. 4.1. A experincia filosfica da Verdade ......................................... 4.2. A crise do entendimento e os entraves da historiografia

    clssica: o problema da histria .............................................. 4.3. O horizonte intelectualista, de fundo cartesiano, presente na

    histria da filosofia: a ordem das razes Da leitura de Descartes historiografia filosfica ..........................................

    4.4. Merleau-Ponty e a Histria do Pensamento: a filosofia interrogativa, o impensado [das Ungedachte], o sentido da Fnix .......................................................................................

    4.4.1. Um ponto de partida: Da ordem das razes s razes da ordem a busca pelo sentido da ordem cartesiana ..............

    4.4.2. O entrecruzamento de objetividade e subjetividade: o impensado [das Ungedachte] ...................................................

    4.5. A experincia do pensamento nas trilhas de uma experincia da linguagem: a filosofia interrogativa, o sentido da Fnix ..................................................................................

    CONSIDERAES FINAIS ..................................................................... ANEXOS: A arqueoriginria Terra no se move E. Husserl (Traduo) .......... Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos K. Goldstein (Traduo) ...................................................................................... Textos de Candidatura ao Collge de France M. Merleau-Ponty (Traduo) ...................................................................................... Referncias ...................................................................................

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    INTRODUO A noo de crise, certamente, no um privilgio do

    pensamento contemporneo. Ao contrrio, ela oculta talvez uma pretenso

    que sempre tenha assombrado o saber filosfico, pretenso esta que os

    antigos poderiam chamar de [hybris], ou seja, uma excessiva

    confiana, um desmedido orgulho, semelhante iniciativa dos homens em

    querer superar o poderio dos deuses. Em que consistiria este

    desmensuramento? Onde estaria a ausncia de seu oposto, a saber, a

    virtuosa prudncia, aquilo que os romanos to bem nomearam bona mens, a

    capacidade do homem em reconhecer a sua prpria humanidade? Se

    pensarmos na insero deste termo no discurso positivista, podemos talvez

    compreender o sentido deste excesso. Trata-se justamente da crena ou do

    mito de que uma poca esteja isenta de conflitos, que seja possvel falar de

    uma passagem do caos ordem, ou melhor, que entre dois sistemas

    ordenados, podemos encontrar uma zona de transio catica, cujo

    ordenamento se dissipa no exato instante em que, mediante uma nova

    configurao, um outro ordenamento ocupe o seu lugar. Da o ensejo de

    romper, na histria, com toda e qualquer faixa de turbulncia, at que,

    magicamente, os conflitos sejam dissipados.

    Pensando assim, de certa forma, j no pensamento antigo, no

    encontraramos dificuldades em situar momentos de crise. O problema se

    agrava, contudo, quando no mais partimos do pressuposto de que a

    histria siga um movimento linear, deste modo, fundada em uma

    circularidade, as faixas de conflitos se converteriam antes em nervuras,

    viriam a impregnar cada linha que constitui a vivncia que se tem de cada

    momento, ou melhor, de cada acontecimento histrico. Qual seria, ento, o

    sentido de se falar em crise? Seguramente, no mais como a passagem da

    desordem ordem. Antes como o aceno de que, como no teatro, na

    emergncia de um novo drama, torna-se preeminente a mudana do cenrio.

    Pensando nestas consideraes, ao falar de uma crise das cincias, no era

    esta ideia o que Descartes tinha em vista, e cometeramos aqui at mesmo

    um equvoco, a legitimao de uma iluso retrospectiva, se lhe exigssemos

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    um compromisso com a circularidade da histria, ou mesmo, com a prpria

    histria, paisagem que lhe era desconhecida, terra estrangeira a que seu

    pensamento no chegara a avistar. Ao falar de crise, o que alimenta o

    pensamento cartesiano a constatao de que algo faltava s cincias de

    seu tempo. Partindo de uma unidade da sapientia humana, como confiar em

    uma construo projetada por vrios arquitetos? O que faltaria s cincias

    era o mesmo que nortearia os meandros do projeto filosfico de Descartes,

    ou seja, a descoberta de um fundamentum inconcussum capaz de lhe

    garantir a segurana to almejada. Neste alicerce inabalvel, repousaria o

    Cogito e suas certezas apodticas, frutos de um mtodo bem elaborado e

    dirigido pelos princpios da Razo. A crise tinha, pois, uma soluo: seguir

    os preceitos da Prima Philosophia, demonstrar s cincias, galhos de uma

    nica rvore, a necessidade de se nutrirem de uma mesma raiz, ou seja, da

    Metafsica conduzida pela luz natural.

    No caso de Valry, j tendo sido fundada a razo clssica, a crise

    parecia avanar um pouco mais adiante, ela quase invadia o terreno do

    Esprito. Curiosamente, neste caso, ainda no totalmente tematizada, mas

    ferozmente vivida, ser a prpria histria que incitar este sentimento: a

    Guerra, o assombro da contradio, a ameaa de uma eminente derrocada

    no s dos ordenamentos de uma poca, mas de seu saber. Porm, ao

    contrrio de um terremoto, a repecurso de um possvel abalo no poderia

    significar outra coisa que o esquecimento ou enfraquecimento desta prpria

    razo, ainda tida como legtima. Ao falar em crise, Valry apenas ressentia

    um tempo no qual as luzes do esprito comeavam a se esconder por trs

    das nuvens da ignorncia, do no-saber. O que caberia filosofia?

    Resguardar o seu tesouro, proteger-se e denunciar o que poderia vir a ser

    um crime de lesa-majestade. assim que a gerao de Merleau-Ponty, antes

    de ter sentido na carne as consequncias de uma Guerra, tambm iria viver

    este descompasso da Razo. Mas por que a Guerra? No seria confundir o

    conceito de crise, por sua vez, abstrato, com os infortnios dos

    acontecimentos? No seria alimentar o historicismo, ou antes, misturar o

    transcendental e o emprico? Nesta ressalva, j encontramos a resposta. Se a

    vivncia da Guerra comeava a afetar o terreno do Esprito, porque, de

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    fato, a crena que se tinha nele, de certa forma, ao menos nas paisagens de

    pensamento que procuramos descrever afinal, no nos esqueamos dos

    libertinos barrocos , no tinha um papel coadjuvante, mas principal,

    basilar. assim que, pouco a pouco, encontramos na compreenso do que

    antes era uma crise de valores, agravada pela desumanizao das relaes

    sociais e polticas, a clivagem para uma crise dos fundamentos que lhes

    serviam de alicerce. Quais seriam as consequncias disto?

    Em primeiro lugar, o sentimento de que, mais do que uma crise

    das cincias, o que emergia era uma crise da prpria Razo, ou melhor, de

    um determinado projeto de Razo. assim que, no pensamento husserliano,

    ir se configurar o sentimento de uma crise engendrada e agravada,

    especialmente, pelo desenvolvimento das cincias do homem e das cincias

    em geral. Seria o reconhecimento de uma zona de turbulncia, o

    engendramento do mito positivista? No caso da fenomenologia, a mudana

    de um cenrio que, por sua vez, no se concentrava em uma fase a partir da

    qual se anunciava uma evolutiva mudana, mas encontrava antes sua

    gnese na poca que lhe antecedera, da o sentido de uma arqueologia

    fenomenolgica da razo, um eclipse dos absolutos. Qual seria o papel da

    Filosofia? No caso de Husserl, fazer com que a Razo, comparada a uma

    Fnix, renascesse, porm, nas trilhas de um [tlos] que encontrava

    suas origens e projeto no pensamento grego. Seria esta a percepo que

    Merleau-Ponty tivera de sua poca? Ser assim que entender os abalos dos

    fundamentos da Razo atestados, na cincia em geral, pelos trabalhos de Le

    Roy e Duhem; nas cincias do homem, pelas pesquisas psicolgicas,

    sociolgicas e histricas; na filosofia, pelo ceticismo inserido pelo assdio do

    psicologismo, do historicismo e do naturalismo? No final das contas, como se

    daria a sua recepo da crise husserliana?

    Em um curso dado no Collge de France, ao pensar na ideia de

    crise, Merleau-Ponty procurava justamente elencar os seus rastros. Onde

    podemos encontr-la? Para o filsofo, haveria uma crise da racionalidade

    que se estabelecia nas relaes entre os homens, nas relaes com a

    Natureza, na experincia da verdade presente nas relaes entre a cincia e

    o mundo vivido e, por fim, na prpria filosofia e sua possibilidade

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    (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 40). Constantemente, nas Notes du Travail e

    nos Rsums des cours, Merleau-Ponty voltava-se para sua poca, procurava

    entender o seu tempo, e isto porque, ao perceber os limites da Metafsica,

    tinha, por pretenso, elaborar uma nova ontologia. Isso se torna clatant

    principalmente nas notas, ainda inditas, por ocasio de seus Projets des

    livres1. Em uma destas notas, encontramos uma indagao do filsofo que

    nos chama a ateno, trata-se de uma nota datada de 25 de setembro de

    1958, que, a nosso ver, constitui o corao de seus derradeiros projetos

    filosficos, assim como um caminho de leitura para os seus primeiros

    trabalhos. Encontramos ali uma pergunta acerca do sentido das runas, de

    uma Ruinenlandschaft unsere Tage ou confuso na qual se encontra o

    pensamento moderno, assim como expressa, nomeadamente, Eugen Fink ao

    afirmar que vivemos em runas de pensamentos (MERLEAU-PONTY,

    2000b, p. 299).

    Ora, sabemos que, de certo modo, a existncia de runas indica,

    sobretudo, os sedimentos e os despojos do que antes poderiam ter sido os

    monumentos de uma civilizao antiga. Esta imagem no gratuita em

    Merleau-Ponty (2000b, p. 40), ela faz parte daquele movimento arqueolgico

    que ele assumira como componente de seu mtodo filosfico.2

    Vislumbramos, todavia, nesta imagem, duas possibilidades de compreenso:

    runa pode significar tanto despojos ou destroos, quanto confuso,

    desordem, caos. O interessante que, neste caso, a confuso tem nos

    destroos o signo do que poderia ter sido a sua origem. Podemos falar,

    assim, que o filsofo denunciava, antes de tudo, uma proto-runa, uma

    arqui-runa, uma runa originante e originria das discordncias e confuses

    1 Algumas destas notas, arquivadas na Biblioteca Nacional da Frana, j foram transcritas por alguns pesquisadores da obra merleau-pontiana, dentre eles, Lefort, Barbaras e Dupond. Quando se tratar das notas ainda inditas, vale salientar que aqui seguiremos a transcrio de Dupond. Iremos identific-las como NBNF. Os smbolos [ ] fazem referncia paginao da Biblioteca, e os smbolos ( ) indicam a paginao segundo os manuscritos de Merleau-Ponty. 2 Cf. Merleau-Ponty (2000b, p. 40): Or, si la perception est ainsi lacte commun de toutes nos fonctions motrices et affectives, non moins que des sensorielles, il nous faut redcouvrir la figure du monde peru, par un travail comparable celui de larchologue, car elle est ensevelie sous les sdiments des connaissances ultrieures.

  • 18

    da filosofia consigo mesma e com as cincias. Como o interesse do filsofo

    no era indutivo, (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 25)3 o seu empreendimento

    s poderia beirar as tnues fronteiras entre epistemologia e ontologia, mais

    do que o pressuposto conflito j resolvido, em alguns comentadores do

    filsofo, sem nunca ter existido radicalmente na obra merleau-pontiana ela

    mesma entre fenomenologia e ontologia.4 O que constitui, portanto, esta

    proto-runa que tanto inquieta o filsofo? O que est, de fato, em jogo na

    constatao de que vivemos em runas de pensamentos (MERLEAU-

    PONTY, NBNF, [2], (1))? Qual seria a razo destas runas? No seria o

    sentimento de que a filosofia tem muito mais a investigar e a compreender

    do que a pergunta, constante entre alguns de seus contemporneos, se a

    verdade estaria com Toms de Aquino ou com Engels?5

    Para o filsofo, a nosso ver, no nada de outro que a iniciativa

    reflexiva em definir a filosofia em relao a certos seres, atitude esta

    presente no naturalismo, no humanismo e no tesmo, os quais, para

    Merleau-Ponty, nos escombros de uma crise da Razo, teriam perdido todo o

    seu sentido (MERLEAU-PONTY, NBNF, [4], (2)). Esta iniciativa desdobra-se

    no que se tornara um dos grandes alvos do dsaveu do filsofo: o neo-

    criticismo ou intelectualismo, especialmente na compreenso da

    subjetividade em sua relao com o mundo, e o operacionalismo

    3 Mais en mme temps, notre recherche demeure philosophique. Notre traitement des faits reste distinct du traitement inductif et scientifique. Il nest pas question pour nous de considrer la parole ou la pense comme la simple somme des faits de la langue ou des faits de pense, tels quils se sont produits ici ou l, telle date. En chacun deux, nou essayons de saisir ce qui reprend et sublime le prcdent, anticipe le suivant, lmergence dune structure, dune champ dexprience, qui en font, plus quun vnement, une institution. 4 A nosso ver, Merleau-Ponty no est preocupado em se situar seja no campo da fenomenologia, seja no da epistemologia, seja no da ontologia. Sua inteno fazer filosofia e filosofar atravessar todas essas provncias, haja vista que o que move a reflexo antes uma questo do que a legitimidade de um selo que confirme a participao em uma seita filosfica. 5 Lide quen France, aujourdhui, des tres humains se divisent sur la question de savoir si saint Thomas et Engels ont raison ou tor dans ce quils disent de la Nature cette ide me parat consternante quand on pense tout ce quil y a connatre ou comprendre. On ne peut en quelques mots esquisser une philosophie. Disons seulement quil faudrait une philosophie de ltre brut et non cette philosophie de ltre sage qui voudrait faire croire quil y a une manire de rendre le monde explicable et une tude attentive du sens, un autre sens que le sens des ides, un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses, quoi quil y paraisse et sy dveloppe pour peu que certains obstacles aient t levs. (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 299).

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    naturalista presente no tratamento das cincias6. No estaria na

    divergncia radical destas clivagens, em seus equvocos e paradoxos, mesmo

    indiretamente, um dos pressupostos e indcios do sentimento de crise que

    passaria a assediar epistemologicamente e filosoficamente o sculo XX? Do

    mesmo modo, conforme indicamos, se o naturalismo, o humanismo e o

    tesmo perderam toda a significao em nossa cultura (MERLEAU-PONTY,

    2000a, p. 219), se todas essas concepes no deixam de imiscuir-se umas

    nas outras (MERLEAU-PONTY, 2000a, p. 219), fazendo, pois, do problema

    ontolgico um problema dominante, o que resta a um pensamento

    conduzido pelas categorias do mundo clssico? Como sair deste labirinto?

    Onde estaria o fio de Ariadne?

    Para Merleau-Ponty, no estaria na tentativa de to-somente

    denunciar os limites da cincia, nem muito menos no ensejo de recuperar o

    que seria um autntico projeto de Razo e seu [tlos]. Da que a prpria

    noo de crise, ao ter sido direcionada para o conflito dos pontos de vista

    que se tem acerca do homem, deveria ela mesma sofrer um eclipse,

    convertendo-se na oportunidade de reencontro daquilo que,

    verdadeiramente, encontra-se nas fibras da prpria Razo, portanto, da

    possibilidade que se abre filosofia de repensar a si mesma e de rever, em

    sua ontologia, suas relaes com as outras cincias e saberes, voltando-se,

    pois, para o fundo de silncio do qual ela mesma emergira, ou seja, para

    uma experincia prvia do mundo. Seria ali que, para Merleau-Ponty,

    poderamos encontrar o fio de Ariadne a nos guiar nos labirintos construdos

    pela metafsica clssica. Ora, pensando neste modo de encarar a crise, de

    purificar suas pretenses positivistas, empreendimento de

    6 Nisto estaria, inclusive, aquilo que, mutatis mutandis, segundo Horkheimer, deve ser entendido como uma espcie de doena da Razo: Se fssemos falar de uma doena afetando a razo, essa doena no deveria ser entendida como tendo acometido a razo em algum momento histrico, mas como inseparvel da natureza da razo na civilizao, tal como a conhecemos at ento. A doena da razo consiste no fato dela ter nascido da necessidade humana de dominar a natureza... (HORKHEIMER, 1947, p. 176). Neste sentido, Horkheimer acrescentaria at mesmo que se poderia dizer que a loucura coletiva que hoje se estende dos campos de concentrao at as aparentemente mais inofensivas reaes da cultura de massas j estava presente, em germe, na objetivao primitiva, na primeira contemplao calculadora do mundo pelo homem (HORKHEIMER, 1947, p. 176).

  • 20

    [Ktharsis] que teve seu incio no pensamento husserliano, que

    procuraremos estruturar o nosso trabalho.

    O nosso texto se encontra subdivido em duas partes. Na

    primeira parte, que dispomos em trs captulos, tratamos do que seria um

    mal-estar da Razo, presente em uma espcie de eclipse dos absolutos e

    a proposta de um retorno ao Mundo-da-vida, finalizando com a tematizao

    da crise que, no entender de Merleau-Ponty, estaria presente, conforme j

    indicamos, no conflito dos pontos de vista da cincia e da filosofia, tal como

    se manifesta na compreenso do homem. Na segunda, formada por um

    captulo, versamos sobre a relao existente entre Crise e Filosofia. Qual

    ser o percurso que iremos percorrer em cada parte? Primeiramente, vale

    lembrar que no nos pautaremos aqui, na disposio das questes que

    procuraremos elucidar, na rgida obedincia do que seriam as mutaes

    sofridas pelo pensamento de Merleau-Ponty desde La Structure du

    comportement at Le Visible et lInvisible, desobrigando-nos da necessidade,

    presente em alguns leitores do filsofo, de estabelecer um quadro evolutivo

    cujas restries impossibilitariam um dilogo presente dentre os diversos

    momentos da obra. De modo diverso, partiremos antes do que, ao longo de

    sua filosofia, parece unir cada momento de seu projeto, no nos parecendo a

    ideia de evoluo apropriada ao seu modo de filosofar. Evidentemente,

    certo que, por exemplo, a noo de conscincia perceptiva, nos ltimos

    trabalhos, perde o seu espao para o que nos revela a f perceptiva que nos

    une ao mundo. No entanto, tendo por centralidade os problemas filosficos,

    e no a ciso fenomenologia e ontologia, o que procuraremos mostrar

    justamente o modo pelo qual elas se integram no pensamento de Merleau-

    Ponty.

    partindo deste pressuposto que, na primeira parte,

    notadamente no terceiro captulo, ao tratar da crtica, feita pelo filsofo, ao

    pensamento cartesiano, tentaremos integrar La Structure du comportement e

    Lil et lesprit, ou antes, mostrar como neste ltimo texto, ao contrrio de

    se tratar to-somente de uma filosofia da arte, o que encontramos o ensejo

    de desconstruo do complexo ontolgico no qual fomos relegados pelo

    pensamento cartesiano. Assim sendo, apresentando o dilogo de Merleau-

  • 21

    Ponty com Husserl, desejamos explicitar o modo como se dar, no filsofo, a

    recepo da Krisis, contrapondo, por conseguinte, o itinerrio que cada um

    deles percorrer na elucidao etiolgica dos descompassos nos quais se

    encontra a Razo. assim que, enquanto Husserl privilegia o projeto de

    matematizao de Galileu, Merleau-Ponty opta por um dilogo com

    Descartes e com a tradio cartesiana. No entanto, nem por isso havendo

    um descompasso radical, apesar de algumas divergncias no que se

    refere a certos aspectos da genealogia da lgica, antes vinculadas, a nosso

    ver, ao que constitui o projeto de cada filsofo , e isto quando o que est em

    jogo o convite a uma experincia prvia do mundo, da o dilogo que se

    estabelece, no primeiro captulo, entre a Rckfrage husserliana e a verso

    merleau-pontiana da Ursprungsklrung, em outros termos, o mundo pr-

    copernicano e a Natureza, tambm chamada por Merleau-Ponty,

    especialmente nos inditos, como mundo do silncio. No segundo captulo,

    trataremos tambm do que seria, em Descartes, o positivismo da viso, a

    passagem da viso dos olhos para a intuitus mentis, para o olhar do

    Esprito, no deixando de contrapor, pois, o modo como Merleau-Ponty ir

    encarar estas questes. A partir disto, procuraremos mostrar o vnculo que

    se estabelece entre Descartes e a cincia clssica, o Grande e o Pequeno

    Racionalismo, descrevendo, portanto, o que, para Merleau-Ponty, seria a

    gnese da crise no dilogo com as cincias.

    Tendo por referncia estas consideraes, centraremo-nos no

    que, de acordo com Merleau-Ponty, viria a constituir uma crise na

    compreenso do homem. Ser a este desfeixo que conduzir os captulos

    anteriores. Comearemos, pois, mostrando a proposta merleau-pontiana de

    um dilogo entre filosofia e cincia, e isto mediante um solo que lhes

    comum, uma espcie de terceira dimenso entre um discurso em primeira

    pessoa e um discurso em terceira pessoa. Por fim, a partir da compreenso

    de uma subjetividade encarnada, especialmente na Phnomnologie de

    perception, o nosso objetivo ser o de mostrar, entre filosofia e cincia, a

    compreenso merleau-pontiana acerca do homem, privilegiando as noes

    de esquema corporal e corpo prprio como as duas faces de uma mesma

    experincia corporal, logo, inserindo a compreenso do homem, na condio

  • 22

    de ser encarnado, dotado de corpo, que seu prprio corpo, no entre-deux de

    um dilogo com o que a cincia moderna nos apresenta sobre o esquema

    corporal e a filosofia nos diz sobre a vivncia do corpo prprio. Na

    compreenso do humano, segundo Merleau-Ponty, no lhe haveria um saber

    que servisse de via nica, mas um conjunto de pontos de vistas a nos revelar

    as vrias faces do fenmeno humano, o modo originrio de uma

    subjetividade encarnada que est no mundo, que o habita, tem a sua carne

    entrelaada com a prpria carne do mundo, o que, a nosso ver, expressa

    justamente, na ruptura com a concepo cartesiana de homem, presente na

    gnese da crise, o que poderia vir a ser uma via de superao.

    Na segunda parte, o foco ser a descrio do que, para alguns

    dos contemporneos de Merleau-Ponty, seria a presena da crise no prprio

    exerccio filosfico, na relao da filosofia consigo mesma e,

    consequentemente, com sua prpria historiografia. Como partimos do

    pressuposto de que a crise na filosofia seja antes a crise de um certo modo

    de filosofar, consideraremos o que, para o filsofo, viria a constituir um dos

    embaraos da historiografia filosfica, presentes no que seria o modo de

    compreender a histria do pensamento. Da o direcionamento, no quarto

    captulo, ao horizonte aberto pela indagao de que compreenso de histria

    se efetivaria na historiografia filosfica e seus meandros, e isto no intuito de,

    em seguida, tomando como referncia a crtica de Merleau-Ponty ao mtodo

    estrutural-gentico de Guroult, tentar encontrar os rastros destas questes

    na histria do pensamento, ao menos os de um determinado modelo

    historiogrfico, aquele que nos poderia remeter s questes que se

    encontram na gnese de uma Crise da Razo. assim que notamos em

    Merleau-Ponty, na leitura de Descartes, no a legitimao inquestionvel de

    uma ordem das razes, mas a busca do que seria, na obra cartesiana, as

    razes da ordem, o que nos possibilitaria explicitar, na compreenso

    merleau-pontiana da historiografia filosfica, em conformidade com uma

    histria viva e suas astcias, uma histria vertical, por conseguinte, a

    compreenso da experincia filosfica como a busca de um impensado, e

    no, sendo isto o que justamente se nega, uma dissecao de estruturas

    explcitas no encadeamento das ideias de um texto. Este modelo de leitura se

  • 23

    enquadra nos horizontes de uma crise da filosofia no para to-somente

    confirm-la, mas precisamente para explicitar que o que realmente poderia

    condenar a filosofia ao nons-sens seria justamente o esquecimento de que

    ela , sobretudo, interrogao, o que no conduz ao relativismo da leitura,

    mas, pelo contrrio, abertura do texto a uma experincia viva entre o leitor

    e o escritor, a subjetividade do filsofo que estudamos e a nossa

    subjetividade, o que no significa desrespeitar as suas ideias, mas convid-

    las a um dilogo, buscando reencontr-las como momentos de uma vida

    pensante, uma vez que, o contrrio, seria releg-las respeitosa, majestosa

    e cruel indiferena da biblioteca. Em suma, para Merleau-Ponty, quando nos

    contentamos a dizer de um filsofo apenas aquilo que este mesmo filsofo

    gostaria que dissssemos, perdemos, efetivamente, o que seria uma histria

    autntica do pensamento, esquecemo-nos de que suas ideias tambm se

    encontram na tradio que com ela tentara dialogar.

  • 24

    PRIMEIRA PARTE O MAL-ESTAR DA RAZO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA:

    O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS

  • 25

    CAPTULO I DA CRISE DO ESPRITO CRISE DA RAZO:

    O MUNDO-DA-VIDA Maintenant, sur une immense terrasse dElsinore, qui va de Ble Cologne, qui touche aux sables de Nieuport, aux marais de la Somme, aux craies de Champagne, aux granits dAlsace, lHamlet europen regarde des millions de spectres (VALRY, 1943, p. 993). Tendo ns prprios vivido duas ou trs crises profundas de nosso modo de pensar a crise dos fundamentos e o eclipse dos absolutos matemticos, a revoluo relativista, a revoluo quntica , tendo sofrido a destruio de nossas antigas ideias e feito o necessrio esforo de adaptao s ideias novas, estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polmicas de outrora

    (KOYR, 1991, p. 13).

    1.1. O mal-estar da Razo: a Crise do Esprito

    O historiador do pensamento francs, Castelli Gattinara, ao

    tratar do perodo do entre-guerra, inicia seu texto com a bela frase de Valry:

    ns, as civilizaes, sabemos agora que somos mortais.7 Trata-se da frase

    de um texto de 1919, La crise de lesprit. No entanto, acompanhando vis--

    vis as reflexes de Valry, que podemos melhor compreender os sentimentos

    de espanto e de indagao que ele procura expressar. Neste sentido ainda,

    ao pensar em outros filsofos, especialmente nos que iriam viver os

    paradoxos e desdobramentos desta poca, a ideia de crise parece-nos, mais

    do que uma inveno ou uma especulao intelectual, a vivncia do

    crepsculo de certezas, at ento inquestionveis, a demolio de paisagens

    de pensamentos, cujas runas deixaram marcas indelveis no imaginrio

    europeu. Ora, pensando na filosofia de Merleau-Ponty, no seria entre essas

    trincheiras e abalos ssmicos de uma crise dos fundamentos ou, conforme

    veremos, de uma determinada concepo de razo, que a encontraramos?

    No estaria o filsofo tambm, mutatis mutandis, em um dilogo

    epistemolgico com as questes inerentes, conforme expresso de Koyr, a

    7 Nous autres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles (VALRY, 1943, p. 988).

  • 26

    uma espcie de eclipse dos absolutos? Aqui se encontra, pois, uma das

    pretenses de nossa tese, pretenso que talvez nenhuma novidade encerre

    em si, a saber, a ideia de que no compreende bem o projeto filosfico de

    Merleau-Ponty quem desconsidera sua pertena experincia e ao

    imaginrio de uma crise da Razo, ou como diria Gattinara, das diversas

    crises que passaram a assolar o pensamento clssico e seus sonhos,

    cabendo-nos, contudo, a tarefa de tentar explicitar, por sua vez, o sentido e o

    peso que essa ideia tivera em seu pensamento (GATTINARA, 1998).

    A intrigante frase de Valry, ao falar de uma crise do Esprito,

    apesar de seu peso semntico, insere-nos ainda nas perspectivas de um

    modo bastante francs de se encarar o problema que eclodia e se

    manifestava com a emergncia, cada vez mais crescente, de um estado de

    desrazo, da haver crises e no a Crise , da a crise francesa no ser

    a Krisis alem, dado que cada um a viveria da sua maneira.8 Valry parece

    nos dizer que, at ento, nunca se tinha tido o sentimento, e de um modo

    to trgico, de que a Europa poderia ter o mesmo destino das antigas

    civilizaes, que seus autores mais clebres poderiam ter seus escritos

    transformados em miragens, em enigmticos fragmentos, tais como as

    comdias de Menandro. Apesar da multiplicidade de crises que afloram em

    vrios setores, segundo o poeta, o que afligiria a alma europeia seria aquela

    que se sucederia no prprio mbito do esprito, ali ela seria muito mais

    intensa. Logo, no sem sentido que ele nos dir que a [...] a crise

    intelectual, mais sutil, e que, por sua prpria natureza, toma as aparncias

    mais enganadoras (porquanto se passa no reino mesmo da dissimulao),

    esta crise deixa dificilmente apreender o seu verdadeiro ponto, a sua fase

    (VALRY, 1943, p. 990). Mantendo ainda uma simpatia por uma concepo

    clssica de razo, a percepo da crise ainda era a percepo de to-somente

    uma fase crtica, na qual ningum pode dizer aquilo que amanh estar

    8 Cest le paradoxe de la crise : on est certain de lincertitude. Mais cest aussi ce qui lui permet de se manifester de diverses faons, de sarticuler selon des conjonctures historiques et gographiques particulires. Parce que la crise franaise nest pas la Krisis allemande. Ce que lon dfinit dhabitude comme la pense de la Krisis dans ce chaos gnial que fut la Mitteleuropa ne recouvre pas en effet totalement ce qua t la problmatique de la crise en France durant la mme priode.(GATTINARA, 1998, p. 23).

  • 27

    morto ou vivo em literatura, em filosofia, em esttica. Ningum sabe tambm

    quais ideias ou quais modas de expresso estaro escritas na lista de

    perdas, quais novidades sero proclamadas (VALRY, 1943, p. 990). Sendo

    assim, em um trecho que consideramos fundamental, apesar de longo,

    Valry nos d, independente de seu modo de interpretar essa crise do

    esprito, um diagnstico muito claro do que se passava:

    A esperana, certamente, permanece e canta a meia voz: Et cum vorandi vicerit libidinem/ Late triumphet imperator spiritus [Vencedor do apetite voraz, que o esprito soberano estenda longe o seu triunfo]. No entanto, a esperana apenas a desconfiana do ser em relao s previses precisas de seu esprito. Sugere que toda concluso desfavorvel ao ser deve ser um erro de seu esprito. Os fatos, todavia, so claros e impiedosos. H milhares de jovens escritores e de jovens artistas que esto mortos. H a iluso perdida de uma cultura europeia e a demonstrao de impotncia do conhecimento em saber o que quer que seja; h a cincia atingida mortalmente em suas ambies morais, e como desonrada pela crueldade de suas aplicaes; h o idealismo, dificilmente vencedor, profundamente ferido, coberto de crimes e de erros; a cobia e a renncia igualmente ridicularizadas; as crenas confundidas nos campos, cruz contra cruz, [lua] crescente contra [lua] crescente; h os prprios cticos desconcertados por acontecimentos to repentinos, to violentos, to comoventes, e que brincam com os nossos pensamentos como o gato brinca com o rato, os cticos perdem suas dvidas, as encontram, as perdem, e no sabem mais se servir do movimento de seu esprito. A oscilao do navio foi to forte que os candeeiros mais suspensos chegaram a derramar (VALRY, 1943, p. 990-1)

    Contudo, poderamos nos indagar, como a filosofia francesa

    respondera a essas questes? No que diz respeito cincia, vale salientar o

    contrapeso e a importncia que teve, nesta poca, a insurreio de uma

    filosofia do esprito. contra essa cincia ferida moralmente, contra a

    aplicao no questionada de suas formulaes, contra a estreita viso de

    cincias como a fisiologia e psicologia nascentes9, que se levantaram as

    diversas verses do espiritualismo francs. As divergncias nasciam a partir

    da convico de que tais pressupostos no condiziam com o que prprio da

    9 contra um discurso da exterioridade que deixa escapar a pergunta pelo homem e seu sentido, contra um tempo que, esquecendo-se de se comprometer com a verdade, caracterizava-se, conforme Le Senne, por uma monstruosa aliana entre cincia e Estado: aquela fornece o conhecimento tcnico e este o torna o instrumento de seu capricho desptico (LE SENNE, 1951, p. XVIII).

  • 28

    filosofia francesa10. No entanto, mesmo colocando-se, de imediato, como a

    resposta da filosofia francesa aos ataques do cientificismo e aos horrores da

    Guerra, o espiritualismo tinha tambm, em seu calcanhar de Aquiles, a

    defesa de uma certa tradio cartesiana, no chegando, por conseguinte, a

    alcanar todos os sentidos e consequncias de um retorno experincia

    humana. Deste modo, no procurando desconstruir os princpios que

    alimentavam as ideias de seus antpodas, por fim, acabaram por

    compartilhar dos mesmos prjugs que pensavam ter superado. Talvez neste

    ponto, na falta de explicitao das prprias fibras de um posicionamento

    contra o esquecimento da condio humana, encontrava-se a razo pela

    qual, para Valry, o peso da crise se articulava no modo como essa mesma

    crise encontrava o esprito, o estado intelectual de um tempo que, mesmo

    no ousando histori-lo, o poeta esboara, em poucas linhas, a sua

    fisionomia: trata-se de um tempo complexo, carregado de informaes e de

    conhecimento de todas as ordens que se entrecruzam, cuja desordem

    encontra-se justamente na livre coexistncia em todos os espritos

    cultivados das ideias mais dessemelhantes, dos princpios de vida e de

    conhecimento mais opostos (VALRY, 1943, p. 992). Em outros termos, na

    raiz dos problemas, encontramos como originante o modernismo ao qual a

    Europa se entregou.11 frente a essa confuso, aquela que permitia em

    10 No dizer de Lavelle, [...] por excelncia, uma filosofia da conscincia (LAVELLE, 1942, p. 7) e, como tal, possui em si [...] um aspecto metafsico e um aspecto psicolgico que ela no pode separar um do outro (LAVELLE, 1942, p. 8). Com efeito, preciso negar a ideia de um esprito entendido a partir de sua capacidade de autoproduo. Como acentua Lavelle: preciso comear chegando a um consenso em torno de trs pontos essenciais que permitem perceber o que se deve entender pela palavra esprito. O primeiro que o esprito uma atividade, alis, a nica atividade que merece propriamente este nome, sendo toda atividade material antes causada e sofrida do que causadora e agente. (...) O segundo ponto que o esprito no absolutamente, como se cr, uma obscura espontaneidade da qual nos limitamos a conhecer os efeitos, sem nada saber do poder que possui e que se exerceria fora de ns e sem ns. (...) O terceiro ponto, finalmente, permite reavaliar e estender o sentido da palavra experincia que, todavia, foi reservada por muito tempo experincia do objeto (LAVELLE, 1942, p. 268-9). 11 Je ne dteste pas de gnraliser la notion de moderne et de donner ce nom certain mode dexistence, au lieu den faire un pur synonyme de contemporain. Il y a dans lhistoire des moments et des lieux o nous pourrions nous introduire, nous modernes, sans troubler excessivement lharmonie de ces temps -l, et sans y paratre des objets infiniment curieux, infiniment visibles, des tres choquants, dissonants, inassimilables. O notre entre ferait le moins de sensation, l nous sommes presque chez nous. Il est clair que la Rome de Trajan, et que lAlexandrie des Ptolmes nous absorberaient plus facilement que bien des localits

  • 29

    um nico livro encontrarmos os ecos dos bals russos, de Pascal, de

    Nietzsche, de Rimbaud, da pintura, da cincia etc. que surge, apesar de

    alguns contra-sensos, uma das mais belas imagens de Valry: o Hamlet

    europeu que observa milhares de espectros, o Hamlet intelectual que medita

    sobre a vida e a morte das verdades, que medita tendo, em suas mos,

    crnios ilustres como os de Leonardo da Vinci, de Leibniz, de Kant, de Hegel,

    de Marx e de tantos outros. Crnios que, por sua vez, ainda refletem seus

    sonhos, ou melhor, os sonhos da razo, os mesmos que, paradoxalmente,

    pensando na pintura de Goya, poderamos dizer, podiam ocultar e suscitar

    monstros. Caminhando entre os abismos da ordem e da desordem, o

    Hamlet valeriano certamente no poderia abandonar seus crnios sob pena

    de deixar de ser o que se . O que fazer? As ltimas palavras de Valry,

    nesta carta, parece-nos indicar o que, para ele, poderia ser um possvel

    caminho:

    Adeus, fantasmas! O mundo no precisa mais de vocs. Nem de mim. O mundo que batiza com o nome de progresso sua tendncia a uma nitidez fatal, busca unir aos benefcios da vida as vantagens da morte. Uma certa confuso reina tambm, mais ainda um pouco tempo e tudo se esclarecer; ns veremos, enfim, aparecer o milagre de uma sociedade animal, um perfeito e definitivo formigueiro (VALRY, 1943, p. 994).

    O paradoxo da crise, aquele que, conforme Gattinara, trata-se

    da certeza de que no se tem certezas , evidenciava que a certeza com a

    qual se pensava a Verdade como algo que seria preciso desvelar

    substituda, cada vez mais, pela inquietude frente a uma verdade por

    construir e, portanto, impossvel de alcanar, posto que apenas um

    horizonte ideal (GATTINARA, 1998, p. 25). Da a afirmao de Bachelard:

    no final do ltimo sculo, acreditava-se ainda no carter empiricamente

    unificado de nosso conhecimento do real (BACHELARD, 1970, p. 11). Em

    concomitncia com a crise da concepo clssica de razo, podemos notar

    moins recules dans le temps, mais plus spcialises dans un seul type de moeurs et entirement consacres une seule race, une seule culture et un seul systme de vie. (VALRY, 1943, p. 992).

  • 30

    que no s os saberes, mas o prprio eu perde sua unidade; a razo

    categorial torna-se uma pretenso ingnua ou uma iluso histrica; os

    fundamentos se abalam e faz da estabilidade tambm uma iluso; o

    abandono da materialidade das coisas perde-se em proveito do vazio

    mascarado pela linguagem e pelo devir fantasmagrico das palavras;

    resumindo, o fio de Ariadne se perde. Logo, justifica-se o fato de

    encontrarmos uma mesma experincia, embora vivida em cada um de um

    modo diverso, e, por conseguinte, os grandes signos do declnio, a Grande

    Guerra, o prprio termo crise, os problemas da linguagem e do signo, o

    sentimento de um mal de mar em terra firme, que Kafka descreveu, mas

    que se encontra um pouco por toda parte (GATTINARA, 1998, p. 27). Ora,

    ser essa tambm a percepo da gerao de Merleau-Ponty, teria ela ido

    alm das constataes do Hamlet valeriano? Quanto a isso, nos dir

    Gattinara:

    [...] Enquanto as geraes de Brunschvicg e de Valry tentavam salvar o que pode ser, manifestando uma simpatia indiscutvel pela certeza da razo clssica, a gerao de Bachelard, De Broglie e Aragon encara a crise como uma revoluo na qual preciso dar uma coerncia ao discurso das cincias. As cincias e a razo cientfica podem ser salvas se as fundarmos na crise, no movimento de multiplicao que a determina, no problema (problemas) que suscita e, portanto, em ltimo caso, no incerto. A crise pode ser definida como uma luta que faz triunfar a precariedade e a mudana sobre a estabilidade [...] (GATTINARA, 1998, p. 28).

    a partir desta mudana que, segundo o historiador, a

    eternidade cede seu lugar a um tempo precrio (vergnglich), entrelaado,

    uma mistura de experincia e espao, que a evidncia cartesiana se

    converte em uma iluso, que se torna possvel seguir o movimento por mais

    desordenado e labirntico que seja (GATTINARA, 1998, p. 29). Mas, no

    estaria tambm a filosofia de Merleau-Ponty em meio a essas constataes,

    indagaes, hesitaes e perspectivas que marcariam a gerao de

    Bachelard, De Broglie e Aragon? O que nos diz Merleau-Ponty sobre os

    percalos filosficos originados pela derrocada de um esprito absoluto?

    Certamente, os seus primeiros trabalhos versam justamente sobre esta

    questo. Contudo, gostaramos de nos centrar em um nota da

  • 31

    Phnomnologie de la perception. Ali, a partir de uma crtica endereada

    especialmente a Alain e Lagneau, filsofos tidos geralmente como integrantes

    do espiritualismo francs, de modo particular, no que diz respeito ao

    posicionamento da anlise reflexiva frente percepo, parece que se

    delineiam algumas pistas para a resposta que procuramos. Encontramos ali

    um breve esboo dos impasses criados por uma concepo equivocada do

    esprito, o que talvez tambm esteja na gnese do que viria a ser a sua

    crise, no caso, a crise do esprito. O interessante da crtica de Merleau-

    Ponty no est simplesmente na explicitao dos equvocos presentes nas

    concepes destes filsofos, mas no sentimento presente neles de que aquilo

    que eles postulavam, a saber, a ideia de uma conscincia absoluta, poderia

    no conter toda a verdade. J no seria este sentimento o pressentimento de

    algum declnio?

    Ao se tratar o sujeito como um naturante universal, um

    esprito absoluto, o que restaria, ao esprito, seria to-somente [...] o

    sistema da experincia, compreendido a meu corpo e meu eu emprico,

    ligados ao mundo pelas leis da fsica e da psicofisiologia (MERLEAU-PONTY,

    1999, p. 618-9). assim que o pensamento reflexivo acaba por ocultar [...]

    o n da conscincia perceptiva porque investiga as condies de

    possibilidade do ser absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa

    pseudo-evidncia da teologia de que o nada no coisa alguma (MERLEAU-

    PONTY, 1999, p. 618). Qual a consequncia disto? A experincia da

    sensao se torna apenas o desdobramento psquico oriundo das

    excitaes sensoriais e, como tal, no pertence ao sujeito, encontra-se

    divorciada dele, o que como consequncia, tendo em vista que o sujeito

    visto como um naturante universal impossibilita qualquer ideia de uma

    gnese do esprito, uma vez que, existindo o tempo mediante este esprito,

    no se poderia conceber a possibilidade de recoloc-lo no tempo. O esprito

    passa a ser visto, pois, sem historicidade, vivendo em uma unidade indelvel

    com o verdadeiro. Todavia, se o eu emprico no fosse outro que o

    desdobramento deste esprito absoluto, como entender o erro, onde inserir a

    opacidade? Esta a questo que Lagneau se fazia em suas Clbres

    Leons. Em razo disso, que, em seu pensamento, a sensao deixa de ser

  • 32

    um objeto constitudo em uma rede de relaes psicofsicas. Logo,

    concluir Merleau-Ponty, se o sentir no pertence ordem do constitudo,

    se o Eu no o encontra desdobrado diante de si, porque, justamente,

    [...] ele escapa ao seu olhar, est como que recolhido atrs dele, est ali como uma espessura ou uma opacidade que torna o erro possvel, delimita uma zona de subjetividade ou de solido, representa-nos aquilo que est antes do esprito, ele evoca seu nascimento e reclama uma anlise mais profunda que esclareceria a genealogia da lgica. O esprito tem conscincia de si como fundado nessa Natureza. H, portanto, uma dialtica do naturado e do naturante, da percepo e do juzo, no decorrer da qual sua relao se inverte (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 619).

    Para Merleau-Ponty, em Quatre-vingt-un chapitres sur lesprit et

    les passions, Alain faria um movimento semelhante ao de Lagneau. De

    acordo com o filsofo, ao pensar sobre a grandeza aparente dos objetos,

    retirando do juzo o papel de instncia ratificadora, o que se vislumbrava

    era o encaminhamento a uma subjetividade na qual a relao com o mundo

    no se d mais mediante uma inspeo do esprito. Logo, se [...] uma

    rvore me parece sempre maior do que um homem, mesmo se ela est bem

    distante de mim e o homem bem prximo (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 619),

    isto se d no graas a uma alterao promovida pelo juzo, pois,

    A percepo no conclui a grandeza da rvore daquela do homem, ou a grandeza do homem daquela da rvore, nem uma e outra do sentido desses dois objetos, mas ela faz tudo ao mesmo tempo: a grandeza da rvore, a grandeza do homem, e sua significao de rvore e de homem, de forma que cada elemento se harmoniza com todos os outros e compe com eles uma paisagem em que todos coexistem. Entra-se assim na anlise daquilo que torna possvel a grandeza e, mais geralmente, as relaes ou as propriedades de ordem predicativa, e nessa subjetividade, anterior a toda geometria que, todavia, Alain declarava incognoscvel (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 620).

    Merleau-Ponty nota, em Alain, o preldio de uma anlise,

    especialmente no que diz respeito grandeza dos objetos, na qual o juzo

    encontra uma funo que lhe mais profunda, que lhe est aqum, anlise

    semelhante quela que, versando justamente sobre esta questo,

    encontraramos nos psiclogos ao se falar em uma Gestaltung da

  • 33

    paisagem12. O que isto quer nos dizer? Se partirmos da filosofia de Merleau-

    Ponty, no poderemos falar unicamente no assdio que, devido s distores

    de um modernismo, o Esprito enfrentava. Pelo contrrio, o modernismo

    no uma causa da crise, mas o delineamento de uma mudana. Logo, no

    que se refere ao modernismo, o que temos a elucidao de que o sentido

    dos princpios que moviam o Mundo Clssico se esvaziara, mudara de

    direo, e as razes disto se encontram nestes mesmos princpios, encontra-

    se propriamente em seus fundamentos.

    Por conseguinte, parece-nos que, para o filsofo, falar em crise

    no significa tambm acentuar uma passagem que vai do caos ordem, no

    significa corroborar a iluso positivista de que seria legtima a tarefa de se

    explicitar um progresso pelo qual, mediante uma poca crtica, uma idade

    orgnica teria que ceder o seu lugar a uma outra idade igualmente orgnica.

    Em outros termos, no se trata da fantasia positivista em crer que

    possvel, a uma poca, viver sem incertezas e sem lutas. Deste modo, acaba

    sendo por uma iluso retrospectiva que acreditamos ter sido o mundo

    clssico o reino das certezas absolutas e das verdades apodticas. Como no

    pensar nas obras inacabadas de Da Vinci? No guardava tambm a cincia

    clssica o sentimento de uma opacidade do mundo? No era justamente ao

    mundo, segundo o filsofo, (...) que ela pretendia juntar-se por suas

    construes, e por isso que se acreditava obrigado a procurar para suas

    operaes um fundamento transcendente ou transcendental (MERLEAU-

    PONTY, 1975b, p. 85)? Igualmente, no acabamos de encontrar, em filsofos

    tidos espiritualistas, um encaminhamento a ideias que lhes deveriam ser

    opostas?

    Conforme procuraremos mostrar, para Merleau-Ponty, crise

    significa, pois, a oportunidade que se tem, quando se trata do pensamento,

    em rever e reformular seus princpios e suas certezas. Se certo o que nos

    diz Valry acerca de uma Crise do Esprito porque, seguindo os

    12 No prximo captulo, de certo modo, retomaremos o tema da grandeza e o seu significado filosfico quando tratarmos da crtica de Merleau-Ponty noo clssica de perspectiva.

  • 34

    movimentos da histria, a nossa concepo do esprito no mais a

    mesma. Mais do que uma mudana sbita, se nos atentarmos

    etimologia, a Kri/siv [Krsis] tambm um momento decisivo, como j nos

    ensina o verbo Kri/nw [Krno] do qual este termo se origina, o poder de se

    fazer escolhas, de fazer distines. Contudo, se a Crise de Valry, aquela que

    poderamos entender como a expresso de uma crise francesa no nos

    suficiente para compreendermos a filosofia de Merleau-Ponty, certamente o

    trabalho etimolgico no o seria, assim como tambm no o seria a denncia

    dos impasses nas relaes da filosofia com a cincia. Acaso no encontramos

    em seu pensamento mais do que a explicitao dos ecos de uma crise que se

    v consolidada nos trabalhos da cincia? No entanto, qual seria a razo

    disto? O fato que, no caso de Merleau-Ponty, no compasso de uma crise

    do esprito, encontraramos ainda, e talvez com mais veemncia, os ecos de

    uma outra Krisis: a Crise da Razo. Se a Crise francesa no a Krisis alem,

    no pensamento merleau-pontiano, encontramos a tentativa de dialogar com

    ambas a fim de melhor compreender o seu tempo. Por conseguinte, quando

    procuramos compreender a filosofia de Merleau-Ponty nos horizontes de um

    sentimento de crise, a fenomenologia de Husserl no deixa de ter um topos

    privilegiado. O que isso significa? Quais as razes? Vejamos.

    1.2. A Fenomenologia e a Crise da Razo: os limites do cientificismo e o retorno ao mundo-da-vida

    Segundo Merleau-Ponty, desde a sua origem, a fenomenologia

    aparece como uma tentativa de resolver um problema colocado no incio do

    sculo pela Crise da filosofia, das cincias do homem e das cincias em

    geral (MERLEAU-PONTY, 2000b, p. 151). A fenomenologia, em outras

    palavras, seria justamente o intento de superar, de uma s vez, todas essas

    crises. No que diz respeito cincia clssica, a nosso ver, o intento

    husserliano no outro, o reconhecimento de que, em sua dmarche, o

    que se pretende efetuar uma ideia equivocada de razo, um conceito

    embargado por contradies desde o seu nascimento. Logo, a Crise das

    cincias no o simples empreendimento de anlise dos limites daquilo que

  • 35

    se verifica a validade, j presente em Descartes, e no qual a razo se voltaria

    criticamente contra os fundamentos das cincias. Em contrapartida,

    tampouco se limitaria s reflexes do Hamlet valeriano. Quanto ao sentido

    dessa Krisis, so esclarecedoras as seguintes palavras de Moura:

    [...] esse tema [a crise da Razo] parece ter a sua datao circunscrita primeira metade do nosso sculo. Pois se verdade

    que, de maneira explcita ou implcita, a noo de crise sempre

    freqentou a histria da filosofia, verdade tambm que Descartes,

    por exemplo, no apontava para nenhuma crise da razo, mas para uma crise das cincias, cincias cujos princpios incertos careciam de uma legitimao que a prima philosophia logo, logo lhes viria assegurar. E se Kant apresentava a razo pura como origem de

    iluses, o que estava em questo ali era apenas o uso especulativo da razo, e no a razo ela mesma, que se comportava muito bem no

    domnio da fsica e da matemtica, cincias que por si ss nunca

    teriam suscitado o projeto crtico. Ora, ser muito diferente quando

    Merleau-Ponty, preocupado em restaurar a universalidade da razo, for censurar a prpria cincia. Por isso mesmo, esse diagnstico,

    longe de reeditar, na atualidade, a antiga e enfadonha suspeita da

    seita ctica contra as pretenses da razo dogmtica, formulado

    hoje em dia por membros do prprio partido racionalista. Diagnstico paradoxal, sem dvida, j que enunciado no momento

    histrico em que as cincias mais se expandem e se consolidam. Era

    exatamente desse paradoxo aparente que Husserl partia em A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental, de 1936: existe, sim, uma crise da razo, apesar do sucesso incontestvel das

    cincias positivas (MOURA, 2001, p. 185-6).

    Ora, neste sentido que, a nosso ver, o pensamento husserliano

    marcado pela busca constante por uma idealidade objetiva que se

    evidencia antes no retorno ao mundo-da-vida do que no embaraoso

    reducionismo psicologista em sua tarefa de tornar reais os estados de

    conscincia, fazendo deles nada mais e nada menos do que pedaos da

    natureza. O diagnstico husserliano no o mesmo daquele elaborado quer

    seja pelos existencialismos, quer seja pelos pessimismos, uma vez que no

    podemos negar, ainda em Husserl, a presena latente de uma f na Razo.

    esta mesma certeza que o leva a diagnsticos nada simples para os seus

    leitores, que o conduz certeza de que, frente ao objetivismo cientificista

    fundamentalmente histrico e no meramente ocasional, a fenomenologia

    pode se apresentar como uma soluo possvel por seu rigoroso

    reconhecimento e resgate daquilo que fora condenado, pela cultura europeia,

  • 36

    ao esquecimento, a saber, o mundo-da-vida, a Lebenswelt. No ser tarefa

    da fenomenologia, por sua vez, frente Crise, elucidar aquilo que deve ser

    ou se entender por cincia, o que lhe pode legitimar, de iure, a sua prpria

    cientificidade, demonstrando que o mtodo utilizado por elas, ao colocar-se

    frente a sua aplicabilidade, carece de licitude. O caminho bem outro.

    Trata-se da busca daquilo que se constitui como o fundamento e a gnese

    desta Crise, colocando-se, de modo historial, em seus desdobramentos, no

    percurso que fizera com que o pensamento moderno se tornasse o seu

    resultado cabal. Nesta perspectiva, uma crtica do psicologismo ultrapassa a

    si mesma, levando-nos antes quilo que o filsofo nos indica como uma

    espcie de enigma do mundo, o mesmo que as outras pocas no se deram

    conta e que, por conseguinte, no deixa de nos lanar frente ao enigma da

    prpria subjetividade.

    A proposta, frente Crise, que seja modificado o modo pelo

    qual o pensamento se coloca em relao cincia, dizendo de modo

    husserliano, preciso mudar o modo de estimar a cincia, deixando de ser

    a pergunta por sua cientificidade, conforme assinalado, para se tornar uma

    indagao acerca de seu sentido para a existncia humana. No basta

    encantar-se com a cincia e a prosperity que traz consigo, at mesmo

    problemtica a ingnua passagem de uma cincia de fato para uma

    humanidade de fato. O que preciso mostrar que existem questes

    cruciais a serem feitas e que foram simplesmente excludas. Quais seriam

    elas? Dir Husserl, so as questes que versam sobre o sentido ou sobre a

    ausncia de sentido de toda esta existncia humana (HUSSERL, 1992, vol.

    8, p. 4; 1976, p. 10)13. E por que elas so to importantes assim? O que

    torna estas questes fundamentais, no entender do filsofo, a capacidade

    de atingir o homem moderno em suas relaes, quaisquer que elas sejam, e

    no modo pelo qual, senhor de si mesmo, capaz de dar uma forma de

    razo a si mesmo e ao seu mundo-ambiente [sich und seine Umwelt

    vernnftig zu gestalten] (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4; 1976, p. 10) sem,

    13 [...] die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseins (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4; 1976, p. 10).

  • 37

    todavia, dar-se conta de suas consequncias.14 Da a preocupao em

    mostrar, a partir de sua gnese, os limites do naturalismo das cincias.

    Pensando em suas construes, acaso podemos viver neste mundo cujo

    acontecimento histrico no nada de outro que um encadeamento

    incessante de mpetos ilusrios e de amargas decepes? (HUSSERL, 1992,

    vol. 8, p. 4-5; 1976, p. 11)15.

    Em outras palavras, seguindo as pegadas de Husserl, queremos

    salientar que, se a Crise no a denncia da cientificidade que rege as

    cincias, porque a crise das cincias , sobretudo, uma crise de sentido.

    No interessa saber se um determinado modelo ou proposta cientfica

    funciona ou no. Isso no , para Husserl, tarefa do filsofo. A questo

    saber, no entanto, o que isso significa para a existncia humana e como

    pode afet-la, dado que no teria sentido falar em uma crise na condio de

    derrocada da prpria cientificidade cientfica, principalmente, dados os

    brilhantes desdobramentos da fsica. Mas como se inserem esses

    desdobramentos em um determinado projeto de vida? Pensando nesta

    questo, podemos entender porque, ao se voltar para os emergentes

    desenvolvimentos da tcnica, o que est em jogo o modo como ela

    funciona na condio de um mecanismo de aumento das consequncias

    geradas, para a existncia humana, por um determinado projeto de

    14 o que assinala a Krisis: Unseren nehmen wir von einer an der Wende des letzten Jahrhunderts hinsichtlich der Wissenschaften eingetretenen Umwendung der allgemeinen Bewertung. Sie betrifft nicht ihre Wissenschaftlichkeit, sondern das, was sie, was Wissenschaft berhaupt dem menschlichen Dasein bedeutet hatte und bedeuten kann. Die Ausschlieliechkeit, in welcher sich in der zweiten Hlfte des 19. Jahrhunderts die ganze Weltanschauung des modernen Menschen von den positiven Wissenschaften bestimmen und von der ihr verdankten prosperity blenden lie, bedeutete ein gleichgltiges Sichabkehren von den Fragen, die fr ein echtes Menschentum die entscheindenden sind. Bloe Tatsachenwissenschaften machen bloe Tatsachenmenschen. Die Umwendung der ffentlichen Bewertung war insbesondere nach dem Kriege unvermeidlich, und sie ist, wie wir wissen, in der jungen Generation nachgerade zu einer feindlichen Stimmung geworden. In unserer Lebensnot so hren wir hat diese Wissenschaft uns nichts zu sagen. Gerade die Fragen schliet sie prinzipiell aus, die fr den in unseren unseligen Zeiten den schicksalsvollsten Umwlzungen preisgegebenen Menschen die brennenden sind: die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseins. (HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 3-4; 1976, p. 10). 15 Cf. o texto: Knnen wir uns damit beruhingen, knnen wir in dieser Welt leben, deren geschichtliches Geschehen nichts anderes ist als eine unaufhrliche Verkettung von illusionren Aufschwngen und bitteren Enttuschungen?(HUSSERL, 1992, vol. 8, p. 4-5; 1976, p. 11).

  • 38

    cientificidade. Neste sentido, o que preocupa, na metodologia cientificista,

    que no possui, por se dar como um mero instrumento, fim em si mesma,

    pois, ao perder o seu carter teleolgico, est impossibilitada de trazer

    consigo o sentido da vida e da histria, ao passo que o investigador perfeito,

    que tende tambm em direo perfeio como ser humano, nunca perde de

    vista as relaes que entretm a cincia que ele pratica com os fins gerais e

    mais elevados do conhecimento humano (HUSSERL, 1982, p. 231). Se essa

    constatao possui um carter tico-poltico, porque se esmera, em

    primeiro lugar, em um desconforto filosfico gerado, fundamentalmente, pela

    prpria noo de razo que est em jogo nestas consideraes.16 neste

    sentido que, para Husserl, torna-se necessrio compreender as relaes que

    se estabelecem entre filosofia e cincia. Como se daria, especialmente nos

    ltimos trabalhos de Husserl, essa explicitao? Conforme Olesen, pensando

    na compreenso husserliana de Galileu, seria o de mostrar [...] que a

    cincia recobre (filosoficamente) no mesmo movimento em que ela descobre

    (cientificamente) (OLESEN, 1994, vol. 29, p. 12), logo, [...] a anlise

    husserliana das relaes da filosofia e das cincias pode, agora, apresentar-

    se como crtica histrica (Geschichtskritik) [...] (OLESEN, 1994, vol. 29, p.

    13). Por conseguinte, tendo por referncia essa crtica histrica

    [Geschichtskritik] (HUSSERL, 1954, p. 59), ou antes, mediante uma

    ursprngliche Sinngebung (HUSSERL, 1954, p. 46) pelo qual se constitui a

    cincia, que sua anlise descobre em Galileu um gnio que, ao mesmo

    16 a partir desta perspectiva, que melhor entendemos as seguintes palavras de Koyr em um dos textos de seus Estudos Newtonianos, palavras dotadas inconfundivelmente com o sotaque husserliano da Krisis: H algo do qual Newton deve ser sido responsvel ou para dizer melhor, no unicamente Newton, mas a cincia moderna em geral; a diviso de nosso mundo em dois. Eu disse que a cincia moderna tinha invertido as barreiras que separavam os Cus e a Terra, que ela uniu e unificou o Universo. Isso verdade. Mas, eu disse tambm que ela fez isso substituindo o nosso mundo de qualidades e de percepes sensveis, mundo no qual vivemos, amamos e morremos, por um outro mundo: o mundo da quantidade, da geometria reificada, mundo no qual, embora haja lugar para toda coisa, no h mais para o homem. Assim o mundo da cincia o mundo real afasta-se e se separa inteiramente do mundo-da-vida, que a cincia foi incapaz de explicar inclusive por uma explicao dissolvente que faria dele uma aparncia subjetiva. Na verdade, estes dois mundos so todos os dias cada vez mais unidos pela prxis. Mas para a teoria so separados por um abismo. Dois mundos: o que quer dizer duas verdades. Ou nenhuma verdade em absoluto. nisto que consiste a tragdia do esprito moderno que resolveu o enigma do Universo, mas to-somente para substitu-lo por um outro: o enigma de si mesmo (KOYR, 1968, p. 42-3.).

  • 39

    tempo, (des)-cobre e (re)-cobre (HUSSERL, 1954, p. 49; OLESEN, 1994, vol.

    29, p. 12), pois

    Originrio, este sentido no deve, todavia, ser buscado em um lugar distante alm da histria, visto ser ele mesmo que devemos compreender como passagem, saber como passagem do mundo-da-vida cincia. De tal modo, esta doao de sentido originrio por onde Galileu descobre a natureza como scritta in lngua matematica, recobrindo, de uma s vez, a natureza na medida em que ela eclode diferentemente de um suporte matematizao. Todavia, se a doao originria de sentido no se faz alhures seno na prpria cincia, no cabe cincia enunciar em que esta doao de sentido doao. Digamos que cabe cincia fazer a passagem do mundo-da-vida cincia, mas no descrever essa passagem (OLESEN, 1994, vol. 29, p. 13).

    Por conseguinte, o que significa entender Galileu a partir de uma

    investigao histrica em um sentido inslito [ungewohnten Sinn], como

    acentua a traduo literal,17 ou, conforme Derrida, a partir da investigao

    de uma proto-histria [proto-histoire]? Por que a ateno husserliana se

    voltara para as investigaes cientficas de Galileu?18 De acordo com

    Husserl, certamente os Antigos, conduzidos pela doutrina platnica das

    Ideias, j tinham idealizado os nmeros e as medidas empricas, as figuras

    espaciais empricas, os pontos, as linhas, as superfcies, os corpos.19

    Inclusive, como ainda lembra Husserl,

    Com a geometria de Euclides, tinha aparecido a ideia bastante impressionante de uma teoria dedutiva sistematicamente unificada, orientada para um fim ideal de uma grande amplitude e de uma grande elevao, repousando em conceitos e princpios fundamentais

    17 Verbo wohnen, gewhnt (habitual, acostumado). 18 A este respeito, vale salientar que, segundo Franois de Gandt, Husserl tomara conhecimento de Galileu mediante uma vulgata galileana corrente em sua poca, logo, no teria frequentado diretamente os seus trabalhos. Por conseguinte, a imagem do Galileu husserliano fora traado tendo em vista o empreendimento de neo-kantianos como Hermann Cohen, Paul Natorp e Ernst Cassirer (GANDT, 2004, p. 97-8). Teria sado inclusive das letras de Cassirer a certeza de que deveria ser pago a Galileu o tributo pela possibilidade de se lanar uma ponte entre Plato e Kant. Mas seria ento a Krisis to-somente o locus de sedimentao da recepo de uma determinada imagem inteiramente pronta de Galileu e de uma imagem pautada sobre um fundo kantiano? certo que no, e o prprio Franois de Gandt levado a reconhecer no modus operandi da Krisis uma dmarche que, por sua inegvel originalidade, no deixara de repercutir com fecundidade na prpria histria das cincias. 19 (HUSSERL, 1992, p. 18; 1976, p. 26) Diese hatten zwar schon, von der Platonischen Ideenlehre geleitet, die empirischen Zahlen, Magren, die emprischen Raumfiguren, die Punkte, Linien, Flchen, Krper idealisiert;

  • 40

    axiomticos e progredindo por uma sequncia de raciocnios apodticos, em suma, um conjunto proveniente da racionalidade pura, um conjunto de verdades absolutamente incondicionadas, apreensveis diretamente ou indiretamente, conjunto que se oferece a si mesmo aos olhares em sua verdade incondicionada (HUSSERL, 1992, p. 18-9; 1976, p. 26).20

    Todavia, se j encontramos tudo isto em Euclides, como salienta

    Husserl, qual seria ento a novidade do pensamento moderno [clssico]? J

    no havia ali uma conceituao matemtica da Natureza? Na Krisis, o

    filsofo nos responderia que no. De acordo com a Krisis, [...] a geometria de

    Euclides, e geralmente falando a matemtica dos Antigos, conhecia apenas

    tarefas finitas; ela conhecia apenas um a priori que se fecha de modo finito.21

    Participando deste modo, encontrar-se-ia, por exemplo, o silogismo

    aristotlico. Neste sentido, especialmente a partir de Galileu, muda-se o

    modo de se aproximar da Natureza. Trata-se de um mundo infinito, aquele

    das idealidades que apenas pode ser atingido por um mtodo racional

    sistematicamente unificado. No h mais sentido em se referir a uma

    realidade que se aperfeioa medida que se aproxima de ideias perfeitas,

    mas [...] a prpria natureza que, sob a direo da nova matemtica,

    encontra-se idealizada: ela prpria torna-se [...] uma multiplicidade

    matemtica (HUSSERL, 1954, p. 20; 1976, p. 26).22 A matemtica, como

    instrumento de anlise, ao contrrio da lgica escolstica, torna-se,

    especialmente para Galileu, o instrumento da descoberta.23 No entanto,

    20Noch mehr: mit der Euklidischen Geometrie war di hchst eindrucksvolle Idee einer auf ein weit-und hochgestecktes ideales Ziel ausgrichteten, systematisch einheitlichen deduktiven Theorie erwachsen, beruhend auf axiomatischen Grundbegriffen und Grund dstzen, in apodiktischen Schlufolgerungen fortschreitend ein Ganzes aus reiner Rationalitt, ein in seiner unbedingten Wahrheit einsehbares Ganzes von lauter unbedingten unmittelbar und mittelbar einsichtigen Wahrheiten. 21 (HUSSERL, 1954, p. 19; 1976, p. 26). Aber die Euklidische Geometrie und die alte Mathematik berhaupt kennt nur endliche Aufgaben, ein endlich geschlossenes Apriori. (HUSSERL, 1992, p. 19). 22In der Galileischen Mathematisierung der Natur wird nun diese selbst unter der Leitung der neuen Mathematik idealisiert, sie wird modern ausgedrckt selbst zu einer mathematischen Mannigfaltigkeit (HUSSERL, 1954, p. 20). 23 Assim, embora reconhea o platonismo de Galileu, do mesmo modo que Koyr, Husserl sabe que, mais do que uma admirao, o platonismo, ao menos como fora recebido, torna-se a base e o alicerce de um conhecimento marcado pela objetividade e a segura instabilidade das formas. Nessa perspectiva, a matemtica no a expresso de um amor pela Antiguidade que se revela no conhecimento de sua imagstica, mas vem a ser entendida

  • 41

    como se daria, em Galileu, a gnese de uma compreenso matemtica da

    Natureza?

    Segundo Galileu, a partir da nossa experincia sensvel,

    possvel identificar elementos tanto simples quanto absolutos que, em

    seguida, podem ser traduzidos para uma linguagem matemtica24. O

    interessante que, aps ter feito isto, logo no precisamos mais da prpria

    experincia. Ser a matemtica pura que ditar as etapas posteriores. Por

    conseguinte, no haveria problema algum se, nesta etapa, algumas

    hipteses no se confirmassem empiricamente. A demonstrao ou

    verificao cientfica, realizada a partir da experincia, seria simplesmente

    um recurso facultativo para se usar com aqueles que no confiam na

    universalidade da matemtica. Contudo, ser a distino galileana, herdada

    de Kepler, entre o que no mundo absoluto, objetivo, imutvel e

    matemtico e o que relativo, subjetivo, flutuante e sensorial (BURTT,

    1991, p. 67) que marcar sua metafsica. Em outros termos, a separao

    do que h de manifesto em um fenmeno fsico em qualidades primrias e

    qualidades secundrias que nos far encontrar tambm, em Galileu, um

    dos alicerces do mundo moderno [clssico], alm da fsica newtoniana que,

    como salientaria Koyr, teria dividido o mundo em dois.

    De um lado, encontramos qualidades primrias que se referem

    a tudo o que h de matematicamente traduzvel em um fenmeno. Por outro

    lado, encontramos tambm qualidades secundrias que se referem a

    experincias como a sensao. Enquanto a primeira seria real, concreta, a

    segunda, no sendo to real quanto a primeira, encontrar-se-ia apenas

    limitada nossa subjetividade. Alm disso, encontramos em Galileu

    semelhante em certos aspectos a Plato , aqum do mundo da exatido

    matemtica, a distino de um mundo de opinies cambiantes e de um

    como a prpria estrutura do Universo. Essa a razo mediante a qual se entende tanto a substituio da experincia sensvel por um mundo prvio como diria Nietzsche, por um Hinterwelt , como o atomismo galileano que tornava Plato e Demcrito estranhamente os fundamentos de uma mesma realidade. 24 assim que, conforme Burtt, visto em sua totalidade, o mtodo de Galileu pode ser decomposto em trs etapas, intuio ou resoluo, demonstrao e experincia, empregando-se em cada caso seus termos prediletos (BURTT, 1991, p. 65).

  • 42

    mundo da experincia sensorial. Assim, os elementos confusos e

    inconfiveis na figurao sensorial da Natureza so, de algum modo, efeitos

    dos prprios sentidos (BURTT, 1991, p. 67), pois, porque o quadro mental

    resultante passou pelos sentidos que ele possui todas essas caractersticas

    confusas e enganosas (BURTT, 1991, p. 67). Como podemos notar, enquanto

    as qualidades secundrias no passam de meros efeitos dos nossos sentidos,

    as primrias seriam as que, na Natureza, so de fato reais. Como ressalta o

    prprio Galileu,

    (...) no acredito que os corpos externos, para provocar em ns esses gostos, esses cheiros e esses sons, requeiram mais que o

    tamanho, a figura, o nmero e o movimento vagaroso ou rpido; e

    julgo que, se os ouvidos, a lngua e as narinas fossem suprimidas, a

    figura, os nmeros e os movimentos certamente permaneceriam, mas no os odores, nem os gostos, nem os sons, os quais, sem o

    animal vivo, no creio que constituam mais que nomes, assim como

    as ccegas no so nada mais que um nome se a axila ou a

    membrana nasal fossem suprimidas (GALILEU, 1942, vol. IV, p. 333)25.

    A partir destas consideraes, portanto, podemos entender as

    razes que levaram Husserl a notar, em Galileu, aquele sentido originrio

    [ursprngliche Sinngebung] pelo qual se institui a cincia clssica. Tomando

    Galileu como referncia, a pretenso husserliana a de explicitar a ciso

    presente em seu tempo entre as cincias do Esprito e as cincias da

    Natureza que, ao conduzir a um labirinto no qual a verdade se encontrava

    fundada em teorias antagnicas, acabava por nos situar frente a uma

    espcie de esquizofrenia da cultura26. Em especial, nas Ideen II, ao tratar da

    25 Per lo che vo io pensando che questi sapori, odori, colori, etc., per la parte del suggetto nel quale ci par che riseggano, non sieno altro che puri nomi, ma tengano solamente lor residenza nel corpo sensitivo, s che rimosso l'animale, sieno levate ed annichilate tutte queste qualit; tuttavolta per che noi, s come gli abbiamo imposti nomi particolari e differenti da quelli de gli altri primi e reali accidenti, volessimo credere ch'esse ancora fussero veramente e realmente da quelli diverse (GALILEU, 1942, vol. IV, p. 333). 26 Husserl reconhece sua dvida para com Dilthey, o primeiro que observou as diferenas essenciais que esto em jogo aqui, e o primeiro tambm que tomou uma conscincia viva do fato de que a psicologia moderna, cincia natural do psquico, era incapaz de assegurar s cincias concretas do esprito a fundao cientfica que elas exigiam (HUSSERL, 1952, p. 175; 1950 p. 175). Contudo, a seu ver, unicamente uma investigao radical, orientada rumo s fontes fenomenolgicas da constituio das ideias da natureza, do corpo prprio, da alma e das diferentes ideias de ego e de pessoa, pode aqui fornecer as explicitaes

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    Constituio do Mundo do Esprito, o filsofo nos acentua que a cultura,

    de um modo geral, ou como ele mesmo dir, nossa viso de mundo por

    inteiro encontra-se determinada, em sua essncia e em seu fundamento

    pela separao entre o mundo da natureza e o mundo do esprito, (...)

    entre uma teoria da alma prpria da cincia de um lado e, de outro, uma

    teoria da pessoa (teoria do ego, egologia), assim como uma teoria da

    sociedade (teoria da comunidade) (HUSSERL, 1952, p. 175; 1950, p. 246).

    Encontramos, pois, seguindo em seus pressupostos uma variante leibniziana

    da separao entre quaestiones de facto e qustiones de iure, uma cincia

    que, por si mesma, no conseguindo explicitar os fundamentos nos quais se

    encontra alicerada, deixou no esquecimento o solo prvio de onde emergira,

    a saber, o mundo-da-vida, a Lebenswelt. Da, por exemplo, a necessidade de

    uma nova psicologia, de uma psicologia que, no sendo psicolgica, no

    compartilhe tambm da incapacidade das cincias de assegurar, s cincias

    concretas do esprito a fundao cientfica que elas exigem (HUSSERL, 1952,

    p. 175, 1950, p. 246) Como j salientava o filsofo em La philosophie comme

    science rigoureuse,

    As cincias da natureza no nos desvelaram em nenhum ponto o mistrio da realidade atual, da realidade em que vivemos, agimos e

    estamos. A crena geral de que tal sua funo e que elas ainda no esto bastante avanadas para preench-la, a opinio segundo a

    qual elas poderiam por princpio realiz-la, revelou-se aos olhares

    profundos como superstio (HUSSERL, 1993, p. 170).

    Por conseguinte, mantendo o foco em Galileu, conforme vimos,

    no se d, por acaso, o empreendimento husserliano em no centrar-se

    unicamente naquela geometria inteiramente pronta que lhe fora entregue.

    Nem mesmo desconhecida do filsofo a ameaa anacrnica que assombra

    as suas reflexes. Afinal, no estaria o pensador no direito de interrogar,

    antes de tudo, o sentido originrio da geometria que nos entregue e nunca

    deixa de advir com este mesmo sentido geometria que no deixa de advir e,

    ao mesmo tempo, de se edificar, ao permanecer atravs de todas as suas

    decisivas e, ao mesmo tempo, dar sua fecundidade e seu direito aos motivos, plenamente vlidos, de todas as investigaes desse gnero (HUSSERL, 1950 p. 247).

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    novas formas na condio de a geometria? (HUSSERL, 1992, p. 365; 1976,

    p. 173 traduo modificada por ns) 27. De acordo com Husserl, a razo e o

    pensamento no so translcidos, pelo contrrio, esto sempre em processo.

    Neste sentido, ao situarmos a geometria em um horizonte histrico,

    preciso assinalar que no se trata de um processo de determinao, mas de

    um longo processo de indeterminao, haja vista que a concreo histrica

    do mundo-da-vida no se d por um mecanismo de mundificao no qual o

    todo seria simplesmente a soma das partes, ela se encontra, ao mesmo

    tempo, conforme veremos adiante ao falar da Terra como arch originria,

    em toda parte e em parte alguma. Mas o que seria essa concreo? A partir

    dos anos 30, essa palavra passa a se encontrar nas letras de Husserl com

    uma maior frequncia28, indicando as vrias camadas que constituem a

    nossa histria. A histria um todo constitudo por camadas, um modo de

    reunir vrios horizontes e, assim, por meio de junes nascidas de uma

    relao entre o todo e a parte, formarem uma realidade, uma realidade que

    composta por uma concreo de vrios horizontes. assim que Husserl

    vislumbra, no mundo-da-vida, o horizonte maior do qual se tornam possveis

    todos os outros horizontes, todas as outras concrees. Na concreo

    temporal do mundo-da-vida, encontramos o a priori de todas as outras

    concrees, trazendo consigo, em seu fundo, tanto o horizonte da

    subjetividade transcendental como da subjetividade relativa, tanto da

    transcendentalidade como da historicidade, send