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MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito

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  • O olho e o esprito

  • Maurice Merleau-Ponty

    o olho e o espritoseguido de A linguagem indireta e as vozes do silncio

    e A dvida de Czanne

    Traduo de Paulo Neves e Maria Ermantina Gaivo Gomes Pereira

    Prefcio de Claude Lefort I Posfcio de Alberlo Tassinari

    Cosac &Naify

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    o OLHO E O ESPRITOPrefcio, por Claude LefortO olho e o esprito

    Ilustraes

    A LINGUAGEM INDIRETA E AS VOZES DO SILNCIO

    A DVIDA DE CZANNE

    POSFCIO

    Quatro esboos de leitura, por Alberto Tassinari

    162 Sobre o autor165 Crditos das imagens

  • O OLHO E O ESPRITO

  • Prefcio*

    o olho e o esprito o ltimo escrito que Merleau-Ponty pde concluir emvida. Andr Chastellhe havia pedido uma contribuio ao primeiro nme-ro de Art de France. Ele fez um ensaio, dedicando-lhe boa parte do verodaquele ano (1960) - que viriam a ser suas ltimas frias. Nada anuncia-va ento a parada cardaca, sbita, que o vitimaria na primavera seguinte.

    Instalado, por dois ou trs meses, no campo provenal, no muitodistante de Aix, no Tholonet, na casa que um pintor lhe alugara - LaBertrane -, desfrutando o prazer desse lugar aconchegante, mas sobre-tudo usufruindo diariamente a paisagem que conserva para sempre amarca do olho de Czanne, Merleau-Ponty volta a interrogar a viso, aomesmo tempo que a pintura. Ou melhor, interroga-a como que pelaprimeira vez, como se no tivesse no ano anterior reformulado suasantigas questes em O visvel e o invisvel, como se todas as suas obrasanteriores - e, antes de mais nada, o grande empreendimento da Feno-menologia da percepo (1945) - no pesassem em seu pensamento, oupesassem demais, de modo que foi preciso esquec-las para reconquistara fora do espanto. Ele busca, uma vez mais, as palavras do comeo, pala-vras, por exemplo, capazes de nomear o que faz o milagre do corpo hu-mano, sua inexplicvel animao, to logo estabelecido seu dilogo mudocom os outros, com o mundo e consigo mesmo - e tambm a fragilida-de desse milagre. E essas palavras, ele de fato as encontra: "Um corpohumano est a quando, entre vidente e visvel, entre tocante e tocado,entre um olho e outro, entre a mo e a mo se produz uma espcie de

    Este prefcio foi acrescentado edio de 1985 de O olho e o esprito.

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  • recruzamento, quando se acende a fasca do senciente-sensvel, quandose inflama o que no cessar de queimar, at que um acidente do corpodesfaa o que nenhum acidente teria bastado para fazer...".

    Aqui, o discurso se libera das coeres da teoria. Essa celebraodo corpo - em que se agarra o pensamento de sua inevitvel, fulgurantedesintegrao - transmite algo da presena daquele que fala e de suaperturbao. Adivinhamos, para alm do deslumbramento que a arte dopintor lhe proporciona, esse primeiro deslumbramento que nasce do sim-ples fato de vermos, de sentirmos e de surgirmos, ns mesmos, a - dofato desse duplo encontro, do mundo e do corpo, na origem de todo sabere que excede o concebvel.

    Tal certamente a razo do encanto singular que exerce esse escrito filo-sfico. A meditao sobre o corpo, a viso, a pintura, conserva o vest-gio dos olhares, dos gestos de um homem vivo e do espao que eles atra-vessam e que os anima. O pedao de cera ou de giz, a mesa, o cubo, essesemblemas esquelticos da coisa percebida, que os filsofos to freqente-mente produziram para dissolv-la pelo clculo, ocupados que estavamem buscar a salvao da alma no abandono do sensvel, dir-se-ia queforam escolhidos apenas para atestar a misria do mundo que habitamos.Em troca, para extrair da viso, do visvel, o que eles exigem ao pensa-mento, toda uma paisagem que Merleau-Ponty evoca, uma paisagemque j havia captado o esprito com o olhar, onde o prximo se difundeno distante e o distante faz vibrar o prximo, onde a presena das coisasse d sobre um fundo de ausncia, onde o ser e a aparncia se permutam."Quando vejo atravs da espessura da gua o revestimento de azulejosno fundo da piscina, no o vejo apesar da gua, dos reflexos, vejo-o jus-tamente atravs deles, por eles. Se no houvesse essas distores, essaszebruras do sol, se eu visse sem essa carne a geometria dos azulejos, ento que deixaria de v-los como so, onde esto, a saber: mais longe quetodo lugar idntico. A prpria gua, a fora aquosa, o elemento viscoso ebrilhante, no posso dizer que esteja no espao: ela no est alhures, mastambm no est na piscina. Ela a habita, materializa-se ali, mas no estcontida ali, e, se ergo os olhos em direo ao anteparo de ciprestes onde

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  • brinca a trama dos reflexos, no posso contestar que a gua tambm ovisita, ou pelo menos envia at l sua essncia ativa e expressiva."

    o momento em que escrevia essas linhas, Merleau-Ponty achava-senum quarto, certamente, cujas paredes espessas o protegiam contra aluz e os rudos externos. No entanto, seu pensamento conservava, im-pressa nele, a viso da gua na piscina e do anteparo dos ciprestes, e oprprio movimento dos olhos que os haviam unido. Sei disso por tervisto: essa piscina, na verdade bem modesta, e essas rvores ficavammuito prximas da casa. De resto, pouco importa,que estivessem sobseu olhar um momento antes, elas poderiam ter ressurgido do fundode sua memria. O fato que, para pensar, ele precisava convoc-las eque sua escrita repercutisse o brilho do visvel e o transmitisse.

    A convico de que todos os problemas da filosofia devem ser submeti-dos novamente ao exame da percepo, sabemos que Merleau-Ponty aextraiu, em parte, da leitura de Husserl. Reencontramos em O olho e oesprito, por exemplo, uma crtica da cincia moderna, de sua confianaalegre, mas cega, em suas construes, e uma crtica do pensamentoreflexivo, de sua incapacidade de explicar a razo da experincia domundo de onde ela surge, sendo que ambas exploram e reformulam oargumento do fundador da fenomenologia. Mas, por mais manifestaque seja, essa filiao no deve fazer esquecer o que a obra de nossoautor deve sua meditao sobre a pintura.

    Ela se exprime j em A dvida de Czanne, um de seus primeirosensaios, publicado (em Fontaine) no mesmo ano em que aparece a Feno-menologia da percepo (1945), mas redigido trs anos antes. Prossegueem A linguagem indireta e as vozes do silncio (1952) - verso corrigidade um livro abandonado, A prosa do mundo *-. em que se esboa umaconcepo da expresso e da histria que anuncia uma passagem paraalm das fronteiras da fenomenologia, a exigncia de uma nova ontolo-gia, que seus ltimos escritos reconhecero plenamente. Se certo que a

    *Na Prosa do mundo o ensaio se chama apenas "A linguagem indireta". [N.E.]

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  • recusa de acompanhar Husserl na elaborao de um novo tipo de idea-lismo procede da anlise das contradies nas quais se embaraa essatentativa, no h dvida de que ela se baseia tambm na observao dosparadoxos que animam a expresso, a arte e a pintura em particular.Esta no se contenta com a iluso de um puro retorno "experinciamuda", com um desnudamento das essncias nas quais se reconheceriaa obra da conscincia transcendental. O trabalho do pintor convenceMerleau-Ponty da impossvel partilha da viso e do visvel, da aparn-cia e do ser. Apresenta-lhe o testemunho de uma interrogao intermi-nvel, que retomada de obra em obra, que no poderia chegar a umasoluo e, no entanto, que produz um conhecimento, com a singularpropriedade de s obter esse conhecimento, o do visvel, por um atoque o faz surgir numa tela.

    Ao cabo de uma crtica do procedimento cartesiano, crtica que requeruma nova idia da filosofia, Merleau-Ponty declara: "[...]essa filosofiapor fazer a que anima o pintor, no quando exprime opinies sobre omundo, mas no instante em que sua viso se faz gesto, quando, dirCzanne, ele 'pensa por meio da pintura"'. Assim, Merleau-Ponty fazcompreender que no h pensamento puro, que, quando a filosofia foraa interrogao at perguntar: o que pensar?, o que o mundo, a hist-ria, a poltica ou a arte, toda experincia de que o pensamento se ocu-pa?, ela no pode, no deve abrir seu caminho a no ser acolhendo oenigma que persegue o pintor, a no ser unindo ela tambm conheci-mento e criao no espao da obra, a no ser fazendo ver com palavras

    O olho e o esprito no indica apenas esse caminho, ele j o esboapor um certo modo de escrita; no formula apenas uma exigncia, ele atorna sensvel. A meditao sobre a pintura fornece a seu autor o recur-so de uma linguagem nova, muito prxima da linguagem literria emesmo potica, uma linguagem que argumenta, por certo, mas conse-gue se subtrair a todos os artifcios da tcnica que uma tradio acad-mica fizera crer inseparvel do discurso filosfico.

    ClaudeLefort

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  • o olho e o esprito*o que tento lhe traduzir m ais misterioso, se enreda

    nas razes mesmas do ser, na fonte impalpvel das sensaes.J. Gasquet, Czanne

    A cincia manipula as coisas e renuncia habit-las. Estabelece modelosinternos delas e, operando sobre esses ndices ou variveis as transfor-maes permitidas por sua definio, s de longe em longe se confrontacom o mundo real. Ela , sempre foi , esse pensamento admiravelmenteativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como"objeto em geral" , isto , ao mesmo tempo como se ele nada fosse parans e estivesse no entanto predestinado aos nossos artifcios.

    Mas a cincia clssica conservava o sentimento da opacidade domundo, e a este que ela entendia juntar-se por suas construes, razopela qual se acreditava obrigada a buscar para suas operaes um fun-damento transcendente ou transcendental. H hoje - no na cincia,mas numa filosofia das cincias bastante difundida - isto de inteira-mente novo: que a prtica construtiva se considera e se apresenta comoautnoma, e o pensamento se reduz deliberadamente ao conjunto dastcnicas de tomada ou de captao que ele inventa. Pensar ensaiar,operar, transformar, sob a nica reserva de um controle experimentalem que intervm apenas fenmenos altamente "trabalhados", os quaisnossos aparelhos antes produzem do que registram. Da toda sorte detentativas errantes. Jamais como hoje a cincia foi sensvel s modasintelectuais. Quando um modelo foi bem-sucedido numa ordem de pro-blemas, ela o aplica em toda parte. Nossa embriologia, nossa biologia

    Publicado originalmente em Art de France, n. 1 , 1961 .

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  • to atualmente repletas de gradientes que no percebemo com exati-do como se distinguem daquilo que os clssicos chamavam ordem outotalidade, mas a questo no colocada, no deve s-lo. O gradiente uma rede que se lana ao mar sem saber o que recolher. Ou, ainda, aestreita ramificao sobre a qual se faro cristalizaes imprevisveis.Essa liberdade de operao certamente tem condies de superar muitosdilemas vos, contanto que de vez em quando se determine o ponto, sepergunte por que o instrumento funciona aqui, fracassa alhures, em sumacontanto que essa cincia fluente compreenda a si mesma, se veja comoconstruo sobre a base de um mundo bruto ou existente, e no reivin-dique para operaes cegas o valor constituinte que os "conceitos danatureza" podiam ter numa filosofia idealista. Dizer que o mundo pordefinio nominal o objeto x de nossas operaes levar ao absoluto asituao de conhecimento do cientista, como se tudo o que existiu ouexiste jamais tivesse existido seno para entrar no laboratrio. O pensa-mento "operatrio" torna-se uma espcie de artificialismo absoluto,como vemos na ideologia ciberntica, na qual as criaes humanas soderivadas de um processo natural de informao, mas ele prprio con-cebido sobre o modelo das mquinas humanas. Se esse tipo de pensa-mento toma a seu encargo o homem e a histria, e se, fingindo ignoraro que sabemos por contato e por posio, empreende constru-los a par-tir de alguns indcios abstratos, como o fizeram nos Estados Unidos umapsicanlise e um culturalismo decadentes, j que o homem se torna defato o manipulandum que julga ser entramos num regime de cultura emque no h mais nem verdadeiro nem falso no tocante ao homem e histria, num sono ou num pesadelo dos quais nada poderia despert-lo.

    preciso que o pensamento de cincia - pensamento de sobrevo,pensamento do objeto em geral- torne a se colocar num "h" prvio,na paisagem, no solo do mundo sensvel e do mundo trabalhado taiscomo so em nossa vida, por nosso corpo, no esse corpo possvel que lcito afirmar ser uma mquina de informao, mas esse corpo atualque chamo meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhaspalavras e sob meus atos. preciso que com meu corpo despertem oscorpos associados, os "outros", que no so meus congneres, como diz a 14

  • zoologia, mas que me freqentam, que freqento, com os quais freqen-to um nico Ser atual, presente, como animal nenhum freqentou os desua espcie, seu territrio ou seu meio. Nessa historicidade primordial, opensamento alegre e improvisador da cincia aprender a ponderarsobre as coisas e sobre si mesmo, voltar a ser filosofia...

    Ora, a arte, e especialmente a pintura, abeberam-se nesse lenol desentido bruto do qual o ativismo nada quer saber. So mesmo as nicasa faz-lo com toda a inocncia. Ao escritor, ao filsofo, pede-se conse-lho ou opinio, no se admite que mantenham o mundo em suspenso,quer-se que tomem posio - eles no podem declinar as responsabili-dades do homem que fala. A msica, inversamente, est muito aqumdo mundo e do designvel para figurar outra coisa seno puras do Ser,seu fluxo e seu refluxo, seu crescimento, suas exploses, seus turbilhes.O pintor o nico a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem ne-nhum dever de apreciao. Dir-se-ia que diante dele as palavras de ordemdo conhecimento e da ao perdem a virtude. Os regimes que invecti-vam contra a pintura "degenerada" raramente destroem os quadros:eles os escondem, e h um "nunca se sabe" que quase um reconheci-mento; o reproche de evaso raramente se dirige ao pintor. Ningumcensura Czanne por ter vivido escondido em L'Estaque durante aguerra de 1870, todos citam com respeito seu " assustadora a vida",enquanto qualquer estudante, depois de Nietzsche, repudiaria pronta-mente a filosofia se fosse dito que ela no nos ensina a ser grandesviventes. Como se houvesse na ocupao do pintor uma urgncia queexcede qualquer outra urgncia. Ele est ali, forte ou fraco na vida, masincontestavelmente soberano em sua ruminao do mundo, sem outra"tcnica" seno a que seus olhos e suas mos oferecem fora de ver, fora de pintar, obstinado em tirar deste mundo, onde soam os escnda-los e as glrias da histria, telas que pouco acrescentaro s cleras e sesperanas dos homens, e ningum murmura. Qual , pois, essa cinciasecreta que ele possui ou que ele busca? Essa dimenso segundo a qualVan Gogh quer ir "mais longe"? Esse fundamental da pintura, e talvezde toda a cultura? 15

  • II

    o pintor "emprega seu corpo", diz Valry. E, de fato, no se percebecomo um Esprito poderia pintar. oferecendo seu corpo ao mundoque o pintor transforma o mundo em pintura. Para compreender essastransubstanciaes, preciso reencontrar o corpo operante e atuaI,aquele que no uma poro do espao, um feixe de funes, que umtranado de viso e de movimento.

    Basta que eu veja alguma coisa para saber juntar-me a ela e atingi-la,mesmo se no sei como isso se produz na mquina nervosa. Meu corpomvel conta com o mundo visvel, faz parte dele, e por isso posso dirigi-lo no visvel. Por outro lado, tambm verdade que a viso depende domovimento. S se v o que se olha. Que seria a viso sem nenhum movi-mento dos olhos, e como esse movimento no confundiria as coisas seele prprio fosse reflexo ou cego, se no tivesse suas antenas, sua clarivi-dncia, se a viso no se antecipasse nele? Todos os meus deslocamentospor princpio figuram num canto de minha paisagem, esto reportadosao mapa do visvel. Tudo o que vejo por princpio est ao meu alcance,pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do "eu posso".Cada um dos dois mapas completo. O mundo visvel e de meus proje-tos motores so partes totais do mesmo Ser.

    Essa extraordinria imbricao, sobre a qual no se pensa sufi-ciente, probe conceber a viso como uma operao de pensamento queergueria diante do esprito um quadro ou uma representao do mundo,um mundo da imanncia e da idealidade. Imerso no visvel por seu cor-po, ele prprio visvel, o vidente no se apropria do que v; apenas seaproxima dele pelo olhar, se abre ao mundo. E esse mundo, do qual elefaz parte, no , por seu lado, em si ou matria. Meu movimento no uma deciso do esprito, um fazer absoluto, que decretaria, do fundo doretiro subjetivo, uma mudana de lugar milagrosamente executada naextenso. Ele a seqncia natural e o amadurecimento de uma viso..Digo de uma coisa que ela movida, mas, meu corpo, ele prprio semove, meu movimento se desenvolve. Ele no est na ignorncia de si,no cego para si, ele irradia de um si...

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  • O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente evisvel. Ele, que olha todas as coisas, pode tambm se olhar, e reconhe-cer no que v ento o "outro lado" de seu poder vidente. Ele se vvidente, ele se toca tocante, visvel e sensvel para si mesmo. um si,no por transparncia, como o pensamento, que s pensa seja o que forassimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento - masum si por confuso, por narcisismo, inerncia daquele que v ao que elev, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido - um sique tomado portanto entre coisas, que tem uma face e um dorso umpassado e um futuro...

    Esse primeiro paradoxo no cessar de produzir outros. Visvel emvel, meu corpo conta-se entre as coisas, uma delas, est preso notecido do mundo, e sua coeso a de uma coisa. Mas, dado que v e semove, ele mantm as coisas em crculo a seu redor, elas so um anexoou um prolongamento dele mesmo, esto incrustadas em sua carne,fazem parte de sua definio plena, e o mundo feito do estofo mesmodo corpo. Essas inverses, essas antinomias so maneiras diversas dedizer que a viso tomada ou se faz do meio das coisas, l onde persis-te, como a gua-me no cristal, a indiviso do senciente e do sentido.

    Essa interioridade no precede o arranjo material do corpo huma-no, e tampouco resulta dele. Se nossos olhos fossem feitos de tal modoque nenhuma parte de nosso corpo se expusesse ao nosso olhar, ou seum dispositivo maligno, deixando-nos livres para passar as mos sobreas coisas, nos impedisse de tocar nosso corpo - ou simplesmente se,como certos animais, tivssemos olhos laterais, sem recobrimento doscampos visuais -, esse corpo que no se refletiria, no se sentiria, essecorpo quase adamantino, que no seria inteiramente carne, tampoucoseria o corpo de um homem, e no haveria humanidade. Mas a humani-dade no produzida como um efeito por nossas articulaes, pelaimplantao de nossos olhos (e muito menos pela existncia dos espe-lhos que, no obstante, so os nicos a tornar visvel para ns nosso cor-po inteiro). Essas contingncias e outras semelhantes, sem as quais nohaveria homem, no fazem, por simples soma, que haja um s homem.A animao do corpo no a juno de suas partes umas s outras -

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  • nem, alis, a descida do autmato de um esprito vindo de alhures, o quesuporia ainda que o prprio corpo sem interior e sem "si". Um corpohumano est a quando, entre vidente e visvel, entre tocante e tocado,entre um olho e o outro, entre a mo e a mo se produz uma espcie derecruzamento, quando se acende a fasca do senciente-sensvel, quandose inflama o que no cessar de queimar, at que um acidente do corpodesfaa o que nenhum acidente teria bastado para fazer...

    Ora, uma vez dado esse estranho sistema de trocas, todos os proble-mas da pintura a se encontram. Eles ilustram o enigma do corpo e ela osjustifica. J que as coisas e meu corpo so feitos do mesmo estofo, cumpreque sua viso se produza de alguma maneira nelas, ou ainda que a visibi-lidade manifesta delas se acompanhe nele de uma visibilidade secreta: "anatureza est no interior", diz Czanne. Qualidade, luz, cor, profundi-dade, que esto a uma certa distncia diante de ns, s esto a porquedespertam um eco em nosso corpo, porque este as acolhe. Esse equiva-lente interno, essa frmula carnal de sua presena que as coisas suscitamem mim, por que no suscitariam por sua vez um traado, visvel ainda,onde qualquer outro olhar reencontrar os motivos que sustentam suainspeo do mundo? Ento surge um visvel em segunda potncia, essn-cia carnal ou cone do primeiro. No se trata de um duplo enfraquecido,de um trompe l'oeil, de uma outra coisa. Os animais pintados sobre aparede de Lascaux no esto ali como a fenda ou a dilatao do calcrio.Tampouco esto alhures. Um pouco frente, um pouco atrs, sustentadospor sua massa da qual habilmente se servem, eles irradiam em torno delasem jamais romperem sua imperceptvel amarra. Eu teria muita dificul-dade de dizer onde est o quadro que olho. Pois no o olho como se olhauma coisa, no o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nosnimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo.

    A palavra imagem mal-afamada porque se julgou irrefletida-mente que um desenho fosse um decalque, uma cpia, uma segundacoisa, e a imagem mental um desenho desse gnero em nosso bricabra-que privado. Mas se de fato ela no nada disso, o desenho e o quadrono pertencem mais que ela ao em si. Eles so o dentro do fora e o forado dentro, que a duplicidade do sentir torna possvel, e sem os quais

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  • jamais se compreender a quase-presena e a visibilidade iminente queconstituem todo o problema do imaginrio. O quadro, a mmica docomediante no so auxiliares que eu tomaria do mundo verdadeiropara visar atravs deles coisas prosaicas em sua ausncia. O imaginrioest muito mais perto e muito mais longe do atual: mais perto, porque o diagrama de sua vida em meu corpo, sua polpa ou seu avesso carnalpela primeira vez expostos aos olhares, e nesse sentido, como o dizenergicamente Giacometti,1 "o que me interessa em todas as pinturas a semelhana, isto , o que para mim a semelhana: o que me faz des-cobrir um pouco o mundo exterior". Muito mais longe, porque o qua-dro s um anlogo segundo o corpo, porque ele no oferece ao espritouma ocasio de repensar as relaes constitutivas das coisas, mas sim aoolhar, para que as espose, os traos da viso do dentro, viso o que aforra interiormente, a textura imaginria do real.

    Diremos ento que h um olhar do dentro, um terceiro olho que vos quadros e mesmo as imagens mentais, como se falou de um terceiroouvido que capta as mensagens de fora atravs do rumor que suscitamem ns? Para qu? Toda a questo compreender que nossos olhos jso muito mais que receptores para as luzes, as cores e as linhas: compu-tadores do mundo que tm o dom do visvel, como se diz que o homeminspirado tem o dom das lnguas. Claro que esse dom se conquista peloexerccio, e no em alguns meses, no tampouco na solido que umpintor entra em posse de sua viso. A questo no essa: precoce ou tar-dia, espontnea ou formada no museu, sua viso em todo caso s apren-de vendo, s aprende por si mesma. O olho v o mundo, e o que falta aomundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele prprio, e,na paleta, a cor que o quadro espera; e v, uma vez feito, o quadro queresponde a todas essas faltas, e v os quadros dos outros, as respostasoutras a outras faltas. No se pode fazer um inventrio limitativo dovisvel como tampouco dos usos possveis de uma lngua ou somente deseu vocabulrio e de suas frases. Instrumento que se move por si mesmo,meio que inventa seus fins, o olho aquilo que foi sensibilizado por um

    1. G. Charbonnier, Le monologue du peintre (Paris: Julliard, 1959), p. 172.

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  • certo impacto do mundo e o restitui ao visvel pelos traos da mo. Noimporta a civilizao em que surja, e as crenas, os motivos, os pensa-mentos, as cerimnias que a envolvam, e ainda que parea votada a outracoisa, de Lascaux at hoje, pura ou impura, figurativa ou no, a pinturajamais celebra outro enigma seno o da visibilidade.

    O que dizemos aqui equivale a um trusmo: o mundo do pintor um mundo visvel, to-somente visvel, um mundo quase louco, pois completo sendo no entanto apenas parcial. A pintura desperta, leva sua ltima potncia um delrio que a viso mesma, pois ver ter dis-tncia, e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser,que devem de algum modo se fazer visveis para entrar nela. Quando ojovem Berenson falava, a propsito da pintura italiana, de uma evoca-o dos valores tteis, ele no podia estar mais enganado: a pintura noevoca nada, e especialmente no evoca o ttil. Ela faz algo completa-mente distinto, quase o inverso: d existncia visvel ao que a viso pro-fana cr invisvel, faz que no tenhamos necessidade de "sentido mus-cular" para ter a voluminosidade do mundo. Essa viso devoradora,para alm dos "dados visuais", d acesso a uma textura do Ser da qualas mensagens sensoriais discretas so apenas as pontuaes ou as cesu-ras, textura que o olho habita como o homem sua casa.

    Permaneamos no visvel no sentido estrito e prosaico: o pintor,qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mgica da viso. Eleprecisa admitir que as coisas entram nele ou que, segundo o dilema sarcs-tico de Malebranche, o esprito sai pelos olhos para passear pelas coisas,uma vez que no cessa de ajustar sobre elas sua vidncia. (Nada muda seele no pinta a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, por-que o mundo, ao menos uma vez, gravou dentro dele as cifras do visvel.)Ele precisa reconhecer, como disse um filsofo, que a viso espelho ouconcentrao do universo, ou que, como disse um outro, o dios ksmosd acesso por ela a um lcoinos lcsmos,* que a mesma coisa se encontra lno cerne do mundo e aqui no cerne da viso, a mesma ou, se preferirem,uma coisa semelhante, mas segundo uma similitude eficaz, que parente,

    * Cosmo particular e cosmo geral , respectivamente. [N.T.]

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  • gnese, metamorfose do ser em sua viso. a prpria montanha que, ldistante, se mostra ao pintor, a ela que ele interroga com o olhar.

    O que ele pede a ela exatamente? Pede-lhe revelar os meios to-somente visveis, pelos quais ela se faz montanha aos nossos olhos.Luz,iluminao, sombra , reflexos, cor, esses objetos da pesquisa no sointeiramente seres reais: como os fantasmas, tm existncia apenasvisual. Inclusive, no esto seno no limiar da viso profana, no so

    comumente vistos. O olhar do pintor lhes pergunta como se arranjampara que haja de repente alguma coisa, e essa coisa, para compor umtalism do mundo, para nos fazer ver o visvel. A mo que aponta emnossa direo em A ronda noturna est relmente ali quando sua sombrasobre o corpo do capito no-la apresenta simultaneamente de perfil. Nocruzamento dos dois aspectos incompossveis, e que no entanto estojuntos, mantm-se a espacialidade do capito. Desse jogo de sombras eoutros semelhantes, todos os homens que tm olhos foram algum diatestemunhas. Ele que lhes fazia ver coisas e um espao. Mas operavadentro deles sem eles, dissimulava-se para mo trar a coisa. Para que esta

    fosse vi ta, no era preciso que ele o fosse. O visvel no sentido profa-no esquece suas premissas, repousa sobre uma visibilidade inteira a serrecriada, e que libera os fantasmas nele cativos. as modernos, como sesabe, liberaram muitos outros, acrescentaram muitas notas surdas gama oficial de nossos meios de ver. Mas a interrogao da pintura visa,em todo caso, essa gnese secreta e febril das coisas em nosso corpo.

    Essa no portanto a pergunta daquele que sabe quele que igno-ra, pergunta do mestre-escola. a pergunta daquele que no sabe a umaviso que tudo sabe, pergunta que no fazemos, que se faz em ns. MaxErnst (e o surrealismo) diz com razo: "Assim como o papel do poetadesde a clebre carta do vidente consiste em escrever sob o ditado doque se pensa, do que se articula dentro dele, o papel do pintor cercar e

    projetar o que dentro dele se v".2 O pintor vive na fascinao. Suasaes mais prprias - os gestos, os traos de que s ele capaz, e quesero revelao para os outros, porque no tm as mesmas carncias

    2. G. Charbonnier, op. cit., p. 34.

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  • que ele - parecem-lhe emanar das coisas mesmas, como o desenho dasconstelaes. Entre ele e o visvel, os papis inevitavelmente se inver-tem. Por isso tantos pintores disseram que as coisas os olham, e disseAndr Marchand na esteira de Klee: "Numa floresta, vrias vezes sentique no era eu que olhava a floresta. Certos dias, senti que eram asrvores que me olhavam, que me falavam [...] Eu estava ali, escutando[...] Penso que o pintor deve ser traspassado pelo universo e no querertraspass-lo [...] Espero estar interiormente submerso, sepultado. Pintotalvez para surgir". 3 O que chamam inspirao deveria ser tomado aop da letra: h realmente inspirao e expirao do Ser, respirao noSer, ao e paixo to pouco discernveis que no se sabe mais quem ve quem visto, quem pinta e quem pintado. Diz-se que um homemnasceu no instante em que aquilo que no mago do corpo materno eraapenas um visvel virtual se faz simultaneamente visvel para ns e parasi. A viso do pintor um nascimento continuado.

    Poder-se-ia buscar nos prprios quadros uma filosofia figurada daviso e como que sua iconografia. No um acaso, por exemplo, quefreqentemente, na pintura holandesa (e em muitas outras) , um interiordeserto seja "digerido" pelo "olho redondo do espelho". 4Esse olharpr-humano o emblema do olhar do pintor. Mais completamente queas luzes, as sombras e os reflexos, a imagem especular esboa nas coisaso trabalho da viso. Como todos os outros objetos tcnico como asferramentas, como os signos, o espelho surgiu no circuito aberto docorpo vidente ao corpo visvel. Toda tcnica "tcnica do corpo". Elafigura e amplifica a estrutura metafsica de nossa carne. O espelho apa-rece porque sou vidente-visvel, porque h uma reflexividade do sens-vel, que ele traduz e duplica. Por ele, meu exterior se completa tudo oque tenho de mais secreto passa por esse rosto por esse ser plano efechado que meu reflexo na gua j me fazia uspeitar. Schilder5 observa

    3 Id., ibid., pp. 143-5.4 P. Claudel, Inlroduction la peinture hollandaise [1935] (Paris: Gallimard, 1946).5. P. Schilder, The Image and Appeararue of the Human Body [1935] (Londres: Kegan, NovaYork: International Universities Press, 1950). [Ed. bras.: A imagem do corpo, trad . RosanneWertman. So Paulo: Martins Fontes, 2000.]

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  • que, ao fumar cachimbo diante do espelho, sinto a superfcie lisa eardente da madeira no s onde esto meus dedos, mas tambm naque-les dedos gloriosos, naqueles dedos apenas visveis que esto no fundodo espelho. O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e aomesmo tempo todo o invisvel de meu corpo pode investir os outroscorpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentostomados do corpo dos outros assim como minha substncia passa paraeles, o homem espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele o ins-trumento de uma universal magia que transforma as coisas em espet-culos, os espetculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim. Comfreqncia os pintores sonharam sobre os espelhos porque, sob esse"truque mecnico" como sob o da perspectiva,6 reconheciam a meta-morfose do vidente e do visvel, que a definio da nossa carne e a davocao deles. Eis por que tambm com freqncia gostaram (aindagostam: que se vejam os desenhos de Matisse) de se figurar eles prpriosno momento de pintar, acrescentando ento ao que viam o que as coisasviam deles, como para certificar que h uma viso total ou absoluta,fora da qual nada permanece, e que torna a se fechar sobre eles mesmos.Como nomear, onde colocar no mundo do entendimento essas opera-es ocultas, e os filtros, os dolos que elas preparam? O sorriso de ummonarca morto h tantos anos, do qual falava a Nusea, e que continuaa se produzir e a se reproduzir na superfcie de uma tela, muito poucodizer que est ali em imagem ou em essncia: ele prprio est ali no queteve de mais vivo, assim que olho o quadro. O "instante do mundo"que Czanne queria pintar e que h muito transcorreu, suas telas conti-nuam a lan-lo para ns, e sua montanha Santa Vitria se faz e se refazde uma ponta a outra do mundo, de outro modo, mas no menos energi-camente que na rocha dura acima de Aix. Essncia e existncia, imagin-rio e real, visvel e invisvel, a pintura confunde todas as nossas categoriasao desdobrar seu universo onrico de essncias carnais, de semelhanaseficazes, de significaes mudas.

    6. Robert Delaunay, Du cubisme l'art abstrait, cadernos publicados por Pierre Francastel(Paris: SEVPEN, 1957).

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  • III

    Como tudo seria mais lmpido em nossa filosofia se pudssemos exorci-zar esses espectros, fazer deles iluses ou percepes sem objeto, mar-gem de um mundo sem equvoco! A Diptrica de Descartes essa ten-tativa. o brevirio de um pensamento que no quer mais freqentar ovisvel e decide reconstru-lo segundo o modelo que dele se oferece.Vale a pena lembrar o que foi essa tentativa, e esse fracasso.

    Nenhuma preocupao, portanto, de aderir viso. Trata-se desaber "como ela se produz", mas na medida necessria para inventar, sepreciso, alguns "rgos artificiais"7 que a corrijam. No se raciocinartanto sobre a luz que vemos quanto sobre a que de fora entra em nossosolhos e comanda a viso; e para isso sero suficientes "duas ou trscomparaes que ajudem a conceb-la" de uma maneira que expliquesuas propriedades conhecidas e delas permita deduzir outras.8 A tomaras coisas assim, o melhor pensar a luz como uma ao por contato, talcomo a das coisas sobre a bengala do cego. Os cegos, diz Descartes,"vem com as mos".9 O modelo cartesiano da viso o tato.

    Prontamente ele nos desembaraa da ao distncia e daquelaubiqidade que constitui toda a dificuldade da viso (e tambm toda asua virtude). Por que divagar agora sobre os reflexos, sobre os espe-lhos? Esses duplos irreais so uma variedade de coisas, so efeitos reaiscomo o ricochete de uma bala. Se o reflexo se assemelha coisa mesma, que ele age mais ou menos sobre os olhos como o faria uma coisa. Eleengana o olho, engendra uma percepo sem objeto, mas que no afetanossa idia do mundo. No mundo h a coisa mesma, e h fora dela essaoutra coisa que o raio refletido, a qual mantm com a primeira umacorrespondncia regulada; dois indivduos, portanto, ligados por forapela causalidade. A semelhana da coisa e de sua imagem especular no para elas seno uma denominao exterior, pertence ao pensamento.A duvidosa relao de semelhana nas coisas uma clara relao de

    7 Descartes, Dioptrique, Discurso VII, edio Adam et Tannery, VI, p. 165.8. Id., Discurso I, op.cit., p. 83.9. Id., ibid., p. 84. 24

  • projeo. Um cartesiano no se v no espelho: v um manequim, um"exterior" do qual tudo faz supor que os outros o vejam do mesmomodo, mas que, para ele prprio como para os outros, no uma carne.Sua "imagem" no espelho um efeito da mecnica das coisas; se nela sereconhece, se a considera "semelhante", seu pensamento que tece essaligao, a imagem especular nada dele.

    No h mais poder dos cones. Por mais vivamente que "nosrepresente" as florestas, as cidades, os homens, as batalhas, as tempesta-des, a gravura em talho-doce no se lhes assemelha: apenas um poucode tinta disposta aqui e ali sobre o papel. No mximo ele retm das coi-sas sua figura, uma figura achatada num nico plano, deformada e quedeve ser deformada - o quadrado em losango, o crculo em oval- pararepresentar o objeto. Ele s a "imagem" desse objeto com a condiode "no se assemelhar a ele" .10 Se no por semelhana, como ento eleage? Ele "excita nosso pensamento" a "conceber", como fazem os sig-nos e as palavras "que no se assemelham de maneira alguma s coisasque significam" .11 A gravura nos oferece indcios suficientes, "meios"sem equvoco para formar uma idia da coisa que no vem do cone,que nasce em ns por "ocasio" deste. A magia das espcies intencio-nais, a velha idia da semelhana eficaz, imposta pelos espelhos e pelosquadros, perde seu ltimo argumento se todo o poder do quadro o deum texto proposto nossa leitura, sem nenhuma promiscuidade entre ovidente e o visvel. Somos dispensados de compreender como a pinturadas coisas nos corpos poderia faz-las sentir alma, tarefa impossvel, jque a semelhana dessa pintura com as coisas teria por sua vez necessi-dade de ser vista, e precisaramos de "outros olhos em nosso crebrocom os quais pudssemos perceb-la", 12 permanecendo o problema daviso intacto quando nos dssemos esses simulacros errantes entre ascoisas e ns. Do mesmo modo que os talhos-doces, o que a luz traa emnossos olhos e dali em nosso crebro no se assemelha ao mundo vis-vel. Das coisas aos olhos e dos olhos viso no se transmite algo mais

    10. Id.) ibid., IV, pp. 112-411. Id., ibid., pp. 112-4.12. Id., ibid., VI, p. '30.

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  • que das coisas s mos do cego e de suas mos a seu pensamento. A visono a metamorfose das coisas mesmas em sua viso, a dupla pertenadas coisas ao grande mundo e a um pequeno mundo privado. um pen-samento que decifra estritamente os signos dados no corpo. A seme-lhana o resultado da percepo, no sua motivao. Com mais forterazo, a imagem mental, a vidncia que nos torna presente o que au-sente, de modo nenhum como uma abertura ao corao do Ser: aindaum pensamento apoiado sobre indcios corporais, desta vez insuficientes,aos quais ela faz dizer mais do que significam. Nada resta do mundoonrico da analogia...

    O que nos interessa nessas clebres anlises que elas tornam sen-svel que toda teoria da pintura uma metafisica. Descartes no faloumuito da pintura, e poderiam achar abusivo basear-se no que ele diz emduas pginas dos talhos-doces. Entretanto, j significativo que faledisso s de passagem: a pintura no para ele uma operao central queajude a definir nosso acesso ao ser; um modo ou uma variante do pen-samento canonicamente definido pela posse intelectual e a evidncia.No pouco que ele diz, essa opo que se exprime, e um estudo maisatento da pintura delinearia uma outra filosofia. significativo tambmque, devendo falar dos "quadros", ele tome como tpico o desenho.Veremos que a pintura inteira est presente em cada um de seus meiosde expresso: h um desenho, uma linha que encerram todas as suasousadias. Mas o que agrada a Descartes nos talhos-doces eles conser-varem a forma dos objetos ou ao menos nos oferecerem signos suficien-tes deles. Eles nos do uma apresentao do objeto por seu exterior ouseu envoltrio. Se tivesse examinado essa outra e mais profunda abertu-ra s coisas que as qualidades segundas oferecem, especialmente a cor,como no h relao regulada ou projetiva entre elas e as propriedadesverdadeiras das coisas, e como no entanto sua mensagem por nscompreendida, Descartes teria se visto diante do problema de uma uni-versalidade e de uma abertura s coisas sem conceito, obrigado a inves-tigar de que maneira o murmrio indeciso das cores pode nos apresen-tar coisas, florestas, tempestades, enfim o mundo, e talvez a integrar aperspectiva como caso particular de um poder ontolgico mais amplo.

    26

  • Mas bvio para ele que a cor ornamento, colorao, que toda a for-a da pintura repousa sobre a do desenho, e a do desenho sobre a rela-o regulada que existe entre ele e o espao em si tal como o ensina aprojeo em perspectiva. A famosa frase de Pascal sobre a frivolidadeda pintura que nos afeioa a imagens cujo original no nos tocaria uma frase cartesiana. uma evidncia, para Descartes, que s poss-vel pintar coisas existentes, que sua existncia serem extensas, e que odesenho torna possvel a pintura ao tornar possvel a representao daextenso. A pintura ento no mais que um artifcio que apresenta anossos olhos uma projeo semelhante quela que as coisas neles ins-creveriam e neles inscrevem na percepo comum, ela nos faz ver naausncia do objeto verdadeiro como se v o objeto verdadeiro na vida,e sobretudo nos faz ver espao onde no h espao.13 O quadro umacoisa plana que nos oferece artificiosamente o que veramos em presenade coisas"diversamente relevadas" porque nos oferece segundo a altura ea largura sinais diacrticos suficientes da dimenso que lhe falta. A profun-didade uma terceira dimenso derivada das outras duas.

    Detenhamo-nos nela, isso vale a pena. Primeiro, ela tem algo deparadoxal: vejo objetos que se ocultam um ao outro, e que portanto novejo, j que esto um atrs do outro. Vejo a profundidade e ela no vis-vel, j que se mede de nosso corpo s coisas, e estamos colados a ele...Esse mistrio um falso mistrio: eu no a vejo verdadeiramente ou, sea vejo, uma outra amplitude. Sobre a linha que liga meus olhos ao hori-zonte, o primeiro plano oculta para sempre os outros, e, se lateralmenteacredito ver os objetos escalonados, que eles no se encobrem inteira-mente: vejo-os portanto um fora do outro, segundo uma largura diferen-temente calculada. Sempre se est aqum da profundidade, ou alm.Jamai as coisas esto uma atrs da outra. A imbricao e a latncia dascoisas no entram em sua definio, exprimem apenas minha incom-preensvel solidariedade com uma delas, meu corpo, e, em tudo o que elas

    13. O sistema dos meios pelos quais ela nos faz ver objeto da cincia. Por que ento noproduziramos metodicamente perfeitas imagens do mundo, uma pintura universal liberta daarte pessoal, como a lngua universal nos libertaria de todas as relaes confusas que searrastam nas lnguas existentes? 27

  • tm de positivo, so apenas pensamentos que formo e no atributos dascoisas: sei que neste exato momento um outro homem diferentementecolocado - melhor ainda: Deus, que est em toda parte - poderia pene-trar seu esconderijo e as veria desdobradas. O que chamo profundidade nada ou minha participao num Ser sem restrio, e primeiramenteno ser do espao para alm de todo ponto de vista. As coisas se imbricamumas nas outras porque elas esto fora uma da outra. Prova disso queposso ver profundidade olhando um quadro que, todos concordaro, noa possui, e que organiza para mim a iluso de uma iluso... Esse ser deduas dimenses, que me faz ver uma outra, um ser esburacado, comodiziam os homens do Renascimento, uma janela... Mas a janela, afinal, sse abre para o partes extra partes, para altura e a largura que s so vistasde um outro vis, para a absoluta positividade do Ser.

    esse espao sem esconderijo, que em cada um de seus pontos ,nem mais nem menos, o que ele , essa identidade do Ser que suhjaz anlise dos talhos-doces. O espao em si, ou melhor, o em si porexcelncia, sua definio ser em si. Cada ponto do espao existe e pensado ali onde ele est, um aqui, outro ali, o espao a evidncia doonde. Orientao, polaridade, envolvimento so nele fenmenos deri-vados, ligados minha presena. Ele repousa absolutamente em si, portoda parte igual a si, homogneo, e suas dimenses, por exemplo, sopor definio substituveis.

    Como todas as ontologias clssicas, esta erige como estrutura doSer certas propriedades dos seres, e nisso ela verdadeira e falsa, pode-ramos dizer, invertendo a frase de Leibniz: verdadeira no que nega efalsa no que afirma. O espao de Descartes verdadeiro contra um pen-samento subjugado ao emprico e que no ousa construir. Era precisoprimeiro idealizar o espao, conceber esse ser perfeito em seu gnero,claro, manejvel" e homogneo, que o pensamento sobrevoa sem pontode vista e reporta por inteiro aos trs eixos retangulares, para que sepudesse um dia encontrar os limites da construo, compreender que oespao no tem trs dimenses, nem mais nem menos, como um animaltem duas ou quatro patas, que as dimenses so antecipadas pelas diver-sas mtricas sobre uma dimensionalidade, sobre um Ser polimorfo que

    28

  • justifica todas elas sem ser completamente expresso por nenhuma. Des-cartes tinha razo de liberar o espao Seu erro foi erig-lo num serinteiramente positivo, alm de todo ponto de vista, de toda latncia, detoda profundidade, sem nenhuma espessura verdadeira.

    Tinha razo tambm de se inspirar nas tcnicas da perspectiva doRenascimento: elas encorajaram a pintura a produzir livremente expe-rincias de profundidade e, em geral, apresentaes do Ser. Elas seram falsas quando pretendiam encerrar a investigao e a histria dapintura, fundar uma pintura exata e infalvel. Panofsky o mostrou apropsito dos homens do Renascimento,14 esse entusiasmo no era des-provido de m-f. Os tericos tentavam esquecer o campo visual esf-rico dos Antigos, sua perspectiva angular, que liga a grandeza aparente,no distncia, mas ao ngulo sob o qual vemos o objeto, o que eleschamavam desdenhosamente a perspectiva naturalis ou communis, emfavor de uma perspectiva artificialis capaz em princpio de fundar umaconstruo exata; para abonar esse mito, chegavam a expurgar Euclides,omitindo de suas tradues o teorema VIII que os embaraava. Os pin-tores, porm, sabiam por experincia que nenhuma das tcnicas da pers-pectiva uma soluo exata, que no h projeo do mundo existenteque respeite isso sob todos os aspectos e merea tornar-se a lei funda-mental da pintura, e que a perspectiva linear no um ponto de chega-da, pois ela abre, ao contrrio, vrios caminhos pintura: com os italia-nos o da representao do objeto, mas com os pintores do Norte o doHochraum, do Nahraum, do Schragraum...*Assim, a projeo plana nemsempre excita nosso pensamento a reencontrar a forma verdadeira dascoisas, como supunha Descartes; ao contrrio, passado um certo graude deformao, a nosso ponto de vista que ela remete: quanto s coi-sas, elas se evadem numa distncia que nenhum pensamento transpe.Algo no espao escapa a nossas tentativas de sobrevo. A verdade quenenhum meio de expresso adquirido resolve os problemas da pintura,no a transforma em tcnica, porque nenhuma forma simblica jamais

    14. E. Panofsky, "Die Perspektive als 'symbolische Form''', in Vortrge der Bibliothek War-burg, IV (1924-25). * Espao elevado, espao pr6xjmo e espao oblquo, respectivamente. (N.T.] 29

  • funciona como um estmulo: l onde ela operou e agiu, foi junto comtodo o contexto da obra, e de modo nenhum pelos meios do trompe-l'oeil. O Stilmoment jamais dispensa o Wermoment. 15 *A linguagem dapintura no "instituda pela Natureza": est por fazer e por refazer.A perspectiva do Renascimento no um "truque" infalvel: apenasum caso particular, uma data, um momento numa informao poticado mundo que continua depois dela.

    Descartes no entanto no seria Descartes se tivesse pensado elimi-nar O enigma da viso. No h viso sem pensamento. Mas no bastapensar para ver: a viso um pensamento condicionado, nasce "por oca-sio" do que acontece no corpo, "excitada" a pensar por ele. Ela noescolhe nem ser ou no ser, nem pensar isso ou aquilo. Deve trazer emseu cerne aquela gravidade, aquela dependncia que no lhe podemadvir por uma intromisso de fora. Tais acontecimentos do corpo so"institudos pela natureza" para nos darem a ver isso ou aquilo. O pen-samento da viso funciona segundo um programa e uma lei que ele nose atribuiu, ele no est de posse de suas prprias premissas, no pen-samento inteiramente presente, inteiramente atual, h em seu centro ummistrio de passividade. A situao portanto a seguinte: tudo o que sediz e se pensa da viso faz dela um pensamento. Quando, por exemplo,se quer compreender como vemos a situao dos objetos, no h outrorecurso seno supor a alma capaz, sabendo onde esto as partes de seucorpo, de "transferir dali sua ateno" a todos os pontos do espao queesto no prolongamento dos membros.16 Mas isso ainda apenas um"modelo" do acontecimento. Pois esse espao de seu corpo que ela es-tende s coisas, esse primeiro aqui de onde viro todos os ali, como ela osabe? Ele no como estes um modo qualquer, uma amostra da exten-so, o lugar do corpo que a alma chama "seu", um lugar que ela habi-ta. O corpo que ela anima no para ela um objeto entre os objetos, e elano extrai dele todo o resto do espao a ttulo de premissa implicada. Ela

    15. Id., ibid.* Stilrrwment e Wermoment: momento (ou aspecto) do estilo e momento (ou aspecto) pes-soal, respectivamente. [N.T.]16. Descartes, op. cit., VI, p. 135

    30 I

  • pensa segundo ele, no segundo si, e no pacto natural que a une a eleesto estipulados tambm o espao, a distncia exterior. Se, por determi-nado grau de acomodao e de convergncia do olho, a alma percebe taldistncia, o pensamento que obtm a segunda relao da primeira comoum pensamento imemorial inscrito em nossa fbrica interna: "E isso nosacontece ordinariamente sem refletirmos nisso, do mesmo modo que,quando apertamos algo em nossa mo, ns a conformamos ao tamanho e figura desse corpo e o sentimos por meio dela, sem que para tanto hajanecessidade de pensarmos em seus movimentos" .17 O corpo para a almaseu espao natal e a matriz de qualquer outro espao existente. Assim aviso se desdobra: h a viso sobre a qual reflito, no posso pens-la deoutro modo seno como pensamento, inspeo do Esprito, julgamento,leitura de signos. E h a viso que se efetua, pensamento honorrio ouinstitudo, esmagado num corpo seu, viso da qual no se pode ter idiaseno exercendo-a, e que introduz, entre o espao e o pensamento, aordem autnoma do composto de alma e de corpo. O enigma da visono eliminado: transferido do "pensamento de ver" viso em ato.

    Essa viso de fato e o "h" que ela contm no perturbam noentanto a filosofia de Descartes. Sendo pensamento unido a um corpo,ela no pode por definio, ser verdadeiramente pensamento. Podemospratic-Ia, exerc-la e, por assim dizer, existi-la, mas dela nada podemostirar que merea ser dito verdadeiro. Se, como a rainha Elizabeth, qui-sermos fora pensar algo a esse respeito, no h seno que retomarAristteles e a Escolstica, conceber o pensamento como corporal, oque no se concebe, mas a nica maneira de formular diante do enten-dimento a unio da alma e do corpo. Em verdade, absurdo submeterao entendimento puro a mistura do entendimento e do corpo. Esses pre-tensos pensamentos so os emblemas do "uso da vida", as armas elo-qentes da unio, legtimas com a condio de no serem tomadas porpensamentos. So os indcios de uma ordem da existncia - do homemexistente do mundo existente - que no nos compete pensar. Essa

    .ordem no marca em nosso mapa do Ser nenhuma terra incognita, no

    17 Id., ibd., p. '37. 31

  • restringe o alcance de nossos pensamentos, porque est sustentada,como este, por uma Verdade que funda tanto sua obscuridade quantonossas luzes. at aqui que devemos prosseguir para encontrar emDescartes algo como uma metafisica da profundidade: pois essa verda-de, no assistimos a seu nascimento, o ser de Deus , para ns, abismo...Tremor prontamente superado: para Descartes to intil sondar esseabismo quanto pensar o espao da alma e a profundidade do visvel.Sobre todos esses assuntos, estamos desqualificados por posio. Tal osegredo de equilbrio cartesiano: uma metafisica que nos d razes deci-sivas para no mais fazermos metafsica, que valida nossas evidnciaslimitando-as, que abre nosso pensamento sem dilacer-lo.

    Segredo perdido, e, ao que parece, para sempre: se reencontrar-mos um equilbrio entre a cincia e a filosofia, entre nossos modelos e aobscuridade do "h", ter que ser um novo equilbrio. Nossa cinciarejeitou tanto as justificaes quanto as restries de campo que lhe im-punha Descartes. Os modelos que inventa, ela no pretende mais dedu-zi-los dos atributos de Deus. A profundidade do mundo existente e a doDeus insondvel no vm mais forrar a platitude do pensamento "tec-nicizado". O desvio pela metafsica, que Descartes pelo menos fizerauma vez em sua vida, a cincia o dispensa: ela parte do que foi seu pontode chegada. O pensamento operacional reivindica sob o nome de psico-logia o domnio do contato consigo mesmo e com o mundo existenteque Descartes reservava a uma experincia cega, mas irredutvel. Ele fundamentalmente hostil filosofia como pensamento de contato, e, seredescobre o sentido disso, ser pelo excesso mesmo de sua desenvoltu-ra, quando, tendo introduzido todo tipo de noes que para Descartespertenciam ao pensamento confuso - qualidade, estrutura escalar, soli-dariedade do observador e do observado -, notar de sbito que no sepode sumariamente falar de todos esses seres como de constructa. At l, contra ele que a filosofia se mantm, mergulhando nessa dimenso docomposto de alma e de corpo, do mundo existente, do Ser abissal queDescartes abriu e tornou a fechar em seguida. Nossa cincia e nossa filo-sofia so duas conseqncias fiis e infiis do cartesianismo, dois mons-tros nascidos de seu desmembramento. 32

  • nossa filosofia s resta empreender a prospeco do mundo atual.Somos o composto de alma e de corpo, portanto preciso que haja umpensamento dele: a esse saber de posio ou de situao que Descartesdeve o que diz desse pensamento, ou o que diz s vezes da presena docorpo "contra a alma", ou da do mundo exterior "na ponta" de nossasmos. Aqui o corpo no mais meio da viso e do tato, mas seu deposit-rio. Longe de nossos rgos serem instrumentos, nossos instrumentos, aocontrrio, que so rgos acrescentados. O espao no mais aquele deque fala a Diptrica, rede de relaes entre objetos, tal como o veria umaterceira testemunha de minha viso, ou um gemetra que a reconstitussee a sobrevoasse, um espao contado a partir de mim como ponto ougrau zero da espacialidade. Eu no o vejo segundo seu envoltrio exte-rior, vivo-o por dentro, estou englobado nele. Pensando bem, o mundoest ao redor de mim, no diante de mim. A luz redescoberta como ao distncia, e no mais reduzida ao de contato, isto , concebida comoo fariam os que no a vem. A viso retoma seu poder fundamental demanifestar, de mostrar mais que ela mesma. E, j que nos dito que bas-ta um pouco de tinta par fazer ver florestas e tempestades, cumpre que elatenha seu imaginrio. Sua transcendncia no mais delegada a um esp-rito leitor que decifra os impactos da luz-coisa sobre o crebro, e quefaria o mesmo se jamais houvesse habitado um corpo. No se trata maisde falar do espao e da luz, mas de fazer falarem o espao e a luz queesto a. Questo interminvel, j que a viso qual ela se dirige elaprpria questo. Todas as investigaes que acreditvamos encerradas sereabrem. O que a profundidade, o que a luz, t t n - que so elas,no para o esprito que se separa do corpo, mas para aquele que Descartesdisse estar difundido no corpo - e, enfim, no somente para o esprito,mas para si prprias, j que nos atravessam, nos englobam?

    Ora, essa filosofia por fazer a que anima o pintor, no quandoexprime opinies sobre o mundo, mas no instante em que sua viso sefaz gesto, quando, dir Czanne, ele "pensa por meio da pintura" .18

    18. B. Dorival, Paul Czanne (Paris: P. Tisn, 1948): Czanne, por suas cartas e suas teste-munhas, p. 130 ss.

    33

  • IV

    Toda a histria da pintura, seu esforo para se livrar do ilusionismo epara adquirir suas prprias dimenses tm uma significao metafisica.Isso no se pode demonstrar. No por razes tiradas dos limites da obje-tividade em histria, e da inevitvel pluralidade das interpretaes, queproibira ligar uma filosofia a um acontecimento: a metafsica na qualpensamos no um corpo de idias separadas para o qual se buscariamjustificaes indutivas na empiria - e h na carne da contingncia umaestrutura do acontecimento, uma virtude prpria do plano esboado queno impedem a pluralidade das interpretaes, que so mesmo sua razoprofunda, que fazem desse plano um tema durvel da vida histrica etm direito a um estatuto filosfico. Em certo sentido, tudo o que se pdedizer e que se dir da Revoluo Francesa sempre esteve, est a partir deagora nela, nessa onda que se projetou sobre o fundo dos fatos parcela-res com sua espuma de passado e sua crista de futuro, e sempre obser-vando melhor como ela se fez que novas representaes dela se fazem e se faro. Quanto histria das obras, em todo caso, se elas so grandes, osentido que lhes damos posteriormente se originou delas. A prpria obrainaugurou o campo onde se mostra sob uma outra luz, ela que se meta-morfoseia e se torna a seqncia, as reinterpretaes interminveis dasquais ela legitimamente suscetvel no a transformam seno em si mes-ma; e, se o historiador redescobre sob o contedo manifesto o excesso ea espessura de sentido, a textura que lhe preparava um longo futuro,essa maneira ativa de ser, essa possibilidade que ele desvenda na obra,esse monograma que nela encontra fundam uma meditao filosfica.Mas esse trabalho requer uma longa familiaridade com a histria. Falta-nos tudo para execut-lo, seja a competncia, seja o lugar. No entanto,visto que a fora e a geratividade das obras excedem toda relao posi-tiva de causalidade e de filiao, no ilegtimo que um leigo, deixandofalar a lembrana de alguns quadros e de alguns livros. diga de que ma-neira a pintura intervm em suas reflexes e consigne seu sentimento deuma discordncia profunda, de uma mutao nas relaes do homem edo Ser, quando confronta maciamente um universo de pensamento 34

  • clssico com as pesquisas da pintura moderna. Espcie de histria porcontato, que talvez no saia dos limites de uma pessoa, e que no entantodeve tudo ao convvio com as outras...

    "Penso que Czanne buscou a profundidade durante toda a sua

    vida" , diz Giacometti,19 e Robert Delaunay acrescenta: "A profundidade a inspirao nova". 20 Quatro sculos aps as "solues" do Renasci-mento e trs sculos aps Descartes, a profundidade continua sendonova, e exige que a busquem, no "uma vez na vida" , mas durante todauma vida. Ela no pode ser o intervalo sem mistrio que eu veria de umavio entre as rvores prximas e as distantes. Nem tampouco a escamo-teao das coisas umas pelas outras que um desenho em perspectiva merepresenta vivamente: essas duas vistas so muito explcitas e no susci-tam questo alguma. O que constitui enigma a ligao delas, o queest entre elas - que eu vejo as coisas cada uma em seu lugar precisa-mente porque elas se eclipsam uma outra - , que elas sejam rivais dian-te de meu olhar precisamente por estarem cada uma em seu lugar. suaexterioridade conhecida em seu envoltrio, e sua dependncia mtua emsua autonomia. Da profundidade assim compreendida no se pode maisdizer que "terceira dimenso". Para comear, se houvesse alguma di-menso, seria antes a primeira: s existem formas, planos definidos se forestipulado a que distncia de mim se encontram suas diferentes partes.Mas uma dimenso primeira e que contenha as outras no uma dimen-so, ao menos no sentido ordinrio de uma certa relao segundo a qual semede. A profundidade assim compreendida antes a experincia dareversibilidade das dimenses, de uma "localidade" global onde tudo aomesmo tempo, cuja altura, largura e distncia so abstratas, de uma volu-minosidade que exprimimos numa palavra ao dizer que uma coisa est a.Quando Czanne busca a profundidade, essa deflagrao do Ser que elebusca, e ela est em todos os modos do espao, assim como na forma.Czanne j sabe o que o cubismo tornar a dizer: que a forma externa. oenvoltrio, egunda, derivada, no o que faz que uma coisa tenha

    19. G. Charbonnier, op. cit. , p. 176. 20. R, Delaunay, op. cit., p. 109. 35

  • forma, sendo preciso romper essa casca de espao, quebrar a compoteiracom~.
  • Como se v, no se trata mais de acrescentar uma dimenso s duasdimenses da tela, de organizar uma iluso ou uma percepo sem obje-

    .to cuja perfeio seria assemelhar-se o mximo possvel viso empri-ca. A profundidade pictrica (e tambm a altura e a largura pintada)vem, no se sabe de onde, colocar-se, germinar sobre o suporte. A visodo pintor no mais o olhar posto sobre um fora, relao meramente"fsico-ptica"26 com o mundo. O mundo no est mais diante dele porrepresentao: antes o pintor que nasce nas coisas como por concentra-o e vinda a si do visvel, e o quadro finalmente s se relaciona com oque quer que seja entre as coisas empricas sob a condio de er primei-ramente "autofigurativo"; ele s espetculo de alguma coisa sendo"espetculo de nada",27 arrebentando a "pele das coisas",28 para mostrarcomo as coisas se fazem coisas e o mundo, mundo. Apollinaire dizia queh num poema frases que no parecem ter sido criadas, que parecem ter-se formado. E Henri Michaux, que as cores de Klee parecem s vezes nas-cidas lentamente sobre a tela, emanadas de um fundo primordial, "exa-ladas no devido lugar"29 como uma ptina ou um mofo. A arte no construo, artifcio, relao industriosa a um e pao e a um mundo defora. realmente o "grito inarticulado" de que fala Herme Trismegis-to, "que parecia a voz da luz". E, uma vez ali, ele desperta na viso ordi-nria das foras adormecidas um segredo de preexistncia. Quando vejoatravs da espessura da gua o revestimento de azulejos no fundo da pis-cina, no o vejo apesar da gua, dos reflexos, vejo-o justamente atravsdeles, por eles. Se no houvesse essas distores, essas zebruras do sol, se eu visse sem essa carne a geometria dos azulejos, ento que deixariade v-los como so, onde esto, a saber: mais longe que todo lugar idn-tico. A prpria gua, a fora aquosa, o elemento viscoso e brilhante, noposso dizer que esteja no espao: ela no est alhures, mas tambm noest na piscina. Ela a habita, materializa-se ali, mas no est contida ali,e, se ergo os olhos em direo ao anteparo de ciprestes onde brinca a

    2 6 . P. Klee, op. cit.27. Ch. P. Bru, Esthtique de l'abstraction (1959), pp. 86 e 9928 . Henri Michaux, "Aventures de lignes".29. Henri Michaux, op. cit. 37

  • trama dos reflexos, no posso contestar que a gua tambm o visita, 011pelo menos envia at l sua essncia ativa e expressiva. essa animaointerna, essa irradiao do visvel que o pintor procura sob os nomes deprofundidade, de espao, de cor.

    Quando pensamos nisso, um fato notvel que um bom pintortambm faa com freqncia bom desenho e boa escultura. No sendoos meios de expresso nem os gestos comparveis, eis a prova de que hum sistema de equivalncias, um logos das linhas, das luzes, das cores,dos relevos, das massas, uma apresentao sem conceito do Ser universal.O esforo da pintura moderna no consistiu tanto em escolher entre alinha e a cor, ou mesmo entre a figurao das coisas e a criao de signos,quanto em multiplicar os sistemas de equivalncias, em romper sua ade-rncia ao envoltrio das coisas, o que pode exigir que se criem novosmateriais ou novos meios de expresso, mas algumas vezes se faz por re-exame e reinvestimento dos que j existiam. Houve, por exemplo, umaconcepo prosaica da linha como atributo positivo e propriedade doobjeto em si. o contorno da ma ou o limite do campo lavrado e dapradaria tidos como presentes no mundo, sobre cujos pontilhados o lpisou o pincel teriam apenas que passar. Uma linha como essa contestadapor toda a pintura moderna, provavelmente por toda a pintura, j que DaVinci, no Tratado da pintura, falava de "descobrir em cada objeto [...] amaneira particular pela qual se dirige atravs de toda a sua extenso [...]uma certa linha flexuosa que como seu eixo gerador".30 Ravaisson eBergson perceberam ali algo de importante sem ousarem decifrar at ofim o orculo. Bergson busca o "serpentear individual" praticamenteapenas entre os seres vivos, e bastante timidamente que prope que alinha ondulosa "pode no ser nenhuma das linhas visveis da figura". que"ela no est mais aqui do que ali", e no entanto "fornece a chave detudo" .31 Ele est no limiar da descoberta impressionante, j familiar aospintores, de que no h figuras visveis em si, de que nem o contornoda ma nem o limite do campo e da pradaria esto aqui ou ali, estando

    30 Ravaisson, citado por H. Bergson, "La Vie et l'oeuvre de Ravaisson", in Lapense et lemouvant (Paris: Flix Alcan, 1934).31. H. Bergson, op. cit., pp. 264-5. 38

  • sempre aqum ou alm do ponto onde se olha, sempre entre ou atrsdaquilo que se fixa, indicados, implicados, e mesmo muito imperiosa-

    mente exigidos pelas coisas, sem serem coisas eles prprios. Eles supos-. .tamente deveriam circunscrever a ma ou a pradaria, mas a ma e apradaria "se formam" espontaneamente e invadem o visvel como vin-dos de um mundo anterior pr-espacial... Ora, a contestao da linhaprosaica no exclui de modo algum toda linha da pintura, como talvez osimpressionistas tenham acreditado. A questo consiste apenas em liber-la, em fazer reviver seu poder constituinte, e sem nenhuma contradioque a vemos reaparecer e triunfar em pintores como Klee ou comoMatisse, que mais do que ningum acreditaram na cor. Pois doravante,segundo a expresso de Klee, ela no imita mais o visvel, ela "torna vis-vel", a pura de uma gnese das coisas. Talvez jamais antes de Klee sehouvesse "deixado sonhar uma linha" .32 O comeo do traado estabelece,instala um certo nvel ou modo do linear, uma certa maneira, para a linha,de ser e se fazer linha, "de continuar linha" .33 Em relao a ele, toda infle- xo que segue ter valor diacrtico, ser uma relao da linha a si, forma-r uma aventura, uma histria, um sentido da linha, conforme ela declinarmais ou menos, mais ou menos depressa, mais ou menos sutilmente.

    Andando no espao, ela ri no entanto o espao prosaico e opartesextra partes, desenvolve uma maneira de estender-se ativamente noespao que subjaz tanto espacialidade de uma coisa quanto de umamacieira ou de um homem. S que, para oferecer o eixo gerador de umhomem, o pintor, diz Klee, "necessitaria um entrelaamento de linhasto enredado que no poderia mais se tratar de uma representao ver-dadeiramente elementar" .34 Quer ele decida ento, como Klee, ater-serigorosamente ao princpio da gnese do visvel, da pintura fundamen-tal, indireta ou, como dizia Klee, absoluta - confiando ao ttulo a tarefa

    . de designar por seu nome prosaico o ser assim constitudo, para deixara pintura funcionar mais puramente como pintura - ou quer acredite,

    ao contrrio, como Matisse em seus desenhos, poder colocar uma linha .

    32. H. Michaux, op. cir. 33. ld. , ibid. 34. W. Grohmann, op. cit. p. 192. 39

  • nica tanto a identificao prosaica do ser quanto a secreta operaoque compe nele a languidez ou a inrcia e a fora para constitu-lo nurosto ou flor, isso no faz entre eles tanta diferena. H duas folha deazevinho que Klee pintou da maneira mais figurativa, e que so rigoro-samente indecifrveis a princpio, que permanecem at o fim monstruo-sas, inacreditveis, fantasmticas, fora "de exatido". E as mulheresde Matisse (que se lembrem os sarcasmos dos contemporneos) noeram imediatamente mulheres, tornaram-se mulheres: foi Matisse quemnos ensinou a ver seus contornos, no maneira "fsico-ptica", mascomo nervuras, como os eixos de um sistema de atividade e de passivi-dade carnais. Figurativa ou no, a linha em todo caso no mais imita-o das coisas nem coisa. um certo desequilbrio disposto na indi-ferena do papel branco, uma certa perfurao praticada no em-si,um certo vazio constituinte, vazio que as esttuas de Moore mostramperemptoriamente su tentar a pretensa positividade das coisas. A linhano mais, como em geometria clssica, o aparecimento de um sersobre o vazio do fundo; ela , como nas geometrias modernas, restriosegregao, modulao de uma espacialidade prvia.

    Assim como criou a linha latente, a pintura atribuiu-se um movi-mento sem deslocamento, por vibrao ou irradiao. Isso necessrio,pois como se diz, a pintura uma arte do espao, ela se faz sobre a tela ouo papel e nao tem o recurso de fabricar mbiles.Mas a tela imvel pode-ria sugerir uma mudana de lugar assim como o rastro da estrela cadenteem minha retina sugere uma transio, um mover que ela no contm. Oquadro forneceria a meus olhos aproximadamente o que os movimentosreais lhes fornecem: vises instantneas em srie, convenientementebaralhadas, mostrando, no caso de um ser vivo, atitudes instveis suspen-sas entre um antes e um depois, em suma, as aparncias da mudana delugar que o espectador leria no seu rastro. aqui que a famosa observa-o de Rodin adquire importncia: as vistas instantneas, as atitudes ins-tveis petrificam o movimento - como o mostram tantas fotografias emque o atleta est congelado para sempre. No o degelaramos multipli-cando as vistas. As fotografias de Marey, as anlises cubistas, a Noiva deDuchamp no se mexem: elas oferecem um devaneio zenoniano sobre o 40

  • movimento. Vemos um corpo rgido como uma armadura que faz funcio-nar suas articulaes, ele est aqui e est ali, magicamente, mas no vaidaqui at ali. O cinema oferece o movimento, mas de que maneira? Ser,como se pensa, copiando mais de perto a mudana de lugar? Pode-se pre-sumir que no, pois a cmera lenta mostra um corpo flutuando entre osobjetos como uma alga, e que no se move. O que produz o movimento,diz Rodin,35 uma imagem em que os braos, as pernas, o tronco, a cabe-a so tomados cada qual num outro instante, que portanto mostra o cor-po numa atitude que ele no teve em nenhum momento, e impe entresuas partes ligaes fictcias, como se esse confronto de incompossveispudesse e fosse o nico a poder fazer surgir no bronze e na tela a transioe a durao. Os nicos instantneos bem-sucedidos de um movimento soos que se aproximam desse arranjo paradoxal, quando, por exemplo, ohomem que caminha foi captado no momento em que seus dois ps toca-vam o cho: pois ento temos quase a ubiqidade temporal do corpo quefaz o homem cavalgar o espao. O quadro faz ver o movimento por suadiscordncia interna; a posio de cada membro, justamente por aquiloque tem de incompatvel com a dos outros segundo a lgica do corpo, datada de outro modo, e, como todos permanecem visivelmente na uni-dade de um corpo, esta que se pe a cavalgar a durao. Seu movimento algo que se premedita entre as pernas, o tronco, os braos, a cabea, emalgum foco virtual, e somente, a seguir se evidencia em mudana de lugar.Por que o cavalo fotografado no instante em que no toca o cho, em ple-no movimento portanto, com as pernas quase dobradas embaixo dele, da impresso de saltar no lugar? E por que, em contrapartida, os cavalosde Gricault correm sobre a tela, mas numa postura que cavalo algum agalope jamais assumiu? que os cavalos do Derby de Epsom me do a vera ao do corpo sobre o cho, e, segundo uma lgica do corpo e do mun-do que conheo bem, essas aes sobre o espao so tambm aes sobrea durao. Rodin tem aqui uma frase profunda: " o artista que ved- dica, e a foto que mentirosa, pois, na realidade, o tempo no para.36

    35. A. Rodin, L'Art; entretiens runis par Paul Gsell (Paris: Grasset, 1911). [Ed. bras.: A arte,trad. Anna Olga de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.] .36. Id., ibid, p. 86. Rodin emprega a palavra "metamorfose", citada mais adiante. 41

  • A fotografia mantm abertos os instantes que o avano do tempo tornaa fechar em seguida, ela destri a ultrapassagem, a imbricao, a "meta-morfose" do tempo, que a pintura, ao contrrio, torna visveis, porqueos cavalos tm dentro deles o "deixar aqui, ir ali" ,37 porque tm um pem cada instante. A pintura no busca o exterior do movimento, massuas cifras secretas. H algumas mais sutis que aquelas de que falaRodin: toda carne, e mesmo a do mundo, irradia-se fora de si mesma.Mas, quer se prefira, segundo as pocas e segundo as escolas, o movi-mento manifesto ou o monumental, a pintura jamais est completamen-te fora do tempo, porque est sempre no carnal.

    Talvez agora se perceba melhor todo o alcance dessa pequena pala-vra: ver. A viso no um certo modo do pensamento ou presena a si: o meio que me dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir pordentro fisso do Ser, ao trmino da qual somente me fecho sobre mim.

    Os pintores sempre o souberam. Da Vinci38 invoca uma "cinciapictrica" que no fala por palavras Ce muito menos por nmeros), maspor obras que existem no visvel maneira das coisas naturais, e que noentanto se comunica por elas "a todas as geraes do universo". Essacincia silenciosa, que, dir Rilke a propsito de Rodin, faz passar obraas formas das coisas "no deslacradas" ,39 vem do olho e se dirige ao olho.H que compreender o olho como a "janela da alma". "O olho [...] peloqual a beleza do universo revelada nossa contemplao, de tal exce-lncia que todo aquele que se resignasse sua perda se privaria de conhe-cer todas as obras da natureza cuja viso faz a alma ficar contente na pri-so do corpo, graas aos olhos que lhe apresentam a infinita variedade dacriao: quem os perde abandona essa alma numa escura priso onde ces-sa toda esperana de rever o sol, luz do universo." O olho realiza o pro-dgio de abrir alma o que no alma, o bem-aventurado domnio dascoisas, e seu deus, o sol. Um cartesiano pode crer que o mundo existenteno visvel, que a nica luz a do esprito, que toda viso se faz em

    37 Henri Michaux.38. Citado por Robert Delaunay, op. cit., p. 175.39 Rilke, Auguste Rodin (Paris: Emile-Paul, 1928), p. 150. [Ed. bras.: Auguste Rodin, trad.Marion Fleischer. So Paulo: Nova Alexandria, 2003.]

    42

  • Deus.Um pintor no pode consentir que nossa abertura ao mundo sejailusria ou tndtreta, que o que vemos no seja o mundo mesmo, que oesprito s tenha de se ocupar com seus pensamentos ou com um outroesprito. Ele aceita com todas as suas dificuldades o mito das janelas daalma: preciso que aquilo que sem lugar seja adstrito a um corpo, emais: seja iniciado por ele a todos os outros e natureza. preciso tomarao p da letra o que nos ensina a viso: que por ela tocamos o sol, asestrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte, to perto dos lugaresdistantes quanto das coisas prximas, e que mesmo nosso poder de ima-ginarmo-nos alhures -- "Estou em Petersburgo em minha cama, emParis, meus olhos vem o sol" --,40 de visarmos livremente, onde querque estejam, seres reais, esse poder recorre ainda viso, reempregameios que obtemos dela. Somente ela nos ensina que seres diferentes,"exteriores", alheios um ao outro, existem no entanto absolutamentejun-tos, em "simultaneidade" - mistrio que os psiclogos manejam comouma criana maneja explosivos. Robert Delaunay diz concisamente: "Aestrada de ferro a imagem do sucessivo que se aproxima do paralelo: aparidade dos trilhos".41 Os trilhos que convergem e no convergem, queconvergempara permanecerem equidistantes mais alm, o mundo que segundo minha perspectiva para ser independente de mim, que paramim a fim de ser sem mim, de ser mundo. O "quale visual"42 me d e onico a me dar a presena daquilo que no sou eu, daquilo que simples eplenamente . Ele o faz porque, como textura, a concreo de uma un-versal visibilidade, de um nico Espao que separa e rene, que sustentatoda coeso (inclusive a do passado e do futuro, j que ela no exstiria seeles no fizessem parte do mesmo Espao). Qualquer coisa visual, pormais individuada que seja, funciona tambm como dimenso, porque sed como resultado de uma deiscncia do Ser. Isso quer dizer, finalmente,que o prprio do visvel ter um forro de invisvel em sentido estrito, queele torna presente como uma certa ausncia. "Em sua poca, nossos an-tpodas de ontem, os impressionistas, tinham toda a razo de estabele-cer sua morada entre os rebentos e as brenhas do espetculo cotidiano.

    40 , 41, 42. Robert Delaunay, op. cit., pp. 115 e 110.

    43

  • Quanto a ns, nosso corao bate por nos levar s profundidades [...]Essas estranhezas se tornaro [...] realidades [...] Porque, em vez de selimitarem restituio diversamente intensa do visvel, anexam-lhesainda a parte do invisvel percebida ocultamente."43 H aquilo que atingeo olho de frente, as propriedades frontais do visvel- mas tambm aqui-lo que o atinge por baixo, a profunda latncia postural naqual o corpo seergue para ver - e h aquilo que atinge a viso por cima, todos os fen-menos do vo, da natao, do movimento, em que ela participa, no maisdo peso das origens, mas dos desempenhos livres.44 O pintor, atravsdela, toca portanto as duas extremidades. No fundo imemorial do visvelalgo se mexeu, se acendeu, algo que invade seu corpo, e tudo o que elepinta uma resposta a essa suscitao, sua mo "no seno o instru-mento de uma longnqua vontade". A viso o encontro, como numaencruzilhada, de todos os aspectos do Ser. "Um certo fogo quer viver,ele desperta; guiando-se ao longo da mo condutora, atinge o suporte eo invade, depois fecha, fasca saltadora, o crculo que devia traar:retorna ao olho e mais alm."45 Nesse circuito no h nenhuma ruptura,impossvel dizer que aqui termina a natureza e comea o homem ou aexpresso. portanto o Ser mudo que vem ele prprio manifestar seusentido. Eis por que o dilema da figurao e da no-figurao est malcolocado: ao mesmo tempo verdadeiro e sem contradio que nenhu-ma uva jamais foi o que na pintura mais figurativa, e que nenhumapintura, mesmo abstrata, pode eludir o Ser, que a uva do Caravaggio a uva mesma.46 Essa precesso do que sobre o que se v e faz ver, doque se v e faz ver sobre o que , a prpria viso. E, para dar a frmu-la ontolgica da pintura, quase nem preciso forar as palavras do pin-tor, j que Klee escrevia aos trinta e sete anos estas palavras que foramgravadas em seu tmulo: "Sou inapreensvel na imanncia [...]".47

    43 Klee, Confrence d'Ina, 1924, conforme W. Grohmann, op. cito p. 365.44 Klee, Wege des Naturstudiums, 1923, conforme G. Di San Lazzaro, Kfee.45. Klee, citado por W. Grohmann, op. cit., p. 99.46. A. Berne-]offroy, Le dossier Caravage (Paris: Minuit, 1959), e Michel Butor, La Corbeil-le de l'Ambrosienne (Paris: NRF, 1960).47 Klee, Journal, op. cit

    44

  • V J que profundidade, cor, forma, linha, movimento, contorno, fisionomiaso ramos do Ser, e cada um deles pode trazer consigo toda a ramagemno h em pintura "problemas" separados, nem caminhos verdadeira-mente opostos, nem "solues" parciais, nem progressos por acumulao,nem opes sem retorno. Jamais est excludo que o pintor retome umdos emblemas que havia afastado, obviamente fazendo-o falar de outromodo: os contornos de Rouault no so os contornos de Ingres. A luz -"velha sultana, diz Georges Limbour, cujos encantos murcharam nocomeo deste sculo" - ,48 expulsa inicialmente da matria pelos pintores,reaparece enfim em Dubuffet com uma certa textura da matria. Jamais seest ao abrigo desses retornos. Nem das convergncias menos esperadas:h fragmentos de Rodin que so esttuas de Germaine Richier, porque eleseram escultores, isto , estavam ligados a uma mesma e nica rede do Ser.Pela mesma razo, nada jamais adquirido. Ao "trabalhar" um de seusproblemas prediletos, ainda que o do veludo ou da l, o verdadeiro pintorsubverte sem o saber os dados de todos os outros. Mesmo quando pareceser parcial, sua investigao sempre total. No momento em que acabade adquirir uma certa habilidade, ele percebe que abriu um outro campoem que tudo o que pde exprimir antes precisa ser dito de outro modo.E assim, o que descobriu, ele ainda no o tem, deve ainda ser buscado, adescoberta o que chama outras pesquisas. A idia de uma pintura uni-versal, de uma totalizao da pintura, de uma pintura inteiramente reali-zada, desprovida de sentido. Mesmo daqui a milhes de anos, o mundo,para os pintores, se os houver, ainda estar por pintar, ele findar sem tersido acabado. Panofsky mostra que os "problemas" da pintura, os queimantam sua histria, so com freqncia resolvidos de vis, no na linhadas pesquisas que a princpio os havia formulado, mas sim quando os pin-tores, no fundo do impasse, parecem esquec-los, deixam-se atraIr poroutra coisa, e de repente, em plena distrao, os reencontram e transpem

    48 . G. Limbour, Tableau bon levain, YOUs de cuire la pte: I'art brut de Jean Dubuffet (Paris:Ren Drouill, 1953).

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  • o obstculo. Essa historicidade secreta que avana no labirinto por des-vios, transgresso, imbricao e arrancadas sbitas no significa que opintor no saiba o que quer, mas que o que ele quer est aqum dos obje-tivos e dos meios, e comanda do alto toda a nossa atividade til.

    Somos to fascinado pela idia clssica da adequao intelectual queesse "pensamento" mudo da pintura nos d s vezes a impresso de umvo redemoinho de significaes, de uma fala paralisada ou abortada. E senos respondem que nenhum pensamento se separa inteiramente de umsuporte, que o nico privilgio do pensamento falante ter tornado o eumanejvel, que as figuras da literatura e da filosofia tampouco so como ada pintura realmente adquiridas, no se acumulam num tesouro estvel, eque mesmo a cincia ensina a reconhecer uma zona "fundamental" po-voada de seres espessos, abertos, dilacerados, imprprios a ser tratadosexaustivamente, como a "informao esttica" dos cibernticos ou os"grupos de operaes" fsico-matemticos, enfim, que no estamos emparte alguma em condies de fazer um balano objetivo nem de pensarum progresso em si, que toda a histria humana que num certo sentido estacionria, ento diz o entendimento como Lamiel, s isso? Ser omais alto ponto da razo constatar que o cho desliza sob nossos passos,chamar pomposamente de interrogao um estado de estupor continuadode pesquisa um caminho em crculo, de Ser o que nunca inteiramente?

    Mas a decepo a do falso imaginrio, que reclama uma positi -vidade que preencha exatamente seu vazio. o lamento de no ser tudo.Lamento que nem sequer inteiramente fundado. Pois, se nem em pintu-ra nem alhures podemos estabelecer uma hierarquia das civilizaes oufalar de progresso, no que algum destino nos retenha atrs, antesque, em certo sentido a primeira das pinturas ia at o fundo do futuro. Senenhuma pintura completa a pintura, se mesmo nenhuma obra se com-pleta absolutamente, cada criao modifica, altera, esclarece, aprofunda,confirma, exalta, recria ou cria antecipadamente todas as outras. Se ascriaes no so uma aquisio, no apenas que, como todas as coisas,elas passam, tambm que elas tm diante de si quase toda a sua vida.

    Le Tholonet, julho-agosto de 1960.

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