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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA O PROBLEMA DO LIVRE-ARBÍTRIO E DO DETERMINISMO: UMA DEFESA DO INCOMPATIBILISMO PEDRO MERLUSSI FLORIANÓPOLIS 2013

Merlussi, 2013 - O Problema Do Livre-Arbítrio e Do Determinismo - Uma Defesa Do Incompatibilismo

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Merlussi, 2013 - O Problema Do Livre-Arbítrio e Do Determinismo - Uma Defesa Do Incompatibilismo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA MESTRADO EM FILOSOFIA

    O PROBLEMA DO LIVRE-ARBTRIO E DO DETERMINISMO: UMA DEFESA DO INCOMPATIBILISMO

    PEDRO MERLUSSI

    FLORIANPOLIS

    2013

  • Pedro Merlussi

    O PROBLEMA DO LIVRE-ARBTRIO E DO DETERMINISMO: UMA DEFESA DO INCOMPATIBILISMO

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obteno do grau de Mestre em Filosofia. Orientador:. Professor Doutor Alexandre Meyer Luz

    Florianpolis 2013

  • RESUMO Nesta dissertao discuto alguns poucos problemas relacionados ao livre-arbtrio. Entretanto, o problema principal com o qual lido o problema da compatibilidade entre o determinismo e o livre-arbtrio, o qual chamarei de o problema do livre-arbtrio e do determinismo. Ele pode ser formulado intuitivamente da seguinte maneira: ser que a verdade do determinismo exclui a existncia do livre-arbtrio? O incompatibilista pensa que, se o determinismo for verdadeiro, tambm ser verdadeiro que no h livre-arbtrio. Acredito que o incompatibilista est certo, de modo que avano um argumento a favor do incompatibilismo, o Argumento da Consequncia. Este o principal argumento a favor do incompatibilismo, mas ele enfrenta objees importantes. Assim, esta dissertao tem trs partes. Na primeira parte, discuto alguns problemas relacionados ao livre-arbtrio, tal como ofereo uma formulao do problema do livre-arbtrio e do determinismo. Depois disso, na segunda parte, formulo o Argumento da Consequncia. Finalmente, na terceira parte, lido com suas principais objees.

  • ABSTRACT

    In this dissertation I discuss several problems related to free will. However, the main problem that I deal with is the problem of compatibility between determinism and free will, which I will call the problem of free will and determinism. It can be formulated intuitively as follows: does the truth of determinism rule out the existence of free will? The incompatibilist thinks that if determinism is true, it is also true that there is no free will. I think the incompatibilist is right, and I put forward an argument for incompatibilism, which is the Consequence Argument. This is the main argument for incompatibilism, but it faces important objections. So this dissertation has three parts. In the first one, I discuss some problems related to free will, and I also offer a formulation of the problem of free will and determinism. After that, in the second part, I formulate the Consequence Argument. Finally, the third part deals with its main objections.

  • SUMRIO

    INTRODUO...............................................................................................11

    1 OS PROBLEMAS DO LIVRE-ARBTRIO...........................................21

    1.1 OS PROBLEMAS DO LIVRE-ARBTRIO............................................21

    1.2 O PROBLEMA DO LIVRE-ARBTRIO E DO DETERMINISMO.......30

    1.3 O DILEMA DE HUME............................................................................43

    2 O ARGUMENTO DA CONSEQUNCIA.............................................49

    2.1 O ARGUMENTO DA CONSEQUNCIA..............................................50

    2.2 AS REGRAS ALFA E BETA..................................................................61

    2.3 O PRIMEIRO ARGUMENTO FORMAL...............................................67

    2.4 SERIA A OBJEO DE WESTPHAL BEM-SUCEDIDA?..................72

    3- AS OBJEES AO ARGUMENTO DA CONSEQUNCIA................76

    3.1 TIPOS DE OBJEES............................................................................76

    3.2 A REGRA BETA E AS RPLICAS COMPATIBILISTAS..................77

    3.3 A OBJEO DE WIDERCKER.............................................................80

    3.4 A OBJEO DE MCKAY E JOHNSON...............................................81

    3.5 - A OBJEO DE MICHAEL FARA.......................................................86

    3.6 A OBJEO DE DAVID LEWIS...........................................................87

    3.7 COMPATIBILISMO HUMIANO...........................................................92

    3.8 A OBJEO DE SCOTT SEHON.........................................................95

    3.9 A OBJEO DE TED WARFIELD.......................................................96

  • CONSIDERAES FINAIS........................................................................98

    REFERNCIAS............................................................................................99

  • INTRODUO

    O problema tradicional

    Antes de tudo, gostaria de apresentar duas passagens relacionadas ao livre-arbtrio. No so passagens de autores que sero aqui discutidos. Porm, elas resumem claramente as posies que tipicamente se assume acerca do livre-arbtrio nos debates informais:

    Quando uma pessoa diz: No sou livre, e no entanto levanto e deixo cair minha mo, todos compreendem que esta resposta ilgica a prova irrefutvel da liberdade. (TOLSTOI 1973, segundo eplogo, Cap. VIII).

    No o menor dos encantos o fato de que uma teoria possa ser refutvel; precisamente por isso que ela atrai as mentes mais sutis. Parece-me que a teoria mil vezes refutada do "livre arbtrio" deve sua sobrevivncia apenas a essa qualidade, posto que sempre vemos surgir algum disposto a refut-la ainda (NIETZSCHE 1966, Cap. 1, 18).

    Como j tinha adiantado, as citaes acima expressam concepes tradicionais sobre as questes suscitadas pelo livre-arbtrio. Nas palavras de Nietzsche, muito embora ele no lide diretamente com o problema, a tese do livre-arbtrio fora amide refutada. Na citao de Tolstoi, em contrapartida, h precisamente a tese oposta, e algo muitssimo mais forte: simplesmente levantar meu brao uma prova irrefutvel da minha liberdade. Mas o que h de interessante, em todo o caso, que ambas as citaes chamam a nossa ateno para o que fora tradicionalmente considerado como o problema do livre-arbtrio. O que seria, ento, este problema tradicional?

    Intuitivamente, pode-se dizer que muitas coisas no dependem de ns. No depende de ns se os prtons tm de ser milhes de vezes menores que o pingo de tinta neste i. E tambm no depende de ns como o mundo era antes de nosso nascimento. Por outro lado, parece que outras coisas esto sob nosso controle e que, portanto, dependem de ns. Coube a mim, por exemplo, escolher cursar filosofia, assim como despender algum tempo para escrever esta introduo. A ideia segundo a qual temos controle sobre como agimos parece ser compartilhada por todos ns. primeira vista, estamos propensos a

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    pensar que temos livre-arbtrio; parece que realizamos decises livremente e que essas decises tipicamente fazem uma diferena no nosso futuro.

    Por outro lado, h quem coloque em causa esta ideia intuitiva. O pensador alemo Friedrich Nietzsche, como vimos acima, parece pensar que ela obviamente falsa. Uma pessoa pode coloc-la em causa por vrios motivos. Por exemplo, algum poderia pensar que a prpria noo de livre-arbtrio de alguma maneira incoerente. Poder-se-ia tambm defender, baseando-se exclusivamente em crenas religiosas, que nosso arbtrio no livre. Cientistas poderiam adicionalmente dizer que no temos livre-arbtrio porque somos determinados pelas leis da fsica. Assim como um copo de vidro estaria determinado a se estilhaar caso arremessado violentamente ao cho, estaramos determinados a realizar certas aes.

    Em resumo, o debate tradicional gira em torno do problema de saber se temos livre-arbtrio. Pr-teoricamente este parece ser o caso. Em contrapartida, pode-se colocar esta tese em causa, tal como diversos cientistas, filsofos e religiosos repetidamente o fizeram. Este um dos problemas mais vivos e estimulantes ao longo da histria do pensamento humano.

    Como sugere Pink (2004, p. 2), pode-se esclarecer a noo de livre-arbtrio pelas duas palavras que formam o seu nome: liberdade e arbtrio. Quando Aristteles, em sua obra tica a Nicmaco, discutiu as aes e o nosso controle sobre elas, ele curiosamente no utilizara a palavra grega , que pode ser traduzida como liberdade, para descrever nosso controle sobre as aes. Ao invs, o filsofo grego utilizara para se referir capacidade que temos para controlar nossas aes, o que literalmente significa aquilo que depende de ns ou depende de ns. , explica Pink, era um termo usado apenas em discusses polticas para se referir liberdade poltica. Foi apenas aps Aristteles que os filsofos gregos comearam a utilizar liberdade para se referir nossa capacidade de controlar aes. por isso, conclui Pink, que h uma ambiguidade na palavra liberdade: ela pode ser usada tanto para nos referirmos liberdade no sentido poltico, quanto liberdade no sentido de que controlamos nossas aes. Porm, apenas neste ltimo sentido que a palavra liberdade relevante para esta discusso. Arbtrio, por outro lado, foi usado de vrias maneiras. Mas o sentido mais importante a ser aqui destacado o poder que temos para tomar decises. Temos o poder no apenas de realizar aes, mas tambm de decidir se vamos realizar tais aes. Quando falamos de liberdade do arbtrio, referimo-nos a esse poder psicolgico que temos para realizar decises. Uma vez caracterizada essa noo, surge uma pergunta: teramos motivos para colocar essa noo em causa?

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    Algumas questes suscitadas pelo livre-arbtrio

    Como afirmei anteriormente, as discusses suscitadas pelo livre-arbtrio afetam, assim como so afetadas, tanto pela filosofia quanto pela religio e a cincia. Pelo lado da religio, temos uma ilustrao do problema descrito pelo clssico poema Paradise Lost de John Milton. Ali, o autor descreve um vivo debate entre anjos no qual eles discutem como alguns deles poderiam ter pecado em virtude do livre-arbtrio, uma vez que Deus os criara assaz inteligentes. E se eles eram inteligentes, por que teriam pecado? E se fora Deus quem os criara daquela maneira, por que seriam eles prprios os responsveis pelos seus pecados? No seria antes Deus? Afinal, Deus por ser presciente j sabia de antemo que eles cometeriam pecados. Milton descreveu o carter enigmtico desses problemas como uma questo nada confortvel para ns humanos (cf. KANE, 2005, p.1).

    Pelo lado da cincia, inmeros problemas so tambm suscitados, muitos dos quais parecem colocar em causa que tenhamos livre-arbtrio. Um experimento realizado no centro Bernstein de Neurocincia Computacional em Berlim parece colocar em xeque uma concepo pr-terica que possumos do conceito de livre-arbtrio. No experimento, uma tela exibia uma sequncia aleatria de letras, e voluntrios deveriam escolher uma letra e apertar um boto quando ela surgisse. Entretanto, ao monitorar os crebros dos voluntrios via ressonncia magntica, os cientistas mostraram que dez segundos antes de os voluntrios resolverem apertar o boto, sinais eltricos correspondentes a essa deciso apareciam nos crtices frontopolar e medial, as regies do crebro que controlam a tomada de decises; (acredite ou no, isso acontecia 10 segundos antes mesmo!). A ideia do experimento a de que, mesmo que sejamos responsveis por nossas escolhas, elas no so conscientes.

    Pelo lado da filosofia, inmeros argumentos foram apresentados para mostrar que o conceito de livre-arbtrio de alguma maneira incoerente. Grosso modo, esses argumentos so tipicamente conhecidos como argumentos fatalistas, como o argumento da batalha naval e a falcia fatalista. Eis um exemplo. Considere a seguinte proposio: amanh haver uma batalha naval ou no. Ora, uma vez que essa proposio uma verdade lgica, cuja forma a do terceiro excludo, pode-se plausivelmente inferir que ela tambm uma verdade necessria. Portanto, necessariamente, haver uma batalha naval ou no. O defensor desse argumento infere da que necessariamente haver uma batalha naval ou necessariamente no haver uma batalha naval. Em outras palavras, quer ocorra uma batalha naval, quer no ocorra, necessrio que esse

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    seja o caso. E claro que o caso da batalha naval foi apenas um exemplo aleatrio. Necessariamente, eu poderia escolher escrever outra introduo ou no. Seja como for, necessrio que eu tenha escolhido escrever outra introduo, ou necessrio que eu no tenha escolhido, o que significa que no fui realmente livre.

    Como veremos mais frente, penso que h muita confuso nas questes levantadas acima, principalmente com relao ao argumento da batalha naval. No primeiro captulo procurarei desfazer muitas dessas confuses, assim como mostrar por que o argumento da batalha naval falacioso. Mas, deixando isso de lado por enquanto, algum poderia se perguntar: se o livre-arbtrio to problemtico, por que deveramos continuar a pensar que temos livre-arbtrio? No poderamos antes rejeitar essa ideia obscura que apresenta tantos problemas?

    Livre-arbtrio e responsabilidade moral

    Muitas pessoas de fato fazem isso. Especialmente motivadas por alguns experimentos cientficos, concluem que o livre-arbtrio uma iluso, e que a neurocincia solucionara este problema definitivamente. Contudo, se isso for verdade, ou seja, se realmente no houver livre-arbtrio, um desastre parece ocorrer; porque, se no houver livre-arbtrio, no h responsabilidade moral! Em outras palavras, muito plausvel assumir que o livre-arbtrio uma condio necessria para a responsabilidade moral, o que significa que a seguinte condicional tem um elevado grau de plausibilidade: se somos moralmente responsveis, ento temos livre-arbtrio. Por contraposio, se no temos livre-arbtrio, ento no somos moralmente responsveis. Sider ilustra vivamente o que significaria no ter livre-arbtrio:

    Suponha que voc tenha sido sequestrado e forado a cometer uma srie de assassinatos terrveis. Os sequestrados fizeram voc atirar na primeira vtima ao forar o seu dedo a pressionar o gatilho de uma arma, tambm o hipnotizaram de modo a fazer com que voc envenenasse uma segunda vtima, e depois jogaram voc de um avio, causando a morte de um terceiro. Milagrosamente, voc sobrevive queda do avio. A situao deixa voc atordoado, aliviado pela dolorosa experincia ter chegado ao fim. Mas ento, para a sua surpresa, voc apreendido pela polcia, que o algema, acusando-o de assassinato. Os pais das vtimas gritam obscenidades a voc ao mesmo tempo que a polcia o

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    Estaro os pais e polcia sendo justos ao culp-lo pelas mortes? Claro que no, pois voc tem uma desculpa irrefutvel: voc no agiu de acordo com o seu livre-arbtrio. Voc no podia evitar o que tinha feito; no podia ter feito de outro modo. E apenas aqueles que agem livremente so moralmente responsveis (SIDER & CONEE 2005, p.112)

    Precisamente por isto rejeitar o livre-arbtrio to constrangedor: a

    renncia ao livre-arbtrio parece tambm ser uma renncia moralidade, pois apenas aqueles que agem livremente so passveis de culpa ou de atribuio de mrito. Um assassino no seria moralmente responsvel por um crime sdico que cometeu. Aquele aluno que estudou horas e horas para ser bem-sucedido em um teste no teria mrito algum por isso. Em segundo lugar, renunciar nossa liberdade significaria abandonar nossos planos para o futuro. Afinal de contas, por que faramos planos se no somos livres para mudar o que acontecer? Sem livre-arbtrio somos como meras mquinas, altamente complexas, porm incapazes de controlar nossos destinos. Por que valeria a pena viver uma vida desse tipo? A rejeio do livre-arbtrio parece tambm apontar para certa resposta em relao ao problema do sentido da vida: sem livre-arbtrio, nossa vida parece no ter sentido algum.

    Em suma, o mais desejvel seria solucionar esses quebra-cabeas mencionados acima. A rejeio do livre-arbtrio prima facie demasiado implausvel. Infelizmente, h outra tese argumentavelmente to plausvel quanto a do livre-arbtrio que intuitivamente ameaa nossa liberdade: o determinismo.

    Mais problemas para o livre-arbtrio: o determinismo O que o determinismo? Grosso modo, o determinismo a tese de que

    o passado mais as leis da natureza determinam, a cada instante, um futuro nico. A tese determinista parece violar a ideia segundo a qual temos livre-arbtrio porque afirma que o passado, mais as leis da natureza, determinam, por exemplo, minha escolha de escrever esta introduo. E um determinista radical diria que eu no poderia ter escolhido no escrever esta introduo em virtude

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    do passado e das leis da natureza. No poderia escolher no escrever esta introduo do mesmo modo que, dadas as leis da natureza mais o passado, a caneta que acabo de soltar no poderia no cair. A ideia intuitiva do determinismo mais ou menos a seguinte: nossas escolhas so parte do mundo natural. Portanto, assim como a caneta no pode deixar de cair aps solt-la (em virtude do passado e da lei da gravidade), nossas escolhas so de tal modo que no poderiam ser diferentes (em virtude do passado e das leis da natureza). Portanto, o determinismo parece negar a proposio poderamos escolher agir de outro modo, e assim parece negar que temos livre-arbtrio.

    Mas seria o determinismo realmente plausvel? H quem pense que sim. Ted Sider, por exemplo, endossa essa tese:

    Nossa crena no determinismo razovel porque vimos a cincia ser bem-sucedida, vrias e vrias vezes, em sua busca pela causa subjacente das coisas. As inovaes tecnolgicas devem sua existncia cincia: arranha-cus, vacinas, naves espaciais, a Internet. A cincia parece explicar tudo aquilo que observamos: a mudana das estaes, o movimento dos planetas, o funcionamento interno de plantas e animais. Dado este registro de xitos, esperamos razoavelmente que a marcha do progresso cientfico continue; esperamos que a cincia eventualmente ir descobrir as causas de tudo (SIDER & CONEE 2005, p.114).

    Quando dizemos que estamos determinados a escolher tal e tal, o que queremos dizer que no poderamos no escolher tal e tal. O que o determinismo parece mais intuitivamente implicar que no temos cursos alternativos de escolha ou de ao. Ou, dito de outra maneira, o determinismo parece implicar que no poderamos escolher ou agir diferentemente daquilo que escolhemos ou agimos. Numa palavra: a tese determinista viola o princpio de possibilidades alternativas. Segundo este princpio, ao menos segundo certa formulao, se uma pessoa no poderia ter decidido de outro modo, ento essa pessoa no responsvel por aquilo que ela faz (BROOK & STAINTON, 2002, p.137). Tendo em conta o princpio de possibilidades alternativas, e se o determinismo acarretar que no poderamos decidir agir de outro modo, seguir-se-ia que no somos responsveis pelas decises que fazemos ou pelo que vamos fazer. No poderamos repreender um assassino porque ele no poderia ter decidido de outro modo. No poderamos recompensar uma pessoa caso realizasse uma ao virtuosa porque ela no poderia ter decidido (ou agido) de

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    outro modo. Em resumo, o determinismo levanta os mesmos problemas que aqueles quebra-cabeas mencionados anteriormente.

    O que temos de notar, contudo, que h aqui um problema distinto. O primeiro problema mencionado, que chamei de o Problema Tradicional, precisamente o de saber se temos livre-arbtrio. O determinismo levanta outro problema. Aqui, queremos saber quais so as relaes conceituais entre o determinismo e o livre-arbtrio. Queremos saber se a tese determinista implica a negao da tese do livre-arbtrio. Este o que irei chamar de o Problema da Compatibilidade. o problema de saber quais as relaes conceituais entre o determinismo e o livre-arbtrio.

    O Problema da Compatibilidade

    Resumidamente, o problema da compatibilidade surge de certa tenso existente entre duas de nossas crenas mais razoveis: a crena de que temos livre-arbtrio e a crena de que o determinismo verdadeiro. Como vimos, o determinismo a tese de que o passado mais as leis da natureza determinam um futuro nico. Por exemplo, se o determinismo for verdadeiro, dado o passado mais as leis da natureza, a caneta que acabei de soltar est determinada a cair. Quanto ao livre-arbtrio, difcil dizer algo consensual, mas comumente se aceita que uma condio necessria para ter livre-arbtrio poder se decidir de outro modo. Por exemplo, se o leitor tem livre-arbtrio, parece que poderia ter decidido no ler esta introduo. E, como vimos, diramos que primeira vista o leitor tem livre-arbtrio, assim como qualquer pessoa. Por outro lado, parece que tambm temos razes para pensar que o determinismo verdadeiro. Vimos as razes apresentadas por Sider, muito embora eu no concorde com elas, pelas razes que apresentarei no primeiro captulo1. Alm disso, poder-se-ia dizer que, intuitivamente, as leis da natureza e o passado determinam que as coisas aconteam apenas desse modo. E se assim o for, aparentemente se segue que nossas decises so tambm determinadas, e que por isso no poderiam ser diferentes. Assim voltamos tenso inicial: as crenas de que temos livre-arbtrio e de que o determinismo verdadeiro so plausveis, mas parecem incompatveis. Mas ser que de fato o so? Alguns pensam que sim, outros pensam que no. Os primeiros, conhecidos como incompatibilistas, tm a seu favor a intuio de que essas crenas no so compatveis. J os ltimos, conhecidos como compatibilistas, defendem a concluso mais desejvel; tanto

    1 Sider confunde o determinismo com o Princpio de Causao Universal. Como procurarei mostrar no captulo seguinte, as teses no so equivalentes.

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    melhor se conseguirmos compatibilizar as duas crenas que, consideradas separadamente, so muito plausveis. Motivaes para ambas as posies, bons argumentos para cada lado e muita controvrsia. Eis aqui um dos principais problemas da filosofia.

    Quem props a diviso do problema do livre-arbtrio entre o Problema da Compatibilidade e o Problema Tradicional foi Peter van Inwagen. O primeiro este que foi exposto at aqui. Ou seja, o problema de saber se o livre-arbtrio e o determinismo so compatveis. Para colocar em termos mais precisos, trata-se do problema de saber se a condicional se o determinismo verdadeiro, ento no temos livre-arbtrio verdadeira. Enquanto o incompatibilista sustenta que essa condicional verdadeira, o compatibilista defender que falsa, ou ao menos implausvel. Em contrapartida, o Problema Tradicional no o de saber se aquela condicional verdadeira, mas o de saber se a afirmao temos livre-arbtrio o . Uma das maneiras de lidar com o problema tradicional, adicionalmente, a de saber se a tese determinista verdadeira. No sigo esta perspectiva, contudo, pois parece-me que este ltimo problema emprico. Muito terei a dizer sobre o determinismo no ltimo captulo, em todo o caso, de modo que pouparemos esse assunto por ora.

    Peter van Inwagen argumentou que a existncia do Problema Tradicional depende de uma soluo correta para o Problema da Compatibilidade, de modo que este ltimo , na verdade, mais importante que o primeiro. Como ele afirma:

    Se o determinismo e o livre-arbtrio so compatveis e, a fortiori, se do livre-arbtrio se deriva o determinismo, ento no h o problema tradicional, no mais do que o problema de saber como minhas frases podem ser compostas simultaneamente de palavras em portugus e de letras em romano. (VAN INWAGEN 1983: 2)

    Embora a razo apresentada por van Inwagen seja um tanto obscura, penso que a concluso que ele procura nos persuadir a aceitar seja verdadeira (embora eu a sustente por outras premissas, claro). Suponhamos que se consiga provar que o determinismo seja verdadeiro. Disso no se segue que no temos livre-arbtrio. Para se seguir, teramos de mostrar que o determinismo e o livre-arbtrio so incompatveis. Note que um dos argumentos clssicos mais famosos a favor da tese de que no temos livre-arbtrio pressupe o incompatibilismo sem oferecer razes. Trata-se do dilema de Hume, como veremos no prximo captulo. Uma das premissas desse argumento a

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    seguinte: se o determinismo for verdadeiro, ento no temos livre-arbtrio. Ora, essa a proposio que est em jogo no Problema da Compatibilidade. Para o dilema de Hume ser um argumento cogente, temos de saber (ou pelo menos crer justificadamente) nessa proposio. O mais interessante, desse modo, seria solucionar o Problema da Compatibilidade. Suponha, em contrapartida, que se consiga provar que temos livre-arbtrio. Disso tambm no se segue que a tese determinista seja falsa. Para se seguir, novamente, seria preciso sustentar o incompatibilismo. Portanto, em suma, uma resposta ao Problema Tradicional depender de uma resposta ao Problema da Compatibilidade.

    Ademais, tambm argumentvel que o Problema Tradicional, entendido sob certa viso, no um problema filosfico. Como afirmei acima, se pressupusermos que o problema tradicional o de saber se o determinismo verdadeiro, teremos de lidar com o seguinte quebra-cabea: o determinismo uma questo emprica; como podemos, mediante mera anlise conceitual, solucionar um problema de natureza emprica? Uma concepo meta-filosfica aparentemente razovel a de que os problemas filosficos so a priori por natureza. O Problema da Compatibilidade se enquadra nessa concepo. O mesmo j no to claro com relao ao Problema Tradicional.

    Nesta dissertao, apresento uma soluo para o Problema da Compatibilidade. No uma soluo original, no entanto. O que irei fazer apresentar e defender um argumento popular a favor do incompatibilismo, a tese de acordo com a qual o determinismo e o livre-arbtrio so incompatveis. Vrios argumentos a favor do incompatibilismo foram apresentados ao longo da histria da filosofia, como o Argumento do Jardim das Passagens Forquilhadas, o Argumento da Cadeia Causal e os argumentos do desgnio e da manipulao (cf. VIHVELIN 2011). No entanto, penso que o nico argumento cogente a favor do incompatibilismo seja este:

    Se o determinismo for verdadeiro, ento nossas aes so a consequncia das leis da natureza e dos eventos no passado remoto. Mas no depende de ns o que se passou antes de nascermos, e nem depende de ns o que as leis da natureza so. Portanto, as consequncias dessas coisas (incluindo nossas aes presentes) no dependem de ns (VAN INWAGEN, 1983, p.56).

    Este o famoso Argumento da Consequncia. Aps formular o Problema da Compatibilidade, no primeiro captulo, dedico um captulo inteiro para oferecer uma formulao mais precisa desse argumento. claro que,

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    como qualquer argumento bem-conhecido em filosofia, o Argumento da Consequncia enfrenta srias objees. O ltimo captulo lida justamente com elas.

    Viso geral

    O problema com o qual irei lidar principalmente nesta dissertao o Problema da Compatibilidade. Como procurei mostrar, esse problema distinto daquele de saber se temos livre-arbtrio, ou o de saber se o determinismo verdadeiro. Isso no quer dizer que irei negligenciar o Problema Tradicional ao longo de toda esta dissertao; na verdade, dediquei algumas pginas do primeiro captulo para lidar com algumas questes suscitadas pelo problema tradicional. No entanto, o tpico principal efetivamente o Problema da Compatibilidade. Como eu disse, meu objetivo principal o de defender o Argumento da Consequncia, que um argumento apresentado por Peter van Inwagen. Esta dissertao foi, ento, dividida em trs partes principais. Na primeira delas, procuro desfazer diversas confuses relacionadas ao livre-arbtrio e formular o Problema da Compatibilidade com toda a preciso que sou capaz de oferecer. Depois disso, na parte seguinte, formulo o argumento de van Inwagen, esclarecendo conceitos como o de proposio, leis da natureza, etc. A terceira parte lida com as principais objees ao argumento.

    A partir do primeiro captulo, lanarei mo de certas ferramentas da lgica proposicional modal. Assumirei , de agora em diante, os axiomas de S5, presumivelmente o melhor candidato para a lgica da necessidade metafsica.

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    1. OS PROBLEMAS DO LIVRE-ARBTRIO

    Nesta dissertao, apresento razes para convencer o leitor de que o Argumento da Consequncia um bom argumento a favor do incompatibilismo. Mas a formulao dessa tese envolve termos tcnicos, como incompatibilismo, compatibilismo e Argumento da Consequncia. Por exemplo, para formular a tese incompatibilista, preciso formular o problema da compatibilidade entre o determinismo e o livre-arbtrio. Obviamente, os conceitos de determinismo e livre-arbtrio no so precisos e merecem algum esclarecimento. O objetivo deste captulo o de esclarecer esses conceitos, formular o problema da incompatibilidade entre o determinismo e o livre-arbtrio, as teses em disputa e, finalmente, indicar qual tese pretendo defender. Como j adiantei, o determinismo e o livre-arbtrio me parecem incompatveis e o argumento por mim defendido a favor dessa incompatibilidade o Argumento da Consequncia. Esse argumento no foi primeiramente apresentado por mim e, portanto, no original. Porm, seguindo a mxima de que prefervel estar certo a ser original, ser aqui apresentado para defender a tese que acredito ser verdadeira. De qualquer forma, muitas respostas s principais objees a este argumento so originais.

    Na primeira seo deste captulo, argumento que a expresso o problema do livre-arbtrio enganadora e deve ser, tanto quanto possvel, evitada. Como procurarei mostrar, h vrios problemas relacionados liberdade do arbtrio. A segunda seo consiste numa formulao do Problema da Compatibilidade e foi dividida em duas partes. Na primeira, defino o conceito de determinismo. Na segunda, esclareo o conceito de livre-arbtrio. E s depois disso que formulo o problema com o qual me ocuparei com maior intensidade nesta dissertao, o problema da compatibilidade entre o determinismo e o livre-arbtrio. Finalmente, na ltima parte deste captulo, apresento razes para mostrar que um famoso argumento a favor do impossibilismo a tese de acordo com a qual o livre-arbtrio impossvel falacioso.

    1.1 Os problemas do livre-arbtrio

    Em seu romance Guerra e Paz, Tolstoi nos disse que o assim chamado problema do livre-arbtrio tem ocupado as melhores inteligncias humanas desde h muito tempo. De fato, a discusso filosfica sobre o livre-arbtrio fez

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    parte da produo intelectual de Guilherme de Ockham (Predestinantion, Forenowledge, and Future Contingents), Toms de Aquino (Summa Theologica, Ia, q. 14, art 13), David Hume (A Treatise of Human Nature 2.3.1-2, Enquiry concerning Human Understanding sec. 8), Thomas Hobbes 2 , Immanuel Kant (Crtica da Razo Pura, terceira antinomia), entre muitos outros. No menos certo que este problema at hoje no foi consensualmente solucionado. Muitos filsofos esto propensos a dizer, em virtude desses resultados, que o comumente denominado problema do livre-arbtrio um mistrio (VAN INWAGEN 2000 e MCGINN 1993). Alguns, com inspirao fortemente kantiana, talvez queiram inferir da que ele sequer pode ser solucionado. A despeito de tudo isso, a filosofia fez progressos notveis em relao a uma melhor compreenso do que se tem chamado, ao longo da histria, de o problema do livre-arbtrio.

    No pargrafo acima, como se deve ter notado, no me referi ao problema do livre-arbtrio, mas apenas ao que se tem chamado o problema do livre-arbtrio. Espero deixar suficientemente claro por que fiz isto. Suponha que o problema do livre-arbtrio seja o problema de saber se temos livre-arbtrio. A afirmao o problema do livre-arbtrio o de saber se temos livre-arbtrio, segundo a teoria das descries definidas de Bertrand Russell (1905), equivale logicamente afirmao de que h um, e apenas um, problema do livre-arbtrio que o de saber se temos livre-arbtrio. Ora, o que ocorre que no h propriamente um nico problema do livre-arbtrio, mas, ao invs, vrios problemas relacionados ao livre-arbtrio. Considere, por exemplo, o problema de saber se o livre-arbtrio compatvel com o determinismo. Este problema independente daquele de saber se temos livre-arbtrio. Digamos que se solucione o primeiro problema, e que sua soluo seja um argumento cogente contra a existncia do livre-arbtrio. Isto, por si s, no solucionar o problema de saber se a existncia do livre-arbtrio compatvel com o determinismo. Mesmo que nosso arbtrio no seja livre, permanece em aberto o problema de saber se as teses de que h livre-arbtrio e de que o determinismo verdadeiro poderiam ser compatveis. Assim, a proposio expressa pela frase h um nico problema sobre o livre-arbtrio falsa. Por isso seria mais adequado utilizar outra expresso: os problemas do livre-arbtrio, que justamente o ttulo desta seo.

    2 A posio de Hobbes acerca do livre-arbtrio est disponvel em traduo para a lngua portuguesa aqui: http://www.revistafundamento.ufop.br/Volume1/n2/vol1n2-2.pdf.

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    A despeito do que afirmei acima, no quero com isso dar a entender que grande parte dos filsofos, como Hobbes, Ayer, entre muitssimos outros, diziam que h apenas um problema do livre-arbtrio. Eu nada disse sobre atos de assero e no estou cometendo o mesmo engano, creio, que Strawson cometeu com Russell em uma de suas famosas objees teoria das descries (STRAWSON 1950, p.330). Embora a frase o problema do livre-arbtrio tal e tal implique logicamente a frase de que h apenas um problema do livre-arbtrio, disso no se segue que quem profere a primeira tambm profere a segunda. Em outras palavras, aquilo que logicamente implicado por uma frase no tem de ser asserido por quem a profere. Por exemplo, suponha que eu diga que no h o problema do livre-arbtrio. Embora essa frase implique logicamente que no h o problema do livre-arbtrio ou a lua feita de queijo, no estarei asserindo que no h o problema do livre-arbtrio ou a lua feita de queijo. Portanto, bem plausvel assumir que a tradio filosfica no tenha dito a falsidade bvia de acordo com a qual h apenas um problema do livre-arbtrio.

    Claro, a tradio filosfica no disse essa falsidade bvia, mas disse, mesmo assim, uma falsidade: no h o problema do livre-arbtrio. Por isso devo evitar, de agora em diante, usar a expresso o problema do livre-arbtrio. Permita-me apresentar um rpido argumento a favor disso. Se a proposio expressa pela frase h o problema do livre-arbtrio falsa, ento no conhecida (Princpio da Factividade do Conhecimento). Se no conhecida, no deve ser asserida (Tese da Assero de Conhecimento3). Logo, se a proposio expressa pela frase h o problema do livre-arbtrio falsa, ento no deve ser asserida.

    Voltemos, no entanto, aos problemas do livre-arbtrio. H outras questes antigas, e igualmente honrveis, relacionadas liberdade do arbtrio. Considere, por exemplo, o problema da prescincia divina. A concepo tradicional de Deus testa assume que Ela instancia4 as seguintes propriedades essenciais 5 : suma bondade, onipotncia, auto-existncia, distncia e 3 Esta tese quase que ortodoxa na literatura corrente; defendida embora em verses sutilmente diferentes por Williamson (2000) e De Rose (2002). 4 De agora em diante, vou utilizar a expresso instanciar uma propriedade, ao invs de ter uma propriedade, pois o verbo instanciar neutro em relao a certa resposta ao Problema dos Universais. 5 A ortodoxia sobre o conceito de propriedade essencial afirma que algo uma propriedade essencial de um particular sse instanciada por ele em todos os mundos nos quais esse particular existe. Por exemplo a propriedade de ser um ser humano essencial a Scrates porque ela a instancia em todos os mundos possveis em que existe.

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    independncia do mundo e, a mais importante para os nossos propsitos, a oniscincia. primeira vista, se Deus onisciente, ento Ela tudo sabe, incluindo todo o futuro, o que presumivelmente inclui nossas aes. Intuitivamente, as seguintes teses parecem incompatveis: (1) Deus onisciente e (2) h livre-arbtrio. Mas ser que (1) e (2) so realmente incompatveis? Eis um breve argumento para pensar que sim (WESTPHAL 2011, p.246):

    Deus criou o mundo em seis dias e, sexta-feira, j sabia de tudo. um desafio compreender claramente a expresso sabia de tudo. O conhecimento comumente distinguido entre trs tipos: proposicional (e.g, saber que 7 + 5 = 12), prtico (e.g,, saber andar de bicicleta) e por contato (e.g, conhecer Florianpolis visitando-a). Admitamos, para fins de argumentao, que o conhecimento proposicional faa parte da extenso do conceito de oniscincia. Algum esclarecimento adicional ser oferecido mais frente ao conceito de proposio, mas, para j, estipularei apenas que proposies so portadores primrios de valor-de-verdade. Desse modo, se Deus onisciente, Ela conhecia, na sexta-feira, todas as proposies verdadeiras, incluindo F, uma proposio verdadeira sobre o que o Bruno iria fazer na segunda-feira (digamos, levantar sua mo). Disso podemos inferir que BgF, em que BgF a proposio de indexao temporal de que na sexta-feira Deus acreditara que F. Suponha, contudo, que o Bruno tenha livre-arbtrio e que poderia levantar sua mo, ou seja, poderia tornar F falsa. Desse modo, Deus acreditaria numa falsidade (BgF & ~F). Portanto, se o Bruno tem livre-arbtrio, ento Deus no onisciente; afinal, a tese de que Deus infalvel (BgP P) seria falsa6. Ora, mas se Deus onisciente, e acredita que o Bruno levantar sua mo na segunda-feira, ento o Bruno no capaz de agir de modo a tornar F falsa. E assim enfrentamos um dilema: ou o Bruno tem livre-arbtrio e pode agir de modo a tornar F falsa, caso em que Deus no onisciente, ou Deus onisciente, caso em que o Bruno no tem livre-arbtrio7.

    O problema que a apresentao acima um tanto informal. No de todo claro qual a forma do argumento que parece expressar o paradoxo acima. O termo mundo possvel um termo tcnico, mas oferecerei uma breve caracterizao desse problema mais frente. 6 Estou assumindo que a tese da oniscincia acarreta a tese da infalibilidade divina. 7 Este dilema, no obstante apresentado informalmente e de modo intuitivo, recebeu inmeras respostas ao longo da histria da filosofia. Linda Zagzebski (2011) elenca as respostas principais ao problema, como as respostas Aristotlica, Agostiniana, Ockhamista, Boeciana e Molinista.

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    Uma maneira seria a seguinte (assumindo que representa a necessidade lgica, WESTPHAL 2011, p.247):

    1. (BgP P) premissa, infalibilidade divina

    2. BgF premissa

    3. F de 1 e 2.

    Ora, 3 seria a concluso de que, necessariamente, o Bruno levantou a mo na segunda-feira, o que logicamente equivalente proposio de que o Bruno no poderia no levantar a mo na segunda-feira. Assim, o raciocnio acima presumivelmente expressaria o paradoxo informalmente apresentado anteriormente. Entretanto, o problema bvio desta formulao o de que a inferncia de 3, por meio de 1 e 2, invlida. Para mostrar isso, considere um sistema de rvores de lgica modal proposicional que seja uma extenso da lgica proposicional clssica (considerando que uma teoria lgica L2 uma extenso de uma teoria lgica L1 sse os teoremas de L1 so tambm teoremas de L2). O sistema resultante permitir mostrar que a inferncia acima no lcita:

    1. 0: (BgP P)

    2. 0: BgP

    3. 0: ~P

    4. 0: ~P (3)

    5. 1: 01 (4) 6. 1: ~P (4,5)

    7. 1: BgP P (1,5)

    8. 1: ~BgP (7) 9. 1: P (7)

    x

    Como se pode observar, a inferncia invlida, pois um dos ramos da rvore no fecha, a saber, 8. Para a inferncia ser lcita nessa lgica, teramos

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    de ter BgP como premissa. Entretanto, parece-me difcil encontrar boas razes a seu favor.

    Obviamente no meu intuito oferecer uma soluo para o problema da compatibilidade entre a prescincia divina e o livre-arbtrio. Apenas mostrei que certa formulao de um tradicional argumento a favor da incompatibilidade invlido. A propsito, trata-se de uma falcia anloga famosa falcia fatalista (que mencionarei brevemente no captulo seguinte). Em todo o caso, a pergunta ainda permanece: ser a oniscincia divina compatvel com o livre-arbtrio? Alguns dizem que sim, outros dizem que no. Independentemente disso, este problema est relacionado ao livre-arbtrio. E o problema da prescincia divina apenas um problema medida em que parece colocar em causa que agentes como ns tenham livre-arbtrio.

    Outra questo igualmente honrvel o que irei chamar de o problema do fatalismo lgico. O fatalismo lgico a tese de que uma verdade lgica ou conceitual que ningum capaz de agir de modo diferente daquilo que agiu (van Inwagen 1983, cap. 2). Isso controverso, mas podemos admitir, para fins de formulao do problema, que uma condio necessria para haver livre-arbtrio ser capaz de agir de modo diferente daquilo que se agiu. Um argumento tradicional famoso a favor do fatalismo lgico, por exemplo, o argumento da batalha naval. Se a tese do fatalismo lgico for verdadeira, ento no somos capazes de agir de modo diferente daquilo que agimos. E se no somos capazes de agir de modo diferente daquilo que agimos, ento no temos livre-arbtrio. Logo, se o fatalismo lgico for verdadeiro, ento no temos livre-arbtrio.

    Quando mencionei o problema da oniscincia, mostrei por que uma formulao de um argumento tradicional a favor de uma resposta a esse problema invlida. Aqui, como disse, o argumento tradicional a favor do fatalismo lgico o da batalha naval. Espero mostrar que uma das formulaes desse argumento invlida. Vejamos:

    1. Haver uma batalha naval ou no.

    2. Necessariamente, haver uma batalha naval ou no.

    3. Logo, ou necessariamente haver uma batalha naval, ou necessariamente no haver uma batalha naval.

    Intuitivamente, a concluso, como podemos observar, a de que, ocorra ou no uma batalha naval, necessrio que esse seja o caso. Seja P a

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    proposio expressa pela frase haver uma batalha naval e admitindo que representa a necessidade lgica, podemos formalizar o argumento acima da seguinte maneira:

    1. P ~P premissa 2. (P ~P) 1, IK 3. P ~P 2

    Uma vez que representa a necessidade lgica, a concluso a de que logicamente necessrio que haver uma batalha naval ou logicamente necessrio que no haver uma batalha naval. P uma varivel proposicional que pode ser substituda por qualquer proposio, inclusive qualquer proposio acerca de uma ao. Assim, seja P a proposio de que o Bruno levantar a mo, a concluso a de que logicamente necessrio que o Bruno levantar a mo ou logicamente necessrio que no levantar a mo.

    1. logicamente necessrio que: se logicamente necessrio que o Bruno levantar a mo, ento ele no capaz de no levantar a mo.

    2. logicamente necessrio que ele levantar a mo.

    3. logicamente necessrio que ele no capaz de no levantar a mo.

    O problema, claro, que a primeira inferncia invlida, o que fcil de ver recorrendo novamente a uma rvore lgica:

    1. 0: (P ~P) 2. 0: ~ (P ~P) 3. 0: ~P (2) 4. 0: ~~P (2) 5. 0: ~P (3) 6. 0: P (4) 7. 0: 01 (5) 8. 1: ~P (5, 7) 9. 0: 02 (6) 10. 2: P (6, 9) 11. 1: P ~P (1, 7)

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    12. 1: P 13. 1: ~P

    x 14. 2: P ~P (1, 9)

    15. 2: P (14) 16. 2: ~P (14) x

    Como se pode observar, um dos ramos da rvore, a saber, 15, no se fecha. Portanto, a inferncia no lcita. Alm disso, outro passo que se poderia colocar em disputa a inferncia de 2 por meio de 1. Intuitivamente, a ideia a de que qualquer verdade lgica uma verdade necessria. Ora, como P ~P uma verdade lgica, relativamente lgica clssica, podemos inferir que (P ~P). Note-se, contudo, que um intuicionista no aceitaria esta inferncia, j que o tertium non datur no uma verdade lgica relativamente lgica intuicionista. Estou usando ~ precisamente para representar a negao clssica, de modo a evitar esse tipo de objeo. Usarei para representar a negao intuicionista. Se a negao em causa na apresentao intuitiva do argumento da batalha naval fosse a negao intuicionista, a formalizao correta seria esta:

    1. P P premissa 2. (P P) 1, IK 3. P P 2.

    Assim, no precisaramos de recorrer quela rvore lgica para mostrar que a inferncia de 3 por meio de 2 invlida. Afinal, como 1 no uma verdade lgica (com relao lgica intuicionista), no poderamos inferir validamente 2.

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    Novamente, no pretendo oferecer uma soluo para o problema do fatalismo lgico, mas apenas mencionar que uma formulao desse clssico argumento invlida, quer numa lgica modal que seja uma extenso da lgica clssica, quer na lgica intuicionista. (Para um interessante ensaio sobre o fatalismo, ver VAN INWAGEN 1983, cap. 2; para outras referncias ao problema, veja o j clssico TAYLOR 1962).

    Poderia prolongar a apresentao de problemas relacionados ao livre-arbtrio, mas esses acima mencionados bastam para o que eu tinha afirmado nos pargrafos iniciais desta seo. No h somente um problema relacionado ao livre-arbtrio, mas vrios. Apresentei os problemas da prescincia divina e do fatalismo lgico de maneira breve porque esses problemas no sero discutidos nesta dissertao.

    Finalmente, importante notar que, de agora em diante, discutirei alguns problemas filosficos relacionados ao conceito de livre-arbtrio. No vou discutir os problemas cientficos a ele relacionados. H muitas notcias, principalmente entre os jornais, de que os cientistas estariam prximos de resolver o problema do livre-arbtrio. A pergunta apropriada, neste caso, seria a seguinte: qual problema eles iro resolver? Muito provavelmente no o problema de saber se o livre-arbtrio compatvel com o determinismo. Este um problema de saber quais as relaes conceituais entre a tese determinista e a tese de que h livre-arbtrio, e no um problema que compete aos cientistas resolverem. claro que, para apresentar um argumento cogente a favor disso, eu teria de prolongar com discusses meta-filosficas a respeito da natureza de um problema filosfico. No quero me envolver nessa discusso. O que preciso apenas o seguinte: se algum pensa que uma cincia emprica pode resolver um problema de anlise conceitual, essa pessoa tem o nus de apresentar um argumento cogente a favor dessa posio. Se prima facie no h tal argumento, ento prima facie o problema da compatibilidade entre o determinismo e o livre-arbtrio um problema que compete apenas aos filsofos solucionarem. Portanto, prima facie h alguns problemas relacionados ao livre-arbtrio que no competem aos cientistas solucionarem. Assim, em suma, importante distinguir os problemas filosficos dos problemas cientficos relacionados ao livre-arbtrio. Considerando nossa compreenso pr-terica desses problemas, proponho-me aqui apenas a discutir os problemas filosficos relacionados ao livre-arbtrio.

    1.2 O problema do livre-arbtrio e do determinismo

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    O problema com o qual me ocuparei com maior interesse o problema do livre-arbtrio e do determinismo, ou, para abreviar, o Problema da Compatibilidade. Grosso modo, este o problema de saber se o determinismo e o livre-arbtrio so compatveis. Chamemos de Compatibilismo tese de que o livre-arbtrio e o determinismo so compatveis; ou, em outras palavras, tese segundo a qual a verdade do determinismo no exclui a existncia do livre-arbtrio. Chamemos de Incompatibilismo tese de que o livre-arbtrio e o determinismo so incompatveis; ou, em outras palavras, tese segundo a qual a verdade do determinismo exclui a existncia do livre-arbtrio. Os proponentes da primeira tese so conhecidos como compatibilistas, enquanto que os proponentes da segunda tese so conhecidos como incompatibilistas. Em resumo, para colocar o problema em outras palavras (VIHVELIN 2011): o problema filosfico do livre-arbtrio e do determinismo o de saber quem est certo, o compatibilista ou o incompatibilista. Sem dvida, esta uma caracterizao demasiado informal do problema. Peo ao leitor pacincia. Oferecerei uma caracterizao mais precisa nesta seo. Mas, para que isso seja feito, preciso oferecer alguns breves comentrios sobre os conceitos de determinismo e livre-arbtrio, respectivamente.

    a) O determinismo

    O primeiro aspecto a ser notado o de que o termo determinismo ambguo. No sei o que esse termo significa em outras disciplinas, como a fsica ou a psicologia. O que posso dizer que, em filosofia, ele usado para se referir a teses diferentes. O determinismo teolgico a tese de que Deus onisciente; o que, como vimos, quer dizer que conhece todas as proposies verdadeiras, incluindo proposies verdadeiras sobre nossas aes futuras. O problema do determinismo teolgico e do livre-arbtrio o problema da oniscincia divina caracterizado na seo anterior. O determinismo lgico a tese de que o princpio da bivalncia (a saber, o princpio de que, para qualquer proposio, essa proposio verdadeira ou falsa) vale para todas as proposies, incluindo proposies sobre nossas aes futuras. O problema do determinismo lgico e do livre-arbtrio o de saber se ambos so compatveis. O determinismo psicolgico a tese de que as aes de uma pessoa so determinadas por motivos mais fortes. Infelizmente no sei qual o problema filosfico relacionado ao determinismo psicolgico, muito provavelmente porque no sei o que significa determinado por um motivo mais forte. Seja como for, a concepo de determinismo usada ao longo de toda esta dissertao deve ser distinguida dessas concepes de determinismo.

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    Chamemos de determinismo nomolgico tese determinista que ser discutida de agora em diante. Intuitivamente, a tese de que o passado e as leis da natureza determinam um nico futuro. Em outras palavras, a tese de que, dado o passado, h exatamente um futuro possvel. O termo possvel talvez seja mais ambguo do que determinismo e por isso merece alguma explicao. O sentido empregado de possibilidade nessa caracterizao o de possibilidade nomolgica:

    nomologicamente possvel com relao s leis da natureza8 L se, e s se, logicamente consistente com L.

    Notemos que h diversos futuros possveis em outros sentidos de possibilidade. Vejamos, por exemplo, a possibilidade epistmica:

    epistemicamente possvel para um sujeito S se, e s se, no excludo pelo que S sabe (VAIDYA 2007).

    Considerando tudo o que sei, possvel no sentido de ser epistemicamente possvel que ocorra um eclipse solar esta tarde, assim como possvel que no ocorra. Isso tambm possvel com relao possibilidade conceitual, pois

    conceitualmente possvel se, e s se, no excludo pelo conjunto de verdades conceituais (VAIDYA 2007).

    Mas note que, do fato de haver muitos futuros possveis (nos sentidos epistmico ou conceitual de possibilidade), isso no constitui uma refutao tese determinista. O que a tese determinista quer dizer que, dado o passado, h um nico futuro nomologicamente possvel. E um futuro nomologicamente possvel um futuro logicamente consistente com as leis da natureza. A tese determinista falsa se, e s se, dado o passado, h mais de um futuro nomologicamente possvel. O determinismo falso se, e s se, o indeterminismo verdadeiro.

    Essa caracterizao tem de ser precisada. Para um futuro ser logicamente consistente com as leis da natureza, ele tem de ser entendido como uma proposio, no como um evento, um estado de coisas ou qualquer coisa

    8 No farei distino entre os termos leis fsicas e leis da natureza.

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    que no seja um portador-de-verdade. argumentvel que seja um erro categorial dizer que um estado de coisas E logicamente consistente a um estado de coisas F9. No entanto, no um erro categorial dizer que uma proposio P logicamente consistente com uma proposio Q. Como se pode observar, uma vez que a tese determinista precisa da noo de que o futuro seja logicamente consistente com as leis da natureza, estipularei que, ontologicamente falando, leis da natureza so proposies.

    Alm disso, na caracterizao acima do termo determinismo, o termo passado foi invocado. Ora, o que significa a expresso dado o passado, h exatamente um futuro possvel? Disse que a possibilidade para ser entendida como a possibilidade nomolgica e que o futuro tem de ser de alguma forma entendido como uma proposio. O mesmo ocorre com o passado. Nessa caracterizao de determinismo, o passado ser entendido como uma proposio verdadeira sobre o estado total do mundo em qualquer tempo t; o futuro ser entendido como uma proposio verdadeira sobre o mundo em qualquer tempo posterior a t. Em virtude dessas consideraes, o determinismo pode agora ser definido:

    Determinismo = def. uma proposio verdadeira sobre o estado total do mundo em qualquer tempo t, e uma proposio que seja a conjuno de todas as leis da natureza, implicam estritamente uma proposio verdadeira sobre estado do mundo em qualquer tempo posterior a t.

    H conceitos no definiens que no foram adequadamente explicados; por exemplo, os conceitos de leis da natureza, proposio e estado total do mundo. Isto, contudo, no ser necessrio para este captulo. Irei oferecer uma caracterizao mais precisa desses conceitos quando for apresentar o Argumento da Consequncia, no captulo seguinte.

    Antes de prosseguir para a noo de livre-arbtrio, ser importante distinguir a concepo de determinismo que mencionei acima de concepes diferentes assumidas por outros filsofos. Em The Open Universe: an argument for indeterminism, Karl Popper discute a tese que chamara de determinismo cientfico, a saber, a tese de que

    9 argumentvel porque podemos definir consistncia lgica em termos da noo de verdade; por exemplo, A logicamente consistente com B sse possvel que A e B sejam verdadeiras. comum considerar que estados de coisas no so portadores-de-verdade.

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    32 a estrutura do mundo tal que qualquer evento pode ser racionalmente previsto, com qualquer grau desejado de previso, se nos dada uma descrio suficientemente precisa dos eventos passados, junto com todas as leis da natureza (POPPER, 1988, pp.1-2).

    Embora a definio do conceito de determinismo de Popper recorra aos conceitos de eventos passados e leis da natureza, ela se difere de uma maneira substancial daquela que apresentei acima: na concepo de Popper, o determinismo uma tese sobre previsibilidade. Eu nada disse sobre previsibilidade na definio que apresentei. Se h uma noo legtima de determinismo que pode ser entendida como uma tese sobre previsibilidade, algo que permanece controverso. Kadri Vihvelin (2011, 1), por exemplo, afirma que o determinismo no uma tese sobre previsibilidade. E ainda assere que a Teoria do Caos nos diz que alguns sistemas determinsticos so muito difceis de prever. A mecnica quntica nos diz, pelo menos de acordo com algumas interpretaes, que o comportamento de sistemas probabilsticos , pelo menos em algum aspecto, fcil de prever (2011, 1). No vou argumentar que o conceito determinismo que estou a discutir o correto; apenas estipulo que o que chamo de determinismo pode ser legitimamente assim chamado. De fato, a discusso sobre o Argumento da Consequncia se pauta nessa concepo de determinismo, e acredito que isso seja o bastante para me justificar a assumir essa concepo. E nessa concepo, claro, o determinismo no uma tese sobre previsibilidade10.

    Em todo o caso, tanto eu quanto Popper concordamos que o determinismo no deve ser confundido com uma tese sobre causao. De fato, a bibliografia antiga sobre o Problema da Compatibilidade (representada pelos Grandes Filsofos Mortos, como Espinosa, Hobbes, Hume, Kant, Mill) assumia que o determinismo era equivalente ao Princpio de Causao Universal:

    Todo evento (mudana, acontecimento, ou qualquer relata causal) tem uma causa.

    10 A concepo assumida nesta dissertao est mais prxima do que Popper chamou de determinismo metafsico, a qual no uma tese sobre previsibilidade.

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    Como j distingui o determinismo de uma tese sobre previsibilidade, ser importante distingui-lo dessa tese sobre causao.

    Em primeiro lugar, para mostrar que o determinismo e o Princpio de Causao Universal no so teses equivalentes, suponha que a doutrina da causao imanente (ou a doutrina da causao do agente, como dizem alguns) seja verdadeira. A doutrina da causao imanente11 muito bem ilustrada na seguinte passagem de Chisholm (1964, p.62):

    Quando agimos, cada um de ns um primeiro motor imvel. Ao fazer o que fazemos, causamos certos eventos que acontecem, e nada ou ningum nos causa a causar esses eventos que acontecem

    Suponhamos, ento, que alguma mudana tenha ocorrido num agente e esse mesmo agente tenha sido o responsvel por essa mudana. Admitamos que a mudana nesse caso no seja uma mera mudana de Cambridge12. Segundo a doutrina da causao imanente, o agente o nico responsvel por determinar sua mudana, e esta no determinada pelas leis da natureza e o passado. A ideia intuitiva de que as leis da natureza e o passado no determinam a mudana do agente, segundo a definio de determinismo apresentada acima, equivalente afirmao de que o passado e as leis da natureza no implicam estritamente uma proposio verdadeira acerca de um instante do tempo posterior ao do passado, digamos, uma proposio acerca da mudana desse agente. Portanto, se a doutrina da causao imanente verdadeira, o determinismo falso. No entanto, a doutrina da causao

    11 Ser informativo distinguir a causalidade imanente da transeunte. Nas palavras de Zimmerman (1997, p.433): A causao imanente foi tipicamente contrastada com a causao transeunte do seguinte modo. Na causalidade transeunte, diz Johnson a ocorrncia da causa e a ocorrncia do efeito referem-se a contnuos diferentes, enquanto que na causao imanente a ocorrncia da causa e a ocorrncia do efeito so atribudas ao mesmo contnuo. 12 O termo mudana de Cambridge foi utilizado por Peter Geach (1969) para se referir aos filsofos de Cambridge, como Russell, os quais pensavam que um particular sofre mudanas sse ganha ou perde propriedades. Ora, como notou Geach, essa concepo de mudana implausvel. Admita que eu tenha dado um passo agora mesmo. Digamos que ganhei, assim, a propriedade de estar 2cm mais longe de um tomo de carbono numa galxia muito, muito distante. No parece plausvel admitir que eu tenha mudado.

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    imanente totalmente compatvel com Princpio de Causao Universal. O que o princpio afirma que, se algo um evento, ento tem uma causa. A mudana que ocorreu no agente um evento que tem uma causa, a saber, o prprio agente. J o agente propriamente dito no causado por nada, mas isso no falsifica o Princpio de Causao Universal, pois o agente no um evento; como o antecedente falso, o Princpio de Causao Universal verdadeiro.

    Enfim, para evitarmos esse tipo de objeo equivalncia entre o determinismo e o Princpio de Causao Universal, precisaramos da seguinte premissa (VAN INWAGEN 1983, p.4):

    (1) Se um evento tem uma causa, ento sua causa tem de ser um evento e nunca uma substncia ou contnuo, tal como uma pessoa.

    Mesmo que 1 seja verdadeira, precisaramos de premissas adicionais para mostrar que as teses so equivalentes. Considere o seguinte: suponha que todo o evento seja causado por algum evento anterior ou eventos anteriores e que essas causas no necessitam, mas meramente produzem, seus efeitos (van Inwagen 1983: 4). Essa suposio compatvel com o Princpio de Causao Universal. No entanto, se ela for verdadeira, o passado no determina um nico futuro. Se o passado no determina um futuro nico, ento o determinismo falso. Assim, seria possvel que o Princpio de Causao Universal fosse verdadeiro e o determinismo fosse falso. Portanto, precisaramos da seguinte premissa adicional (VAN INWAGEN 1983, p.4):

    (2) Se um evento A for a causa de um evento B, ento segue-se que, dado que A aconteceu e dado as leis da natureza, A causalmente necessitou B, que B no poderia ter falhado em acontecer.

    Finalmente, mesmo que (1) e (2) sejam verdadeiras, para mostrar que o Princpio de Causao Universal acarreta o determinismo, precisaramos da seguinte premissa (van Inwagen 1983: 4):

    (3) Toda cadeia de causas que no tem um primeiro membro tal que, para todo tempo t, algum evento na cadeia acontece num momento anterior a t.

    O determinismo pode ser falso, se (3) for falsa, mesmo que o Princpio de Causao Universal e (1) e (2) sejam verdadeiras. Como no consegui ser mais claro, citarei novamente van Inwagen (1983: 5): pode haver dois

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    instantes de tempo, t1 e t2, tal que (i) um certo evento A acontece em t2 (ii) A o ltimo membro de uma cadeia infinita de causas, e (iii) todo membro desta cadeia ocorre depois de t1. Isto foi notado por Lukasiewicz (1967) em On Determinism. Um exemplo dado por van Inwagen talvez torne o ponto mais claro (nota 7 do primeiro captulo): digamos que t1 seja meia-noite e t2 1:00h da manh; suponha que a causa de A ocorreu 12:30h, a causa da causa 12:15h, a causa da causa da causa 12:07:30, e assim ad infinitum.

    Em suma, para que o Princpio de Causao Universal acarrete o determinismo, precisamos das seguintes premissas:

    (1) Se um evento tem uma causa, ento sua causa tem de ser um evento e nunca uma substncia ou contnuo, tal como uma pessoa.

    (2) Se um evento A for a causa de um evento B, ento segue-se que, dado que A aconteceu e dado as leis da natureza, A causalmente necessitou B, que B no poderia ter falhado em acontecer.

    (3) Toda cadeia de causas que no tem um primeiro membro tal que, para todo tempo t, algum evento na cadeia acontece num momento anterior a t.

    Como no vou discutir a plausibilidade dessas premissas, no vou assumir que o Princpio de Causao Universal acarreta o determinismo. Agora note que, mesmo que essas trs premissas fossem verdadeiras, mostraramos apenas que o Princpio de Causao Universal acarreta o determinismo. No mostraramos o acarretamento converso. Ou seja, no mostraramos que o determinismo acarreta o Princpio de Causao Universal. Seria interessante ver com cuidado se h este acarretamento. Contudo, se isso assim, vai depender de qual a teoria correta da causao (VIHVELIN, 2011, 1); essa discusso sobre causao, porm, ser evitada tanto quanto possvel, como veremos. Por ora, o bastante para o determinismo. Procurarei doravante oferecer alguns esclarecimentos sobre o conceito de livre-arbtrio e, depois, caracterizar com mais preciso as teses em disputa acerca do Problema da Compatibilidade.

    b) O livre-arbtrio

    H pouqussimo consenso sobre o que seja o livre-arbtrio. O que h de mais consensual diz respeito a uma compreenso intuitiva desta noo, a saber, que algumas coisas esto sob nosso controle, enquanto outras no (PINK, 2007). Por exemplo, ter nascido como membro da espcie homo

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    sapiens, brasileiro, no estado de So Paulo, etc., algo que no estava sob o meu controle. O que se passou h muito tempo atrs, em galxias muito, muito distantes, tambm algo que intuitivamente est fora do meu controle. Em contrapartida, tipicamente se assume que minhas aes presentes e futuras esto sob meu controle. Ter livre-arbtrio, intuitivamente, a ideia de que temos controle, pelo menos em alguns casos, acerca de como agimos. Assim, pr-teoricamente, o livre-arbtrio tem a ver com o nosso poder para realizar certas aes. Agora, se quisermos definir livre-arbtrio, ser importante oferecer alguns esclarecimentos sobre capacidade e poder. Comearei por capacidade.

    primeira vista, capacidades so parecidas com disposies. Tipicamente pensamos que as disposies so aquelas propriedades atribudas por predicados como frgil e solvel (CARNAP 1936, GOODMAN 1954). Por exemplo, uma xcara de porcelana tem a propriedade disposicional de se quebrar, enquanto o sal tem a propriedade disposicional de se dissolver em gua. Capacidades so semelhantes a disposies no sentido de que ambas podem no se manifestar. Uma xcara de porcelana tem a propriedade disposicional de se quebrar mesmo que no se quebre, um bom jogador de futebol tem a capacidade de fazer um belo gol mesmo que no manifeste essa capacidade.

    Embora semelhantes no aspecto apresentado acima, capacidades e disposies se distinguem em outro: uma condio necessria para a capacidade, mas no para a disposio, ser uma propriedade de agentes. Isso significa que a seguinte condicional verdadeira para capacidade: se algo uma capacidade, ento uma propriedade de um agente. Se substituirmos o termo capacidade por disposio, veremos que a condicional no ser verdadeira para este ltimo: a propriedade de ser solvel no instanciada por agentes, caso em que a antecedente verdadeira (a propriedade de ser solvel disposicional) e a consequente, falsa (essa propriedade no instanciada por quaisquer agentes).

    Nesse sentido, capacidade mais parecido com poder. Tanto o poder quanto a capacidade podem no se manifestar. Tanto o poder quanto a capacidade so ambos propriedades de um agente. Eles s diferem num aspecto: as capacidades esto relacionadas a aes no sentido de que um agente capaz de realizar algo se, e s se, ele capaz de realizar uma ao. Contudo, conceitualmente possvel que um agente tenha o poder de fazer algo que no seja uma ao. Nesse sentido, eu tenho o poder, mas no a capacidade, de entender diversas frases da lngua portuguesa (desde que os textos no sejam tradues de Deleuze e Heidegger). Meu poder para fazer algo ser uma

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    capacidade apenas na medida em que envolver uma relao a uma ao (MAIER 2010 1.2, VAN INWAGEN 1983, 8-13).

    Alm disso, ser importante notar que ser capaz de realizar uma ao no equivalente a ser fisicamente possvel realizar essa ao. Suponha que eu esteja dentro de um quarto e que sua nica sada, digamos uma porta, esteja trancada e que a chave para abri-la se encontre nas mos de uma pessoa que esteja fora do quarto. fisicamente possvel que eu saia do quarto, j que totalmente consistente com as leis da natureza que a porta seja aberta. No entanto, intuitivamente no sou capaz de sair do quarto, pois no est em meu poder realizar esta ao.

    Resumindo: nesta taxonomia, o conceito de capacidade aplica-se a aes realizadas por agentes: sou capaz, por exemplo, de realizar as aes de levantar minha mo, arremessar uma pedra e escrever esta dissertao (ou assim espero!). E ser capaz de realizar uma ao no pode ser entendido como ser fisicamente possvel realizar essa ao. Acredito que seja tudo o que eu possa falar, de maneira mais ou menos incontroversa, sobre capacidade. Infelizmente no sei definir esse termo. O que eu tinha pensado inicialmente era entender capacidade como um operador de formao de frases, que operasse sobre afirmaes acerca de aes para gerar afirmaes mais complexas. Parecia-me plausvel admitir que um sistema correto para esse operador seria o sistema de lgica modal altica T (CHELLAS 1980), que conteria, entre outros, os seguintes esquemas de axiomas:

    (T): A A (K): (A B) (A B)

    Mas penso que Anthony Kenny (1975) tenha argumentado persuasivamente a favor de que (T) e (K) no devem ser esquemas de axiomas se entendermos o diamante como o operador de capacidade. Apresento dois contraexemplos inspirados no artigo original de Kenny.

    Contraexemplo a (T): Suponha que eu nunca tenha manejado uma arma de fogo em toda a minha vida (o que bem verdade) e, por alguma coincidncia, fui convidado a acertar um alvo; digamos, uma pequena marca numa lata. Por coincidncia, acerto o alvo bem na mosca. No entanto, embora eu tenha realizado essa ao, no se segue que eu seja capaz de realiz-la; tive apenas sorte.

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    Contraexemplo a (K): Esse contraexemplo completamente inspirado no artigo de McKay & Johnson (1996) do qual terei muito a falar no terceiro captulo. Suponha que eu tenha uma moeda de dois lados, em condies normais de uso. Sou capaz de realizar a seguinte ao: faz-la virar cara ou coroa. Mas no sou capaz de faz-la virar cara, j que isso se deve ao acaso, nem sou capaz de faz-la virar coroa, pelo mesmo motivo anterior.

    Esses resultados no parecem decisivos. Embora uma lgica modal para a ao e a capacidade tenha seus inconvenientes (por exemplo, foi considerada muito abstrata pela literatura), h desenvolvimentos interessantes. o caso, por exemplo, do sistema de Hilbert de ao e capacidade desenvolvido por Dag Elgesem (1997). E no obstante tenha sido mostrado que esse sistema incompleto com relao semntica pretendida, conforme se v no artigo de Governatori & Rotolo (2005), os prprios autores sugerem que a completude pode ser recuperada. Em todo o caso, no entrarei nessa discusso, pois, para a defesa do Argumento da Consequncia que pretendo desenvolver, as explicaes que ofereci sobre capacidade so suficientes13.

    Agora algum esclarecimento sobre poder. Como j disse acima, a diferena principal entre poder e capacidade que este ltimo refere-se apenas a aes, enquanto o primeiro no. Assim como capacidade, poder tem de ser cuidadosamente distinguido de possibilidade fsica. O exemplo que apresentei anteriormente para distinguir capacidade de possibilidade fsica pode ser igualmente usado aqui. Alm disso, poder no significa permissibilidade moral. No sentido que irei aqui empregar, um criminoso tem o poder de torturar crianas apenas por diverso, embora isso no seja moralmente permissvel.

    Essa breve caracterizao dos termos poder e capacidade til para traar a clssica distino entre liberdade de escolha e liberdade de ao. Intuitivamente, a distino a de que posso no ser livre, por exemplo, para sair do meu quarto (no tenho liberdade de ao), embora seja livre para escolher ficar no quarto (liberdade de escolha). Agora, na presente taxonomia, a distino ser apresentada da seguinte maneira. Se livre-arbtrio for entendido no sentido de liberdade de ao, isso significa que o termo capacidade estar presente no definiens, pois capacidade um termo que se aplica a aes realizadas por agentes. Por outro lado, se livre-arbtrio for 13 No me esqueci da famosa anlise condicional do conceito de capacidade. Ela ser apresentada e refutada, pelo menos em sua verso clssica, no ltimo captulo desta dissertao.

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    entendido no sentido de liberdade de escolha, isso significa que poder estar no definiens, j que esse termo no se aplica apenas a aes; aplica-se tambm a escolhas, que so estados mentais.

    Em todo o caso, o livre-arbtrio ser entendido em termos de poder, j que capacidade foi caracterizado como poder mais ao. Tal como no sou capaz de definir capacidade, no sou capaz de definir poder. Portanto, no sou capaz de definir livre-arbtrio. Na seo seguinte, apesar de tudo, oferecei uma caracterizao mais precisa da tese do livre-arbtrio; acredito que qualquer definio bem-sucedida de livre-arbtrio ter de acomodar essa caracterizao. Assim, minha incapacidade de defini-lo no ser um problema para a defesa do Argumento da Consequncia que pretendo desenvolver.

    c) As teses do livre-arbtrio e do determinismo e o Problema da Compatibilidade

    A tese do livre-arbtrio a de que pelo menos um agente (ou, se achar melhor, uma criatura no-divina) tem livre-arbtrio. Neste sentido, o livre-arbtrio uma tese sobre agentes, enquanto que o determinismo uma tese sobre proposies. O Problema da Compatibilidade o problema de saber quais so as relaes conceituais entre essas duas teses. E eis que surge uma pergunta bvia: como vamos investigar as relaes conceituais entre uma tese sobre agentes e outra sobre proposies? Peter van Inwagen (1983, p.66) oferece uma soluo bastante plausvel: o livre-arbtrio ter de ser entendido como uma tese sobre agentes e proposies.

    Assim, Peter van Inwagen desenvolve, como ele mesmo diz, uma maneira de descrever nossos poderes para agir e, ao agir, modificar o mundo como poderes sobre valores-de-verdade de proposies (ibid). A ideia intuitiva disso muito simples. Tome-se as proposies expressas pelas seguintes frases verdadeiras:

    (a) Nenhum objeto viaja mais depressa que a luz (b) 7 + 5 = 12 (c) A xcara de caf em cima da minha mesa nunca se quebrou (d) Ningum leu a Crtica da Razo Pura inteira em voz alta

    A diferena que h entre essas proposies, como afirma van Inwagen (ibid), que elas poderiam ser descritas de vrias maneiras. Por exemplo,

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    ningum tem, nem nunca teve, o poder de mudar o valor de verdade das proposies expressas pelas frases (a) e (b), mas presumivelmente h agentes que tm o poder de mudar o valor de verdade das proposies expressas pelas frases (c) e (d). Por exemplo, presumivelmente posso agir e modificar o mundo de modo a quebrar a xcara de caf que est em cima da minha mesa. Usei nesse caso a expresso presumivelmente porque o problema de saber se h realmente agentes que tm o poder de mudar o valor de verdade das proposies expressas pelas frases (c) e (d) algo que depende da tese do livre-arbtrio ser verdadeira. Assim, se houver uma distino entre (a) e (b) e (c) e (d), h livre-arbtrio; do contrrio, no (ou seja, a distino ser ilusria).

    Para traduzir a tese do livre-arbtrio para a linguagem de uma lgica modal, preciso apresentar o operador modal N, que intuitivamente caracterizado do seguinte modo:

    NP abrevia P e ningum tem, nem nunca teve, qualquer escolha sobre se P.

    A expresso ter escolha sobre se P pode ser entendida como ter o poder de mudar o valor-de-verdade de P ou, simplesmente, ter o poder de tornar P falsa. Seja P uma varivel proposicional que pode ser substituda por qualquer proposio, a tese do livre-arbtrio pode ser formulada da seguinte maneira:

    Tese do livre-arbtrio = def. ~NP

    Ou seja, coloquialmente, a tese de que no o caso que: P e ningum tem, nem nunca teve, qualquer escolha sobre se P. Essa uma tese mnima sobre o livre-arbtrio: a tese de que pelo menos um agente teve o poder de tornar ao menos uma proposio falsa; essa proposio pode ser tanto acerca das aes desse agente quanto acerca de suas escolhas.

    Agora ser possvel apresentar o Problema da Compatibilidade de maneira mais precisa. Para fazer isso, ser preciso apenas traduzir a definio do determinismo para a mesma linguagem. Seja L a abreviao de uma frase que expressa uma proposio que a conjuno de todas as leis da natureza e P0 a abreviao de uma frase que expressa uma proposio verdadeira sobre o estado total do mundo em algum tempo, num passado distante, antes de quaisquer agentes existirem, o determinismo a seguinte tese:

    Determinismo: ((P0 & L) P), em que a necessidade altica, a

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    condicional material e P uma varivel proposicional que pode ser substituda por qualquer proposio acerca de uma ao.

    Finalmente, podemos definir tanto o incompatibilismo quanto o compatibilismo. O incompatibilismo a tese de que o determinismo implica que no h livre-arbtrio. O compatibilismo a negao do incompatibilismo.

    Incompatibilismo: ((P0 & L) P) NP

    Compatibilismo: ~ ( ((P0 & L) P) NP)

    O Problema da Compatibilidade o problema de saber qual tese verdadeira, a saber, o compatibilismo ou o incompatibilismo.

    Considerando as definies acima, fcil definir as teses em disputa do Problema Tradicional, ou seja, o problema de saber se h livre-arbtrio, ou de saber se o determinismo verdadeiro. O determinista um incompatibilista que aceita a antecedente da condicional. O libertista um incompatibilista que pensa que NP falsa e, portanto, que o determinismo falso.

    Essa a maneira que vejo o problema. Ela pode ser colocada em disputa. Uma das objees que feita por Warfield (2000) ao Argumento da Consequncia, por exemplo, pressupe que a formulao que fiz do problema malsucedida. Irei responder essa objeo no ltimo captulo desta dissertao. Por ora, acredito que a formulao que fiz pelo menos intuitivamente plausvel.

    Os captulos seguintes desta dissertao se ocuparo com o Problema da Compatibilidade, mas no com o Problema Tradicional, tal com caracterizado na introduo. Uma das resposta ao Problema Tradicional conhecida como impossibilismo, a saber, a tese de que o livre-arbtrio impossvel. Na ltima seo deste captulo, como eu j havia adiantado, procuro refutar um famoso argumento a favor do impossibilismo: o Dilema de Hume.

    1.3 O Dilema de Hume

    O Dilema de Hume um argumento aparentemente muito persuasivo a favor da tese de acordo com a qual a tese do livre-arbtrio , de alguma maneira, incoerente. Embora o argumento tenha recebido este nome, o filsofo

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    David Hume, tanto quanto sei, no o defendeu. Ademais, o argumento j havia sido apresentado anteriormente por outros filsofos, como Leibniz e Toms de Aquino. Seja como for, a discusso em torno de saber quem defendeu esse argumento filosoficamente irrelevante, embora talvez historicamente interessante. A tese de que o livre-arbtrio , de alguma maneira, incoerente, imprecisa. Essa tese informal pode ser formulada em termos mais precisos da seguinte maneira: a tese do livre-arbtrio uma impossibilidade conceitual ou metafsica. Chamemos essa tese de Impossibilismo.

    sempre importante lembrar, entretanto, que possvel um termo vago. Tal como formulado, h dois sentidos de possibilidade do Impossibilismo que irei aqui discutir. Portanto, para j, sinto-me compelido a definir as possibilidades e necessidades metafsica e conceitual. A possibilidade conceitual j fora definida na seo 1.2. Mas, apenas para no a esquecermos, apresento a definio novamente:

    conceitualmente possvel se, e s se, no excluda pelo conjunto de verdades conceituais

    conceitualmente necessria se, e s se, excluda pelo conjunto de todas as verdades conceituais (VAIDYA 2007).

    At aqui, quando defini os tipos de modalidades, recorri s definies de Anand Vaidya. Como agora preciso definir a modalidade metafsica, senti-me num primeiro momento inclinado a oferecer da mesma maneira as definies de Vaidya, que so as seguintes:

    metafisicamente possvel se, e s se, verdadeira em algum mundo metafisicamente possvel.

    metafisicamente necessrio se, e s se, verdadeira em todos os mundos metafisicamente possveis (VAIDYA 2007).

    Contudo, essas definies me parecem malsucedidas, pois no h consenso quanto a uma definio bem-sucedida de mundo metafisicamente possvel. Penso que uma definio melhor da possibilidade e necessidade metafsicas seja esta:

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    metafisicamente possvel se, e s se, possvel.

    metafisicamente necessrio se, e s se, necessrio.

    Poder-se-ia objetar que esta definio pouco informativa. Bem, entenderei nesta dissertao os conceitos de possibilidade e necessidade como primitivos, de modo que no podem ser adequadamente analisados; por exemplo, se a anlise tripartite de conhecimento fosse bem-sucedida, o conceito de conhecimento poderia ser eliminado pelos conceitos de crena, verdade e justificao. No penso que o mesmo possa ser feito com relao aos conceitos de possibilidade e necessidade. Mas claro que essa tese tem de ser sustentada com argumentos. Infelizmente no posso apresent-los, pois isso envolveria uma longa discusso em metafsica modal que desviaria os propsitos desta dissertao. Apenas penso ser mais plausvel entender a modalidade metafsica como a modalidade simpliciter; metafisicamente possvel aquilo que possvel, metafisicamente necessrio aquilo que necessrio. E os conceitos de necessidade e possibilidade, por sua vez, so interdefinveis: possvel aquilo cuja negao no necessria, necessrio aquilo cuja negao no possvel.

    Uma vez caracterizado o Impossibilismo, o Dilema de Hume pode ser apresentado em sua forma intuitiva deste modo:

    (Dilema de Hume): Ou o determinismo verdadeiro, ou no. Se for verdadeiro, ento no h livre-arbtrio. Se no for verdadeiro, ento as nossas aes so aleatrias e, portanto, no h livre-arbtrio. Seja como for, portanto, no h livre-arbtrio.

    Considerando as definies da tese determinista e do livre-arbtrio, podemos formular o Dilema de Hume da seguinte maneira:

    1. ((P0 & L) P) ~ ((P0 & L) P) 2. ((P0 & L) P) NP

    3. ~ ((P0 & L) P) NP

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    4. NP

    A concluso, 4, segue-se das premissas 1, 2 e 3, pela regra de eliminao da disjuno da lgica clssica. O argumento, portanto, vlido. Teremos agora de ver se ele um bom argumento. Um argumento bom no pode ser simplesmente um argumento slido, ou seja, um argumento que, alm de vlido, tem premissas verdadeiras. Considere, por exemplo, o seguinte argumento:

    1. Se 1 + 1 = 2, ento 1 + 1 = 2

    2. 1 + 1 = 2

    3. Logo, 1 + 1 = 2

    Pela definio de solidez dada acima, o argumento supracitado slido. Porm, no bom. Trata-se da famosa falcia petitio principii, pois a concluso do argumento j est contida na premissa. Usarei o termo cogncia para me referir aos argumentos bons. Um argumento cogente , intuitivamente, um argumento slido e racionalmente persuasivo (ou seja, se o argumento slido e o agente reconhece sua solidez, ele est racionalmente obrigado a aceitar sua concluso). No preciso definir racionalidade epistmica para entendermos essa noo de cogncia: qualquer definio desse termo ter de acomodar a intuio de que um agente no est racionalmente obrigado a aceitar um argumento que seja falacioso, como a petio de princpio. Se o argumento acima, apesar de slido, no racionalmente persuasivo, ento no cogente. O que procurarei mostrar que o Dilema de Hume no um argumento cogente exatamente nessa caracterizao.

    No penso que primeira premissa apresente quaisquer problemas para o argumento. Ela me parece perfeitamente plausvel porque uma instncia do princpio do terceiro excludo da lgica clssica; rejeitar essa premissa para refutar o argumento um estratgia muito geral no deveria ser tomada. A rejeio dessa premissa nos leva rejeio da maneira como tipicamente argumentamos. Uma vez que no estou disposto a rejeitar isso, no estou disposto a rejeitar a primeira premissa.

    A segunda premissa j bem problemtica. Talvez haja a intuio inicial de que, se o determinismo verdadeiro, ento no h livre-arbtrio. Eu

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    realmente no sei se esta intuio esteja de acordo com o senso comum. Porm, seja como for, a segunda premissa nada mais do que a tese incompatibilista, tal como definido na seo anterior. Embora eu pense que essa premissa seja verdadeira, como procurarei argumentar a favor dela no captulo seguinte, ela no pode ser meramente pressuposta, sem quaisquer argumentos adicionais. Diversos filsofos pensam que esta premissa falsa; e, de fato, por um bom tempo foi assumida como obviamente falsa. So os compatibilistas, obviamente, que tm razes independentes para rejeitar a segunda premissa. Uma vez que no h consenso acerca do Problema da Compatibilidade, e ningum sabe quem est certo, se o compatibilista ou incompatibilista, o compatibilista poder muito bem rejeitar racionalmente a concluso do Dilema de Hume. Ora, dada a definio de argumento cogente, fcil ver que, por assumir sem argumentos adicionais a premissa 2, o dilema de Hume no um argumento cogente.

    interessante notar que o Dilema de Hume um argumento comumente apresentado nas discusses sobre o Problema Tradicional, tal como caracterizado na introduo desta dissertao. No entanto, sua segunda premissa depende de uma resposta correta para o Problema da Compatibilidade. Nesse aspecto, o Problema da Compatibilidade mais fundamental do que o Problema Tradicional, pois, na maior parte dos casos, uma soluo correta para este ltimo depende de uma soluo correta para o primeiro. J adiantei, em todo o caso, que defenderei o incompatibilismo e, portanto, eu teria de aceitar a segunda premissa do dilema. Se aceito que o argumento vlido, bem como as premissas 1 e 2, e mesmo assim penso que o argumento no bom, tem de haver algo de errado com a terceira premissa.

    Na apresentao intuitiva do Dilema de Hume, h um entimema a favor da terceira premissa, a saber, este: se no for verdadeiro, ento as nossas aes so aleatrias e, portanto, no h livre-arbtrio. preciso tornar esse argumento explcito, pois a terceira premissa , primeira vista, implausvel.

    Por contraposio, a terceira premissa a tese de que o livre-arbtrio implica o determinismo. Um argumento a favor dessa tese pode ser apresentado brevemente da seguinte maneira. Suponha que um agente, digamos o Rafael, tenha arremessado uma pedra na janela de uma casa, mas que tenhamos descoberto que no havia qualquer tipo de causa para sua ao de arremessar aquela pedra. Se no houve qualquer tipo de causa para ao do Rafael, ento teramos de dizer que sua ao fora meramente casual, arbitrria, que nada tinha a ver efetivamente com o Rafael. Ora, nesse sentido que o livre-arbtrio implica o determinismo, pois uma condio necessria para o

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    Rafael ter realmente arremessado aquela pedra que sua ao tenha uma causa, ou seja, que ele prprio tenha causado o arremesso da pedra.

    Este argumento mau: o que ele mostra, na melhor das hipteses, que o livre-arbtrio implica o Princpio de Causao Universal. No entanto, como mostrei anteriormente, o Princpio de Causao Universal no equivalente tese determinista. O argumento, mesmo que seja slido, falacioso, pois uma ignoratio elenchi; afinal, sua concluso irrelevante para mostrar a verdade da terceira premissa. Uma vez que no h boas razes para aceitar a verdade da terceira premissa do Dilema de Hume, no h razes para considerar o dilema como um argumento cogente.

    E por falar em ignoratio elenchi, note que no s o argumento a favor da terceira premissa uma falcia desse tipo, mas o prprio Dilema de Hume. Este dilema fora formulado como um argumento a favor da tese de acordo com a qual o livre-arbtrio impossvel (seja no sentido de possibilidade conceitual, seja no sentido de possibilidade metafsica). Ora, a concluso do argumento apenas a de que no h livre-arbtrio. Se no houver problemas em falar de mundos possveis, a concluso do argumento apenas a de que no h livre-arbtrio no mundo atual; o argumento no estabelece a concluso de que, em todos os mundos metafisica ou conceitualmente possveis, no h livre-arbtrio. Portanto, mesmo que as trs premissas do argumento sejam verdadeiras, o Dilema de Hume uma ignoratio elenchi e, portanto, no um argumento cogente a favor do impossibilismo.

    Assim termino minha exposio inicial. Defini as teses do livre-arbtrio e do determinismo e procurei desfazer algumas confuses comuns que h nas discusses sobre os problemas do livre-arbtrio. Acredito que isso permitiu mostrar que um argumento clssico, e aparentemente muito persuasivo, a favor da tese de que a tese do livre-arbtrio incoerente no bom. No captulo seguinte, no irei mais discutir o Problema Tradicional e passarei a discutir diretamente o Problema da Compatibilidade, ao defender o Argumento da Consequncia.

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    2. O ARGUMENTO DA CONSEQUNCIA

    O Problema da Compatibilidade um dos problemas que mais tem recebido ateno nos debates atuais sobre as questes relacionadas ao livre-arbtrio. E isso se deve principalmente discusso em torno do mais importante argumento a favor do incompatibilismo, o Argumento da Consequncia. Desde sua principal formulao, a qual se deve a Peter van Inwagen (1974), o problema fora tratado por autores como Michael Slote (1982), David Lewis (1981), McKay & Johnson (1996), Crisp & Warfield (2000), Helen Beebee & Alfred Mele (2003), Michael Fara (2008), Scott Sehon (2011), Jonathan Westphal (2012), entre muitos outros. Como procurei mostrar na introduo, uma resposta apropriada para o Problema Tradicional depende de uma resposta apropriada para o Problema da Compatibilidade. Formulei este ltimo problema no primeiro captulo e j antecipei que defendo o incompatibilismo. E se defendo o incompatibilismo, o mais natural a se esperar um argumento a favor dessa posio. O argumento que acredito ser cogente a favor do incompatibilismo , como seria natural esperar, o Argumento da Consequncia. Eis o argumento em sua forma intuitiva:

    Se o determinismo for verdadeiro, ento nossas aes so a consequncia das leis da natureza e dos eventos no passado remoto. Mas no depende de ns o que se passou antes de nascermos, e nem depende de ns o que as leis da natureza so. Portanto, as consequncias dessas coisas (incluindo nossas aes presentes) no dependem de ns (van Inwagen, 1983: 56).

    Entretanto, tal como apresentado acima, o argumento no est adequadamente formulado. Como qualquer formulao