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Artigo da dissertação
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E LETRAS DE RIBEIRO PRETO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
ANLISE RETRICA DO DISCURSO POLTICO-EDUCACIONAL DE
CECLIA MEIRELES
Aline Vieira de Souza
RIBEIRO PRETO 2014
Aline Vieira de Souza
ANLISE RETRICA DO DISCURSO POLTICO-EDUCACIONAL DE
CECLIA MEIRELES
Dissertao de mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em Educao da
Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de
Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo.
Linha de Pesquisa: Fundamentos Filosficos,
Cientficos e Culturais da Educao
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha
RIBEIRO PRETO 2014
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE
CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRFICA
Souza, Aline Vieira de Anlise retrica do discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles/ Aline Vieira de Souza. Ribeiro Preto, 2014. 103f. : il., fig. Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto / USP Programa de Ps-Graduao em Educao. Orientador: Marcus Vinicius da Cunha 1. Anlise Retrica. 2. Ceclia Meireles. 3. Escola Nova. 4. Aristteles
Para Ins, que me deu luz e vem me mostrando, ao
longo dos anos, que viver vale a pena.
AGRADECIMENTOS
Ao puxar pela memria lembranas da minha infncia, dos meus primeiros
desenhos, das minhas primeiras brincadeiras, das primeiras redaes feitas na escola,
das primeiras amizades, das primeiras professoras... Penso em como os anos passaram
devagar e rpido ao mesmo tempo. Chegar nesta etapa dos meus estudos algo muito
significativo para mim, pois representa no s a futura obteno de um ttulo, mais do
que isso, representa a conquista de algo que foi desejado no pelo status, mas pela
vontade de realizar pesquisa, pela vontade de descobrir algo alm do que eu j sabia,
passar a conhecer algo que, at ento, era desconhecido.
So tantas pessoas que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao
desse trabalho, que, ao lembrar-me de algumas situaes, a emoo j comea a tomar
conta de mim.
Seria impossvel ter percorrido essa trajetria como pesquisadora iniciante, sem
a orientao e o apoio do Professor Doutor Marcus Vinicius da Cunha. Durante a minha
graduao em Pedagogia, alm de ter me proporcionado aprender sobre a Histria e a
Filosofia da educao, ele orientou-me na monografia que apresentei como trabalho de
concluso de curso. Naquela pesquisa, comeamos nossas primeiras descobertas sobre
Ceclia Meireles, por quem ficamos instigados a conhecer mais. Durante a realizao
dessa dissertao, mostrou-me o caminho a seguir, sem deixar de caminhar ao meu lado.
Agradeo profundamente pela parceria, pelos ensinamentos, pela pacincia, pela forma
de ser autoridade sem ser autoritrio. um privilgio ter um professor-orientador como
o Marcus Vinicius da Cunha.
Durante a qualificao deste trabalho, tive a oportunidade de obter sugestes e
comentrios de duas professoras extremamente generosas e educadas, as Professoras
Doutoras Raquel Discini de Campos e Soraya Maria Romano Pacfico.
No momento da qualificao, tive a oportunidade de conhecer a professora
Raquel, quem h muito tempo j conhecia, por ouvir comentrios de amigos, sobre
como ela era uma pessoa inteligente e carinhosa. S tenho a agradec-la pela
contribuio que representou para a finalizao da minha dissertao, com suas
sugestes de referncias bibliogrficas e um novo olhar para a pesquisa que eu estava
realizando.
A professora Soraya, com quem tive a honra de viver momentos de aprendizado
durante a minha graduao em pedagogia, no momento da qualificao s confirmou
sua capacidade de ser educadora e amiga ao mesmo tempo, mostrando novas
perspectivas para a minha pesquisa. Ela apresentou-me, j h alguns anos, o autor Jos
Saramago, nome que me emociona sempre que surge em minha mente. Seus
ensinamentos durante a minha graduao esto presentes no meu dia enquanto
professora e enquanto ser humano, muito obrigada.
Ao Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia (USP-CNPQ)
agradeo os compartilhamentos de textos, os dilogos durante os congressos que
participamos, as sugestes para a minha pesquisa e a vivncia durante esses anos que
estamos juntos, buscando novos estudos, novas descobertas, sempre com a liderana,
com os ensinamentos do professor Marcus Vinicius da Cunha.
Agradeo tambm a todos os professores que passaram pela minha vida
enquanto estudante, e contriburam para o meu crescimento humano e para o meu
crescimento profissional, deixando suas marcas de ensinamentos e tambm suas marcas
de como ser professor vai alm do ensinar.
Pensando agora nas pessoas que esto prximas, que fazem parte da minha vida
diariamente, as lgrimas escorrem, pois como j escreveu Tom Jobim, impossvel ser
feliz sozinho. Agradeo imensamente minha me, minha irm e ao meu namorado,
por todo o apoio que ofereceram a mim. Ins, minha me, meu porto seguro, sem sua
dedicao seria impossvel ter realizado essa pesquisa. Anglica, minha irm e melhor
amiga, sempre me incentivando e me auxiliando em tudo que eu precisava, minha
inspirao de aluna-pesquisadora, minha companheira de quase trinta anos. Hugo,
meu namorado, parceiro de vida, incentivador e tambm preocupado com os meus
prazos, esteve o tempo todo, no decorrer da pesquisa, apoiando-me. Generoso e
compreensivo em dividir nossos momentos com os momentos em que era necessrio
nosso distanciamento para que eu pudesse estudar.
Como foram importantes os momentos em que eu parasse um pouco de estudar,
e fosse conversar (ainda que vrias vezes as conversas acabassem sendo sobre
pesquisas), dar risadas, distrair um pouco com os amigos que tambm vivem nesse
mundo da pesquisa acadmica, e que se tornaram pessoas muito queridas. Obrigada
Carol, Elaine, Leonardo, Luana, Marina, Priscilla e Stefanie, nossos encontros estaro
sempre presentes como momentos felizes na minha histria.
Agradeo por fim, aos meus alunos, que esto presentes na minha vida h alguns
anos, e que a tornam mais significativa. Todos os anos, existe um novo grupo de alunos,
outros rostinhos, outras histrias, novos desafios, novas alegrias. Como bom ter a
oportunidade de ensinar e aprender com os pequenos, que me mostram que a educao,
a escola algo que sempre deve ser pensado com um alto grau de importncia, que o
futuro melhor depende da qualidade do ensino do presente, que tudo, como j escreveu
Ceclia Meireles, sempre uma questo de educao.
Improviso
Ceclia, s librrima e exata
como a concha.
Mas a concha excessiva matria,
E a matria mata.
Ceclia, s to forte e to frgil
Como a onda ao termo da luta.
Mas a onda gua que afoga:
Tu, no, s enxuta.
Ceclia, s como o ar,
Difana, difana.
Mas o ar tem limites:
Tu, quem te pode limitar?
Definio:
Concha, mas de orelha;
gua, mas de lgrimas;
Ar com sentimento.
Brisa, virao
Da asa de uma abelha.
Manuel Bandeira.
RESUMO
SOUZA, Aline Vieira de. Anlise Retrica do Discurso Poltico-Educacional de
Ceclia Meireles. Dissertao. Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro
Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, 2014.
Esta dissertao analisa uma srie de crnicas de autoria de Ceclia Meireles publicadas
entre 1930 e 1933 no jornal Dirio de Notcias da cidade do Rio de Janeiro. Alm de
contribuir para a compreenso do movimento escolanovista brasileiro desenvolvido
entre os anos de 1920 e o incio da dcada de 1930, o trabalho tem por objetivo
investigar nos textos da autora a presena das paixes, segundo a caracterizao feita
por Aristteles na Retrica, como componentes emocionais que determinam o carter
persuasivo de um discurso. Seguindo os parmetros metodolgicos adotados pelo Grupo
de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, o trabalho apresenta Ceclia
Meireles como oradora habilitada a discorrer sobre questes escolares. As paixes
so organizadas em duas categorias: a positiva, formada por confiana, emulao,
tranquilidade, benevolncia, amor, compaixo e pudor; e a negativa, constituda por
temor, desprezo, clera, inveja, dio, indignao e despudor. O trabalho evidencia que
Ceclia Meireles utilizava as paixes positivas para se referir ao que estivesse em
concordncia com a Escola Nova e as paixes negativas para tratar de ideias e
realizaes contrrias ao escolanovismo.
Palavras-chave: Ceclia Meireles. Escola Nova. Discurso Pedaggico. Anlise Retrica.
Aristteles
ABSTRACT
SOUZA, Aline Vieira de. Rethorical analysis of Ceclia Meireles political-educational discourse. Dissertao. Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto,
Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, 2014.
This dissertation examines a series of chronicles by Ceclia Meireles published between
1930 and 1933 in Dirio de Notcias Daily News , a newspaper from Rio de Janeiro
city. In addition to contributing to the comprehension of Brazilian New School
movement developed between the 1920s and early 1930s, the work investigates the
presence of passions in Meireless texts; according Aristotles Rhetoric, passions
are emotional components that determine the persuasiveness of a speech. Following the
methodological parameters adopted by Rhetoric and Argumentation in Pedagogy
Research Group, the work presents Cecilia Meireles as a "speaker" able to approach
school issues. The passions are organized into two categories: the "positive" are formed
by confidence, emulation, tranquility, grace, love, compassion and decency; and the
"negative" consist of fear, contempt, anger, jealousy, hatred, indignation and
shamelessness. The paper concludes that Cecilia Meireles used the "positives" passions
to refer those who were in agreement with the New School and the "negatives" to
discuss ideas and accomplishments contrary to New School.
Keywords: Ceclia Meireles. New School. Pedagogical Discourse. Rhetorical Analysis.
Aristotle.
SUMRIO
Introduo ..................................................................................................................... 12
1. Os fundamentos terico-metodolgicos da anlise retrica ................................. 16
1.1 A retrica segundo Aristteles........................................................................... 17
1.2 A retrica como metodologia de pesquisa ........................................................ 24
2. A oradora e seu auditrio ........................................................................................ 31
2.1 A educadora Ceclia Meireles ............................................................................ 32
2.2 Ceclia Meireles na imprensa............................................................................. 35
2.3 A audincia da educadora na imprensa ........................................................... 44
3. O discurso da oradora .............................................................................................. 53
3.1 As paixes positivas da oradora ........................................................................ 54
3.2 As paixes negativas da oradora ....................................................................... 67
Consideraes Finais .................................................................................................... 76
Referncias Bibliogrficas ........................................................................................... 80
Anexos ............................................................................................................................ 86
12
Introduo
A vida s possvel
reinventada.
(Ceclia Meireles)
Este trabalho teve origem na monografia que desenvolvi durante os anos em que
cursei a graduao em Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de
Ribeiro Preto USP, curso que conclu em 2007. Naquele estudo, analisei os temas
veiculados por Ceclia Meireles entre 1930 e 1933 na coluna Comentrio, publicada na
Pgina de Educao, seo dirigida pela autora no jornal Dirio de Notcias da cidade
do Rio de Janeiro. Minha motivao foi compreender a razo da presena de Meireles
entre os signatrios do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, documento
publicado em 1932, considerado marco histrico das formulaes da Escola Nova no
Brasil.
Durante os trs anos em que atuou no Dirio de Notcias, Ceclia Meireles
publicou cerca de 750 crnicas na coluna Comentrio. Em 2001, Leodegrio Amarante
de Azevedo Filho (2001, p. xi) buscou retratar as linhas mestras do pensamento de
Meireles e, para isso, organizou 368 desses textos em quatro volumes que foram
publicados na forma de livros pela Editora Nova Fronteira (MEIRELES, 2001a; 2001b;
2001c; 2001d). Minha monografia consistiu em examinar quarenta dos escritos
compilados por Azevedo Filho, privilegiando aqueles que continham menes mais
significativas aos acontecimentos e aos personagens que marcaram a vida poltica e
educacional na poca.
13
Nas concluses da referida monografia, foi possvel mostrar que Ceclia, que era
professora primria desde 1917 no Rio de Janeiro, posicionava-se favoravelmente s
inovaes introduzidas por Fernando de Azevedo, Ansio Teixeira e outros educadores
escolanovistas integrantes do grupo dos liberais, denominao de uma das tendncias
polticas e filosficas componentes da Associao Brasileira de Educao, ABE. Foi
possvel concluir tambm que muitos daqueles escritos continham polmicas contra os
adversrios da nova pedagogia, particularmente os intelectuais catlicos, membros de
outra vertente representada naquela Associao.
O presente estudo busca dar continuidade quela investigao, analisando o
discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles nas mesmas 40 crnicas, tendo por
meta oferecer contribuies a dois campos de investigao. O primeiro campo o da
historiografia da educao brasileira, uma vez que os resultados desta pesquisa podero
permitir um aprofundamento da discusso sobre a presena de Meireles no cenrio dos
debates educacionais da dcada de 1930, possibilitando, assim, ampliar o conhecimento
acerca do movimento escolanovista.
O segundo campo para o qual este trabalho almeja contribuir relaciona-se s
investigaes do Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia
(USP/CNPq), que tem como um de seus objetivos aprimorar uma metodologia para a
anlise de discursos pedaggicos, tomando por base a obra de Aristteles e as
teorizaes elaboradas no sculo XX por autores vinculados ao movimento de reviso
da filosofia aristoteleciana. Em conformidade com os referenciais desse Grupo de
Pesquisa, os discursos pedaggicos possuem carter persuasivo, destinando-se a
influenciar pessoas que, de alguma maneira, tm interesse e/ou responsabilidade pelas
prticas pedaggicas e pelas polticas educacionais.
14
Segundo a teorizao feita por Aristteles, todo discurso persuasivo envolve trs
elementos: o orador, o discurso por ele pronunciado e as disposies do auditrio
perante o qual a argumentao apresentada. Diferentemente do que foi elaborado por
Aristteles, cujas reflexes focalizaram exclusivamente pronunciamentos orais, no
ambiente social da Grcia Clssica, o Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na
Pedagogia investiga discursos escritos contemporaneamente, em particular os que so
tornados pblicos, isto , aqueles que so veiculados visando exercer influncia sobre
certo conjunto de leitores.
Os fundamentos terico-metodolgicos que norteiam as atividades do Grupo de
Pesquisa e que sustentam a pesquisa que deu origem a este trabalho sero apresentados
no primeiro captulo desta dissertao. Como ser possvel observar, na anlise retrica
de discursos escritos destinados a publicao caracteriza-se o autor do texto como
orador, sendo ento necessrio examinar os qualificativos que o habilitam a abordar
com propriedade os temas sobre os quais discursa; o discurso o conjunto de
argumentos contidos no texto publicado, sendo tarefa da investigao compreender as
estratgias argumentativas que o compem; os leitores a quem o autor do texto se dirige
correspondem ao auditrio, devendo o exame retrico esclarecer o contexto em que tal
audincia encontra-se inserida, para assim esclarecer as disposies intelectuais e
afetivas mobilizadas pelo orador.
Tendo em vista essa conceituao, o segundo captulo deste trabalho versar
sobre Ceclia Meireles como oradora, tendo por objetivo evidenciar os qualificativos
que lhe permitiram discorrer sobre assuntos poltico-educacionais. Alm de suas
atuaes e posicionamentos no campo da educao, o captulo apresentar tambm um
estudo sobre o crculo de interlocutores da oradora, buscando posicionar os personagens
15
do cenrio poltico e educacional constitudo na poca em que os textos jornalsticos de
Meireles foram publicados.
Esses mesmos dados contextuais da esfera poltica e educacional permitiro
qualificar o auditrio de Ceclia Meireles, o que tambm ser feito, ainda no segundo
captulo, por meio da anlise de algumas matrias publicadas na Pgina de Educao ao
lado da coluna Comentrio. O contedo da referida coluna ser examinado no terceiro
captulo, no qual ser discutido especificamente o uso das paixes como recurso
argumentativo direcionado referida audincia.
A respeito das paixes, a exposio desenvolvida no primeiro captulo mostrar
que, segundo Aristteles, um dos elementos centrais de qualquer discurso persuasivo a
mobilizao das emoes da audincia. Procuraremos ento justificar a relevncia de
estudos dedicados a compreender o emprego desse mtodo persuasivo em discursos
pedaggicos, particularmente em textos veiculados por meio de jornais, como o caso
dos escritos de Ceclia Meireles analisados nesta dissertao.
Este trabalho ser finalizado com algumas consideraes sobre os dois campos
de investigao visados por esta pesquisa. No que tange historiografia educacional
brasileira, ser discutida a atuao de Ceclia Meireles na arena poltico-educacional, na
qual seu nome ainda pouco conhecido, uma vez que, na maioria das vezes, aparece
vinculado produo artstica. Quanto ao outro campo, ser apresentada uma reflexo
acerca das contribuies oferecidas pelo exame das paixes metodologia adotada pelo
Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, o que poder incentivar a
elaborao de novos projetos nessa linha de investigao.
Na seo de anexos sero apresentadas algumas crnicas de Ceclia Meireles
analisadas neste trabalho. Foram selecionados os textos mais significativos, dentre os
que so citados mais frequentemente nessa dissertao.
16
1. Os fundamentos terico-metodolgicos da anlise retrica
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potncia, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia vossa porta...
(Ceclia Meireles)
O objetivo deste captulo apresentar os fundamentos tericos e metodolgicos
e os procedimentos de investigao adotados pelo Grupo de Pesquisa Retrica e
Argumentao na Pedagogia, de maneira a oferecer sustentao aos captulos
subsequentes, que abordaro o discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles.
Tais fundamentos advm originalmente da obra de Aristteles, particularmente
das reflexes do filsofo concernentes dialtica e retrica, e de pesquisadores
vinculados ao movimento de reviso do pensamento aristoteleciano articulado desde a
primeira metade do sculo XX. Inspirado nesses autores, o referido Grupo de Pesquisa
tem produzido trabalhos dedicados a investigar discursos pedaggicos.
Sendo assim, este captulo composto por duas partes: a primeira traz uma
explanao sobre o pensamento de Aristteles, e a segunda, um sumrio da metodologia
denominada anlise retrica, tal qual se encontra nos trabalhos do Grupo de Pesquisa.
No decorrer destas pginas sero delineados e justificados os contedos das prximas
sees desta dissertao, nas quais ser feito o exame do discurso veiculado nos textos
jornalsticos de Meireles, bem como do auditrio visado pela autora.
17
1.1 A retrica segundo Aristteles
Aristteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, cidade localizada na Pennsula
Calcdica, ento colonizada pela Macednia. Aos dezoito anos de idade, foi para Atenas
estudar na Academia de Plato (427-347 a.C.), onde permaneceu at a morte do mestre,
ocasio em que fundou sua prpria escola, denominada Liceu. Grande parte de sua obra
permaneceu desconhecida entre os gregos, inicialmente circulando somente entre seus
discpulos e, mais tarde, esquecida na adega da casa de um de seus amigos. Por isso, at
o ano 50 a.C., Aristteles foi considerado um simples comentador da filosofia de Plato
(CUNHA, 2007a, p. 60-61).
Outros problemas afetaram a divulgao e o estudo das obras do Estagirita: no
sculo III, os padres da Igreja Catlica proveram a adequao do pensamento
aristoteleciano doutrina crist, o que selou o seu nivelamento com a filosofia de
Plato; mais tarde, quando a Igreja cristianizou o Imprio Romano, as ideias de
Aristteles foram consideradas herticas. O que preservou seus escritos da destruio
foi a sua transferncia para Alexandria, no Egito, em 395. O Ocidente voltou a ter
contato com os ensinamentos aristotelecianos somente na poca das Cruzadas e da
conquista da Pennsula Ibrica pelos romanos, por meio de tradues para o rabe
elaboradas principalmente por Avicena e Averris nos sculos XI e XII (CUNHA,
2007a, p. 61).
A partir do sculo XIII, tornaram-se marcantes as interpretaes decorrentes de
Toms de Aquino (1224-1274), mestre da Escolstica e fonte dos movimentos Tomista
e Neotomista que exercem forte influncia ainda hoje (ver FAITANIN, 2008). Segundo
a explicao de Berti (1997, p. 59), at o sculo XIX predominou a viso que buscava
conciliar Aristteles com o cristianismo, o que se cristalizou na tese de que o essencial
18
do pensamento aristotlico consiste na formulao de uma cincia nica do ser,
exatamente a cincia do ser enquanto ser; o raciocnio cientfico, ou seja, o raciocnio
que contm a perfeita expresso da verdade seria ento enunciado somente por meio de
formulaes dedutivas, ou demonstrativas (idem, p. 61).
Segundo Aristteles explica no tratado intitulado Primeiros analticos, o
raciocnio dedutivo, ou demonstrativo, expresso por meio do silogismo, que uma
forma de argumentar composta por duas premissas das quais se obtm uma concluso,
sem recorrer a nenhuma outra afirmao. Por exemplo, das premissas Todo homem
mortal e Scrates homem deduz-se imediatamente que Scrates mortal.
Uma das premissas do silogismo recebe o nome de primeira, ou maior, pois
o seu contedo exprime um princpio, ou seja, uma formulao que d incio, ou
principia, vrios outros raciocnios na cincia especfica em que se situa o silogismo. A
outra premissa, denominada menor, diz respeito a um sujeito particular nesse caso,
o indivduo Scrates.
No exemplo, Todo homem mortal um princpio, uma vez que atua como
premissa primeira de vrios outros raciocnios gerando, consequentemente, outras
concluses na rea em que a argumentao se desenvolve. Por exemplo, se a essa
premissa maior acrescentarmos a premissa menor dipo homem, concluiremos que
dipo mortal; em vez disso, se a ela acrescentarmos Prometeu no homem,
deduziremos que Prometeu no mortal.
No tratado Segundos analticos, Aristteles explica a sua noo de cincia,
dizendo que o conhecimento cientfico expresso pelo raciocnio silogstico, ou
demonstrativo, cuja formulao contm um saber necessrio e causal.1 Trata-se de um
1 Tanto os Primeiros analticos quanto os Segundos analticos fazem parte do rganon (ARISTTELES,
2005), conjunto que rene outras quatro obras do filsofo, incluindo os Tpicos, tratado que ser
mencionado logo mais. A primeira catalogao do corpus aristotelicum foi feita por Andrnico de Rodes
19
saber necessrio porque a concluso advm obrigatoriamente das premissas, sem que
haja necessidade de nenhum outro enunciado para obt-la, como j foi dito. Quanto
causalidade, no exemplo dado nota-se que o porqu, ou a causa, da concluso est
contido nas premissas, mais precisamente em um termo chamado termo mdio
presente em ambas as premissas.
Scrates mortal porque Scrates homem e porque Todo homem
mortal. A causa necessria da mortalidade de Scrates encontra-se no termo mdio
homem, que aparece tanto na premissa menor, relativa a Scrates como indivduo,
quanto na maior, relativa condio de mortalidade de todo ser pertencente
humanidade. Como o sujeito Scrates integra o conjunto dos homens, aqueles que se
predicam pela condio de mortalidade, Scrates necessariamente mortal.
Essa breve descrio sumaria as reflexes de Aristteles sobre a silogstica, a
cincia demonstrativa ou analtica, firmada pelos filsofos medievais como a nica
cincia, a cincia do raciocnio que contm a perfeita expresso da verdade. Como se
pode notar, no se encontra nessa cincia nenhuma referncia origem das afirmaes
que constituem as premissas maiores dos silogismos; no se oferece indaga acerca da
constituio dos princpios que servem de pontos de partida para os vrios raciocnios
relativos aos campos cientficos em que se desenvolvem as argumentaes.
A explicao sobre a origem dos princpios feita no tratado denominado
Tpicos, no qual Aristteles estabelece que as premissas primeiras so obtidas por meio
da dialtica. A dialtica um dilogo entre dois interlocutores composto por
perguntas, respostas e refutaes (BERTI, 1997, p. 287); seu objetivo conduzir s
verdades primeiras das cincias, consistindo na arte de argumentar criticamente, de
examinar, pr prova (PORCHAT PEREIRA, 2001, p. 360). Na presena de um
no sculo I; a segunda, por Digenes Larcio no sculo III; a ltima definitiva, ao que parece foi elaborada por Immanuel Bekker no sculo XIX (ver BINI, 2005).
20
pblico que atua como rbitro da discusso, os interlocutores assumem, como ponto de
referncia para o dilogo, premissas conhecidas (endxa), partilhadas por todos os
ouvintes. Tais premissas no so verdadeiras, como so as premissas da analtica, pois o
objetivo da dialtica chegar a formulaes que possuam o carter de verdade (BERTI,
1998, p. 23, 25).
Ao considerarem somente a silogstica como raciocnio vlido, os
aristotelecianos medievais relegaram a plano secundrio os procedimentos da dialtica.
Embora sob outro registro filosfico, a era moderna deu continuidade a essa concepo,
valorizando Aristteles como criador da nica, ou a nica verdadeira, forma de
racionalidade, a demonstrativa (BERTI, 1998, p. 3). As noes de causa e necessidade
passaram a compor a definio de cincia, de tal maneira que ter cincia, ou saber,
passou a significar simplesmente deduzir concluses a partir de princpios
universalmente aceitos, sendo irrelevante o processo de elaborao desses princpios.
Esse foi um dos temas que contriburam para desencadear o movimento
contemporneo de reviso da filosofia de Aristteles iniciado na primeira metade do
sculo XX, em cuja base encontra-se profunda divergncia com a tradio interpretativa
descendente da Escolstica (ver BERTI, 1997). Segundo Berti (idem, p. 23), o autor de
maior destaque nesse processo foi Jaeger, que em 1923 estabeleceu que Aristteles
deveria ser compreendido fora dos empregos e reinterpretaes filosficas que lhe
foram dadas pelos neoescolsticos.
Em linhas gerais, os adeptos do movimento revisionista defendem haver no
Estagirita uma vigorosa opo pela multiplicidade e pela autonomia das diversas
cincias (BERTI, 1998, p. 9). Assim, Aristteles visto como responsvel no s por
uma cincia do verdadeiro e do necessrio, a silogstica, mas tambm como o estudioso
de uma cincia que se dedica a compreender de que modo so firmados os princpios.
21
Tal cincia a dialtica, que se caracteriza por investigar o que antecede os enunciados
definidores do que uma coisa (idem, p. 15).
Juntamente com os Tpicos, a Retrica possui especial relevncia no movimento
revisionista de Aristteles.2 Logo no incio do Livro I desse tratado, o filsofo explica
que a arte retrica a contraparte da dialtica; as duas se ocupam de questes mais ou
menos ligadas ao conhecimento comum, no correspondendo a nenhuma cincia em
particular (Retrica, I, 1354a1).3 Todas as pessoas participam, de alguma maneira, tanto
de uma quanto de outra arte, pois todos se envolvem, em algum momento da vida, na
tentativa de questionar e sustentar um argumento, seja para se defender, seja para
acusar. A dialtica e a retrica diferem, no entanto, porque a segunda consiste em um
discurso longo dirigido a um auditrio silencioso (BERTI, 1997, p. 287).
A retrica til porque, assim como a dialtica, permite discutir sobre os
contrrios, diferentemente do discurso cientfico, ou demonstrativo, que prprio do
ensino, quando se transmite dedutivamente algo j conhecido unilateralmente. Nas
situaes em que se aplica a retrica, o objetivo no ensinar, mas persuadir com base
em argumentos comuns. Argumentamos persuasivamente sobre coisas contrrias, no
para fazer uma coisa e outra, mas para que no nos fuja o real estado da questo e,
tambm, para refutar os que argumentam contrariamente justia, afirma Aristteles
(Retrica, I, 1355a20).
Reboul (2004, p. 23-24) explica que uma das inovaes de Aristteles reside em
apresentar a retrica como um bem que, a exemplo dos demais bens, como a fora, a
2 A Retrica composta por trs Livros, constitudos respectivamente por 15, 26 e 19 captulos. O Livro
III no ser apresentado aqui, uma vez que seus temas a origem das provas retricas, a expresso enunciativa, ou lingustica, e a forma de organizao das partes do discurso no se relacionam com o assunto deste trabalho. 3 A edio brasileira da Retrica utilizada neste trabalho Aristteles (2011). As citaes desse tratado
sero identificadas por meio do sistema elaborado por Bekker, responsvel pela edio padro das obras
de Aristteles. Cada tratado dividido em Livros, indicados por uma letra grega maiscula ou um nmero
romano; o nmero arbico que veem a seguir representa a pgina da edio padro; a letra e o nmero
arbico que veem depois correspondem, respectivamente, coluna e linha, na referida edio.
22
sade e a riqueza, pode ser corrompido, isto , pode ser usado de maneira desonesta;
mas nem por isso deixa de ser um bem, pois se trata de uma arte (techn) cujo nico
objetivo encontrar os meios de persuaso que cada caso comporta, assim
contribuindo para habilitar o seu praticante a coordenar as vrias possibilidades de
sucesso para a causa que defende.
O domnio da retrica no o da verdade cientfica, uma vez que ela, tal qual a
dialtica, versa somente sobre o verossmil, ou plausvel, podendo ser definida como a
arte de defender-se argumentando em situaes nas quais a demonstrao no
possvel. As noes comuns que constituem o seu ponto de partida no se confundem
com opinies vulgares, pois o seu material o bom senso que se aplica em todo
campo que ainda no foi demarcado por respostas cientficas. Aristteles considera a
retrica indispensvel num mundo de incertezas e conflitos, o que faz dela a arte de
encontrar tudo o que um caso contm de persuasivo, sendo, portanto, a nica arte
aplicvel a situaes em que no h outro recurso seno o debate contraditrio
(REBOUL, 2004, p. 27).
No Livro I, alm de relacionar a retrica com a dialtica, Aristteles (Retrica, I,
1358b1) explica que h trs gneros retricos, conforme sejam as classes de ouvintes a
que se dirige o orador: o deliberativo, ou poltico; o forense, ou judicial; e o
demonstrativo, ou epidtico. O discurso deliberativo visa aconselhar e desaconselhar,
julgando sobre o que conveniente ou prejudicial; o auditrio que atua como juiz tem
os olhos voltados para o futuro. Esta a situao tpica das assembleias, em que os
cidados decidem sobre os destinos da cidade.
A retrica judicial, por sua vez, empregada nos tribunais, tendo por meta
acusar e defender; os juzes consideram o justo e o injusto analisando fatos passados
relativos culpa ou inocncia de um ru. A epidtica discorre sobre o belo e o feio,
23
mediante fatos presentes, sendo caracterstico o seu uso em situaes fnebres e
festivas; o que est em pauta a virtude e o vcio, bem como o que nobre ou vil, com
o intuito de louvar ou censurar os objetos a que se aplica (Retrica, I, 1366a25). Nesse
ltimo caso, os ouvintes atuam como espectadores, pois no lhes cabe expressar um
veredicto, mas, mesmo assim, so levados a formar um juzo sobre os fatos
apresentados.
Ainda no Livro I, Aristteles (Retrica, I, 1356a1) define a retrica como a
faculdade de observar, em cada caso, o que este encerra de prprio para criar a
persuaso, e expe que h trs elementos envolvidos na persuaso: o que emana do
carter do orador (ethos); o que se fundamenta nas disposies do ouvinte (pathos); e o
que decorre do prprio discurso (logos), pelo que este demonstra ou parece demonstrar.
A persuaso obtida pelo carter pessoal do orador quando o discurso d a
impresso de que aquele que o profere digno de f. O Estagirita estabelece que tal
confiana deve resultar do discurso, e no de uma opinio prvia sobre quem o
pronuncia, mas admite que, embora a probidade do que falado seja relevante, quase
impossvel no observar que o carter o principal meio de persuaso (Retrica, I,
1356a5). Persuade-se pelo discurso quando se exibe a verdade ou o que parece verdade,
com fundamento no que persuasivo em cada caso particular.
Persuade-se pela disposio dos ouvintes quando o auditrio levado a sentir
emoo por meio do discurso, tema que ocupa posio central no Livro II da Retrica.4
As paixes, ou emoes, so relevantes na argumentao porque nelas reside o material
que permite atingir aquilo que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 6)
constitui o objetivo geral da retrica: obter a adeso dos espritos, a persuaso.
4 O Livro II to importante que chegou a ser editado em separado do conjunto do tratado (ver
ARISTTELES, 2003).
24
Como as emoes influem no modo como o ouvinte julga os fatos, Aristteles
(Retrica, II, 1378a20) considera que as paixes so as causas das mudanas nos
nossos julgamentos. Meyer (2003, p. xxxviii) explica que quem pretende argumentar
de modo persuasivo deve encontrar uma identidade onde, de incio, havia apenas
antagonismo, diferena e contestao; quem conhece as paixes pode classificar os
homens e, assim, encontrar a melhor maneira de conduzi-los opinio que considera
correta. As paixes, portanto, so como um teclado no qual o bom orador toca para
convencer (idem, p. xli).
1.2 A retrica como metodologia de pesquisa
Os procedimentos metodolgicos adotados pelo Grupo de Pesquisa Retrica e
Argumentao na Pedagogia so fundamentados nas reflexes de Aristteles e de
autores que integram o movimento contemporneo de reviso do pensamento
aristoteleciano, conforme foi acima mencionado. Dentre esses autores, a referncia mais
relevante Cham Perelman, cujas concepes encontram-se principalmente no Tratado
da argumentao, livro em coautoria com Lucie Olbrechts-Tyteca, no qual
apresentada a Nova Retrica.5
Nesse livro, os autores explicam que a retrica antiga era a arte de falar em
pblico de modo persuasivo, consistindo, portanto, em discursos expressos por meio
de linguagem falada. Diferentemente daquele contexto, a Nova Retrica ocupa-se
com a estrutura da argumentao, sem se limitar s caractersticas prprias do
5 Perelman autor de vrios trabalhos dedicados s bases filosficas da metodologia apresentada no
Tratado da argumentao ver, por exemplo, Perelman (1982) e Perelman (1988). Sobre a vida e a obra de Perelman, ver Cunha (2011).
25
discurso oral, focalizando prioritariamente textos impressos, desde que neles se
encontrem os intuitos persuasivos que norteavam a arte retrica exercitada oralmente
pelos antigos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6).
Tomando por base essas proposies, o Grupo de Pesquisa Retrica e
Argumentao na Pedagogia investiga discursos que veiculam proposies tericas
e/ou terico-prticas relativas educao, no mbito da pedagogia, isto , na esfera das
ideias sistematizadas que se apresentam com o objetivo de nortear atividades
educacionais escolares. Os trabalhos do Grupo tm examinado textos publicados em
revistas especializadas e livros que abordam temticas educacionais, aplicando a esses
materiais a anlise sugerida pelo Tratado de Perelman e Olbrechts-Tyteca (ver
CUNHA, 2007b).6
Uma das linhas de investigao do Grupo dedicada a examinar discursos de
autores que se destacaram na formulao do iderio educacional renovador articulado
no Brasil entre as dcadas de 1920 e 1960.7 Ao eleger como objeto de estudo os textos
jornalsticos de Ceclia Meireles publicados nos anos de 1930 e 1933, o presente estudo
integra essa vertente de pesquisa.
Em consonncia com os fundamentos terico-metodolgicos acima descritos, as
prximas sees desta dissertao abordaro os trs elementos constituintes da
argumentao: o orador neste caso, a oradora Ceclia Meireles e o auditrio, aqueles
a quem o seu discurso era direcionado, sero temas do segundo captulo, enquanto o
discurso, ou seja, o contedo dos textos por ela publicados na coluna Comentrio da
Pgina de Educao do jornal Dirio de Notcias, ser objeto do captulo terceiro.
6 As pesquisas do Grupo tambm utilizam outros autores como fontes de referncia para a anlise retrica
como Toulmin (2001), por exemplo. 7 Outra linha de pesquisa do Grupo focaliza textos de John Dewey, filsofo e educador americano
contemporneo.
26
A caracterizao de Ceclia Meireles como oradora justifica-se pelo fato de a sua
atuao assemelhar-se, do ponto de vista da anlise retrica, do cidado da Grcia
Clssica que discursava em assembleias, tribunais e cerimnias de louvor ou censura a
alguma pessoa ou evento. Conforme se ver no terceiro captulo deste trabalho, o
discurso de Meireles ora valorizava os caminhos propostos pela nova pedagogia em
benefcio da educao brasileira, visando, portanto, o futuro; ora defendia iniciativas j
efetivadas pelos educadores escolanovistas, focalizando, portanto, o passado; ora
buscava despertar os leitores para a observao do que ocorria no campo do ensino
naquele momento, ou seja, mirando o presente.
Em qualquer uma dessas posies discursivas, perceptvel a presena de um
componente tico na atuao de Ceclia Meireles, uma vez que as suas intervenes
jornalsticas diziam respeito a um tema considerado essencial para a vida coletiva no
Brasil dos anos de 1930 a educao. Alm disso, Meireles tinha o objetivo de
mobilizar seus leitores, os incentivando a assumirem posicionamentos perante a
situao social em que viviam, particularmente no tocante a assuntos educacionais.
Esses dois aspectos, o carter tico e o intuito mobilizador, so inerentes ao campo da
retrica, tanto a antiga quanto a contempornea, conforme ressaltam vrios tratadistas
dessa arte (ver PERELMAN, 2011).
Considerando a orientao advinda do Grupo de Pesquisa a que este trabalho se
vincula, a investigao acerca do auditrio dever demarcar, com a maior preciso
possvel, as circunstncias histricas, sociais e culturais que cercam a publicao dos
textos em exame. Tais circunstncias, tambm denominadas contexto, sero
reconstitudas com base na literatura e em documentos que versam sobre a poca em
que o discurso foi proferido, como fazem os historiadores quando se debruam sobre
eventos do passado. Essa reconstituio, no entanto, no dever ser feita
27
desvinculadamente dos textos examinado, medida que se presta a evitar que o
pesquisador eleja arbitrariamente alguns fatores do contexto, em detrimento de outros, e
acabe por aplicar ao discurso um molde analtico externo (SIRCILLI, 2008, p. 22).
Por esse motivo, a caracterizao das disposies do auditrio de Meireles
contar com o estudo de algumas das matrias que a oradora publicou na Pgina de
Educao ao lado dos textos de sua autoria inscritos na coluna Comentrio. A anlise
dos contedos dessa coluna, a ser feita no captulo terceiro, complementar, de certo
modo, a tipificao da audincia da oradora, priorizando o exame das paixes por ela
mobilizadas.
Os trabalhos produzidos at o momento pelo Grupo de Pesquisa Retrica e
Argumentao na Pedagogia tm investigado textos de revistas especializadas e livros,
como j foi dito nestas pginas. Alm de situar os autores desses textos como oradores,
nos termos da anlise retrica, tais investigaes buscam elucidar as estratgias
discursivas presentes nesses escritos, de maneira a discutir o seu poder persuasivo
perante determinados auditrios, em determinadas circunstncias.
Conforme veremos neste trabalho, uma das estratgias discursivas mais
utilizadas por Ceclia Meireles a conclamao de personagens de prestgio em favor
de suas teses. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 348), muitos argumentos
so influenciados pela reputao de outrem, sendo o argumento de autoridade o que
mais caracteriza essa inteno, consistindo em empregar atos ou juzos de uma pessoa
ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese. O argumento de
autoridade o modo de raciocnio retrico que foi mais intensamente atacado, pois
pode assumir um valor coercivo, como se as autoridades invocadas houvessem sido
infalveis. Alm disso, ao invocar uma autoridade o orador se compromete; no h
argumento de autoridade que no repercuta em quem o emprega.
28
Como ser possvel tambm notar, Ceclia Meireles recorre com frequncia
estratgia de fornecer ilustraes para firmar os posicionamentos que assume no campo
da educao. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, a ilustrao consiste em
argumentar utilizando casos particulares, o que feito igualmente pelo exemplo, que
quando tais casos servem para fundamentar uma regra. Diferentemente, a ilustrao
vem reforar a adeso a uma regra conhecida e aceita, explicando o enunciado geral e
aumentando a sua presena na conscincia do auditrio. Enquanto o exemplo deve
ser incontestvel, pois dele depende a elaborao de um princpio, a ilustrao pode ser
duvidosa, cabendo-lhe somente impressionar vivamente a imaginao para impor-se
ateno (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 407).
Uma estratgia argumentativa de notvel poder argumentativo a metfora,
definida por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 453) como uma analogia
condensada, resultante da fuso de um elemento do foro com um elemento do tema.
Mazzotti (2008, p. 2) explica que o tema o que queremos expressar ou conhecer, e o
foro o que se adota por objeto de comparao, algo j conhecido, do qual so
extrados os significados que so transportados ao tema. Da analogia A est para B,
assim como C est para D, em que A-B so elementos do tema e C-D so componentes
do foro, constri-se a metfora A C de B.
A nfase deste trabalho no ser na identificao de estratgias argumentativas,
mas no estudo das paixes como recursos argumentativos, em consonncia com as
reflexes de Aristteles expostas acima. Esta proposta de pesquisa inspirada em
trabalho de Cunha (2006b) que menciona uma caracterstica peculiar aos textos
publicados em jornais de notcias. Diferentemente do que se observa em revistas e
livros cujo destinatrio o pblico especializado, os textos jornalsticos, quando
inseridos em debates sobre tema de relevncia social, so desprovidos dos cuidados com
29
a linguagem que so prprios de trabalhos acadmicos. Por esse motivo, possvel
supor que o exame retrico de seu contedo revele a marcante presena de paixes
sendo manuseadas pelos autores com o intuito de sensibilizar seus auditrios.
A palavra paixo deriva do latim passio, que, por sua vez, descende do grego
pathos, cujo significado traduz uma perturbao da alma, algo ligado ao corpo ou
parte da alma mais prxima da animalidade, uma impulsividade que merece cuidados,
devendo ser moderada e, mesmo, dominada (REALE, 2001, p. 195). Textos como
os que sero analisados no presente trabalho trazem, muitas vezes, certo componente de
imoderao, pois foram escritos e publicados no calor de disputas, visando interferir nas
disposies intelectuais e emocionais dos leitores acerca de um tema palpitante. Nas
crnicas de Ceclia Meireles, esse tema a educao nova, cujas formulaes eram
cercadas de inmeros defensores e detratores.
Na Retrica, Aristteles faz a explanao sumria de 14 paixes, apresentadas
na forma de pares opostos: confiana e medo; emulao e desprezo; tranquilidade e
clera; benevolncia e inveja; amor e dio; compaixo e indignao; pudor e despudor.8
Pelo modo como o Estagirita caracteriza essas paixes, possvel organiz-las em duas
categorias: a primeira, contendo sentimentos que ensejam afirmao, concordncia,
esprito construtivo, tendo por objetivo levar o auditrio a ter f e otimismo perante os
fatos narrados pelo orador; a segunda categoria, agrupando emoes que denotam
recusa, nocividade, contrariedade, visando constituir no ouvinte disposies de
afastamento ante as ocorrncias mencionadas.
Podemos chamar de positivas as paixes pertencentes primeira categoria.
So elas confiana, emulao, tranquilidade, benevolncia, amor, compaixo e pudor.
As que integram a segunda categoria podem ser chamadas de negativas: temor,
8 No vocabulrio de Aristteles, as paixes possuem significados tcnicos especficos, os quais sero
explicitados no terceiro captulo deste trabalho.
30
desprezo, clera, inveja, dio, indignao e despudor. O captulo terceiro deste trabalho
versar sobre as duas categorias, separadamente.
31
2. A oradora e seu auditrio9
Levai-me aonde quiserdes! Aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.
(Ceclia Meireles)
Segundo a explanao feita no captulo precedente, onde foram delineadas as
bases tericas e os procedimentos da anlise retrica desenvolvida pelo Grupo de
Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, um dos elementos fundamentais da
argumentao o orador, aquele que se pronuncia perante determinado auditrio com a
inteno de persuadir. Outro componente essencial da argumentao o auditrio,
constitudo pelo conjunto de leitores a que se dirige o orador, cujo intuito consiste em
angariar adeso s ideias que veicula.
O primeiro objetivo do presente captulo apresentar Ceclia Meireles como
oradora, o que implica explicitar os qualificativos que a habilitaram a discursar, como
educadora e jornalista, sobre assuntos da rea poltico-educacional, situando a sua
atuao no mbito dos acontecimentos da poca em que foram publicados os seus
pronunciamentos. O segundo objetivo visa caracterizar o auditrio da oradora, o que,
segundo os parmetros da anlise retrica, alcanado por meio do exame do contedo
de seus textos e do contexto geral em que foram publicados.
9 Alguns contedos deste captulo encontram-se no artigo Ceclia Meireles e o temrio da Escola Nova
(CUNHA; SOUZA, 2011), publicado em Cadernos de Pesquisa (FCC).
32
2.1 A educadora Ceclia Meireles
A carioca Ceclia Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de
1901, filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionrio do Banco do Brasil,
falecido trs meses antes do nascimento da filha, e de Matilde Benevides, professora,
falecida quando Ceclia tinha apenas trs anos de idade. Aps a morte de sua me,
Ceclia foi morar com a av materna, Jacinta Garcia Benevides; tambm fez parte de
sua vida a bab Pedrina, que era uma hbil contadora de histrias (PIMENTA, 2001,
p. 15).
Em 1910, Ceclia concluiu o curso primrio na Escola Estcio de S e recebeu
de Olavo Bilac, que ocupava o cargo de Inspetor Escolar do Distrito, uma medalha de
distino e louvor (OLIVEIRA, 2001, p. 321). Em 1915, ela enfrentou outra perda, com
a morte de Pedrina, sua bab. Concluiu o Curso Normal em 1917, passando em seguida
a lecionar no ensino primrio de sua cidade natal. Iniciou a carreira de escritora em
1919 com a obra Espectros, publicando, a partir dali, mais de duas dezenas de livros de
poemas.10
Em 1922, Ceclia casou-se com Fernando Correia Dias, pintor portugus
radicado no Brasil. Nos anos de 1920, sua atuao esteve fortemente ligada ao
magistrio, desenvolvendo atuao crtica em relao ao sistema pblico de ensino
dominante, razo pela qual abandonou a carreira de professora. Reassumiu a profisso
somente em 1927, quando teve incio a reforma do ensino realizada na gesto de
10
Dentre seus livros de poemas, podem ser mencionados: Poema dos poemas (1923); Baladas para El-
Rei (1925); Viagem (1939); Vaga msica (1942); Mar absoluto e outros poemas (1945); Retrato natural
(1949); Romanceiro da Inconfidncia (1953); Canes (1956); Metal rosicler (1960); Solombra (1963); e
Ou isto ou aquilo (1954).
33
Fernando de Azevedo na Diretoria Geral da Instruo Pblica do Distrito Federal
(CORRA, 2001, p. 17).
Essa reforma fez parte de uma srie de medidas semelhantes adotadas
independentemente por vrios estados da federao, cujos governantes tinham interesse
em modificar os seus respectivos sistemas de ensino, uma vez que no havia uma
legislao que regulamentasse o assunto em mbito nacional. A primeira delas ocorreu
em So Paulo em 1920, ficando conhecida como reforma Sampaio Dria; a ela se
seguiram, dentre outras, as reformas comandadas por Loureno Filho no Cear, em
1922; por Ansio Teixeira na Bahia, em 1925; e por Francisco Campos em Minas
Gerais, em 1925 (NAGLE, 1974, p. 192-196).
Segundo Nagle (1974, p. 190-191), o principal efeito produzido por essas
reformas, com especial destaque para a que foi instituda por Fernando de Azevedo no
Distrito Federal, foi a busca de remodelao das finalidades da educao escolar,
mediante a introduo de um novo modelo para a estruturao das escolas e a
orientao das prticas pedaggicas, o que se convencionou identificar como evidncia
da introduo da Escola Nova no pas (idem, p. 190-191).
O saldo mais duradouro daquelas iniciativas isoladas foi a conscincia da
necessidade de sensveis mudanas na rede escolar pblica, envolvendo sua ampliao
fsica e melhorias em suas condies de funcionamento. As novas instituies ento
criadas tiveram o seu raio de ao ampliado, incorporando novas funes por meio da
instalao de novos rgos tcnicos que pretendiam tornar o complexo administrativo
escolar mais adequado nova situao do pas (NAGLE, 1974, p. 190).
A nova situao do pas era a que o Brasil vivia desde a proclamao da
Repblica, e vrios intelectuais, desde ento, vinham se empenhando em encontrar
caminhos para modernizar a nao. De maneira geral, todos reconheciam que a
34
educao encontrava-se distanciada dessa meta, razo pela qual foi criada em 1924 a
Associao Brasileira de Educao, ABE, que congregava diversas tendncias do
pensamento poltico e educacional.
Dentre esses agrupamentos, destacavam-se os catlicos e os liberais, cujas
divergncias iriam tornar-se evidentes alguns anos mais tarde, conforme veremos logo
mais neste trabalho. A liderana dos intelectuais catlicos era exercida em mbito
nacional por Alceu de Amoroso Lima, conhecido como Tristo de Athayde, e o
principal veculo de divulgao de suas ideias era o peridico A ordem, criado em 1922
(CUNHA; COSTA, 2002). Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo, reformadores do
ensino na Bahia e no Distrito Federal, em 1925 e 1927, respectivamente, integravam o
grupo dos liberais.
Foi nesse cenrio que Ceclia Meireles candidatou-se, em 1929, cadeira de
Literatura da Escola Normal do Distrito Federal, concorrendo com um trabalho
francamente liberal que discorria sobre a liberdade individual na sociedade. Ceclia
defendeu que cabia nova escola recuperar no ser humano qualidades como coragem e
independncia e criar um conhecimento sobre o indivduo (LAMEGO, 1996, p. 55).
Sua tese foi reprovada porque a banca composta, entre outros, por Alceu Amoroso
Lima, Coelho Neto e Joo Ribeiro favoreceu o grupo dos, reconhecidamente,
catlicos, do qual Meireles no participava (OLIVEIRA, 2001, p. 322).
O ano de 1930 foi marcado por um evento poltico de grande significado para a
histria do Brasil, o golpe de estado que levou Getlio Vargas ao poder, instituindo um
governo provisrio com a promessa de remodelar as instituies nacionais. Logo em
1931, Vargas criou o ministrio da Educao e Sade Pblica, nomeando para essa
pasta Francisco Campos, jurista que havia conduzido a reforma do ensino em Minas
Gerais em 1925. Uma das primeiras medidas do ministro foi a edio de um decreto que
35
favorecia a instruo religiosa nos cursos primrio, secundrio e normal. Campos foi
um explcito apoiador das causas da Igreja Catlica no campo da educao (CURY,
1984, p. 17); em 1932, o ministrio foi assumido por Washington Pires, mas a pasta
continuou desempenhando a funo de rgo saneador e purificador do corpo e do
esprito dos brasileiros (idem, p. 107).
No campo estrito da poltica, as realizaes de Campos favoreceram
sensivelmente a aliana de Vargas com a Igreja Catlica, constituindo preciosa
vantagem para o governo naquele delicado momento de transio do poder e, ao
mesmo tempo, permitindo que os catlicos continuassem a sua luta de oposio a todos
os setores da sociedade que se mostrassem impregnados de esprito leigo e secular,
sem que houvesse qualquer resistncia do Estado (CURY, 1984, p. 17).
2.2 Ceclia Meireles na imprensa
No mesmo ano do golpe de estado desferido por Getlio Vargas, Ceclia
Meireles iniciou sua carreira na imprensa, dirigindo a Pgina de Educao no jornal
Dirio de Notcias, na qual passou a escrever a coluna diria Comentrio, considerada
por Lamego (1996, p. 31) a grande porta-voz da chamada Escola Nova.
As Figuras 1 e 2, nas pginas seguintes, reproduzem a Pgina de Educao dos
dias 23 de agosto e 29 de julho de 1930, respectivamente. Como se pode notar, a
crnica de Ceclia Meireles, situada na primeira coluna esquerda, ocupava uma
pequena parte do espao editado pela autora, que ali transcrevia matrias de interesse
educacional geral. Na edio do dia 23, por exemplo, havia um escrito discorrendo
sobre a importncia do sono para as crianas ( preciso que a criana durma
36
tranquila), um texto debatendo a dana moderna (A expresso do gesto) e uma
notcia sobre o envolvimento de jovens americanos com a msica (As bandas escolares
rurais nos Estados Unidos); havia tambm informaes sobre ocorrncias legais no
mbito do ensino (Notas oficiais) e reportagens sobre eventos estrangeiros (A
instruo na Alemanha).
Na edio do dia 29 de julho, pode-se observar que, ao lado do Comentrio de
Meireles, havia matrias com teor semelhante s do dia 23 de agosto: informaes sobre
um Concurso de obras didticas promovido pela Diretoria Geral da Instruo Pblica
de So Paulo, uma nota sobre A cinematografia e o ensino da Histria, notcias
referentes a um projeto apresentado ao Conselho de Ensino do Uruguai (Supresso das
exposies escolares) e o relato de um curso Curso terico e prtico de psicologia.
Alm disso, percebe-se nessa mesma edio a presena de anncios comerciais,
situados na parte inferior da pgina, retratando certa variedade de produtos sem relao
com o universo escolar, como lanamento de discos (Novos discos Victor) e venda de
materiais para construo (Portas de ferro batido enrolveis e artsticas) e de seguros
de vida e acidentes pessoais (Assicurazione Generali).
37
Figura 1: Pgina de Educao publicada no dia 23 de agosto de 1930
38
Figura 2: Pgina de Educao publicada no dia 29 de julho de 1930
39
Em carta de 8 de abril de 1931, Ceclia Meireles (apud LAMEGO, 1996, p. 58)
confidenciou ao amigo Fernando de Azevedo os motivos que a levaram atividade
jornalstica, dizendo: o vivo sentimento da minha ineficincia em qualquer escola (...)
levou-me ao jornalstica, talvez mais vantajosa, de mais repercusso porque uma
esperana obstinada esta, que se tem de que o pblico leia e compreenda....
A deciso de Ceclia fora tomada no ano anterior, 1930. Em junho daquele ano
os jornalistas Orlando Dantas, Nbrega da Cunha e Alberto Figueiredo Pimentel haviam
fundado o Dirio de Notcias, que era dividido em sees de poltica nacional e
internacional, economia, esportes e assuntos femininos, trazendo tambm uma pgina
diria totalmente dedicada educao, cujo ttulo em letras estilizadas no deixava
dvida quanto ao contedo do espao: Pgina de Educao (LAMEGO, 1996, p. 27).
Ceclia Meireles foi a criadora e diretora da referida seo desde o primeiro nmero do
jornal, sendo aquele o nico espao totalmente dedicado educao na imprensa da
poca (idem, p. 30 - 31).
Ao ocupar o posto de cronista da educao, Ceclia integrou-se a um dos
veculos mais incensados pelos grupos letrados dos sculos XIX/XX, a imprensa,
lugar de prestgio na vida cultural brasileira, desde aqueles tempos e alm (CAMPOS,
2012, p. 55). Sussekind (1987, p. 13) considera que naquele momento configurava-se no
pas um dilogo intensificado com o novo horizonte tcnico, ocasionando o incio da
profissionalizao do escritor e da reviso da ideia de literatura, redefinida como
tcnica. Deu-se o fortalecimento de uma nova imprensa empresarial, por meio da
qual os homens de letras passaram a se profissionalizar (idem, p. 72).
Pode-se dizer que toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa
que constitua a principal instncia de produo cultural da poca e que fornecia a
maioria das gratificaes e posies intelectuais (MICELI, 1977, p. 15). Por esse
40
motivo, na virada do sculo XIX para o XX, a maior parte dos escritores brasileiros
dirigiu-se para o jornalismo (SUSSEKIND, 1987, p. 74).
Nas palavras de Candido (1992, p. 14), o jornal uma publicao efmera que
se compra num dia e no dia seguinte usado para embrulhar um par de sapatos ou forrar
o cho da cozinha. Apesar disso, Campos (2012, p. 61) destaca o valor dos dirios
como fontes para a histria da educao, enfatizando que a fora imaterial desse tipo de
veculo est na reiterao, dia aps dia, edio aps edio, ano aps ano de
determinados padres culturais compartilhados por aqueles que os escreveram e os
consumiram. Sendo estratgicos, tticos, ou ambas as coisas, os jornais so
vestgios basilares para que se compreenda a construo do homem ocidental dos
sculos XIX/XX e, consequentemente, para a escrita da sua histria e da histria da
sua educao (idem, p. 67).
Ao dissertar sobre a campanha de reconstruo educacional no Brasil,
Fernando de Azevedo (1958a, p. 181) afirma que elementos de vanguarda tomavam
posies na imprensa do pas, particularmente no Rio de Janeiro, onde Ceclia
Meireles, com suas crnicas finas e mordazes, e Nbrega da Cunha, com sua
atividade sutil e de grande poder de penetrao, apresentavam novos estmulos e
acentos novos a essa campanha, cujo contedo no se esgotava sobre o plano
cultural, possuindo em seu desenvolvimento um esprito moderno e um sentimento
profundamente humano. Neves (1992, p. 80) destaca que, tanto por seu estilo literrio
prprio como pelo suporte de sua difuso, o jornal, a crnica atinge um nmero maior
de leitores que qualquer outro gnero.
Esse gnero de escrita praticado por Ceclia Meireles era visto como menor
pelos crticos do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Mas Neves (1992, p. 81)
comenta que se tratava de um gnero relevante, largamente utilizado pelos grandes
41
intelectuais da poca como por todos aqueles que aspiravam a viver das letras. A
crnica possua a inteno de estabelecer ou restabelecer a dimenso das coisas e das
pessoas, no tendo por objetivo oferecer um cenrio excelso, numa revoada de
adjetivos e perodos candentes; valendo-se do mido, o cronista apresentava uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas.
A crnica amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e
tambm nas suas formas mais fantsticas, segundo Candido (1992, p. 14). Por sua
etimologia, chronus, trata-se de um gnero colado ao tempo; como a percepo do
tempo histrico varivel, a crnica sempre de alguma maneira o tempo feito texto,
sempre e de formas diversas, uma escrita do tempo (NEVES, 1992, p. 82).
Na dcada de 1930, a crnica moderna se definiu e consolidou no Brasil,
passando a ser um gnero bem nosso, explorado por muitos escritores e jornalistas.
Como Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem
Braga (CANDIDO, 1992, p. 17). Foi nesse cenrio intelectual que Ceclia Meireles
iniciou a sua atividade como cronista, posicionando-se no epicentro de eventos polticos
e educacionais que mobilizavam os educadores, categoria profissional a que ela
pertencia.
Em julho de 1931, Meireles (apud LAMEGO, 1996, p. 96) escreveu a Fernando
de Azevedo com o intuito de restaurar-lhe a autoestima, ento abalada pela atuao de
Francisco Campos frente do ministrio: Isso servir para lhe demonstrar, mais uma
vez, que no houve, apenas, mas continuar a haver um pequeno grupo de criaturas
dispostas a defender essa obra que o Sr. quis oferecer ao Brasil. Alm de exprimir o
desagrado de Ceclia diante da atuao de Campos, essa manifestao ratificava a sua
total adeso ao iderio escolanovista, do qual Azevedo era um dos mais destacados
representantes.
42
O movimento reformista teve continuidade na dcada de 1930, destacando-se
novamente a atuao de Fernando de Azevedo, desta vez no comando da educao em
So Paulo em 1933, e de Ansio Teixeira, responsvel pelo ensino no Distrito Federal a
partir de 1931. O novo iderio educacional anunciado pelas reformas da dcada de 1920
consubstanciou-se, de fato, em 1932, com a publicao do documento intitulado A
reconstruo educacional no Brasil: ao povo e ao governo, o qual ficou conhecido
como Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (PAGNI, 2000; XAVIER, 2004).
O Manifesto resultou da IV Conferncia Nacional de Educao, realizada pela
ABE no Rio de Janeiro em dezembro de 1931. Presentes ao evento, Getlio Vargas e
Francisco Campos solicitaram aos conferencistas contribuies para o projeto
pedaggico do novo governo. O jornalista Carlos Alberto Nbrega da Cunha, que l
representava a Associao Brasileira de Imprensa e a Associao dos Artistas
Brasileiros, sugeriu mesa diretora dos trabalhos que, em ateno ao solicitado, ficasse
Fernando de Azevedo encarregado de elaborar um esboo, a ser debatido na prxima
reunio da ABE, a ser realizada em Recife no ano seguinte.11
Fernando de Azevedo, que no estava presente Conferncia, aceitou o convite,
mas, em vez de aguardar a ocasio acordada, publicou o texto na imprensa, logo no
incio de 1932, com o ttulo A reconstruo educacional no Brasil, tendo por subttulo
ao povo e ao governo, subscrito por ele mesmo e outras vinte e cinco pessoas. Alm
disso, no final daquele ano Azevedo organizou um livro a transcrio do documento
ento denominado Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova e alguns adendos
que visavam conferir credibilidade s ideias nele expressas.
Todo esse processo a sugesto de Nbrega da Cunha para postergar a resposta
ao governo; a indicao de Azevedo para elaborar o texto; a arregimentao de
11
A narrativa desses fatos encontra-se em livro de autoria do prprio Nbrega da Cunha (2003).
43
intelectuais de respeito para assinar o documento; a publicao na imprensa e a
organizao de um livro pode ser interpretado como reflexo do clima de discrdia
reinante no seio da ABE. O Manifesto continha o ponto de vista de uma nica parcela
dos envolvidos no debate sobre os rumos da educao naquele momento crucial da
histria do pas: o ponto de vista dos liberais, que souberam elaborar com extrema
habilidade uma poderosa arma a ser usada no combate contra os seus oponentes, dentre
os quais se destacavam os intelectuais catlicos (CUNHA, 2008).
Dentre os signatrios do Manifesto encontrava-se Ceclia Meireles, que publicou
o texto na Pgina de Educao no dia 19 de maro de 1932, com o ttulo Manifesto da
nova educao ao governo e ao povo. Essas iniciativas a colocaram na linha de frente
do aguerrido combate entre liberais e catlicos, assumindo as concepes educacionais
dos primeiros e conquistando adversrios entre os ltimos, que passaram a promover
intensa e aberta campanha contra os princpios sintetizados no Manifesto dos Pioneiros
da Educao Nova (CURY, 1984; CUNHA; COSTA, 2002; CUNHA; COSTA, 2006).
Alm de princpios pedaggicos inovadores, sintonizados com as recentes
produes cientficas da Psicologia, o Manifesto continha ideais polticos, filosficos e
sociais frontalmente contrrios a concepes tradicionalmente pregadas pela Igreja
Catlica no campo da educao. Dentre os ideais defendidos pelo documento,
destacava-se a laicidade, que significava afastar quaisquer doutrinas religiosas do
cenrio escolar e, em troca, posicionar as finalidades educacionais no mbito das
exigncias da ordem social, de maneira a contribuir para o progresso do pas; sendo
assim, cabia ao estado a responsabilidade pela formao das novas geraes.
Esse foi, de fato, o principal ponto de discrdia entre os dois grupos ideolgicos,
pois, para os catlicos, a agncia de educao por excelncia era a Igreja, secundada
pela famlia, e toda medida voltada a limitar a liberdade de escolha nessa rea constitua
44
uma via preparatria do comunismo, veiculada por homens perniciosos e
merecedores de total repdio (CUNHA; COSTA, 2002, p. 121). Os catlicos
consideravam o passado como criador de valores, fora viva e atuante no presente,
ao passo que os liberais tinham em mente construir o futuro da nao. Enquanto os
primeiros buscavam preservar o ensino religioso fundamentado no respeito tradio
catlica do povo brasileiro, os segundos defendiam a adaptao constante do sistema
educacional evoluo do mundo e da sociedade, mediante a aplicao da cincia e de
suas tcnicas no cotidiano escolar (XAVIER, 2004, p. 32).
2.3 A audincia da educadora na imprensa
No prximo captulo deste trabalho, que analisar algumas das crnicas de
Ceclia Meireles veiculadas na coluna Comentrio, ser feito o exame das paixes que a
jornalista educadora procurava despertar em seus leitores, categoria que, segundo a
abordagem retrica, denomina-se auditrio, o conjunto de pessoas a quem o orador
busca influenciar por meio de seu discurso. As disposies desse auditrio podem ser
apreendidas por intermdio de duas fontes: os elementos que caracterizam o ambiente
poltico e intelectual em que a oradora se manifestava e os elementos textuais
selecionados e editados pela autora para acompanhar as opinies expressas em seu
Comentrio.
O ambiente do incio da dcada de 1930 era altamente conflituoso por causa do
golpe de estado empreendido por Vargas e, no campo especfico da educao, devido s
controvrsias geradas pelo Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, publicado nos
primeiros meses de 1932. Foi nesse contexto que Ceclia Meireles (apud LAMEGO,
45
1996, p. 224) escreveu a Fernando de Azevedo, em maio de 1932, para prestar-lhe
solidariedade, fazendo referncia ao coro da ignorncia e da m-f to pronto a se
manifestar, cujo fundamento, segundo ela, advinha somente da confuso que
erroneamente vinha disseminando. Nessa carta, Ceclia diz que o lder catlico Tristo
de Athayde est disposto a desmoralizar a Escola Nova, e isso de procurar confundi-la
com o comunismo parece-lhe decerto um mtodo de eficcia; um mtodo de
resultados certos entre ns, devido ausncia de mentalidade que caracteriza o nosso
povo e facilidade com que qualquer pessoa desnatura publicamente o pensamento
de outra.
A atitude de Ceclia pode ser compreendida pelo fato de as divergncias entre
catlicos e liberais terem chegado ao ponto mximo, conduzindo os primeiros a
abandonarem a ABE em 1933 e criarem em seguida a Confederao Catlica Brasileira
de Educao (XAVIER, 2004, p. 31). O apoio de Meireles a Fernando de Azevedo pode
ser tributado a relaes de amizade, certamente, pois ambos mantiveram constante
correspondncia entre 1931 e 1938 (LAMEGO, 1996, p. 96).12
Acima de tudo, ao que
parece, a solidariedade da jornalista devia-se sua adeso aos ideais escolanovistas, to
bem representados pela atuao pblica de Azevedo no campo educacional,
especialmente aps a publicao do Manifesto.
As ideias de Ceclia Meireles iam ao encontro das concepes e prticas
introduzidas por Azevedo no Distrito Federal, cuja meta, segundo palavras do prprio
reformador, era tornar a educao fundamentada na cincia, contando com um sistema
de ideias que permitisse atingir as mais altas regies do pensamento, onde se
esclarecem e se definem a concepo e o sentido da vida, e, portanto, os ideais, as
diretrizes e os princpios da educao (AZEVEDO, 1958b, p. 16).
12
Essas correspondncias esto compiladas no Arquivo Fernando de Azevedo, do Instituto de Estudos
Brasileiros da USP.
46
Para modificar a escola, Azevedo (1958b, p. 22) buscou inspirao nas teorias de
Durkheim, Kerchensteiner e, sobretudo, na filosofia de John Dewey, agregando
diversos princpios da educao nova, no acumulados, em camadas superpostas, mas
fundidos e organizados em corpo de doutrina, com um carter homogneo, unidade de
concepo e harmonia de linhas. Sua inteno era separar o gro dos fatos e das
realidades sociais, de um lado, e a palha dos preconceitos partidrios e das
construes puramente tericas, de outro.
Em consonncia com o sentido geral do escolanovismo, sem apego a dogmas
tericos e visando oferecer um sentido para a vida, as inovaes introduzidas por
Azevedo abrangiam as atividades de lazer e os perodos de recreio, desde os jogos
rituais e espontneos dos povos primitivos at as mais altas diverses espirituais. A
essas atividades aliavam-se as artes, tanto a msica quanto o teatro e a literatura, que
constituem parte do ritmo da vida e completam o ciclo dos interesses humanos, sendo,
portanto, fundamentais para o desenvolvimento da criana (AZEVEDO, 1958b, p. 119).
Fernando de Azevedo (1958b, p. 119) sempre se posicionou favoravelmente
introduo de vrias formas de manifestao artstica na educao. Para ele, a nova
escola, por ser um regime de vida e trabalho em comum, tende a realizar a iniciao
na vida econmica e social; e uma comunidade de ideias e de vontades em ao precisa
da arte, cujo papel estabelecer a comunidade das sensaes e dos sentimentos, isto
, produzir a simpatia e a solidariedade social. A arte integra o carter social da
educao como elemento essencial, assumindo uma funo socializadora tanto mais
preponderante, quanto mais violentamente colidem, na sua variedade e complexidade,
os interesses das sociedades modernas.
O cinema educativo e o contato com as obras de arte em geral, por meio de
visitas a museus, pinacotecas e audies musicais, no se destinam somente a
47
descansar o esprito, mas tambm a recriar, isto , criar de novo, pr em vibrao,
renovar e elevar a mentalidade cansada pelas ocupaes cotidianas, posicionando a
pessoa nas altas esferas do pensamento, das inspiraes da arte e dos grandes ideais da
vida humana. Por isso, Azevedo (1958b, p. 119) considerava que a educao quebraria
o ritmo da unidade essencial da vida, se no abrangesse, para desenvolver o bem-
estar do indivduo e da comunidade, as poderosas inspiraes da arte, nos seus aspectos
educativos e recreativos.
Motivada pelos ideais e pelas realizaes de Fernando de Azevedo e de outros
renovadores, Ceclia Meireles abordou em sua coluna Comentrio uma srie de assuntos
concernentes s inovaes educacionais, mantendo estreita sintonia com o temrio
escolanovista, cujas teses podem ser descritas, em linhas gerais, pelos seguintes
enunciados: ateno personalidade integral do educando, considerando no somente
os atributos individuais, mas principalmente a necessidade de reordenao da
sociedade; considerao pelas experincias cotidianas dos alunos sem desprezar os
contedos das matrias escolares; e nfase no redirecionamento da mentalidade dos
professores, em consonncia com os avanos da modernidade, particularmente a
cincia (CUNHA; SOUZA, 2011, p. 855).
Segundo Lamego (1996, p. 116), Ceclia Meireles colocou o melhor de sua ira
e inteligncia a servio de uma nova educao, posicionando-se contrariamente a uma
sociedade marcada por diferenas sociais, religiosas e pelo culto ao nacionalismo
doentio. Na Pgina de Educao, as matrias que acompanhavam os assuntos do
Comentrio de Ceclia refletiam a amplitude de horizontes da autora, que procurava
levar a seus leitores informaes de carter geral e notcias do cenrio nacional e
internacional, sempre pautada nas inovaes trazidas pelo movimento de renovao
educacional.
48
Essas matrias dirigiam-se a todos os que se interessavam por educao, no
sentido amplo da palavra, fazendo aluso no apenas a acontecimentos escolares, mas
tambm vida familiar. Na Pgina de Educao no dia 23 de agosto de 1930, j
mencionada, por exemplo, havia um texto intitulado preciso que a criana durma
tranquila, cujo contedo dizia caber aos pais a responsabilidade de garantir que os
filhos tivessem um sono tranquilo, abundante e ininterrupto, o que traria consequncias
positivas para a aprendizagem dos pequenos no ambiente escolar.
Havia tambm uma notcia sobre a formao de bandas escolares rurais nos
Estados Unidos, informando que objetivo daquela iniciativa era oferecer idnticas
oportunidades a todas as crianas, independentemente de habitarem ou no o meio
urbano. A matria discorria sobre o orgulho dos pais ao levarem seus filhos aos ensaios,
e conclua dizendo no haver motivos para duvidar de que aquela excelente ideia
poderia obter sucesso em qualquer outro pas.
Ao lado de informaes relativas a atos oficiais do executivo licenas e
designaes de professoras e diretoras, entre outros , a mesma Pgina continha um
texto sobre a Alemanha, narrando o quanto a populao daquele pas valorizava a
obteno do diploma escolar, independentemente da classe social, uma vez que at
mesmo os operrios realizavam sacrifcios para que seus filhos estudassem, alcanando
assim um objetivo que os pais no haviam conseguido realizar.
Na Pgina de Educao do dia 29 de julho daquele mesmo ano, igualmente j
mencionada, havia, por exemplo, um pequeno texto com informaes sobre o
recebimento de 880 dispositivos para o ensino de Histria no Colgio Pedro II. A
matria intitulada A cinematografia e o ensino de Histria explicava tratar-se de
recursos concernentes a Histria da Arte e Histria Universal, evidenciando a
49
introduo de um mtodo inovador nas salas de aula, o cinema, que traria sensveis
melhorias ao ensino.
Na mesma Pgina, havia tambm um relato sobre a conferncia de abertura de
um curso terico-prtico de Psicologia organizado pela Liga Brasileira de Sade
Mental, a ser ministrado pelo professor Ulysses Pernambucano, do Instituto de
Orientao Profissional do Recife. O conferencista discorreu sobre a aplicao do Teste
de Ballard em escolas de sua cidade, mencionando as experincias realizadas por
Decroly na Blgica, por Claparde no Egito e por Helena Antipoff em Belo Horizonte.
Exps ainda os muitos resultados positivos oferecidos pela experincia, evidenciando a
utilidade dessa metodologia inovadora para o diagnstico das crianas em ambiente
escolar.
Como se pode notar, as matrias que cercavam o Comentrio de Ceclia
Meireles na Pgina de Educao visavam alcanar professores e pais de alunos por
intermdio de informaes favorveis s novidades trazidas pelo movimento
educacional renovador. Pode-se mesmo dizer que tais matrias tinham o intuito de
instituir uma audincia com essas caractersticas, uma vez que o escolanovismo ainda
era recente no pas, tendo sido introduzido no decorrer dos anos de 1920, por meio das
reformas estaduais, conforme foi relatado acima, neste captulo.
Esta observao aplica-se especialmente ao ncleo familiar, pois, alm de
angariar a adeso do professorado s inovaes, os escolanovistas preocupavam-se
sobremaneira em obter o aval dos pais. O tema era motivo de discrdia com os
catlicos, grupo que disputava com os liberais a hegemonia do ensino, como j foi
mencionado acima, neste mesmo captulo. O Manifesto dos Pioneiros da Educao
Nova afirmava que o Estado no podia dispensar a famlia na tarefa de educar, devendo
assentar o trabalho da educao no apoio que ela d escola e na elaborao efetiva
50
entre pais e professores (AZEVEDO, 1932, p. 46). Cunha (1997, p. 48) explica que,
para o movimento educacional renovador, a educao das crianas no era mais uma
incumbncia exclusiva do lar, cabendo aos pais a funo de auxiliar, no comandar o
processo educacional.
No h registros que permitam avaliar o grau de sucesso de Meireles na relao
com seu auditrio; sabe-se apenas que em janeiro de 1933, ela abandonou a Pgina de
Educao sem relatar os motivos que motivaram sua deciso. Em carta a Fernando de
Azevedo datada de maio de 1932, Ceclia confessou ao amigo que vinha perdendo o
entusiasmo pelo combate jornalstico, mostrando tristeza por alguns acontecimentos e
dizendo que o grupo do Manifesto, se quisesse, podia ser uma fora invencvel.
Querer? Vencer tambm obra de pacincia e disciplina (LAMEGO, 1996, p. 108-
109). No h provas de que Ceclia Meireles tenha abdicado de seu posto devido a
presses polticas, ainda que essa hiptese no seja de todo desarrazoada (idem,
p.109).
Em 1934, Ceclia atuou como diretora da Biblioteca Infantil instalada no antigo
Pavilho Mourisco, sendo esta a primeira iniciativa dessa natureza voltada para crianas
(LBO, 1996, p. 528).13
Meireles dirigia pessoalmente a seo artstica da Biblioteca,
realizando diversas atividades educativas, como dramatizaes, hora do conto,
conferncias e exposies, para as quais eram convidados artistas e educadores
(PIMENTA, 2001, p. 105). Na inaugurao da Biblioteca, Ansio Teixeira, ento diretor
da Instruo Pblica do Distrito Federal, disse que aquela casa tinha o carter muito
mais amplo que um centro de cultura infantil, pois era um verdadeiro rgo de
13
O edifcio chamado Pavilho Mourisco foi inaugurado em 1906 para completar as obras de embelezamento da cidade; situado no bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, abrigou um caf-concerto, tornando-se um bar-restaurante muito frequentado pela sociedade carioca (PIMENTA, 2001, p. 96).
51
pesquisa, cujos trabalhos no futuro produziriam os mais benficos resultados (LBO,
1996, p. 537).
Tais prticas espalharam-se pelas escolas municipais cariocas, que se sentiram
estimuladas mesmo no contando com salas adequadas; o interesse pela literatura em
geral e pela literatura infantil contribuiu para transformar, por alguns momentos, as
salas de aula em bibliotecas, ajudando a construir uma viso do mundo mediante a
palavra escrita (NUNES, 2000, p. 377). Os acervos bibliogrficos das bibliotecas
pblicas e escolares tambm foram ampliados, ampliando igualmente a viso da escola
e da sociedade, uma viso plural, favorecida pelo prprio processo de aquisio, em
parte dirigido e, em parte, doado (idem, p. 377).
Em novembro de 1935, seu marido suicidou-se, aos 42 anos, aps uma crise de
neurastenia, conforme publicaram os jornais da poca.14 Com trs filhas pequenas,
Ceclia enfrentou dificuldades financeiras. Durante o ano de 1936, publicou crnicas
semanais no Correio paulista (OLIVEIRA, 2001, p. 323). Em 1937, quando j se
encontrava trabalhando como professora de literatura da Universidade do Distrito
Federal, ela viu a Biblioteca Infantil do Pavilho Mourisco ser desativada por causa de
infundados motivos polticos: as autoridades declararam haver no acervo da biblioteca
um livro de conotaes comunistas, cujas ideias eram perniciosas ao pblico infantil
(LBO, p. 537).
O fato que desde 1935 j se desenvolviam as tendncias polticas
conservadoras que, em 1937, levaram instaurao do regime ditatorial comandado por
Vargas at 1945, cujo ministro da Educao foi Gustavo Capanema, intelectual
favorvel influncia do grupo catlico (CUNHA, 1989; HORTA, 1994;
SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000). Nunes (2000, p. 377-378) analisa que
14
Em 1940, Ceclia uniu-se em segundas npcias com o engenheiro agrnomo Heitor Vincius da Silveira
Grillo, fundador da Universidade Rural (OLIVEIRA, 2002, p. 324).
52
o crescimento do autoritarismo dentro da mquina estatal e da prpria sociedade gerou
um clima de intolerncia com a literatura de contedo poltico, ideologicamente
subversiva de certos valores tradicionais ainda presentes. O ato de ler passou a ser
crescentemente vigiado dentro das escolas e fora delas. Todos os livros considerados
materialistas, sinais de infiltrao comunista foram proscritos; a imprensa e o
rdio foram censurados e as bibliotecas lentamente desfalcadas, desmanteladas,
intencionalmente deixadas deriva.
Mesmo durante a vigncia do Estado Novo, Meireles continuou atuando na
imprensa, respondendo pela coluna Professores e Estudantes no jornal A Manh, entre
1941 e 1943, na qual publicou vasto estudo sobre folclore infantil (CORRA, 2001, p.
51). Em 1945, recebeu de Juscelino Kubitschek, ento prefeito de Belo Horizonte, a
sugesto de escrever sobre a Inconfidncia Mineira, razo pela qual deu incio a
pesquisas sobre o sculo XVIII (OLIVEIRA, 2002, p. 325).
Sempre ligada educao, Ceclia foi signatria do documento Mais Uma Vez
Convocados, elaborado em 1959 por Fernando de Azevedo, em defesa do ensino
pblico (CORRA, 2001, p. 51). Em setembro de 1964, a Academia Brasileira de
Letras atribuiu a ela o Prmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra literria. A
premiao foi realizada post-mortem, em 1965, pois Ceclia Meireles faleceu em
novembro de 1964 (OLIVEIRA, 2001, p. 331).
53
3. O discurso da oradora
Pastores da terra, que saltais abismos,
nunca entendereis a minha condio.
Pensais que h firmezas, pensais que h limites.
Eu, no.
(Ceclia Meireles)
No captulo anterior deste trabalho, procuramos caracterizar Ceclia Meireles
como oradora capacitada a discorrer sobre assuntos poltico-educacionais, considerando
a sua familiaridade com as temticas, os principais atores e os eventos mais marcantes
dessa rea, na poca em que publicou seus textos no Dirio de Notcias. No mesmo
captulo, tentamos compor um quadro ilustrativo do contexto em que a autora se
manifestava, no intuito de compreendermos a constituio de seu auditrio o
professorado e as famlias dos alunos, a quem Meireles dirigia informaes
concernentes ao iderio e s realizaes da Escola Nova.
Utilizando os parmetros