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  UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO  PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANÁLISE RETÓRICA DO DISCURSO POLÍTICO-EDUCACIONAL DE CECÍLIA MEIRELES Aline Vieira de Souza RIBEIRÃO PRETO    2014

Mestrado - educação

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Artigo da dissertação

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E LETRAS DE RIBEIRO PRETO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    ANLISE RETRICA DO DISCURSO POLTICO-EDUCACIONAL DE

    CECLIA MEIRELES

    Aline Vieira de Souza

    RIBEIRO PRETO 2014

  • Aline Vieira de Souza

    ANLISE RETRICA DO DISCURSO POLTICO-EDUCACIONAL DE

    CECLIA MEIRELES

    Dissertao de mestrado apresentada ao

    Programa de Ps-Graduao em Educao da

    Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de

    Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo.

    Linha de Pesquisa: Fundamentos Filosficos,

    Cientficos e Culturais da Educao

    Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius da Cunha

    RIBEIRO PRETO 2014

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL

    DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU

    ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE

    CITADA A FONTE.

    FICHA CATALOGRFICA

    Souza, Aline Vieira de Anlise retrica do discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles/ Aline Vieira de Souza. Ribeiro Preto, 2014. 103f. : il., fig. Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto / USP Programa de Ps-Graduao em Educao. Orientador: Marcus Vinicius da Cunha 1. Anlise Retrica. 2. Ceclia Meireles. 3. Escola Nova. 4. Aristteles

  • Para Ins, que me deu luz e vem me mostrando, ao

    longo dos anos, que viver vale a pena.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao puxar pela memria lembranas da minha infncia, dos meus primeiros

    desenhos, das minhas primeiras brincadeiras, das primeiras redaes feitas na escola,

    das primeiras amizades, das primeiras professoras... Penso em como os anos passaram

    devagar e rpido ao mesmo tempo. Chegar nesta etapa dos meus estudos algo muito

    significativo para mim, pois representa no s a futura obteno de um ttulo, mais do

    que isso, representa a conquista de algo que foi desejado no pelo status, mas pela

    vontade de realizar pesquisa, pela vontade de descobrir algo alm do que eu j sabia,

    passar a conhecer algo que, at ento, era desconhecido.

    So tantas pessoas que, direta ou indiretamente, contriburam para a realizao

    desse trabalho, que, ao lembrar-me de algumas situaes, a emoo j comea a tomar

    conta de mim.

    Seria impossvel ter percorrido essa trajetria como pesquisadora iniciante, sem

    a orientao e o apoio do Professor Doutor Marcus Vinicius da Cunha. Durante a minha

    graduao em Pedagogia, alm de ter me proporcionado aprender sobre a Histria e a

    Filosofia da educao, ele orientou-me na monografia que apresentei como trabalho de

    concluso de curso. Naquela pesquisa, comeamos nossas primeiras descobertas sobre

    Ceclia Meireles, por quem ficamos instigados a conhecer mais. Durante a realizao

    dessa dissertao, mostrou-me o caminho a seguir, sem deixar de caminhar ao meu lado.

    Agradeo profundamente pela parceria, pelos ensinamentos, pela pacincia, pela forma

    de ser autoridade sem ser autoritrio. um privilgio ter um professor-orientador como

    o Marcus Vinicius da Cunha.

  • Durante a qualificao deste trabalho, tive a oportunidade de obter sugestes e

    comentrios de duas professoras extremamente generosas e educadas, as Professoras

    Doutoras Raquel Discini de Campos e Soraya Maria Romano Pacfico.

    No momento da qualificao, tive a oportunidade de conhecer a professora

    Raquel, quem h muito tempo j conhecia, por ouvir comentrios de amigos, sobre

    como ela era uma pessoa inteligente e carinhosa. S tenho a agradec-la pela

    contribuio que representou para a finalizao da minha dissertao, com suas

    sugestes de referncias bibliogrficas e um novo olhar para a pesquisa que eu estava

    realizando.

    A professora Soraya, com quem tive a honra de viver momentos de aprendizado

    durante a minha graduao em pedagogia, no momento da qualificao s confirmou

    sua capacidade de ser educadora e amiga ao mesmo tempo, mostrando novas

    perspectivas para a minha pesquisa. Ela apresentou-me, j h alguns anos, o autor Jos

    Saramago, nome que me emociona sempre que surge em minha mente. Seus

    ensinamentos durante a minha graduao esto presentes no meu dia enquanto

    professora e enquanto ser humano, muito obrigada.

    Ao Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia (USP-CNPQ)

    agradeo os compartilhamentos de textos, os dilogos durante os congressos que

    participamos, as sugestes para a minha pesquisa e a vivncia durante esses anos que

    estamos juntos, buscando novos estudos, novas descobertas, sempre com a liderana,

    com os ensinamentos do professor Marcus Vinicius da Cunha.

    Agradeo tambm a todos os professores que passaram pela minha vida

    enquanto estudante, e contriburam para o meu crescimento humano e para o meu

    crescimento profissional, deixando suas marcas de ensinamentos e tambm suas marcas

    de como ser professor vai alm do ensinar.

  • Pensando agora nas pessoas que esto prximas, que fazem parte da minha vida

    diariamente, as lgrimas escorrem, pois como j escreveu Tom Jobim, impossvel ser

    feliz sozinho. Agradeo imensamente minha me, minha irm e ao meu namorado,

    por todo o apoio que ofereceram a mim. Ins, minha me, meu porto seguro, sem sua

    dedicao seria impossvel ter realizado essa pesquisa. Anglica, minha irm e melhor

    amiga, sempre me incentivando e me auxiliando em tudo que eu precisava, minha

    inspirao de aluna-pesquisadora, minha companheira de quase trinta anos. Hugo,

    meu namorado, parceiro de vida, incentivador e tambm preocupado com os meus

    prazos, esteve o tempo todo, no decorrer da pesquisa, apoiando-me. Generoso e

    compreensivo em dividir nossos momentos com os momentos em que era necessrio

    nosso distanciamento para que eu pudesse estudar.

    Como foram importantes os momentos em que eu parasse um pouco de estudar,

    e fosse conversar (ainda que vrias vezes as conversas acabassem sendo sobre

    pesquisas), dar risadas, distrair um pouco com os amigos que tambm vivem nesse

    mundo da pesquisa acadmica, e que se tornaram pessoas muito queridas. Obrigada

    Carol, Elaine, Leonardo, Luana, Marina, Priscilla e Stefanie, nossos encontros estaro

    sempre presentes como momentos felizes na minha histria.

    Agradeo por fim, aos meus alunos, que esto presentes na minha vida h alguns

    anos, e que a tornam mais significativa. Todos os anos, existe um novo grupo de alunos,

    outros rostinhos, outras histrias, novos desafios, novas alegrias. Como bom ter a

    oportunidade de ensinar e aprender com os pequenos, que me mostram que a educao,

    a escola algo que sempre deve ser pensado com um alto grau de importncia, que o

    futuro melhor depende da qualidade do ensino do presente, que tudo, como j escreveu

    Ceclia Meireles, sempre uma questo de educao.

  • Improviso

    Ceclia, s librrima e exata

    como a concha.

    Mas a concha excessiva matria,

    E a matria mata.

    Ceclia, s to forte e to frgil

    Como a onda ao termo da luta.

    Mas a onda gua que afoga:

    Tu, no, s enxuta.

    Ceclia, s como o ar,

    Difana, difana.

    Mas o ar tem limites:

    Tu, quem te pode limitar?

    Definio:

    Concha, mas de orelha;

    gua, mas de lgrimas;

    Ar com sentimento.

    Brisa, virao

    Da asa de uma abelha.

    Manuel Bandeira.

  • RESUMO

    SOUZA, Aline Vieira de. Anlise Retrica do Discurso Poltico-Educacional de

    Ceclia Meireles. Dissertao. Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro

    Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, 2014.

    Esta dissertao analisa uma srie de crnicas de autoria de Ceclia Meireles publicadas

    entre 1930 e 1933 no jornal Dirio de Notcias da cidade do Rio de Janeiro. Alm de

    contribuir para a compreenso do movimento escolanovista brasileiro desenvolvido

    entre os anos de 1920 e o incio da dcada de 1930, o trabalho tem por objetivo

    investigar nos textos da autora a presena das paixes, segundo a caracterizao feita

    por Aristteles na Retrica, como componentes emocionais que determinam o carter

    persuasivo de um discurso. Seguindo os parmetros metodolgicos adotados pelo Grupo

    de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, o trabalho apresenta Ceclia

    Meireles como oradora habilitada a discorrer sobre questes escolares. As paixes

    so organizadas em duas categorias: a positiva, formada por confiana, emulao,

    tranquilidade, benevolncia, amor, compaixo e pudor; e a negativa, constituda por

    temor, desprezo, clera, inveja, dio, indignao e despudor. O trabalho evidencia que

    Ceclia Meireles utilizava as paixes positivas para se referir ao que estivesse em

    concordncia com a Escola Nova e as paixes negativas para tratar de ideias e

    realizaes contrrias ao escolanovismo.

    Palavras-chave: Ceclia Meireles. Escola Nova. Discurso Pedaggico. Anlise Retrica.

    Aristteles

  • ABSTRACT

    SOUZA, Aline Vieira de. Rethorical analysis of Ceclia Meireles political-educational discourse. Dissertao. Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto,

    Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, 2014.

    This dissertation examines a series of chronicles by Ceclia Meireles published between

    1930 and 1933 in Dirio de Notcias Daily News , a newspaper from Rio de Janeiro

    city. In addition to contributing to the comprehension of Brazilian New School

    movement developed between the 1920s and early 1930s, the work investigates the

    presence of passions in Meireless texts; according Aristotles Rhetoric, passions

    are emotional components that determine the persuasiveness of a speech. Following the

    methodological parameters adopted by Rhetoric and Argumentation in Pedagogy

    Research Group, the work presents Cecilia Meireles as a "speaker" able to approach

    school issues. The passions are organized into two categories: the "positive" are formed

    by confidence, emulation, tranquility, grace, love, compassion and decency; and the

    "negative" consist of fear, contempt, anger, jealousy, hatred, indignation and

    shamelessness. The paper concludes that Cecilia Meireles used the "positives" passions

    to refer those who were in agreement with the New School and the "negatives" to

    discuss ideas and accomplishments contrary to New School.

    Keywords: Ceclia Meireles. New School. Pedagogical Discourse. Rhetorical Analysis.

    Aristotle.

  • SUMRIO

    Introduo ..................................................................................................................... 12

    1. Os fundamentos terico-metodolgicos da anlise retrica ................................. 16

    1.1 A retrica segundo Aristteles........................................................................... 17

    1.2 A retrica como metodologia de pesquisa ........................................................ 24

    2. A oradora e seu auditrio ........................................................................................ 31

    2.1 A educadora Ceclia Meireles ............................................................................ 32

    2.2 Ceclia Meireles na imprensa............................................................................. 35

    2.3 A audincia da educadora na imprensa ........................................................... 44

    3. O discurso da oradora .............................................................................................. 53

    3.1 As paixes positivas da oradora ........................................................................ 54

    3.2 As paixes negativas da oradora ....................................................................... 67

    Consideraes Finais .................................................................................................... 76

    Referncias Bibliogrficas ........................................................................................... 80

    Anexos ............................................................................................................................ 86

  • 12

    Introduo

    A vida s possvel

    reinventada.

    (Ceclia Meireles)

    Este trabalho teve origem na monografia que desenvolvi durante os anos em que

    cursei a graduao em Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de

    Ribeiro Preto USP, curso que conclu em 2007. Naquele estudo, analisei os temas

    veiculados por Ceclia Meireles entre 1930 e 1933 na coluna Comentrio, publicada na

    Pgina de Educao, seo dirigida pela autora no jornal Dirio de Notcias da cidade

    do Rio de Janeiro. Minha motivao foi compreender a razo da presena de Meireles

    entre os signatrios do Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, documento

    publicado em 1932, considerado marco histrico das formulaes da Escola Nova no

    Brasil.

    Durante os trs anos em que atuou no Dirio de Notcias, Ceclia Meireles

    publicou cerca de 750 crnicas na coluna Comentrio. Em 2001, Leodegrio Amarante

    de Azevedo Filho (2001, p. xi) buscou retratar as linhas mestras do pensamento de

    Meireles e, para isso, organizou 368 desses textos em quatro volumes que foram

    publicados na forma de livros pela Editora Nova Fronteira (MEIRELES, 2001a; 2001b;

    2001c; 2001d). Minha monografia consistiu em examinar quarenta dos escritos

    compilados por Azevedo Filho, privilegiando aqueles que continham menes mais

    significativas aos acontecimentos e aos personagens que marcaram a vida poltica e

    educacional na poca.

  • 13

    Nas concluses da referida monografia, foi possvel mostrar que Ceclia, que era

    professora primria desde 1917 no Rio de Janeiro, posicionava-se favoravelmente s

    inovaes introduzidas por Fernando de Azevedo, Ansio Teixeira e outros educadores

    escolanovistas integrantes do grupo dos liberais, denominao de uma das tendncias

    polticas e filosficas componentes da Associao Brasileira de Educao, ABE. Foi

    possvel concluir tambm que muitos daqueles escritos continham polmicas contra os

    adversrios da nova pedagogia, particularmente os intelectuais catlicos, membros de

    outra vertente representada naquela Associao.

    O presente estudo busca dar continuidade quela investigao, analisando o

    discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles nas mesmas 40 crnicas, tendo por

    meta oferecer contribuies a dois campos de investigao. O primeiro campo o da

    historiografia da educao brasileira, uma vez que os resultados desta pesquisa podero

    permitir um aprofundamento da discusso sobre a presena de Meireles no cenrio dos

    debates educacionais da dcada de 1930, possibilitando, assim, ampliar o conhecimento

    acerca do movimento escolanovista.

    O segundo campo para o qual este trabalho almeja contribuir relaciona-se s

    investigaes do Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia

    (USP/CNPq), que tem como um de seus objetivos aprimorar uma metodologia para a

    anlise de discursos pedaggicos, tomando por base a obra de Aristteles e as

    teorizaes elaboradas no sculo XX por autores vinculados ao movimento de reviso

    da filosofia aristoteleciana. Em conformidade com os referenciais desse Grupo de

    Pesquisa, os discursos pedaggicos possuem carter persuasivo, destinando-se a

    influenciar pessoas que, de alguma maneira, tm interesse e/ou responsabilidade pelas

    prticas pedaggicas e pelas polticas educacionais.

  • 14

    Segundo a teorizao feita por Aristteles, todo discurso persuasivo envolve trs

    elementos: o orador, o discurso por ele pronunciado e as disposies do auditrio

    perante o qual a argumentao apresentada. Diferentemente do que foi elaborado por

    Aristteles, cujas reflexes focalizaram exclusivamente pronunciamentos orais, no

    ambiente social da Grcia Clssica, o Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na

    Pedagogia investiga discursos escritos contemporaneamente, em particular os que so

    tornados pblicos, isto , aqueles que so veiculados visando exercer influncia sobre

    certo conjunto de leitores.

    Os fundamentos terico-metodolgicos que norteiam as atividades do Grupo de

    Pesquisa e que sustentam a pesquisa que deu origem a este trabalho sero apresentados

    no primeiro captulo desta dissertao. Como ser possvel observar, na anlise retrica

    de discursos escritos destinados a publicao caracteriza-se o autor do texto como

    orador, sendo ento necessrio examinar os qualificativos que o habilitam a abordar

    com propriedade os temas sobre os quais discursa; o discurso o conjunto de

    argumentos contidos no texto publicado, sendo tarefa da investigao compreender as

    estratgias argumentativas que o compem; os leitores a quem o autor do texto se dirige

    correspondem ao auditrio, devendo o exame retrico esclarecer o contexto em que tal

    audincia encontra-se inserida, para assim esclarecer as disposies intelectuais e

    afetivas mobilizadas pelo orador.

    Tendo em vista essa conceituao, o segundo captulo deste trabalho versar

    sobre Ceclia Meireles como oradora, tendo por objetivo evidenciar os qualificativos

    que lhe permitiram discorrer sobre assuntos poltico-educacionais. Alm de suas

    atuaes e posicionamentos no campo da educao, o captulo apresentar tambm um

    estudo sobre o crculo de interlocutores da oradora, buscando posicionar os personagens

  • 15

    do cenrio poltico e educacional constitudo na poca em que os textos jornalsticos de

    Meireles foram publicados.

    Esses mesmos dados contextuais da esfera poltica e educacional permitiro

    qualificar o auditrio de Ceclia Meireles, o que tambm ser feito, ainda no segundo

    captulo, por meio da anlise de algumas matrias publicadas na Pgina de Educao ao

    lado da coluna Comentrio. O contedo da referida coluna ser examinado no terceiro

    captulo, no qual ser discutido especificamente o uso das paixes como recurso

    argumentativo direcionado referida audincia.

    A respeito das paixes, a exposio desenvolvida no primeiro captulo mostrar

    que, segundo Aristteles, um dos elementos centrais de qualquer discurso persuasivo a

    mobilizao das emoes da audincia. Procuraremos ento justificar a relevncia de

    estudos dedicados a compreender o emprego desse mtodo persuasivo em discursos

    pedaggicos, particularmente em textos veiculados por meio de jornais, como o caso

    dos escritos de Ceclia Meireles analisados nesta dissertao.

    Este trabalho ser finalizado com algumas consideraes sobre os dois campos

    de investigao visados por esta pesquisa. No que tange historiografia educacional

    brasileira, ser discutida a atuao de Ceclia Meireles na arena poltico-educacional, na

    qual seu nome ainda pouco conhecido, uma vez que, na maioria das vezes, aparece

    vinculado produo artstica. Quanto ao outro campo, ser apresentada uma reflexo

    acerca das contribuies oferecidas pelo exame das paixes metodologia adotada pelo

    Grupo de Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, o que poder incentivar a

    elaborao de novos projetos nessa linha de investigao.

    Na seo de anexos sero apresentadas algumas crnicas de Ceclia Meireles

    analisadas neste trabalho. Foram selecionados os textos mais significativos, dentre os

    que so citados mais frequentemente nessa dissertao.

  • 16

    1. Os fundamentos terico-metodolgicos da anlise retrica

    Ai, palavras, ai, palavras,

    que estranha potncia, a vossa!

    Todo o sentido da vida

    principia vossa porta...

    (Ceclia Meireles)

    O objetivo deste captulo apresentar os fundamentos tericos e metodolgicos

    e os procedimentos de investigao adotados pelo Grupo de Pesquisa Retrica e

    Argumentao na Pedagogia, de maneira a oferecer sustentao aos captulos

    subsequentes, que abordaro o discurso poltico-educacional de Ceclia Meireles.

    Tais fundamentos advm originalmente da obra de Aristteles, particularmente

    das reflexes do filsofo concernentes dialtica e retrica, e de pesquisadores

    vinculados ao movimento de reviso do pensamento aristoteleciano articulado desde a

    primeira metade do sculo XX. Inspirado nesses autores, o referido Grupo de Pesquisa

    tem produzido trabalhos dedicados a investigar discursos pedaggicos.

    Sendo assim, este captulo composto por duas partes: a primeira traz uma

    explanao sobre o pensamento de Aristteles, e a segunda, um sumrio da metodologia

    denominada anlise retrica, tal qual se encontra nos trabalhos do Grupo de Pesquisa.

    No decorrer destas pginas sero delineados e justificados os contedos das prximas

    sees desta dissertao, nas quais ser feito o exame do discurso veiculado nos textos

    jornalsticos de Meireles, bem como do auditrio visado pela autora.

  • 17

    1.1 A retrica segundo Aristteles

    Aristteles (384-322 a.C.) nasceu em Estagira, cidade localizada na Pennsula

    Calcdica, ento colonizada pela Macednia. Aos dezoito anos de idade, foi para Atenas

    estudar na Academia de Plato (427-347 a.C.), onde permaneceu at a morte do mestre,

    ocasio em que fundou sua prpria escola, denominada Liceu. Grande parte de sua obra

    permaneceu desconhecida entre os gregos, inicialmente circulando somente entre seus

    discpulos e, mais tarde, esquecida na adega da casa de um de seus amigos. Por isso, at

    o ano 50 a.C., Aristteles foi considerado um simples comentador da filosofia de Plato

    (CUNHA, 2007a, p. 60-61).

    Outros problemas afetaram a divulgao e o estudo das obras do Estagirita: no

    sculo III, os padres da Igreja Catlica proveram a adequao do pensamento

    aristoteleciano doutrina crist, o que selou o seu nivelamento com a filosofia de

    Plato; mais tarde, quando a Igreja cristianizou o Imprio Romano, as ideias de

    Aristteles foram consideradas herticas. O que preservou seus escritos da destruio

    foi a sua transferncia para Alexandria, no Egito, em 395. O Ocidente voltou a ter

    contato com os ensinamentos aristotelecianos somente na poca das Cruzadas e da

    conquista da Pennsula Ibrica pelos romanos, por meio de tradues para o rabe

    elaboradas principalmente por Avicena e Averris nos sculos XI e XII (CUNHA,

    2007a, p. 61).

    A partir do sculo XIII, tornaram-se marcantes as interpretaes decorrentes de

    Toms de Aquino (1224-1274), mestre da Escolstica e fonte dos movimentos Tomista

    e Neotomista que exercem forte influncia ainda hoje (ver FAITANIN, 2008). Segundo

    a explicao de Berti (1997, p. 59), at o sculo XIX predominou a viso que buscava

    conciliar Aristteles com o cristianismo, o que se cristalizou na tese de que o essencial

  • 18

    do pensamento aristotlico consiste na formulao de uma cincia nica do ser,

    exatamente a cincia do ser enquanto ser; o raciocnio cientfico, ou seja, o raciocnio

    que contm a perfeita expresso da verdade seria ento enunciado somente por meio de

    formulaes dedutivas, ou demonstrativas (idem, p. 61).

    Segundo Aristteles explica no tratado intitulado Primeiros analticos, o

    raciocnio dedutivo, ou demonstrativo, expresso por meio do silogismo, que uma

    forma de argumentar composta por duas premissas das quais se obtm uma concluso,

    sem recorrer a nenhuma outra afirmao. Por exemplo, das premissas Todo homem

    mortal e Scrates homem deduz-se imediatamente que Scrates mortal.

    Uma das premissas do silogismo recebe o nome de primeira, ou maior, pois

    o seu contedo exprime um princpio, ou seja, uma formulao que d incio, ou

    principia, vrios outros raciocnios na cincia especfica em que se situa o silogismo. A

    outra premissa, denominada menor, diz respeito a um sujeito particular nesse caso,

    o indivduo Scrates.

    No exemplo, Todo homem mortal um princpio, uma vez que atua como

    premissa primeira de vrios outros raciocnios gerando, consequentemente, outras

    concluses na rea em que a argumentao se desenvolve. Por exemplo, se a essa

    premissa maior acrescentarmos a premissa menor dipo homem, concluiremos que

    dipo mortal; em vez disso, se a ela acrescentarmos Prometeu no homem,

    deduziremos que Prometeu no mortal.

    No tratado Segundos analticos, Aristteles explica a sua noo de cincia,

    dizendo que o conhecimento cientfico expresso pelo raciocnio silogstico, ou

    demonstrativo, cuja formulao contm um saber necessrio e causal.1 Trata-se de um

    1 Tanto os Primeiros analticos quanto os Segundos analticos fazem parte do rganon (ARISTTELES,

    2005), conjunto que rene outras quatro obras do filsofo, incluindo os Tpicos, tratado que ser

    mencionado logo mais. A primeira catalogao do corpus aristotelicum foi feita por Andrnico de Rodes

  • 19

    saber necessrio porque a concluso advm obrigatoriamente das premissas, sem que

    haja necessidade de nenhum outro enunciado para obt-la, como j foi dito. Quanto

    causalidade, no exemplo dado nota-se que o porqu, ou a causa, da concluso est

    contido nas premissas, mais precisamente em um termo chamado termo mdio

    presente em ambas as premissas.

    Scrates mortal porque Scrates homem e porque Todo homem

    mortal. A causa necessria da mortalidade de Scrates encontra-se no termo mdio

    homem, que aparece tanto na premissa menor, relativa a Scrates como indivduo,

    quanto na maior, relativa condio de mortalidade de todo ser pertencente

    humanidade. Como o sujeito Scrates integra o conjunto dos homens, aqueles que se

    predicam pela condio de mortalidade, Scrates necessariamente mortal.

    Essa breve descrio sumaria as reflexes de Aristteles sobre a silogstica, a

    cincia demonstrativa ou analtica, firmada pelos filsofos medievais como a nica

    cincia, a cincia do raciocnio que contm a perfeita expresso da verdade. Como se

    pode notar, no se encontra nessa cincia nenhuma referncia origem das afirmaes

    que constituem as premissas maiores dos silogismos; no se oferece indaga acerca da

    constituio dos princpios que servem de pontos de partida para os vrios raciocnios

    relativos aos campos cientficos em que se desenvolvem as argumentaes.

    A explicao sobre a origem dos princpios feita no tratado denominado

    Tpicos, no qual Aristteles estabelece que as premissas primeiras so obtidas por meio

    da dialtica. A dialtica um dilogo entre dois interlocutores composto por

    perguntas, respostas e refutaes (BERTI, 1997, p. 287); seu objetivo conduzir s

    verdades primeiras das cincias, consistindo na arte de argumentar criticamente, de

    examinar, pr prova (PORCHAT PEREIRA, 2001, p. 360). Na presena de um

    no sculo I; a segunda, por Digenes Larcio no sculo III; a ltima definitiva, ao que parece foi elaborada por Immanuel Bekker no sculo XIX (ver BINI, 2005).

  • 20

    pblico que atua como rbitro da discusso, os interlocutores assumem, como ponto de

    referncia para o dilogo, premissas conhecidas (endxa), partilhadas por todos os

    ouvintes. Tais premissas no so verdadeiras, como so as premissas da analtica, pois o

    objetivo da dialtica chegar a formulaes que possuam o carter de verdade (BERTI,

    1998, p. 23, 25).

    Ao considerarem somente a silogstica como raciocnio vlido, os

    aristotelecianos medievais relegaram a plano secundrio os procedimentos da dialtica.

    Embora sob outro registro filosfico, a era moderna deu continuidade a essa concepo,

    valorizando Aristteles como criador da nica, ou a nica verdadeira, forma de

    racionalidade, a demonstrativa (BERTI, 1998, p. 3). As noes de causa e necessidade

    passaram a compor a definio de cincia, de tal maneira que ter cincia, ou saber,

    passou a significar simplesmente deduzir concluses a partir de princpios

    universalmente aceitos, sendo irrelevante o processo de elaborao desses princpios.

    Esse foi um dos temas que contriburam para desencadear o movimento

    contemporneo de reviso da filosofia de Aristteles iniciado na primeira metade do

    sculo XX, em cuja base encontra-se profunda divergncia com a tradio interpretativa

    descendente da Escolstica (ver BERTI, 1997). Segundo Berti (idem, p. 23), o autor de

    maior destaque nesse processo foi Jaeger, que em 1923 estabeleceu que Aristteles

    deveria ser compreendido fora dos empregos e reinterpretaes filosficas que lhe

    foram dadas pelos neoescolsticos.

    Em linhas gerais, os adeptos do movimento revisionista defendem haver no

    Estagirita uma vigorosa opo pela multiplicidade e pela autonomia das diversas

    cincias (BERTI, 1998, p. 9). Assim, Aristteles visto como responsvel no s por

    uma cincia do verdadeiro e do necessrio, a silogstica, mas tambm como o estudioso

    de uma cincia que se dedica a compreender de que modo so firmados os princpios.

  • 21

    Tal cincia a dialtica, que se caracteriza por investigar o que antecede os enunciados

    definidores do que uma coisa (idem, p. 15).

    Juntamente com os Tpicos, a Retrica possui especial relevncia no movimento

    revisionista de Aristteles.2 Logo no incio do Livro I desse tratado, o filsofo explica

    que a arte retrica a contraparte da dialtica; as duas se ocupam de questes mais ou

    menos ligadas ao conhecimento comum, no correspondendo a nenhuma cincia em

    particular (Retrica, I, 1354a1).3 Todas as pessoas participam, de alguma maneira, tanto

    de uma quanto de outra arte, pois todos se envolvem, em algum momento da vida, na

    tentativa de questionar e sustentar um argumento, seja para se defender, seja para

    acusar. A dialtica e a retrica diferem, no entanto, porque a segunda consiste em um

    discurso longo dirigido a um auditrio silencioso (BERTI, 1997, p. 287).

    A retrica til porque, assim como a dialtica, permite discutir sobre os

    contrrios, diferentemente do discurso cientfico, ou demonstrativo, que prprio do

    ensino, quando se transmite dedutivamente algo j conhecido unilateralmente. Nas

    situaes em que se aplica a retrica, o objetivo no ensinar, mas persuadir com base

    em argumentos comuns. Argumentamos persuasivamente sobre coisas contrrias, no

    para fazer uma coisa e outra, mas para que no nos fuja o real estado da questo e,

    tambm, para refutar os que argumentam contrariamente justia, afirma Aristteles

    (Retrica, I, 1355a20).

    Reboul (2004, p. 23-24) explica que uma das inovaes de Aristteles reside em

    apresentar a retrica como um bem que, a exemplo dos demais bens, como a fora, a

    2 A Retrica composta por trs Livros, constitudos respectivamente por 15, 26 e 19 captulos. O Livro

    III no ser apresentado aqui, uma vez que seus temas a origem das provas retricas, a expresso enunciativa, ou lingustica, e a forma de organizao das partes do discurso no se relacionam com o assunto deste trabalho. 3 A edio brasileira da Retrica utilizada neste trabalho Aristteles (2011). As citaes desse tratado

    sero identificadas por meio do sistema elaborado por Bekker, responsvel pela edio padro das obras

    de Aristteles. Cada tratado dividido em Livros, indicados por uma letra grega maiscula ou um nmero

    romano; o nmero arbico que veem a seguir representa a pgina da edio padro; a letra e o nmero

    arbico que veem depois correspondem, respectivamente, coluna e linha, na referida edio.

  • 22

    sade e a riqueza, pode ser corrompido, isto , pode ser usado de maneira desonesta;

    mas nem por isso deixa de ser um bem, pois se trata de uma arte (techn) cujo nico

    objetivo encontrar os meios de persuaso que cada caso comporta, assim

    contribuindo para habilitar o seu praticante a coordenar as vrias possibilidades de

    sucesso para a causa que defende.

    O domnio da retrica no o da verdade cientfica, uma vez que ela, tal qual a

    dialtica, versa somente sobre o verossmil, ou plausvel, podendo ser definida como a

    arte de defender-se argumentando em situaes nas quais a demonstrao no

    possvel. As noes comuns que constituem o seu ponto de partida no se confundem

    com opinies vulgares, pois o seu material o bom senso que se aplica em todo

    campo que ainda no foi demarcado por respostas cientficas. Aristteles considera a

    retrica indispensvel num mundo de incertezas e conflitos, o que faz dela a arte de

    encontrar tudo o que um caso contm de persuasivo, sendo, portanto, a nica arte

    aplicvel a situaes em que no h outro recurso seno o debate contraditrio

    (REBOUL, 2004, p. 27).

    No Livro I, alm de relacionar a retrica com a dialtica, Aristteles (Retrica, I,

    1358b1) explica que h trs gneros retricos, conforme sejam as classes de ouvintes a

    que se dirige o orador: o deliberativo, ou poltico; o forense, ou judicial; e o

    demonstrativo, ou epidtico. O discurso deliberativo visa aconselhar e desaconselhar,

    julgando sobre o que conveniente ou prejudicial; o auditrio que atua como juiz tem

    os olhos voltados para o futuro. Esta a situao tpica das assembleias, em que os

    cidados decidem sobre os destinos da cidade.

    A retrica judicial, por sua vez, empregada nos tribunais, tendo por meta

    acusar e defender; os juzes consideram o justo e o injusto analisando fatos passados

    relativos culpa ou inocncia de um ru. A epidtica discorre sobre o belo e o feio,

  • 23

    mediante fatos presentes, sendo caracterstico o seu uso em situaes fnebres e

    festivas; o que est em pauta a virtude e o vcio, bem como o que nobre ou vil, com

    o intuito de louvar ou censurar os objetos a que se aplica (Retrica, I, 1366a25). Nesse

    ltimo caso, os ouvintes atuam como espectadores, pois no lhes cabe expressar um

    veredicto, mas, mesmo assim, so levados a formar um juzo sobre os fatos

    apresentados.

    Ainda no Livro I, Aristteles (Retrica, I, 1356a1) define a retrica como a

    faculdade de observar, em cada caso, o que este encerra de prprio para criar a

    persuaso, e expe que h trs elementos envolvidos na persuaso: o que emana do

    carter do orador (ethos); o que se fundamenta nas disposies do ouvinte (pathos); e o

    que decorre do prprio discurso (logos), pelo que este demonstra ou parece demonstrar.

    A persuaso obtida pelo carter pessoal do orador quando o discurso d a

    impresso de que aquele que o profere digno de f. O Estagirita estabelece que tal

    confiana deve resultar do discurso, e no de uma opinio prvia sobre quem o

    pronuncia, mas admite que, embora a probidade do que falado seja relevante, quase

    impossvel no observar que o carter o principal meio de persuaso (Retrica, I,

    1356a5). Persuade-se pelo discurso quando se exibe a verdade ou o que parece verdade,

    com fundamento no que persuasivo em cada caso particular.

    Persuade-se pela disposio dos ouvintes quando o auditrio levado a sentir

    emoo por meio do discurso, tema que ocupa posio central no Livro II da Retrica.4

    As paixes, ou emoes, so relevantes na argumentao porque nelas reside o material

    que permite atingir aquilo que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 6)

    constitui o objetivo geral da retrica: obter a adeso dos espritos, a persuaso.

    4 O Livro II to importante que chegou a ser editado em separado do conjunto do tratado (ver

    ARISTTELES, 2003).

  • 24

    Como as emoes influem no modo como o ouvinte julga os fatos, Aristteles

    (Retrica, II, 1378a20) considera que as paixes so as causas das mudanas nos

    nossos julgamentos. Meyer (2003, p. xxxviii) explica que quem pretende argumentar

    de modo persuasivo deve encontrar uma identidade onde, de incio, havia apenas

    antagonismo, diferena e contestao; quem conhece as paixes pode classificar os

    homens e, assim, encontrar a melhor maneira de conduzi-los opinio que considera

    correta. As paixes, portanto, so como um teclado no qual o bom orador toca para

    convencer (idem, p. xli).

    1.2 A retrica como metodologia de pesquisa

    Os procedimentos metodolgicos adotados pelo Grupo de Pesquisa Retrica e

    Argumentao na Pedagogia so fundamentados nas reflexes de Aristteles e de

    autores que integram o movimento contemporneo de reviso do pensamento

    aristoteleciano, conforme foi acima mencionado. Dentre esses autores, a referncia mais

    relevante Cham Perelman, cujas concepes encontram-se principalmente no Tratado

    da argumentao, livro em coautoria com Lucie Olbrechts-Tyteca, no qual

    apresentada a Nova Retrica.5

    Nesse livro, os autores explicam que a retrica antiga era a arte de falar em

    pblico de modo persuasivo, consistindo, portanto, em discursos expressos por meio

    de linguagem falada. Diferentemente daquele contexto, a Nova Retrica ocupa-se

    com a estrutura da argumentao, sem se limitar s caractersticas prprias do

    5 Perelman autor de vrios trabalhos dedicados s bases filosficas da metodologia apresentada no

    Tratado da argumentao ver, por exemplo, Perelman (1982) e Perelman (1988). Sobre a vida e a obra de Perelman, ver Cunha (2011).

  • 25

    discurso oral, focalizando prioritariamente textos impressos, desde que neles se

    encontrem os intuitos persuasivos que norteavam a arte retrica exercitada oralmente

    pelos antigos (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 6).

    Tomando por base essas proposies, o Grupo de Pesquisa Retrica e

    Argumentao na Pedagogia investiga discursos que veiculam proposies tericas

    e/ou terico-prticas relativas educao, no mbito da pedagogia, isto , na esfera das

    ideias sistematizadas que se apresentam com o objetivo de nortear atividades

    educacionais escolares. Os trabalhos do Grupo tm examinado textos publicados em

    revistas especializadas e livros que abordam temticas educacionais, aplicando a esses

    materiais a anlise sugerida pelo Tratado de Perelman e Olbrechts-Tyteca (ver

    CUNHA, 2007b).6

    Uma das linhas de investigao do Grupo dedicada a examinar discursos de

    autores que se destacaram na formulao do iderio educacional renovador articulado

    no Brasil entre as dcadas de 1920 e 1960.7 Ao eleger como objeto de estudo os textos

    jornalsticos de Ceclia Meireles publicados nos anos de 1930 e 1933, o presente estudo

    integra essa vertente de pesquisa.

    Em consonncia com os fundamentos terico-metodolgicos acima descritos, as

    prximas sees desta dissertao abordaro os trs elementos constituintes da

    argumentao: o orador neste caso, a oradora Ceclia Meireles e o auditrio, aqueles

    a quem o seu discurso era direcionado, sero temas do segundo captulo, enquanto o

    discurso, ou seja, o contedo dos textos por ela publicados na coluna Comentrio da

    Pgina de Educao do jornal Dirio de Notcias, ser objeto do captulo terceiro.

    6 As pesquisas do Grupo tambm utilizam outros autores como fontes de referncia para a anlise retrica

    como Toulmin (2001), por exemplo. 7 Outra linha de pesquisa do Grupo focaliza textos de John Dewey, filsofo e educador americano

    contemporneo.

  • 26

    A caracterizao de Ceclia Meireles como oradora justifica-se pelo fato de a sua

    atuao assemelhar-se, do ponto de vista da anlise retrica, do cidado da Grcia

    Clssica que discursava em assembleias, tribunais e cerimnias de louvor ou censura a

    alguma pessoa ou evento. Conforme se ver no terceiro captulo deste trabalho, o

    discurso de Meireles ora valorizava os caminhos propostos pela nova pedagogia em

    benefcio da educao brasileira, visando, portanto, o futuro; ora defendia iniciativas j

    efetivadas pelos educadores escolanovistas, focalizando, portanto, o passado; ora

    buscava despertar os leitores para a observao do que ocorria no campo do ensino

    naquele momento, ou seja, mirando o presente.

    Em qualquer uma dessas posies discursivas, perceptvel a presena de um

    componente tico na atuao de Ceclia Meireles, uma vez que as suas intervenes

    jornalsticas diziam respeito a um tema considerado essencial para a vida coletiva no

    Brasil dos anos de 1930 a educao. Alm disso, Meireles tinha o objetivo de

    mobilizar seus leitores, os incentivando a assumirem posicionamentos perante a

    situao social em que viviam, particularmente no tocante a assuntos educacionais.

    Esses dois aspectos, o carter tico e o intuito mobilizador, so inerentes ao campo da

    retrica, tanto a antiga quanto a contempornea, conforme ressaltam vrios tratadistas

    dessa arte (ver PERELMAN, 2011).

    Considerando a orientao advinda do Grupo de Pesquisa a que este trabalho se

    vincula, a investigao acerca do auditrio dever demarcar, com a maior preciso

    possvel, as circunstncias histricas, sociais e culturais que cercam a publicao dos

    textos em exame. Tais circunstncias, tambm denominadas contexto, sero

    reconstitudas com base na literatura e em documentos que versam sobre a poca em

    que o discurso foi proferido, como fazem os historiadores quando se debruam sobre

    eventos do passado. Essa reconstituio, no entanto, no dever ser feita

  • 27

    desvinculadamente dos textos examinado, medida que se presta a evitar que o

    pesquisador eleja arbitrariamente alguns fatores do contexto, em detrimento de outros, e

    acabe por aplicar ao discurso um molde analtico externo (SIRCILLI, 2008, p. 22).

    Por esse motivo, a caracterizao das disposies do auditrio de Meireles

    contar com o estudo de algumas das matrias que a oradora publicou na Pgina de

    Educao ao lado dos textos de sua autoria inscritos na coluna Comentrio. A anlise

    dos contedos dessa coluna, a ser feita no captulo terceiro, complementar, de certo

    modo, a tipificao da audincia da oradora, priorizando o exame das paixes por ela

    mobilizadas.

    Os trabalhos produzidos at o momento pelo Grupo de Pesquisa Retrica e

    Argumentao na Pedagogia tm investigado textos de revistas especializadas e livros,

    como j foi dito nestas pginas. Alm de situar os autores desses textos como oradores,

    nos termos da anlise retrica, tais investigaes buscam elucidar as estratgias

    discursivas presentes nesses escritos, de maneira a discutir o seu poder persuasivo

    perante determinados auditrios, em determinadas circunstncias.

    Conforme veremos neste trabalho, uma das estratgias discursivas mais

    utilizadas por Ceclia Meireles a conclamao de personagens de prestgio em favor

    de suas teses. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 348), muitos argumentos

    so influenciados pela reputao de outrem, sendo o argumento de autoridade o que

    mais caracteriza essa inteno, consistindo em empregar atos ou juzos de uma pessoa

    ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese. O argumento de

    autoridade o modo de raciocnio retrico que foi mais intensamente atacado, pois

    pode assumir um valor coercivo, como se as autoridades invocadas houvessem sido

    infalveis. Alm disso, ao invocar uma autoridade o orador se compromete; no h

    argumento de autoridade que no repercuta em quem o emprega.

  • 28

    Como ser possvel tambm notar, Ceclia Meireles recorre com frequncia

    estratgia de fornecer ilustraes para firmar os posicionamentos que assume no campo

    da educao. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca, a ilustrao consiste em

    argumentar utilizando casos particulares, o que feito igualmente pelo exemplo, que

    quando tais casos servem para fundamentar uma regra. Diferentemente, a ilustrao

    vem reforar a adeso a uma regra conhecida e aceita, explicando o enunciado geral e

    aumentando a sua presena na conscincia do auditrio. Enquanto o exemplo deve

    ser incontestvel, pois dele depende a elaborao de um princpio, a ilustrao pode ser

    duvidosa, cabendo-lhe somente impressionar vivamente a imaginao para impor-se

    ateno (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 407).

    Uma estratgia argumentativa de notvel poder argumentativo a metfora,

    definida por Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 453) como uma analogia

    condensada, resultante da fuso de um elemento do foro com um elemento do tema.

    Mazzotti (2008, p. 2) explica que o tema o que queremos expressar ou conhecer, e o

    foro o que se adota por objeto de comparao, algo j conhecido, do qual so

    extrados os significados que so transportados ao tema. Da analogia A est para B,

    assim como C est para D, em que A-B so elementos do tema e C-D so componentes

    do foro, constri-se a metfora A C de B.

    A nfase deste trabalho no ser na identificao de estratgias argumentativas,

    mas no estudo das paixes como recursos argumentativos, em consonncia com as

    reflexes de Aristteles expostas acima. Esta proposta de pesquisa inspirada em

    trabalho de Cunha (2006b) que menciona uma caracterstica peculiar aos textos

    publicados em jornais de notcias. Diferentemente do que se observa em revistas e

    livros cujo destinatrio o pblico especializado, os textos jornalsticos, quando

    inseridos em debates sobre tema de relevncia social, so desprovidos dos cuidados com

  • 29

    a linguagem que so prprios de trabalhos acadmicos. Por esse motivo, possvel

    supor que o exame retrico de seu contedo revele a marcante presena de paixes

    sendo manuseadas pelos autores com o intuito de sensibilizar seus auditrios.

    A palavra paixo deriva do latim passio, que, por sua vez, descende do grego

    pathos, cujo significado traduz uma perturbao da alma, algo ligado ao corpo ou

    parte da alma mais prxima da animalidade, uma impulsividade que merece cuidados,

    devendo ser moderada e, mesmo, dominada (REALE, 2001, p. 195). Textos como

    os que sero analisados no presente trabalho trazem, muitas vezes, certo componente de

    imoderao, pois foram escritos e publicados no calor de disputas, visando interferir nas

    disposies intelectuais e emocionais dos leitores acerca de um tema palpitante. Nas

    crnicas de Ceclia Meireles, esse tema a educao nova, cujas formulaes eram

    cercadas de inmeros defensores e detratores.

    Na Retrica, Aristteles faz a explanao sumria de 14 paixes, apresentadas

    na forma de pares opostos: confiana e medo; emulao e desprezo; tranquilidade e

    clera; benevolncia e inveja; amor e dio; compaixo e indignao; pudor e despudor.8

    Pelo modo como o Estagirita caracteriza essas paixes, possvel organiz-las em duas

    categorias: a primeira, contendo sentimentos que ensejam afirmao, concordncia,

    esprito construtivo, tendo por objetivo levar o auditrio a ter f e otimismo perante os

    fatos narrados pelo orador; a segunda categoria, agrupando emoes que denotam

    recusa, nocividade, contrariedade, visando constituir no ouvinte disposies de

    afastamento ante as ocorrncias mencionadas.

    Podemos chamar de positivas as paixes pertencentes primeira categoria.

    So elas confiana, emulao, tranquilidade, benevolncia, amor, compaixo e pudor.

    As que integram a segunda categoria podem ser chamadas de negativas: temor,

    8 No vocabulrio de Aristteles, as paixes possuem significados tcnicos especficos, os quais sero

    explicitados no terceiro captulo deste trabalho.

  • 30

    desprezo, clera, inveja, dio, indignao e despudor. O captulo terceiro deste trabalho

    versar sobre as duas categorias, separadamente.

  • 31

    2. A oradora e seu auditrio9

    Levai-me aonde quiserdes! Aprendi com as primaveras

    a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

    (Ceclia Meireles)

    Segundo a explanao feita no captulo precedente, onde foram delineadas as

    bases tericas e os procedimentos da anlise retrica desenvolvida pelo Grupo de

    Pesquisa Retrica e Argumentao na Pedagogia, um dos elementos fundamentais da

    argumentao o orador, aquele que se pronuncia perante determinado auditrio com a

    inteno de persuadir. Outro componente essencial da argumentao o auditrio,

    constitudo pelo conjunto de leitores a que se dirige o orador, cujo intuito consiste em

    angariar adeso s ideias que veicula.

    O primeiro objetivo do presente captulo apresentar Ceclia Meireles como

    oradora, o que implica explicitar os qualificativos que a habilitaram a discursar, como

    educadora e jornalista, sobre assuntos da rea poltico-educacional, situando a sua

    atuao no mbito dos acontecimentos da poca em que foram publicados os seus

    pronunciamentos. O segundo objetivo visa caracterizar o auditrio da oradora, o que,

    segundo os parmetros da anlise retrica, alcanado por meio do exame do contedo

    de seus textos e do contexto geral em que foram publicados.

    9 Alguns contedos deste captulo encontram-se no artigo Ceclia Meireles e o temrio da Escola Nova

    (CUNHA; SOUZA, 2011), publicado em Cadernos de Pesquisa (FCC).

  • 32

    2.1 A educadora Ceclia Meireles

    A carioca Ceclia Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de

    1901, filha de Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionrio do Banco do Brasil,

    falecido trs meses antes do nascimento da filha, e de Matilde Benevides, professora,

    falecida quando Ceclia tinha apenas trs anos de idade. Aps a morte de sua me,

    Ceclia foi morar com a av materna, Jacinta Garcia Benevides; tambm fez parte de

    sua vida a bab Pedrina, que era uma hbil contadora de histrias (PIMENTA, 2001,

    p. 15).

    Em 1910, Ceclia concluiu o curso primrio na Escola Estcio de S e recebeu

    de Olavo Bilac, que ocupava o cargo de Inspetor Escolar do Distrito, uma medalha de

    distino e louvor (OLIVEIRA, 2001, p. 321). Em 1915, ela enfrentou outra perda, com

    a morte de Pedrina, sua bab. Concluiu o Curso Normal em 1917, passando em seguida

    a lecionar no ensino primrio de sua cidade natal. Iniciou a carreira de escritora em

    1919 com a obra Espectros, publicando, a partir dali, mais de duas dezenas de livros de

    poemas.10

    Em 1922, Ceclia casou-se com Fernando Correia Dias, pintor portugus

    radicado no Brasil. Nos anos de 1920, sua atuao esteve fortemente ligada ao

    magistrio, desenvolvendo atuao crtica em relao ao sistema pblico de ensino

    dominante, razo pela qual abandonou a carreira de professora. Reassumiu a profisso

    somente em 1927, quando teve incio a reforma do ensino realizada na gesto de

    10

    Dentre seus livros de poemas, podem ser mencionados: Poema dos poemas (1923); Baladas para El-

    Rei (1925); Viagem (1939); Vaga msica (1942); Mar absoluto e outros poemas (1945); Retrato natural

    (1949); Romanceiro da Inconfidncia (1953); Canes (1956); Metal rosicler (1960); Solombra (1963); e

    Ou isto ou aquilo (1954).

  • 33

    Fernando de Azevedo na Diretoria Geral da Instruo Pblica do Distrito Federal

    (CORRA, 2001, p. 17).

    Essa reforma fez parte de uma srie de medidas semelhantes adotadas

    independentemente por vrios estados da federao, cujos governantes tinham interesse

    em modificar os seus respectivos sistemas de ensino, uma vez que no havia uma

    legislao que regulamentasse o assunto em mbito nacional. A primeira delas ocorreu

    em So Paulo em 1920, ficando conhecida como reforma Sampaio Dria; a ela se

    seguiram, dentre outras, as reformas comandadas por Loureno Filho no Cear, em

    1922; por Ansio Teixeira na Bahia, em 1925; e por Francisco Campos em Minas

    Gerais, em 1925 (NAGLE, 1974, p. 192-196).

    Segundo Nagle (1974, p. 190-191), o principal efeito produzido por essas

    reformas, com especial destaque para a que foi instituda por Fernando de Azevedo no

    Distrito Federal, foi a busca de remodelao das finalidades da educao escolar,

    mediante a introduo de um novo modelo para a estruturao das escolas e a

    orientao das prticas pedaggicas, o que se convencionou identificar como evidncia

    da introduo da Escola Nova no pas (idem, p. 190-191).

    O saldo mais duradouro daquelas iniciativas isoladas foi a conscincia da

    necessidade de sensveis mudanas na rede escolar pblica, envolvendo sua ampliao

    fsica e melhorias em suas condies de funcionamento. As novas instituies ento

    criadas tiveram o seu raio de ao ampliado, incorporando novas funes por meio da

    instalao de novos rgos tcnicos que pretendiam tornar o complexo administrativo

    escolar mais adequado nova situao do pas (NAGLE, 1974, p. 190).

    A nova situao do pas era a que o Brasil vivia desde a proclamao da

    Repblica, e vrios intelectuais, desde ento, vinham se empenhando em encontrar

    caminhos para modernizar a nao. De maneira geral, todos reconheciam que a

  • 34

    educao encontrava-se distanciada dessa meta, razo pela qual foi criada em 1924 a

    Associao Brasileira de Educao, ABE, que congregava diversas tendncias do

    pensamento poltico e educacional.

    Dentre esses agrupamentos, destacavam-se os catlicos e os liberais, cujas

    divergncias iriam tornar-se evidentes alguns anos mais tarde, conforme veremos logo

    mais neste trabalho. A liderana dos intelectuais catlicos era exercida em mbito

    nacional por Alceu de Amoroso Lima, conhecido como Tristo de Athayde, e o

    principal veculo de divulgao de suas ideias era o peridico A ordem, criado em 1922

    (CUNHA; COSTA, 2002). Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo, reformadores do

    ensino na Bahia e no Distrito Federal, em 1925 e 1927, respectivamente, integravam o

    grupo dos liberais.

    Foi nesse cenrio que Ceclia Meireles candidatou-se, em 1929, cadeira de

    Literatura da Escola Normal do Distrito Federal, concorrendo com um trabalho

    francamente liberal que discorria sobre a liberdade individual na sociedade. Ceclia

    defendeu que cabia nova escola recuperar no ser humano qualidades como coragem e

    independncia e criar um conhecimento sobre o indivduo (LAMEGO, 1996, p. 55).

    Sua tese foi reprovada porque a banca composta, entre outros, por Alceu Amoroso

    Lima, Coelho Neto e Joo Ribeiro favoreceu o grupo dos, reconhecidamente,

    catlicos, do qual Meireles no participava (OLIVEIRA, 2001, p. 322).

    O ano de 1930 foi marcado por um evento poltico de grande significado para a

    histria do Brasil, o golpe de estado que levou Getlio Vargas ao poder, instituindo um

    governo provisrio com a promessa de remodelar as instituies nacionais. Logo em

    1931, Vargas criou o ministrio da Educao e Sade Pblica, nomeando para essa

    pasta Francisco Campos, jurista que havia conduzido a reforma do ensino em Minas

    Gerais em 1925. Uma das primeiras medidas do ministro foi a edio de um decreto que

  • 35

    favorecia a instruo religiosa nos cursos primrio, secundrio e normal. Campos foi

    um explcito apoiador das causas da Igreja Catlica no campo da educao (CURY,

    1984, p. 17); em 1932, o ministrio foi assumido por Washington Pires, mas a pasta

    continuou desempenhando a funo de rgo saneador e purificador do corpo e do

    esprito dos brasileiros (idem, p. 107).

    No campo estrito da poltica, as realizaes de Campos favoreceram

    sensivelmente a aliana de Vargas com a Igreja Catlica, constituindo preciosa

    vantagem para o governo naquele delicado momento de transio do poder e, ao

    mesmo tempo, permitindo que os catlicos continuassem a sua luta de oposio a todos

    os setores da sociedade que se mostrassem impregnados de esprito leigo e secular,

    sem que houvesse qualquer resistncia do Estado (CURY, 1984, p. 17).

    2.2 Ceclia Meireles na imprensa

    No mesmo ano do golpe de estado desferido por Getlio Vargas, Ceclia

    Meireles iniciou sua carreira na imprensa, dirigindo a Pgina de Educao no jornal

    Dirio de Notcias, na qual passou a escrever a coluna diria Comentrio, considerada

    por Lamego (1996, p. 31) a grande porta-voz da chamada Escola Nova.

    As Figuras 1 e 2, nas pginas seguintes, reproduzem a Pgina de Educao dos

    dias 23 de agosto e 29 de julho de 1930, respectivamente. Como se pode notar, a

    crnica de Ceclia Meireles, situada na primeira coluna esquerda, ocupava uma

    pequena parte do espao editado pela autora, que ali transcrevia matrias de interesse

    educacional geral. Na edio do dia 23, por exemplo, havia um escrito discorrendo

    sobre a importncia do sono para as crianas ( preciso que a criana durma

  • 36

    tranquila), um texto debatendo a dana moderna (A expresso do gesto) e uma

    notcia sobre o envolvimento de jovens americanos com a msica (As bandas escolares

    rurais nos Estados Unidos); havia tambm informaes sobre ocorrncias legais no

    mbito do ensino (Notas oficiais) e reportagens sobre eventos estrangeiros (A

    instruo na Alemanha).

    Na edio do dia 29 de julho, pode-se observar que, ao lado do Comentrio de

    Meireles, havia matrias com teor semelhante s do dia 23 de agosto: informaes sobre

    um Concurso de obras didticas promovido pela Diretoria Geral da Instruo Pblica

    de So Paulo, uma nota sobre A cinematografia e o ensino da Histria, notcias

    referentes a um projeto apresentado ao Conselho de Ensino do Uruguai (Supresso das

    exposies escolares) e o relato de um curso Curso terico e prtico de psicologia.

    Alm disso, percebe-se nessa mesma edio a presena de anncios comerciais,

    situados na parte inferior da pgina, retratando certa variedade de produtos sem relao

    com o universo escolar, como lanamento de discos (Novos discos Victor) e venda de

    materiais para construo (Portas de ferro batido enrolveis e artsticas) e de seguros

    de vida e acidentes pessoais (Assicurazione Generali).

  • 37

    Figura 1: Pgina de Educao publicada no dia 23 de agosto de 1930

  • 38

    Figura 2: Pgina de Educao publicada no dia 29 de julho de 1930

  • 39

    Em carta de 8 de abril de 1931, Ceclia Meireles (apud LAMEGO, 1996, p. 58)

    confidenciou ao amigo Fernando de Azevedo os motivos que a levaram atividade

    jornalstica, dizendo: o vivo sentimento da minha ineficincia em qualquer escola (...)

    levou-me ao jornalstica, talvez mais vantajosa, de mais repercusso porque uma

    esperana obstinada esta, que se tem de que o pblico leia e compreenda....

    A deciso de Ceclia fora tomada no ano anterior, 1930. Em junho daquele ano

    os jornalistas Orlando Dantas, Nbrega da Cunha e Alberto Figueiredo Pimentel haviam

    fundado o Dirio de Notcias, que era dividido em sees de poltica nacional e

    internacional, economia, esportes e assuntos femininos, trazendo tambm uma pgina

    diria totalmente dedicada educao, cujo ttulo em letras estilizadas no deixava

    dvida quanto ao contedo do espao: Pgina de Educao (LAMEGO, 1996, p. 27).

    Ceclia Meireles foi a criadora e diretora da referida seo desde o primeiro nmero do

    jornal, sendo aquele o nico espao totalmente dedicado educao na imprensa da

    poca (idem, p. 30 - 31).

    Ao ocupar o posto de cronista da educao, Ceclia integrou-se a um dos

    veculos mais incensados pelos grupos letrados dos sculos XIX/XX, a imprensa,

    lugar de prestgio na vida cultural brasileira, desde aqueles tempos e alm (CAMPOS,

    2012, p. 55). Sussekind (1987, p. 13) considera que naquele momento configurava-se no

    pas um dilogo intensificado com o novo horizonte tcnico, ocasionando o incio da

    profissionalizao do escritor e da reviso da ideia de literatura, redefinida como

    tcnica. Deu-se o fortalecimento de uma nova imprensa empresarial, por meio da

    qual os homens de letras passaram a se profissionalizar (idem, p. 72).

    Pode-se dizer que toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa

    que constitua a principal instncia de produo cultural da poca e que fornecia a

    maioria das gratificaes e posies intelectuais (MICELI, 1977, p. 15). Por esse

  • 40

    motivo, na virada do sculo XIX para o XX, a maior parte dos escritores brasileiros

    dirigiu-se para o jornalismo (SUSSEKIND, 1987, p. 74).

    Nas palavras de Candido (1992, p. 14), o jornal uma publicao efmera que

    se compra num dia e no dia seguinte usado para embrulhar um par de sapatos ou forrar

    o cho da cozinha. Apesar disso, Campos (2012, p. 61) destaca o valor dos dirios

    como fontes para a histria da educao, enfatizando que a fora imaterial desse tipo de

    veculo est na reiterao, dia aps dia, edio aps edio, ano aps ano de

    determinados padres culturais compartilhados por aqueles que os escreveram e os

    consumiram. Sendo estratgicos, tticos, ou ambas as coisas, os jornais so

    vestgios basilares para que se compreenda a construo do homem ocidental dos

    sculos XIX/XX e, consequentemente, para a escrita da sua histria e da histria da

    sua educao (idem, p. 67).

    Ao dissertar sobre a campanha de reconstruo educacional no Brasil,

    Fernando de Azevedo (1958a, p. 181) afirma que elementos de vanguarda tomavam

    posies na imprensa do pas, particularmente no Rio de Janeiro, onde Ceclia

    Meireles, com suas crnicas finas e mordazes, e Nbrega da Cunha, com sua

    atividade sutil e de grande poder de penetrao, apresentavam novos estmulos e

    acentos novos a essa campanha, cujo contedo no se esgotava sobre o plano

    cultural, possuindo em seu desenvolvimento um esprito moderno e um sentimento

    profundamente humano. Neves (1992, p. 80) destaca que, tanto por seu estilo literrio

    prprio como pelo suporte de sua difuso, o jornal, a crnica atinge um nmero maior

    de leitores que qualquer outro gnero.

    Esse gnero de escrita praticado por Ceclia Meireles era visto como menor

    pelos crticos do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Mas Neves (1992, p. 81)

    comenta que se tratava de um gnero relevante, largamente utilizado pelos grandes

  • 41

    intelectuais da poca como por todos aqueles que aspiravam a viver das letras. A

    crnica possua a inteno de estabelecer ou restabelecer a dimenso das coisas e das

    pessoas, no tendo por objetivo oferecer um cenrio excelso, numa revoada de

    adjetivos e perodos candentes; valendo-se do mido, o cronista apresentava uma

    grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas.

    A crnica amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e

    tambm nas suas formas mais fantsticas, segundo Candido (1992, p. 14). Por sua

    etimologia, chronus, trata-se de um gnero colado ao tempo; como a percepo do

    tempo histrico varivel, a crnica sempre de alguma maneira o tempo feito texto,

    sempre e de formas diversas, uma escrita do tempo (NEVES, 1992, p. 82).

    Na dcada de 1930, a crnica moderna se definiu e consolidou no Brasil,

    passando a ser um gnero bem nosso, explorado por muitos escritores e jornalistas.

    Como Mrio de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Rubem

    Braga (CANDIDO, 1992, p. 17). Foi nesse cenrio intelectual que Ceclia Meireles

    iniciou a sua atividade como cronista, posicionando-se no epicentro de eventos polticos

    e educacionais que mobilizavam os educadores, categoria profissional a que ela

    pertencia.

    Em julho de 1931, Meireles (apud LAMEGO, 1996, p. 96) escreveu a Fernando

    de Azevedo com o intuito de restaurar-lhe a autoestima, ento abalada pela atuao de

    Francisco Campos frente do ministrio: Isso servir para lhe demonstrar, mais uma

    vez, que no houve, apenas, mas continuar a haver um pequeno grupo de criaturas

    dispostas a defender essa obra que o Sr. quis oferecer ao Brasil. Alm de exprimir o

    desagrado de Ceclia diante da atuao de Campos, essa manifestao ratificava a sua

    total adeso ao iderio escolanovista, do qual Azevedo era um dos mais destacados

    representantes.

  • 42

    O movimento reformista teve continuidade na dcada de 1930, destacando-se

    novamente a atuao de Fernando de Azevedo, desta vez no comando da educao em

    So Paulo em 1933, e de Ansio Teixeira, responsvel pelo ensino no Distrito Federal a

    partir de 1931. O novo iderio educacional anunciado pelas reformas da dcada de 1920

    consubstanciou-se, de fato, em 1932, com a publicao do documento intitulado A

    reconstruo educacional no Brasil: ao povo e ao governo, o qual ficou conhecido

    como Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (PAGNI, 2000; XAVIER, 2004).

    O Manifesto resultou da IV Conferncia Nacional de Educao, realizada pela

    ABE no Rio de Janeiro em dezembro de 1931. Presentes ao evento, Getlio Vargas e

    Francisco Campos solicitaram aos conferencistas contribuies para o projeto

    pedaggico do novo governo. O jornalista Carlos Alberto Nbrega da Cunha, que l

    representava a Associao Brasileira de Imprensa e a Associao dos Artistas

    Brasileiros, sugeriu mesa diretora dos trabalhos que, em ateno ao solicitado, ficasse

    Fernando de Azevedo encarregado de elaborar um esboo, a ser debatido na prxima

    reunio da ABE, a ser realizada em Recife no ano seguinte.11

    Fernando de Azevedo, que no estava presente Conferncia, aceitou o convite,

    mas, em vez de aguardar a ocasio acordada, publicou o texto na imprensa, logo no

    incio de 1932, com o ttulo A reconstruo educacional no Brasil, tendo por subttulo

    ao povo e ao governo, subscrito por ele mesmo e outras vinte e cinco pessoas. Alm

    disso, no final daquele ano Azevedo organizou um livro a transcrio do documento

    ento denominado Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova e alguns adendos

    que visavam conferir credibilidade s ideias nele expressas.

    Todo esse processo a sugesto de Nbrega da Cunha para postergar a resposta

    ao governo; a indicao de Azevedo para elaborar o texto; a arregimentao de

    11

    A narrativa desses fatos encontra-se em livro de autoria do prprio Nbrega da Cunha (2003).

  • 43

    intelectuais de respeito para assinar o documento; a publicao na imprensa e a

    organizao de um livro pode ser interpretado como reflexo do clima de discrdia

    reinante no seio da ABE. O Manifesto continha o ponto de vista de uma nica parcela

    dos envolvidos no debate sobre os rumos da educao naquele momento crucial da

    histria do pas: o ponto de vista dos liberais, que souberam elaborar com extrema

    habilidade uma poderosa arma a ser usada no combate contra os seus oponentes, dentre

    os quais se destacavam os intelectuais catlicos (CUNHA, 2008).

    Dentre os signatrios do Manifesto encontrava-se Ceclia Meireles, que publicou

    o texto na Pgina de Educao no dia 19 de maro de 1932, com o ttulo Manifesto da

    nova educao ao governo e ao povo. Essas iniciativas a colocaram na linha de frente

    do aguerrido combate entre liberais e catlicos, assumindo as concepes educacionais

    dos primeiros e conquistando adversrios entre os ltimos, que passaram a promover

    intensa e aberta campanha contra os princpios sintetizados no Manifesto dos Pioneiros

    da Educao Nova (CURY, 1984; CUNHA; COSTA, 2002; CUNHA; COSTA, 2006).

    Alm de princpios pedaggicos inovadores, sintonizados com as recentes

    produes cientficas da Psicologia, o Manifesto continha ideais polticos, filosficos e

    sociais frontalmente contrrios a concepes tradicionalmente pregadas pela Igreja

    Catlica no campo da educao. Dentre os ideais defendidos pelo documento,

    destacava-se a laicidade, que significava afastar quaisquer doutrinas religiosas do

    cenrio escolar e, em troca, posicionar as finalidades educacionais no mbito das

    exigncias da ordem social, de maneira a contribuir para o progresso do pas; sendo

    assim, cabia ao estado a responsabilidade pela formao das novas geraes.

    Esse foi, de fato, o principal ponto de discrdia entre os dois grupos ideolgicos,

    pois, para os catlicos, a agncia de educao por excelncia era a Igreja, secundada

    pela famlia, e toda medida voltada a limitar a liberdade de escolha nessa rea constitua

  • 44

    uma via preparatria do comunismo, veiculada por homens perniciosos e

    merecedores de total repdio (CUNHA; COSTA, 2002, p. 121). Os catlicos

    consideravam o passado como criador de valores, fora viva e atuante no presente,

    ao passo que os liberais tinham em mente construir o futuro da nao. Enquanto os

    primeiros buscavam preservar o ensino religioso fundamentado no respeito tradio

    catlica do povo brasileiro, os segundos defendiam a adaptao constante do sistema

    educacional evoluo do mundo e da sociedade, mediante a aplicao da cincia e de

    suas tcnicas no cotidiano escolar (XAVIER, 2004, p. 32).

    2.3 A audincia da educadora na imprensa

    No prximo captulo deste trabalho, que analisar algumas das crnicas de

    Ceclia Meireles veiculadas na coluna Comentrio, ser feito o exame das paixes que a

    jornalista educadora procurava despertar em seus leitores, categoria que, segundo a

    abordagem retrica, denomina-se auditrio, o conjunto de pessoas a quem o orador

    busca influenciar por meio de seu discurso. As disposies desse auditrio podem ser

    apreendidas por intermdio de duas fontes: os elementos que caracterizam o ambiente

    poltico e intelectual em que a oradora se manifestava e os elementos textuais

    selecionados e editados pela autora para acompanhar as opinies expressas em seu

    Comentrio.

    O ambiente do incio da dcada de 1930 era altamente conflituoso por causa do

    golpe de estado empreendido por Vargas e, no campo especfico da educao, devido s

    controvrsias geradas pelo Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova, publicado nos

    primeiros meses de 1932. Foi nesse contexto que Ceclia Meireles (apud LAMEGO,

  • 45

    1996, p. 224) escreveu a Fernando de Azevedo, em maio de 1932, para prestar-lhe

    solidariedade, fazendo referncia ao coro da ignorncia e da m-f to pronto a se

    manifestar, cujo fundamento, segundo ela, advinha somente da confuso que

    erroneamente vinha disseminando. Nessa carta, Ceclia diz que o lder catlico Tristo

    de Athayde est disposto a desmoralizar a Escola Nova, e isso de procurar confundi-la

    com o comunismo parece-lhe decerto um mtodo de eficcia; um mtodo de

    resultados certos entre ns, devido ausncia de mentalidade que caracteriza o nosso

    povo e facilidade com que qualquer pessoa desnatura publicamente o pensamento

    de outra.

    A atitude de Ceclia pode ser compreendida pelo fato de as divergncias entre

    catlicos e liberais terem chegado ao ponto mximo, conduzindo os primeiros a

    abandonarem a ABE em 1933 e criarem em seguida a Confederao Catlica Brasileira

    de Educao (XAVIER, 2004, p. 31). O apoio de Meireles a Fernando de Azevedo pode

    ser tributado a relaes de amizade, certamente, pois ambos mantiveram constante

    correspondncia entre 1931 e 1938 (LAMEGO, 1996, p. 96).12

    Acima de tudo, ao que

    parece, a solidariedade da jornalista devia-se sua adeso aos ideais escolanovistas, to

    bem representados pela atuao pblica de Azevedo no campo educacional,

    especialmente aps a publicao do Manifesto.

    As ideias de Ceclia Meireles iam ao encontro das concepes e prticas

    introduzidas por Azevedo no Distrito Federal, cuja meta, segundo palavras do prprio

    reformador, era tornar a educao fundamentada na cincia, contando com um sistema

    de ideias que permitisse atingir as mais altas regies do pensamento, onde se

    esclarecem e se definem a concepo e o sentido da vida, e, portanto, os ideais, as

    diretrizes e os princpios da educao (AZEVEDO, 1958b, p. 16).

    12

    Essas correspondncias esto compiladas no Arquivo Fernando de Azevedo, do Instituto de Estudos

    Brasileiros da USP.

  • 46

    Para modificar a escola, Azevedo (1958b, p. 22) buscou inspirao nas teorias de

    Durkheim, Kerchensteiner e, sobretudo, na filosofia de John Dewey, agregando

    diversos princpios da educao nova, no acumulados, em camadas superpostas, mas

    fundidos e organizados em corpo de doutrina, com um carter homogneo, unidade de

    concepo e harmonia de linhas. Sua inteno era separar o gro dos fatos e das

    realidades sociais, de um lado, e a palha dos preconceitos partidrios e das

    construes puramente tericas, de outro.

    Em consonncia com o sentido geral do escolanovismo, sem apego a dogmas

    tericos e visando oferecer um sentido para a vida, as inovaes introduzidas por

    Azevedo abrangiam as atividades de lazer e os perodos de recreio, desde os jogos

    rituais e espontneos dos povos primitivos at as mais altas diverses espirituais. A

    essas atividades aliavam-se as artes, tanto a msica quanto o teatro e a literatura, que

    constituem parte do ritmo da vida e completam o ciclo dos interesses humanos, sendo,

    portanto, fundamentais para o desenvolvimento da criana (AZEVEDO, 1958b, p. 119).

    Fernando de Azevedo (1958b, p. 119) sempre se posicionou favoravelmente

    introduo de vrias formas de manifestao artstica na educao. Para ele, a nova

    escola, por ser um regime de vida e trabalho em comum, tende a realizar a iniciao

    na vida econmica e social; e uma comunidade de ideias e de vontades em ao precisa

    da arte, cujo papel estabelecer a comunidade das sensaes e dos sentimentos, isto

    , produzir a simpatia e a solidariedade social. A arte integra o carter social da

    educao como elemento essencial, assumindo uma funo socializadora tanto mais

    preponderante, quanto mais violentamente colidem, na sua variedade e complexidade,

    os interesses das sociedades modernas.

    O cinema educativo e o contato com as obras de arte em geral, por meio de

    visitas a museus, pinacotecas e audies musicais, no se destinam somente a

  • 47

    descansar o esprito, mas tambm a recriar, isto , criar de novo, pr em vibrao,

    renovar e elevar a mentalidade cansada pelas ocupaes cotidianas, posicionando a

    pessoa nas altas esferas do pensamento, das inspiraes da arte e dos grandes ideais da

    vida humana. Por isso, Azevedo (1958b, p. 119) considerava que a educao quebraria

    o ritmo da unidade essencial da vida, se no abrangesse, para desenvolver o bem-

    estar do indivduo e da comunidade, as poderosas inspiraes da arte, nos seus aspectos

    educativos e recreativos.

    Motivada pelos ideais e pelas realizaes de Fernando de Azevedo e de outros

    renovadores, Ceclia Meireles abordou em sua coluna Comentrio uma srie de assuntos

    concernentes s inovaes educacionais, mantendo estreita sintonia com o temrio

    escolanovista, cujas teses podem ser descritas, em linhas gerais, pelos seguintes

    enunciados: ateno personalidade integral do educando, considerando no somente

    os atributos individuais, mas principalmente a necessidade de reordenao da

    sociedade; considerao pelas experincias cotidianas dos alunos sem desprezar os

    contedos das matrias escolares; e nfase no redirecionamento da mentalidade dos

    professores, em consonncia com os avanos da modernidade, particularmente a

    cincia (CUNHA; SOUZA, 2011, p. 855).

    Segundo Lamego (1996, p. 116), Ceclia Meireles colocou o melhor de sua ira

    e inteligncia a servio de uma nova educao, posicionando-se contrariamente a uma

    sociedade marcada por diferenas sociais, religiosas e pelo culto ao nacionalismo

    doentio. Na Pgina de Educao, as matrias que acompanhavam os assuntos do

    Comentrio de Ceclia refletiam a amplitude de horizontes da autora, que procurava

    levar a seus leitores informaes de carter geral e notcias do cenrio nacional e

    internacional, sempre pautada nas inovaes trazidas pelo movimento de renovao

    educacional.

  • 48

    Essas matrias dirigiam-se a todos os que se interessavam por educao, no

    sentido amplo da palavra, fazendo aluso no apenas a acontecimentos escolares, mas

    tambm vida familiar. Na Pgina de Educao no dia 23 de agosto de 1930, j

    mencionada, por exemplo, havia um texto intitulado preciso que a criana durma

    tranquila, cujo contedo dizia caber aos pais a responsabilidade de garantir que os

    filhos tivessem um sono tranquilo, abundante e ininterrupto, o que traria consequncias

    positivas para a aprendizagem dos pequenos no ambiente escolar.

    Havia tambm uma notcia sobre a formao de bandas escolares rurais nos

    Estados Unidos, informando que objetivo daquela iniciativa era oferecer idnticas

    oportunidades a todas as crianas, independentemente de habitarem ou no o meio

    urbano. A matria discorria sobre o orgulho dos pais ao levarem seus filhos aos ensaios,

    e conclua dizendo no haver motivos para duvidar de que aquela excelente ideia

    poderia obter sucesso em qualquer outro pas.

    Ao lado de informaes relativas a atos oficiais do executivo licenas e

    designaes de professoras e diretoras, entre outros , a mesma Pgina continha um

    texto sobre a Alemanha, narrando o quanto a populao daquele pas valorizava a

    obteno do diploma escolar, independentemente da classe social, uma vez que at

    mesmo os operrios realizavam sacrifcios para que seus filhos estudassem, alcanando

    assim um objetivo que os pais no haviam conseguido realizar.

    Na Pgina de Educao do dia 29 de julho daquele mesmo ano, igualmente j

    mencionada, havia, por exemplo, um pequeno texto com informaes sobre o

    recebimento de 880 dispositivos para o ensino de Histria no Colgio Pedro II. A

    matria intitulada A cinematografia e o ensino de Histria explicava tratar-se de

    recursos concernentes a Histria da Arte e Histria Universal, evidenciando a

  • 49

    introduo de um mtodo inovador nas salas de aula, o cinema, que traria sensveis

    melhorias ao ensino.

    Na mesma Pgina, havia tambm um relato sobre a conferncia de abertura de

    um curso terico-prtico de Psicologia organizado pela Liga Brasileira de Sade

    Mental, a ser ministrado pelo professor Ulysses Pernambucano, do Instituto de

    Orientao Profissional do Recife. O conferencista discorreu sobre a aplicao do Teste

    de Ballard em escolas de sua cidade, mencionando as experincias realizadas por

    Decroly na Blgica, por Claparde no Egito e por Helena Antipoff em Belo Horizonte.

    Exps ainda os muitos resultados positivos oferecidos pela experincia, evidenciando a

    utilidade dessa metodologia inovadora para o diagnstico das crianas em ambiente

    escolar.

    Como se pode notar, as matrias que cercavam o Comentrio de Ceclia

    Meireles na Pgina de Educao visavam alcanar professores e pais de alunos por

    intermdio de informaes favorveis s novidades trazidas pelo movimento

    educacional renovador. Pode-se mesmo dizer que tais matrias tinham o intuito de

    instituir uma audincia com essas caractersticas, uma vez que o escolanovismo ainda

    era recente no pas, tendo sido introduzido no decorrer dos anos de 1920, por meio das

    reformas estaduais, conforme foi relatado acima, neste captulo.

    Esta observao aplica-se especialmente ao ncleo familiar, pois, alm de

    angariar a adeso do professorado s inovaes, os escolanovistas preocupavam-se

    sobremaneira em obter o aval dos pais. O tema era motivo de discrdia com os

    catlicos, grupo que disputava com os liberais a hegemonia do ensino, como j foi

    mencionado acima, neste mesmo captulo. O Manifesto dos Pioneiros da Educao

    Nova afirmava que o Estado no podia dispensar a famlia na tarefa de educar, devendo

    assentar o trabalho da educao no apoio que ela d escola e na elaborao efetiva

  • 50

    entre pais e professores (AZEVEDO, 1932, p. 46). Cunha (1997, p. 48) explica que,

    para o movimento educacional renovador, a educao das crianas no era mais uma

    incumbncia exclusiva do lar, cabendo aos pais a funo de auxiliar, no comandar o

    processo educacional.

    No h registros que permitam avaliar o grau de sucesso de Meireles na relao

    com seu auditrio; sabe-se apenas que em janeiro de 1933, ela abandonou a Pgina de

    Educao sem relatar os motivos que motivaram sua deciso. Em carta a Fernando de

    Azevedo datada de maio de 1932, Ceclia confessou ao amigo que vinha perdendo o

    entusiasmo pelo combate jornalstico, mostrando tristeza por alguns acontecimentos e

    dizendo que o grupo do Manifesto, se quisesse, podia ser uma fora invencvel.

    Querer? Vencer tambm obra de pacincia e disciplina (LAMEGO, 1996, p. 108-

    109). No h provas de que Ceclia Meireles tenha abdicado de seu posto devido a

    presses polticas, ainda que essa hiptese no seja de todo desarrazoada (idem,

    p.109).

    Em 1934, Ceclia atuou como diretora da Biblioteca Infantil instalada no antigo

    Pavilho Mourisco, sendo esta a primeira iniciativa dessa natureza voltada para crianas

    (LBO, 1996, p. 528).13

    Meireles dirigia pessoalmente a seo artstica da Biblioteca,

    realizando diversas atividades educativas, como dramatizaes, hora do conto,

    conferncias e exposies, para as quais eram convidados artistas e educadores

    (PIMENTA, 2001, p. 105). Na inaugurao da Biblioteca, Ansio Teixeira, ento diretor

    da Instruo Pblica do Distrito Federal, disse que aquela casa tinha o carter muito

    mais amplo que um centro de cultura infantil, pois era um verdadeiro rgo de

    13

    O edifcio chamado Pavilho Mourisco foi inaugurado em 1906 para completar as obras de embelezamento da cidade; situado no bairro de Botafogo, na cidade do Rio de Janeiro, abrigou um caf-concerto, tornando-se um bar-restaurante muito frequentado pela sociedade carioca (PIMENTA, 2001, p. 96).

  • 51

    pesquisa, cujos trabalhos no futuro produziriam os mais benficos resultados (LBO,

    1996, p. 537).

    Tais prticas espalharam-se pelas escolas municipais cariocas, que se sentiram

    estimuladas mesmo no contando com salas adequadas; o interesse pela literatura em

    geral e pela literatura infantil contribuiu para transformar, por alguns momentos, as

    salas de aula em bibliotecas, ajudando a construir uma viso do mundo mediante a

    palavra escrita (NUNES, 2000, p. 377). Os acervos bibliogrficos das bibliotecas

    pblicas e escolares tambm foram ampliados, ampliando igualmente a viso da escola

    e da sociedade, uma viso plural, favorecida pelo prprio processo de aquisio, em

    parte dirigido e, em parte, doado (idem, p. 377).

    Em novembro de 1935, seu marido suicidou-se, aos 42 anos, aps uma crise de

    neurastenia, conforme publicaram os jornais da poca.14 Com trs filhas pequenas,

    Ceclia enfrentou dificuldades financeiras. Durante o ano de 1936, publicou crnicas

    semanais no Correio paulista (OLIVEIRA, 2001, p. 323). Em 1937, quando j se

    encontrava trabalhando como professora de literatura da Universidade do Distrito

    Federal, ela viu a Biblioteca Infantil do Pavilho Mourisco ser desativada por causa de

    infundados motivos polticos: as autoridades declararam haver no acervo da biblioteca

    um livro de conotaes comunistas, cujas ideias eram perniciosas ao pblico infantil

    (LBO, p. 537).

    O fato que desde 1935 j se desenvolviam as tendncias polticas

    conservadoras que, em 1937, levaram instaurao do regime ditatorial comandado por

    Vargas at 1945, cujo ministro da Educao foi Gustavo Capanema, intelectual

    favorvel influncia do grupo catlico (CUNHA, 1989; HORTA, 1994;

    SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA, 2000). Nunes (2000, p. 377-378) analisa que

    14

    Em 1940, Ceclia uniu-se em segundas npcias com o engenheiro agrnomo Heitor Vincius da Silveira

    Grillo, fundador da Universidade Rural (OLIVEIRA, 2002, p. 324).

  • 52

    o crescimento do autoritarismo dentro da mquina estatal e da prpria sociedade gerou

    um clima de intolerncia com a literatura de contedo poltico, ideologicamente

    subversiva de certos valores tradicionais ainda presentes. O ato de ler passou a ser

    crescentemente vigiado dentro das escolas e fora delas. Todos os livros considerados

    materialistas, sinais de infiltrao comunista foram proscritos; a imprensa e o

    rdio foram censurados e as bibliotecas lentamente desfalcadas, desmanteladas,

    intencionalmente deixadas deriva.

    Mesmo durante a vigncia do Estado Novo, Meireles continuou atuando na

    imprensa, respondendo pela coluna Professores e Estudantes no jornal A Manh, entre

    1941 e 1943, na qual publicou vasto estudo sobre folclore infantil (CORRA, 2001, p.

    51). Em 1945, recebeu de Juscelino Kubitschek, ento prefeito de Belo Horizonte, a

    sugesto de escrever sobre a Inconfidncia Mineira, razo pela qual deu incio a

    pesquisas sobre o sculo XVIII (OLIVEIRA, 2002, p. 325).

    Sempre ligada educao, Ceclia foi signatria do documento Mais Uma Vez

    Convocados, elaborado em 1959 por Fernando de Azevedo, em defesa do ensino

    pblico (CORRA, 2001, p. 51). Em setembro de 1964, a Academia Brasileira de

    Letras atribuiu a ela o Prmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra literria. A

    premiao foi realizada post-mortem, em 1965, pois Ceclia Meireles faleceu em

    novembro de 1964 (OLIVEIRA, 2001, p. 331).

  • 53

    3. O discurso da oradora

    Pastores da terra, que saltais abismos,

    nunca entendereis a minha condio.

    Pensais que h firmezas, pensais que h limites.

    Eu, no.

    (Ceclia Meireles)

    No captulo anterior deste trabalho, procuramos caracterizar Ceclia Meireles

    como oradora capacitada a discorrer sobre assuntos poltico-educacionais, considerando

    a sua familiaridade com as temticas, os principais atores e os eventos mais marcantes

    dessa rea, na poca em que publicou seus textos no Dirio de Notcias. No mesmo

    captulo, tentamos compor um quadro ilustrativo do contexto em que a autora se

    manifestava, no intuito de compreendermos a constituio de seu auditrio o

    professorado e as famlias dos alunos, a quem Meireles dirigia informaes

    concernentes ao iderio e s realizaes da Escola Nova.

    Utilizando os parmetros