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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP César Mortari Barreira Entre Direito Penal e Criminologia Crítica: Uma Nova Agenda de Pesquisa a partir da Relação entre Günther Jakobs e Niklas Luhmann MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

César Mortari Barreira

Entre Direito Penal e Criminologia Crítica: Uma Nova Agenda de

Pesquisa a partir da Relação entre Günther Jakobs e Niklas

Luhmann

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2014

I

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

César Mortari Barreira

Entre Direito Penal e Criminologia Crítica: Uma Nova Agenda de

Pesquisa a partir da Relação entre Günther Jakobs e Niklas

Luhmann

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do

título de MESTRE em Direito Penal, sob a

orientação do Profº Drº Gustavo Octaviano

Diniz Junqueira.

SÃO PAULO

2014

II

Banca Examinadora

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----------------------------------------------------------------

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III

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Gustavo Octaviano Diniz Junqueira por toda a

confiança e apoio para a realização desta dissertação de mestrado, e acima de tudo pelo

companheirismo e exemplo de professor desde os tempos de graduação. Agradeço

também ao meu primeiro orientador, Oswaldo Henrique Duek Marques, pela dedicação

e ensinamentos fundamentais para a realização do projeto de estudo.

A todos os amigos que colaboraram de alguma forma com este trabalho,

especialmente, Ariel Rolim, Gonçalo Xavier, Guilherme Aranha, Hélio Penteado, Letícia

Quixadá, Luiz Rosseto e Vitor Munhós.

Um agradecimento especial a Willis Santiago Guerra Filho, exemplo de professor

e pesquisador, com quem tive a oportunidade de discutir minhas ideias. E também a

Guilherme Leite Gonçalves, que muito me auxiliou (e auxilia) nos estudos sobre a teoria

luhmanniana.

Um agradecimento muito especial a Antonio Roversi Jr, interlocutor essencial

(para a vida).

Aos meus pais, pelo apoio, carinho e exemplo.

À Amanda Zanarelli, por tudo aquilo que a linguagem graciosamente não

expressa.

IV

“Não é em mim o menor horror

A consciência da minha inconsciência

Do automatismo sobrenatural

Que eu sou, círculo, de (...) sensações

Rodando sempre, sempre equidistante

Do centro inatingível do meu ser”

Fernando Pessoa

V

RESUMO

César Mortari Barreira

Entre Direito Penal e Criminologia Crítica: uma nova agenda de pesquisa a partir da

relação entre Günther Jakobs e Niklas Luhmann.

Esta dissertação de mestrado tem como objetivo analisar a capacidade de

contribuição da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Niklas Luhmann para novos

estudos tanto no âmbito do direito penal quanto no âmbito do pensamento criminológico.

A pesquisa parte do diagnóstico de que a teoria de Luhmann é constantemente

interpretada como fundamento do sistema jurídico-penal de Günther Jakobs, sem que com

isso seja feita qualquer análise rigorosa acerca do contexto no qual se insere o pensamento

de Luhmann e sobre a possível alteração de significado ocorrida no transporte desses

conceitos da sociologia para a dogmática jurídico-penal. Estes déficits analíticos

constituem a principal justificativa para a hipótese da pesquisa, qual seja a possibilidade

de que o potencial crítico da teoria de Luhmann geralmente ignorado possa contribuir

para uma nova agenda de pesquisa para a dogmática jurídico-penal e para a criminologia

crítica. Para tanto, após a análise do significado dado por Jakobs aos conceitos de

Luhmann no decorrer de sua obra e a apresentação dos principais conceitos da teoria dos

sistemas sociais autopoiéticos e de sua aplicação no estudo do direito, argumenta-se que

o significado dado por Jakobs aos conceitos de Luhmann é arbitrário. Como resultado,

entende-se que a compreensão rigorosa das premissas desta teoria sociológica pode

contribuir para potencializar criticamente alguns escritos de Jakobs, abrindo uma porta

para novos estudos na dogmática jurídico-penal, ao mesmo tempo em que pode

potencializar os estudos no âmbito da criminologia crítica.

Palavras-chave: Direito Penal, Criminologia Crítica, Jakobs, Luhmann

VI

ABSTRACT

César Mortari Barreira

Between Criminal Law and Critical Criminology: a new research agenda from the

relationship between Günther Jakobs and Niklas Luhmann.

This Master’s thesis aims to examine the contribution capacity of the autopoietic social

systems theory of Niklas Luhmann for new studies both within criminal law as in the

context of criminological thought. The research starts from the diagnosis that Luhmann's

theory is consistently interpreted as a foundation of Günther Jakobs’ criminal justice

system, without therewith being made any rigorous analysis about the context in which

Luhmann's thinking is inserted and about the possible change of meaning that occurred

in the transportation of these concepts from sociology to the criminal legal dogmatic.

These analytical deficits constitute the main justification for the research hypothesis,

namely the possibility that the critical potential of Luhmann's theory generally ignored

can contribute to a new research agenda for the criminal legal dogmatic and to the critical

criminology. For that, after analyzing the meaning given by Jakobs to Luhmann’s

concepts in the course of his work and presenting the main concepts of the autopoietic

social systems theory and its application in the study of law, it is argued that the meaning

given by Jakobs to Luhmann’s concepts is arbitrary. As a result, it is understood that a

rigorous understanding of the assumptions of this sociological theory can contribute to

enhance critically some of Jakobs’ writings, opening a door for new studies in criminal

legal dogmatic, while at the same time that it may enhance the studies in the context of

critical criminology.

Keywords: Criminal Law, Critical Criminology, Jakobs, Luhmann

VII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 1

I CAPÍTULO – Orientando observações sobre a presença de Luhmann em Jakobs ..... 11

1. Uma aproximação à evolução do pensamento de Jakobs ........................................... 11

1.1. As fases de Jakobs ................................................................................................. 16

1.2. “A presença de Luhmann em Jakobs” pelos outros: repercussão frente ao

“funcionalismo radical” ............................................................................................... 42

1.2.1. Uma inovação teórica que nos leva à pergunta pela potencialidade de

Luhmann................................................................................. ................................... 42

1.3. Uma tensão recorrente: a repercussão da presença luhmanniana em Jakobs ........ 45

1.4. A presença de Luhmann em cada fase de Jakobs.................................................. 66

1.4.1. Na primeira fase.......................................................... ..................................... 66

1.4.2. No Tratado: ponte para a segunda fase................................ ........................... 70

1.4.3. Na segunda fase............................................................ ................................... 80

1.4.4. Na ponte para a terceira fase.............................................. .............................. 92

1.4.5. Na terceira fase................................................................ .............................. 103

II CAPÍTULO – A teoria dos sistemas sociais autopoiéticos e o Direito da sociedade

moderna ........................................................................................................................ 110

2. De Jakobs a Luhmann: breves apontamentos para a potencialidade crítica

luhmanniana ................................................................................................................. 110

2.1. Uma aproximação à evolução do pensamento de Luhmann ............................... 114

2.2. Entre ser/não-ser e todo/partes: caminhos rumo à crítica à distinção sujeito/objeto

e à semântica do sujeito .............................................................................................. 133

2.3. Crítica à teoria da ação de Talcott Parsons ......................................................... 153

2.4. O conceito de comunicação, a pergunta pela participação da consciência e o

conceito de pessoa ...................................................................................................... 157

2.5. A contradição manifesta: diferenciação funcional e a distinção inclusão/exclusão

.................................................................................................................................... 165

2.6. O direito da sociedade mundial ........................................................................... 177

2.6.1. Considerações preliminares................................................ ........................... 177

2.6.2. Entre funções do direito, expectativas e positivação: caminhos até a autopoiese

do sistema jurídico................................................................... ................................ 181

2.6.3. A função do direito a partir do paradigma autopoiético ................................ 195

2.6.4. Sobre autodescrição e heterodescrição............................... ........................... 207

VIII

III CAPÍTULO – Entre dogmática jurídico-penal e criminologia crítica: possibilidades

de relacionamento a partir da teoria luhmanniana ........................................................ 213

3. Breves apontamentos para a consideração da presença de Luhmann em Jakobs ..... 213

3.1. Primeira parte ...................................................................................................... 217

3.1.1. Três estudos sobre a presença de Luhmann em Jakobs ................................. 217

3.1.2. Teste de produtividade da pesquisa: a insuficiência analítica dos dois primeiros

estudos e a necessidade de aprimoramento do terceiro.......................... ................. 237

3.1.3. A crítica da presença de Luhmann nas fases de Jakobs: uma nova compreensão

do “material de estímulo” para o questionamento dos “elementos de condensação” e

dos “elementos permanentes”................................................ .................................. 248

3.1.4. Primeira proposta de conclusão parcial........................ ................................. 271

3.2. Segunda parte ...................................................................................................... 274

3.2.1. Primeira etapa.................................................................. .............................. 274

3.2.2. Segunda etapa............................................................... ................................. 282

3.2.3. Segunda proposta de conclusão parcial.................................... ..................... 297

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 299

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 307

1

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo efetuar uma leitura crítica sobre a

possibilidade de rendimento da teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann para

o direito penal e a criminologia crítica, tendo como ponto de partida o significado dado

por Günther Jakobs aos conceitos luhmannianos em seu projeto de (re)normatização da

dogmática jurídico-penal. Em que pese ser possível observar a influência do pensamento

luhmanniano em outros autores, é com o penalista de Bonn que esta teoria é articulada na

construção de um novo sistema de direito penal em contraposição à dogmática

ontologicista do finalismo.

No entanto, desde já é importante estar atento ao fato de que pensadores polêmicos

– como Jakobs e Luhmann – são terreno fértil para a construção de labirintos. Que o

surgimento da escrita tenha possibilitado a pluralidade incontrolável de interpretações

não impede que se afirme que o labirinto teórico de um determinado autor é, em alguns

casos, construção dos próprios intérpretes. Aqueles que abrem a primeira porta do

labirinto são, não poucas vezes, os mesmos que, quando confrontados com a

complexidade por eles construída, despem sua vontade de verdade e propagandeiam

saídas evidentes.

O estudo do nascimento de uma concepção divergente sobre o mundo e sobre suas

instituições e homens deve reconstruir o processo de desenvolvimento intelectual do

autor. A necessidade de diferenciação qualitativa entre “elementos permanentes” e

“material de estímulo” para analisar determinada construção teórica, feita por Antonio

Gramsci, decorre do fato de que os elementos permanentes “foram assumidos como

pensamento próprio, diferente e superior ao “material” anteriormente estudado e que

serviu de estímulo”1. Essa reconstrução é fundamental, pois permite observar doutrinas e

teorias que, enquanto estímulos para o pensamento, podem até ter ganhado a simpatia do

pensador em algum momento, mas não constituem, por assim dizer, seu núcleo teórico.

Mas como essas reflexões podem ter alguma relação com direito penal, teoria dos

sistemas sociais e criminologia crítica?

A relação parte da já mencionada apropriação que Jakobs faz da teoria

luhmanniana para construir sua teoria da pena. Isso significa que Luhmann é um material

de estímulo para a consolidação dos elementos permanentes da proposta de Jakobs. Neste

1 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.

18-19.

2

percurso, Jakobs traduz este material em alguns elementos de condensação, e alguns

desses, como será demonstrado, integram os chamados elementos permanentes,

compreendidos como síntese final de seu pensamento. No entanto, é importante notar que

o sociólogo de Bielefeld desenvolve uma teoria para explicar a sociedade moderna, o que

também significa que na tradução deste material para a dogmática jurídico-penal

(elementos de condensação) diversos novos significados não correspondem ao

significado original apresentado por Luhmann. Daí a necessidade de se realizar uma dupla

análise: verificar quais elementos de condensação integram os elementos permanentes, e

analisar de que forma uma interpretação regressiva formulada a partir de uma outra leitura

de Luhmann permite uma crítica tanto aos elementos de condensação quanto aos

elementos permanentes. Com isso chega-se à hipótese de pesquisa: que a teoria

luhmanniana, caracterizada por algo que geralmente não se vê, qual seja sua

potencialidade crítica, pode contribuir para uma nova agenda de pesquisa tanto para a

dogmática jurídico-penal quanto para a criminologia crítica.

Ocorre que a tarefa não é das mais fáceis, e isso por três motivos: primeiramente,

a maioria das interpretações da teoria de Jakobs não levam em consideração as fases deste

autor, impedindo a compreensão das significativas diferenças que existem entre elas. Em

segundo lugar, porque a teoria de Luhmann, tradicionalmente observada como premissa

das formulações de Jakobs, é de longe mais citada do que lida, o que impede a avaliação

crítica desta presença. Por fim, o próprio Jakobs não deixa claro em que medida suas

reflexões seriam mais ou menos influenciadas pelo sociólogo alemão: apesar da definição

do sujeito como sistema psicofísico (conceito luhmanniano) já no prólogo à 1ª edição de

seu Tratado (1983)2, em Sociedade, norma e pessoa (1996) o penalista de Bonn salienta

que “um conhecimento superficial dessa teoria permite perceber rapidamente que as

presentes considerações não são em absoluto consequentes a essa teoria, e isso nem

sequer no que se refere a todas as questões fundamentais”3, texto em que propõe uma

alternativa ao conceito luhmanniano de comunicação. Pouco tempo depois, em A

imputação jurídico-penal e as condições de vigência da norma (2000) afirma que não

seguirá a diferenciação feita por Luhmann entre pessoa e papel4, e critica o conceito de

2 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição.

Madrid: Marcial Pons, p. X [tradução livre do espanhol]. 3 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole Editora, 2003, p. 02-03. 4 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em JARA

DÍEZ, Carlos Gomes (Org.) Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 205.

3

acoplamento estrutural do sociólogo. Tratar-se-ia de um afastamento de Jakobs frente à

teoria luhmanniana? A resposta é negativa, já que em O que é protegido pelo direito

penal: bens jurídicos ou a vigência das normas (2003) o penalista de Bonn afirma que “a

sociedade, segundo a compreensão da teoria de sistemas a que eu agora sigo, é

comunicação”5, como se as afirmações apresentadas neste texto (e nos posteriores?)

pudessem ser acompanhadas de um “conforme Luhmann”. Por fim, também é importante

destacar que em entrevista recente (2008), quando perguntando sobre a influência

luhmanniana em sua obra, considera que a “pressão pela pureza” do pensamento em

Luhmann seria notoriamente inibidora e admite suas dificuldades com o conceito de

acoplamento estrutural6.

Diante dessas idas e vindas, aquele que se propõe discutir o chamado

“funcionalismo radical” de Jakobs deveria estudar o contexto do objeto de análise para

que sua consideração fosse ao menos rigorosa. No entanto, não é este o caminho trilhado

por grande parte dos comentadores, como será demonstrado. O estudo rigoroso do

emaranhado conceitual da chamada prevenção geral positiva poucas vezes dá relevância

à pergunta pela tensionamento das premissas eleitas no processo de construção teórica, já

que é comum a leitura de que Jakobs utiliza-se da teoria do sociólogo de Bielefeld para

fundamentar o chamado seu sistema jurídico-penal.

Como consequência desta postura surgem dois efeitos articulados:

primeiramente, a dogmatização do discurso, ou seja, a repetição exaustiva de

preconceitos teóricos inabaláveis que se atualizam por meio da imposição; em segundo

lugar, a eliminação da capacidade crítica, aqui observável a partir do fato de que a não

observação da distinção qualitativa entre “elementos permanentes” e “material de

estímulo” torna obsoleto o segundo ao aniquilar sua dimensão futura, que ele poderia ser

atualizado em outro processo de desenvolvimento teórico. Daí que o crítico que critica

não observa que sua observação crítica não pode observar criticamente. Por isso a

costumeira vinculação entre Jakobs e Luhmann constitui a principal justificativa para esta

pesquisa.

5 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 175. 6 Em Ein Gespräch mit Herr Professor Dr. Günther Jakobs [Uma entrevista com o Senhor Dr. Professor

Günther Jakobs], realizada em 2008 para a Erste europäische Internetzeitschrift für

Rechtsgeschichte [Primeira revista digital europeia de história do direito]. [tradução livre do alemão].

Disponível em http://www.forhistiur.de/es/2008-10-schmoeckel-von-mayenburg/ (acesso em 13/10/2014).

4

Vale a pena notar que para o penalista alemão a teoria do direito penal seria

caracterizada pela incorporação da ambivalência, de tal forma que aquele que não suporta

as tensões que gera o ambivalente não deveria ocupar-se da teoria do direito penal7. Ora,

é curioso observar como a ambivalência também está presente na própria recepção crítica

à teoria de Jakobs, já que é possível notar uma “escola de Jakobs”, com força

principalmente em Bonn (Alemanha), na Espanha e em alguns países da América Latina,

e uma verdadeira rejeição às propostas deste autor, notadamente na Alemanha e em outros

países europeus. A resistência à sua teoria decorre, em grande medida, da originalidade e

ruptura que seu pensamento representa: a ideia de que o direito penal não existe para

proteger bens jurídicos, mas para salvaguardar a vigência das “normas fundamentais da

sociedade”, aquelas que constituiriam sua “identidade normativa”, articulada com uma

teoria da imputação pessoal, e não subjetiva, distancia-se da ideia dominante que vê na

proteção subsidiária de bens jurídicos por meio da imputação individualizadora o

fundamento de legitimação do direito penal.

Mas, apesar de toda a complexidade observada no “funcionalismo radical”, grande

parte das críticas doutrinárias sequer contextualizam os escritos de Jakobs, como já

destacado. Isso poderia sugerir a noção de desenvolvimento retilíneo desta construção

teórica, o que seria um tremendo engano, já que podem ser observadas três fases em sua

teoria da pena que, consequentemente, podem trazer alterações para a teoria da

imputação8. Mais importante ainda é destacar que as passagens de uma fase para a outra

não são harmoniosas. Esta advertência é fundamental para que algumas “análises”, como

aquela que sustenta não existir nenhuma evolução “em um pensamento que

paulatinamente se pauta pela progressiva exclusão de pessoas”9 possam ser devidamente

problematizadas.

Por falar no conceito de “pessoa”, outra questão desconcertante na teoria de

Jakobs refere-se ao fato de que tal conceito, assim como os de “ação” e “culpabilidade”,

derivam diretamente da função da pena por ele atribuída, que guarda íntima relação com

a ideia de fidelidade ao direito e violação de deveres como elementos a partir dos quais a

pena é estabelecida. Por isso Jakobs resume toda a sua construção da seguinte forma: “do

que se trata é exclusivamente de alcançar um entendimento acerca do que é um grau

7 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Civitas: Madrid, 2003, p.

31. 8 Não à toa o primeiro tópico do Tratado de Jakobs refere-se, justamente, ao conceito de pena. 9 BUSATO, Paulo César. Direito penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 784.

5

suficiente de fidelidade ao ordenamento jurídico e de quanto este falta; com este único

objetivo constroem-se os conceitos”10.

No entanto, em que pese a fidelidade ao ordenamento jurídico ser uma das

principais distinções utilizada pelo penalista alemão, é importante dividi-la

analiticamente em duas frentes: de um lado, enquanto manifestação negativa (falta de

fidelidade ao direito), ou seja, fato delitivo que contraria as expectativas normativas

essenciais à sociedade, tal como entende Jakobs e, de outro, enquanto objetivo da pena,

no sentido de contribuição para que este fim de psicologia social seja alcançado. A

diferenciação é importante pois nem sempre Jakobs aborda a segunda como consequência

necessária da primeira, isto é, em diversos escritos que integram a chamada segunda fase,

a resposta à falta de fidelidade ao Direito não possui qualquer finalidade psicossocial,

estando alocada somente na dimensão significativo-comunicativa, como será

demonstrado.

Deve-se atentar também para um tempero especial que alimenta inúmeras

discussões, qual seja o caráter ambíguo da linguagem utilizada por Jakobs. Em alguns

escritos os termos são apresentados em formato descritivo11 e, em outros, com marcantes

conotações normativas12. Tratar-se-ia de mera descrição? Ou de proposições normativas

que defendem um novo modelo de direito penal? O fato de Jakobs alterar radicalmente (e

contraditoriamente) seu conceito de prevenção geral positiva, principalmente a partir de

1998, não joga a favor da interpretação pela normatividade de seus escritos?

O penalista de Bonn chega a argumentar em diversas oportunidades que sua

proposta seria somente uma descrição13, postura que não é observada em escritos mais

recentes. Enquanto o próprio autor não esclarece de uma vez por todas as dúvidas, parte-

se aqui do seguinte entendimento: a utilização da linguagem normativa, típica da terceira

fase, começa a aparecer quando Jakobs sustenta a necessidade de materialização da pena

enquanto confirmação real da ordem social perturbada pelo fato delitivo. Se este era

compreendido na segunda fase desde uma dimensão significativo-comunicativa, a partir

10 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Civitas: Madrid, 2003,

p.11 [tradução livre do espanhol]. 11 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 45. 12 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 141; JAKOBS.

Günther. Direito penal do inimigo. Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012,

p. 40. 13 JAKOBS, Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal.

Madrid: Civitas, 1997, p. 95, 388; JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003,

p. 45; JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 174.

6

do final da década de 90 Jakobs passará a compreender que o delito não só comunica

algo, mas realiza uma transformação na sociedade (objetivação do significado). Para que

haja uma resposta satisfatória, o mero juízo de culpabilidade não seria suficiente: a pena,

primeiramente como privação dos meios de desenvolvimento do autor e, depois, como

dor penal, deverá, então, ser executada14.

Isso somente demonstra uma vez mais a importância de se considerar as fases de

Jakobs no processo de (re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal. E

aqui acrescenta-se: isso deve ser feito analisando-se o tipo de apropriação que é feita da

teoria dos sistemas sociais autopoiéticos de Luhmann. Como já destacado, considerar este

movimento é especialmente relevante devido à articulação entre “elementos

permanentes”, “elementos de condensação” e “material de estímulo”, já que uma eventual

desconsideração da tensão existente entre eles bloquearia a reflexão acerca da

possibilidade de que algum “material de estímulo” renegado possa ser reconsiderado no

interior do próprio projeto com fins de desenvolvimento crítico. Uma vez que a sequência

das fases de Jakobs é conflituosa, quais resultados poderiam ser observados se o “material

de estímulo” luhmanniano fosse (re)selecionado e estabilizado enquanto “elemento

permanente”?

Vale a pena especificar um pouco mais o caminho geral apresentado logo no

início: se por um lado é certo que Luhmann não elaborou uma teoria do direito, e sim uma

teoria da sociedade, por outro não resta dúvidas de que esta teoria serviu como base para

o desenvolvimento da teoria de Jakobs. Mas de que forma o transporte de conceitos

sociológicos para a dogmática jurídico-penal foi feito? Certamente desde uma recepção

“positiva”, já que grande parte da doutrina, em que pese não discutir se houve alguma

alteração de significado no transporte de conceitos do sistema científico para o sistema

jurídico-penal, é taxativa ao sentenciar a influência que Luhmann teve no pensamento de

Jakobs. Ora, o principal problema decorrente deste déficit analítico, para além do

ocultamento da potencialidade crítica da teoria luhmanniana ausente em Jakobs, está em

não perceber que esse “material de estímulo” também foi recepcionado de forma

“negativa”, principalmente devido a duas críticas que Jakobs dirige a Luhmann e que

14 JAKOBS, Günther La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 42. Ver também JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p.

141. Para uma análise sobre a linguagem normativa nos textos que abordam o chamado Direito penal do

inimigo, ver MELIÁ, Manuel Cancio. De novo: “Direito Penal” do Inimigo?, em JAKOBS.

Günther. Direito penal do inimigo. Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012,

p. 90-91, nota 113.

7

servirão de base para suas reflexões sobre o papel desempenhado pela economia na

sociedade atual. Dessa forma, a falta de atenção às estas críticas bloqueia o

desenvolvimento da hipótese de pesquisa deste trabalho. E por que isso ocorre?

Como será demonstrado, em alguns escritos das chamadas “segunda fase” e

“ponte para a terceira fase”, Jakobs estuda a preponderância do sistema econômico e sua

força para exigir que outros sistemas defendam a base cognitiva da configuração social,

afastando-se de Luhmann (não integralmente), em um raciocínio que articula as críticas

que ele faz, em um primeiro momento, ao conceito de comunicação e, posteriormente, ao

conceito de acoplamento estrutural15. No entanto, após salientar sua já destacada “adesão”

à teoria dos sistemas sociais16 em um texto que integra a ponte para a terceira fase, Jakobs

passa a defender a necessidade de salvaguarda cognitiva da configuração social baseando-

se em Luhmann17 e ignorando o argumento do predomínio da economia.

No entanto, valendo-se da linguagem luhmanniana, poder-se-ia considerar os

textos da segunda fase não como descrições neutras18, mas como reflexão do sistema

jurídico-penal que condensa os elementos necessários para operacionalizar a construção

da sua realidade. Se por um lado Jakobs dá cores pessoais a alguns conceitos

luhmannianos para realizar esta descrição, principalmente ao apresentar o delito enquanto

defraudação das expectativas normativas estáveis e essenciais à sociedade, sendo função

do direito penal defender a identidade social, algo não muito distante daquilo que

Alessandro Baratta caracterizava como “ideologia da defesa social”19, por outro uma

leitura mais atenta às premissas da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos permitiria

não só questionar o significado dado pelo penalista de Bonn aos conceitos do sociólogo

de Bielefeld, mas também traçar um novo mapa teórico: uma vez que as descrições

luhmannianas (heterodescrições) observam aspectos não observáveis pela semântica

interna dos sistemas (autodescrições), revelando assim que as condensações de sentido

15 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 58, nota 84 e JAKOBS,

Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em GÓMEZ JARA-

DÍEZ, Carlos (Coord.). Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación.Colômbia: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 213-214, nota 11; JAKOBS, Günther.

Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la

configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 68. 16 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 175. 17 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 140, nota 141. 18 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 45. 19 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 41-42.

8

construídas são fruto de uma processo seletivo, isto é, constituem-se como uma

possibilidade entre outras, então a repressão da contingência ocultada na realidade

produzida da defesa da sociedade como função do direito penal poderia ser observada e,

assim, criticada e desenvolvida. Isso destaque-se, poderia ser feito mesmo a partir de

Jakobs, que é possível considerar suas reflexões como observações internas do direito

penal. O penalista de Bonn observa o direito penal no interior do direito penal, e isso não

impede que um novo estímulo luhmanniano potencialize criticamente suas descrições.

Daí a já mencionada hipótese da pesquisa, aqui mais detalhada: o radicalismo

construtivista luhmanniano ignorado por Jakobs em escritos da segunda fase e da ponte

para a terceira fase poderia potencializá-los criticamente, isto é, irritar produtivamente as

pretensões reflexivas que são produzidas no interior do sistema jurídico-penal, o que

poderia surtir efeitos no Tratado (como a retirada dos efeitos psicossociais, por exemplo)

e servir como base para o questionamento dos avanços normativos típicos da terceira fase

que desembocam no “Direito penal do inimigo”. Essa interpretação regressiva, que será

detalhadamente explorada, poderia então abrir espaço para o desenvolvimento de uma

nova agenda de pesquisa tanto para a dogmática jurídico-penal quanto para a criminologia

crítica, especialmente interessada na desconstrução dos discursos de legitimação do

sistema jurídico-penal.

Dessa forma, a pesquisa inicia com uma aproximação à evolução da proposta

teórica de Jakobs. Após breve demonstração de suas fases no que se refere à função da

pena, serão apresentadas as principais repercussões críticas a respeito da presença

luhmanniana no chamado “funcionalismo radical”, enfatizando-se ao final que nenhuma

delas observa o potencial crítico inserido no construtivismo radical enquanto crítica à

distinção sujeito/objeto. Dando seguimento, a forma como Jakobs apropria-se da teoria

dos sistemas autopoiéticos (elementos de condensação) em cada uma dessas fases será

então tematizada, momento em que também serão apresentados os elementos

permanentes que sintetizam o pensamento do penalista de Bonn e as duas críticas que ele

faz à teoria luhmanniana.

Já o segundo capítulo começa com uma aproximação à teoria dos sistemas

autopoiéticos por meio da apresentação contextualizada de seus principais conceitos. Para

tanto, a demonstração do radicalismo epistemológico e sociológico da teoria luhmanniana

e a consequente observação de sua potencialidade crítica serão feitas a partir da análise

das principais semânticas sociais que bloqueiam, segundo Luhmann, uma adequada

descrição da sociedade moderna. Levantado este material, será abordado o tema da

9

exclusão social, momento em que a possibilidade de uma interpretação da sociedade

moderna que articule o arsenal teórico luhmanniano com o pensamento marxista será

destacada. Por fim, será objeto de estudo a forma como o Direito é compreendido por

Luhmann, desde suas primeiras formulações até a incorporação do conceito de

autopoiese, dando-se especial destaque aos temas referentes à função do direito, o

conceito de norma jurídica e a relação entre autodescrições e heterodescrições.

Por sua vez, o terceiro capítulo está dividido em duas partes. Na primeira a

pesquisa até então realizada passará por um teste de produtividade, em que se analisará a

capacidade de três estudos (respectivamente, de Juan Garcia Amado, Bernardo Feijoo

Sánchez e Mariana Thorstensen Possas) que questionam a relação entre Jakobs e

Luhmann contribuírem para hipótese da presente pesquisa. No entanto, verificar-se-á que

esses estudos não são suficientes, os dois primeiros por sequer considerarem a capacidade

crítica da teoria luhmanniana, e o terceiro por não explorá-la devidamente, já que ignora

a sua manifestação nas diversas fases de Jakobs. Feito este teste, o material compilado no

capítulo anterior servirá como base para a crítica da presença de Luhmann em Jakobs, tal

como apresentada no primeiro capítulo. Desta análise chegar-se-á à primeira proposta de

conclusão parcial: de que o radicalismo do arsenal teórico de Luhmann não é tematizado

nem por Jakobs, nem pela crítica, nem pela crítica da crítica, podendo contribuir para uma

interpretação regressiva no interor do pensamento de Jakobs que permita uma nova

agenda de pesquisa para a dogmática jurídico-penal.

Feito isso, a segunda parte do terceiro capítulo explorará os traços gerais de uma

possível articulação entre criminologia crítica e teoria dos sistemas sociais, indagando

primeiramente se esta poderia criticar todos os princípios da ideologia da defesa social,

premissa das escolas clássica e positiva. Feito mais este teste de produtividade, que

poderia indicar um contribuição significativa para o pensamento criminológico

(manifestamente caracterizado por abordagens heterogêneas) ao apresentar uma única

teoria geral da sociedade como ponto de partida para uma sociologia da punição,

questionar-se-á se os problemas fundamentais que deram origem à “nova criminologia”

permitem uma aproximação mais estreita à teoria luhmanniana, momento em que serão

destacados alguns bloqueios epistemológicos relevantes. No entanto, após a discussão

dos problemas referentes à capacidade crítica da criminologia crítica, será enfatizada uma

possível permeabilidade desta à teoria luhmanniana, manifestada por David Garland que,

no entanto, não é desenvolvida pelo autor. Assim, por fim serão apresentados dois estudos

que buscam demonstrar a potencialidade crítica que a teoria de Luhmann poderia dar à

10

criminologia crítica. Com isso chegar-se-á à segunda proposta de conclusão parcial, qual

seja a possibilidade da teoria (crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos também poder

contribuir para uma nova agenda de pesquisa no âmbito da criminologia crítica.

Finalmente, na conclusão serão colocadas algumas aproximações que podem ser

desenvolvidas em cada uma das áreas citadas, discutindo-se a possibilidade da retomada

do projeto de construção de um novo modelo integrado de ciência penal20. Ou seja busca-

se aqui demonstrar como o ponto de chegada de Jakobs não dialoga com o “material de

estímulo” luhmanniano, e como o desenvolvimento crítico deste pode contribuir para

novas reflexões tanto no âmbito da direito penal quanto no âmbito da criminologia. Para

além de Jakobs a partir de um outro Luhmann: este é o objetivo geral da pesquisa.

20 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 155.

11

I CAPÍTULO – Orientando observações sobre a presença de Luhmann em Jakobs

1. Uma aproximação à evolução do pensamento de Jakobs

A proposta teórica de Jakobs é uma alternativa à teoria do bem jurídico que “ainda

está por ser verdadeiramente construída”21. Como salientam Manuel Cancio Meliá e

Bernardo Feijoo Sánchez, não é possível compreender a dimensão do aporte teórico de

Jakobs se não se leva em consideração a evolução das ciências sociais e, em particular,

“alguns dos aspectos da teoria da sociedade de Luhmann”22. Também Peñaranda Ramos

destaca que a influência de Luhmann em Jakobs seria observável em diversos aspectos,

desde a compreensão da sociedade em termos comunicativos, até a construção conceitual

da norma como expectativa de conduta contrafaticamente estabilizada, que terá como

consequência para a descrição da função da pena e, também, para a construção das

categorias da teoria do delito, notadamente no âmbito da culpabilidade23. Por dimensão

do aporte teórico deve-se compreender aquele desenvolvimento do projeto de

(re)normatização dos conceitos jurídico-penais com o propósito de orientá-los à função

que corresponde ao direito penal na sociedade moderna.

A chave para compreender o início da proposta teórica de Jakobs está na

percepção de que a dogmática jurídico-penal não seria mais capaz de descrever a

complexidade atual da sociedade e suas relações com o direito penal. Por isso afirmou-se

que o penalista de Bonn está preocupado em reaproximar direito penal e estrutura social.

Não à toa Jakobs escreve, no prólogo a Teoria funcional da pena e da culpabilidade, em

2007, que é necessário estudar o direito em sua dimensão social (enquanto estrutura

social), e não em sua dimensão subjetiva24, criticando as recentes investigações

neurológicas por desconsiderarem que também o mundo social oferece orientação para

os sujeitos. Daí sua assertiva diante do embate entre causalidade e livre arbítrio: “a

21 SCHÜNEMANN, Bernd. O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites

constitucionais e da interpretação dos tipos, em GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem

jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 56. 22 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernardo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La

teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal:

significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 17 [tradução livre do espanhol]. 23 PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Sobre la influencia del funcionalismo y la teoría de sistemas en las

actuales concepciones de la pena y del delito, em JARA DÍEZ, Carlos Gomes (Org.) Teoría de sistemas y

derecho penal. Fundamentos y posibilidades de aplicación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia,

2007, p. 268-269. 24 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernando Feijoo (Ed.). Teoría funcional de la pena y de la

culpabilidad. Madrid: Civitas, 2008, p. 13 [tradução livre do espanhol].

12

competência da pessoa é o sinalagma de sua liberdade de conduta”25. Isso significa que,

no âmbito jurídico, não é possível analisar a situação subjetiva individual capaz de

exonerar ou não o autor responsável tendo como suporte sua psicologia individual, sendo

por isso necessário ponderar essa situação em direito26.

Neste contexto, Jakobs constrói uma teoria da imputação articulada à função

desempenhada pelo direito penal na sociedade, qual seja a estabilização de suas normas

– expectativas normativas – essenciais (identidade social). O delito não é mais abordado

a partir de dados ontológicos, nem depende de estados psíquicos ou intencionais do

indivíduo, passando a ser compreendido objetivamente, enquanto significado construído

desde uma perspectiva social27.

O apego à cientificidade do direito penal enquanto estudo do direito penal tal como

ele se apresenta na sociedade, e não como gostaríamos que o fosse, norteia o prólogo ao O

direito penal como disciplina científica, de 2007, em que Jakobs critica propostas

científicas que partem de um ponto de partida pessoal para analisar a realidade do

ordenamento jurídico-penal28. Vale notar que esse tipo de postura, inserida num contexto

que enfatiza os limites da própria compreensão científica do Direito, seria o que ele

denomina de humanismo científico29.

Dessa forma, tal como coloca Marta Machado, pode-se dizer que existem duas

questões fundamentais que Jakobs observa no debate contemporâneo: o excesso de

subjetivação presente na dogmática jurídico-penal e as tentativas de definição do ilícito a

25 Idem [tradução livre do espanhol]. 26 Idem. Um bom exemplo disso pode ser encontrado já em 1993, no artigo O princípio de culpabilidade,

quando Jakobs relaciona culpabilidade e livre arbítrio da seguinte forma: “a função do princípio de

culpabilidade é independente da decisão que se tome a respeito da questão do livre arbítrio; nem sequer

depende de que tenha sentido levantar esta questão. A culpabilidade é falta de fidelidade ao Direito

manifestada. A culpabilidade formal pressupõe que o sujeito competente sequer pode ser representado

como pessoa, isto é, como titular de direitos e destinatário de obrigações. Há culpabilidade material

enquanto não existam alternativas plausíveis à ordem concreta, por tanto, enquanto não exista outra via que

aquela de presumir a autodefinição dos sujeitos submetidos à norma como membros desta ordem. É certo

que a culpabilidade está relacionada com a liberdade, mas não com a liberdade de vontade, com o livre

arbítrio, mas com a liberdade de autoadministrar-se, isto é, de administrar a cabeça e o âmbito de

organização próprios”. Ver JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 392

[tradução livre do espanhol]. 27 Segundo Marta Machado, “o injusto se apresenta quando o autor realiza um comportamento que deve ser

entendido como ação executiva de um ilícito, não só de acordo com seu ponto de vista, mas deve ser

comunicativamente relevante segundo o contexto em que se desenvolve o fenômeno social juridicamente

regulado”. Em MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de

Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado. USP, 2007, p. 123. 28 JAKOBS, Günther. El derecho penal como disciplina científica. Madrid: Civitas, 2008. 29 JAKOBS, Günther. Ciencia del Derecho: técnica o humanistica?. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1996, p. 30 [tradução livre do espanhol].

13

partir da noção de causalidade concreta30. A primeira será abordada por Jakobs a partir

da ideia de papel social do cidadão, por meio da qual será estabelecido o alcance do dever

de cada um. Já a segunda será trabalhada em termos comunicativos, no sentido de que em

uma sociedade complexa não existiriam somente vínculos decorrentes de relações

empíricas de causalidade. Outras espécies de causação do resultado, e mesmo

comportamentos que independem de um resultado seriam considerados ilícitos na

sociedade atual.

Uma boa maneira de entender como a ideia de imputação de condutas pela

violação de deveres relaciona-se com essas duas questões está na discussão da

“responsabilidade pelo produto” decorrente do caso Lederspray, em que um produto para

limpeza de peles produziu efeitos lesivos aos consumidores. Marta Machado salienta que

o julgamento, que terminou sem uma clara explicação de como o produto relacionava-se

com as lesões, evidenciou não só a futura notoriedade dos crimes comissivos por omissão,

mas o caráter normativo da causalidade jurídica31 que, como causalidade imputada,

caminhava em direção à ideia de violação de deveres, e não mais à proteção de bens

jurídicos. Trata-se de um movimento que, nas palavras de Klaus Günther, caminha em

direção ao “delito de omissão imprudente como novo paradigma do conceito de delito”32.

Como afirma a autora brasileira, “boa parte da polêmica em torno do caso deu-se por ter

o Tribunal mexido exatamente no que se considerava esse pressuposto da imputação: a

“certeza” do nexo de causalidade empírico”33, ainda que o novo critério de causalidade

pudesse ser, eventualmente, mais plausível, como defende Lothar Kuhlen34.

30 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado. USP, 2007, p. 118. 31 Em que pese a discussão filosófica e científica a respeito da causalidade, a inserção dessas considerações

no âmbito penal sempre restou prejudicada. Diante da decidibilidade do Direito, não resta dúvidas que a

causalidade sempre é imputada, e por isso contingente. Apesar das reflexões de Hans Kelsen sobre o tema

no artigo Causalidade e imputação, o reconhecimento desta característica da causalidade jurídica na seara

penal ainda está por vir. Para uma análise sobre a relação entre causalidade, generalizações e “verdades

jurídicas”, ver MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de

Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado. USP, 2007, p. 93-101. 32 GÜNTHER, Klaus. De la vulneración de un derecho a la infracción de un deber, em ROMEO

CASABONA, Carlos María (Dir.) La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Editorial

Comares, 2000, p. 502, organizado pelo Instituto de Ciências Criminais de Frankfurt [tradução livre do

espanhol]. 33 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese de doutorado. USP, 2007, p. 88. 34 KUHLEN, Lothar. Necesidad y límites de la responsabilidad penal por el producto. ADPCP, LV, 2002,

p. 67-90. Necessário lembrar, entretanto, que Kuhlen vê com bons olhos esta alteração no entendimento da

causalidade, principalmente em razão dos “delitos cumulativos”, termo por ele criado para legitimar a

resposta penal diante da lesão de bens jurídicos supra-individuais, notavelmente no âmbito ambiental.

14

Dessa forma, a definição jurídico-penal de delito até então assentada no conceito

de causalidade foi nuclearmente abalada35, de tal maneira que a semântica social

tradicional que pretendia a construção de um conceito material de delito ancorado no

juízo de lesividade a bens jurídicos mostrava-se cada vez mais incapaz de acompanhar as

modificações estruturais do sistema jurídico-penal. É dizer: a dogmática jurídico-penal

tradicional, ao não levar em consideração o contexto social e se enlaçar nas premissas

contratualistas do liberalismo clássico, tornava-se incapaz de descrever o funcionamento

do direito penal. É exatamente este já mencionado descompasso entre semântica social e

estrutura social que Jakobs percebe, articulando-o criticamente à excessiva subjetivação

do injusto presente no finalismo, que, segundo ele, desconsiderava a dimensão social do

injusto.

Isso significa que foi justamente um dos alunos mais brilhantes de Hans Welzel

que propôs uma nova sistematização da teoria do direito penal, colocando em evidência

a pergunta pela forma como se imputa (comunicativamente) a violação de deveres

(determinado pelo papel social das pessoas e pelas expectativas correspondentes) para a

proteção de “identidade normativa”, utilizando alguns aspectos da teoria dos sistemas

sociais autopoiéticos de Luhmann como ponte para o desenvolvimento deste projeto.

Neste novo modelo, a ideia de proteção subsidiária de bens jurídicos é substituída

pela ideia de proteção da vigência da norma36. Mas como isso é feito? Jakobs discute a

chamada legitimação material do Direito penal por meio da proteção de bens jurídicos

citando seu mestre Welzel, para quem “o bem jurídico tornou-se um autêntico Proteu, que

imediatamente se metamorfoseia em outra coisa nas mãos que acreditam tê-lo”37. Já em

seu Tratado, Jakobs vê nas normas não referidas a bens jurídicos a constatação de que no

direito vigente diversos conteúdos normativos não podem ser explicados buscando-se a

finalidade da norma apenas na proteção do bem jurídico38. Após mencionar alguns

exemplos, como a proibição de maus tratos contra os animais, ultraje a confissões

35 Para uma análise entre crise da causalidade e responsabilidade ambiental solidária a partir do conceito de

cúpula, ver TEUBNER, Günther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicapa: Editora Unimep,

2005, p. 189-232. 36 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 159 e ss. 37 WELZEL, Hans. ZStW 58, p. 491 ss, 509. Apud JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do

injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: DelRey, 2009, p. 65. 38 Segundo Jakobs, “A equiparação entre finalidade da norma e proteção do bem jurídico ou entre crime e

lesão do bem jurídico fracassa principalmente no caso de crimes com infração de um dever funcional

proveniente de competência institucional”. Ver JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do

injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: DelRey, 2009, p. 71.

15

religiosas, exibicionismo e provocação de escândalo público, salienta que alguns desses

crimes até podem ser harmonizados com a teoria do bem jurídico “interpretando-os como

crimes de perigo extremamente abstrato que penalizam agressões simbólicas a bens

nomináveis”39.

Aqui Jakobs faz duas objeções à teoria do bem jurídico: ela não demonstra porque

o bem deve ser assegurado pelo direito penal, e, diante da constatação de que mesmo os

bens penalmente reconhecidos não gozam de proteção absoluta (na medida em que na

sociedade atual existe um sacrifício de bens para possibilitar o contato social autorizado),

ela também não esclarece quais seriam esses contatos sociais autorizados40. Se

no Tratado essas reflexões levam à conclusão de que o bem jurídico-penal é a eficácia

fática das normas que garantem que se pode esperar o respeito aos bens jurídicos41, em O

que é protegido pelo Direito Penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? o raciocínio,

de forma geral, permanece o mesmo: o direito penal garantiria não a subsistência dos bens

em si mesma, mas a proteção de bens contra determinadas agressões de pessoas. Daí a

afirmação de que “o Direito não é um muro de proteção que é erigido em volta dos bens,

e sim a estrutura da relação entre pessoas”42.

Essas breves considerações buscam somente enfatizar que a compreensão

adequada de um pensamento que propõe uma alteração radical depende da compreensão

do contexto do autor que esboçou aquele pensamento. A tentativa de Kant em conduzir a

filosofia ao “caminho seguro” da ciência, questionando os limites da razão pura teórica e

prática, fez da Crítica da razão pura um “tratado acerca do método”43, e o prefácio à

segunda edição, de 1787, foi fundamental para uma “clareza maior”44 de seus

pensamentos. A substituição feita por Welzel do relativismo valorativo e do subjetivismo

metodológico do neokantismo pelo objetivismo metodológico e suas estruturas lógico-

objetivas consolidou o finalismo não como uma doutrina da ação penal final, já presente

em Edmund Mezger, mas como verdadeiro giro metodológico onde a ação final e a

culpabilidade como reprovabilidade do autor por poder atuar de outra forma são

consequências desta alteração metodológica. Em Welzel, o objeto – a natureza ontológica

39 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

DelRey, 2009, p. 73-74. 40 Ibidem, p. 75-77. 41 Ibidem, p. 78. 42 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 161. 43 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 23 (BXXII). 44 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 41.

16

e pré-jurídica das coisas – determina o próprio método, contradizendo a tese neokantiana

de que o método determina o conhecimento. Esta compreensão é importante para que o

entendimento acerca do finalismo não seja uma afirmação sobre um mero deslocamento,

sobre o posicionamento do dolo no tipo, e mesmo Welzel teve que esclarecer a origem de

suas reflexões para evitar equívocos interpretativos no prólogo à 4ª edição do O novo

sistema jurídico-penal45, em 1960. Da mesma forma, a compreensão do sistema penal

proposto por Jakobs não pode ficar refém da afirmação de que o direito penal protege a

vigência da norma e não bens jurídicos, nem da simples contraposição entre

“funcionalismo radical”, representado por Jakobs, e “funcionalismo moderado”,

representado por Claus Roxin. Como já destacado, essas classificações não permitem

observar as especificidades das descrições de Jakobs, isto é, seus “elementos

permanentes”, nem possibilitam um questionamento crítico acerca da forma como eles se

constituíram a partir do material de estímulo luhmanniano.

Por outro lado, a mencionada exposição sucinta da repercussão geral doutrinária

referente à premissa luhmanniana presente em Jakobs não pode construir sentido crítico

sem uma prévia elucidação a respeito das próprias fases e teses do autor. Daí a

importância de se começar a construir uma narrativa sobre o sistema penal de Jakobs “a

partir dele mesmo”. Neste sentido, a exposição das fases de Jakobs, notadamente a

variação de seu entendimento acerca da função da pena, é fundamental para a

compreensão de sua teoria da imputação, uma vez que “a função da imputação resulta da

função da pena”46. Remeter a este estudo preliminar, além de necessário para o

esclarecimento das questões que serão levantadas ao longo da pesquisa, isto é, a

contraposição entre os “elementos permanentes” e o “material de estímulo”, é também

um exercício de prudência.

1.1. As fases de Jakobs

Discípulo de Welzel, desde a década de 60 Jakobs contribui para a discussão da

ciência penal por meio da construção de um sistema de direito penal inovador. Em que

45 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal. Uma introdução à doutrina da ação finalista. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 11. Isso não significa que as explicações dadas por Welzel para

rechaçar a interpretação de seu giro objetivista como consequência da ontologia de Hartmann não possam

ser discutidas. Para uma análise dessas questões, ver PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del

derecho penal. Montevideo-Buenos Aires, BdeF, 2003, p. 230. 46 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p. 185.

17

pese a inegável influência de seu mestre, sua proposta teórica assenta-se “sobre

fundamentos metódicos totalmente diferentes aos do finalismo”47. Após defender sua tese

de doutorado em 1967, Concurso de crimes de homicídio com crimes de lesão corporal,

habilita-se em 1971 como professor de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia do

Direito, tendo como base o trabalho Estudos sobre delito culposo de resultado, e em 1983

é publicada sua grande obra, Direito Penal, Parte Geral. Fundamentos e teoria da

imputação, com uma segunda edição em 1991.

Sua contribuição, entretanto, não para por aí. Antes mesmo do Tratado é

publicado Culpabilidade e prevenção, de 1976, que apresenta um conceito de

culpabilidade já distinto da doutrina majoritária, além das primeiras formulações sobre a

prevenção geral positiva. Em 1992 é editado o O conceito jurídico-penal de ação e, em

1993, também é publicado o artigo O princípio da culpabilidade. O famoso Norma,

Pessoa, Sociedade, já na terceira edição (2008), foi publicado pela primeira vez na

Alemanha pela editora Dunckler & Humbold em 1997. Dentre os escritos recentes, A

pena estatal: significado e finalidade, de 2004, Terroristas como pessoas no direito?, de

2005, e Coação e personalidade. Reflexões sobre uma teoria das medidas de coação

complementárias à pena, de 2009, devem ser destacados, já que neles Jakobs manifesta-

se detalhadamente sobre o chamado “Direito penal do inimigo”.

Seria possível traçar uma linha comum que articulasse todos esses escritos? Essa

problemática diz respeito às fases de Jakobs que, entretanto, inserem-se dentro de um só

processo: o de (re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal por meio da

missão social do direito penal. Apesar das constantes variações, como será demonstrado,

entende-se aqui que os caminhos percorridos por Jakobs durante este processo possuem

um material de estímulo comum, qual seja a macrossociologia de Luhmann: a

compreensão do delito como perturbação da expectativas normativas juridicamente

garantidas, posteriormente compreendidas como identidade da sociedade, dentre outros

entendimentos, orienta o penalista de Bonn ao longo de mais de quatro décadas. No

entanto, antes de se observar como esta premissa, enquanto material de estímulo,

transforma-se em elemento permanente, é necessário compreender ainda que de forma

geral qual seria a especificidade de cada fase.

47 GONZÁLES, Carlos S., MELIÁ, Manuel C., PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Consideraciones sobre

la teoría de la imputación de Günther Jakobs, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid:

Civitas, 1997, p. 17 [tradução livre do espanhol].

18

Para tanto, a motivação de nosso autor merece destaque, e isso está relacionado

com a pergunta de como se iniciou o chamado processo de (re)normatização da dogmática

jurídico-penal de acordo com a função do Direito penal. Um ponto de partida fundamental

para a compreensão do sistema de direito penal de Jakobs está no artigo Comportamento

evitável e sistema de direito penal, de 1974. Logo no início o penalista de Bonn demonstra

a articulação entre a teoria da ação final de seu mestre, Welzel, com a cibernética. Após

salientar que a especificidade do finalismo não está na busca por pressupostos da

imputação, e sim em sua considerável coerência sistemática, Jakobs afirma que criticará

e desenvolverá o sistema finalista, fundamentando sua proposta em quatro teses: (1) o

conceito de comportamento correspondente à função da norma é derivado do conceito

cibernético de evitabilidade; (2) este conceito de comportamento, por si só, não permite

a sistematização do injusto; (3) a culpabilidade formal é determinada pelo conceito de

comportamento evitável; (4) a medida de evitabilidade determina o limite superior da

culpabilidade jurídica pelo fato48. Para a articulação dessas teses Jakobs parte da ideia de

que “a norma tem efeito através da motivação”49, ou seja, a existência de um

comportamento contrário à norma evidencia que a norma não constituiu um motivo

suficiente, premissa que também estará presente em textos posteriores.

Essas primeiras reflexões constituem o material bruto a partir do qual Jakobs

questiona a forma como se imputa responsabilidade jurídico-penal a alguém na sociedade

atual, procurando aproximar direito penal e estruturas sociais. Isto porque, no

entendimento de Jakobs, não seria mais possível desenvolver dogmaticamente um

modelo de Direito penal a partir de um conceito de indivíduo prévio à própria sociedade,

nem seria mais possível sustentar, em uma sociedade pluralista, que o Direito penal

protege um mínimo ético50. Já foi ressaltado que todas essas questões, incluindo aqui a

discussão acerca da causalidade empírica para a definição o injusto e a excessiva

48 JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Editorial Civitas: Madrid, 1997, p. 148 [tradução livre do

espanhol]. 49 Idem [tradução livre do espanhol]. Trata-se da adesão de Jakobs à chamada “teoria da motivação”,

posteriormente desenvolvida no Tratado. 50 A crítica, aqui, está claramente dirigida à Welzel, para quem o Direito penal tem como missão proteger

os valores ético-sociais elementares da sociedade. O primeiro item abordado por Welzel em

seu Tratado refere-se à função ético-social do Direito penal, onde estabelece que a missão deste seria

proteger os valores elementares da vida em comunidade. No que tange à relação entre proteção desses

valores e proteção de bens jurídicos, afirma: "A missão do Direito Penal consiste na proteção dos valores

elementares de consciência, de caráter ético-social e somente por inclusão a proteção de bens jurídicos

particulares". Consequentemente, para Welzel, "missão do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos

mediante a proteção dos valores elementares da ação ético-social". Ver WELZEL, Hans. Derecho Penal

Alemán. Chile: Editora Juridica de Chile, 1976, p. 15-16 [tradução livre do espanhol].

19

subjetivação presente neste, fundamentais para o desenvolvimento da teoria da imputação

de Jakobs em todos os aspectos (comportamento do sujeito, violação normativa e

culpabilidade), estão intimamente relacionadas com a função da pena, sendo neste âmbito

que Jakobs altera seu entendimento.

Neste contexto, é importante compreender que as três fases da teoria da pena de

Jakobs estão relacionadas com três significados distintos da chamada prevenção geral

positiva, que por sua vez estão relacionados com três diferentes funções da pena. Isso

significa que, apesar de continuar usando este termo, o significado deste é alterado

substancialmente por Jakobs ao longo dos anos51.

Aqui considera-se a primeira fase tal como colocada por Manuel Cancio Meliá e

Bernardo Feijoo Sánchez (discípulos do penalista alemão), que a apresentam a partir de

uma concepção que compreende a pena como “mecanismo simbólico de influência

(psicológica) nos membros da sociedade”52. Neste período – que tem Culpabilidade e

Prevenção (1976) como marco – a pena está associada à busca de fins cognitivos, sendo

importante tanto o exercício de fidelidade ao direito quanto a necessidade de preservação

da confiança na norma. Como salienta Marta Machado, neste momento esses dois

aspectos aparecem praticamente superpostos no conceito de prevenção geral positiva53.

Isto fica evidente quando Jakobs sustenta, de um lado, que a determinação da

culpabilidade depende da necessidade de punir para confirmar a obrigatoriedade do

ordenamento frente ao cidadão fiel ao direito54, e que a prevenção geral positiva se dá

como exercício de fidelidade para o direito55, e, de outro, que a culpabilidade determinada

51 Carlos Gómez-Jara Díez sustenta que “uma forma de explicar a variação substancial que existe entre a

concepção inicial e a defendida na atualidade, consiste em destacar que as primeiras reflexões que Jakobs

efetuou a este respeito estavam fortemente orientadas para a denominada “teoria do conflito”. Com efeito,

a necessidade social de atribuição do conflito e a possibilidade de processá-lo de forma alternativa eram o

leitmotiv inicial desta abordagem. Isso constituía uma excelente descrição externa do fenômeno penal; mas

faltava uma legitimação que o justificasse, assinalava a crítica. Sem embargo, neste, como em outros temas,

a progressão conceitual de Jakobs foi desde uma descrição o mais ajustada possível, à uma certa

legitimação”. Ver GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Culpabilidad y pena en una teoría constructivista del

derecho-penal. Perú: Ara Editores, 2007, p. 59 [tradução livre do espanhol]. 52 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernarndo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La

teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal:

significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 28 [tradução livre do espanhol]. 53 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 170. No mesmo sentido,

GONZÁLES, Carlos S., MELIÁ, Manuel C., PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Consideraciones sobre la

teoría de la imputación de Günther Jakobs, e, JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid:

Civitas, 1997, p. 18 [tradução livre do espanhol]. 54 JAKOBS, Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal.

Madrid: Civitas, 1997, p. 78 [tradução livre do espanhol]. 55 Ibidem, p. 79 [tradução livre do espanhol].

20

a partir da finalidade preventivo-geral relaciona-se com a preservação da confiança na

norma56. No entanto, é importante destacar que a relação entre culpabilidade e falta de

fidelidade ao direito já está presente em escritos anteriores. Assim, em O delito

imprudente, de 1974, Jakobs salienta que a culpabilidade seria a falta de fidelidade ao

direito57, e articulando o já mencionado conceito cibernético de evitabilidade com a teoria

da motivação, sustenta em Comportamento evitável e sistema de direito penal, também

de 1974, o mesmo argumento58. Também deve ser ressaltado que é nessa fase que

observa-se uma estreita proximidade entre Jakobs e Welzel. Segundo Marta Machado, o

penalista de Bonn admite que suas primeiras reflexões sobre a prevenção geral positiva

se aproximam da concepção de Welzel “sendo possível traçar um paralelo entre a ideia

de “fidelidade ao Direito”, de Jakobs, e os “valores positivos de ação”, de Welzel”59.

Como será destacado, o próprio penalista de Bonn criticará essas construções teóricas

devido à este alinhamento.

Essas oscilações entre fidelidade ao direito e confiança na norma, em que pese

estarem intimamente relacionadas, são esclarecidas na década de 80. É no Tratado que a

teoria da prevenção geral positiva é aprimorada. Antes de demonstrar como isso é

apresentado na obra mais famosa de Jakobs, é interessante notar como o próprio autor

apresenta suas considerações nos prólogos à 1ª e 2ª edição. Em 1983, no prólogo à 1ª

edição, Jakobs também inicia aludindo a Welzel, concordando com o princípio de que o

direito penal deve assegurar os valores de ação ético-sociais60. Em que pese esta

proximidade teórica, o desenvolvimento desta ideia ocorrerá por métodos alheios à

compreensão finalista da estrutura final da ação humana. Jakobs enfatiza isso ao

considerar que a missão da dogmática penal está no desenvolvimento de proposições

necessárias para reagir de modo comunicativo ante o delito, que também será

compreendido como ato com significado (ato com conteúdo expressivo). Assim, “da

56 Ibidem, p. 98 [tradução livre do espanhol]. 57 JAKOBS, Günther. El delito imprudente, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid:

Civitas, 1997, p. 169 [tradução livre do espanhol]. 58 JAKOBS, Günther. Comportamiento evitable y sistema del derecho penal, em JAKOBS,

Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 158 [tradução livre do espanhol]. 59 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 172. No mesmo sentido, Manuel

Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez, em MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernarndo

Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio

preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 30-

31 [tradução livre do espanhol]. 60 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição.

Madrid: Marcial Pons, 1997, p. IX [tradução livre do espanhol].

21

mesma forma que uma lesão externa é a manifestação da vulneração da norma, também

a pena é a manifestação na qual tem lugar a estabilização da norma”61.

Esta alteração interpretativa, apesar de manter-se como objetiva – no sentido de

que o objeto determinante do método não é mais representado pelas estruturas lógico-

objetivas, mas pela missão social do direito penal – altera profundamente a compreensão

dos conceitos jurídico-penais. Consequentemente, Jakobs aprofunda aquilo que já havia

desenvolvido na década de 70, enfatizando que conceitos como os de culpabilidade e ação

perdem a essência ontológica atribuída pelo finalismo, de tal forma que não se poderia

dizer nada a respeito de conceitos como os de causalidade, poder, capacidade e

culpabilidade sem se considerar a missão do direito penal62. Ou seja, ao estabelecer como

premissa que o sistema jurídico-penal será desenvolvido não a partir de essências

observáveis nas estruturas lógico-objetivas, mas a partir da missão do Direito penal por

ele atribuída, isso conduz a uma (re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-

penal. Ora, o conceito de sujeito, por exemplo, não será visto como aquele que pode

impedir ou ocasionar um acontecimento, mas aquele que poderá ser responsável por

este63. Jakobs enfatiza que este modelo busca aproximar a semântica social da estrutura

social, como já destacado: “os esforços orientam-se para um Direito penal dentro de uma

sociedade de estrutura dada, sem que evidentemente haja que renunciar a formular

aspirações frente à realidade”64.

A preocupação com essa alteração metodológica orientará Jakobs em todos os

seus estudos posteriores, prosseguindo seu projeto ininterruptamente. Isso fica claro

quando enfatiza, no prólogo à 2ª edição, em 1991, a continuidade de sua pesquisa,

salientando que o programa da primeira edição foi continuado sem modificações: “o

mundo conceitual jurídico-penal deve organizar-se de acordo com a missão social do

Direito penal e não conforme a dados prévios naturais ou de qualquer outra classe alheios

à sociedade”65.

Neste período, é fundamental demonstrar como é apresentada a função da pena.

Estará ela associada aos efeitos de psicologia social presentes na chamada primeira fase?

61 Idem [tradução livre do espanhol]. 62 Idem [tradução livre do espanhol]. 63 Ibidem, p. IX-X [tradução livre do espanhol]. 64 Idem [tradução livre do espanhol]. Apesar dessa profunda alteração metodológica, é importante notar

que em nenhum momento Jakobs pretende dar uma resposta definitiva, admitindo que a chamada missão

do Direito penal não permite o estabelecimento definitivo das proposições dogmáticas. Ver Ibidem, p. X

[tradução livre do espanhol]. 65 Ibidem, p. VII [tradução livre do espanhol]

22

A característica fundamental da segunda fase do pensamento de Jakobs está na ênfase66

na compreensão do significado da violação normativa e da pena e do aspecto

comunicativo que as relaciona, além da desconsideração gradual dos efeitos de

psicologia social no interior do conceito de prevenção geral positiva. No Tratado, por

exemplo, observa-se a preponderância da dimensão significativo-comunicativa quando

afirma que tanto a violação normativa quanto a pena estão no plano do significado, e não

das consequências externas do comportamento67. Por outro lado, também é possível notar

neste texto uma persistência (ainda que em menor medida quando comparado com os

escritos da década de 70) dos efeitos de psicologia social, já que Jakobs sustenta que “a

função da pena é a preservação da norma enquanto modelo de orientação para contatos

sociais”68, de tal forma que a prevenção geral positiva ocorreria por meio do

reconhecimento normativo, resultado de três expedientes: i) exercitar a confiança

normativa; ii) exercitar a fidelidade jurídica; e iii) exercitar a aceitação das consequências.

Neste momento, o destaque dado à confiança normativa não parece relegar as

relações de psicologia social entre autor potencial e norma jurídico-penal a um segundo

plano69, razão pela qual pode-se compreender o Tratado como ponte entre a primeira

fase e a segunda fase, já que nesta será observada uma crítica à presença desses elementos

na teoria da pena. Mas, por hora, o que Jakobs apresenta como característica secundária

da pena é sua capacidade de impressionar o indivíduo punido ou terceiros para que se

abstenham de praticar crimes, de tal forma que efeitos desse tipo são causados não pelo

reconhecimento da norma, mas pelo temor, sendo, portanto “efeitos complementares da

pena que podem ser desejados, mas não é função da pena provocá-los”70.

66 Trata-se de uma ênfase pois o aspecto significativo já aparece em Culpabilidade e Prevenção, sem bem

que de forma marginal, no contexto da discussão de incapazes. Neste sentido, JAKOBS,

Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas,

1997, p. 92. 67 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p. 26. 68 Ibidem, p. 27. 69 Neste sentido, também Marta Machado. Em MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à

imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese

(doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, 2007, p. 172. Em sentido contrário, afirmando que Jakobs realça somente o primeiro efeito –

exercício de confiança na norma – deixando em segundo plano a ideia de fidelidade ao Direito, Carlos

Gonzáles, Manuel Cancio Meliá e Enrique Peñaranda Ramos, em GONZÁLES, Carlos S., MELIÁ, Manuel

C., PEÑARANDA RAMOS, Enrique.Consideraciones sobre la teoría de la imputación de Günther Jakobs,

e, JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 19 [tradução livre do espanhol].

Aqui defende-se uma apresentação das fases de Jakobs um pouco distinta, mas substancialmente próxima

àquela apresentada por Marta Machado. Como será demonstrado, serão introduzidas duas pontes, a primeira

levando à segunda fase e a segunda levando à terceira fase. 70 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p. 34.

23

Este raciocínio também está presente em um artigo de 1989, intitulado Sobre o

tratamento dos defeitos volitivos e dos defeitos cognitivos. Aqui a compreensão da função

da pena como manutenção da norma enquanto modelo de orientação social é apresentada

de forma um pouco diferente: a pena tem como fim manter a vigência da norma, e este

seria o sentido da prevenção geral positiva71. Começa aqui a ênfase na ideia de proteção

da vigência da norma, que na década seguinte será desenvolvida a tal ponto que toda a

ideia de prevenção se resumirá a isso. É interessante notar, neste momento, que os fins

cognitivos ainda estão presentes, se bem que cada vez mais de forma marginal. Em que

pese Jakobs afirmar que a pena dirige-se ao cidadão fiel ao Direito, e repetir aqueles três

efeitos já apresentados no Tratado, referentes àquilo que denominou de prevenção geral

por meio do exercício no reconhecimento da norma, o autor salienta que o conteúdo da

pena não tem relação com a ideia de que o autor não volte a delinquir, nem com a ideia

de que ninguém venha a delinquir no futuro, mas sim “unicamente que é correto confiar

na vigência da norma”72.

A ênfase nos aspecto comunicativo aparece com mais vigor no prólogo de A

imputação objetiva em direito penal, de 1994, no qual Jakobs caracteriza o

comportamento jurídico-penalmente relevante não como aquele que lesiona ou coloca em

risco bens jurídicos (que também aconteceria em casos de catástrofes naturais), mas

aquele que possui como significado um esboço de mundo contrário àquele da sociedade73.

Após adiantar que os fundamentos da interpretação que estabelecem o que significa um

determinado comportamento constituem o objeto da teoria da imputação objetiva, Jakobs

salienta que o mundo social é ordenado de forma normativa, com base em competências,

de tal forma que o significado de um comportamento perigoso depende de seu contexto.

Com isso Jakobs procura delimitar o comportamento socialmente adequado e o

comportamento socialmente inadequado, tirando como consequência o tipo de

comportamento que se exige em cada contexto de uma pessoa. Assim, “se a pessoa não

cumpre com essa exigência, seu comportamento tem um significado delitivo”74.

A dimensão significativo-comunicativa e desconsideração dos efeitos de psicologia

social no interior da prevenção geral positiva, associadas à ideia cada vez mais frequente

71 JAKOBS, Günther. Sobre el tratamiento de los defectos volitivos y de los defectos cognitivos, em

JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 127. 72 Ibidem, p. 128 [tradução livre do espanhol]. 73 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en derecho penal. Bogotá: Universidad Externado de

Colombia, 2004, p. 13 [tradução livre do espanhol]. 74 Ibidem, p. 14 [tradução livre do espanhol].

24

de proteção da identidade normativa da sociedade (derivada de certas expectativas

normativas) como prestação do Direito penal ficam mais evidentes num dos textos mais

importantes deste período: Sociedade, norma e pessoa em uma teoria de um direito penal

funcional, de 1996, texto que altera algumas premissas presentes em Culpabilidade e

Prevenção (1976) e que ainda apareciam no Tratado (1983) e em Sobre o tratamento dos

defeitos volitivos e dos defeitos cognitivos (1989) 75. Aqui Jakobs apresenta o que entende

por “funcionalismo”76, e sustenta que o direito penal “está orientado a garantir a

identidade normativa, a garantir a constituição da sociedade”77, de tal maneira que uma

relação racional entre delito e pena só seria possível a partir de uma compreensão

comunicativa do fato criminoso, compreendido como uma afirmação dotada de um

significado específico – a contradição da norma – e da pena, também compreendida como

uma afirmação dotada de um significado próprio – resposta que confirma a norma78. Na

medida em que a sociedade é compreendida como um contexto de comunicação79, o delito

é visto como falha de comunicação, de tal forma que a pena seria não somente um meio

para manter a identidade social, mas constituiria sua própria manutenção. Assim,

independentemente dos efeitos de psicologia social – como a fidelidade ao direito – a

pena já significaria uma autocomprovação da sociedade80. Jakobs chega mesmo a dizer

que os estudos empíricos sobre a prevenção geral positiva dizem respeito ao entorno da

teoria, e não ao núcleo, que estaria preocupado com o restabelecimento pelo Direito penal

no plano da comunicação da vigência perturbada da norma81. O que importa notar é que

esta função do Direito penal – a confirmação da identidade da sociedade – revela a

identificação feita por Jakobs entre ordem social e ordem normativa. Mas como isso é

elaborado teoricamente?

Esta particular articulação entre direito penal e sociedade só é possível mediante

a compreensão da identidade social por meio de normas. Em um texto de 1994, intitulado

75 Segundo Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez, “os elementos que poderiam se chamar mais

psicologicistas, com o exercício na fidelidade ao Direito, têm uns vinte anos depois praticamente somente

um valor histórico como parte integrante do desenvolvimento de sua concepção funcional da prevenção

geral positiva”, em MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernarndo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar

normas? La teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La

pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 34 [tradução livre do espanhol]. 76 “A partir da perspectiva de que partimos, o funcionalismo jurídico-penal se concebe como aquela teoria

segundo a qual o Direito Penal está orientado a garantir a identidade normativa, a garantir a constituição da

sociedade”. Ver JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 01 77 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 01 78 Ibidem, p. 03. 79 Ibidem, p. 10. 80 Ibidem, p. 04. 81 Ibidem, p. 04-05.

25

Crimes do Estado. Ilegalidade no Estado, Jakobs já enfatizava que “a identidade do

ordenamento se determina, visto em conjunto, mediante normas”82. Ou seja, para o

penalista de Bonn a sociedade seria composta por normas. Se falar sobre sociedade

significa falar de um contexto de comunicação, como já mencionado, este contexto não

pode ser visto como uma constatação de um estado, mas como uma determinada

configuração (contingente) decorrente de certas normas83. Assim, em Sociedade, norma

e pessoa Jakobs desenvolve a ideia de que uma parte dessas normas é dada pelo “mundo

racional”, que por serem asseguradas de modo suficiente pela via cognitiva não

necessitam de uma estabilização especial84. Mas também existem outras normas na

sociedade, que não possuem o que Jakobs chama de “força genuína para auto-estabilizar-

se”85. Estas, por sua vez, estão sujeitas à livre disposição dos homens, o que acarreta um

alto grau de contingência86. E é precisamente neste momento que entra em ação o direito

penal, que deverá garantir a vigência dessas normas87. Diante do projeto de mundo do

infrator da norma, que afirma a não vigência desta, a pena confirma que essa afirmação

do autor é irrelevante, contradizendo seu projeto de mundo e reestabelecendo a vigência

da norma88. Por essa razão Jakobs observa uma dependência recíproca entre ordem social

82 JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal. México: Editoral Porrúa, 2006, p. 575-576 [tradução libre

do español]. No Tratado Jakobs enfatiza que “a contribuição que o Direito Penal presta à manutenção da

congiguração da sociedade e do Estado é a garantía de normas”, sem entretanto aprofundar a compreensão

da sociedade enquanto normas. Ver JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal

e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2009, p. 61. 83 O mesmo argumento é utilizado por Jakobs alguns anos mais tarde, quando afirma que “normas são a

estrutura da sociedade, noutras palavras, a regulamentação do conteúdo das relações entre pessoas, daquilo

que pode ser esperado e cujo não atendimento não tem de ser levado em conta. Como se trata da relação

entre pessoas, e não de um indivíduo e de seus estados psíquicos, as normas são assunto da sociedade, sua

estabilização é estabilização da sociedade”, em JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal:

bens jurídicos ou a vigência da norma? em GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem

jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 174-175. 84 O exemplo utilizado é: “as casas cujos cálculos de estática estejam incorretos desmoronam

imediatamente”, em JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 11-12. 85 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 12. 86 O exemplo utilizado, que evidencia a diferença entre as normas mencionadas, é o seguinte: “ninguém

pode querer seriamente começar a construção de uma casa pelo primeiro piso, mas até mesmo se pode

desejar e evidentemente realizar uma construção num lugar proibido pelo Direito Urbanístico”, em Idem. 87 Em textos posteriores a contraposição entre mundo natural e mundo social será apresentada a partir da

diferenciação entre expectativas cognitivas e expectativas normativas, associadas, respectivamente, à

natureza e ao sentido. Ver JAKOBS, Günther. Imputación jurídico-penal, desarrollo del sistema con base

en las condiciones de la vigencia de la norma, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la

configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004, p. 77-83; JAKOBS, Günther. La

imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em GÓMEZ JARA-DÍEZ, Carlos

(Coord.). Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de aplicación.Colômbia:

Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 209-212; JAKOBS, Günther. Sobre la nornativización de la

dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003, p. 49. 88 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 10-13. Jakobs reelabora essa

distinção entre normas valendo-se da diferenciação luhmanniana entre expectativas cognitivas e normativas

em Cómo protege el Derecho Penal y qué es ló protege? Contradicción y prevención; protección de bienes

26

e ordem normativa, de tal forma que seria impossível separar sociedade e direito penal,

já que este seria uma espécie de cartão de visitas daquela89.

Esses argumentos são enfatizados em Imputação jurídico-penal, desenvolvimento

do direito com base nas condições de vigência da norma, de 1997, no qual Jakobs

reafirma que o Direito penal tem a missão de garantir a identidade da sociedade, já que

esta foi a responsável por diferenciar o sistema penal enquanto sistema parcial,

articulando essa compreensão com a já conhecida tese de que o delito é compreendido

em sua dimensão significativo e a pena enquanto resposta que confirma a configuração

da sociedade. Aqui, uma vez mais, a pena tem uma função sem que tenha que produzir

algo psico-socialmente, razão pela qual enfatiza que tais consequências cognitivas, ainda

que desejadas, não pertencem ao conceito de pena.

É importante destacar que durante este processo de garantia da identidade

normativa Jakobs sustenta não ser possível apreender empiricamente o fenômeno da

confirmação da identidade da sociedade, uma vez que esta não seria uma consequência

do processo, mas seu significado90, concepção que será alterada logo depois nos textos

que serão apresentados como pontes para a terceira fase. De toda, forma, neste momento

“Jakobs tira a sua teoria do fogo cruzado dos questionamentos que atingiram todas as

demais teorias relativas: a não comprovação empírica de seus resultados”91. Se por um

lado a teoria fica a salvo da crítica da falibilidade empírica, por outro a autora destaca que

a proposta do penalista de Bonn será criticada por estar próxima de teorias da

retribuição92. E esta é justamente a interpretação de Manuel Cancio Meliá e Bernardo

Feijoo Sánchez. Após ressaltarem a crescente influência de Hegel nesses escritos –

substituindo o conceito abstrato de Direito hegeliano pelo conceito de identidade da

sociedade –, os penalistas espanhóis consideram que neste período Jakobs desemboca

num conceito funcional de retribuição, que se distingue de teses neoretributivas por uma

“discreta referência ao futuro implícita no conceito de expectativa”93.

jurídicos y protección de la vigencia de la norma, em JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la

dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003, p. 47-74. Voltaremos a essa questão em instantes. 89 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 07. 90 Ibidem, p. 05. 91 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 173. 92 Idem. 93 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernarndo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La

teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal:

significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 39 [tradução livre do espanhol].

27

Mas vale a pena destacar que Marta Machado observa na segunda fase um

potencial inovador para o Direito penal, e procura desassociar essa fase da ideia de

retribuição, afirmando que “a pena responde a uma anterior infração à norma, mas não se

apresenta como a simples retribuição de um mal nem como um imperativo diante de toda

infração da norma, podendo-se dela prescindir em determinadas circunstâncias, em razão

de funcionalidade”94. Assim, a autora enfatiza o aspecto comunicativo da pena,

abstraindo-se de seus fins materiais, de tal forma que quando não for observada qualquer

ameaça à identidade da sociedade, não haveria motivo para se falar em punição95.

Ora, todos esses textos possuem as características distintivas da segunda fase do

pensamento de Jakobs, que acaba por alterar o significado da prevenção geral positiva

presente em Culpabilidade e Prevenção e no Tratado: ênfase na dimensão significativo-

comunicativa e gradual desconsideração dos efeitos de psicologia social. Entretanto, é

importante observar que, assim como o Tratado foi apresentado como ponte para a

segunda fase, alguns textos do final da década de 90 e do início deste século já apresentam

um ou mais elementos (i. compreensão do delito como algo que comunica e altera a

realidade social (objetivização do delito); ii. materialização da pena (violência) enquanto

resposta ao delito; iii. reconsideração dos fins de psicologia social no âmbito da teoria da

pena) que serão amplamente desenvolvidos na terceira fase, principalmente a partir da

articulação destes com a necessidade de dor penal. Por isso eles foram agrupados

enquanto ponte para a terceira fase, com o mero objetivo de evidenciar este

distanciamento progressivo frente aos escritos da segunda fase.

Dos cinco textos que compõem a mencionada ponte, o primeiro deles, Sobre a

teoria da pena, editado em 1998, talvez seja o mais chamativo. Trata-se de um texto

particularmente contraditório, já que o conceito prevenção geral positiva, por um lado, é

conceituado a partir da ênfase na dimensão significativo-comunicativa da pena, seguindo

neste ponto os escritos anteriores. Mas, por outro, também é destacada a necessidade de

materialização da pena como violência responsável pela privação dos meios de interação

94 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 175. 95 Ibidem, p.176. Apesar das diferenças de interpretação, o leitor deve estar atento à ideia geral que orienta

a penalista brasileira: a articulação desse viés comunicativo da pena em Jakobs com a teoria da

responsabilidade no Estado Democrático de Direito de Klaus Günther. Isto será feito através da discussão

da legitimidade das normas jurídico-penais, que em Jakobs é pressuposta. Nesta perspectiva, importa

desenvolver o processo de desmaterialização e desnaturalização dos conteúdos da dogmática jurídico-penal

iniciado por Jakobs por meio da ideia de que caberia aos cidadãos decidirem sobre esses conteúdos em

procedimentos públicos democráticos. Ver Ibidem, p. 315-323.

28

do autor, enquanto objetivação da reação que contradiz a objetivação do autor

manifestada na alteração da realidade pelo fato delitivo, ideia que será amplamente

desenvolvida na terceira fase com a inserção do elemento dor penal96.

Mas, antes de chegar à esta construção teórica, Jakobs reafirma algumas

caraterística da pena apresentadas em escritos anteriores. Assim, o penalista de Bonn

sustenta que a pena pública existe para caracterizar o delito como delito, ou seja, “como

confirmação da configuração normativa concreta da sociedade”97. Se por um lado a

prevenção – que em Sociedade, norma e pessoa aparecia nebulosamente sob a forma de

expectativa – passa a ser referida à chamada erosão da configuração normativa real da

sociedade, por outro Jakobs continua abordando a sociedade a partir da existência de

normas, e esclarece que o comportamento contrário à norma perturba a orientação geral,

na medida em que se duvida do caráter real da sociedade: o comportamento do autor seria

uma afronta a um dever, ou um espaço de liberdade?98

Para o penalista de Bonn, o significado deste comportamento é “não esta

sociedade!”99, e esta seria uma interpretação da sociedade. Neste contexto Jakobs

reafirma que a pena não teria um fim, já que ela mesma constituiria a obtenção de um

fim, qual seja a constatação da realidade da sociedade100. Feita essa retomada, a nova

delimitação do conceito de prevenção geral positiva tem início com mais um diálogo com

Welzel: Jakobs admite que essa teoria – a partir da qual a pena tem como missão

preventiva manter a norma como esquema de orientação, ou seja, tal como apresentada

no Tratado – está próxima da doutrina de seu mestre, que observava na função ético-

social do Direito penal o fortalecimento da atitude favorável ao Direito pelos cidadãos, e

critica essas duas propostas (ou seja, critica sua própria concepção apresentada no

Tratado) por terem uma “configuração demasiadamente psicológica”101, radicalizando as

críticas presentes em seus escritos anteriores e fazendo questão de ressaltar, uma vez mais,

que a pena é um processo de comunicação, razão pelo qual seu conceito deve relacionar-

96 “A necessidade de materialização da pena por meio da violência destoa de todo o caminho que Jakobs

vinha traçando até agora. Todo o seu esforço de fundamentação voltava-se a colocar a pena no plano do

significado, junto com o conceito de infração e de validade. Isso caracterizaria um direito penal que se desse

sob o pressuposto da comunicação pessoal. Meios cognitivos seriam utilizados no âmbito da comunicação

instrumental, em que se têm indivíduos e não pessoas. Depois de todo esse percurso, a argumentação a

partir da pena necessariamente violenta soa como um retrocesso”, em Ibidem, p. 181. 97 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal. Estudios

compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 645 [tradução livre do espanhol]. 98 Ibidem, p. 647 [tradução livre do espanhol]. 99 Ibidem, p. 649 [tradução livre do espanhol]. 100 Ibidem, p. 652 [tradução livre do espanhol]. 101 Ibidem, p. 657 [tradução livre do espanhol].

29

se tão somente com questões de comunicação. Assim, tanto a confiança na norma quanto

a atitude conforme ao Direito (fidelidade) – cruciais em Culpabilidade e prevenção e

mesmo no Tratado – seriam “somente aspectos derivados da realidade da sociedade, que

é a única decisiva”102. Esses efeitos até podem ser desejados, mas neste ponto Jakobs

continua entendendo que os mesmos não integram o conceito de pena, reafirmando assim

seu posicionamento anterior. Dessa forma, a prevenção geral positiva, no que se refere ao

aspecto geral, não está relacionada com os possíveis efeitos em um “grande número de

cabeças”, mas com a garantia da generalidade, isto é, com “a configuração da

comunicação”, assim como o aspecto da prevenção não depende que algo se alcance

através da pena, mas sim com a marginalização do significado do fato que em si mesma

“tem como efeito a vigência da norma”103.

Feitas essas considerações, é importante destacar o caráter contraditório do texto

decorrente da introdução do elemento da materialidade da pena. Ora, se por um lado

Jakobs reafirma os argumentos que enfatizam a compreensão significativo-comunicativa

da pena, responsável pela caracterização abstrata de sua teoria, o penalista de Bonn

também aborda a materialização da sanção penal. Isso se manifesta na ideia da violência

enquanto instrumento de privação dos meios de interação do autor. Analisar essa

construção é importante pois, como será demonstrado, no escritos posteriores Jakobs

recupera-a diversas vezes. O raciocínio é construído da seguinte forma: uma vez que o

infrator da norma, através de sua conduta, não somente estabelece um novo significado,

mas também configura a própria sociedade com este significado, isto é, objetiva-o,

transforma a realidade, então uma mera declaração de que o fato não deveria ter ocorrido

estaria em um nível abaixo de concretização104. Daí que “também a reação ao fato deve

supor uma configuração definitiva”105, de tal forma que a pena possa ser compreendida

como contraposição à realidade construída pela pessoa (formal). Perceba-se a alteração:

o argumento continua sendo de que a pena já constitui a própria reafirmação da sociedade

102 Idem [tradução livre do espanhol]. 103 Ibidem, p. 657-658 [tradução livre do espanhol]. 104 Vale a pena perceber que este raciocínio já está presente no texto de 1997 acima apresentado, ainda que

sem menção à necessidade de objetivação da pena. Ver JAKOBS, Günther. Imputación jurídico-penal,

desarrollo del sistema con base en las condiciones de la vigencia de la norma, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 83. 105 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal. Estudios

compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 652 [tradução livre do espanhol].

30

(a pena não tem um fim, já que constitui ela mesma a obtenção deste fim106), mas esta

confirmação agora é realizada materialmente.

Entretanto, é oportuno realçar que neste momento a teoria da pena de Jakobs,

mesmo admitindo que esta manifesta-se por meio da violência (materialidade)107, ainda

não trata o delinquente como inimigo e, por isso mesmo, o texto foi inserido na ponte

para a terceira fase. Isto fica claro quando o autor afirma que “o infrator da norma deve

seguir sendo uma pessoa”108, já que este “não é inimigo da sociedade (...), mas sim um

membro da sociedade”109, e “a pena não é luta contra um inimigo”110. Por isso Marta

Machado realça que neste texto a sociedade de Jakobs não expulsa nem marginaliza o

autor, mas apenas o significado de sua conduta111, ainda que valendo-se da violência.

Apresentado este texto de transição, cumpre agora observar como o elemento dos

fins cognitivos é gradualmente reintroduzido no âmbito da teoria da pena. Isto será efeito

por meio de um refinamento teórico, transformando a ideia de reafirmação da realidade

social em necessidade de garantia cognitiva dos entes normativos. Mas como isso será

desenvolvido?

Em A ciência do Direito penal frente às exigências do presente, escrito em 1999,

também é possível notar os alicerces já destacado da segunda fase, por exemplo, quando

Jakobs afirma que a pena é marginalização do fato em seu significado lesivo para a norma,

confirmando assim a identidade da sociedade. Entretanto, valendo-se da distinção função

manifesta/função latente, Jakobs considera que “a função manifesta da pena de confirmar

a identidade da sociedade não exclui aceitar como função latente uma direção da

motivação”112. Isso significa que a primeira função possui um efeito confirmante e a

segunda um efeito preventivo. Essa distinção é de suma importância, pois a partir dela

Jakobs voltará a tematizar os fins cognitivos da pena e recuperá a ideia de que esta atua

como privação dos meios de desenvolvimento do autor. Ora, uma vez que a função

manifesta (confirmatória) da pena é direcionada às pessoas (comunicação pessoal), o

dano que ela dirige ao autor (privação dos meios de desenvolvimento) busca somente ser

106 Idem. 107 Ibidem, p. 651. 108 Ibidem, p. 649 [tradução livre do espanhol]. 109 Ibidem, p. 654 [tradução livre do espanhol]. 110 Ibidem, p. 658 [tradução livre do espanhol]. 111 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 179. 112 JAKOBS, Günther La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 41 [tradução livre do espanhol].

31

portador do significado “não se deve aderir ao fato”. Mas, uma vez que o fato delitivo é

mais do que uma afirmação, sendo, como já apresentado, uma objetivação que transforma

a realidade, então o juízo de culpabilidade também deve ser duradouro, objetivado: “a

pena deve ser executada”113. Além disso, Jakobs afirma que e a função latente da pena é

direcionada àqueles que carecem de disposição jurídica, evidenciando a mencionada

reintrodução dos elementos cognitivos com fins de psicologia social no âmbito da teoria

da pena.

Isso fica mais claro quando Jakobs aborda o chamado “Direito penal do

inimigo”114. Assim, afirma que não seria correto deixar a chamada função latente sempre

em segundo plano, salientando que “a pena determinada conforme o Estado de Direito é

insuficiente em alguns âmbitos”115. E então Jakobs sustenta que para que a sociedade

possa se manter e funcionar, é necessário um apoio, uma sedimentação cognitiva, e isso

porque a sociedade não é composta somente por heróis, mas também por pessoas

temerosas. Ou seja: “Além da certeza de que ninguém tem direito a matar deve existir

também a de que com um alto grau de probabilidade ninguém vai matar (...). Não só a

norma precisa de uma sedimentação cognitiva, mas também a pessoa”116. Isto é, aquele

que espera ser tratado como pessoa deve dar uma garantia cognitiva de que se comportará

113 Ibidem, p. 42 [tradução livre do espanhol] (ênfase acrescentada). Perceba-se, aqui, a linguagem

normativa que, como já salientado, será cada vez mais frequente. 114 Entretanto, deve-se atentar para o fato de que a opinião de Jakobs a respeito do “direito penal do inimigo”

não é constante. Em Criminalização ao estado prévio à lesão de um bem jurídico (1985) Jakobs rechaça a

solução do direito penal do inimigo, vendo a antecipação da tutela penal como ilegítima em um Estado de

liberdades. Essa compreensão é modificada a partir do momento em que Jakobs volta a inserir elementos

cognitivos na fundamentação da pena – terceira fase. Segundo Marta Machado, “essa mudança reflete um

retorno às preocupações concretas com a garantia de segurança cognitiva na sociedade” sendo articuladas

vigência da norma e alicerce cognitivo da mesma, em MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à

imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese

(doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, 2007, p. 183. Também Zaffaroni chama a atenção para esta alteração, mas salienta: “cabe esclarecer

que a proposta de Jakobs – a exemplo de muitas anteriores – é da mais absoluta boa fé quanto ao futuro do

Estado constitucional de direito. Afinal, como assinalamos, quando ele propõe habilitar o poder punitivo

sob a forma de mera contenção para não pessoas (entes perigosos), fá-lo imaginando que, desse modo, seria

possível impedir que todo o direito penal fosse contaminado e se afastasse do inimigo e, por conseguinte,

que todo o poder punitivo fosse exercido sem limitações. Ao mesmo tempo, permitiria que ambos

funcionassem no marco do Estado de direito, com o que não se alteraria uma tradição pacífica na doutrina

penal, que sempre o admitiu sem reparar na contradição que comporta”. Ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl.

O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 159. Para uma discussão dessa alteração, ver

GRECO, Luís. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Revista da Faculdade de Direito de Campos,

Jahrgang VI, Nr. 7, 2005. Para uma divisão dos escritos sobre o Direito penal do inimigo, ver MELIÁ,

Manuel Cancio. De novo: “Direito Penal” do Inimigo?, em JAKOBS. Günther. Direito penal do inimigo.

Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 90, nota 112. 115 JAKOBS, Günther La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 43 [tradução livre do espanhol]. 116 Ibidem, p. 43 [tradução livre do espanhol].

32

como pessoa, já que caso essa garantia não seja observada, o Direito penal passará a reagir

ao fato como quem reage a um inimigo117.

Aqui interessa somente destacar como a necessidade de segurança cognitiva118

encontra-se praticamente restrita ao campo do Direito penal do inimigo, como uma

espécie de objetivo principal deste, ao contrário do que ocorre no Direito penal do

cidadão119. Se neste momento ela aparece para distinguir aquele que é reconhecido como

pessoa daquele que é reconhecido como inimigo, não demorará muito para que tais

elementos cognitivos, praticamente ausentes na segunda fase, sejam inseridos na própria

função manifesta da pena.

Nesse sentido, o texto A imputação jurídico-penal e as condições de vigência da

norma, de 2000, ainda apresenta um freio à consideração dos fins de psicologia social no

interior da teoria da pena, já que Jakobs insiste na ideia de que as consequências

psicossociais, como a necessidade de motivação de fidelidade ao direito, não pertencem

ao conceito de pena, razão pela qual afirma que ela cumpre uma função “sem que tenha

que provocar algo psicologicamente”120. Mesmo assim, este texto integra a ponte para a

terceira fase por acrescentar o elemento da necessidade de materialização da pena. Assim,

mesmo insistindo na ideia de que a norma seria a expectativa de que uma pessoa se

comporte de acordo com o dever, e salientando que tanto o comportamento quanto a pena

devem ser compreendidos desde uma perspectiva comunicativa, raciocínios típicos da

segunda fase, Jakobs acrescenta que o fato delitivo objetiva um significado que será

marginalizado por uma afirmação contrária que também será objetivada (pena)121. Ora,

se nos três primeiros textos que compõe a ponte para a terceira fase o tema da necessidade

de materialização da pena é retomado enquanto resposta à objetivação do fato delitivo,

não demorará muito para que o elemento dos fins de psicologia social deixem de ocupar

uma posição secundária.

117 Daí a caracterização do inimigo como aquele que não garante o mínimo de segurança cognitiva de

comportamento pessoal. Ver Ibidem, p. 45 [tradução livre do espanhol]. 118 O fato de que elementos cognitivos também estejam presentes no Tratado demonstra a pertinência de

considerá-lo como ponte entre a primeira e a segunda fase: “é imprescindível que a pena tenha um mínimo

de respaldo cognitivo para a estabilização fática”, apesar de não desenvolver o tema. Ver JAKOBS,

Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey

Editora, 2009, p. 34. 119 JAKOBS, Günther La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 45. 120 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em

GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Colômbia: Universita Externado de Colombia, 2007, p. 208 [tradução livre do espanhol]. 121 Idem.

33

Isso já pode ser observado em Personalidade e exclusão em Direito Penal, de

2001. Por fazer parte da ponte para a terceira fase, não é difícil observar características

típicas da segunda fase, notadamente a ideia de que a pessoa jurídica é uma construção

jurídica. Mas o que interessa aqui é observar que Jakobs, além de voltar a trabalhar com

a ideia de privação dos meios de desenvolvimento do autor, também reintroduz o tema

dos fins de psicologia social na pena. Tal como no artigo de 1998 acima mencionado, o

penalista de Bonn insiste que, apesar do autor penal ter construído um mundo paradoxal,

já que como pessoa esperava-se dele o respeito à norma mas seu ato demonstra que a

mesma não o vinculou, a pena não exclui o autor, já que ela “só tem um significado porque

ele é pessoa”122. Dito isso, como a ideia de reafirmação da realidade social é transformada

em necessidade de garantia cognitiva dos entes normativos?

Após salientar que tanto o Direito quanto as normas precisam de uma segurança

cognitiva, Jakobs desta vez apresenta uma justificativa para tanto, que refere-se à força

da economia123. Assim, a necessidade de salvaguardar cognitivamente a configuração

social seria uma exigência do sistema econômico (e também dos meios de comunicação

em massa), apresentado como “sistema diretor”124 e que tem uma especial atenção para

com a segurança efetiva dos bens. Articula-se, então, busca pelos fins cognitivos com a

reintrodução da necessidade de orientar comportamentos. Em alguns casos, tratar-se-á de

estimular comportamentos, em outros, de desencorajá-los, e, em casos extremos, será

necessário combatê-los125: do Direito penal do cidadão ao Direito penal do inimigo, os

fins de psicologia social voltam à tona.

122 JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de

derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 56 [tradução livre

do espanhol]. 123 Este argumento de fortalecimento da economia será amplamente desenvolvido na análise da presença

de Luhmann nas fases de Jakobs, pois trata-se de uma relação que nasce de algumas críticas feitas pelo

penalista ao sociólogo. Por hora, basta apenas recordar o que foi dito no início deste capítulo: em Sociedade,

norma e pessoa (1996) Jakobs critica o conceito “homogêneo” luhmanniano de comunicação, pois entende

que existiriam dois tipos de comunicação: instrumental e pessoal, sendo que o primeiro, característico da

comunicação econômica, estaria alterando a configuração da sociedade, até então caracterizada pela

comunicação pessoal. Em A ciência do direito penal ante as exigências do presente (1999) Jakobs sustenta

que em caso de dúvida o sistema econômico se impõe frente aos demais. No mesmo ano, em Sobre a

gênesis da obrigação jurídica, Jakobs altera a tese de 1996, e considera que, uma vez que o Estado encontra-

se dependente da economia mundial, esta acaba determinando uma série de deveres, configurando assim as

pessoas. No artigo que está sendo analisado, o penalista expande este último argumento, e considera que a

tutela cognitiva da configuração social é uma exigência do sistema econômico. Como será destacado, em

A imputação jurídico-penal e as condições de vigência da norma (2000) Jakobs criticará o conceito de

acoplamento estrutural de Luhmann, salientando que a economia transforme os demais sistemas sociais em

ambiente óptimo. 124 Ibidem, p. 68. 125 Idem.

34

O último texto que integra a ponte para a terceira fase é O que é protegido pelo

Direito Penal: bens jurídicos ou a vigência da norma?, de 2003, uma espécie de retomada

daqueles três elementos que constituem este período (i. compreensão do delito como algo

que comunica e altera a realidade social (objetivação do delito); ii. materialização da pena

(violência) enquanto resposta ao delito; iii. reconsideração dos fins de psicologia social

no âmbito da teoria da pena). Assim, Jakobs reafirma o argumento de que o

comportamento do autor não só postula uma sociedade diversa, como também dá um

passo no sentido de realizá-la. Dessa forma, “como a comunicação está objetivada num

fato, também o juízo de culpabilidade tem de objetivar-se, e essa objetivação ocorre por

meio da pena”126. Com isso o crime seria a negação da estrutura da sociedade e a pena

(materializada) a confirmação dessa estrutura. E, como destacado, neste contexto

reaparecem os elementos cognitivos para fins de psicologia social. Se anteriormente eles

foram abordados enquanto função latente, notadamente no âmbito do Direito penal do

inimigo, este texto coroa a alteração verificada logo acima: diante da pergunta acerca da

relação entre pena e exercício de fidelidade ao direito, Jakobs sustenta que “tais efeitos,

enquanto funções latentes da pena não podem, de modo algum, ser considerados

secundários. Isso fica em aberto”127. Com isso, o caminho para a terceira fase já está

devidamente sedimentado.

Assim, se num primeiro momento os textos de Jakobs apresentam uma concepção

de prevenção geral positiva acoplada a fins de psicologia social e, num segundo momento,

este conceito baseia-se na dimensão significativo-comunicativa e na crítica a esses efeitos

psicossociais, na terceira fase observa-se uma recognitivização de sua teoria da pena

articulada com a necessidade de materialização da pena enquanto dor penal, trazendo

como consequência um novo significado para a prevenção geral positiva. Essa indício de

alteração pode ser observada no prólogo ao Direito penal do inimigo, escrito em 2003.

Aqui, o estudo das consequências normativas decorrentes do indivíduo que não garante

um comportamento fiel ao direito ganha cada vez mais espaço. A ênfase na orientação de

condutas é retomada quando Jakobs afirma que o vínculo jurídico, se quer realmente

126 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 176. 127 Ibidem, p. 177.

35

existir, deve configurar a sociedade, pois “quando um esquema normativo, por mais

justificado que esteja, não dirige a conduta das pessoas, carece de realidade social”128.

Mas o texto que inaugura essas reviravoltas é Como protege o Direito penal e o

que é que protege? Contradição e prevenção; proteção de bens jurídicos e proteção da

vigência da norma, de 2003. Nele é possível perceber, de um lado, a diferença brutal

frente aos escritos da segunda fase, e de outro, o desenvolvimento da ideia de privação

dos meios de interação do autor observados na ponte para a terceira fase: Jakobs afirma

que o fato (comportamento delitivo do autor) é uma rebelião contra a norma, e que a pena

rechaça essa rebelião. Até aqui, nada manifestamente novo. Mas então acrescenta que “ao

mesmo tempo, mediante a dor que aquela [pena] inflige, se elimina o risco de uma erosão

geral da vigência da norma: isto se chama prevenção geral positiva”129. Em que pese

admitir que é possível uma comunicação que confirme a estrutura normativa da sociedade

sem dor, algo que ele já havia mencionado no último artigo analisado, como destacado,

Jakobs sustenta que uma comunicação desse tipo (meramente denominativa) seria etérea,

já que o fato (comportamento delitivo) não só afirma a não vigência da norma, mas

executa um ato que lesiona a vigência, naquilo que já foi denominado objetivação do

ataque à vigência da norma. Ou seja, trata-se de um argumento de reforço pela dor penal.

Neste contexto, como já se sabe, também é necessário objetivar a resposta que confirma

a vigência da norma, ou seja, a pena. Isto, entretanto, só pode ser feito às custas daquele

que foi responsável pela quebra da identidade normativa da sociedade (pelo desrespeito

à determinada expectativa normativa): o autor130.

Por esta razão não basta que a pena enquanto resposta ao fato delitivo possua o

significado de reafirmação da identidade normativa da sociedade. Ou seja, já não basta a

ênfase na dimensão significativo-comunicativa, tal como nos escritos da segunda fase.

Agora, “também deve-se procurar que não se incremente a probabilidade de posteriores

infrações à norma”131, assertiva que manifesta a reintrodução dos fins de psicologia social

no núcleo da teoria da pena.

128 JAKOBS. Günther. Direito penal do inimigo. Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2012, p. 09. 129 JAKOBS, Günther. Cómo protege el derecho penal y qué es lo que protege? Contradicción y

prevención; protección de bienes jurídicos y protección de la vigencia de la norma, em JAKOBS,

Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003, p. 48 [tradução

livre do espanhol] (ênfase acrescentada). 130 Ibidem, p. 52 [tradução livre do espanhol]. 131 Ibidem, p. 54 [tradução livre do espanhol].

36

Para legitimar este raciocínio Jakobs vale-se da diferenciação entre normas

primárias (dirigidas ao cidadão) e normas secundárias (dirigidas ao juiz), no sentido de

que para a manutenção da ordem social é fundamental não só a sanção frente à infração

da norma, mas também que a norma primária seja respeitada. Jakobs denomina isso de

“vigência direta da norma primária” e afirma que quando esta é levada em conta “a dor

infligida pela pena obtém além de seu significado simbólico um peso quantificável”132,

devendo este peso ser intenso o suficiente para que a culpabilidade apareça como um

saldo de mais desvantagens do que vantagens. E quanta dor penal será necessária?

Somente aquilo que equilibre o que o autor piorou de modo imputável mediante seu fato.

É por isso que Jakobs afirma que a pena compensa o dano produzido pelo autor à vigência

da norma primária. E, quando isto acontece, o comportamento delitivo passa a ser

observado como uma alternativa inaceitável, produzindo assim uma “atitude natural de

fidelidade ao ordenamento jurídico”133.

É a partir dessas reflexões que o significado da prevenção geral positiva

na terceira fase do pensamento de Jakobs pode ser destacado: geral porque destinada a

todos, preventiva por confirmar a atitude de fidelidade ao Direito, e positiva por efetuar

isso mediante um aprendizado desta fidelidade como atitude natural, e não como

intimidação. Este é o chamado giro fático do pensamento de Jakobs: os fins de psicologia-

social voltam à tona, colocando esses textos em contraposição direta àqueles da segunda

fase134, em que todos os conceitos derivavam da dimensão significativo-comunicativa da

norma. Se em 2003 ele aborda a questão da dor penal, mas sem aprofundamentos, em

2004 ele enfrentará a necessidade de fundamentá-la. Essa mudança de posicionamento

manifesta a tentativa de Jakobs de dar resposta às críticas que viam sua teoria

demasiadamente abstrata e sem referência à dimensão empírica. Trata-se de uma

reorientação geral de sua teoria, em que os fins cognitivos, antes secundários e até mesmo

excluídos, voltam ao centro gravitacional135.

132 Ibidem, p. 55 [tradução livre do espanhol]. 133 Ibidem, p. 56 [tradução livre do espanhol]. 134 Segundo Marta Machado, nestes textos da terceira fase “praticamente não há diferença entre o raciocínio

de Jakobs e as ideias que ele tanto criticou em sua segunda fase de efeitos psicossociais da pena. Assim

como a sua formulação primeira sobre a prevenção geral positiva, os efeitos de psicologia social, que devem

ser empiricamente observáveis, voltam a fazer parte da sua definição de pena”, em MACHADO, Marta

Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal

contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, 2007, p. 184. 135 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernarndo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La

teoria funcional de la pena de Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal:

significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 53-54 [tradução livre do espanhol].

37

O principal texto para a compreensão de tudo isso é A pena estatal: significado e

finalidade, que está recheado de linguagem normativa. O prólogo já apresenta as

consideráveis modificações que Jakobs fará em sua teoria, sistematizando e

desenvolvendo aquilo que escrevera um ano antes. O penalista de Bonn inicia com a

apresentação de sua nova premissa, salientando que na vida social nenhum sujeito se

orienta exclusivamente com base no dever ser, mesmo que possua internamente uma

adesão ao ordenamento jurídico. A orientação pelo direito, segundo Jakobs, depende da

atenção à estrutura normativa real da sociedade, em que “real” significa que a estrutura

normativa (o direito) está implantada no ser, não sendo somente postulada. Daí a

conclusão de que “uma expectativa normativa necessita de certa base, de certo apoio

cognitivo para poder gerar orientação real”136. Dito isso, Jakobs esclarece o que se

entende pelo mencionado giro fático de sua teoria, desenvolvendo a tese do delito

enquanto significado e alteração fática rumo à uma nova sociedade. Assim, considera que

o delito não é somente um ataque à uma norma qualquer, mas um ataque à uma norma

que faz parte da realidade da sociedade, razão pela qual o delito produz desorientação em

duas dimensões: primeiramente, ataca o caráter vinculante da norma que expressa a

realidade normativa e, em segundo lugar, perturba a base cognitiva desta norma, já que

demonstra, por meio de seu fato, que o desrespeito à norma deve ser levado em

consideração137. Neste contexto, Jakobs propõe que a pena reaja às duas dimensões: a

primeira reação diz respeito ao significado da pena como contradição ao fato que

estabelece que a norma não estaria vigente (parte simbólica), e a segunda refere-se à

finalidade da pena pelo reestabelecimento da base cognitiva da norma violada, já que a

dor penal transforma e apresenta o fato como obra falida. São essas reflexões que

permitem Jakobs afirmar que “a contradição tem o fim de apoiar a base cognitiva, e na

136 JAKOBS, La pena estatal. Significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 12 [tradução livre do

espanhol]. 137 Carlos Gómez-Jara Díez explica essa construção da seguinte forma: “o autor, mediante seu fato, não

somente significou algo, mas também configurou algo: não somente afirmou que não deve-se respeitar a

vida alheia, mas a destruiu. Se produz assim uma dupla objetivação: uma no plano simbólico de sua conduta

e outra no mundo externo. Vistas assim as coisas, se a pena unicamente permanecesse no plano do

simbolismo comunicativo – é dizer, somente a sentença que simboliza o erro da conduta –, haveria ainda

um déficit de objetivação – somente se haveria produzido a objetivação em uma dimensão –. Por isso, a

pena tem que objetivar nas suas dimensões: plano simbólico e plano físico”. Ver GÓMEZ-JARA DÍEZ,

Carlos. Culpabilidad y pena en una teoría constructivista del derecho-penal. Perú: Ara Editores, 2007, p.

65 [tradução livre do espanhol].

38

medida em que isso resulte imprescindível, também a garantia frente a fatos futuros serve

para alcançar tal fim”138.

Jakobs desenvolverá essas questões no texto, principalmente ao se manifestar

sobre a “realidade do direito”. Ele inicia perguntando por que é necessária a dor penal,

para além da sentença de condenação que, por si só, já se apresenta como contradição ao

delito139. A resposta à pergunta está relacionada com o caráter “real” do direito. Para

Jakobs, o Direito está vigente enquanto consegue dirigir a orientação comunicativa140, de

tal forma que, se um delito não se realizar, seja pela convicção na validade do

ordenamento jurídico, seja pelo medo da pena, ou porque o autor é punido, em todos esses

casos o Direito se realiza141. Ou seja, neste momento Jakobs equipara prevenção do

injusto e reação penal frente ao injusto, sendo ambas partes daquilo que chama de

realidade do Direito142. Entretanto, o penalista de Bonn salienta que, para ser efetivamente

real, a orientação comunicativa jurídica deve valer não só para os delinquentes potenciais,

mas também para as potenciais vítimas. E aqui entra a necessidade de base cognitiva.

Como ele já havia destacado, a consciência de ter direitos não é suficiente para que a

pessoa use esses direitos, e com isso Jakobs fundamenta sua nova tese: a dor penal serve

para salvaguardar cognitivamente a norma; “este é o fim da pena, assim como a

contradição da negação da vigência por parte do delinquente é o seu significado”143.

Com isso o fim do direito penal não está em garantir a segurança completa frente

aos delitos, mas em garantir a vigência do ordenamento jurídico144. Ou seja, a tarefa

primária deste não seria prevenir delitos (tarefa da polícia), e sim reagir frente ao delito

de tal forma que o direito seja “real”, nos moldes aqui apresentados. Com isso Jakobs

pode afirmar seu novo conceito de prevenção geral positiva: preventiva pois se persegue

o fim de manutenção de fidelidade à norma, geral, pois todos são destinatários desta

finalidade, e positiva, pois o que se busca não é a intimidação da generalidade, mas a

manutenção da norma como esquema de orientação145.

138 JAKOBS, La pena estatal. Significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 13 [tradução livre do

espanhol]. 139 Ibidem, p. 135. 140 Ibidem, 2006, p. 138. 141 Ibidem, 2006, p. 138. 142 Ibidem, 2006, p. 139. 143 Ibidem, p. 141 [tradução livre do espanhol]. Jakobs até tenta esclarecer: “Depois do delito não basta

denominar delinquente o autor (...), mas deve-se também tratá-lo como delinquente, para avançar da ideia

até a realização do conceito, mantendo a força de orientação do Direito, sua vigência”, em Ibidem, p. 143

[tradução livre do espanhol]. 144 Ibidem, p. 144. 145 Ibidem, p. 145.

39

É importante notar que a mudança de postura, quando comparado com o

significado da prevenção geral positiva na segunda fase, não passa despercebida por

Jakobs, que salienta na nota 147 que “aqui se pretende corrigir”146, o que fora restringido

– efeitos de psicologia social – em escritos anteriores. Também vale a pena destacar que

esta correção também manifesta uma nova forma de se compreender a relação entre

prevenção geral positiva e prevenção geral negativa. Se em Culpabilidade e Prevenção

Jakobs salienta que a prevenção geral negativa seria uma esperança, um desejo147, e se

no Tratado ela é criticada por negligenciar os danos que o fato ocasiona à ordem social148,

em A pena estatal: significado e finalidade ela aparece incorporada à própria prevenção

geral positiva, manifestando-se ali onde se espera produzir o efeito de fidelidade e

confiança à norma149.

Diante de todas essas alterações não pode passar desapercebido que a terceira

fase do pensamento de Jakobs significa, também, que a junção entre dimensão

significativo-comunicativa e dimensão psico-social por meio da ideia de substrato

cognitivo tem como consequência a perda da coerência de sua teoria. Se na segunda

fase todos os conceitos derivam da mesma premissa, qual seja a dimensão significativo-

comunicativa da pena, na terceira fase este material é recheado com aquelas premissas

que propunham fins de psicologia social, manifestando um sincretismo de premissas que

coloca em xeque a unidade teórica da construção de Jakobs150.

146 Idem [tradução livre do espanhol]. 147 JAKOBS, Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal.

Madrid: Civitas, 1997, p. 79. 148JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p. 44. 149 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 147-148. 150 Essa é a interpretação de Manuel Cancio Meliá e Bernardo Feijoo Sánchez. Para os penalistas espanhóis,

“A troca de orientação se inicia (...) no momento da separação entre elementos de significado e elementos

fáticos referentes à prevenção. Ao sair da latência, as implicações psicológico-sociais de certas funções da

pena, antes secundárias, fazem descer a teoria ao plano dos conflitos aporéticos próprios das teorias da

união. Dito de outro modo: ao introduzir na teoria da pena o elemento corrosivo – embora, claro está, seu

autor o deve estimar uma ampla imprescindibilidade na realidade social real – da cimentação cognitiva, se

dilui a unidade conceitual que caracteriza a teoria de prevenção geral positiva”, em MELIÁ, Manuel Cancio

& SÁNCHEZ, Bernarndo Feijoo. Prevenir riesgos o confirmar normas? La teoria funcional de la pena de

Günther Jakobs. Estudio preliminar, em JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad.

Madrid: Civitas, 2006, p. 59 [tradução livre do espanhol]. No mesmo sentido, Marta Machado salienta que

“na sua segunda fase, prevenção geral positiva coincidia com restabelecimento comunicativo da pena, o

que significava que não havia conflito entre definição de esfera de responsabilidade do autor, culpabilidade

e fins preventivos. Todos os conceitos eram definidos a partir das mesmas premissas: fim de estabilização

comunicativa da norma. Entretanto, na medida em que fins cognitivos entram na definição da pena, o

mecanismo de Jakobs perde em consistência teórica e surge a dificuldade de acomodar todos esses

elementos em um mesmo conceito. Assim, ele basicamente reencontra a dificuldade que já enfrentaram as

teorias unionistas e que ele próprio criticara”, em MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à

imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese

40

Esta situação, entretanto, parece ser o ponto final das fases de Jakobs. No prefácio

à Teoria funcional da pena e da culpabilidade, editado em 2007, Jakobs salienta

novamente a necessidade de fundamentação cognitiva das instituições normativas. Neste

contexto, cada vez mais o penalista de Bonn preocupa-se com o chamado “Direito penal

do inimigo”, articulando sua teoria da imputação com objetivos de segurança decorrentes

do déficit cognitivo observável em alguns indivíduos. Isso fica claro quando considera o

comportamento que as pessoas dirigem à alguém que não consegue demonstrar sua base

cognitiva por um determinado período de tempo constante: “em lugar das expectativas

que se dirigem a uma pessoa aparece a defesa frente a um inimigo”151.

O mesmo raciocínio está presente em Terroristas como pessoas no direito?, em

que afirma: “uma expectativa normativa dirigida para uma determinada pessoa perde sua

capacidade de orientação quando carece do apoio cognitivo prestado por parte desta

pessoa”152. Dessa forma, no âmbito do direito penal do cidadão busca-se manter a

vigência do ordenamento jurídico, enquanto que no âmbito do direito penal do inimigo

busca-se garantir a segurança do ordenamento jurídico. Ou então, como sintetiza Jakobs:

“A função manifesta da pena no Direito Penal do cidadão é a contradição, e no Direito

Penal do inimigo é a eliminação de um perigo”153. Pode-se dizer: um desenvolve-se como

direito penal do fato, e o outro como direito penal do autor.

Das páginas anteriores pode-se construir um mapa geral do pensamento de Jakobs:

a utilização do conceito cibernético de evitabilidade como base para o desenvolvimento

de seu sistema de direito penal nos primeiros escritos; a ênfase em fins cognitivos

(doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, 2007, p. 187. 151 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernando Feijoo (Ed.). Teoría funcional de la pena y de la

culpabilidad. Madrid: Civitas, 2008, p. 15 [tradução libre do espanhol]. 152 JAKOBS, Günther. Direito penal do inimigo. Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2012, p. 57. 153 Idem, p. 47. Fazendo uma balanço das alterações de Jakobs, Marta Machado salienta que o último

desenvolvimento teórico de sua proposta “acaba amarrando novamente imputação a objetivos de segurança.

Se a imputação tinha apenas o sentido sócia de comunicar a responsabilidade individualizada de uma pessoa

por determinado evento, seu próprio sentido comunicativo é fragilizado na medida em que o processo de

imputação deverá agora desaguar necessariamente em privação dos meios de liberdade do autor. Os

pressupostos de sua teoria, em sua segunda fase, na qual a pena é definida apenas pela comunicação e os

efeitos cognitivos estão no âmbito da latência, tornavam essa relação contingente. Ou seja, a imputação não

deveria, necessariamente, desempenhar em uma sociedade o papel de garantia da segurança pública. Abria-

se espaço para se pensar de forma independente essas duas questões”, em Marta Rodrigues de Assis. Do

delito à imputação: a teoria da imputação de Günther Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese

(doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo, 2007, p. 189. Note-se que aqui somente é feita uma outra divisão das fases de Jakobs, colocando-se

duas pontes, uma para a segunda fase, outra para a terceira fase. Especificamente quanto ao tema das

“funções latentes”, na divisão aqui proposta o mesma estaria localizado na ponte para a terceira fase, o que

não impede a concordância com o argumento colocado pela autora.

41

na primeira fase de seu pensamento; a crítica a esses fins e o desenvolvimento da

dimensão significativo-comunicativa do crime e da pena na segunda fase de seu

pensamento; a ênfase na necessidade de materialização da pena como resposta à

objetivação da negação da sociedade; a retomada dos elementos cognitivos com fins de

psicologia social na teoria da pena mediante o argumento de necessidade de alicerce

cognitivo para que as instituições normativas possam orientar comportamento; e a defesa

da dor penal como meio para proporcionar a referida base cognitiva na terceira fase de

seu pensamento.

Em que pese a variação observada, entende-se aqui que a falta de unidade teórica

observada na obra de Jakobs significa justamente a consolidação de alguns “elementos”

como síntese final do pensamento do autor. Dessa forma, pode-se agora observar quais

seriam os já mencionados “elementos permanentes” do pensamento de Jakobs: i)

imputação como processo pessoal de responsabilização; ii) delito como manifestação

comunicativa e material que altera a realidade social; iii) direito penal como responsável

pela defesa da identidade social; e iv) pena como reação comunicativa e material que

garante a base cognitiva da construção social pela orientação de condutas.

São eles que permitem compreender a articulação entre o projeto contínuo de

(re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal e as fases de Jakobs. Se por

um lado já foi sustentado que a teoria de Luhmann está presente em todos esses períodos,

como “material de estímulo”, ainda é necessário analisar o sentido dado por Jakobs aos

conceitos luhmannianos em cada uma das fases. Este passo é fundamental para a

identificação do “material de estímulo” especificamente luhmanniano utilizado ou

renegado para a consolidação dos “elementos permanentes” destacados, pois permitirá

desenvolver a hipótese da pesquisa, qual seja a possibilidade do radicalismo construtivista

luhmanniano ignorado por Jakobs em escritos da segunda fase e da ponte para a terceira

fase possa potencializar criticamente as descrições deste período e desqualificar

teoricamente os avanços normativos típicos da terceira fase, de tal forma que essa

interpretação regressiva poderia, então, abrir espaço para o desenvolvimento de uma nova

agenda de pesquisa tanto para o direito penal quanto para a criminologia crítica.

Entretanto, este estudo de “para além de Jakobs a partir de um outro Luhmann”

correria o risco de ser absolutamente desnecessário caso a doutrina já tenha chegado a um

acordo acerca da produtividade dessa articulação. Assim, ainda é necessário efetuar um

juízo de necessidade sobre esta pesquisa. Isso será feito por meio de um estudo acerca da

repercussão crítica decorrente da presença de Luhmann em Jakobs. Mas vale uma

42

ressalva: com o auxílio dos “postes de iluminação” – a apresentação das fases de Jakobs

–, será relativamente mais fácil orientar-se pelo labirinto de interpretações acerca da

relação entre esses dois autores, já que aqui compactua-se com o mesmo aprendizado de

Michael King quando, ao escrever um artigo sobre as “críticas” feitas à teoria

luhmanniana, dizer ter aprendido que “a forma com que – e a extensão com a qual – ideias

difíceis e complexas se transformam na mão dos intérpretes é per se merecedora de um

novo campo de estudos”154.

1.2. “A presença de Luhmann em Jakobs” pelos outros: repercussão frente

ao “funcionalismo radical”

1.2.1. Uma inovação teórica que nos leva à pergunta pela potencialidade de

Luhmann

O processo de (re)normatização desenvolvido por Jakobs – que ganhou

notoriedade em 1976 com Culpabilidade e Prevenção, amplamente desenvolvido

no Tratado em 1983 e 1991, e lapidado ao longo da década de 90 e do início do século

XXI – foi objeto constante de análises críticas, em sua maior parte depreciativas. Como

já destacado, são raras as tentativas de uma compreensão geral de sua obra, atenta à

variação conceitual que se manifesta em sua teoria da pena. Isso significa que a “análise”

daquilo que Jakobs diz dificilmente estuda o contexto em que Jakobs diz algo. Em larga

medida, o que se observa é uma aproximação crítica parcial, focada em determinado

assunto – imputação objetiva; culpabilidade; tipicidade, função da pena etc. –, sem que a

adequação das formulações teóricas de Jakobs seja questionada a partir das premissas por

ele eleitas.

É curioso que o tom predominantemente negativo das críticas, como será

demonstrado, contrasta com interpretações que veem na proposta de Jakobs um material

bruto – a dimensão significativo-comunicativa da imputação e da pena – que poderia ser

lapidado e, desde que formulado a partir de outras premissas, constituiria uma alternativa

teórica para um Estado Democrático de Direito. Mas como isso é feito? A partir de qual

premissa esta abordagem é construída?

154 KING, Michael. A verdade sobre a autopoiese no direito, em KING, Michael, ROCHA, Leonel Severo;

SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2009, p. 72.

43

Klaus Günther – discípulo de Jürgen Habermas – observa no funcionalismo, de

um modo geral, uma vantagem significativa, qual seja a assunção do caráter fictício da

culpa jurídico-penal. A diferença entre as diversas teorias estaria, então, “entre as que

tomam essa necessidade como um dado”, como na proposta construída em torno da

proteção subsidiária de bens jurídicos (Roxin), e “as que operam com o pressuposto de

que o que é necessário será também decidido politicamente”155, como na proposta que

abdica de definições materiais e valorativas (Jakobs). É a partir da ênfase na dimensão

significativo-comunicativa presente na teoria de Jakobs que Günther desenvolve suas

reflexões.

Para tanto, o autor articula esta dimensão do processo de imputação com a

determinação dos sujeitos responsáveis pela concretização do sentido da pena, dando

especial relevância para a questão da legitimidade das normas penais, tema que é pouco

trabalhado por Jakobs. Entretanto, vale a pena notar que seria possível observar certa

evolução em suas considerações a respeito do tema, já que diferentemente do que afirmara

no Tratado, quando a prevenção geral positiva pressupunha uma ordem social digna dos

custos que são impostos ao violador da norma156, em Sobre a gênesis da obrigação

jurídica sustenta que os cidadãos abandonariam o Estado caso este não fornecesse uma

sobrevivência suficiente157, de tal forma que este conceito serviria de limite para a

distinção entre ordem normativa e ordem coercitiva. Nesta há somente um poder que

busca dirigir os indivíduos por meio do poder, razão pela qual a observação de uma

sequência regular entre conduta e sanção não seria indício de uma ordem normativa, pois

pode ser que se trate tão somente de uma organização coativa, explicável a partir de

preferenciais individuais158. Além disso, também deve-se atentar para o prefácio à edição

brasileira, escrito em 2008, em que Jakobs apresenta uma restrição à imputação legítima,

já que nem toda e qualquer sociedade pode ter suas condições de existência garantidas às

custas dos cidadãos. Nesse sentido, Jakobs deixa claro que esta garantia só é possível

quando estamos diante “de uma sociedade que satisfaça as exigências da modernidade,

155 Conforme explicação de Flávia Püschel e Marta Machado, no Prefácio ao livro que reúne artigos de

Klaus Günther, em MACHADO, Marta R. de Assis & PÜSCHEL, Flavia P. Teoria da responsabilidade

no estado democrático de direito: textos de Klaus Günther. São Paulo: Saraiva, 2009, p. XIII. 156 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

DelRey, 2009, p. 35-36. 157 JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1999, p. 38. 158 Ibidem, p. 40 [tradução livre do espanhol].

44

ou seja, que ofereça, especialmente nos âmbitos da educação, da política e da economia,

chances de participação que possibilitem uma existência livre”159.

De toda forma, é possível dizer que onde Jakobs para, Günther prossegue, pelo

menos até 2005, quando é publicada Culpa e liberdade comunicativa [Schuld und

Kommunikative Freiheit], na medida em que associa a temática da legitimidade das

normas a um processo público (com acesso universal) de formação da vontade e do

direito. Aqui importa o conceito de pessoa deliberativa160 formulado por Günther – e

desenvolvido a partir da ideia de agir comunicativo de Habermas –, por meio do qual são

fundidos os conceitos de cidadão destinatário da norma e cidadão autor da norma.

Com isso observa-se um deslocamento importante: a validade do direito não é

mais observada a partir da aceitação ou não deste pelo cidadão, mas a partir do processo

de produção da norma. Isso significa que a premissa comunicativa de fundo habermasiano

altera substancialmente a lógica normativa da proposta de Jakobs. Dessa forma, o dever

de obediência decorre da legitimidade do processo de criação da norma, e não mais da

aceitação de seu conteúdo. Segundo Marta Machado, “é esse conceito de pessoa de

direito, entendido como jogo de trocas entre cidadão co-legislador e pessoa de direito no

papel de destinatária das normas, que faz a ponte entre imputação e legitimidade”161.

Assim, a imputação só é legítima quando atenta à observação destes dois papéis, ou seja,

só é possível falar em imputação legítima num contexto de democracia deliberativa.

A ideia central dessa inovação teórica parte da premissa de que o cidadão

posicione-se a respeito das condições necessárias para que uma pessoa seja considerada

imputável e culpável. Para que isso ocorra é fundamental que os cidadãos se reconheçam

159 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

DelRey, 2009, p. 673. 160 No artigo Responsabilização na sociedade civil, Günther apresenta o conceito da seguinte forma:

“percebe-se que um falante assume responsabilidade por seus proferimentos quando está disposto a

fundamentar contra críticas a pretensão levantada, quando é capaz de prestar conta de seus proferimentos.

Isso supõe também a capacidade e a disposição para alterar suas próprias preferências sob a influência de

razões e argumentos. É apenas sob a condição de ser responsável por meus proferimentos que posso me

considerar destinatário da obrigação de permitir que as razões que me convenceram tenham efeito

correspondente sobre minha ação. Uma pessoa assim é capaz de agir conforme suas ponderações. É essa

concepção de “pessoa deliberativa” que falante e ouvinte atribuem a si próprios e um ao outro em suas

relações comunicativas. Sobre ela se fundam as concepções de pessoas específicas de cada contexto e que

têm influência sobre a imputação de situações e acontecimentos à responsabilidade individual de uma

pessoa”. Ver MACHADO, Marta R. de Assis & PÜSCHEL, Flavia P. Teoria da responsabilidade no estado

democrático de direito: textos de Klaus Günther. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 16. Para uma exposição mais

detalhada, ver o artigo Qual o conceito de pessoa de que necessita a teoria do discurso do direito? Reflexões

sobre a conexão interna entre pessoa deliberativa, cidadão e pessoa de direito, em Idem, p. 32, com

especial atenção à nota 07. 161 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 318.

45

“mutuamente como pessoas de direito deliberativas livres e iguais”162. Ora, essa inovação

– a determinação dos critérios de imputação pelos cidadãos – só é possível diante da

desmaterialização dos conteúdos do delito, tal como feito por Jakobs, razão pela qual é

razoável dizer que a crítica de Günther à Jakobs, em que pese a censura no que se refere

à questão da legitimidade e sua articulação num Estado Democrático de Direito,

reconhece os importantes passos dados pela teoria da imputação de Jakobs no âmbito da

dogmática penal163.

Aqui somente deve ser destacado que o caminho inovador que leva a teoria de

Jakobs para uma teoria intersubjetiva do direito penal – caminho trilhado por seu aluno

Bernardo Feijoo Sánchez164 – deriva da compreensão do caráter comunicativo tal como

a comunicação é compreendida em Habermas. Mas seria este conceito de comunicação

o único capaz de dar frutos para o desenvolvimento teórico do sistema penal? Se em

Günther não há espaço para Luhmann (o que ficará claro quando a teoria luhmanniana

for apresentada), restaria à teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann algum lugar no

debate contemporâneo crítico acerca da função do direito penal? O que fazer com a

presença luhmanniana na teoria de Jakobs? Ora, se por um lado não há dúvidas de que é

possível continuar desenvolvendo as reflexões de Günther, por outro talvez seja possível

observar uma nova agenda de estudos sobre a questão a partir de Luhmann. Se esta

hipótese for viável, talvez a doutrina nacional e estrangeira já tenha se manifestado a

respeito. As próximas análises não são, evidentemente, exaustivas, e procuram tão

somente demonstrar como a associação entre Jakobs e Luhmann vem sendo construída

pelos intérpretes.

1.3. Uma tensão recorrente: a repercussão da presença luhmanniana em

Jakobs

Alemanha

162 PÜSCHEL, Flávia Portella & MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (Org.). Teoria da

responsabilidade no estado democrático de direito: textos de Klaus Günther. São Paulo: Saraiva, 2009, p.

47-48. 163 MACHADO, Marta Rodrigues de Assis. Do delito à imputação: a teoria da imputação de Günther

Jakobs na dogmática penal contemporânea. Tese (doutorado). Departamento de Filosofia e Teoria do

Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 321-322. 164 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 21-142.

46

Em resenha escrita em 1984, Claus Roxin atribui ao Tratado de Jakobs um papel

fundamental, salientando que este havia condensado a evolução dogmática dos últimos

20 anos, e que a amplitude de sua obra surpreenderia o leitor com uma série de reflexões

originais que antecipariam os próximos 30 anos165. Em que pese este reconhecimento,

quanto mais Jakobs avançou em seu projeto de (re)normatização dos conceitos jurídico-

penais com o propósito de orientá-los à função que corresponde ao direito penal na

sociedade moderna, mais críticas depreciativas surgiram. O próprio Roxin, 20 anos após

a resenha mencionada, rechaça a proposta de Jakobs, já que, para o penalista de Munique,

seria preferível conservar o sistema penal em benefício das pessoas que vivem na

sociedade, e não em benefício do próprio sistema166. Além disso, em 2010167 o penalista

de Munique volta a criticar as teses de seu colega, enfatizando a fusão de premissas

presentes em Jakobs, tais como teoria sistêmica, concepção hegeliana da pena e

considerações de prevenção geral positiva. De forma geral, o desenvolvimento de suas

reflexões sobre a proposta de Jakobs pode ser observado em 2012, quando sustenta que

este vê o fim do direito penal “unicamente na estabilização do conteúdo da norma desde

fundamentos da teoria dos sistemas”168, criticando a ausência de distinção entre injusto e

culpabilidade defendida por Jakobs.

Bernd Schünemann, discípulo de Roxin, também tem algo a dizer sobre as

premissas do chamado “funcionalismo radical”. Apesar das observações destinadas à 1ª

edição doTratado de Jakobs, feitas em 1984, em que critica o conceito de culpabilidade

do penalista de Bonn e o renascimento da teoria da construção dos conceitos do

neokantiano Lask169, Schünemann observa duas vantagens na construção de Jakobs:

primeiramente, Jakobs não cairia em um relativismo axiológico em razão do

reconhecimento da prevenção geral por meio do exercício da fidelidade ao Direito; em

segundo lugar, ao proceder à funcionalização dos conceitos dogmáticos, Jakobs não

165 ROXIN, Claus. NJW, 1984, p. 2270. Apud. RAMOS, Enrique Peñaranda; GONZÁLEZ, Carlos Suárez;

MELIÁ, Manuel Cancio. Um novo sistema do direito penal – Considerações sobre a teoria de Günter

Jakobs, p. 109-110. 166 ROXIN, Claus. Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del Derecho penal?, em

HEFENDEHL, Roland (Ed.). La teoría del bien jurídico. Fundamento de legitimación del derecho penal o

juego de abalorios dogmático?. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 456. 167 ROXIN, Claus. Sobre o recente debate em torno do bem jurídico, em GRECO, Luís & TÓRTIMA,

Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro:

Lumens Juris, 2011, p. 205. 168 ROXIN, Claus. El nuevo desarrollo de la dogmática jurídico-penal en Alemania, 2012, p. 13. Disponível

em www.indret.com (acesso em 13/05/2013). 169 SCHÜNEMANN, Bernd. El sistema moderno del derecho penal. Montevideo-Buenos Aires: Editorial

Bdef, 2012, p. 56-62.

47

perderia contato com a realidade, justamente por apoiar-se nas categorias da sociologia

luhmanniana170. Schünemann chega a afirmar que Jakobs faz uma “paráfrase” da teoria

dos sistemas sociais171, e sustenta que, não sendo mais possível descobrir as autênticas

leis que regem nosso sistema social, então não seria possível derivar da teoria dos sistemas

sociais qualquer decisão sobre a bondade do sistema e sobre as alternativas ao mesmo.

Por esta razão, afirma que a fecundidade da teoria desenvolvida por Luhmann se limitaria,

a curto prazo, à uma crítica ideológica, colocando em evidência o substrato e as

necessárias implicações de determinado sistema. É por esta razão que conclui: “um

princípio normativo derivado da teoria dos sistemas acaba caindo em uma apologia do

sistema de que se trata em cada caso”172. Na década seguinte, em 1996, Schünemann

desenvolve este raciocínio. Após destacar que Jakobs extrai o conteúdo conceitual do

Direito penal exclusivamente a partir das funções deste sistema social, considera que “seu

conceito de Direito Penal se adapta a qualquer política criminal e pode, portanto, assumir

sem problema algum qualquer modernização deste Direito”173. E, em 2008, ao apresentar

suas 33 teses para um “direito penal correto para o século XXI”, retoma sua curiosa

classificação da teoria de Jakobs como “normativismo livre de empirismo”, apresentada

em 2001 em Festschrift für Claus Roxin, salientando a complexa relação entre Luhmann

e Hegel no pensamento de Jakobs174.

Vale a pena notar que Winfried Hassemer, após apresentar algumas reflexões

sobre o conceito de bem jurídico e sua relação com a chamada sociedade do risco, também

salienta que Jakobs constrói sua teoria da prevenção geral positiva influenciado pela

teoria sistêmica de Luhmann, utilizando “para isso a loucura da complexidade social e da

incerteza pessoal”175, tendo como consequência o abandono do caráter liberal do Direito

penal e, dessa forma, sua preocupação em assegurar um mínimo ético, transformando-o

em um instrumento de controle dos problemas sociais ou estatais.

A premissa luhmanniana também é observada por Peter-Alexis Albrecht, que

considera que a chamada prevenção de integração (outra classificação atribuída à teoria

170 Ibidem, p. 62. 171 Ibidem, p. 210. 172 Ibidem, p. 211 [tradução livre do espanhol]. 173 SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-

penal alemana. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996, p. 45-46 [tradução livre do espanhol]. 174 SCHÜNEMANN, Bernd. El proprio sistema de la teoría del delito, 2008, p. 13 [tradução livre do

espanhol]. Disponível em http://www.indret.com/pdf/505.pdf (acesso em 15/06/2013). 175 HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y protección de Biens Jurídicos, em Vários

Autores, Pena y Estado, Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, p. 34. Vale a pena notar, entretanto, a

menção elogiosa a Luhmann em um texto posterior, quando Hassemer o qualifica como “sociólogo

brilhante”, em HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 72.

48

de Jakobs) busca legitimar o sistema jurídico-penal retomando a ideia de Luhmann de

que o Direito seria “um instrumento de estabilização do sistema social, de orientação da

ação e de institucionalização das expectativas. No ponto central está o conceito de

confiança no sistema como uma forma de integração social”176. Albrecht entende que,

nesta perspectiva, há um deslocamento da subjetividade do ser humano para o sistema,

de tal forma que o ser humano não mais seria finalidade e ponto central do Direito,

estando este preocupado em assegurar funções jurídico-penais. Como consequência desta

instrumentalização do homem, a “figura do bode expiatório, conhecida da teoria penal

psicanalítica, renasce claramente, ainda que com outra intenção e na linguagem abstrata

da teoria sistêmica”177.

Fazendo outra leitura, Luis Greco salienta, em um primeiro momento, que Jakobs

funcionaliza, além dos conceitos, o próprio sistema jurídico-penal, tendo como base os

estudos sociológicos de Luhmann178. Mais tarde, ao analisar o conceito de papel em

Jakobs, Greco menciona os méritos da teoria de Jakobs que, dotada de “inegável beleza

e consistência interna”, tem como maior virtude “não consistir ela em nada mais do que

a própria teoria geral da imputação”179, para logo após apresentar sua principal crítica (já

exposta em Das Subkektive in der objektiven Zurechnung: über das „Problem“ des

Sonderwissens, 2003): a falta de clareza de Jakobs a respeito do caráter de sua teoria, é

dizer, “está ele falando de uma função em sentido descritivo (o modo como o direito penal

realmente opera) ou em sentido normativo/prescritivo (aquilo que o direito penal deve

almejar)?”180. Vale a pena destacar que a mesma crítica está presente no artigo Sobre o

chamado direito penal do inimigo, em que Greco, após contextualizar o desenvolvimento

176 ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia. Uma fundamentação para o Direito Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2010, p. 91. 177 Ibidem, p. 93. A mesma crítica em ALBRECHT, Peter-Alexis. El derecho penal en la intervención de

la política populista, em ROMEO CASABONA, Carlos María (Dir.) La insostenible situación del Derecho

Penal. Granada: Editorial Comares, 2000, p. 471. 178 GRECO, Luis. Introdução à dogmática funcionalista do delito. RBCC32, p. 128. 179 GRECO, Luis. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004, p. 38. 180 Idem. Segundo Greco, “como teoria descritiva, a ideia de que o direito penal tem a função de reafirmar

a identidade normativa de uma sociedade é plausível; mas ela não passará de uma teoria entre muitas outras,

e, além disso, será impossível extrair dela quaisquer consequências jurídicas, uma vez que estas são

formuladas sempre em sentido normativo/prescritivo (“A deve ser punido” ... “B não deve ser punido”). Se

a teoria for, porém, compreendida em sentido normativo, então ela perderá a sua plausibilidade e há de

tornar-se falsa. Pois, num Estado de Direito, a identidade normativa de uma sociedade não apresenta valor

qualquer. O que interessa não é se uma sociedade é idêntica a si mesma, e sim se ela consegue garantir o

respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais dos cidadãos. E se o direito penal deve (função,

em sentido normativo) proteger a dignidade humana, os direitos fundamentais etc., ele não protege normas

e sim bens jurídicos. Noutras palavras: não é possível abandonar a ideia da proteção a bens jurídicos como

função (em sentido normativo) do direito penal”, em Ibidem, p. 38-39.

49

do tema no pensamento de Jakobs (passando pelo termo crítico “direito penal do inimigo”

no artigo Criminalização no estado prévio à lesão de bem jurídico, de 1985), pondera

que “em Jakobs tudo depende da premissa normativa oculta de que a “identidade

normativa da sociedade deve ser mantida”, a qual é, no mínimo, bastante questionável”181.

Por fim, é importante notar que Klaus Günther, muito mais atento às premissas de

cada autor no desenvolvimento da sociologia, não cita Luhmann como premissa da

chamada “prevenção integrativa”. Para o discípulo de Habermas, “a teoria da prevenção

integrativa orienta-se sobretudo pela ideia de Durkheim, de que o comportamento

obediente ao direito assenta-se em convicções axiológicas geralmente partilhadas”182,

raciocício que também estará presente em Baratta, como será demonstrado. Neste sentido,

afirma que nas teorias da prevenção geral positiva a pena – entendida como mal – é

reduzida a um meio de comunicação, mas pergunta por que somente a pena deveria ser

responsável por transmitir a mensagem. Seria este déficit de justificação da pena que nos

levaria à busca por alternativas melhores e mais eficazes, uma vez que os homens,

enquanto seres capazes de fazer uso público da razão, não precisariam se dirigir a outros

homens por meio da pena “para que possam perceber que em uma sociedade democrática

e com Estado de Direito deve-se tratar comportamentos desviantes de maneira a respeitar

a dignidade humana”183.

Itália

Na Itália também existem algumas reflexões interessantes sobre a relação entre

Jakobs e Luhmann. Em 1985 é publicado o artigo de Alessandro Baratta, Integração-

Prevenção: uma “nova” fundamentação da pena dentro da teoria sistêmica, em que o

autor italiano discute o Tratado de Jakobs. Segundo Baratta, trata-se de um novo enfoque

“que utiliza o conceito de Luhmann de direito como instrumento de estabilização social,

de orientações das ações e de institucionalização das expectativas”184. Após salientar que

181 GRECO, Luis. Sobre o chamado direito penal do inimigo. Revista da Faculdade de Direito de Campos,

Ano VI, nº 7, 2005, p. 228, disponível

em http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista07/Docente/07.pdf (acesso em 20/07/2013) 182 GÜNTHER, Klaus. Crítica da pena I, em MACHADO, Marta R. de Assis & PÜSCHEL, Flavia

P. Teoria da responsabilidade no estado democrático de direito: textos de Klaus Günther. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 71. 183 Ibidem, p. 73. 184 BARATTA, Alessandro. Integración-Prevención: uma “nueva” fundamenación de la pena dentro de

la teoría sistémica, em Revista Doctrina Penal, ano 8, nº 29, 1985, Buenos Aires, Argentina, p. 9-10

[tradução livre do espanhol].

50

na teoria luhmanniana o sistema mesmo é o centro de subjetividade, anteriormente

localizado no indivíduo, Baratta sustenta que dessa forma o valor fundamental do sistema

jurídico-penal está na sua própria estabilidade, e não no princípio crítico da valoração

ética e política individual e coletiva. Ao analisar a incorporação que Jakobs faz dessas

ideias, Baratta salienta que a teoria da prevenção-integração nasce com Durkheim, e que

na proposta do penalista de Bonn observa-se um “novo” fundamento, qual seja a teoria

sistêmica de Luhmann que, entretanto, acaba repropondo “a concepção durkheimiana,

com toda sua problemática atual e sem inovações substanciais”185. Neste contexto, após

caracterizar a teoria sistêmica como uma das que indicam as condições de estabilização

dos sistemas sociais mediante o direito, o autor italiano afirma que a partir desta

perspectiva a dogmática penal consistiria na reprodução e conservação da realidade,

sendo então um modelo tecnocrático incapaz de articular ciência social e técnica jurídica

desde uma perspectiva crítica186.

Após essas considerações, Baratta faz três “observações internas” à teoria da

prevenção-integração, com o intuito de examinar a consistência quanto ao marco teórico

por ela mesmo adotado, qual seja a teoria sistêmica de Luhmanm. Em primeiro lugar,

Baratta questiona a importância que Jakobs atribui à pena, praticamente desconsiderando

os equivalentes funcionais. Dessa forma, conclui que “dentro de uma concepção sistêmica

são possíveis teorias e técnicas baseadas na alternativa radical ao sistema penal”187. Em

segundo lugar, observa que a teoria da prevenção-integração de Jakobs parece reduzir a

resposta penal a uma “reação sintomatológica aos conflitos, que se realiza exclusivamente

o lugar onde eles se manifestam, e não naquele onde se produzem”188. E pondera que

também neste caso a teoria desenvolvida por Luhmann poderia dar respostas

inovadoras189. Por fim, o penalista italiano sustenta que a teoria da prevenção-integração

“considera somente os eventuais efeitos positivos que o exercício da função penal,

segundo a mesma teoria, para fazer para a integração social e o reestabelecimento da

185 Ibidem, p. 17 [tradução livre do espanhol]. 186 Ibidem, p.19. 187 Idem [tradução livre do espanhol]. É importante notar a nota de rodapé nº 13: “Me refiro, em particular,

à pretensão do método funcionalista, no qual seus sustentadores encontram um dos resultados mais

importantes, de indicar diversas possibilidades de solução funcionalmente equivalentes, a partir de um

problema dado como ponto de referência (por exemplo, a estabilização das expectativas de

comportamento)”. 188 Idem tradução livre do espanhol]. 189 Idem.

51

confiança institucional”190, ignorando assim os efeitos sociais negativos derivados da

atuação do sistema penal.

Outro autor de destaque é Luigi Ferrajoli que, valendo-se das afirmações de

Baratta, também faz suas associações entre Jakobs e Luhmann. Segundo o autor, as

chamadas teorias da prevenção geral positiva confundem direito e moral, de tal forma que

estariam inseridas no contexto do legalismo e do estatalismo ético. Assim, através da ideia

de reforço à fidelidade ao Estado, essas teorias confeririam às penas funções de integração

social, promovendo o conformismo das condutas. Tudo isso seria observável na doutrina

de Jakobs que se inspira na teoria de Luhmann191. Ferrajoli também salienta que, em razão

do entendimento do indivíduo como subsistema psicofísico, essa doutrina seria

“inevitavelmente solidária com modelos de direito penal máximo e ilimitado,

programaticamente indiferentes à tutela dos direitos da pessoa”192. Mas ao contrário de

Baratta, para o penalista italiano a premissa luhmanniana seria um dos principais

problemas, uma vez que postularia o primado do sistema frente à sociedade,

compreendida como ambiente193. Isso porque, segundo Ferrajoli, a teoria de Luhmann

partiria de determinados valores ideológicos, tais como a opção organicista, isto é, “a

concepção dos sistemas políticos como organismos (mesmo não vivos) onde as partes, aí

compreendidos os indivíduos, são subsistemas funcionais e subordinados ao todo”194. Em

decorrência da prevalência do sistema frente ao ambiente, o sistema político seria o

verdadeiro sujeito ativo que conserva-se a si mesmo às custas da sociedade, entendida tão

somente como parte passiva. Por isso Ferrajoli sustenta que em Luhmann estaríamos

diante de uma falácia naturalista, já que sua teoria descritiva do mundo seria a única

190 Ibidem, p. 20. 191 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 256. 192 Idem. Deve ser destacado que Ferrajoli também considera, quando diferencia entre sistemas políticos

que se fundam sobre si mesmos e sistemas políticos que se fundam a partir de suas finalidades sociais, que

“parafraseando a expressão “autopoiesis”, utilizada por Niklas Luhmann para designar a características

autorreferencial que ele associa aos sistemas políticos, podemos chamar autopoiéticas as doutrinas do

primeiro tipo, e heteropoiéticas as doutrinas do segundo. Para as doutrinas autopoiéticas, o Estado é um

fim, e encarna valores ético-políticos de característica suprassocial e supraindividual cuja conservação e

reforço para o direito e os direitos hão de ser funcionalizados. Para as doutrinas heteropoiéticas, ao invés,

o Estado é um meio, legitimado unicamente pelo fim de garantir os direitos fundamentais do cidadão, e

politicamente ilegítimo se não os garante, ou pior, se ele mesmo os viola (...). Podemos dizer que são

autopoiéticas todas as doutrinas de legitimação desde o alto, a começar por aquelas pré-modernas, que

fundam a soberania do Estado sobre identidades metafísicas e meta-históricas, como Deus, a religião, a

natureza e similares”, em Ibidem, p. 812-813. 193 Ibidem, p. 813. Acrescentando que “em todos os casos a perda de um ponto de vista ético-político

externo, independentemente do jurídico ou interno, se resolve na negação da legitimidade ou ainda somente

pela relevância de todo o autônomo ponto de vista do indivíduo e dos sujeitos sociais, e

consequentemente em uma doutrina de ausência de limites aos poderes do Estado”, em Idem. 194 Ibidem, p. 828, nota 37.

52

possível, como se o mundo não pudesse ser de outro modo. Ou seja, “o cientificismo

sociológico se converte em uma nova filosofia da história e em uma nova metafísica

determinada”195.

Espanha

Cumpre agora analisar a repercussão das ideias de Jakobs na Espanha. Francisco

Muñoz Conde, valendo-se do estudo de Baratta acima mencionado, e após citar

oTratado de Jakobs, defende que “a teoria sistêmica representa uma descrição, cética e

tecnocrática, do modo de funcionamento do sistema, mas não uma valoração e muito

menos uma crítica do próprio sistema”196. Após repetir a crítica de que o centro de

gravidade da norma seria o sistema, e não mais o indivíduo, o penalista espanhol reafirma

que, nestas circunstâncias, o sistema seria sempre fortalecido, não se questionando sua

própria configuração e, dessa, forma, inviabilizando sua modificação ou crítica. No mais,

salienta que “o caráter conflituoso da convivência social e o coativo da norma jurídico-

penal desaparecem em um modelo tecnocrático”197, de tal forma que o sistema em

nenhum caso seria questionado.

Uma leitura mais amigável à sociologia é encontrada em Santiago Mir Puig, que

em 1976 já salientava a importância da “direção sociológica” para o futuro do direito

penal198, realçando que tal direcionamento poderia ser aquele que possui “maiores

possibilidades de futuro entre as correntes do atual pensamento jurídico-penal alemão”199.

Entretanto, o penalista espanhol considera que Luhmann e Parsons (professor de

Luhmann em Harvard) possuiriam uma ideia comum, qual seja a compreensão de que “o

direito não é mais do que forma e reflexo de uma estrutura social”200, e afirma que Jakobs,

ao contemplar o Direito como sistema normativo fechado e autorreferente, tal como

formulara Luhmann, “limita a dogmática jurídico-penal à análise normativa funcional do

195 Idem. 196 MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. Bogotá: Editorial Temis, 2004, p. 16

[tradução livre do espanhol]. 197 Ibidem, p. 16-17 [tradução livre do espanhol]. 198 PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del derecho penal. Editorial BdeF: Montevideo-Buenos

Aires, 2003, p. XV. 199 Ibidem, p. 272. 200 Idem [tradução livre do espanhol].

53

direito positivo com exclusão de considerações empíricas não normativas e valorações

externas ao sistema jurídico-positivo”201.

Ainda na Espanha, cumpre destacar que é de Vives Antón a classificação da teoria

de Jakobs como “funcionalismo estratégico”202. Após salientar que em Jakobs a infração

consiste em um rechaço da norma, isto é, como frustração da expectativa estabilizada

contrafaticamente, o penalista espanhol considera que “não estamos senão diante de uma

concepção kelseniana, onde a norma fundamental foi substituída pela “autopoiesis” do

sistema (...). Quais sejam os fundamentos da norma ou da decisão antinormativa é algo

que, desde a perspectiva sistêmica, não tem maior importância”203. Dito isso, Vives Antón

considera que a aplicação que Jakobs faz das ideias de Luhmann é correta, mas não

dedutiva, pois “a partir das ideias de Luhmann, foi possível sistematizá-lo [o direito penal]

assim, mas também de outro modo completamente diferente”204, e classifica o Tratado de

Jakobs como um Tratado de Direito penal que desenvolve duas ideias: a ideia de sistema

de Luhmann e a de injusto pessoal de Welzel205.

Digna de menção é a interpretação de Guillermo Portilla Contreras. Mais

preocupado com a questão do inimigo, o penalista associa o chamado “Direito penal do

inimigo” à premissa luhmanniana, lembrando, de certa forma, as considerações de

Ferrajoli. Dessa forma, após observar nos últimos anos uma tendência à legislação de

guerra, que partia da legitimação de um Direito penal e processual sem garantias, salienta

que esta direção tem como base o estrutural-funcionalismo de Luhmann, para quem “o

que importa é a conservação dos interesses do sistema, a capacidade funcional de seus

órgãos e a defesa do Estado através das garantias do próprio Estado”.

Destoando das críticas negativas destinadas a Jakobs, Jesús-Maria Silva Sánchez

é, hoje, o penalista espanhol mais simpático às atuais teses do penalista de Bonn206. É em

201 MIR PUIG, Santiago. Límites del normativismo en Derecho Penal, p. 02 [tradução livre do espanhol].

(disponível em http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-18.pdf) (acesso em 04/05/2013). 202 VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del sistema penal. Valencia, 2ª ed., 2011, p. 443 [tradução

livre do espanhol]. 203 Ibidem, p. 452 [tradução livre do espanhol]. Vale destacar a nota 39, em que Vives Antón sustenta que

a não preocupação com os fundamentos faz com que Luhmann não necessite abordar o problema da

liberdade humana. 204 Ibidem, p. 457 [tradução livre do espanhol]. A justificativa do autor está numa passagem do A sociologia

do direito de Luhmann, conforme nota 59. 205 Ibidem, p. 458 [tradução livre do espanhol]. 206 Ao analisarmos o desenvolvimento das reflexões do penalista espanhol nota-se que o livro A expansão

do direito penal, de 1999, apresenta algumas alterações interpretativas quanto à teoria de Jakobs,

apresentadas de forma sistemática em Aproximação ao Direito penal contemporâneo, de 1992. Na tradução

para o português dos dois livros foram incorporados adendos, escritos em 2010, que evidenciam esta

modificação. Aquele que preza pela identificação da alteração da premissa e pergunta “quando” isso ocorre,

deve buscar na resenha ao livro de Jakobs A pena estatal: significado e finalidade, intitulada Del derecho

54

seu Aproximação ao Direito penal contemporâneo (1992) que classifica o sistema

jurídico-penal de Jakobs como “modelo sociológico”207. Ao desenvolver suas reflexões

afirma que no Tratado de Jakobs as categorias sistemáticas (autoria, culpabilidade,

posição de garante em casos de omissa) “se enchem de conteúdo recorrendo à teoria

sociológica dos sistemas”208, e que neste livro encontrar-se-ia a concepção da prevenção

de integração “desde a perspectiva da teoria dos sistemas”209. Vale a pena notar que o

penalista espanhol não deixa de abordar o tema da legitimidade do direito penal. Assim,

na nota 537 critica o que denomina de “teses funcionalistas radicais” que marginalizam o

aspecto filosófico da legitimidade, inserindo nesta categoria a posição de Jakobs por

construir “uma teoria penal meramente dirigida às ciências sociais (neste caso,

concretamente, à teoria sociológica dos sistemas) e carente da referência valorativa que

os princípios proporcionam”210. Ao abordar especificamente o tema dos fins do Direito

penal no Estado contemporâneo, Silva Sánchez volta a enfatizar que a chamada prevenção

geral positiva ganha notoriedade a partir da “versão desenvolvida no Tratado de Jakobs,

que a vincula à teoria dos sistemas”211, e após apresentar suas fundamentais

características, principalmente no que se refere à fidelidade ao Direito como meio se

alcançar uma plena integração e estabilização social, defende que esta teoria “se mostra,

abstracto ao Derecho “real”, escrita por Sánchez em 2006, o grande marco desta virada de

posicionamento. Neste texto Silva Sánchez enfatiza a “última versão” da teoria de Jakobs, naquilo que é

chamado de “giro fático”, como já ressaltado. Após mencionar que, num primeiro momento, Jakobs

compreendida a função da pena em termos de psicologia social, e que, em um segundo momento, Jakobs a

concebia exclusivamente como meio de confirmação da identidade normativa, período este em que se

criticava a falta de consideração di aspecto empírico, Silva Sánchez salienta que, após considerar

marginalmente a questão da dor penal no artigo A ciência penal ante as exigências do presente (1999), no

livro A pena estatal Jakobs apresenta a dor penal integrada em sua teoria. Para Silva Sánchez essa alteração

reflete o “giro fático” no pensamento do penalista alemão. O foco está no conceito de pessoa, que sempre

aparecera fortemente normatizado nos escritos anteriores de Jakobs, e que no livro em apreço aparece

acrescido de um impulso fundamental: o medo (Angst). Segundo Silva Sánchez, “a ‘pessoa real’ não é

constituída somente pelo sujeito da comunicação ideal, mas também pelo indivíduo sensível (que teme,

embora idealmente não existam razões para temer). E o Direito “real” (diferentemente do Direito abstrato)

se relaciona precisamente com a pessoa real”. Após citar a nota 147, onde o próprio Jakobs enfatiza sua

mudança de posicionamento a respeito dos efeitos psicológico-sociais, o penalista espanhol salienta a

incorporação da prevenção negativa no interior da prevenção geral positiva, na medida em que “a imposição

da ‘dor penal’ tem o fim de produzir confiança real de que alguns se absterão de delinquir. Entretanto, para

produzir confiança fática nas vítimas potenciais, é necessário que a pena produza medo ou convicção nos

autores potenciais (isto é, prevenção geral negativa)”. Concluindo, Silva Sánchez considera a sedimentação

cognitiva como um caminho de volta ao “mundo social real”, em que pese a quebra de unidade da teoria de

Jakobs. A resenha está disponível em http://www.indret.com/pdf/377_es.pdf (acesso em 05/02/2014). 207 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Aproximação ao Direito penal contemporâneo. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2011, p. 125. 208 Ibidem, p. 153. 209 Ibidem, p. 154. 210 Ibidem, p. 186, nota 537. Vale notar que a mesma crítica é feita na nota 548. 211 Ibidem, p. 351.

55

ao final, como uma doutrina de caráter autoritário, discriminatório, que redunda num

maior intervencionismo na esfera valorativa dos cidadãos”212.

Entretanto, nos adendos escritos em 2010, ao fazer um balanço dessas

considerações, afirma que “a obra que impeliu a discussão do assunto durante estes anos

– isto é, a de Jakobs – teve uma evolução circular cujo final não está muito distante

daquele que considero mais correto”213. E ao analisar os fins das normas jurídico-penais,

Silva Sánchez é um dos poucos a observar as fases de Jakobs, já que percebe a alteração

feita pelo penalista de Bonn em sua teoria ao colocar a função de influenciar o

comportamento dos cidadãos em segundo plano, como função latente, o que abalaria sua

concepção acerca do fim de motivação das normas jurídico-penais. E afirma: “não vejo

uma radical incompatibilidade entre a adoção deste ponto de vista e a aceitação de que,

contempladas desde outra perspectiva, as normas podem ser vistas como a expressão de

determinadas expectativas sociais”214.

É importante notar que Silva Sánchez também reflete sobre a teoria de Jakobs

em A expansão do direito penal (1999). Após articular os conceitos de “sociedade de

risco” e “sociedade da informação” (citando Luhmann215), o penalista espanhol salienta

que, neste contexto, a segurança torna-se um bem jurídico frente ao qual o Estado, por

meio do Direito penal, deve oferecer uma resposta216. Aqui importaria “proteger

penalmente somente aquelas expectativas essenciais (associadas ao núcleo da identidade

212 Ibidem, p. 366-367. 213 Ibidem, p. 466. Prova deste acordo de Silva Sánchez para com Jakobs pode ser observado na seguinte

passagem de Aproximação ao direito penal contemporâneo, quando acrescentado do adendo, em que o

penalista espanhol subscreve as teses do penalista alemão acerca da dor penal: “Para explicar a dor é preciso

sair do plano da comunicação ideal. Fora dele aparece a pessoa “real”, indissoluvelmente constituída pelo

sujeito da comunicação ideal e pelo indivíduo sensível. Diante da pessoa real, com a qual se relaciona o

Direito “real”, faz todo o sentido a dor própria da pena. A pena tem um significado, que é a contradição da

negação da vigência da norma, representada pelo delito. Mas tem também um fim, que é a salguarda

cognitiva da vigência da norma para produzir uma confiança real, e não simplesmente contrafática. A

imposição da “dor penal” tem, portanto, o fim de produzir confiança real de que alguém deixará de

delinquir. Não obstante, para gerar confiança fática nas vítimas potenciais, é necessário que a pena produza

medo ou convicção nos autores potenciais (isto é, cumpra um fim de prevenção geral dissuasória). Mas este

efeito deve ocorrer no plano da proporcionalidade em relação ao dano produzido pelo delito”, em Ibidem,

p. 472. 214 Ibidem, p. 550. 215 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas

sociedades pós-industriais. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2011, p. 42, nota 22. 216 Ibidem, p. 50. Vale notar que o próprio Silva Sánchez enfatiza o papel de Luhmann nestas discussões:

“Sobre a busca a posteriori – e a qualquer custo – de uma imprudência nos casos em que haja ocorrido um

resultado lesivo, são mais reveladoras as palavras de Luhmann, Sociologie des Risikos, Berlin, 1991”, em

Ibidem, p. 60, nota 76.

56

normativa da sociedade)”217, de tal forma que seria possível compatibilizar um Direito

penal funcional com uma vocação autorrestritiva.

Logo a seguir, o penalista espanhol apresenta uma verdadeira defesa de Jakobs,

salientando que a crítica feita à doutrina que entende que a missão do Direito penal

consiste no asseguramento da vigência das normas por vezes oculta críticas à própria

teoria do bem jurídico. Após afirmar que a referida doutrina – a de Jakobs – sequer exige

o abandono da ideia de bem jurídico, Silva Sánchez ainda esclarece, em clara

contraposição ao que afirmara em seu livro anterior, que ao se buscar a determinação das

normas passíveis de proteção no âmbito da política jurídica, esta doutrina não pode ser

caracterizada como “reacionária”, “estática”, ou “conservadora”218. Segundo Silva

Sánchez, o que pode ser dito, e de fato seria desejável, é que se busque elementos de

racionalidade para determinar o que seria disfuncional ao sistema, enfatizando que essas

considerações, entre outras, constituem um tema sobre o qual o “funcionalismo não se

aprofundou tanto quanto seria preciso”219. Neste contexto, o penalista espanhol enumera

três críticas possíveis à doutrina de Jakobs, que demonstram um déficit que obstruiria o

desenvolvimento da teoria do penalista alemão: (i) determinação do critério para se

determinar quais normas pertencem ao núcleo da identidade normativa da sociedade; (ii)

determinação dos elementos que devem ocorrer em uma dada conduta para que exista a

desestabilização da norma; e (iii) determinação de um critério claro do porquê se deve

responder à desestabilização com uma pena220.

217 Ibidem, p. 136. 218 Ibidem, p. 140. 219 Idem. 220 Ibidem, p. 141. Silva Sánchez ainda acrescenta que “é certo que a determinação do que pertence ao

núcleo da identidade normativa de certa sociedade não é evidente assim sem mais: aqui cabe, pois, inclusive

no campo de perspectivas funcionalistas, um debate jurídico-político, não em último lugar, porque a

identidade normativa de uma sociedade nem é estática, nem pacífica, nem única, senão dinâmica,

controvertida e plural. De modo que surgirá sempre o debate acerca de se a resposta escolhida pelo

legislador – a do Direito Penal – como meio de estabilização de uma determinada norma é correta ou não.

Por outro lado, tampouco é evidente que uma dada conduta desestabilize a norma em questão, tornando-se

merecedora de uma pena: aqui a discussão teria que abarcar, por exemplo, casos como os de tentativa

inidônea (em suas diversas variantes), as infrações de muito pouquíssima relevância (assim, os casos de

bagatela nos delitos patrimoniais) ou os ilícitos de acumulação ou repetição”, em Idem, p. 142-143. Deve

ser destacado que também em 2010 é acrescentado um epílogo, no qual Silva Sánchez mostra-se mais

simpático ainda à teoria de Jakobs. Assim, após enfatizar que o Direito penal não para de crescer

(overcriminalization) e, após fazer um diálogo com a literatura norte-americana sobre o tema, afirma, sem

menção explícita a Jakobs, que “somente uma teoria normativa do Direito Penal se encontra em condições

de desautorizar a sobrecriminalização. Pois bem, é óbvio que isso não ocorreu na Europa, apesar de estar

ao alcance de todos uma teoria normativa bastante mais elaborada que a norte-americana. Que isso não

tenha ocorrido, e que a doutrina dominante tenha se acostumado a integrar as exceções nos princípios até

torná-los irreconhecíveis, é precisamente um dos principais pontos de vista críticos que são mesmo

sustentados no texto do Expansão”. Ver Ibidem, p. 222-223.

57

Portugal

Cruzando a fronteira, em Portugal também encontramos análises interessantes.

Aqui vale a nota de Jorge de Figueiredo Dias, que ao defender um sistema teleológico-

funcional e teleológico-racional da dogmática jurídico-penal, detentor de uma

racionalidade própria estratégica, ou seja, autopoiético, salienta que isso não significa

excluir considerações axiológicas, “nem, muito menos, o pronunciamento a favor de

argumentos de pura “engenharia social””221. Em uma linha mais simpática ainda a

Luhmann, Manuel da Costa Andrade considera a “guinada autopoiética” uma Zwang zur

autonomie [pressão para a autonomia] do indivíduo que, concebido como ambiente do

sistema social, confronta o sistema social com a complexidade de sua afirmação

autopoiética222. Ao discutir a proposta de Jakobs, e após classificá-la como

“transcendentalismo normativista”, salienta que o Tratado é o mais “inovador sistema

dogmático jurídico-penal edificado com os olhos postos na teoria sociológica de

Luhmann”223. Olhos postos, pois, segundo o penalista português, Jakobs não esgota as

tentativas dogmáticas de construção do sistema penal a partir da lição da teoria dos

sistemas autopoiéticos de Luhmann224. Dito isso, Manuel da Costa Andrade apresenta

algumas críticas ao modelo de Jakobs. Em primeiro lugar, sobressai o transcendentalismo

normativista (também chamado de monismo normativista), a partir do qual resultam duas

debilidades: a consistência de sua proposta, e sua adequação político-criminal, na qual

também entra em consideração questões de legitimidade ético-política. No primeiro

aspecto, a inconsistência está em se pretender, por um lado, identificar o direito penal

como um subsistema social que, entretanto, é fechado e, por isso, alheio à complexidade

do ambiente, de tal forma que a proposta de Jakobs só seria congruente “com a

interiorização do ambiente de que fala Luhmann”225. Já no segundo aspecto, a crítica

refere-se à própria compreensão da norma e o reforço de sua confiança como bem

jurídico-penal, que levaria à erosão do conteúdo e alcance liberal do Direito

221 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1999, p. 37. 222 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimba Editora,

2004, p. 19. Segundo o autor, “também à lição de Luhmann ficamos a dever uma compreensão das relações

pessoa-sistema social, agora vertida na linguagem e nas categorias do pensamento sociológico, mas, no

essencial, não se afasta da que é oferecida pela reflexão filosófica”, em Idem, p. 20-21 223 Ibidem, p.109. 224 Idem, nota 210. 225 Ibidem, p. 117.

58

penal226. Outro ponto crítico é o conceito de pessoa de Jakobs. Para legitimar sua

preocupação, o penalista português recorre à teoria dos sistemas autopoiéticos de

Luhmann, salientando que, apesar do diálogo com o sociólogo alemão, a proposta de

Jakobs “dificilmente se poderia compaginar com os desenvolvimentos entretanto

conhecidos pela teoria sistêmico-sociológica e devidos principalmente a Luhmann”227.

Recorrendo ao entendimento da pessoa como sistema autopoiético, sustenta que “também

ela – especialmente ela! – autoreferente, a pessoa há-de perfilar-se no ambiente dos

sistemas social e penal como matriz autônoma de complexidade não inteiramente

redutível”228.

América Latina

Continuando o estudo sobre a repercussão crítica da presença de Luhmann em

Jakobs, e antes de analisar as análises de doutrinadores brasileiros, convém destacar

algumas interpretações acerca da relação entre os dois autores na América Latina. Neste

sentido, pode-se observar a identificação sumária feita recentemente por Lola Aniyar de

Castro entre Jakobs e Luhmann, ao afirmar que “existem teorias que revivem os velhos

postulados de Durkheim, e atribuem ao penal funções mais “macro” que as simplesmente

dirigidas à prevenção geral (G. H. Mead, Jakobs, Luhmann)”229. Em sentido próximo,

226 Ibidem, p. 127. Para o penalista português, citando Baratta, “ao formalizar a ruptura com o bem jurídico

como objecto de tutela penal, Jakobs apenas terá sancionado a transformação da quantidade em qualidade.

Em por este meio, aberto mais a porta a um direito penal que não reconhece, fora de si próprio, quaisquer

limites ao “actual movimento de expansão do sistema penal e de incremento da resposta penal, tanto em

extensão como em intensidade”, em Ibidem, p. 128. 227 Ibidem, p. 129. 228 Idem. Vale a pena notar, ainda que adiantando algumas discussões acerca da relação entre Luhmann e

Habermas, como o penalista português associa os dois autores, já no final de seu livro: “Também na

sociologia contemporânea ganha crescente audiência a exigência da salvaguarda de espaços de autonomia,

comunicação e intersubjetividade, face à cada vez maior ameaça da lógica e da dinâmica sistémico-social.

Neste sentido acabam por convergir autores (aparentemente) tão afastados como Habermas ou Luhmann.

Do mesmo passo que enfatiza a contraposição entre sistema e mundo da vida, denuncia Habermas a

colonização deste último pela racionalidade teleológica e estratégica do sistema. O que o leva a empenhar-

se na reivindicação de áreas de comunicação – em boa medida “ideais” e, por isso, contrafácticas – no

contexto das simbolizações sustentadas pelos próprios membros. E não é com menor legitimidade que

Luhmann se louva expressamente da Zwang zur Autonomie de que relevará hoje a sua teorização. Tal

parece, de todo modo, irrecusável depois da intencional viragem de paradigma operada em 1984

com Soziale Systeme. O que valeu sobretudo pela reinterpretação da contraposição sistema/ambiente e das

categorias nucleares – máxime a de interpenetração – a partir do turbilhão teórico desencadeado pela ideia

de autorreferência. E que veio retirar fundamento às críticas de “mecanicismo”, “causalismo”,

“funcionalização” e “coisificação” da pessoa com que Luhmann vinha a ser estigmatizado e de que

Habermas se fizera igualmente eco”, em Ibidem, p. 495. 229 ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia de los Derechos Humanos. Buenos Aires: Del Puerto, 2010,

p. 84 [tradução livre do espanhol].

59

Eduardo Montealegre Lynett salienta que os fundamentos de Jakobs estão relacionados

com alguns aspectos da teoria sistêmica de Luhmann230. O autor enfatiza a compreensão

de Jakobs acerca das normas como estrutura primordial da sociedade, associando isto à

teoria dos sistemas autopoiéticos. Além disso, afirma que o direito, na concepção de

Luhmann, seria uma estrutura através da qual facilita-se a orientação social, de tal forma

que a configuração fundamental da sociedade seria produzida pelo Direito, restando ao

Direito penal a missão de garantir essa configuração, razão pela qual considera que “as

expectativas sociais se estabilizam através das sanções”231.

Eugenio Raúl Zaffaroni, por outro lado, admite que a proposta de Jakobs é de fato

original, mas considera que, no que diz respeito à fundamentação teórica, sua proposta é

obscura. Para o penalista argentino, Jakobs, por um lado, adota a terminologia de

Luhmann, “mas não parece ser fiel seguidor desta teoria, já que sustenta como função da

pena a prevenção geral positiva e afirma ao mesmo tempo que não dá importância às

investigações empíricas, o que seria inadmissível para qualquer sociólogo, seja da escola

ou corrente que for”232. Além disso, o penalista argentino está consciente das dificuldades

de transporte teórico direto da sociologia para a dogmática jurídico-penal, principalmente

devido ao problema da legitimação do direito penal. Nesse sentido, considera

problemática a hipótese de que Luhmann possa oferecer uma “relegitimação do discurso

jurídico-penal, já que uma “legitimação” não parecer ser a fundamentação de sua teoria,

que pretende ser apenas uma constatação”233. Como consequência, nesta análise o

renomado penalista considera duvidosa a transposição da teoria luhmanniana para o

discurso jurídico-penal.

Já em outro momento234, após apresentar algumas características gerais da

prevenção geral positiva, o penalista argentino sustenta que nesta vertente a tirania “é

substituída pelo engodo comunicacional, preferível ao desequilíbrio e à ruptura do

sistema. O direito penal converte-se numa mensagem meramente difusora de ideologias

falsas”235. Assim, o sistema seria o único bem jurídico protegido, e sua comunicação

230 CALLEGARI, André Luís & GIACOMOLLI, Nereu José (Coord.). Direito penal e funcionalismo. Porto

Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 12. 231 Ibidem, p. 13. 232 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Apuntes sobre el pensamiento penal en el tiempo. Buenos Aires:

Hammurabi, 2007, p. 186 [tradução livre do espanhol]. 233 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda da legitimidade do sistema penal.

Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 88. 234 Em texto “abrasileirado” por Nilo Batista, conforme introdução a ALAJIA, Alejandro; BATISTA, Nilo;

SLOKAR, Alejandro; ZAFFARONI, E. Raúl. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral

do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 09. 235 Ibidem, p. 123.

60

instrumentalizaria a pessoa, utilizando sua dor como símbolo para manter a confiança no

sistema. Dito isso, e após apresentar e desenvolver sua premissa fundamental, qual seja a

ideia de que “o respeito às estruturas reais do mundo é uma condição de qualquer direito

que pretenda ter alguma eficácia”236, Zaffaroni reflete sobre aquilo que denomina

“decadência do pensamento” e os obstáculos ao “impulso pensante”.

Aqui é apresentada como exemplo uma corrente teórica (Jakobs) que aproxima-

se de forma mais ou menos manifesta com teorias sociológicas, em especial com a teoria

sistêmica da sociedade (Luhmann)237. Após apresentar algumas características da teoria

dos sistemas autopoiéticos238, considera que “toda a teoria se sustenta na necessidade de

controle que se legitima por si mesma e age de acordo com um contínuo fortalecimento

dos papéis”239, e salienta que “o organicismo da teoria de Luhmann se expressa através

da tese da autopoiese”240, de tal forma que “a versão mais radicalizada do funcionalismo

chega a extremos incompatíveis com o estado de direito, pelo menos em sua transferência

para o sistema penal ou nas consequências extraídas por aqueles que o fazem”241, já que:

(i) interromperia qualquer diálogo em razão do discurso da autopoiese; (ii) seria uma

teoria antiética por aceitar e legitimar os elementos estruturalmente negativos, tornando-

os positivos por meio da função autopoiética de equilibrar o sistema; (iii) seria também

anti-iluminista e (iv) propensa ao decisionismo de Carl Schmitt. Dessa maneira,

estaríamos diante de uma “antropologia reacionária antimoderna”, uma teoria

radicalmente juspositivista que teoriza o direito penal de modo “completamente acrítico,

ou seja, um novo recurso para preservar este último de toda contaminação crítica”242. Na

mesma linha, ainda na Argentina, também Luis Fernando Niño vê na defesa da autopoiese

do sistema justamente o caminho que nos leva ao direito penal do inimigo243.

Por fim, esta breve apresentação da repercussão crítica derivada da presença de

Luhmannn na teoria de Jakobs concentra-se agora no âmbito da doutrina nacional.

Seguindo exemplos já mencionados, é possível encontrar identificações sumárias, como

aquela feita por Alamiro Velludo Salvador Netto, para quem a teoria de Jakobs “está em

236 Ibidem, p. 175. 237 Ibidem, p. 622. 238 Zaffaroni está ciente das diferenças entre Luhmann, Parsons e Durkheim. Para uma análise comparativa

(breve), ver Ibidem, p. 624. 239 Idem. 240 Ibidem, p. 626. 241 Ibidem, p. 627. 242 Ibidem, p. 628. 243 NIÑO, Luis Fernando. La libertad y el derecho penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São

Paulo. V. 56, set/out. 205, p. 78 [tradução livre do espanhol].

61

nítida consonância”244 com o pensamento de Luhmann, sendo possível identificar,

também, algumas problematizações, como a desenvolvida por Luiz Régis Prado. Este

autor apresenta a teoria de Jakobs como “normativismo funcionalista sistêmico”, que

“utiliza-se, em termos metodológicos, do instrumental fornecido pela teoria dos sistemas

sociais (teoria sociológico-sistêmica), que é indiferente às peculiaridades do sistema

jurídico e da matéria por ele versada (aspectos valorativos)”245. Após citar uma passagem

do Tratado, o penalista brasileiro afirma que Jakobs, em perfeita sintonia com Luhmann,

passa a representar o sujeito através do sistema, e não mais por meio do indivíduo246.

Régis Prado passa então para a apreciação crítica, sustentando que os modelos

funcionalistas ou teleológicos, e especialmente o funcionalista sistêmico ou radical,

representam um retorno às antigas concepções hegelianas, neokantistas e neopositivistas

sociológicas. O modelo de Jakobs, ao insistir em uma renormatização dos conceitos da

dogmática jurídico-penal, deixaria o legislador absolutamente livre, sem qualquer

vinculação às estruturas lógico-objetivas do mundo. Este tipo e empreendimento teórico,

para o nosso penalista “finalista”, não pode ser aceito, enfatizando o caráter artificial e

abstrato desta proposta que, devido à sua natureza organicista, caracterizar-se-ia como

uma construção autoritária, não democrática, que “pode atentar gravemente contra a

concepção de Estado democrático de Direito gizado no texto constitucional brasileiro de

1988”247.

Cezar Roberto Bitencourt segue uma linha próxima, e apresenta a teoria de Jakobs

como radicalização da sistemática funcional. Nas palavras do autor “Jakobs (...)

incorporando fundamentalmente a teoria dos sistemas sociais de Luhmann, concebe o

Direito Penal como um sistema normativo fechado, autorreferente (autopoiético)”248, de

tal forma que a dogmática jurídico-penal, em razão da finalidade de prevenção geral

positiva da pena, estaria limitada à análise normativo-funcional do Direito e seria incapaz

de crítica, uma vez que considerações empíricas e valorações externas ao sistema estariam

excluídas. Bitencourt considera que esta proposta, além de cientificamente desnecessária,

244 SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier

Latin, 2006, p. 144, nota 226. 245 PRADO, Luiz. Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 2011, p. 123. Vale ressaltar o esforço do penalista brasileiro em apresentar alguns conceitos

fundamentais de Luhmann nas páginas seguintes à citação. 246 Ibidem, p. 125. 247 Ibidem, p. 126-127. 248 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012,

p. 123.

62

dificulta a tentativa de limitar o poder punitivo do Estado249. Seguindo esta linha de

raciocínio, a consequência para Bitencourt é transparente: “em última análise, a teoria

sistêmica conduz a uma espécie de neorretribucionismo, onde o Direito Penal justifica-se

intrassistematicamente, legitimando e produzindo um sistema social que nunca é

questionado”250.

Já Paulo César Busato, em um primeiro momento251, associa Jakobs a Luhmann

quando aquele desenvolve seu conceito de ação e, seguindo a afirmação de Vives Antón,

segundo o qual “Jakobs se desfez de todo compromisso ontológico em um sentido muito

radical”252, o penalista brasileiro sustenta que “a consequência inevitável disso é que seu

sistema torna-se compatível com orientações político-criminais opostas a um Estado

social e democrático de Direito”253. A associação feita entre Jakobs e Luhmann fica clara

quando, ao discutir as relações entre metodologia e função do Direito penal, afirma que,

a partir da virada funcionalista, “o Direito penal tem como missão não mais a proteção de

bens jurídicos, mas a manutenção da estrutura básica da sociedade, em sua concepção

autopoiética”254. Em um segundo momento255, Busato reafirma a teoria do sistemas

autopoiéticos de Luhmann como base ideológica para Jakobs, em que pese a ressalva de

que a leitura de Jakobs acerca das teses de Luhmann é criticada por seu reducionismo, já

que o penalista de Bonn seria acusado de “distorcer e estreitar o âmbito das implicações

da teoria dos sistemas de Luhmann, reduzindo o controle das expectativas contrafáticas

do direito à mera estabilização da norma sancionadora penal, em sua teoria da prevenção

positiva”256. Entretanto, ainda de acordo com Busato, mesmo esse déficit de apropriação

não permitiria à concepção luhmanniana se salvar da principal crítica dirigida à Jakobs,

qual seja a já mencionada inviabilidade de crítica à norma. Assim, “na medida em que o

que se busca é estabilizar contrafaticamente a norma, trata-se de afirmar sua vigência em

249 Ibidem, p. 124. 250 Ibidem, p. 149. 251 BUSATO, Paulo César. Direito Penal e ação significativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 134. 252 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. 2ª ed. Valencia: Tirant Lo Blanch,

2011, p. 451 [tradução livre do espanhol]. 253 BUSATO, Paulo César. Direito Penal e ação significativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 140.

O autor acrescenta, ainda, que “a humanidade ainda não alcançou um grau de desenvolvimento tal que

permita a adoção de uma construção dogmática penal absolutamente acrítica com relação à Política

criminal”, em Idem, p. 141. 254 Ibidem, p. 167. 255 BUSATO, Paulo César. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 782. 256 Ibidem, p. 783, nota 177.

63

face de um caráter formal, o que gera uma imobilização da capacidade de crítica

intrassistemática”257.

Juarez Cirino dos Santos, por sua vez, prefere identificar prevenção geral positiva

e prevenção pela integração, sustentando que a teoria de Luhmann, responsável por

atribuir ao direito as funções de estabilização do sistema social, de orientação da ação e

de institucionalização de expectativas normativas, seria a base teórica das duas variantes

teóricas representadas por Roxin e Jakobs258. Após criticar a proposta de Jakobs, que

classifica como “formalismo abstrato de linguagem hermética”259, Cirino sustenta que a

prevenção geral é uma afirmação da ideologia dominante, em que a proteção dos direitos

individuais é substituída pela proteção de complexos funcionais, de tal forma que a

concepção do Direito como subsistema normativo de estabilização do sistema social

“mostra a natureza conservadora da teoria, como discurso de reprodução/conservação da

realidade social, construído com base no sistema de direito positivo”260. E, após analisar

o discurso de Jakobs, entende o penalista brasileiro que “a tarefa do Direito Penal seria

satisfazer os impulsos punitivos da população”261, estando sua função declarada

(afirmação da validade da norma) encoberta pela função real da pena criminal, qual seja

a “garantia da ordem social capitalista, fundada na separação força de trabalho/meios de

produção, que institui e reproduz relações sociais desiguais e opressivas”262.

Apesar dessas interpretações, a estreita vinculação entre Jakobs e Luhmann não é

seguida por outros penalistas brasileiros. Renato de Mello Jorge Silveira, por exemplo,

salienta que a proposta de Jakobs, em que pese ser influenciada por Luhmann, conta “com

significativos distanciamentos deste”263. Também Lúcio Antônio Chamon Júnior está

ciente das diferenças que podem ser observadas nos dois autores. Antes mesmo de se

posicionar frente ao funcionalismo de Jakobs, esclarece que “o autor é vulgarmente

entendido como ligado à Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann”264, mas salienta que o

emprego de diversos termos luhmannianos não estão articulados com o pensamento de

Luhmann. Neste sentido, mesmo admitindo a sofisticação da dogmática de Jakobs, o

257 Idem. 258 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p.

426. 259 Ibidem, p. 428. 260 Ibidem, p. 448. 261 Ibidem, p. 449. 262 Ibidem, p. 452. 263 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Fundamentos da adequação social em Direito penal. São Paulo:

Quartier Latin, 2010, p. 41. 264 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Do giro finalista ao funcionalismo penal. Embastes de

perspectivas dogmáticas decadentes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004, p. 71.

64

penalista brasileiro chama a atenção para o descompasso entre o funcionalismo de Jakobs

e a proposta construída e trabalhada, concretamente, por Luhmann, ressaltando,

entretanto, que as duas construções apresentariam problemas comuns no que tange à

“análise reconstrutiva do Direito”265, razão pela qual prefere uma abordagem a partir da

teoria do discurso266.

O tom negativo da crítica também não é unanimidade. Em uma perspectiva mais

simpática a Jakobs, Yuri Corrêa da Luz sustenta que a teoria deste autor poderia abrir

novos caminhos para se pensar o direito penal, “sendo sensivelmente mais adequada para

explicar o funcionamento do Direito Penal em uma sociedade complexa e funcionalmente

diferenciada”267. Ao abordar o modelo teórico de Jakobs o autor menciona explicitamente

o sociólogo alemão, afirmando que Luhmann seria um dos principais inspiradores de

Jakobs no projeto de construção de uma dogmática penal atenta à complexidade da

sociedade atual268. Mais adiante, também salienta que “Jakobs redescreve elementos da

teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, segundo o qual a sociedade é comunicação,

configurada mediante normas”269, e, por meio desta premissa luhmanniana, seria possível

afirmar que a tarefa do Direito está em garantir que esta norma, enquanto manifestação

de uma expectativa normativa irrenunciável para a manutenção da configuração básica

da sociedade, é legítima, não sendo portanto alterada em razão do fato delitivo270. Por

fim, após apresentar os benefícios da teoria de Jakobs (principalmente por sua crítica à

teoria do bem jurídico), Yuri da Luz sustenta que “não mais a proteção contra a lesão de

bens, e sim a proteção das normas que garantem a identidade das relações intersubjetivas:

esse deve ser o ponto de partida”271, citando Luhmann como referencial teórico para

isso272.

265 Ibidem, p. 82. 266 Ibidem, p. 99. 267 LUZ, Yuri Corrêa da. Entre bens jurídicos e deveres normativos: um estudo sobre os fundamentos do

direito penal contemporâneo. São Paulo: IBCCRIM, 2013, p. 33. Vale notar: o conceito de sociedade

complexa funcionalmente diferenciada é um conceito luhmanniano. 268 Ibidem, p. 136. 269 Ibidem, p. 159. 270 Ibidem, p. 160. 271 Ibidem, p. 170. 272 Esta identificação entre “intersubjetividade” e Luhmann será problematizada adiante. Por hora, basta

assinalar que a tese da intersubjetividade é característica da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas

e seguida por Klaus Günther, autor que será referência para a tese de Yuri da Luz, quando este distancia-se

de Jakobs no que tange à determinação do conteúdo material do delito. Ver Ibidem, p. 173 e ss. Em

Luhmann há verdadeiro rechaço desta tese, estando o conceito de “comunicação” luhmanniano alicerçado

entre outras premissas, como será demonstrado.

65

Como pode-se perceber, não é fácil orientar-se pelas interpretações acerca da

presença da teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann no interior do processo de

(re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal de Jakobs. A costumeira falta

de menção às fases do penalista de Bonn contribui para que a compreensão de sua

proposta teórica seja ainda mais difícil. De um modo geral, pode-se separar os

posicionamentos doutrinários em dois grupos: o primeiro deles é composto por

valorações negativas, nas quais a teoria de Luhmann é apresentada como responsável pelo

caráter conservador, autoritário e acrítico do chamado “funcionalismo radical”, sendo

assim incompatível com o que se denomina Estado Democrático de Direito. Já o segundo

grupo apresenta valorações positivas que observam no mesmo Luhmann uma

possibilidade de inovação atraente, atenta à complexidade das relações entre sistema e

ambiente, e recheada de instrumentos teóricos interessantes, tais como a ideia de

equivalentes funcionais. Outra forma de apresentar essa mesma variação está na diferença

de posicionamento diante do termo “autopoiese”. Dessa maneira, também poder-se-ia

dizer que o primeiro grupo entende o caráter autopoiético dos sistemas como um

fechamento irrenunciável, a partir do qual o sistema se legitima por conta própria, sem

consideração do ambiente, no qual estariam os homens (o que a doutrina salienta como a

principal demonstração do autoritarismo luhmanniano, naquilo que é chamado de

subjetivação do sistema em detrimento do homem), de tal forma que a única questão

realmente importante seria a manutenção do sistema. Já o segundo grupo se caracterizar-

se-ia por aquele entendimento que observa no aspecto autopoiético dos sistemas uma

pressão pela autonomia [Zwang zur Autonomie] do indivíduo, que ao confrontar o sistema

com toda a sua complexidade desqualifica semânticas que subordinam o homem às

decisões sociais. Essas valorações negativas, entretanto, apresentam um grave problema:

o potencial crítico do construtivismo radical luhmanniano, e aqui já se adianta um

argumento importante, é constantemente ignorado enquanto crítica e alternativa à

distinção sujeito/objeto, o que dificulta a análise do rendimento da teoria autopoiética dos

sistemas sociais para a dogmática jurídico-penal e para a criminologia crítica. Uma vez

que este radicalismo ainda será apresentado, isso impossibilita, neste momento, uma

valoração crítica desta “repercussão geral”. Se por um lado já é possível identificar as

fases do pensamento de Jakobs e seus elementos permanentes, bem como compreender

de que forma a doutrina estrangeira e nacional aborda a relação entre os autores aqui

estudados, por outro lado resta a pergunta sobre como o material de estímulo luhmanniano

está presente em cada momento da chamada prevenção geral positiva. Uma vez que a

66

hipótese da pesquisa repousa essencialmente no potencial crítico da teoria de Luhmann,

é fundamental que antes da análise detalhada dos principais conceitos desta teoria seja

observada o significado dado e desenvolvido por Jakobs a alguns conceitos

luhmannianos.

1.4. A presença de Luhmann em cada fase de Jakobs

O objetivo desta sessão é apresentar o modo como Luhmann é incorporado por

Jakobs em cada fase de seu pensamento. Ou seja, trata-se aqui de aprofundar os conceitos

de prevenção geral positiva apresentados pelo penalista de Bonn por meio da pergunta:

como a teoria luhmanniana está presente em cada um desses momentos? Se a primeira

fase foi apresentada como aquela em que a função da pena está articulada a determinados

fins cognitivos (notadamente na busca pelo reconhecimento do normativo, como

articulação entre exercitar a confiança normativa, a fidelidade ao Direito e a aceitação das

consequências), a segunda fase como sendo caracterizada por uma crítica aos fins de

psicologia social e pela ênfase na dimensão significativo-comunicativa da, e a terceira

fase pela compreensão da pena enquanto resposta materializada frente ao fato delitivo

que proclamou e a alterou a realidade social, e pela retomada dos fins cognitivos através

da necessidade de alicerce cognitivo dos entes normativos obtido mediante a dor penal,

então deve-se perguntar pela presença específica de Luhmann em cada uma dessas etapas.

Esse questionamento é fundamental para que ao término da pesquisa fique claro como

parte da produção de Jakobs pode ser criticamente potencializada pelo construtivismo

radical luhmanniano ignorado pelo penalista, ao mesmo tempo em que as considerações

dos seus últimos escritos podem ser teoricamente negadas pelo mesmo material

levantado.

1.4.1. Na primeira fase

O texto base para observar como Jakobs insere a teoria luhmanniana na primeira

fase de seu pensamento é Culpabilidade e prevenção, escrito em 1976. Nele a distinção

entre expectativas cognitivas e normativas, além do entendimento da pessoa como

subsistema – conceitos derivados do diálogo com Luhmann273 –, são fundamentais para

273 A apresentação dos conceitos fundamentais da teoria dos sistemas autopoiéticos acontecerá no capítulo

seguinte.

67

o conceito de prevenção geral positiva deste período. Assim, logo no início do artigo

Jakobs apresenta os pressupostos de sua proposta, que já apresentava a ideia de que o fim

do Direito penal é a estabilização de um determinado ordenamento, e que a vinculação da

pena à culpabilidade é o meio para a realização desta tarefa274. Após identificar

culpabilidade e prevenção, no sentido de que, se o direito penal atua conforme fins

preventivos, também a culpabilidade (como limite) deve corresponder em totalidade à

prevenção, Jakobs sustenta que a determinação da culpabilidade consiste na

fundamentação da necessidade de punir em um determinada medida, tendo em vista o fim

de “confirmar a obrigatoriedade do ordenamento frente ao cidadão fiel ao Direito”275.

Logo após observa-se o primeiro diálogo com Luhmann. Jakobs reafirma que a pena deve

ser imposta somente quando necessária para manter o ordenamento jurídico, e identifica

no fato delitivo aquilo que deve ser evitado “por perturbar expectativas cuja legitimidade

se encontra juridicamente garantida”276.

Na sequência o penalista de Bonn apresenta a diferenciação entre expectativas

cognitivas e normativas, tendo como base, principalmente, o Sociologia do direito, escrito

por Luhmann em 1972. Segundo Jakobs, diante da perturbação de uma expectativa (sua

defraudação), a fundamentação da possibilidade de se reorientar no mundo pode

acontecer de três maneiras: (i) o indivíduo pode se reorientar no mundo, deixando de

confiar na expectativa defraudada no futuro; (ii) aprendendo com a experiência, o

indivíduo pode tomar as precauções necessárias para evitar que a defraudação da

expectativa volte a acontecer; (iii) o indivíduo também pode continuar com a expectativa

defraudada, isto é, mantê-la contrafaticamente, de tal forma que esta não será vista como

defeituosa, e sim o comportamento que a perturba. Jakobs distingue os dois primeiros

casos do terceiro, já que aqueles apresentariam compensações cognitivas à defraudação

da expectativa, enquanto que na última possibilidade estaríamos diante de uma

compensação normativa. Neste caso, “se os fatos não se corresponderam com a

expectativa normativa, tanto pior para os fatos”277.

É a partir dessas considerações que Jakobs sustenta, citando Legitimação pelo

procedimento, de Luhmann, que a pena vinculada à imputação como imputação à

culpabilidade é, portanto, “somente afirmação da imputação do comportamento

274 JAKOBS, Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal.

Madrid: Civitas, 1997, p. 73. 275 Ibidem, p. 78 [tradução livre do espanhol]. 276 Idem [tradução livre do espanhol], com especial atenção à nota 19. 277 Ibidem, p. 79 [tradução livre do espanhol].

68

defeituoso, mas não já símbolo da seriedade da imputação”278. Entretanto, o penalista de

Bonn salienta que a pena é capaz de incrementar as possibilidades de que o

comportamento delitivo seja compreendido como uma alternativa inaceitável. Ora, esta

compreensão integra o conceito de prevenção geral positiva desta primeira fase. Nas

palavras do autor: “isto é prevenção geral não no sentido intimidatório, mas como

exercício na fidelidade para o Direito”279.

Jakobs associará esse tipo de reação normativa à defraudação da expectativa com

a sua teoria da motivação. O raciocínio que permite essa articulação está relacionado com

o conteúdo da culpabilidade. Para o penalista de Bonn, em que pesem todas as

controvérsias a respeito da delimitação deste conteúdo, todas as tentativas teriam um

ponto comum, qual seja a compreensão de que as condições do fato que produziu a

defraudação podem ser reduzidas a uma única condição: o defeito de motivação do autor.

Como isso é feito? Recorrendo-se à ideia de expectativa normativa, pois se diante da

perturbação o caráter defeituoso não é imputado à expectativa, que se mantém, e sim ao

autor, então isso significa que este não teve uma motivação suficiente para direcionar sua

conduta de acordo com a norma, sendo deste déficit de fidelidade ao direito um problema

do autor (e, diga-se, buscar as causas deste defeito já significaria tentar uma exculpação).

Em outras palavras: a estabilização de expectativas depende da boa vontade do indivíduo,

caso contrário a estabilização não seria tolerada, sendo esta “a razão pela qual a imputação

se reconduz aos processos motivacionais, sejam eles reais ou normativamente

construídos”280.

Este processo de isolamento do autor através da culpabilidade é o que Jakobs

chama de estabilização do ordenamento por meio da imputação281. E aqui há mais uma

referência a Luhmann: na medida em que o conflito é localizado “em um subsistema

[pessoa] do ordenamento que é necessário manter”, na questão decisiva, qual seja “a

consecução da observância da norma”, se supõe um poder autônomo do subsistema

[pessoa] frente às condições externas deste subsistema, “de maneira que já com a

imputação como imputação à culpabilidade o ordenamento se vê confirmado como aquele

que deve-se seguir levando em consideração”282.

278 Idem [tradução livre do espanhol], com especial atenção à nota 23. 279 Idem [tradução livre do espanhol]. 280 Ibidem, p. 91 [tradução livre do espanhol]. 281 Ibidem, p. 81. 282 Idem [tradução livre do espanhol].

69

A influência de Luhmann também pode ser observada quando Jakobs salienta que

somente a finalidade do direito penal dá conteúdo ao conceito de culpabilidade. Para

sustentar sua tese, o penalista alemão discute a capacidade de compreensão e a capacidade

de cumprimento da norma pelo indivíduo, enfatizando que “o nível de competência do

subsistema não se determina sobre a base de sua configuração concreta, mas de acordo

com aquilo que se tem de esperar dele; a autonomia é atribuída como capacidade”283. Ou

seja, capacidade em Jakobs não diz respeito a um estado de coisas constatável, mas sim

àquela atribuição social que compreende o indivíduo como pessoa portadora de direitos

e deveres. Esse raciocínio também é aplicado nos casos que envolvem incapazes, que por

serem portadores de defeitos biológicos são compreendidos como pessoas para com as

quais falta uma imputação como culpáveis, de tal forma que não são considerados como

membros plenos do âmbito social que é regulado pelo Direito. Neste caso, a perturbação

de expectativas deles derivada é compreendida como algo negligenciável, como nos casos

que envolvem catástrofes naturais. É dizer, explica-se a perturbação tal como explica-se

uma enfermidade, ou compreende-se o delito como desgraça natural, de tal maneira que

considera-se que “houve um erro sobre o tipo de expectativa, mas a norma está a salvo,

uma vez que permanece à margem do conflito”284.

Dessa forma fica claro como a compreensão da expectativa normativa como

aquela que se mantém contrafaticamente orienta Jakobs já em suas primeiras reflexões

acerca das relações entre imputação, culpabilidade e fim do Direito penal. Não à toa ele

afirma, no que tange à esta finalidade, que se trata “de prevenção geral, entendida como

garantia daquelas expectativas cuja firmeza frente à defraudação necessita o ordenamento

para sua manutenção”285. Daí resulta a ideia de que diante de um comportamento

inevitável não se pode deduzir a conclusão de que o autor é indiferente à normatividade

jurídica, justamente pois, nestes casos, a validez da norma não é colocada em dúvida, é

dizer, sua “firmeza” não é colocada à prova. E é a partir desse raciocínio que Jakobs

compreende a culpabilidade não como um conceito material prévio à determinação do

fins do Direito penal, mas sim como “uma descrição da contribuição que os (sub)sistemas

individuais tem que prestar para a manutenção do ordenamento”286.

283 Ibidem, p. 85 [tradução livre do espanhol], com especial atenção à nota 48. 284 Idem. 285 Ibidem, p. 91 [tradução livre do espanhol]. 286 Ibidem, p. 95 [tradução livre do espanhol].

70

Diante dessas reflexões, a conclusão que termina este artigo uma vez mais

demonstra a importância de Luhmann nesta primeira fase de seu pensamento, em que a

prevenção geral positiva aparece difusamente associada a fins cognitivos (manutenção da

confiança na norma e manutenção da fidelidade ao Direito). Assim, Jakobs reafirma que

sua interpretação da culpabilidade é uma interpretação atual do estado de coisas, e não

uma afirmação sobre o conteúdo material da culpabilidade. Neste contexto, a

culpabilidade não se presta a dizer que o delinquente mereceu e pena, mas trata de

confirmar que é correto confiar na norma e, nesse sentido, descortina-se a dimensão

preventivo-geral da culpabilidade manifestada na preservação do ordenamento.

Consequentemente, desta articulação teórica deriva a compreensão de que “a necessidade

da pena decai quando resulta possível um “processamento” distinto da defraudação da

expectativa”287.

Nos escritos posteriores Jakobs desenvolve e esclarece seu conceito de prevenção

geral positiva. Este caminho, entretanto, não é retilíneo, como já foi enfatizado. Neste

sentido, o próximo passo da pesquisa está em analisar como Luhmann aparece no Tratado

de Jakobs (naquilo que chamou-se de ponte), já que esta obra é ponto de partida para a

segunda fase de seu pensamento, na qual a dimensão significativo-comunicativa da pena

e a desconsideração de efeitos de psicologia-social serão cada vez mais enfatizados.

1.4.2. No Tratado: ponte para a segunda fase

O prefácio à 1ª edição do Tratado, em 1983 já demonstra a importância de

Luhmann no pensamento de Jakobs, quando este apresenta sua compreensão do sujeito

como sistema psicofísico288 (conceito luhmanniano), deixando de lado a identificação

entre sujeito e subsistema presente em Culpabilidade e Prevenção. Já o prefácio à edição

brasileira, escrito 25 depois, também apresenta a distinção entre expectativas cognitivas

e normativas. Nesse sentido, o penalista alemão esclarece que para se orientar no mundo

é preciso que o indivíduo conheça dois tipos de regras: da natureza (mundo natural) e da

sociedade (mundo social). O argumento de Jakobs é que, apesar da fronteira entre esses

dois mundos não estar estabelecida de forma definitiva, a forma como as frustrações são

assimiladas nos dois mundos já está fixada. Sempre segundo Jakobs, quando as

287 Ibidem, p. 98 [tradução livre do espanhol]. 288 JAKOBS, Günther. Derecho penal. Parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. 2ª edição.

Madrid: Marcial Pons, 1997, p. X.

71

expectativas são frustradas no mundo natural a perturbação decorrente é estabilizada

mediante uma atualização dos conhecimentos, é dizer, “tais expectativas, cuja frustração

é assimilada por meio de um aperfeiçoamento do material cognitivo – aprendeu-se algo

novo com a situação – são chamadas expectativas cognitivas”289. O mesmo não ocorre no

mundo social, que é caracterizado pela presença de normas. Assim, no âmbito dos

contatos sociais surge a pessoa à qual dirige-se a expectativa de um comportamento

conforme a norma, e essa expectativa, “chamada de expectativa normativa, não é

abandonada em caso de frustração, não se atualiza”290, de tal forma que o comportamento

incorreto do infrator da norma será tematizado como a causa determinante da frustração,

colocando a expectativa à salvo.

No que diz respeito ao Tratado propriamente dito, o diálogo com Luhmann

aparece logo nas primeiras página, que se referem aos fundamentos do direito penal. Após

apresentar sua premissa, qual seja a ideia de que a pena é sempre uma reação a uma

violação normativa às expensas de um responsável291, Jakobs apresenta sua teoria da

prevenção geral positiva. A ideia basilar é que os homens só podem se orientar no mundo

quando não é preciso contar a todo momento com um comportamento imprevisível.

Jakobs compreende esta necessidade de orientação tanto naquilo que denominará mundo

da natureza, quanto naquilo que chama de mundo social292. Citando o Sociologia do

Direito de Luhmann o penalista alemão afirma: “Se a expectativa é frustrada, surge para

o frustrado um conflito ao qual ele deve reagir”293. Mas em Jakobs a diferenciação entre

expectativas cognitivas e normativas é apresentada a partir do convívio do homem no

âmbito da natureza ou no âmbito dos contatos sociais. É nesse sentido que afirma que o

homem está sujeito a leis da natureza e a leis jurídicas, dando o seguinte exemplo: todo

ser humano sabe que é feito de “carne e osso” e que, dessa forma, está sujeito às leis

naturais; assim, se um sujeito que cair em águas profundas e não souber nadar sofrer

câimbras ou sofrer um ataque epilético, certamente morrerá, ou seja, “espera-se da outra

parte no contato social que o seu estado siga a regra da natureza, mas não que respeite

289 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

DelRey, 2009, p. 13. 290 Ibidem, p. 14. 291 Ibidem, p. 20-21. 292 Essa distinção é fundamental, pois Jakobs associa expectativas cognitivas ao mundo natural, e

expectativas normativas ao mundo social. Isso ficará claro em um texto da terceira fase que já foi

mencionado: JAKOBS, Günther. Cómo protege el derecho penal y qué es lo que protege? Contradicción

y prevención; protección de bienes jurídicos y protección de la vigencia de la norma, em JAKOBS,

Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003. O prefácio à

edição brasileira de seu Tratado, escrito em 2008, também apresenta esta distinção, como será ressaltado. 293 Ibidem, p. 21-22.

72

normas jurídicas”294. Segundo Jakobs, essas expectativas são do tipo cognitivo, “se foram

frustradas é porque se calculou mal e deve-se seguir outra orientação, ou seja, calcular

melhor no futuro – com a sabedoria adquirida com a experiência”295.

Já as expectativas normativas dizem respeito aos contatos sociais, e resultam da

exigência feita à outra parte de que essa respeite as normas vigentes. Essa articulação

entre expectativas normativas, comportamentos e normas vigentes é apresentada com o

seguinte exemplo: aquele que vê o condutor ingerindo álcool não renuncia à exigência de

uma viagem segura. Isso significa que “uma expectativa normativa não deve ser

abandonada nem mesmo em caso de frustração, mas pode ser sustentada (contrariamente

aos fatos), definindo-se como falta normativa não a expectativa do frustrado, mas a

violação normativa do causador da frustração”296. Como consequência, Jakobs dá como

exemplo a prisão do delinquente para demonstrar que seu comportamento é incorreto297.

Feita essa apresentação acerca da forma como Jakobs compreende a distinção

entre expectativas cognitivas e normativas, é importante enfatizar que é a partir deste

entendimento que Jakobs classificará dois tipos de crimes. Partindo da premissa de que

existem expectativas normativas estáveis e indispensáveis para possibilitar os contatos

sociais, que seriam derivadas da organização do mundo pelas instituições (que moldam

nosso mundo antes da organização do mundo feita pelos homens), Jakobs sustenta que

essas expectativas normativas podem referir-se a dois diferentes âmbitos de objetos: por

um lado, teríamos a expectativa de que todos os indivíduos mantenham aquilo que o

penalista de Bonn denomina “esfera organizatória”, evitando assim reações externas que

possam causar danos a outrem298. Essa expectativa, que teria um conteúdo apenas

negativo, no sentido de que as esferas organizatórias devem permanecer separadas,

quando frustrada leva a crimes que Jakobs classifica como “crimes de domínio” ou

“crimes de responsabilidade”; por outro lado, também existe a expectativa de que as

instituições elementares – aquelas que primeiramente moldam o mundo e que são

responsáveis, então, pela delimitação da esfera organizatória de cada um – funcionem

regularmente. Essa expectativa que, por sua vez, teria um conteúdo positivo, no sentido

294 Ibidem, p. 22 295 Idem. 296 Ibidem, p. 23. 297 Idem. 298 Segundo Jakobs, “a estabilidade dessa expectativa é imprescindível não apenas porque ninguém pode

ter domínio sobre todas as esferas organizatórias ao mesmo tempo, mas também porque, em razão do direito

que cada um tem à sua própria organização, ninguém está autorizado a dominar de maneira tão ampla”, em

Idem.

73

de que as instituições estão sincronizadas com a esfera organizatória de cada pessoa,

quando frustrada leva a crimes que Jakobs classifica como “crimes de infração de dever”

ou “crimes por responsabilidade institucional”299. No Tratado, essa necessidade de

funcionamento regular das instituições elementares está associada somente à regulação

do comportamento normativo, de tal forma que os participantes do contato social

precisam saber quando estão diante dessa regulação. Jakobs dá como exemplo o sujeito

que, para não colocar outras pessoas em perigo, necessita saber o que é um

comportamento perigoso. Daí sua assertiva de que “a obediência normativa não é possível

sem que se saiba como o mundo é organizado e segundo quais regras as modificações

estão conectadas umas às outras”300.

Essa regulação está associada à ideia de que são garantidas jurídico-penalmente

apenas aquelas normas cuja observância é imprescindível para a manutenção da

organização social essencial. Quando essas normas são violadas estamos diante de um

conflito jurídico-penal, e a pena, neste contexto, contradiz a contradição à norma

manifestada pelo comportamento delitivo. Este é o significado da pena, qual seja, “que a

relevância do comportamento violador da norma não é determinante e que a norma

sempre é determinante”301. Já a função da pena é apresentada, citando uma vez mais

Luhmann, como “confirmação da eficácia da norma”302, e não como evitação de lesões a

bens jurídicos. Dessa forma Jakobs resume sua proposta, a partir da qual a pena tem como

função preservar a norma enquanto modelo de orientação para contatos sociais, sendo o

conteúdo da norma uma oposição à custa do infrator contra a desautorização da norma303.

É importante notar que o diálogo com Luhmann para a determinação dos

fundamentos do Direito penal não termina por aqui. Feitas essas considerações, Jakobs

aborda a questão da solução do conflito sem pena, e salienta que nem toda violação

normativa é seguida de pena. Segundo o penalista alemão, a sistematização das

possibilidades de apartar o agente de sua violação normativa, quais sejam, na hipótese em

que a competência do agente pode ser contestada e na hipótese em que a situação na qual

o agente age pode ser definida como situação especial, essas possibilidades são

organizadas na teoria da culpabilidade. O tema que merece ser destacado aqui, e que não

será retomado por Jakobs em escritos posteriores, é o da substituição da pena por

299 Idem. 300 Idem. 301 Ibidem, p. 26. 302 Idem. 303 Ibidem, p. 27.

74

equivalentes funcionais. Jakobs apresenta algumas possibilidades disso acontecer (o

conflito pode ser atribuído à vítima; pode-se renunciar à expectativa frustrada pela

impossibilidade efetiva de estabilizá-la; é possível perceber o conflito e comportar-se

como se não se tivesse tomado conhecimento dele, entre outras alternativas304), chegando

a afirmar que uma sanção civil e mesmo uma poena naturalis, que também reforçam a

desaprovação do comportamento que contradiz a norma, também podem substituir uma

sentença de culpabilidade.

Todas essas considerações permitem a Jakobs formular seu conceito de prevenção

geral positiva, como já ressaltado. Uma vez que a pena não se limita a significar algo – a

contradição do comportamento que contradiz a norma jurídico-penalmente garantida, isto

é, aquela expectativa normativa imprescindível para a manutenção da organização social

essencial –, mas também garante a configuração das condições de interação social,

evidencia-se aqui sua função preventiva. Segundo Jakobs, “a proteção se dá por

intermédio da validação da confiança daqueles que confiam na norma”305, no sentido de

que todos as pessoas são destinatárias da pena, pois na medida em que não podem

prescindir das interações sociais, precisam saber o que podem esperar de tais interações.

Essa informação é oferecida pela sanção penal, razão pela qual sustenta que, nesse

sentido, a pena é aplicada para exercitar a confiança normativa. Além disso, ao

proporcionar consequências dispendiosas, a pena reforça a ideia de que o comportamento

do autor é inaceitável e, nesse sentido, aplica-se a pena para exercitar a fidelidade

jurídica. No mais, ela também é responsável por estabelecer a conexão entre

comportamento que contradiz a vigência da norma e essas consequências dispendiosas e,

nesse sentido, “trata-se de exercitar a aceitação das consequências”. Tudo isso está

articulado naquilo que Jakobs chama de prevenção geral por meio do exercício do

reconhecimento normativo, isto é, prevenção geral positiva306.

Se, como destacado, a teoria luhmanniana é fundamental para a compreensão da

função da pena, e se esta é responsável pela (re)normatização dos conceitos da dogmática

jurídico penal, parece razoável afirmar que a forma como Jakobs apropria-se de Luhmann

para a determinação da função da pena terá ressonância em toda a sua teoria da imputação.

E não só. Mesmo na temática referente à legitimação material do Direito penal a

influência do sociólogo de Bielefeld é notada, principalmente na identificação feita por

304 Ibidem, p. 28-29. 305 Ibidem, p. 32. 306 Idem.

75

Jakobs entre expectativas normativas e normas essenciais da sociedade e do Estado. Nesse

sentido, é importante apresentar como Jakobs aborda a questão do nível de referência da

tutela jurídico-penal. Para o penalista alemão, “a legitimação material [do Direito penal]

consiste no fato de as leis penais serem necessárias à manutenção da configuração da

sociedade e do Estado”307, e uma vez que essa configuração é dada por normas, a

contribuição do direito penal está justamente na garantia dessas normas. E, ao identificar

tais normas com as expectativas indispensáveis ao funcionamento da vida social, afirma

que o bem a ser protegido pelo direito penal é “a solidez das expectativas normativas

essenciais frente à decepção”308, ou seja, para o penalista alemão importa que o direito

penal seja capaz de garantir a segurança dessas expectativas, isto é, que seja capaz de

garantir a não alteração dessas expectativas. Dessa forma, “Luhmann segundo Jakobs”

também está na origem da crítica que vê na proteção subsidiária de bens jurídicos a função

do direito penal.

Feitas essas considerações acerca da teoria da pena no Tratado, ainda é importante

destacar a forma como a macrossociologia luhmanniana integra a teoria da imputação de

Jakobs, composta pelos conceitos de comportamento do sujeito, violação normativa e

culpabilidade. A articulação com a função da pena, já destacada, é apresentada por Jakobs

de imediato: “a função da imputação resulta da função da pena (...). A imputação

estabelece qual pessoa deve ser punida para estabilização da eficácia normativa”309.

Como, então, a teoria de Luhmann pode ser observada neste campo?

As referências diretas ao sociólogo alemão são escassas. De forma geral, Jakobs

utiliza-se do arcabouço teórico desenvolvido no âmbito da teoria da pena para

fundamentar suas reflexões, o que faz do Tratado uma das obras mais bem articuladas.

Mas alguns diálogos interessantes com Luhmann podem ser observados, seja no conceito

de conduta, no âmbito da imputação objetiva, ou mesmo no chamado conceito funcional

da culpabilidade. Nesse sentido, ao tratar a questão do conceito de conduta, Jakobs

apresenta sua concepção de conduta como causação do resultado individualmente

evitável, e a primeira referência ao sociólogo alemão aparece quando sustenta que seria

mais razoável substituir o chamado conceito de conduta pelo esclarecimento acerca “do

307 Ibidem, p. 61. 308 Idem. 309 Ibidem, p. 185.

76

que é um sujeito, do que é mundo exterior para o sujeito e de quando a conformação do

mundo externo pode ser relacionada com o sujeito (pode lhe ser imputada)”310.

Esta compreensão da conduta, que articula o sujeito que se comporta

evitavelmente de forma decepcionante com o mundo configurado por esse sujeito, e que

é inspirada em Luhmann, será desenvolvida na temática a respeito do conceito de tipo.

Após estabelecer que o injusto é uma conduta não tolerável socialmente, Jakobs apresenta

sua ideia de que a estrutura tripartite do crime não descreve de forma razoável a relação

entre tipo e injusto311. Para o penalista alemão, o conceito de tipo não é estabelecido antes

do conceito de conduta, razão pela qual o problema do que seja uma conduta não pode

ser solucionado mediante sua classificação como um problema do tipo312. E aqui a

influência de Luhmann presente na determinação da conduta volta à tona: segundo

Jakobs, a solução do que seja conduta deve materializar-se a partir das normas existentes,

de tal forma que “a conduta constitui, no crime comissivo, o maior denominador comum,

absoluto, de todos os tipos”313, e após relembrar a relação entre conduta e configuração

do mundo pelo sujeito, afirma que “todos os tipos descrevem conformações do mundo

realizadas pelo sujeito que frustram expectativas”314. O mesmo raciocínio está presente

na discussão em torno do resultado como integrante do injusto. Jakobs sustenta que esta

polêmica só faz sentido “se conduzida como polêmica sobre qual conceito de injusto é

mais apto à sistematização de um Direito Penal ao qual interessa a estabilização de

expectativas”315. Dessa forma, sua conclusão é que o resultado complementa a conduta

de tentativa, convertendo-a em conduta de consumação e, da mesma forma, complementa

o injusto de tentativa, tornando-o injusto de consumação316.

310 Ibidem, p. 202, com especial atenção à nota 64. A preocupação de Jakobs aqui é separar o que compete

ao Direito e, consequentemente, ao Direito penal, daquilo que compete, por exemplo, à Psicanálise. Em

Jakobs a crítica à subjetivação do injusto deve ser entendida como busca pela descrição da forma como a

responsabilidade é imputada pelo Direito penal, de tal forma que este seleciona fatos psíquicos. Assim, “o

que, por exemplo, para o Direito Penal, representa homicídio para satisfação do instinto sexual, ou sejam

um output tencionado por um sujeito, pode ser, do ponto de vista da Psicanálise, um “desmoronamento dos

mecanismos psíquicos de defesa”, ou seja, o indício de um sujeito que já não é mais íntegro”, em Ibidem,

p. 447. 311 Ibidem, p. 231. 312 Ibidem, p. 237. 313 Idem. 314 Idem. 315 Ibidem, p. 239. Essa discussão é importante no âmbito da tentativa. Em Jakobs, ao se analisar o crime,

não se trata de observar a relevância individual, mas social do comportamento, que jamais pode ser lida na

mente do agente, razão pela qual só pode ser deduzida a partir do fato. Por isso afirma que “é apenas quanto

ao agente que o fato começa com o dolo; para as outras pessoas, ele começa com sua objetivação”. Na

tentativa, tal como entendida atualmente, trata-se de injusto representado (subjetivamente). Ora, essa

compreensão, segundo Jakobs, não apresenta um conceito de perturbação que já é manifestado, mesmo na

tentativa, ao se agredir a norma. Ver ibidem, p. 239-242. 316 Ibidem, p. 243.

77

O desenvolvimento dessas reflexões, nas quais o conceito de expectativa

normativa está sempre presente, também pode ser observado no âmbito da imputação

objetiva, quando Jakobs afirma que os institutos desta podem ser reduzidos a duas raízes

de conteúdos distintos: de um lado, a finalidade do direito penal de garantir a segurança

das expectativas, da qual deriva a ideia de que o comportamento socialmente adequado

não pode ser imputado como injusto. Dessa forma, os institutos do risco permitido, do

princípio da confiança e da proibição de regresso, que buscam explicar a adequação

social, articulam o socialmente adequado com a noção de expectativas normativas

estáveis e indispensáveis da sociedade; do outro lado, esses institutos servem à forma de

regulação predominante no Direito penal, qual seja a dos crimes de resultado. Aqui

entram em consideração questões atinentes à causalidade e ao princípio da confiança,

sendo a abordagem sobre o concurso de riscos a responsável por apresentar os

pressupostos da concretização do risco criado de modo não autorizado pelo agente317.

Como pode-se perceber, Luhmann aparece difusamente na teoria da imputação de

Jakobs, estando na maior parte das vezes implícito na determinação dos conceitos pela

função da pena. As reflexões do penalista de Bonn sobre o dolo e a culpa, neste sentido,

também remetem, ainda que indiretamente, à teoria luhmanniana. Assim, após salientar

que tanto o dolo quanto a culpa são formas da evitabilidade, Jakobs compreende esta

como um conceito geral em comparação com o dolo, na medida em que ambos são

determinados em função da cognoscibilidade da realização do fato: “no dolo, a

cognoscibilidade é estendida até o conhecimento; na culpa não”318. Nessa perspectiva,

nos crimes de resultado a caracterização dolosa deverá conter uma descrição detalhada

do comportamento proibido, ao passo que, em se tratando de caracterização culposa, este

detalhamento não será preciso. O injusto culposo, assim, pertence à evitabilidade

individual, de tal forma que essa individualização corresponde à função do Direito penal,

“que não garante a expectativa de que todas as pessoas tenham a mesma capacidade, mas

a expectativa da motivação fiel ao Direito”319.

Também no âmbito da culpabilidade encontra-se uma ressonância luhmanniana,

como já notado em escritos anteriores. A culpabilidade está relacionada com a

317 Idem. 318 Ibidem, p. 450. Deve-se lembrar que Jakobs compreende o dolo como conhecimento da conduta junto

com as consequências. Para um esclarecimento acerca dessas questões, ver Ibidem, p. 370-404. Para uma

referência mais ampla, atenta à discussão doutrinária, ver PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa.

Barueri: Manole, 2004. 319 Ibidem, p. 459.

78

responsabilidade pela falta de motivação jurídica dominante. Por essa razão Jakobs

apresenta o conceito como “falta de fidelidade ao Direito”320. Após salientar que uma

teoria da culpabilidade não pode ser desenvolvida somente a partir da finalidade da pena,

já que o conteúdo da culpabilidade também depende da constituição da sociedade, o

penalista de Bonn afirma que a função deste conceito consiste “em caracterizar o motivo

do conflito como motivação do autor”321. Ou seja, diante do déficit de motivação jurídica

objetivado, e não se observando qualquer mudança promovida pelo autor após o fato, este

autor deverá ser, então, punido322, estando presentes aqui as finalidades de manter a

confiança geral na norma e de exercitar o reconhecimento geral desta. Jakobs utiliza,

então, o conceito de “sistema psicofísico” de Luhmann: “para a fundamentação de uma

ação (típica e antijurídica) forma-se um sistema psicofísico; o output desse sistema

(autor) é ação quando ele não se realizaria por se supor o motivo dominante para evitá-

lo”323. Dessa maneira estão articulados os conceitos de conduta, evitabilidade e

culpabilidade: a ação é vinculada ao poder de motivação, de tal forma que possa ser

definida devido à responsabilidade do autor “por sua motivação como sua própria

expressão de sentido do conteúdo de que o mundo deve assim ser e não de maneira

diferente”324.

É importante destacar que Jakobs separa conteúdo da norma (relacionado às

expectativas normativas) e reconhecimento da norma, razão pela qual sustenta que a

norma pressupõe a possibilidade de seu reconhecimento. E valendo-se uma vez mais do

conceito de “sistema psicofísico”, sustenta que este é abordado, no conceito de ação,

como problema do autor, ao passo que, no conceito de culpabilidade, trata-se de abordá-

lo a partir “da determinação de quais fatores relevantes para a motivação pertencem ao

âmbito de tarefas do autor e a quais fatores o autor pode remeter como não disponíveis a

ele”325. Este aspecto do conceito de culpabilidade é crucial para a presente pesquisa, pois

nele observa-se uma abertura para questões sociais (como, por exemplo, a exclusão

320 Ibidem, p. 675. 321 Ibidem, p. 687. 322 É importante observar, aqui, a nota 48. Nela Jakobs afirma que essa punição deve ser compreendida

como pena num sentido amplo, “como qualquer reação agravante formal”. Esta ressalva é fundamental para

a hipótese que norteia nossa pesquisa, uma vez que, na terceira fase de seu pensamento, Jakobs articulará

a pena à dor penal como necessidade de garantia do alicerce cognitivo. Ora, é evidente que, nesta

configuração, as outras reações formais que Jakobs menciona no Tratado ficam excluídas, justamente por

não apresentarem qualquer relação com a dor. Essas alternativas, entretanto, poderiam ser atualizadas diante

de premissas que marginalizassem este “giro fático” do penalista alemão. Ver Ibidem, p. 689, nota 48. 323 Ibidem, p. 689-690. 324 Ibidem, p. 690. 325 Ibidem, p. 690-691.

79

social). Que estas questões possam ser abordadas desde uma perspectiva comunicativa,

tal como formulada por Günther, na esteira de Habermas, não significa que esta seja a

única possibilidade a ser desenvolvida326. E esta é uma interpretação favorecida pelas

próprias palavras de Jakobs, que uma vez mais se vale de expressões luhmannianas (no

caso, subsistemas):

“Para a determinação da culpabilidade, deve-se, então,

acordar quantas pressões sociais podem ser imputadas ao autor

afetado pela atribuição de culpabilidade e quantas

particularidades perturbadoras do autor têm que ser aceitas pelo

Estado e pela sociedade ou arcadas por terceiros – também pela

própria vítima. O resultado orienta-se, primeiramente, pela

concepção dominante daquelas condições que devem ser

irrenunciáveis para a existência de todo o sistema e de seus

subsistemas essenciais. A elas pode também pertencer,

obviamente, a tolerância perante particularidades individuais

perturbadoras”327.

Com essa abertura à temática social por meio da articulação entre o conceito de

culpabilidade e a chamada constituição social está finalizada a pesquisa referente à

presença de Luhmann no Tratado de Jakobs. No entanto, antes de analisar como a teoria

luhmanniana manifesta-se nos escritos da segunda fase, é de bom tom notar que a

dependência da culpabilidade em relação à constituição da sociedade328 apresenta seus

limites, como bem salienta o próprio Jakobs no prefácio à edição brasileira, escrito em

326 Trata-se aqui de enfatizar a possibilidade de desenvolvimento dessas questões, notadamente a referência

à temática da exclusão social no âmbito da determinação da responsabilidade jurídico-penal, a partir da

teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann. 327 Ibidem, p. 691-692. 328 Por isso Jakobs sustenta a irrelevância do livre-arbítrio, já que a suportabilidade do alcance da

responsabilidade existe independentemente da questão de saber se o autor era livre ou não. Nesse sentido,

o penalista alemão afirma que “quando amplamente se postula o livre-arbítrio como requisito de toda

culpabilidade ou, em uma versão moderada, livre-arbítrio pelo menos como requisito geral da

culpabilidade, concedendo-se, evidentemente, que o livre-arbítrio não pode ser averiguado no caso concreto

(deve importar, no caso concreto, um “poder” generalizado), então, este conceito, que não tem nenhuma

dimensão social, só se faz necessário quando, com o juízo de culpabilidade, não se quer alcançar

unicamente um efeito social, mas também uma desvalorização do indivíduo (“repreensibilidade”). Em uma

restrição ao asseguramento da ordem social, na culpabilidade não se trata de que o autor tem realmente, e

não apenas em determinação normativa, uma alternativa de comportamento realizável a nível individual,

mas se há uma alternativa de organização para a atribuição ao autor que seja, em geral, preferível. Caso

falte uma alternativa de organização, atribui-se ao autor uma alternativa de comportamento e se lhe imputa

sua não-utilização”. Ver Ibidem, p. 694-695.

80

2008, no qual apresenta uma restrição à imputação legítima, na medida em que nem toda

e qualquer sociedade pode ter suas condições de existência garantidas às custas dos

cidadãos. Nesse sentido, Jakobs deixa claro que esta garantia só é possível quando

estamos diante “de uma sociedade que satisfaça as exigências da modernidade, ou seja,

que ofereça, especialmente nos âmbitos da educação, da política e da economia, chances

de participação que possibilitem uma existência livre”329.

1.4.3. Na segunda fase

Apresentada a forma como “Luhmann segundo Jakobs” está inserida na primeira

fase e no Tratado de Jakobs, cumpre agora esclarecer como isso acontece na segunda fase

de seu pensamento, que segundo a classificação aqui proposta termina no ano 2000330. Já

foi enfatizado que neste momento o conceito de prevenção geral positiva é caracterizado

pela ênfase na dimensão significativo-comunicativa do injusto e da pena, pela

marginalização gradual dos efeitos de psicologia social e pela articulação entre pessoa

enquanto portador de direitos e deveres e relevância da economia na construção desta

atribuição de sentido. Aqui, a presença de Luhmann pode ser observada a partir da análise

de alguns textos fundamentais.

O mais importante deles é Sociedade, norma e pessoa, de 1995, no qual Jakobs

manifesta-se acerca da forma como se apropria de Luhmann e, ao final, apresenta uma

crítica ao conceito luhmanniano de comunicação. Assim, logo no início das considerações

preliminares o penalista alemão reafirma uma tese já conhecida, qual seja a ideia de que

o Direito penal está orientado a garantir a identidade normativa, é dizer, tem a missão de

garantir a constituição da sociedade formada por aquelas expectativas normativas

essenciais. Após enfatizar que, nessa perspectiva, não se entende a sociedade a partir do

ponto de vista da consciência individual, Jakobs sustenta que, assim como a consciência

segue suas próprias regras, também a comunicação opera da mesma maneira331.

329 Ibidem, p. 673. 330 A razão pela qual não se segue a divisão feita por Bernardo Feijoo Sánchez e Manuel Cancio Meliá está

no fato de que no artigo Personalidade e exclusão em direito penal, de 2001, Jakobs já defende a

necessidade da teoria da pena preocupar-se com os chamados “efeitos latentes” que, enquanto elementos

cognitivos para fins de psicologia social, estavam ausentes do conceito de prevenção geral da segunda fase,

chegando inclusive a relacionar isso com o direito penal do inimigo, como será demonstrado. Por isso

entende-se que este texto dá início à chamada terceira fase, na qual a defesa da dor como instrumento para

dar garantia cognitiva aos entes normativos será um desenvolvimento desta ideia. 331 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 02.

81

Essa diferenciação corresponde àquela feita por Luhmann entre sistemas sociais

– baseados na comunicação – e sistemas psíquicos – baseados na consciência. E essa

influência é destacada pelo próprio Jakobs, que citando O direito da sociedade afirma: “a

exposição mais esclarecedora da diferenciação entre sistemas sociais e psíquicos, que tem

consequências para o sistema jurídico, ainda que com uma enorme distância em relação

ao Direito Penal, encontra-se na atualidade na teoria dos sistemas de Luhmann”332. O

fundamental, aqui, está nesta “enorme distância” mencionada, já que Jakobs

explicitamente admite que um conhecimento superficial da teoria de Luhmann permitiria

ao leitor perceber que suas considerações não são em absoluto consequentes à essa teoria,

“e isso nem sequer no que se refere a todas as questões fundamentais”333.

Mesmo fazendo essa advertência, Jakobs continua dialogando com a teoria

autopoiética dos sistemas sociais.Assim, ao apresentar os fundamentos de sua proposta

teórica, cita Luhmann para dizer que “são funções as prestações que – sozinhas ou

juntamente com outras – mantêm um sistema”334. Logo em seguida Jakobs apresenta as

características gerais de sua proposta, tendo como alicerce a perspectiva comunicativa da

pena, segundo a qual o fato é compreendido como afirmação que contradiz a norma, e a

pena como resposta que confirma a norma, sendo esta uma relação racional.

Consequentemente, a prestação que realiza o direito penal consiste em contradizer a

contradição das normas determinantes da identidade da sociedade, razão pela qual afirma-

se que o direito penal confirma a identidade social, formada por aquelas expectativas

normativas essenciais. Dessa forma, o delito passa a ser compreendido como “falha de

comunicação” imputada ao autor como culpa sua. Assim, a sociedade mantém suas

normas e nega a possibilidade de se conceber de forma alternativa, de tal modo que Jakobs

afirma que a pena “não é tão-somente um meio para manter a identidade social, mas já

constitui essa própria manutenção”335.

Se a referência a Luhmann aparecera até então explicitamente na diferenciação

entre comunicação e consciência e no conceito de prestação, e implicitamente no conceito

de identidade social, Jakobs volta a mencioná-lo ao abordar a questão da autossuficiência

do sistema jurídico, a partir da qual se pergunta pelo problema social específico que

332 Idem. 333 Ibidem, p. 03. 334 Idem. 335 Ibidem, p. 04. Perceba-se a ênfase na compreensão comunicativa da pena, que acaba colocando em

segundo plano os efeitos de psicologia social presentes na primeira fase, como já destacado.

82

compete ao direito solucionar. E Jakobs responde: “o funcionalismo afirma que o que há

de ser resolvido é sempre um problema do sistema social”336.

Para deixar claro seu raciocínio, o penalista de Bonn utiliza-se uma vez mais do

arcabouço teórico luhmanniano, primeiramente de forma implícita (utilizando o conceito

de sistema social parcial), e após de forma explícita (utilizando a ideia de que o sistema

precisa transformar a complexidade do ambiente em complexidade estruturada). Assim,

“a solução de um problema social por meio do Direito Penal tem lugar em todo caso por

meio do sistema jurídico enquanto sistema social parcial, e isso significa que tem lugar

dentro da sociedade”337. Ou seja, o direito penal seria uma espécie de cartão de visitas da

sociedade – já que tem a função de garantir sua identidade –,existindo assim uma

dependência recíproca entre sociedade e direito penal, manifestada na possibilidade deste

atender às demandas daquela, “até que o sistema jurídico alcance uma complexidade

adequada com referência ao sistema social, do mesmo modo que inversamente o Direito

Penal pode recordar a sociedade que deve ter em conta certas máximas que se consideram

indisponíveis”338.

É a partir desta identificação entre direito penal e sociedade que Jakobs procura

esclarecer por que a configuração da identidade normativa que realiza o direito penal

resolve um problema social. O raciocínio que permite essa articulação tem como premissa

a compreensão de que a sociedade é composta por normas, naquilo que já foi apresentado

como identificação entre ordem social e ordem normativa339. Assim, uma parte dessas

normas seria dada pelo “mundo racional”, que por serem asseguradas de modo suficiente

pela via cognitiva não necessitam de uma estabilização especial, ao passo que outra parte

dessas normas não possuiriam uma força genuína que possibilitasse a auto-estabilização,

de tal forma que estariam sujeitas à livre disposição dos homens. O alto grau de

contingência decorrente dessa situação faz com que o direito penal, segundo Jakobs, deva

336 Ibidem, p. 05. 337 Ibidem, p. 07. 338 Ibidem, p. 08-09. Segundo Jakobs, “nem o sistema social nem o sistema jurídico saltam por cima de sua

própria sombra. Portanto, por um lado, não se pode relegar o Direito Penal ao papel de um mero lacaio,

pois é parte da sociedade e, dizendo com uma metáfora, deve ter um aspecto respeitável ainda a plena luz

do dia. Mas, por outro lado, o Direito Penal tampouco pode constituir-se na base de uma revolução social,

pois como não mais contribua à manutenção da configuração desta (ainda que, evidentemente, se trate de

uma configuração suscetível de evoluir), falta a base sobre a qual poderia iniciar-se com êxito uma

revolução”, em Ibidem, p. 09. 339 Posteriormente, Jakobs sustentará que a sociedade é comunicação, e diz estar seguindo a teoria dos

sistemas para fundamentar essa compreensão, como já salientado. Isso significaria identificar comunicação

e normas, no sentido de que a comunicação seria regida por normas. Entretanto, essa compreensão não

pode ter como premissa a teoria luhmanniana, como será demonstrado.

83

garantir a vigência dessas normas340, pois diante do projeto de mundo do infrator da

norma, que afirma a não vigência desta, a pena confirmaria que essa afirmação do autor

é irrelevante, contradizendo seu projeto de mundo e reestabelecendo a vigência da norma.

Essas considerações objetivam a compreensão do direito penal como cartão de visitas da

sociedade.

Diante dessas considerações, e como consequência de sua crítica à subjetivação

do injusto, Jakobs trata de afirmar que a subjetividade do autor só pode ser construída a

partir do âmbito social, afastando a contraposição entre subjetividade e socialidade. Isso

significa que a sociedade é responsável por fornecer as condições empíricas da

subjetividade, ou, nas palavras do autor, “sem processo de comunicação não se geram

sujeitos livres”341, é dizer, “apenas ante o transcendente do sentido comunicativo surge o

sentido subjetivo”342. E essa consideração, relacionada à inclusão do indivíduo na

sociedade, é apresentada por Jakobs como forma de evitar o entendimento que antepõe o

sujeito à sociedade, ou a sociedade ao sujeito. E, uma vez mais citando Luhmann, afirma:

“dizendo de outro modo, a subjetividade não só é um pressuposto, mas também uma

consequência da socialidade”343. É a partir dessas reflexões que inclusão e exclusão

passam a ser objeto de consideração.

Não há dúvidas de que a questão da inclusão relaciona-se, ao mesmo tempo, com

a questão da exclusão, e também neste ponto a teoria luhmanniana serve de apoio para

Jakobs, já que ressalta que um tipo de sociedade não-instrumental (em contraposição à

sociedade escravocrata) só tem início quando as normas vinculam ambas as partes.

Assim, dialogando com Luhmann, concorda com este que não existiria exclusão de

pessoas da sociedade, deixando claro que que isso não significa dizer que todos os seres

humanos sejam pessoas344. Assim Jakobs manifesta seu entendimento de que “pessoa”

(cidadão detentor de deveres e direitos) é uma atribuição social, uma construção a partir

da qual o indivíduo acaba sendo destinatário de expectativas normativas, podendo por

isso ser valorado enquanto cidadão fiel ao direito345.

340 Como já salientamos, em textos posteriores a contraposição entre mundo natural e mundo social será

apresentada, explicitamente, a partir da diferenciação entre expectativas cognitivas e expectativas

normativas. Ver JAKOBS, Günther. Sobre la nornativización de la dogmática jurídico-penal. Madrid:

Civitas, 2003, p. 49. 341 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 17. 342 Ibidem, p. 17-18. 343 Ibidem, p. 18. 344 Ibidem, p. 21. 345 O leitor perceberá esta fundamentação em um texto de 2003, mas que já apresentamos no primeiro

momento para facilitar a compreensão: a pessoa, em Jakobs, será compreendida como construção social do

84

Feita esta explicação, cumpre observar, ainda em Sociedade, norma e pessoa,

como Jakobs articula todas essas considerações ao abordar o tema da imputação pessoal.

Após enfatizar que o Direito penal reage a uma perturbação social e criticar novamente a

subjetivação do injusto, Jakobs reafirma que a perturbação social deve ser compreendida

desde uma perspectiva social, na qual ganham notoriedade o conceito de pessoa

(referência implícita a Luhmann) e o entendimento da norma enquanto expectativa

normativa institucionalizada (referência explícita a Luhmann). Partindo da premissa de

que a subjetividade de um ser humano nunca é acessível a outro de modo direito, mas

somente por meio de manifestações que se inserem em horizonte aberto de manifestações

concorrentes346, Jakobs resume seu entendimento da seguinte forma:

“Portanto, deve desenvolver-se um padrão

conforme ao qual pode mostrar-se o significado

vinculante de qualquer comportamento. E se se quiser

que esse padrão crie ordem, este não pode assumir o

caos da massa de peculiaridades subjetivas, ao

contrário, deve orientar-se sobre a base de standarts,

funções, estruturas objetivas. Dizendo de outro modo, os

atores e os demais intervenientes não se tomam como

indivíduos com intenções e preferências altamente

diversas, mas como aquilo que devem ser a partir do

ponto de vista do Direito: como pessoas”347.

Neste momento é fundamental atentar para a identificação entre frustração de

expectativas e violação de papel. Isso remete ao entendimento do penalista alemão de que

as expectativas que são garantidas pelo direito, e consequentemente pelo Direito penal,

só são frustradas por aquilo que denomina como “conduta objetivamente imperfeita”, isso

é, sem se levar em conta aspectos individuais348. Importa aqui perceber que, para Jakobs,

Direito, como alguém que deve cumprir deveres e que também é titular de direitos, ou seja, alguém que

mantém uma fidelidade ao Direito. Ver Ibidem, p. 19-21. 346 Ibidem, p. 31. 347 Ibidem, p. 33. 348 Isso traz especiais consequências para a compreensão do dolo. Nesse sentido, Jakobs afirma que “posto

que do que se trata é de pessoas e não de sujeitos, a partir da perspectiva funcional os conhecimentos atuais

do sujeito carecem da importância que lhe concede a dogmática tradicional, naturalista e apegada ao ato

psíquico”, em Ibidem, p. 35.

85

todas as expectativas se dirigem a pessoas, ou seja, a portadores de um papel. Por isso ele

sustenta que “o requisito mínimo de uma frustração é a violação de um papel”349.

Ora, esta forma de se compreender a imputação trará consequências para o âmbito

da culpabilidade, apesar da advertência feita por Jakobs sobre a forma como ele mesmo

apropria-se de Luhmann. A teoria da culpabilidade, que no Tratado estava articulada com

determinada compreensão da sociedade, aberta às questões sociais (dentre as quais poder-

se-ia incluir a exclusão social, como salientado), e que segundo o próprio Jakobs, anos

depois, só articula-se com uma imputação legítima na medida em que esta sociedade

garanta as condições da modernidade associadas ao livre existir, também será objeto de

reflexão em Sociedade, norma e pessoa. Jakobs continua enfatizando o caráter decisivo

da culpabilidade, como já fizera no Tratado, mas neste momento apresenta a distinção

entre sociedade e mundo exterior como distinção fundamental da explicação funcional da

culpabilidade. Esta distinção está associada à diferenciação entre sentido e natureza, na

medida em que na sociedade, ou seja, no âmbito comunicacional, existiria produção de

sentido, ao passo que no mundo exterior existiria a natureza. O que deve ser destacado é

que a responsável por essa distinção é, justamente, a culpabilidade. Ou seja, se não existe

culpabilidade estamos diante de uma comunicação (conduta com sentido) aparente. Como

explica Jakobs, “na verdade, tratar-se-ia de simples natureza, vale dizer, das

consequências de uma enfermidade, de um erro inevitável, de uma necessidade absoluta

ou de perturbação, medo, pânico etc.”350.

Note-se que Jakobs chega a questionar até que ponto seria importante levar em

consideração os defeitos psíquicos e físicos do autor no momento da imputação objetiva,

valendo-se uma vez mais da teoria luhmanniana. Após salientar que é habitual considerar

os defeitos físicos, mas não os psíquicos, considera que o fundamento desta diferenciação

poderia residir em que aqueles “podem ser apreciados mais facilmente que os psíquicos

e, por conseguinte, a expectativa normativa se transforma com igual frequência antes

numa expectativa cognitiva”351. É a partir deste entendimento que o penalista alemão

afirma, sem qualquer referência à ideia de abertura às questões sociais, que o direito penal

só pode garantir a contradição de toda expressão de sentido (comunicação) que manifeste

349 Ibidem, p. 34. 350 Ibidem, p. 39-40. 351 Ibidem, p. 40-41.

86

que a norma carece de validade352. Por isso o direito penal se desenvolve na comunicação,

de tal forma que seus atores, compreendidos como pessoas (autor, vítima e juiz), são

estipulados pela sociedade, e não pela sentimento individual. Todas essas reflexões

seriam uma descrição neutra que a teoria funcional proporciona353.

Por fim, importa destacar como a teoria luhmanniana está presente quando Jakobs

aborda os tipos de comunicação existentes na sociedade. Esta presença, neste particular

tópico, é uma presença conflituosa, “negativa”, como já destacado. Segundo o penalista

de Bonn, na sociedade existiriam dois tipos de comunicação: instrumental e pessoal. Esta

distinção é manifestamente contrária ao entendimento luhmanninao que vê na

comunicação a operação genuinamente social sem, entretanto, estabelecer tipos de

comunicação. Jakobs deixa isso claro na nota 84, quando afirma que quem (Luhmann)

rejeita a tese de que a sociedade possa ser construída a partir de sujeitos ou estabelecida

entre sujeitos “não fundamenta com isso que exista apenas um tipo homogêneo de

comunicação, vale dizer, de sociedade”354, razão pela qual pode se dizer que seus

conceitos de comunicação instrumental e comunicação pessoal, que segundo ele

coexistem na sociedade, são uma alternativa crítica à proposta luhmanniana. Assim, é

interessante sublinhar que na comunicação instrumental o outro é visto como um cálculo

estratégico, o participante não se vê obrigado a nada, é dizer, não pratica qualquer dever

para com o outro, já que prevaleceria um código individual de satisfação/insatisfação

(indivíduo que se considera centro preferencial do mundo355). Já a comunicação pessoal

seria o âmbito das expectativas normativas, no qual o outro é visto como um igual, como

pessoa, detentor de deveres e direitos356, prevalecendo um código normativo que vincula

as pessoas (indivíduo ao qual é atribuído o papel de cidadão detentor de direito e

deveres357).

É fundamental atentar para o fato de que neste momento Jakobs compreende a

comunicação econômica como comunicação instrumental358, ao passo que as

comunicações jurídicas estariam alocadas no nível pessoal, salientanto que apenas neste

352 Ibidem, p. 41.Valendo-do ainda mais da noção de expectativas, Jakobs afirma: “Se se formula de nova

esta posição com respeito a expectativas, ou a normas, se chega à seguinte conclusão: do ponto de vista

específico do Direito Penal, tão-somente existe a expectativa de que não haja culpabilidade”, em Idem. 353 Ibidem, p. 45. 354 Ibidem, p. 58-59, nota 84. 355 Ibidem, p. 51. 356 Ibidem, p. 46. 357 Ibidem, p. 55. 358 Ibidem, p. 58.

87

existiriam expectativas normativas359. Se por um lado Jakobs entende que “o decisivo não

é determinar um predomínio de um dos tipos de comunicação”360, isso não o impede de

observar que a sociedade atual caminha em direção a uma comunicação instrumental –

uma vez que grande parte da comunicação econômica e da comunicação cotidiana se

desenvolvem dessa forma361 –, deixando para trás a comunicação pessoal. Perceba-se: já

em 1996 Jakobs compreende que a economia possui uma força comunicativa maior, a

ponto de influenciar profundamente o desenvolvimento do tipo de comunicação até então

estabilizado, e para manifestar isso afasta-se de Luhmann. Se Jakobs chega a afirmar que

como consequência desse movimento sua proposta de revisão funcional baseada em uma

sociedade orientada pessoalmente poderia entrar em descrédito, já que teria que pressupor

elementos que pertencem à tradição européia que possivelmente não se atualizaria num

futuro próximo362, logo se perceberá que o penalista de Bonn continuará suas análises

acerca do predomínio da economia. Para tanto, outra crítica à teoria luhmanniana será

feita, e parte do instrumental teórico a pouco apresentado será revisto.

Antes, é importante observar a maneira como Luhmann é incorporado em outros

escritos da segunda fase. Em algum desses textos o diálogo entre os dois autores é muito

mais pontual. Assim, em Imputação jurídico-penal, desenvolvimento do sistema com

base nas condições de vigência da norma, escrito em 1997, Jakobs apresenta uma espécie

de resumo das considerações feitas até então, valendo-se de uma série de conceitos

luhmannianos. Afirma logo no início que o comportamento do autor objetivado no fato

demonstra a defraudação de uma expectativa normativa, razão pela qual a pena contradiz

esta afirmação e restabelece a configuração social da sociedade, isto é, mantém sua

identidade363. Coerentemente com seu posicionamento manifestado em Sociedade,

norma e pessoa, Jakobs volta a insistir – como é característico de sua segunda fase – que

a pena tem uma função (ratificar a identidade da sociedade) que independe da produção

de algo psicossocial364, mas salienta, valendo-se uma vez mais da terminologia

luhmanniana (diferenciação de sistemas parciais) que “não se trata da identidade de um

Direito penal que permanece fiel a si mesmo, mas da identidade da sociedade que

359 Ibidem, p. 56, 59. 360 Ibidem, p. 58. 361 Idem. 362 Ibidem, p. 47. 363 JAKOBS, Günther. Imputación jurídico-penal, desarrollo del sistema con base en las condiciones de la

vigencia de la norma, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa

de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 75. 364 Ibidem, p. 76.

88

diferenciou o Direito penal como sistema parcial”365. Ora, esta é a razão pela qual a reação

à defraudação refere-se à uma expectativa social, pois do contrário não se harmonizaria

sociedade e direito penal.

Já o texto A imputação objetiva em direito penal, de 1998, caracteriza-se pela

análise do processo de imputação objetiva do comportamento a partir do material teórico

presente nos escritos anteriores. Aqui Jakobs aborda de forma mais precisa e elaborada a

questão referente ao papel social. Para tanto, reafirma a ideia de que o conceito de pessoa

refere-se à alguém que, por cumprir expectativas normativas (aquelas fundamentais para

a configuração social), desempenha determinado papel na sociedade. O objetivo, aqui, é

uma vez mais criticar a subjetivação do injusto e sua compreensão naturalistas,

salientando que o conteúdo da imputação ocorre de acordo com o contexto social366, a

partir do qual as pessoas cumprem determinados papeis, sendo esta uma condição da

sociedade moderna para que todos não tenham que, a todo instante, levar em conta as

possíveis consequências do contato social. Dessa forma, Jakobs destaca a necessidade de

se compreender que as garantias normativas estabelecidas pelo Direito penal não têm o

conteúdo de que todos tentem evitar todos os danos possíveis, mas sim de estabelecer

papéis sociais que devem ser cumpridos, possibilitando assim a orientação social com

base em padrões gerais, sem conhecimento das características individuais da pessoa que

atua367.

Este raciocínio permite a Jakobs sustentar que o objetivo da imputação objetiva

(social) do comportamento é imputar “aqueles desvios que dizem respeito àquelas

expectativas que se referem ao portador de um papel”368. Deve-se atentar, novamente,

para a compreensão da expectativa (normativa) como uma chave de segurança que

determina o papel social, já que Jakobs afirma que essas expectativas “configuram o

365 Idem [tradução livre do espanhol]. 366 Jakobs reflete sobre isso a partir de um exemplo: um agricultor compra uma nova máquina, e um de seus

trabalhadores, curioso, toca-a, saindo do ferido no instante seguinte. Neste contexto quatro tipos de

explicações são possíveis: comportamento incorreto da vítima, comportamento incorreto do autor,

comportamento incorreto de um terceiro e desgraça natural. A decisão sobre qual explicação (imputação)

utilizar depende do contexto social e, nesse sentido, afirma: “uma sociedade saturada pela técnica esperará

de um fabricante de máquinas que este não produza novos riscos, e por tanto lhe imporá o dever de garantir

a inocuidade em todas as condições de funcionamento, exonerando deste modo quem adquire a máquina e

a vítima. De modo contrário, uma sociedade que esteja necessitada de avanços técnicos tolerará um certo

número de risco; consequentemente, exonerará o fabricante e imporá ao usuário e à potencial vítima a

obrigação de garantir a segurança”, em JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en Derecho penal.

Colômbia: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 21-22 [tradução livre do espanhol]. 367 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en Derecho penal. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1998, p. 25. 368 Ibidem, p. 26 [tradução livre do espanhol].

89

esquema de interpretação imprescindível para que possam adquirir um significado

socialmente vinculante as ações individuais”369. Ou seja, se a imputação rege-se pelo

contexto social, e se é necessário explicar um acontecimento qualquer levando-se em

conta ou o comportamento incorreto da vítima, ou o comportamento incorreto do autor,

ou o comportamento incorreto de um terceiro, ou como desgraça natural, então a

determinação da explicação correta, isto é, a construção do sentido comunicativo da

imputação, depende fundamentalmente do esquema de interpretação proporcionada por

aquelas expectativas normativas estáveis garantidas pelo direito penal e que se referem à

identidade da sociedade. Vale a pena notar: aqui não é recuperada a premissa pos trás dos

“crimes por responsabilidade institucional”, presente no Tratado, e que referia-se à

expectativa de que as instituições que moldam o mundo antes da compreensão subjetiva

do mundo funcionem regularmente, algo que será retomado posteriormente, ainda que

com outra linguagem.

Pois bem, em Sobre a gênesis da obrigação jurídica, escrito em 1999, Jakobs

procura esclarecer o que é uma obrigação jurídica, que ele também denomina como dever.

Se por um lado será fácil reconhecer a associação entre imputação e papel social, por

outro Jakobs volta a enfatizar o papel da economia mas, desta vez, inserindo-a no âmbito

da comunicação pessoal. Assim, nosso autor estabelece logo de início que falar sobre

imputação significa falar sobre o comportamento que se espera de determinada pessoa

que cumpre um papel, sem se levar em consideração a constituição do indivíduo370.

Partindo do questionamento acerca da possibilidade de uma sociedade poder viver

sem o dever, citando Luhmann371, Jakobs busca então compreender como esta

delimitação do que chama de dever social acontece nas teorias do contrato social. Após

apresentar Kant, Hobbes e Rousseau, o penalista alemão é taxativo ao afirmar a

insuficiência de qualquer contratualismo para fundamentar a noção de dever social, uma

vez que partem do indivíduo para chegar ao social372. De acordo com as premissas de

Jakobs, “a obrigação social não é gerada por empreendimentos de indivíduos, mas

369 Idem (ênfase adicionada). 370 JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1999, p. 08. 371 Ibidem, p. 12. 372 Segundo Jakobs “se pretende construir o geral com individualidades, a partir de suas próprias leis, e da

objetividade não se fala, ou somente no sentido de que ela deve ser colocada em marcha pelas

individualidades – no imperativo categórico (Kant), no reconhecimento do livre arbítrio do senhor como

próprio livre arbítrio (Hobbes) ou na construção de um Estado que elimina seus fundadores definindo-os

como cidadãos (Rousseau)”, em Ibidem, p. 31 [tradução livre do espanhol].

90

aparece genuinamente como esquema de interpretação social”373. E isso significa que, em

uma ordenação do mundo a partir do dever, a partir de normas, espera-se que o mundo se

desenvolva de uma maneira determinada pelo dever e, mais uma vez influenciado por

Luhmann, afirma: “caso isso não aconteça, não se tratará de um defeito de quem tem a

expectativa, mas de um defeito de outra pessoa, precisamente da pessoa à qual compete

o desenvolvimento conforme o dever”374.

Entretanto, logo a seguir Jakobs tece algumas reflexões sobre o que de fato

constitui uma ordem normativa, recuperando a ideia presente no Tratado acerca das

expectativas pelo funcionamento regular das instituições que moldam o mundo. Assim,

após afirmar que o questionamento sobre como a pessoa cumpre seu dever é um assunto

da pessoa, e não do Direito, defende que, uma vez que a pessoa não elimina o ser

indivíduo, os cidadãos abandonariam o Estado caso este não fornecesse uma

sobrevivência suficiente375. Jakobs desenvolve o raciocínio afirmando que, embora o

conceito de sobrevivência suficiente seja relativo, ele serve como limite para a distinção

entre ordem normativa e ordem coercitiva, já que nesta há somente um poder que busca

dirigir os indivíduos por meio do poder. Por isso afirma que a observação de uma

sequência regular entre conduta e sanção não é indício de uma ordem normativa, pois

pode ser que se trate tão somente de uma organização coativa, explicável a partir de

preferenciais individuais376.

Assim, o que importa é que a norma sirva como esquema determinante de

orientação, e não a sanção377, e este é um requisito fundamental para que a ordem

normativa possa dirigir a comunicação. Jakobs enfatiza essa questão e conceitua

comunicação “como sinônimo do entendimento geral sobre o sistema de regras

aplicado”378, mas admite, aqui, que não há qualquer garantia de que determinada

comunicação dominante mantenha-se no futuro, hipótese em que estaríamos diante de

uma coação camuflada. Esta constatação é a ponte que lhe permite perguntar: quando

estamos diante de verdadeiras normas, e não de fantasmas de normas? A resposta passa

373 Idem [tradução livre do espanhol]. 374 Ibidem, p. 35 [tradução livre do espanhol]. 375 Ibidem, p. 38. 376 Ibidem, p. 40 [tradução livre do espanhol]. 377 Jakobs apresenta o seguinte exemplo para contextualizar: “uma norma que ninguém mais considera

legítima, a não ser a polícia, embora esteja determinada, fora da polícia não é uma norma válida, e sim uma

fórmula das condições de aplicação da coação”, em Idem, p. 40 [tradução livre do espanhol]. 378 Ibidem, p. 41 [tradução livre do espanhol].

91

pela retomada do papel da economia na sociedade atual, tema abordado inicialmente em

Sociedade, norma e pessoa, como já destacado.

Ora, se esta primeira articulação foi desenvolvida a partir de uma crítica à teoria

luhmanniana (conceito homogêneo de comunicação), é natural que a partir deste

momento Jakobs interrompa o diálogo com o sociólogo, dando continuidade àquilo que

foi chamado de “presença negativa”. Ou seja, como será demonstrado nos próximos

parágrafos, Jakobs relacionará a sobrevivência suficiente com a força da economiam, e

aqui Luhmann não jogará papel algum. Isso é construído da seguinte forma: o Estado

moderno anuncia aos cidadãos que quem cumpre com o seu dever também viverá, no

plano individual, de modo cômodo. Ora, para isso ser possível o Estado deve efetuar

prestações que garantam este tipo de vida, e isso significa, segundo Jakobs, colocar o

Estado em dependência da economia, isto é, ele só conseguirá cumprir sua promessa de

garantir uma vida cômoda se a economia funcionar379.

Esta compreensão nos leva automaticamente para a compreensão da economia

moderna e da forma como ela se articula com o Estado e, neste contexto, Jakobs sustenta

que “o Estado se converte em um departamento de infraestruturas da economia, à qual

não pode defraudar se não quer perder sua legitimidade de “previsão vital””380. Por isso

que, nos dias atuais, seria facilmente perceptível que a economia apresenta-se como uma

concorrente do Estado na determinação dos deveres sociais e, consequentemente, na

configuração da pessoa381.

Diante deste quadro, Jakobs reflete sobre um problema importante: se a economia,

hoje, determina deveres e configura pessoas, como devemos proceder com aqueles

indivíduos que, por não poderem cooperar com a economia são excluídos (seja porque

são incapazes, seja porque a economia não os necessita)? Nesta situação, o indivíduo

excluído não é pessoa, ou seja, não se comporta primordialmente de acordo com deveres

e direitos, mas sim por meio do código satisfação/insatisfação de interesses próprios. Este

indivíduo até pode reconhecer o sistema jurídico como algo útil, mas permanecerá uma

atitude de reserva para com o direito, no sentido de que a fidelidade (utilitária) jurídica

será quebrada quando esta ruptura prometer benefícios382. São essas reflexões que

379 Ibidem, p. 43 [tradução livre do espanhol]. 380 Ibidem, p. 44 [tradução livre do espanhol]. 381 Ibidem, p. 44-45 [tradução livre do espanhol]. 382 Ibidem, p. 45-46 [tradução livre do espanhol].

92

articulam a presença “positiva” e “negativa” de Luhmann que permitem a Jakobs concluir

que “na atualidade pode se dizer que a economia é a geradora de obrigação”383.

1.4.4. Na ponte para a terceira fase

Como já destacado, alguns textos do final da década de 90 já apresentam um ou

outro elemento que serão amplamente desenvolvidos na terceira fase, principalmente a

partir da articulação destes com a necessidade de dor penal, quais sejam: i) compreensão

do delito como algo que comunica e altera a realidade social (objetivização do delito); ii)

materialização da pena (violência) enquanto resposta ao delito; iii) reconsideração dos

fins de psicologia social no âmbito da teoria da pena. Dessa forma, nas próximas páginas

buscarse-á identificar o material especificamente luhmanniano destes textos.

O primeiro que merece destaque é o contraditório Sobre a teoria da pena, de 1998,

já que nele a ênfase na dimensão significativo-comunicativa e a crítica aos efeitos de

psicologia social ocorrem simultaneamente à abordagem material da pena enquanto

resposta à objetivação do fato delitivo, ideia que será amplamente desenvolvida na

terceira fase com a inserção do elemento dor penal. Neste texto, assim como em outros

deste período, a presença luhmanniana pode ser observada principalmente nos momentos

em que Jakobs reafirma posições passadas. Assim, o penalista de Bonn salienta que a

pena pública existe para caracterizar o delito como delito, ou seja, “como confirmação da

configuração normativa concreta da sociedade”384, manifestando uma vez mais a ideia de

que a pessoa é uma construção jurídica: “pessoa é, portanto, a quem se adscreve um papel

de cidadão respeitoso ao Direito”385.

A percepção de que o texto integra uma ponte é nítida quando o autor critica sua

própria compreensão da prevenção geral positiva presente no Tratado, dialogando

criticamente com os principais textos da segunda fase. Após insistir na ideia de que a pena

confirma a configuração da sociedade, Jakobs admite que a teoria da prevenção geral

positiva elaborada anteriormente está próxima da doutrina de Welzel, que observava na

função ético-social do Direito penal o fortalecimento da atitude favorável ao Direito pelos

cidadãos. Agora Jakobs critica essas duas propostas por terem uma “configuração

383 Ibidem, p. 47 [tradução livre do espanhol]. 384 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal. Estudios

compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 645 [tradução livre do espanhol]. 385 Ibidem, p. 646 [tradução livre do espanhol].

93

demasiadamente psicológica”386, fazendo questão de ressaltar que a pena é um processo

de comunicação, razão pelo qual seu conceito deve relacionar-se tão somente com

questões de comunicação387. Assim, tanto a confiança na norma quanto a atitude

conforme ao direito (fidelidade) – cruciais em Culpabilidade e prevenção e mesmo

no Tratado, como destacado – seriam “somente aspectos derivados da realidade da

sociedade, que é a única decisiva”388. Esses efeitos até poderiam ser desejados, mas não

integrariam o conceito de pena. É a partir desta construção teórica que Jakobs afirma que

a prevenção geral positiva, no que se refere ao aspecto geral, não está relacionada com os

possíveis efeitos em um “grande número de cabeças”, mas com a garantia da

generalidade, isto é, com “a configuração da comunicação”, não estando o aspecto da

prevenção relacionado com algo que se alcança através da pena, mas sim com a

marginalização do significado do fato que em si mesma “tem como efeito a vigência da

norma”389.

Feitas essas considerações, agora é importante analisar como a necessidade de

materizaliação da pena é introduzida em suas considerações, e verificar se a presença de

Luhmann é notada neste momento. Como já destacado, o raciocínio é construído da

seguinte forma: uma vez que o infrator da norma, através de sua conduta, não somente

estabelece um novo significado, mas também configura a própria sociedade com este

significado, isto é, objetiva-o transformando a realidade, então uma mera declaração de

que o fato não deveria ter ocorrido estaria em um nível abaixo de concretização390. Daí

que “também a reação ao fato deve supor uma configuração definitiva”391, de tal forma

que a pena possa ser compreendida como contraposição à realidade construída pela

pessoa (formal). Perceba-se a alteração: o argumento continua sendo de que a pena já

constitui a própria reafirmação da sociedade (a pena não tem um fim, já que constitui ela

mesma a obtenção deste fim392), mas esta confirmação agora é realizada materialmente,

e não “apenas” comunicativamente. Ora, com isso pode-se dizer que aqui Luhmann só

386 Ibidem, p. 657 [tradução livre do espanhol]. 387 Idem. 388 Idem [tradução livre do espanhol]. 389 Ibidem, p. 657-658 [tradução livre do espanhol]. 390 Vale a pena perceber que este raciocínio já está presente no texto de 1997 acima apresentado, ainda que

sem menção à necessidade de objetivação da pena. Ver JAKOBS, Günther. Imputación jurídico-penal,

desarrollo del sistema con base en las condiciones de la vigencia de la norma, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 83. 391 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal. Estudios

compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 652 [tradução livre do espanhol]. 392 Idem.

94

aparece de forma indireta e setorial, notadamente na ideia de realidade social formada

pelas expectativas normativas indispensáveis à sociedade, não sendo mencionado em

qualquer momento de forma explícita. Mas, como já foi destacado, Jakobs transforamará

a ideia de reafirmação da realidade social em necessidade de garantia cognitiva dos entes

normativos e, então, Luhmann será chamado para fins de fundamentação.

A ciência do Direito Penal diante das exigências do presente é outro texto que

integra esta ponte e sua importância já foi destacada, uma vez que diferenciação feita

entre função manifesa (confirmar a identidade da sociedade) e função latente (relacionada

ao direcionamento da motivação) da pena será responsável pela reintrodução dos fins de

psicologia social, ainda que neste momento circunscritos à segunda função. A presença

de Luhmann pode ser uma vez mais notada de forma indireta, quando afirma que o direito

penal garante a expectativa de que quem está submetido ao direito se comportará como

pessoa, isto é, como alguém que possua uma fidelidade jurídica, de tal forma que, em

caso de defraudação de expectativas, o erro é imputado ao autor, e não à própria

expectativa normativa. Pois bem, o que nos interessa destacar deste texto, para além desta

presença luhmanniana “positiva”, é sua reflexão sobre o que denomina “predomínio da

economia”, tema que já havia sido abordado por Jakobs em Sociedade, norma e pessoa a

partir de uma crítica ao conceito de comunicação de Luhmann. Ou seja, trata-se aqui de

um desenvolvimento teórico decorrente da presença “negativa” do sociólogo de

Bielefeld:

“A sociedade é uma sociedade de exploração, o que não

significa que seja uma sociedade também de exploração, mas

principalmente. O sistema “economia” se impõe em caso de

dúvida frente aos demais; a colocação em perigo do lugar de

posicionamento da economia se considera um sacrilégio, algo

comparável a um comportamento que desata a ira dos deuses, e

a competição econômica substitui a competição entre nações: o

que sucumbe, não só é considerado como incapaz em certos

âmbitos, mas é marginalizado de forma geral”393.

393 JAKOBS, Günther. La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004,

p. 38-39 [tradução livre do espanhol].

95

Isso significa que, se em 1996 Jakobs deixa em aberto a possibilidade da economia

(comunicação instrumental) alterar o tipo de comunicação então vigente na sociedade

(comunicação pessoal), em 1999 não há mais dúvidas de que isso possa realmente

acontecer, já que a economia além de configurar o papel de pessoa, como já destacado,

também impõe sua comunicação aos demais sistemas sociais.

Isso ficará ainda mais claro em A imputação jurídico-penal e as condições de

vigência da norma, de 2000, texto que recupera grande parte das reflexões presentes em

Imputação jurídico-penal, desenvolvimento do sistema com base nas condições de

vigência da norma, de 1997, ao mesmo tempo em que acrescenta alguns daqueles

elementos característicos da ponte para a terceira fase. Em que pese ser possível observar

a presença “positiva” de Luhmann, notadamente naqueles elementos que caracterizam o

comportamento delitivo enquanto frustração das expectativas normativas estáveis e

indispensáveis para a sociedade, o texto é particularmente interessante devido à sua

presença “negativa”, já que será apresentada a segunda crítica à teoria luhmanniana,

também decorrente da força do sistema econômico.

Assim, logo no início o autor apresenta uma tese de forma alguma inédita: norma

seria a expectativa de que uma pessoa se comporte de acordo com o dever, e não a partir

de um juízo de satisfação, salientando que as consequências de índole psicossociais estão

afastadas do conceito de pena394. Jakobs volta a salientar que tanto o comportamento

quanto a pena devem ser compreendidos desde uma perspectiva comunicativa, mas já

acresenta os mencionados elementos que caracterizam este período, principalmente

quando sustenta que a afirmação do autor objetiva um significado e que este será

marginalizado por uma afirmação contrária que também será objetivada395. Assim, o

tema da materialização da pena é retomado, ainda que Jakobs faça a ressalva de que “a

pena não deve reduzir-se à pura violência”396.

Em que pese a inserção destes elementos, o penalista de Bonn ainda insiste na

ideia de que as consequências psico-sociais, como a necessidade de motivação de

fidelidade ao direito, não pertencem ao conceito de pena, razão pela qual afirma que ela

394 Razão pela qual Jakobs sustenta que “a pena cumpre, pois, uma função sem que tenha que provocar algo

psicologicamente”, como já destacado. Ver JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las

condiciones de vigencia de la norma, em GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Teoría de sistemas y derecho

penal. Fundamentos y posibilidades de aplicación. Colômbia: Universita Externado de Colombia, 2007, p.

208 [tradução livre do espanhol]. 395 Idem. 396 Ibidem, p. 207-208 [tradução livre do espanhol].

96

cumpre uma função “sem que tenha que provocar algo psicologicamente”397. Como será

demonstrado, no ano seguinte Jakobs apresentará outra formulação para a questão,

salientando que a necessidade de salvaguardar cognitivamente a configuração social é

uma exigência do sistema econômico.

Antes disso, é fundamental perceber de que forma a força da comunicação

econômica apresentada neste terceiro texto da ponte para a terceira fase é articulada com

a presença “negativa” luhmanniana. Trata-se aqui da crítica que Jakobs faz ao conceito

de acoplamento estrutural, manifestada em uma nota de rodapé importantíssima398. Para

o penalista de Bonn, o sistema jurídico deve considerar se suas decisões são convenientes

para outros sistemas sociais, tais como o sistema político, o sistema educacional, etc., pois

só desta forma o direito será capaz de suportar o inconveniente desses sistemas. Nesta

perspectiva, entende Jakobs que o conceito de acoplamento estrutural de Luhmann, a

partir do qual os sistemas estabeleceriam uma compatibilidade mútua, não é suficiente,

sustentando que “se deveria aceitar que cada sistema trata de ser um entorno adequado

para os outros sistemas, de maneira que estes sejam um entorno óptimo para ele”399. Se

nos escritos anteriores Jakobs já vinha destacando a força da comunicação econômica,

como destacado, agora ele afirma que a formação do ambiente óptimo não deriva da

igualdade dos sistemas, mas da estabilidade de determinada relação entre eles:

“O sistema que ganha esta disputa, o sistema dominante,

colore todos os outros sistemas de tal maneira que constitui para

os demais um ambiente miserável. Isto é, vai colocar em risco a

existência dos outros sistemas enquanto estes não constituem

para ele um entorno minimamente aceitável (...). Como resultado

disso, os submetidos apoiam o ganhador e se concebem a si

mesmos como algo derivado dele: o direito, a educação, a

política se convertem em sinônimos de partes da economia que

estão a salvo”400.

397 Ibidem, p. 208. 398 Ibidem, p. 213-214, nota 11. 399 Ibidem, p. 214, nota 11 [tradução livre do espanhol]. 400 Idem (ênfase acrescentada).

97

Se a constatação deste “particular sistema de relações”401 evidencia as possíveis

perturbações para o Direito, não traria isso alguma consequência para o Direito penal, já

que este seria responsável por manter a identidade dessa sociedade (econômica)? A

resposta é positiva, e é apresentada em mais um texto que integra a ponte para a terceira

fase de Jakobs.

Personalidade e exclusão em Direito penal, de 2001, também será caracterizado

pela presença “positiva” e “negativa” de Luhmann. Dessa forma, o texto tem início com

teses já conhecidas, como a ideia de que o conceito de pessoa, enquanto construção

jurídica, significa que alguém é destinatário de direitos e deveres. Mas Jakobs agora faz

novos diálogos com o sociólogo alemão, principalmente quando afirma que há exclusão

quando o próprio Direito não reconhece o indivíduo como pessoa402, razão pela qual

salienta que “o conceito moderno de exclusão tem sua origem na teoria dos sistemas,

embora ali não se oponha ao conceito de personalidade, mas sim ao de inclusão”403.

Após citar o conceito de pessoa em Luhmann (“restrição de possibilidades de

comportamento atribuída individualmente pelo sistema social de referência”404), Jakobs

sustenta que o conceito de exclusão sempre deveria levar a uma despersonalização,

ponderando que o conceito de pessoa em Luhmann seria “normativamente descolorido

(...), parece que para ele não se trata tanto da conotação normativa da pessoa como de sua

delimitação com o sistema de consciência”405. Essa é a razão pela qual afirma que, em

Luhmann, as pessoas podem ser excluídas e, mesmo assim, continuam a ser-pessoas,

notadamente no contexto de diferenciação estratificada da sociedade. Mas, em se tratando

da diferenciação funcional, e aqui Jakobs articula três textos luhmannianos (Exclusão e

401 O termo foi utilizado por Pasukanis no prefácio à primeira edição (1921) do livro de Stucka,

Revoljucionnaja rol’prava i gosudarstva [O papel revolucionário do Direito e do Estado], para enfatizar

que o sistema jurídico é uma forma jurídica da mediação real das relações de produção. Ver PASUKANIS,

E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 08. Como já foi destacado

na introdução, concorda-se aqui com a leitura de Bachur de que “o capitalismo somente pode ser

perfeitamente compreendido à luz da teoria da diferenciação funcional de sistemas sociais” (BACHUR,

João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro:

Beco do Azougue, 2010, p. 258.). Essa relação, fundamental para a criminologia crítica, será desenvolvida

no terceiro capítulo. 402 JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de

derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 51-52. Também em

JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 392. 403 JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de

derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 52 [tradução livre

do espanhol]. 404 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 237. 405 JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de

derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 53 [tradução livre

do espanhol].

98

inclusão, de1985, Existem ainda em nossa sociedade normas irrenunciáveis?, de 1993, e

A sociedade da sociedade, de 1997), enfatiza que qualquer um pode, em princípio, eleger

suas inclusões. Apesar do fato de que ninguém pode estar sempre incluído em todas as

partes, Jakobs entende que um mínimo de inclusão é indispensável para poder seguir

incluindo-se, sendo que aqueles que estão fortemente excluídos perdem seu papel de

pessoas e são devolvidos e largados à própria corporalidade406.

Mas é ao abordar o tema da autoexclusão que Jakobs relaciona essas reflexões

provenientes da recepção “positiva” de Luhmann com a necessidade de segurança

cognitiva e, logo após, com o sistema econômico. O argumento de Jakobs – e que será

“enriquecido” pela necessidade da dor penal na terceira fase – é que as pessoas necessitam

de um respaldo cognitivo para poderem vincular seu bem-estar com o Direito407. Ocorre

que não só o Direito precisa deste substrato cognitivo, mas também a pessoa, isto é, só

pode ser tratado como pessoa (detentor de direitos e deveres/cumpridor das expectativas

normativas) aquele que, em geral, se comporta como tal. Caso contrário, ou seja, caso o

indivíduo não se comporte como pessoa, então ele será excluído, entendendo-se esta

exclusão como autoexclusão408.

Jakobs aborda esta questão somente para dizer que, contrariamente ao que

enfatizara nos escritos da segunda fase, e recuperando argumentos da ponte para a terceira

fase, todo o direito penal que tem como função primária garantir a validade das normas

deverá “atender em certos âmbitos sua função latente” (garantia da segurança

cognitiva)409, e isso quanto mais buscar-se cotidianamente confirmar a configuração

social através da pena, hipótese que mesmo Jakobs reconhece ser de pouca contribuição

para a resolução do problema. Mas então, porque isso ocorre? Dando continuida aos

estudos acerca da força da sistema econômico, aqui entra em cena uma vez mais a

preponderância deste sistema, agora chamado de “sistema diretor”, e que exige uma

segurança efetivas dos bens, ou seja, uma garantia cognitiva da configuração social. Se

na análise do último texto foi questionado se o entendimento do Direito enquanto parte

406 Idem. 407 Jakobs dá o seguinte exemplo para ilustrar seu raciocínio: “aquele que sabe que com bastante

probabilidade será roubado, lesionado ou inclusive motor, não pode encontrar seu bem-estar na sociedade,

inclusive quando é certo que os fatos cometidos contra ele não estão permitidos e são tratados como

injustos”, em JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em Ibidem, p. 67 [tradução

livre do espanhol]. 408 Idem. 409 Idem [tradução livre do espanhol].

99

da Economia não traria alguma consequência para o Direito penal, agora Jakobs

encarrega-se de responder:

“Isto – poderiam-se acrescentar facilmente outros

condicionamentos – conduz a um direito penal que não se dirige

a pessoas, mas a indivíduos, os quais, em relação a um

determinado comportamento, devem ser estimulados,

desencorajados em caso de necessidade e, em casos extremos,

combatidos: direito penal dos inimigos”410.

Perceba-se o movimento: do Direito penal do cidadão ao Direito penal do inimigo,

os fins de psicologia social voltam à tona e integram o núcleo teórico da pena,

principalmente, em razão do domínio do sistema econômico, principal interessado em

garantir a segurança efetiva (cognitiva) dos bens.

Diante de tamanha associação, antes da análise da presença luhmanniana no

último texto que integra a ponte para a terceira fase de Jakobs, é importante retomar a

linha de desenvolvimento do pensamento do autor sobre a relação entre Dirieto penal e

Economia, já que o tema, analisado desde uma perspectiva crítica à teoria luhmanniana,

não será explorado nos escritos da terceira fase. Assim, em 1996 o penalista de Bonn

compreendia a comunicação do sistema econômico como comunicação instrumental,

diferente da comunicação pessoal, responsável por estabelecer direitos e deveres.

Entretanto, nosso autor destacava que a sociedade possivelmente estava variando seu

rumo do pessoal para o instrumental411, em que pese sustentar, naquele momento, que

somente no âmbito pessoal existiriam expectativas normativas412. Mas já em 1999 Jakobs

insere a comunicação econômica no âmbito da comunicação pessoal, ou seja, como

responsável por construir deveres pessoais e sociais (atribuídos ao Estado)413, afirmando

também que na sociedade exisitira um predomínio da economia, já que “a sociedade é

uma sociedade de exploração, o que não significa que seja uma sociedade também de

exploração, mas principalmente”414. E, em 2000, Jakobs sustentava que o sistema

410 Ibidem, p. 68 [tradução livre do espanhol] (grifo acrescentado). 411 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 47. 412 Ibidem, p. 58-59. 413 JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1999, p. 44-45. 414 JAKOBS, Günther. La ciencia del derecho penal ante las exigencias del presente, em JAKOBS,

Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004,

p. 38-39 [tradução livre do español].

100

econômico, por ser mais forte, coloria os demais, construindo assim um ambiente óptimo,

no qual “o direito, a educação, a política se convertem em sinônimos de partes da

economia que estão a salvo”415. Agora, em 2001, Jakobs dá um passo além, sustentando

que o “sistema diretor” (economia) exige uma segurança efetiva dos bens, conduzindo o

direito penal à proteção cognitiva da configuração social, isto é, reintroduzindo os

elementos cognitivos de psicologia social que desembocam, como dito pelo próprio

Jakobs, no Direito penal do inimigo.

Por fim, vale a pena uma última reflexão que, entretanto, só será desenvolvida no

terceiro capítulo: nos escritos da terceira fase Jakobs defenderá que a pena, enquanto dor

penal, tem a finalidade de propiciar o apoio cognitivo necessário à vigência da norma, de

tal forma que o Direito possa realmente conduzir as condutas. Entretanto, é interessante

notar que o argumento que destaca o predomínio da economia no âmbito comunicacional

não será retomado. O que fazer então com a indagação colocada por ele mesmo em Sobre

a gênesis da obrigação jurídica, acerca do que fazer diante das pessoas que são excluídas

pelo sistema econômico? Se este é justamente o “sistema diretor”, de tal forma que a

comunicação jurídica pode interferir na comunicação jurídica, como destacado pelo

penalista de Bonn, não seria possível observar uma exclusão em cadeia? Em caso

afirmativo, isso não traria consequências para a ideia de que o indivíduo deve direcionar

sua esfera organizacional para a fidelidade ao direito? Não haveria espaço para a

articulação dessas questões no interior da culpabilidade, ainda que esta seja compreendida

normativamente? E por fim, também não seria possível argumentar que diante deste

poderio econômico surgiria uma “lei de tendência” no sistema penal que preservaria da

criminalização primária “as ações antissociais realizadas por integrantes das classes

sociais hegemônicas, ou que são mais funcionais às exigências do processo de

acumulação do capital”416?

Como será destacado logo a seguir, em 2003, no último texto que integra a ponte

para a terceira fase, Jakobs enfatiza que “agora” segue a teoria luhmanniana, mas não

retoma qualquer indagação acima colocada (e que derivaram, todas, da própria construção

teórica de Jakobs). Significaria isso que, de acordo com o próprio Jakobs, as reflexões

que de sua última fase seriam então caracterizadas por uma adesão à teoria autopoiética

415 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em JARA

DÍEZ, Carlos Gomes (Org.) Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 214 [tradução livre do espanhol]. 416 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 176.

101

dos sistemas sociais? O fato do penalista alemão justificar a mencionada necessidade de

apoio cognitivo dos entes normativos com expressa menção a Luhmann confirma essa

interpretação? Ou a teoria luhmanniana não tem nada a ver com isso e, pelo contrário,

poderia contribuir para a retomada crítica das relações entre direito penal e economia,

tornando-se “positiva” logo ali onde manifestava-se negativamente? Se, como

salientando na introdução, defende-se aqui a ideia de que o desenvolvimento do

radicalismo construtivista luhmanniano ignorado por Jakobs em seus escritos da segunda

fase e da ponte para a terceira poderia potencializar criticamente suas descrições deste

período, isto é, irritar produtivamente as pretensões reflexivas que são produzidas no

interior do sistema jurídico-penal, além de desqualificar teoricamente os avanços

normativos típicos da terceira fase, então, quais outras relações poderiam ser construídas?

Colocadas essas questões, que, repita-se, só serão desenvolvidas no terceiro

capítulo, cumpre agora observar como esta “nova adesão” a Luhmann é feita em O que é

protegido pelo Direito Penal: bens jurídicos ou a vigência da norma?. Nele Jakobs

reafirma a ideia de que as chamadas “funções latentes” devem voltar a ser tematizadas

pela teoria da pena, reintroduzindo assim os elementos cognitivos de psicologia social,

ainda que sem articulação expressa à necessida de dor penal, elemento introduzido na

terceira fase. Publicado em 2003, o objetivo de Jakobs com o referido texto é criticar e

apresentar outra saída diante da tese de que o direito penal deve servir à proteção de bens

jurídicos, e a presença de Luhmann pode ser observada de diversas maneiras. Após

afirmar que “o Direito não é um muro de proteção que é erigido em volta dos bens, e sim

a estrutura da relação entre pessoas”417, passagem que inclusive já foi aqui citada, o

penalista alemão identifica, uma vez mais, norma e expectativa normativa. Continua,

então, a refletir sobre o papel geral da pessoa. Uma vez que para o direito penal “o

decisivo é a quebra do papel”418 enfatiza que a causação de uma perda não diz nada per

se sobre a competência por essa perda. E formula: “quem nada faz que contradiga a seu

papel – legal! – não viola qualquer expectativa, mas atua em consonância com a

sociedade, ainda que cause uma lesão a um bem”419, sem mencionar aqui qualquer

articulação com o sistema econômico. Com isso Jakobs chega à uma conclusão

intermediária: “bens são sempre bens jurídicos de forma relativa, isto é, relativamente a

417 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 161. 418 Ibidem, p. 164. 419 Ibidem, p. 165.

102

um determinado comportamento de outra pessoa”420, de tal forma que o determinante é

observar uma pessoa como competente ou não para evitar a lesão ao bem e perceber as

normas que fixam os papéis das pessoas envolvidas.

Entretanto, é curioso notar como, antes de abordar o tema da lesão à vigência da

norma e da pena, Jakobs refere-se à problemática relação entre bem jurídico e política

jurídica. Para ele, diante da crítica que anuncia que para uma teoria que se baseia na

proteção das normas, todo o ordenamento de normas, pouco importando seu conteúdo,

poderia ser protegido por meio do direito penal, Jakobs considera que não se pode

esquecer que também a teoria da proteção do bem jurídico não tem potencial crítico, de

maneira que “do que não existe, não se pode ser privado”421. Ora, é importante destacar

essa atitude de “não há mais a dizer” sobre o assunto, já que a hipótese desta pesquisa

repousa no potencial crítico da teoria de Luhmann para a dogmática jurídico-penal e para

a criminologia crítica, notadamente a partir da recuperação da articulação entre direito

penal e economia.

O próximo passo de Jakobs refre-se à nova “adesão a Luhmann”: após enfatizar

que as normas são a estrutura da sociedade, sendo elas que regulam as relações entre

pessoas, o penalista de Bonn retoma os elementos característicos desta ponte para a

terceira fase, e salienta que para sociedade realmente existir é necessário que suas normas

tenham vigência, e isto ocorre quando, diante de uma violação, poder-se-ia aderir à

própria norma violada e não à violação. Mas para fundamentar a reação da pena frente ao

crime, Jakobs diz que “a sociedade, segundo a compreensão da teoria de sistemas a que

eu agora sigo, é comunicação”422, e assim sustenta que a culpabilidade seria “a

verificação social de que a contribuição do autor para a sociedade, isto é, para a

comunicação, é errônea, perturbadora das estruturas, e, portanto, impassível de

adesão”423.

Ora, se por um lado isso permite a Jakobs retomar o principal argumento dos

escritos que compõem a segunda fase, qual seja a compreensão de que crime e pena

encontram-se no mesmo plano, por outro, logo após ele deixa claro que, contrariando

estes mesmos escritos, os efeitos psicológicos no plano individual ou social, “enquanto

funções latentes da pena não podem, de modo algum, ser considerados secundários”424.

420 Ibidem, p. 167. 421 Ibidem, p. 174. 422 Ibidem, p. 175 (ênfase acrescentada). 423 Ibidem, p. 176. 424 Ibidem, p. 177 (ênfase acrescentada).

103

Isso fica ainda mais explicíto quando Jakobs simplesmente coloca que a questão da

recuperação desses efeitos anteriormente classificados por ele mesmo como secundários

é uma questão em aberto425. A ponte, neste momento, já permite trânsito livre para terceira

fase.

1.4.5. Na terceira fase

O desenvolvimento do material compilado na ponte para a terceira fase será a

principal característica dos últimos escritos de Jakobs. Por isso a terceria fase de seu

pensamento pode ser caracterizada como uma articulação entre os fins de segurança

cognitiva da construção social e a necessidade de materizalização da pena enquanto dor

penal, sendo esta sua finalidade426.

A porta aberta pelo último texto da ponte para a terceira fase será escancarada

ainda em 2003, quando é editado uma compilação de artigos intitulada Sobre a

normatização da dogmática jurídico-penal. Aqui importa destacar de que forma o artigo

Como protege o Direito penal e o que é que protege? Contradição e prevenção; proteção

de bens jurídicos e proteção da vigência da norma contribui para a articulação da teoria

da pena com a necessidade de alicerce cognitivo das instituições normativas, observando

como a mencionada “retomada de Luhmann” manifesta-se. Como se poderá perceber, a

ideia de que a pena enquanto privação dos meios de desenvolvimento do autor, isto é, a

materialidade da pena, elemento constante nos escritos que integram a ponte para a

terceira fase, será constantemente destacada pelo penalista de Bonn.

Logo no início Jakobs faz um esboço das reflexões que desenvolverá,

apresentando sua repetida compreensão de que o fato significa uma rebelião contra a

norma, e que a pena rechaça esta rebelião. Também é recuperada a distinção entre mundo

natural e mundo social, de tal forma que no primeiro existiriam expectativas cognitivas e

no segundo expectativas normativas427, e a ideia de que o fato deve ser entendido em sua

425 Idem. 426 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 141 [tradução

livre do espanhol]. 427 Segundo Jakobs, “se o mundo natural não transcorre como um ser humano imaginou, o que sucede

simplesmente é que seu prognóstico estava equivocado; não conhecia de modo suficiente as leis da natureza

(...) seja como for, deverá melhorar no futuro, deve iniciar um novo aprendizado (...). Tais expectativas,

cuja defraudação é processada através de uma melhora do material cognitivo – algo foi aprendido –, se

chamam expectativas cognitivas”. Entretanto, “as coisas são distintas no mundo social: na medida em que

as pessoas estão vinculadas através de normas – de acordo com a concepção moderna, é pressuposto disso

também a capacidade de cumprir normas –, se dirige a eles a expectativa de que sua conduta seja conforme

à norma; mas esta expectativa, que se denomina expectativa normativa, em caso de defraudação não é

104

dimensão social, como “conflito em torno da configuração da sociedade, isto é, como

contribuição à comunicação”428. Entretanto, longe de somente apresentar a resposta penal

em termos comunicativos, como fizera nos escritos da segunda fase, agora Jakobs

sustenta que mediante a dor penal elimina-se o risco de uma erosão geral da vigência da

norma, permitindo assim que o Direito possa orientar as condutas. Aqui estará, então, o

novo conceito de “prevenção geral positiva”429. Entretanto, o penalista de Bonn afirma

que a dor da pena deveria ser algo mais que coação, algo mais que o mero infligir dor,

pois é fundamental que, enquanto resposta comunicativa, evidencie que o significado do

comportamento do autor – a quebra da estrutura normativa da sociedade representada pela

norma – não é nem determinante nem vinculante.

É interessante notar que Jakobs chega a admitir que a dor penal talvez não seja

necessária, uma vez que a própria persecução do fato já comunica a manutenção da

configuração da sociedade. Ora, já que a própria tipificação daquele comportamento

como delito enfatiza sua marginalização comunicativa, “é possível que exista

comunicação sobre a estrutura normativa de sociedade sem imposição de uma pena, sem

dor”430. Entretanto, logo após Jakobs afirma que uma comunicação que tenha como base

somente uma mera denominação seria uma comunicação etérea, podendo não ser

suficiente para contradizer o fato que, além de sua dimensão significativo-comunicativo,

possui uma dimensão objetiva, manifestada na quebra da vigência da norma. Assim, é a

partir da ideia da objetivação da quebra da identidade social presente no comportamento

do autor que Jakobs sustenta ser “necessário objetivar também a resposta confirmatória

da vigência, e isso à custa do autor, já que este deve ressarcir a sociedade pelo dano à

vigência da norma que produziu”431. Como pode-se perceber, a dupla objetivação, do

delito e da pena, jogam um papel fundamental neste período, como já poderia ser

deduzido dos escritos que compõem a ponte para a terceira fase.

Trata-se aqui, então, de desenvolver a ideia da privação dos meios de

desenvolvimento do autor para que o dano causado à sociedade seja ressarcido. Como já

se sabe, isto é fundamentado a partir da ideia de que, sem uma base cognitiva, todos os

abandonada, é dizer, não se leva a cabo a aprendizagem, e sim se mantém a expectativa, considerando a

conduta errônea do infrator da norma como causa decisiva da defraudação”. Ver JAKOBS, Günther. Sobre

la normativización de la dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003, p. 49-50 [tradução livre do

espanhol]. 428 Ibidem, p. 51 [tradução livre do espanhol]. 429 Ibidem, p. 48. 430 Ibidem, p. 51 [tradução livre do espanhol]. 431 Ibidem, p. 52 [tradução livre do espanhol].

105

entes normativos perdem realidade. Assim como aquele que não dá garantias suficientes

de cumprir com este dever será tratado como inimigo, mudando-se o tipo de expectativa

que tínhamos para com ele, também os outros entes normativos necessitam deste alicerce

cognitivo se, de fato, buscam se constituir como esquemas de orientação para o agir no

mundo, e isto é particularmente importante para um ordenamento jurídico que não quer

ser colocado em dúvida. Entretanto, vale a pena notar, nesses escritos não é feita qualquer

menção à força do sistema econômico, principal interessado na salvaguarda cognitiva da

construção social.

Sem considerar as particulares relações entre os sistemas sociais, o único

argumento destacado refere-se à diferenciação entre normas primárias e secundárias.

Jakobs entende que a vigência da norma primária é favorecida pela dor penal, razão pela

qual a pena “deve ser tão intensa que adquirir culpabilidade possa ser representado com

caráter geral como conduta que gera um saldo de mais desvantagens que vantagens”432.

Dessa forma, então, o comportamento delitivo seria considerado como alternativa

inaceitável, tendo como consequência a produção de uma natural fidelidade ao direito.

Como já destacado, nesta compreensão reside o novo e último significado da prevenção

geral positiva.

O desenvolvimento de todas essas reflexões é apresentado de forma definitiva em

A pena estatal: significado e finalidade, editado em 2006, no qual Jakobs dá contornos

nítidos à sua última fase. Após abordar a fundamentação da pena em autores clássicos, o

penalista alemão reflete sobre a realidade do direito penal. Ciente das diversas críticas

que recebera, que questionavam a necessidade da pena como resposta ao fato delitivo,

Jakobs afirma: “permanece sem resolver a questão de por que precisamente se elege

infligir a dor como símbolo, e não outra coisa”, e questiona “por que é necessário,

também, uma dor produzida pela pena?”433. Após enfatizar que o Direito só está em vigor

enquanto e na medida em que constitua o esquema de orientação dominante (note-se a

alteração radical frente aos escritos da segunda fase), Jakobs articula prevenção e reação,

na medida em que ambas constituem a realidade do Direito. E a necessidade de apoio

cognitivo, aqui, uma vez mais não terá qualquer relação com o sistema econômico, mas

referida a ninguém menos que Luhmann. Como isso é feito?

432 Ibidem, p. 55 [tradução livre do espanhol]. 433 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 135 [tradução

livre do espanhol].

106

O penalista de Bonn reafirma a ideia de que para poder fazer uso de seu direito a

pessoa não somente necessita de segurança normativa, mas também de um alicerce

cognitivo, ou seja, a consciência de que caso seja perturbada poderá imputar a quebra da

expectativa ao autor. Segundo Jakobs, qualquer certeza normativa, se de fato pretende

verdadeiramente dirigir uma conduta, deve contar com um apoio cognitivo, de tal forma

que mesmo em interações de pouca relevância, a necessidade deste apoio, ainda que débil,

nunca está ausente por completo, citando o Sociologia do Direito de Luhmann como

argumento de autoridade434.

Este novo diálogo com Luhmann é fundamental para que conclua que a

consciência de ter direitos não basta para o uso dos direitos. E, com isso, Jakobs dá

precisão teórica à questão da dor penal: “a dor serve para a salvaguarda cognitiva da

vigência da norma; este é o fim da pena, assim como a contradição da negação da vigência

por parte do delinquente é o seu significado”435. Ou seja:

“O autor determinou e executou sua conduta sem

consideração da vigência do Direito. Na medida em que isso

implique a afirmação de que a norma não lhe vincula, se

contradiz a isso através da pena (este é o significado da pena).

Contudo, a contradição por si só não muda em nada a situação

de que o fato dá motivo para duvidar da imprescindível

segurança cognitiva da vigência da norma; pois o fato mostra

que deve-se contar com a possibilidade de que se infrinja a

norma (primária). Se ao autor se inflige uma dor penal de tal

intensidade que por causa da dor seu fato é geralmente

considerado um fracasso, com isso fica claro que no futuro o

apoio cognitivo da norma ao menos não será pior que antes do

fato; esta manutenção do lado cognitivo da vigência da norma é

o fim da pena, e em função de tal fim deve-se determinar a pena,

e é neste contexto de fins não limitado ao abstrato em que de fato

pela primeira vez é esboçada a medida da pena”436.

434 Ibidem, p. 140. 435 Ibidem, p. 141 [tradução livre do espanhol]. 436 Ibidem, p. 142-143 [tradução livre do espanhol]. Um pouco adiante Jakobs reafirma essas questões:

Jakobs apresenta uma espécie de resumo quando sustenta: “Se a dor penal se mede exatamente de tal modo

que o efeito ocorrido seja entendido geralmente como empreendimento falido, evitará que a colocação em

perigo da vigência da norma que emana do fato acabe convertendo-se em um dano, e para que se consiga

isso, o autor deverá assumir a responsabilidade pelo seu fato. O status quo da vigência da norma colocada

107

Isso significa uma alteração radical em sua proposta teórica, a ponto de inserir a

prevenção geral negativa dentro da prevenção geral positiva, como já ressaltado. Se nos

escritos da segunda fase a dimensão significativo-comunicativa praticamente

marginalizou os efeitos de psicologia social, na terceira fase observa-se um acerto de

contas, na medida em que estes efeitos, já presentes na primeira fase, são recuperados a

partir da utilização da dor penal como ferramenta indispensável para proporcionar o apoio

cognitivo necessário para os entes normativos. Este movimento teórico é percebido e

assumido por Jakobs na nota 147, na qual sustenta que algumas teorias da prevenção geral

positiva descuidaram o lado cognitivo da vigência da norma, degradando os efeitos

psíquico-sociais à condição de efeitos secundários, e admite que “aqui se pretende corrigir

o restringido do meu ponto de vista”437. O fato de a mesma compreensão também estar

presente em O Direito penal como disciplina científica438, editado em 2008, evidencia

esta alteração.

O mais interessante disso tudo, entretanto, está no fato de que apesar deste agito

teórico modificar substancialmente o conceito de prevenção geral positiva, a presença de

Luhmann pode ser observada em todas as fases de Jakobs, seja implícita ou

explicitamente, de forma “positiva” ou “negativa”, inclusive no âmbito do chamado

Direito penal do inimigo. Assim, em Direito penal do inimigo? Um estudo acerca dos

pressupostos de juridicidade, apresentando em 2005, Jakobs, ao abordar o tema da

realidade das normas, afirma que “falando em termos de teoria dos sistemas, a pessoa se

encontra acoplada estruturalmente ao indivíduo, ao ser de necessidades, que sem a

satisfação destas não pode se converter por sua vez em realidade”439, e logo após, citando

Luhmann, sustenta que quem determina o que é realidade é a própria sociedade, razão

pela qual uma norma, na interpretação de Jakobs, só rege socialmente quando é cumprida

e quando é mantida contrafaticamente, pois em ambos os casos observaríamos a função

de garantir a segurança das expectativas440. Por fim, também em Terroristas como

pessoas de direito?, impresso no mesmo ano, Jakobs vale-se do arcabouço teórico

em perigo pelo fato fica então garantida, nem mais nem menos”, em Ibidem, p. 148 [tradução livre do

espanhol]. 437 Ibidem, p. 145 [tradução livre do espanhol]. 438 Ver JAKOBS, Günther. El derecho penal como disciplina científica. Madrid: Civitas, 2008, p. 104. 439 JAKOBS, Günther. Derecho penal del enemigo? Un estudio acerca de los presupuestos de la juridicidad

em MELIÁ, Manuel Cancio & FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo (Ed.). Teoría funcional de la pena y de la

culpabilidad. Madrid: Civitas, 2008, p. 33 [tradução livre do espanhol]. 440 Ibidem, p. 36.

108

luhmanniano, pois a partir da diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas

afirma que somente será considerado pessoa aquele que possa cumprir expectativas

normativas, de tal forma que quando não há garantias de que a orientação se dará de

acordo com o papel social, de acordo com o dever, então esta orientação carece de apoio

cognitivo, hipótese em que o destinatário da anterior expectativa normativa passa a ser

visto como fonte de perigo, isto é, como inimigo441. Apenas para destacar: em nenhum

desses últimos dois textos a força da comunicação econômica é mencionada.

Essas considerações finalizam a apresentação da presença de Luhmann nas fases

de Jakobs e, também, o primeiro capítulo da presente pesquisa. Com isso pode-se

identificar as características gerais da teoria da pena do penalista alemão, compreender

por qual razão elas se articulam, como ela sofre alterações (as três fases com seus

respectivos conceitos de prevenção geral positiva). No entanto, mais importante foi

apresentar aquilo que se chamou de “elementos permanentes” do pensamento de Jakobs:

i) imputação como processo pessoal de responsabilização; ii) delito como manifestação

comunicativa e material que altera a realidade social; iii) direito penal como responsável

pela defesa da identidade social; e iv) pena como reação comunicativa e material que

garante a base cognitiva da construção social pela orientação de condutas.

Agora, uma vez destacada a influência do material de estímulo luhmanniano em

cada fase de Jakobs, chega-se à segunda conquista fundamental para a pesquisa, qual seja

a compreensão minuciosa da tradução deste material para a dogmática jurídico-penal,

destacada nos seguintes elementos de condensação: i) diferenciação entre mundo social

e natural como diferenciação entre expectativas normativas e cognitivas; ii) distinção

entre sistemas sociais (comunicação) e psíquicos (consciência); iii) compreensão da

pessoa (deve manifestar fidelidade ao direito) como construção social (jurídica); iv)

identificação entre expectativas normativas e identidade social; v) compreensão do delito

como falha de comunicação; vi) compreensão do sistema jurídico como sistema social

que deve alcançar uma complexidade adequada à sociedade; vii) identificação entre

funções sociais e prestações sociais; viii) compreensão da função do direito penal,

enquanto sistema social parcial, como garantidor da solidez das expectativas normativas

essenciais (identidade social); ix) admissão dos equivalentes funcionais como formas de

substituição da pena; x) compreensão da pena como processo de comunicação que deve

441 JAKOBS, Günther. Terroristas como pessoas de direito?, em JAKOBS, Günther & MELIÁ, Manuel

Cancio. Direito penal do inimigo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 57.

109

confirmar a vigência da norma, mantendo-a como modelo de orientação; xi) assunção de

que as certezas normativas necessitam de um apoio cognitivo.

Além disso, também devem ser enfatizadas as duas críticas feitas ao sociólogo de

Bielefeld, que referem-se à chamada “presença negativa”: a primeira em 1996, em

Sociedade, norma e pessoa, quando sustenta que na sociedade não existiria somente um

tipo homogêneo de comunicação, mas sim dois tipos, comunicação pessoal e

comunicação instrumental; e a segunda, em 2000, em A imputação jurídico-penal e as

condições de vigência da norma, quando critica o conceito de acoplamento estrutural

luhmanniano. O fato de que nas duas críticas estejam presentes reflexões sobre a

economia como sistema dominante, que cada vez mais determina deveres pessoais e

converte os sistemas sociais do ambiente em “partes da econômica”, será explorada na

pergunta pelo potencial crítico ocultado da teoria luhmanniana.

No capítulo seguinte será apresentada a teoria dos sistemas sociais de Luhmann.

Com isso poder-se-á compreender como esta teoria rompe radicalmente com premissas

tradicionais da filosofia do sujeito, e quais são as alterações que o conceito de autopoiese

(introduzido em 1984 em Sistemas Sociais) produz na análise do Direito, a partir do

estudo comparado, ainda que geral, entre o Sociologia do Direito, de 1972, e O Direito

da sociedade, de 1993. Isso permitirá uma compreensão do potencial crítico da teoria do

sistemas sociais, costumeiramente negligenciado, e permitirá que no terceiro capítulo seja

realizada a dupla análise mencionada na introdução, qual seja verificar quais elementos

de condensação integram os elementos permanentes, e analisar de que forma uma

interpretação regressiva formulada a partir de uma outra leitura de Luhmann permite uma

crítica tanto aos elementos de condensação quanto aos elementos permanentes. A partir

daí, a possibilidade deste material contribuir para uma nova agenda de pesquisa tanto para

a dogmática jurídico-penal quanto para a criminologia crítica será objeto de reflexão.

110

II CAPÍTULO – A teoria dos sistemas sociais autopoiéticos e o Direito da sociedade

moderna

2. De Jakobs a Luhmann: breves apontamentos para a potencialidade crítica

luhmanniana

O capítulo anterior apresentou o modo como Jakobs apropria-se do pensamento

luhmanniano em cada uma das fases de seu projeto de (re)normatização dos conceitos da

dogmática jurídico-penal, naquilo que foi chamado de tradução do material de estímulo

luhmanniano para a dogmática jurídico-penal, e também demonstrou a repercussão geral

que a presença de Luhmann no chamado “funcionalismo radical” suscitou na doutrina

estrangeira e nacional. Feito isso, a pesquisa entra agora numa etapa fundamental, qual

seja a exposição do dito material luhmanniano, e que servirá como base para a retomada

das possíveis relações com o direito penal e a criminologia crítica, tal como serão expostas

no capítulo seguinte.

Neste momento o objetivo é apresentar um panorama geral – evidentemente não

exaustivo – da teoria dos sistemas sociais e, após, contextualizar o resultado dessas

considerações nas análises sobre o sistema jurídico, notadamente nos temas referentes à

função do direito, o conceito de norma jurídica e a relação entre autodescrições e

heterodescrições. Especialmente no primeiro momento, espera-se que o potencial crítico

presente nessa construção teórica, naquilo que foi chamado de “teoria crítica dos

sistemas”442, fique evidente.

Antes de dar início à exposição da pesquisa, cumpre ressaltar, desde já, que a

teoria de Luhmann é desconfortável para muitos e irritante para alguns, sendo às vezes

considerada chocante e absurda443, e que, com certa frequência, Luhmann é tido como

um conservador, um positivista444. Neste contexto, a compreensão pejorativa da teoria

dos sistemas sociais como “tecnologia social” decorre em grande parte do debate entre

442 O termo foi criado em 2007 por Rudolf Wiethölter, conforme indicação de Andres Fischer-Lescano,

para quem “essa teoria crítica dos sistemas pode filiar-se com os trabalhos da primeira geração de teóricos

críticos da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt que procurava revelar o nexo entre as normatizações

sistêmicas e a subjetividade”, em FISCHER-LESCANO. Andreas. A teoria crítica dos sistemas da escola

de Frankfurt. Novos Estudos: CEBRAP, 86, 2010, p. 163. 443 MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls to systems. Illinois: Open Court, 2006, p. IX. 444 LA COUR, Anders & PHILOPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Luhmann observed. Radical

theoretical encounters. Inglaterra: Palgrave Macmillan, 2013, p. 01.

111

Habermas e Luhmann no início da década de 70445. As palavras do próprio Luhmann, em

entrevista concedida a Willis Santiago Guerra Filho, em 1993, sobre sua posição em

relação ao neoliberalismo, quando sustenta que a possível solução para financiar o Estado

social, contra a ideologia do “Estado mínimo”, está na tributação de operações no

mercado financeiro446, poderiam contribuir para uma rediscussão política de sua teoria.

Além deste preconceito, a nova forma de se observar a sociedade, o

“encantamento dos conceitos”447 decorrente de um edifício teórico abstrato e densamente

construído, faz da superteoria de Luhmann um verdadeiro labirinto, como o próprio autor

chega a afirmar448. Em que pese o desassossego diante do caminhar em círculos neste

espaço particularmente complexo que é a teoria luhmanniana, “seguidamente fulguram

faíscas que o aclaram como relâmpagos”449. O desafio aqui é seguir esses rastros.

O novo paradigma da sociologia – a macrossociologia luhmanniana – é um projeto

no qual o autor (re)descreve o campo de investigação sociológico a partir de estudos

interdisciplinares, “estímulos fundamentais”, notadamente no âmbito da termodinâmica,

biologia, neurofísica, teoria da informação e da cibernética450, valendo-se de uma

metodologia funcional que deve ser compreendida enquanto método comparativo que

permite construir um problema teórico de forma mais adequada451. Função aqui não

significa alcançar um determinado efeito – tal como a função da pena é costumeiramente

entendida –, mas comparar efeitos equivalentes enquanto esquema regulador de sentido.

É essa especificidade que nos permite designar essa construção teórica como sociologia

luhmanniana, que tem como traço distintivo ser capaz de declarar improváveis aquilo que

se considera normal452. A pergunta que sempre orienta o sociólogo de Bielefeld é “como

a ordem social é possível?”. Para investigar a chamada sociedade moderna, conceituada

como sociedade mundial [Weltgesellschaft] e que seria caracterizada pelo primado da

diferenciação funcional, Luhmann desenvolve uma teoria que entende ser adequada à

estrutural social altamente complexa. Sua teoria é dotada de uma universalidade capaz de

445 HABERMAS, Jürgen & LUHMANN, Niklas. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie? – Was

leistet die Systemforschung? Frankfurt sobre o Meno: Suhrkamp, 1971. 446 GUERRA, FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade pós-moderna: introdução a

uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 104-105. 447 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, contingência e racionalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.

63. 448 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 11. 449 CLAM, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade. Contingência, paradoxo, só-

efetuação. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006, p. 09. 450 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 35. 451 Ibidem, p. 73. 452 Ibidem, p. 122.

112

tudo explicar, incluindo nessa capacidade a própria teoria (reflexidade). Para tanto, sua

“teoria labiríntica”453 descarta construções teóricas tradicionais, como a semântica do

sujeito construída a partir de determinada interpretação de Kant e que celebrará os

“triunfos da razão”454. Luhmann exclui o homem da sociedade, de tal forma que em sua

teoria não há espaço privilegiado para o sujeito cognoscente como o sujeito do mundo.

Por não compactuar com os entusiasmos normativos do projeto iluminista, a teoria

dos sistemas sociais é comumente taxada de “anti-humanista”. Em se tratando de

recepção da teoria dos sistemas sociais, o que normalmente ocorre é a articulação entre

um desânimo decorrente de um pensamento “inutilmente complicado”455 com a irritação

decorrente do questionamento de certezas tidas como “imprescindíveis” para o projeto de

emancipação do homem456. Ciente das críticas e como teórico que entendia ser importante

“manter o dissenso em um certo nível e conservá-lo como tradição”457, Luhmann sempre

procurou esclarecer sua proposta de construir uma teoria da sociedade “emancipada da

razão”458, apresentando, como será destacado, as contradições e insuficiências teóricas

desta proposta que, ao tomar a consciência como sujeito do mundo, exclui do mundo

outros sujeitos. Os problemas decorrentes da tentativa de pensar o social a partir da

consciência e as dificuldades desta semântica em descrever adequadamente a sociedade

atual serão amplamente discutidos pelo sociólogo de Bielefeld, notadamente a partir dos

conceitos de observação de primeira ordem – em que uma distinção é utilizada sem que

se perceba a criação de contingência – e observação de segunda ordem – como observação

da observação daquilo que é observado e que sempre depende (contingência) do sistema

de observação de referência459.

453 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 29. 454 Este tema será aprofundado mais adiante. 455 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função. Novos estudos de teoria do direito. Barueri, SP: Manole,

2007, p. 112, nota 38. Mario Losano, discípulo de Bobbio, segue linha similar ao afirmar que “ao menos

por enquanto, penso que as dúvidas e as obscuridades ainda prevaleçam sobre os aspectos inovadores dessa

ciclópica reconstrução sistêmica da sociedade”, em LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito:

volume III: do século XX à pós-modernidade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 292. 456 Para uma breve explicação sobre a recepção do pensamento luhmanniano na europa e no Brasil,

dialogando com alguns sociólogos brasileiros e com pertinentes advertências acerca da difusão do

pensamento de Luhmann no âmbito jurídico, ver GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS

FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 11-17. 457 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 59 [tradução livre do

espanhol]. 458 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 18.

O trecho, em inglês, é propositadamente ambíguo: “What is importante here is not the emancipation of

reason but emancipation from reason”. 459 Estes conceitos também serão aprofundados oportunamente.

113

Luhmann enfatiza que a pretensão de universalidade de sua teoria não significava

que a mesma seria a única válida460, e também salienta que o observador de segunda

ordem não é um observador melhor, mas simplesmente outro461. Por esta razão afirma

que não é necessário ignorar os resultados da semântica do sujeito, “mas deve-se observá-

los como bancos de areia nos quais o barco da teoria da sociedade não deveria

encalhar”462. Como contraponto, desenvolveu por mais de 30 anos uma teoria

radicalmente distinta que substitui a distinção sujeito/objeto pela distinção

sistema/ambiente. A inserção do “diabo” na teoria, com o protótipo teológico do

observador do sistema dentro do sistema463 (autorreferência), questiona não só o

pensamento sociológico dominante até então, mas indaga por que o antropocentrismo,

abolido na cosmologia, na biologia e na psicologia, não deveria ser também “excluído”

da teoria social464. Note-se que na teoria luhmanniana o conceito de autorreferência é

removido de sua lugar clássico (consciência humana/sujeito) e é instaurado nos sistemas

reais465.

Em razão desta polêmica, é fundamental iniciar a apresentação do panorama geral

de sua teoria com alguns esclarecimentos sobre o modo como este sociólogo observa a

ainda presente semântica da tradição vétero-européia466, quais decisões elege para propor

um caminho alternativo, e como este arsenal teórico é articulado para descrever a

sociedade global. Ao longo deste desenvolvimento, joga papel fundamental a

incorporação do conceito de “autopoiese”, em 1984, em seu Sistemas sociais. Esta

inclusão, já se adverte, não significa ruptura com o material teórico desenvolvido

anteriormente. Já em Os direitos fundamentais como instituição, de 1965, A diferenciação

da sociedade, de 1977, Como é possível a ordem social? de 1980, e Teoria Política no

Estado de Bem-estar, de 1981, observamos amostras vigorosas de um quadro teórico

refinado que, com o conceito de autopoiese, será radicalizado467. Apesar disso, será outra

460 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 39. 461 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 904. 462 Ibidem, p. 689 [tradução livre do espanhol]. 463 O diabo também pode ser substituído por Perseo, responsável por decapitar Medusa de forma fácil e

indireta. Ver LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 53. 464 MOELLER, Hans-Georg. The radical Luhmann. Nova Iorque: Columbia University Press, 2012, p. 06. 465 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 55. 466 Esta tradição refere-se ao pensamento greco-romano-cristão. Ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de

la sociedad. México: Herder, 2007, p. 708. 467 Há, entretanto, uma alteração importante. Segundo Marcelo Neves, em “A sociedade mundial” [Die

Weltgesellschaft], de 1975, e em “Sobre a diferenciação funcional do direito: contribuições para a

sociologia do direito e teoria do direito” [Ausdifferenzierung des Rechts: Beiträge zur Rechtssoziologie und

Rechtstheorie], de 1981, Luhmann observava a sociedade como “sociedade econômica”, isto é,

caracterizada por um “primado social da economia”. Segundo Neves, “Luhmann afasta-se posteriormente

114

inclusão a responsável pelas discussões atuais mais interessantes acerca do potencial

descritivo e crítico da teoria: a distinção inclusão/exclusão, tema que fechará as análises

da primeira parte deste capítulo.

2.1. Uma aproximação à evolução do pensamento de Luhmann

Por que é necessária uma “teoria dos sistemas”? Responder a esta pergunta é uma

boa forma de iniciarmos a mencionada aproximação ao pensamento de Luhmann.

Segundo o sociólogo de Bielefeld, as atuais teorias não conseguem descrever

adequadamente a sociedade moderna, e mesmo as ditas teorias “sistêmicas”, enquanto

“grande teorias”, isto é, com pretensões de universalidade, são vistas com ceticismo.

Ocorre que o termo “teoria dos sistemas” não é um conceito unívoco, já que articula

diversas teorizações procedentes das mais variadas disciplinas (robótica, teoria das

organizações, inteligência artificial, psicologia e neurofisiologia, entre outras). Mas certo

é, segundo Luhmann, que a sociologia mantém-se discreta e não atualizada frente a estes

desenvolvimentos teóricos. Como será demonstrado, é exatamente essa atualização que

o autor fará, valendo-se de diversos “materiais de estímulo”, notadamente no campo da

matemática, cibernética de segundo grau e biologia.

Para uma adequada contextualização da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos,

dotada de especial singularidade, é importante destacar o que se entendeu, antes, por

“teorias sistêmicas”. Luhmann esclarece468 que estas receberam seu primeiro impulso

através da tese da termodinâmica, segundo a qual os sistemas fechados seriam incapazes

de manter suas diferenciações, tendendo assim à entropia. Assim, a neguentropia, isto é,

a negação da entropia (possibilidade de estabelecimento de uma ordem), constitui-se

como principal problema teórico a ser desenvolvido. Os trabalhos levaram, então, à ideia

de sistemas abertos, nos quais existiria uma relação de troca entre sistema e ambiente

(input e output) que possibilitaria a manutenção de um estado de ordem.

No entanto, Luhmann destaca que essa solução, que procurou desenvolver ideias

como as de “manutenção de limites” [boundary maintenance], “pré-requisitos

dessa posição, para enfatizar a horizontalidade dos sistemas autopoiéticos, propondo, assim, uma

radicalização da tese da autopoiese”. Ver NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora

WMF Martins Fontes, 2009, p. 28, nota 103. 468 LUHMANN, Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, em BONI, Luís A. & STEIN, Ernildo (org.).

Dialética e liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis, RJ: Editora

Vozes; Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 430 e ss.

115

estruturais” [structural prerequisites] e “caixas pretas” [black box] não era satisfatória

para determinar a especificidade dos sistemas469. Esta lacuna teórica permitiu a ênfase

cada vez maior em conceitos autorreferenciais (destaque para os estudos sobre máquinas

cibernéticas – Máquinas de Turing), de tal forma que foi aceita a tese de Heinz von

Foerster de que o sistema constrói sua ordem através de ruídos vindos do ambiente [order

from noise]. Em que pese estes avanços teóricos, que partiam da premissa de que o

material para a construção do sistema estaria no ambiente, Luhmann enfatiza que ainda

era problemática a relação entre sistema e ambiente470.

Esta situação muda com a chamada tríade “autopoiesis, fechamento operacional e

retroalimentação estrutural” dos sistemas autorreferenciais, desenvolvida pelos biólogos

chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela. Dessa forma, o conceito de autopoiesis

é responsável por deslocar o princípio do nível estrutural para o operativo, concebendo

que tudo o que opera no sistema é produzido pelo próprio sistema. Consequentemente

observa-se o fechamento operacional deste, isto é, o ambiente não contribui para nenhuma

operação do sistema, já que todas as suas operações são internas. Mas uma vez que a

diferença entre sistema e ambiente impede por si só considerar o sistema “algo em si

mesmo”, então são necessários esclarecimentos sobre como desenvolve-se a relação entre

sistema e ambiente. Daí o conceito de retroalimentação estrutural, a partir do qual analisa-

se (por “irritações” e “perturbações produtivas”) a compatibilidade entre dependência de

um ambiente pelo sistema e manutenção da autopoiese deste471.

A partir deste quadro teórico já é possível notar que a teoria luhmanniana, ao

desenvolver tais conquistas teóricas (chamadas de construtivismo radical) no âmbito da

sociedade, será responsável por operar uma “revolução” na teoria do conhecimento. Isso

terá consequências para a filosofia, especialmente para a chamada filosofia do sujeito,

como será destacado. As críticas de Luhmann à distinção sujeito/objeto, à semântica do

sujeito que impõe, por necessidades práticas, o “não-conceito de intersubjetividade”, e ao

469 Apesar da desenvolvimento teórico observado a partir da ideia de sistemas abertos, Teubner destaca que

“o facto é que se tornou progressivamente evidente que o seu impacto era algo inesperado: uma vezes

demasiadamente aquém, outras além do previsto (...). Neste contexto, não terá disso porventura pura

coincidência que a ideia de auto-organização se tenha então tornado cada vez mais atractiva”, em

TEUBNER, Günther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993,

p. 30-31. 470 LUHMANN, Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, em BONI, Luís A. & STEIN, Ernildo (org.).

Dialética e liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis, RJ: Editora

Vozes; Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 433. 471 Ibidem, p. 435.

116

déficit explicativo desta tradição epistemológica na sociedade funcionalmente

diferenciada estão presentes em quase todas as obras do sociólogo472.

Mas para que seja possível compreender o motivo de todas essas deficiências é

necessário saber, antes, o que Luhmann entende por modernidade. Para abordar este tema,

o sociólogo elege a distinção estrutura social/semântica, e salienta que quando a sociedade

contemporânea se identifica como “moderna”, ela se identifica ao se diferenciar do

passado, ou seja, a identificação é construída por meio da diferença. Compreender este

papel primordial da diferença para a compreensão da identidade não é, entretanto, tarefa

fácil. Não à toa Luhmann sustenta que um dos problemas mais importantes de hoje está

na alteridade, comumente associada à tematização do outro por aquilo que nos identifica.

Uma vez que ainda não existem critérios para a alteridade que partam da não identidade,

o sociólogo destaca que os homens apelam para as ideias de humanidade e razão, mas

não mais no sentido de defender um natural entendimento a partir da tradição, mas no

sentido enfraquecido de valores que nos permitem condenar o outro473. Como salienta

Helga Gripp-Hagelstange, “o princípio teórico da diferença se pode entender como uma

tentativa de superar o ‘pensamento da identidade’ (Adorno)”474, que impede a

consideração de que algo possa ser isto e ao mesmo tempo isto outro ao desconsiderar

que a projeção de identidade ocorre a partir da diferença entre ser e tempo.

No contexto das atuais semânticas da sociedade moderna, Luhmann compreende

que a utilização de termos como “sociedade de risco” ou “sociedade da informação”

somente evidenciam que falta um conceito estrutural da sociedade capaz de distinguir a

sociedade contemporânea (sociedade mundial – Weltgesellschaft) de formações sociais

anteriores475. Estaria ausente “uma semântica das relações entre estrutura e semânticas,

uma teoria da autodescrição da sociedade que se autorreproduz via estrutura”476, razão

pela qual salienta que mesmo Antonio Gramsci – um dos marxistas responsáveis pela

crítica à supervalorização do papel da economia na sociedade – não consegue ir além

472 Hans-Georg Moeller salienta que o radicalismo de Luhmann, em que pese quase nunca ser tematizado,

não é tão escondido: “Luhmann’s radicalism is not that hidden”. Ver MOELLER, Hans-Georg. The radical

Luhmann. Nova Iorque: Columbia University Press, 2012, p. 04. 473 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 03. 474 LUHMANN, Niklas. La politica como sistema. México: Instituto Tecnológico e de Estudos, 2009, p. 42

[tradução livre do espanhol]. 475 Para uma análise dessas descrições propangandísticas, ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la

sociedad. México: Herder, 2007, p. 862-868.

476LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 04-

05 [tradução livre do inglês].

117

deste diagnóstico, já que faltaria um estudo acerca dos fenômenos paralelos de

diferenciação funcional de cada sistema social477.

Não é possível reproduzir aqui as diferenças de cada forma de diferenciação da

sociedade (segmentária, entre centro e periferia, estratificada, funcional), razão pela qual

será enfatizada somente aquela característica da sociedade moderna, a diferenciação

funcional478. Todavia, é importante destacar que na sociedade moderna não se observa

somente este tipo de diferenciação, já que as formas de diferenciação não se excluem

entre si, mas existem condições de compatibilidade decorrentes do primado social da

diferenciação funcional479.

Aqui já é importante destacar essa questão referente às “condições de

possibilidade”. Como será destacado ao final desta primeira etapa, ao enfrentar o

problema da exclusão social Luhmann colocará à prova a tese de que na sociedade

funcionalmente diferenciada, em princípio, os indivíduos devem poder participar de todas

as comunicações480. Ou seja, como contraponto ao conceito de inclusão social enquanto

“incorporação da população global às prestações dos distintos sistemas funcionais da

sociedade”481, o sociólogo de Bielefed salientará que não é possível haver inclusão sem

exclusão, reconhecendo que a estratificação social, por exemplo, acaba sendo um

subproduto da diferenciação funcional482. Isso nada mais significa que a lógica da

modernidade é uma lógica de contradição, em que a desigualdade social “repõem e

impõem padrões não-funcionais à sociedade funcionalmente diferenciada”483, algo

assumido por Luhmann ao salientar que “nas margens dos sistemas são construídas

477 Ibidem, p. 09. 478 Já em 1965 Luhmann abordava o tema da diferenciação funcional e sua relação, no que tange aos direitos

fundamentais, entre dogmática jurídica e sociologia. Ver LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come

istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 275. Uma visão panorâmica pode ser encontrada no artigo A

diferenciação da sociedade, escrito em 1977 e incorporado na coletânea LUHMANN, Niklas. Complejidad

y modernidad. Madrid: Trottal Editorial, 1998, p. 71-98, onde são articulados os processos de variação,

seleção e reestabilização. Segundo Marcelo Neves, “o fenômeno evolutivo só se completa quando se

preenchem três condições vinculadas reciprocamente: variação, seleção e restabilização. Trata-se dos

chamados mecanismos evolutivos ou funções da evolução”, em NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã:

uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 02. 479 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 85. 480 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 495. 481 LUHMANN, Niklas. Teoria política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 47-

48 [tradução livre do espanhol]. 482 LUHMANN, Niklas. Beyond barbarism, em MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls

to systems. Illinois: Open Court, 2006, p. 264. 483 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 220.

118

efeitos de exclusão que, nesse nível, conduzem à uma integração negativa”484. Estaria em

risco, então, o primado da diferenciação funcional?485

Por hora, vale a pena notar que a evolução social requer o que Luhmann denomina

de “preparação latente”, isto é, o surgimento de novas ordens no interior da antiga que

aguardam a concretização de uma maturidade que permita a consolidação de uma nova

formação estrutural dominante que dará novo significado a anterior. Mas neste

movimento não há substituição total de formas de diferenciação, mas “mesclas” que são

típicas e até necessárias para a evolução486, já que o próprio Luhmann admite que “parece

prevalecer uma espécie de diferenciação segmentária que absorve momentos da

diferenciação funcional”487.

No âmbito da diferenciação funcional dos sistemas sociais merecem destaque três

afirmações de Luhmann, referentes às condições para que este tipo de diferenciação

ocorra. Primeiramente, já em 1965 o sociólogo afirma que “um vasto processo cultural”

relacionado à mobilização de vínculos materiais (dinheiro) e pessoais (organizações) é

responsável por possibilitar “o potencial comunicativo da sociedade e sua capacidade de

definir as situações de maneira diferenciada e variável”488, salientando que “certamente

o desenvolvido para uma diferenciação social mais forte não teve início

contemporaneamente em todos os âmbitos funcionais”489. A possível ênfase no aspecto

econômico é deixada em aberto por Luhmann em 1981, quando salienta em uma nota de

rodapé que a caracterização da sociedade como “dinâmica” poderia ser atribuída ao

capitalismo ou à diferenciação funcional490. Por fim, em 1997, sustenta “que o decisivo é

que em algum momento a recursividade da reprodução autopoiética começa a controlar a

484 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 499-500. 485 Como já indicado, esta questão será retomada ao final desta primeira parte. Antes, ainda é necessário

compreender uma série de conceitos fundamentais, bem como contextualizá-los no interior do arsenal

teórico luhmanniano. 486 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 484, 612. Por isso Luhmann

afirma que mesmo na sociedade funcionalmente diferenciada encontramos a estratificação em forma de

classes sociais e mesmo a diferenciação entre centro e periferia. 487 Ibidem, p. 602 [tradução livre do espanhol]. Por isso que, em razão das contradições já mencionadas,

Bachur entende que “evolutivamente, a diferenciação funcional nega (mas também conserva) as formas

pretéritas de diferenciação social que, uma vez conservadas na sociedade funcionalmente diferenciada,

negam-na por sua vez sem a superar; conservando-a, no entanto, já com um outro significado”. Ver

BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio

de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 236. 488 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 72 [tradução livre

do italiano]. 489 Ibidem, p. 293 [tradução livre do italiano]. 490 LUHMANN, Niklas. Teoria política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 84,

nota 42.

119

si mesma e alcança um fechamento”491. A partir deste fechamento para o direito só conta

o direito, para a política só conta a política etc. Isso significa que tudo aquilo que é

decisivo para o sistema se resolve nos sistemas, ou seja, cada sistema de função regula

ele próprio seus temas, as regras a partir das quais comunica e como atribui sentido aos

indivíduos.

É devido à esta construção teórica que Luhmann afirma que na diferenciação

funcional “a sociedade renuncia a impor aos sistemas parciais um esquema comum de

diferenciação”492, de tal forma que esta diferenciação é caracterizada tanto pela

desigualdade como pela igualdade dos sistemas parciais. Assim, pode-se compreender

que os sistemas de funções são iguais em sua desigualdade493, desde que se lembre que

no contexto de múltiplas dependências entre sistemas pode-se supor, segundo o próprio

Luhmann, o favorecimento de alguns sistemas (evolução mal balanceada da

sociedade)494. Por isso o sociólogo afirma: “a diferenciação funcional não garante então

de nenhuma maneira iguais oportunidades para todos os sistemas de função”495.

A partir deste enquadramento teórico não é possível colocar os seres humanos de

maneira que cada um pertença a somente um sistema, é dizer, “que participe do direito

mas não da economia, da política mas não do sistema educativo”496, como acontecia em

outros tipos de sociedade. A consequência desta alteração escandalosa já foi apresentada:

não se pode afirmar que a sociedade consiste em seres humanos, razão pela qual estes são

compreendidos como ambiente da sociedade. Perceba-se, também, a manifesta falta de

491 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 561 [tradução livre do

espanhol] (ênfase acrescentada). Esta passagem é fundamental. A partir dela Bachur sustentará, em diálogo

com Luhmann que o “em algum momento” refere-se à diferenciação funcional da economia (capitalismo),

o que, diga-se de passagem, Luhmann não chega a negar, como mencionado. Em linhas gerais, “o

capitalismo é a alavanca histórica que pôs em marcha aquela contínua diferenciação paralela de uma

maioria de sistemas funcionais e que nos permite caracterizar a sociedade contemporânea como sociedade

funcionalmente diferenciada”, em BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção

crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 176. Este tema será

aprofundado no último capítulo. De modo simillar, Willis Santiago Guerra Filho sustenta que “a teoria dos

sistemas sociais autopoiéticos desenvolve uma moldura conceitual para ser aplicada nos estudos das

sociedades que alcançam uma condição histórica particular, a qual pertencem de antemão, a característica

democrática das instituições políticas e o domínio dos valores econômicos capitalísticos nessas

sociedades”, em GUERRA FILHO, Willis Santiago. Potência crítica da ideia de direito como um sistema

social autopoiético na sociedade mundial contemporânea, em SCHWARTZ, Germano (org.).

Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre:

Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 62. 492 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 590. 493 Ibidem, p. 486 e 591. 494 Ibidem, p. 605. 495 Ibidem, p. 610. 496 Ibidem, p. 589.

120

rigor de grande parte da doutrina nacional e estrangeira citada no capítulo anterior em

compreender como se desenvolve o argumento da exclusão dos homens da sociedade.

Além disso, é importante compreender a específica relação entre sistemas parciais

e sociedade, já que esta apresenta-se somente como ambiente do sistema de referência

(no qual encontram-se sistemas sociais e sistemas psíquicos), não sendo considerada nem

como algo inferior ao sistema nem como algo superior ao sistema. Isso significa que os

sistemas “não podem se legitimar dentro do todo da sociedade como condição da ordem

em si”497. Tendo em vista o conceito de funcionalismo apresentado por Jakobs –segundo

a qual o Direito penal “está orientado a garantir a identidade normativa, a garantir a

constituição da sociedade”498 –, é importante ressaltar que o conceito de função em

Luhmann não tem qualquer relação com os pressupostos de preservação do sistema da

sociedade, já que relaciona-se somente com a especificação funcional de cada sistema

(problema de referência funcional, não de pressupostos de preservação499).

Diante deste quadro, uma segunda pergunta permite uma aproximação ainda

maior à teoria dos sistemas sociais autopoiéticos. Por que o sociólogo de Bielefeld propõe

uma mudança de paradigma na sociologia? Segundo Luhmann, as teorias desenvolvidas

pelos clássicos – dentre eles Marx, Weber e Durkheim – estariam ultrapassadas para

explicar o atual contexto social, no sentido de compreender como a sociedade moderna

lida com o elevado nível de complexidade. Esta é a razão pela qual Luhmann sustenta

que a sociologia se encontraria numa crise de caráter teórico500, constatação que pode ser

compreendida na já mencionada articulação entre estruturas sociais e semânticas sociais,

e na estagnação da sociologia diante daquelas conquistas teóricas destacadas. Daí que um

dos grandes trunfos da teoria luhmanniana é compreender que a estrutura social e a

semântica se desenvolvem e se influenciam reciprocamente501, no sentido que de que uma

alteração estrutural requer uma alteração semântica.

497 Ibidem, p. 590-591. 498 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 01. Ver 1º capítulo, p. 25. 499 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 592. Aqui poder-se-ia

discutir a proximidade da tese de Jakobs, também seguida por Lesch, de que o direito é responsável pela

garantia da ordem social, com a primeira função do direito apresentada por Luhmann, em Os direitos

fundamentais como instituição, de 1965, em que o direito tem a tarefa de garantir a estrutura funcional da

diferenciação, sendo por isso mesmo considerado justo. Ver LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali

come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 268. A questão, referente às diferentes funções do direito

apresentadas por Luhmann será abordada ao final deste capítulo, e o diálogo com as funções apresentadas

por Jakobs será objeto de consideração no terceiro capítulo. 500 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 7. Ver também

LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 01. 501 LUHMANN, Niklas. Struttura delle società e semantica. Bari-Roma: Laterza, 1983, p. 32.

121

Se por um lado é certo dizer que essas alterações semânticas ocorrem em um

momento posterior à alteração estrutural, por outro também é certo que, caso a semântica

não se atualize, ela perderá contato com a realidade social. Disso resulta que a imagem

“atrasada” e “obsoleta” de determinada semântica pode indicar o esgotamento de suas

estruturas diante da complexidade social. Se as teorias da sociedade são teorias sobre a

sociedade feitas na sociedade, então o conceito de sociedade tem que ser construído

autologicamente. Luhmann sustenta que a produtividade do conceito de autologia é

notória em outras áreas, e questiona por que a sociologia deveria resistir a algo cuja

relevância põe de manifesto seu próprio objeto. Ironicamente, responde que talvez a

sociologia conheça a sociedade tão bem a ponto de oferecer teorias críticas sobre ela, e

se for este o caso, “então é preciso animar a sociologia e dizer-lhe que a empreitada não

tem por que acabar em uma afirmação, no consenso ou no conformismo”502.

Este novo ânimo pode ser compreendido a partir das análises que Luhmann faz

sobre a formação dos sistemas complexos em ambientes complexos, que está intimamente

relacionada com os conceitos de complexidade e contingência. Por complexidade

entende-se que algo que é realizado deriva de uma seleção dentre outras possíveis, de tal

forma que complexidade do mundo não pode ser absorvida em sua totalidade por um

conceito de complexidade, isto é, jamais ocorre nos sistemas uma repetição, um reflexo

da complexidade universal503, já que esta sempre indica pluralidade de alternativas. Por

isso Luhmann afirma que o mundo possui mais possibilidades, sendo considerado

portanto uma estrutura aberta504. É importante atentar para o fato de que seleção não

significa algo feito por um sujeito, mas uma operação resultado do estabelecimento de

uma diferença, de tal forma que sempre existem mais possibilidades do que se pode

realizar505. É por isso que Luhmann compreende a complexidade como relação seletiva

entre elementos, é dizer, como “organização seletiva da autopoiese do sistema”506, a partir

502 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 53 [tradução libre

do espanhol]. 503 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 396. Em 1969 Luhmann

apresenta o conceito da seguinte forma: “por complexidade deve entender-se a totalidade das possibilidades

que se distinguem para a vivência real – quer seja no mundo (complexidade do mundo), quer seja num

sistema (complexidade do sistema)”. Ver LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília:

Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 39. 504 LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Anthropos Editoral, 2005, p. 10. 505 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

45. 506 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 103. Em Sistemas sociais

Luhmann apresenta o conceito da seguinte forma: “soma de elementos conexos na qual, em razão de uma

limitação imanente à capacidade de acoplamento, já não resulta possível que cada elemento seja vinculado

122

da qual o sistema transforma a complexidade do ambiente – sempre superior – em

complexidade estruturada507, que só pode ser selecionada de forma contingente. Isso

significa que a complexidade é compreendida como “unidade de uma multiplicidade”508.

Daí sua afirmação de que somente a complexidade pode reduzir complexidade509. Nesta

construção de (auto)complexidade o sistema desiste de desenvolver correspondências

próprias para todos os estados do ambiente, produzindo seus elementos próprios por meio

de seus próprios elementos (autopoiese)510, o que já demonstra um problema na ideia de

Jakobs de que o sistema jurídico deve alcançar uma complexidade adequada com

referência ao sistema social511.

Se em Luhmann a complexidade deve sempre ser pensada a partir da necessidade

de seleção a partir de inúmeras possibilidades, isso significa que uma observação prévia

da operação seletiva dificilmente pode ser feita. A dificuldade de se predizer quais

relações o sistema selecionará está articulada com o fato de que aquela seleção expressa

uma possibilidade de seleção, dentre outras possíveis, de tal forma que as possibilidades

que não foram selecionadas permanecem disponíveis para seleções futuras.

Aqui também está presente a noção de contingência, segundo a qual contingente

é aquilo que pode ser como é, mas que também poderia ser de outro modo512, ou seja, as

possibilidades que são apontadas como aquilo que pode ser poderiam ser diferentes513. O

elemento perturbador da contingência está na dupla negação – aquilo que não é nem

necessário nem impossível – que não pode ser reduzida à uma única negação, de tal forma

que um conceito é constituído por duas negações514. A utilização deste conceito de

contingência só pode ocorrer em uma teoria composta por um aparato lógico complexo,

que admita a multiplicidade de valores lógicos, e na qual o conceito de observação passa

a ocupar papel central. Observação é uma operação que estabelece uma distinção para

designar um lado da forma, deixando o outro lado não marcado, fazendo com que os dois

lados aparecem simultaneamente, de uma vez só. Como este raciocínio é possível?

a outro, em todo momento”. Ver LUHMANN, Niklas. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México:

Anthropos Editorial, 1998, p. 47 [tradução livre do espanhol]. 507 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 100. 508 Ibidem, p. 101. 509 LUHMANN, Niklas. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 47. 510 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 101. 511 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 08-09. 512 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 115. 513 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

45. 514 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 45-

46.

123

Trata-se da distinção entre operação e observação. Uma operação que usa

distinções para designar algo será chamada de observação515. O conceito já mencionado

de forma vem do matemático Georg Spencer-Brown, para quem “nós não podemos fazer

uma indicação sem traçar uma distinção”516. Assim, uma forma é uma operação de indicar

e distinguir, de tal maneira que o conceito é necessariamente relacional. Segundo

Luhmann, toda observação designa algo e distingue isso de outras coisas517, razão pela

qual toda forma possui dois lados, pois na medida em que um lado é indicado (marked

space), o outro permanece como lado não indicado (unmarked space). Ou seja, “cada lado

da forma é, portanto, o outro lado do outro lado”518. Esses lados não podem existir sem

referência de um ao outro, de onde deriva a ideia fundamental de que a identidade da

forma está na diferença519. Em outras palavras: a unidade da distinção torna-se invisível.

Toda distinção possui um ponto cego na medida em que não pode ser observada quando

é utilizada.

Dois tipos de observação devem ser destacados: de primeira ordem (observação)

e de segunda ordem (observação da observação)520. Na observação de primeira ordem a

distinção é utilizada sem que se perceba a criação de contingência, já que o movimento

(que consome tempo) de designação do “unmarked space” para o “marked space”

apresenta-se na própria execução da operação de observação. Somente na observação de

segunda ordem há espaço para a inclusão de contingência, pois como observação da

observação aquilo que é observado depende sempre de quem observa. É importante notar

que a observação de segunda ordem não deixa de ser uma observação de primeira ordem,

515 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction, Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 134

[tradução livre do inglês]. 516 SPENCER-BROWN, George. Laws of form. Alemanha: Bohmeier Verlag, 2009, p. 1. Para uma

abordagem acerca da evolução da matemática que desemboca em Spencer-Brown, ver GUERRA FILHO,

Willis Santiago & GARBELLINI, CARNIO, Henrique (col.). Teoria da ciência jurídica. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 195-205. Willis Guerra Filho acentua que a aceitação das contradições e antinomias

produzidas por um discurso autorreferencial vai ao encontro “do desenvolvimento contemporâneo de

disciplinas ditas ‘transclássicas‘, por já não serem mais um campo especializado de estudo, mas sim uma

perspectiva a partir da qual se podeiam estudar os mais diversos fenômenos – donde seu ‘holismo‘, em

contraposição (ou melhor, talvez, em complementação) ao reducionismo da ciência moderna“. Ver

GUERRA FILHO, Willis Santiago & GARBELLINI, CARNIO, Henrique (col.). Teoria da ciência

jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 201 517 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction, Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 114. 518 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 41. 519 “Todo observar introduz uma distinção em um espaço-sem-marca, a partir do qual efetua a distinção.

Consequentemente, o observador, para gerar a diferença entre espaço-com-marca e espaço-sem-marca, e

para distinguir-se de si mesmo daquilo que assinala, deve utilizar uma distinção. Distinção serve somente

(e esta é sua intenção) para designar algo como distinto de outra coisa", em LUHMANN, Niklas. El arte

de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 97 [tradução livre do espanhol]. 520 Em que pese serem possíveis múltiplas observações de várias ordens: terceira, quarta etc., na forma de

observação da observação que observa outra observação.

124

na medida em que ela também utiliza uma distinção para marcar um espaço (observar

uma observação). Entretanto, este tipo de observação (de um segundo observador)

também observa o que o observador observa e como ele observa, podendo inclusive

observar o que o observador não observou, e assim ver que o observador não observa que

não observa o que não observa.

Para uma observação (seja de primeira ordem, de segunda, terceira etc.) poder

observar a si mesma seria necessária outra distinção, ou seja, uma nova observação. Mas

como nenhuma observação pode observar a si mesma, descortinar suas distinções, se

estabelecer como “a” observação correta, racional, toda observação apresenta, também,

um ocultamento. Somente uma observação de segunda ordem que observe as distinções

feitas pelo observador de primeira ordem pode revelar aquele ponto cego (blind spot).

Nesse sentido, as perguntas sobre “o que é a realidade” e “como é construída a realidade”

derivam de dois níveis de observação: de primeira e segunda ordem, respectivamente. No

entanto, as observações de segunda ordem também possuem pontos cegos, o que nos leva

à conclusão de que a sociedade opera como um sistema “que pode ver que não pode ver

o que não pode ver”521.

A realidade descrita através deste arsenal teórico é o limite da auto-observação e

nenhuma observação de ordem superior pode ver a essência do mundo. Como salienta

Luhmann, “o “ponto cego” de cada observação, a distinção que é utilizada no momento,

é ao mesmo tempo a garantia de um mundo”522. Podemos resumir essas considerações da

seguinte maneira: “complexidade (...) significa coação para selecionar. Coação para

selecionar significa contingência, e contingência significa risco”523. Neste cenário, o que

importa destacar é que aqui não há espaço para semânticas de progresso ou de

desenvolvimento histórico, no sentido de orientação para uma sociedade melhor, mais

“humana”. O sistema evolui às cegas, e por meio das escolhas realizadas (por ele mesmo)

521 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 119

[tradução livre do inglês]. 522 Ibidem, p. 136 [tradução livre do inglês]. 523 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 48. Nas palavras de Celso

Fernandes Campilongo, “complexidade é o mesmo que pluralidade de alternativas. Contingência significa

que, se a decisão, hoje, recaiu sobre a hipótese x, nada impediria que, legitimamente, tivesse recaído sobre

a alternativa y, ou que, no futuro, recaia sobre a via z. Vale dizer, quanto mais complexa e contingente a

sociedade, mais escassas as chances de decisões consensuais (diante da multiplicidade das escolhas) e mais

nítidas as artificialidades que informaram o processo decisório (dada sua contingência). Em razão dessas

características, decidir equivale a fazer escolhas árduas, em curto espaço de tempo, sobre matérias não

rotinizadas e com consequências sociais imprevisíveis”, em CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito

na sociedade complexa. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 79.

125

constrói sua identidade. É neste sentido que a complexidade do sistema representa a

incerteza das conclusões que se podem extrair das observações atuais524.

É natural que se pergunte “quem observa?”, “quem faz distinções?”, e talvez seja

natural que se responda: o sujeito. A semântica do sujeito que acompanha essa resposta é

tida por Luhmann como um dos principais entraves para se pensar a sociedade. É neste

sentido que o seu “esclarecimento sociológico” (soziologische Aufklärung) contrapõe-se

ao “esclarecimento racional” (Vernunftaufklärung), buscando assim novas construções

para uma teoria da sociedade que se afastem dos ideais iluministas525. Isso fica claro

quando Luhmann identifica quatro obstáculos epistemológicos que bloqueiam o

conhecimento da sociedade moderna: (i) que a sociedade é constituída por homens

concretos e por relações entre seres humanos; (ii) que, consequentemente, a sociedade se

estabelece/integra através do consenso dos seres humanos, manifestada pela concordância

de suas opiniões e pela complementariedade de seus objetivos; (iii) que as sociedades

estão territorialmente delimitadas, (iv) e que, portanto, as sociedades podem ser

observadas do exterior como grupos de seres humanos ou como territórios526.

Se por um lado não é possível traçar aqui o desdobramento da recusa desses quatro

obstáculos no interior da teoria luhmanniana, por outro é fundamental apresentar e

aprofundar o material teórico utilizado por Luhmann para desenvolver seu projeto. O

ponto de partida da teoria dos sistemas autopoiéticos, como já destacado, está na diferença

524 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 27. 525 Como bem pontuado por Bachur, “resolver o esclarecimento significa investigar as condições sociais

para apreender e reduzir complexidade; tomar o esclarecimento como problema significa, mais

especificamente, compreender a modernidade a partir do ponto de vista da formulação e da solução de

problemas da sociedade (e não da consciência) – esse é o ponto de ruptura entre a teoria de sistemas sociais

e a tradição da filosofia do sujeito”. BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção

crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 31. 526 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 11-12. É oportuno destacar

que 06 anos antes, em Teoria da sociedade, escrito em parceria com Raffaele De Giorgi, são apresentados

03 obstáculos, já que o obstáculo referente ao consenso entre os homens não estava presente. Ver

LUHMANN, Niklas & DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società. Milão: Franco Angeli, 2009, p. 13-14.

Em 1992 Luhmann também apresenta três obstáculos epistemológicos. Ver o artigo “O conceito de

sociedade”, em LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 54-55.

Segundo Guilherme Gonçalves e Orlando Bôas Filho, como resultado disso temos “em primeiro lugar, a

separação de sociedade (sistema social, cuja autopoiese se opera com base na comunicação) e homem

(sistema psíquico, cuja autopoiese tem por elemento a consciência) que, nesse sentido, tornar-se-iam

ambiente (Umwelt) um para o outro. Em segundo lugar, a adoção de um conceito abrangente de sociedade,

definida como “sociedade mundial” (Weltgeselschaft), que englobaria as diversas “sociedades regionais”,

encaradas como simples diferenciações de condição de vida no âmbito de um sistema social global. Em

terceiro lugar, a rejeição da tese de que a “integração consensual” poderia ter um significado constitutivo

da sociedade. Por fim, na assunção de uma perspectiva teórica segundo a qual a sociedade seria um sistema

autorreferencial que descreve a si mesmo, de modo que a sociologia apareceria como uma autodescrição

(uma operação autológica) da sociedade”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO,

Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 25.

126

entre sistema e ambiente – consequência do novo paradigma da diferença entre identidade

e diferença527 – rechaçando os paradigmas “partes e todo” e do “sujeito/objeto”. Luhmann

enfatiza que este “novo” paradigma não é propriamente novo. Se já na Grécia

encontramos o termo diapherein, é a partir de 1900 que os conceitos de identidade passam

a ser questionados. Aqui entram em cena, principalmente, os trabalhos de Ferdinand de

Saussurre, Gabriel Tarde, René Girard, Gregory Bateson e George Spencer Brown528. Em

Luhmann, a diferença enquanto diferença entre sistema e ambiente significa que o

ambiente é pressuposto do sistema, no sentido de que a identidade do sistema só pode ser

construída por meio da diferença, e isso significa que a teoria não começa a partir de uma

unidade, uma cosmologia, um conceito de mundo ou do ser529.

A diferenciação do sistema não é outra coisa que a repetição da diferença entre

sistema e ambiente no interior do sistema530, ou seja, construção recursiva do sistema.

Cumpre enfatizar: Luhmann substitui a distinção sujeito/objeto não por qualquer outra

distinção, mas pela distinção sistema/ambiente531. Sistema e ambiente são independentes

em relação ao outro, são lados autônomos que não interferem ou determinam um ao outro.

Portanto, o sistema constitui-se como sistema na medida em que não é ambiente, e uma

vez que somente os dois lados juntos constituem a distinção, o ambiente é tão importante,

tão indispensável quanto o sistema532, razão pela qual não há que se falar em sistemas ou

ambientes “em si”533. Na macrossociologia luhmanniana a análise funcional não se refere

ao sistema, como manutenção deste, mas sim à diferença entre sistema e ambiente. Este,

por sua vez, não deve ser compreendido como algo marginal, pois a relação

sistema/ambiente é constitutiva534. Diante disso, não poderia ser outra coisa senão um

527 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 34 e 40. 528 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 44-48. 529 Ibidem, p. 44. 530 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 31. Há uma diferenciação entre

“diferenciação externa”, a partir da qual o sistema social possibilita sua própria formação por sua não

identificação com o ambiente, e “diferenciação interna”, que não é característica essencial dos sistemas

sociais, já que podem existir sistemas sociais simples (sistemas de interação que resultam do contato entre

pessoas presentes) nos quais não há essa diferenciação característica dos sistemas sociais complexos. Ver

Ibidem, p. 185. 531 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 50. 532 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 54. 533 SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, contingência e racionalidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.

74. 534 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 172. Esta ênfaze na relação entre

sistema e ambiente é fundamental. Luhmann estabelece que os individuos pertencem ao ambiente do

sistema, o que gerou uma série de críticas, algunas das quais já foram observadas na análise da repercussão

crítica feita no primeiro capítulo. Luhmann enfatizou diversas vezes a peculiar relação entre sistema e

ambiente, insistindo na relação de mútua dependência entre eles. Nesse sentido, ver o “prefacio” à edição

inglesa de Sistemas Sociais: LUHMANN, Niklas. Instead of a Preface to the English Edition: On the

127

despropósito a afirmação de Guillermo Portilla Contreras, para quem a teoria

luhmanniana seria caracterizada pela “conservação dos interesses do sistema, a

capacidade funcional de seus órgãos e a defesa do Estado através das garantias do próprio

Estado” 535.

E como um sistema se constrói como sistema? Entra em jogo, então, a própria

diferenciação e reprodução do sistema autorreferente, que pressupõe a capacidade de

distinção, pelo próprio sistema, entre ele e o ambiente536. Disso resulta que o sistema

constrói (produz) sua identidade a partir da sua diferença específica, por meio de

operações ocorridas no próprio sistema. Consequentemente, temos um processo de

diferenciação interna, a partir do qual o sistema organiza e altera suas estruturas a partir

de suas próprias operações. E isso significa que os sistemas só podem referir-se a si

mesmos para a constituição de seus elementos e operações elementares, sempre

renovados em sua relação temporal de simultaneidade com o ambiente. Por isso Luhmann

afirma que os sistemas autorreferenciais operam necessariamente por “autocontrato”537.

É dizer, estamos diante de um sistema autopoiético538, que estabelece o fechamento

Concepts of “Subject” and “Action”, em LUHMANN, Niklas. Social Systems. Califórnia: Standford

University Press, 1995, p. XXXVII. 535 CONTRERAS, Guillermo Portilla Fundamentos teóricos del derecho penal y procesal-penal del

enemigo, in: Jueces para la democracia 49 (2004), p. 43 [tradução livre do espanhol]. 536 Não se trata de identidade entre identidade e diferença, o que afasta a teoria luhmanniana da tradição

filosófica dialética. Luhmann defende que em sua teoria não há espaço privilegiado para o movimento de

síntese (“passar para outra coisa”, tal como apresenta-se em Hegel. Apesar de Luhmann admitir que possam

existir semelhanças e que estas possam, então, chamar a atenção (ver LUHMANN, Niklas. Sistemas

sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 34), isso não impede que tentativas de articulação entre a

teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann e a dialética das contradições reais de Marx sejam feitas.

Günther Teubner faz esta articulação em TEUBNER, Günther. O direito como sistema autopoiético.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 21. No Brasil, ver BACHUR, João Paulo. Às portas do

labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010,

p. 105 e 220 e ss. 537 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 56. 538 O conceito de autopoiese refere-se a um acontecimento recursivo, ou seja, não hierárquico, e foi

incorporado da biologia (Humberto Maturana). Apesar desta apropriação, Marcelo Neves ressalta que “a

concepção luhmanniana da autopoiese afasta-se do modelo biológico de Maturana, na medida em que nela

se distinguem os sistemas constituintes de sentido (psíquicos e sociais) dos sistemas não constituintes de

sentido (orgânicos e neurofisiológicos). Na teoria biológica a autopoiese, há, segundo Luhmann, uma

concepção radical do fechamento, visto que, para a produção das relações entre sistema e ambiente, é

exigido um observador fora do sistema, ou seja, um outro sistema”. Ver NEVES, Marcelo. Entre Têmis e

Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 61 e NEVES, Marcelo. A

constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 127-128. Também Walter Kargl

salienta as diferenças entre o conceito de autopoiese biológico e aquele desenvolvido por Luhmann nos

âmbito das ciências sociais. Ver KARGL, Walter. Sociedad sin sujetos o sujetos sin sociedad? Una crítica

a la crítica de la autopoiesis social, em JARA DÍEZ, Carlos Gomes (Org.) Teoría de sistemas y derecho

penal. Fundamentos y posibilidades de aplicación. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p.

59-87. Uma diferenciação entre o conceito de autopoiese em Maturana, Luhmann, Teubner e Jean Clam

pode ser encontrada em ROCHA, Leonel Severo. Autopoiese e teoria do direito, em SCHWARTZ,

Germano (org.). Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea.

Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 16-24.

128

operacional acima destacado por meio de um ponto de referência interno ao sistema,

fundamental para a realização de sua função: o código binário, que também é considerado

como forma de dois lados539.

É ele o responsável por regular a contingência dos valores (positivo/negativo) com

os quais o sistema orienta suas próprias operações, permitindo assim futuras operações.

Em outras palavras: o código, ao garantir uma seleção específica (por exemplo, considerar

algo como “lícito”), também assegura um horizonte aberto para os enlaces futuros, já que

uma comunicação posterior pode, por exemplo, reapresentar a pergunta acerca do valor

lícito/ilícito em virtude de uma alteração legislativa540. Se tudo o que é compreendido

com a forma do código apresenta-se como contingente, já que o outro valor também

poderia ter sido selecionado, então surge a necessidade de se refletir sobre regras de

decisão que fixem orientações para a escolha de qual valor deve prevalecer, já que os

valores lícito e ilícito não são critérios para a determinação do direito541. Aqui entra em

cena o conceito de “programas”, responsáveis por direcionar a semântica condicionada

pelo código do sistema de referência542, possibilitando assim uma adequação do sistema

ao ambiente.

Percebe-se então que o fechamento operacional e abertura cognitiva orquestrados

pela relação entre função, código e programa não significa em hipótese alguma solipsismo

cognitivo. Para um sistema autopoiético, desde a perspectiva teórica adotada, é um fato

trivial que ele não pode operar fora de seus limites543. Isso não exclui, evidentemente, que

os sistemas possam observar outros sistemas. Mas então toda observação do ambiente

constitui-se como atividade interna elaborada a partir de distinções próprias daquele

sistema de referência, isto é, pressupõe a distinção autorreferência/heterorreferência (que

539 Teubner apresenta uma conceituação rigorosa, como tentativa de combater o que chama de

“promiscuidade terminológica” diante de conceitos como os autorreferência, auto-produção, auto-

organização, reflexividade e autopoiesis, criticando inclusive a falta de rigor presente em Luhmann. Para

uma discussão que culmina na ideia de hiperciclo, ver TEUBNER, Günther. O direito como sistema

autopoiético. Liboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p.34-52. 540 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 594. Para uma análise sobre

os problemas de tradução da expressão Recht/Unrecht, ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização

simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. XII. Para uma análise geral dos problemas de tradução

na teoria luhmanniana, ver GONÇALVES, Guilherme Leite. Tradução em teoria dos sistemas:

considerações iniciais a partir da obra de Raffaele De Giorgi, em DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e

memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 27-45. 541 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder 2005, p. 248. 542 Ibidem, p. 251. 543 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 55. Por isso

Luhmann sustenta que a autopoiese, bem entendida, signifca “produção de indeterminação interna no

sistema”. Ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 46 [tradução

livre do espanhol].

129

se situa de maneira ortogonal frente ao código binário544). Por isso Luhmann afirma que

os sistemas operam com a ilusão de contato com o ambiente por somente observarem que

observam e não como observam545.

Mas a compreensão daquilo que constitui um sistema autopoiético ainda deve ser

enriquecida a partir da tematização da “abertura” do sistema no contexto da relação entre

“auto-contato” e “ilusão de contato” acima apresentada. E aqui Luhmann vale-se uma vez

mais da biologia, utilizando o conceito de acoplamento estrutural, que ao pressupor a

própria autopoiese do sistema, restringe o campo das possíveis estruturas com as quais

um sistema pode realizar sua autopoiese546. É a partir desta ideia que Luhmann sustenta

que tais acoplamentos excluem que dados existentes no ambiente possam especificar o

que acontece no sistema. Para tanto, é requisito que o sistema produza em seu interior

excedentes de possibilidades, mediante os quais limita sua própria liberdade de ação.

Tudo isso pode ser resumido na afirmação de que “os acoplamentos pressupõem uma

continuidade de materialidade (energia), um mundo que funciona fisicamente, mas no

qual não se inscrevem os limites do sistema”547. O fundamental, entretanto, está em

compreender também os acoplamentos estruturais como formas de dois lados, que

incluem ao mesmo tempo em que excluem, estimulando o sistema a se autodeterminar

por processos de auto-irritação. Isto permite ao sistema adequar-se ao ambiente complexo

sem ter de reconstruir tamanha complexidade, garantindo assim a autonomia do sistema

autopoiético.

Isso significaria que o acoplamento estrutural, enquanto contribuição para o

desenvolvimento da autonomia do sistema social autopoiético, seria algo posterior à

autonomia autopoiética? Luhmann não deixa isso claro, já que, se por um lado afirma que

nas relações entre os sistemas “só podem ocorrer acoplamentos estruturais que não

544 Ibidem, p. 598. 545 Ibidem, p. 66. Cumpre ressaltar que Luhmann identifica três possibilidades de observação para o

Sistema: 1) observação do sistema total ao qual pertence o sistema parcial; 2) observação de outros sistemas

(sociais) parciais ou sistemas psíquicos; 3) observação dele mesmo (auto-observação). Temos assim as

referências para os conceitos de função, prestação e reflexão, conforme Ibidem, p. 600. Para uma

“concretização” deste raciocínio ao direito constitucional a partir da compreensão da Constituição como

subsistema do direito positivo, ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2007, p. 68. 546 Para uma análise interessante sobre a relação entre acoplamento estrutural e autopoiese a partir de um

experimento que explica a construção da cognição biológica, ver BACHUR, João Paulo. Às portas do

labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010,

p. 162-163. 547 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 74 [tradução livre do

espanhol].

130

suprimam a autopoiesis dos sistemas parciais”548, por outro salienta que sem os

acoplamentos estruturais “teria parado a diferenciação funcional desde seu início”549. De

toda forma, o tema permite uma discussão interessantíssima, e que será retomada mais

adiante550, já que mesmo Jakobs admite ter suas dificuldades com o conceito de

acoplamento estrutural551.

Feitas essas considerações, vale a pena notar a ruptura: não estamos diante de um

sujeito racional que descortina o mundo por meio da razão, nem diante de uma semântica

de “todo” e “partes”. Se estamos diante de diversos sistemas, e se o ambiente pressupõe

a presença de outros sistemas, e se cada um destes desenvolve sua autorreferência552 como

sistema autopoiético, como racionalidade553, então rejeita-se o autoritarismo da única

observação correta e racional a ser desvendada, pois não há nenhuma posição especial a

partir da qual seja possível observar o todo, é dizer, “não existe, nem no sentido natural

nem no subjetivo, uma posição naturalmente correta pra a observação”554. Daí ser

possível afirmar que tudo o que acontece, acontece múltiplas vezes, em múltiplas

perspectivas. Ora, toda transformação de um sistema parcial da sociedade é ao mesmo

tempo transformação do ambiente dos demais sistemas parciais, o que nada mais é do que

o desenvolvimento da premissa da construção da identidade pela diferença. Neste

contexto, a reflexão sobre o tema da integração também faz com que a teoria luhmanniana

548 Ibidem, p. 476 [tradução livre do espanhol]. 549 Ibidem, p. 617 [tradução livre do espanhol]. 550 Bachur atenta para o que denomina ser um “tratamento desequilibrado” das questões que envolvem o

conceito de autopoiese e de acoplamento estrutural, já que Luhmann focalizaria a autonomia manifestada

no primeiro em detrimento da interdependência derivada do segundo. Para Bachur existiria uma

indissociabilidade entre autopoiese, acoplamentos estruturais e evolução, e por isso propõe uma “reparação

conceitual”, de tal forma que autopoiese significaria autonomia mais interdependência. Esta interpretação

é fundamental para a pesquisa, já que permite considerar os acoplamentos entre economia (primeiro sistema

a se diferenciar funcionalmente) e sistema jurídico, não no sentido de que a diferenciação funcional daquela

seja causa da diferenciação funcional deste, mas sim que a diferenciação funcional da economia “oferece

apenas as precondições para que a autopoiese dos outros sistemas ocorra concomitantemente com os

acoplamentos”. Ver BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de

Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 181. 551 Em Ein Gespräch mit Herr Professor Dr. Günther Jakobs [Uma entrevista com o Senhor Dr. Professor

Günther Jakobs], realizada em 2008 para a Erste europäische Internetzeitschrift für

Rechtsgeschichte [Primeira revista digital europeia de história do direito]. [tradução livre do alemão].

Disponível em http://www.forhistiur.de/es/2008-10-schmoeckel-von-mayenburg/ (acesso em 13/10/2014). 552 Para uma diferenciação entre autorreferência basal, reflexividade, e reflexão, ver LUHMANN, Niklas.

Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 394-395. 553 O conceito de racionalidade em Luhmann está relacionado com a unidade interna do sistema decorrente

da autorreferência e heterorreferência. Ver LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia:

Standford University Press, 1998, p. 17. A racionalidade só é possível quando o conceito de diferença é

utilizado de modo autorreferencial. Ver LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998,

p. 420. 554 Ibidem, p. 413 [tradução livre do espanhol]. Também em LUHMANN, Niklas. La sociedad de la

sociedad. México: Herder, 2007, p. 608.

131

destoe das alternativas normativas atualmente disponíveis, já que se afasta

deliberadamente da tentativa de formular perspectivas de unidade. Por isso Luhmann

conceitua integração de forma compatível com o conceito de autopoiese, como “redução

dos graus de liberdade dos sistemas parciais”555, isto é, em contraposição às teorias que

trabalham com valores ou consenso.

O conceito de sentido, compreendido como aquisição evolutiva que possibilita a

autorreferência tanto dos sistemas sociais quanto dos sistemas psíquicos556, explicita

ainda mais o distanciamento frente à semântica tradicional. Em que pese Luhmann

afirmar que a melhor descrição do sentido ocorre a partir da metodologia fenomenológica,

na qual a realidade é descrita tal como aparece, sem referências a perguntas metafísicas

ou ontológicas557, é fundamental para a sua proposta – aplicação do sentido a dois

sistemas, sociais e psíquicos, ou seja, construção de um conceito formal de sentido sem

qualquer referência ontológica558 - afastar-se da linguagem subjetivista presente em

Husserl559, substituindo a pré-existência de um sujeito extramundano pela descrição do

mundo no mundo. É a partir do problema da complexidade que o fenômeno do sentido é

apresentado como forma de um excedente de referências a outras possibilidades de

vivência e ação, fundamentalmente instável, permitindo segurança à contingência da

coação pele seleção por meio da redundância. Pode-se dizer, então, que o sentido é uma

reprodução da complexidade enquanto reforma contínua (todo sentido remete a um

sentido posterior) da diferença entre atualidade e possibilidade, “a forma do mundo com

a qual se transcende a diferença entre sistema e ambiente”560, “um produto das operações

que o utilizam e não uma qualidade do mundo devida à uma criação, fundação ou

origem”561. Aqui importa destacar que a diferenciação entre sistemas psíquicos e sociais

teve lugar frente ao sentido, o que significa que ambos os sistemas surgiram no caminho

da co-evolução, de tal maneira que “um não é possível sem o outro”562. Por isso seria

falso atribuir ao homem (consciência) uma espécie de primazia ontológica do social,

como se fosse “o” portador genuíno de sentido. Mas isso não significa, em hipótese

555 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedade. México: Herder, 2005, p. 662, e posteriormente em

LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 478 [tradução livre do

espanhol]. 556 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 77. 557 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 28. 558 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 163. 559 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 78, nota 04. 560 Ibidem, p. 79. 561 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 27-28 [tradução livre do

espanhol]. 562 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 108 [tradução livre do espanhol].

132

alguma, que uma proposta jurídico-penal que leve isso em consideração seja

“inevitavelmente solidária com modelos de direito penal máximo e ilimitado,

programaticamente indiferentes à tutela dos direitos da pessoa”563.

O que deve ser notado é que tal primazia do homem (que Luhmann chama de

“preconceito humanista”) é fruto de um raciocínio que caracteriza a metafísica enquanto

teoria da autorreferência do ser, enquanto que em Luhmann o sentido “deliberadamente

evita a igualdade, e também, a contraposição entre sentido e ser”564. Com isso é

reconhecida a possibilidade de experiências diferentes, de observações distintas, da

pluralidade de possibilidades frente à complexidade da sociedade moderna, assumindo o

caráter contingente das condensações de identidade. Na sociedade funcionalmente

diferenciada o fechamento operacional dos subsistemas sociais deriva, principalmente, de

sua função (única) e de seu código (único). Cada subsistema possui um código específico

(no direito, lícito/ilícito, na política, governo/oposição, na economia, ter/não ter etc.).

Assim como nenhuma função tem primazia absoluta, isto é, nenhum sistema social parcial

se constitui como “o” sistema, um supersistema, nenhum código é acionado por outro

sistema, que não o seu. Consequentemente, como assinala Marcelo Neves, torna-se

infrutífero descrever, esclarecer ou justificar a sociedade por um único mecanismo, “seja

ele o poder (Foucault), a luta de classes (Marx), o capital simbólico (Bourdieu) ou o agir

comunicativo (Habermas)”565. Daí a afirmação de que a sociedade moderna é um sistema

policontextual que permite múltiplas observações566. A visibilidade proporcionada pela

observação do mundo no mundo descortina a presença da invisibilidade do mundo, já que

é impossível determinar o mundo no mundo. A realidade do mundo é, então, realidade

de acordo com o nível de observação (de segunda ordem). Daí a afirmação de Alfred

Büllesbach, de que em Luhmann “o mundo se torne problema não no seu ser, mas sim na

sua complexidade”567. Renuncia-se, então, ao absoluto.

563 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 256. 564 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 111 [tradução livre do espanhol]. 565 ALMEIDA, Jorge de. & BADER, Wofgang. Pensamento alemão no século XX. Volume I. São Paulo:

Cosacnaify, 2009, p. 259. 566 LUHMANN, Niklas. La sociedade de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 21. O próprio Marcelo

Neves apresenta a policontexturalidade da seguinte forma: “A teoria luhmanniana nega um espaço

privilegiado de observação a partir do qual se possa refletir abrangentemente sobre a sociedade. A diferença

entre sistema e ambiente apresenta-se nos diversos sociais autopoiéticos, cada um dos quais com uma

perspectiva própria do mundo e da sociedade. É nesse sentido que se define a sociedade moderna como

multicêntrica ou policontextural”. Ver NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São

Paulo: Martins Fontes, 2006 p. 67. 567 BÜLLESBACH, Alfred. Princípios de teoria dos sistemas, em HASSEMER, Winfried. &

KAUFMANN Arthur. (Org.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p 425.

133

2.2. Entre ser/não-ser e todo/partes: caminhos rumo à crítica à distinção

sujeito/objeto e à semântica do sujeito

A teoria da sociedade de Luhmann evita a teorização por meio de representações

humanas, a partir das quais tantas experiências autoritárias foram observadas (como a

ideologias da raça pura, por exemplo). Nesse sentido, sua proposta pode ser compreendida

como uma teoria que nos protege dos humanismos568. Recusar a utilização da distinção

sujeito/objeto como premissa para distinções posteriores significa uma adesão a um

movimento teórico de crítica à filosofia clássica, denominado construtivismo radical, que

o próprio Luhmann caracteriza como pós-humanista569, e que busca criticar a

possibilidade de separação entre pensamento (sujeito externo) e mundo (objeto), e sua

tentativa de conhecer racionalmente o mundo de forma objetiva, eliminando-se o

subjetivismo a partir da construção de um “centro de certeza”570 que estabilizasse uma

ordem segura: a razão.

Orlando Bôas Filho e Guilherme Gonçalves esclarecem571 que o questionamento

da relação clássica entre sujeito e objeto teve início com o princípio da incerteza,

formulado pelo físico Werner Heisenberg no decorrer de suas pesquisas sobre elétrons.

Para poder observá-los Heisenberg percebeu que seria necessário iluminá-los. Entretanto,

isso fazia com que os elétrons alterassem tanto a velocidade quanto a posição, de tal forma

que esta experiência constatou o papel do observador racional externo na produção de

conhecimento sobre o objeto. Isso significa que a realidade não poderia ser captada

objetivamente, já que relacionava-se intimamente como o próprio observador. Daí a

pergunta: como pensar em uma razão divorciada do mundo se o sujeito cognoscente

alterou o mundo quando o observava?

Deste questionamento resulta uma compreensão incômoda. Não há “a” realidade

externa, independente do observador, de tal forma que a tematização do mundo é uma

aproximação necessariamente incompleta, como já demonstra os conceitos de observação

568 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 228. 569 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 147. 570 O conceito de “centro de certeza” foi criado por Guilherme Leite Gonçalves, que o define da seguinte

maneira: “constituição de um sistema filosófico ou social como princípio de representação e de fundamento

universal da sociedade, destinado à produção de segurança, ao controle das possibilidades sociais e à

repressão da contingência”, em GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 21. 571 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 36.

134

e operação. Isso significa que o mundo não é mais compreendido nem como um

agregativo corpo rum que poderia ser ordenado segundo nomes, tipos e gêneros, nem

como universais sérum, totalidade das coisas e ideias572. Com isso também é rechaçada a

premissa de que o mundo seria o mesmo para todos os observadores, e que poderia ser

determinado mediante observação573. O mundo, evidentemente, pode ser observado, mas

isso significa, para uma teoria do conhecimento, que cada observador produz diferentes

versões do mundo. “Nenhuma tematização da sociedade alcança com isso uma

transparência total do mundo”574. Luhmann não nega que a “realidade” possa existir, mas

enfatiza que há uma realidade que permanece desconhecida, o “mundo externo” que só

pode ser tematizado pelo indivíduo (mas não só pelo indivíduo!) por meio de

distinções575.

As consequências deste movimento teórico para a clássica premissa

epistemológica não param por aqui. Da não contraposição entre sujeito e objeto resulta a

compreensão de que o observador está no mundo que observa, não existindo, então, um

observador externo. Para determinada semântica do direito penal, por exemplo, isso é

chocante: uma vez que a realidade não é mais entendida como previamente dada, e sim

como construção do observador, o construtivismo radical rompe com concepções

ontológicas e apriorísticas. Ou seja, rompe-se com a ideia de que o sistema penal deva

respeitar aquilo que pertenceria à “onticidade do mundo”576, pois não existe uma

localização inequívoca de itens de qualquer tipo no mundo. Tudo o que existe pertence

sempre a um sistema e ao ambiente de outros sistemas, de tal forma que qualquer

determinação pressupõe um ato de redução até à indicação referencial que nos leva ao

sistema, ou ao ambiente. Isso significa para uma teoria do conhecimento, além da ruptura

da dicotomia sujeito/objeto, que cada observador produz diferentes versões do mundo.

Neste espaço sem lugar para o “embriagante vinho do consenso”577, os diversos sistemas

sociais e os mais de 7 bilhões de sistemas psicofísicos enfrentam sozinhos as mais altas

certezas e incertezas. Disso não decorre um “anything goes” no campo teórico, mas sim

572 LUHMANN, Niklas. Teoria della società. Milão: Franco Angeli Editora, 2009, p. 48-49, e LUHMANN,

Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 109. 573 Ibidem, p. 116. 574 Ibidem, p. 700 [tradução livre do espanhol]. 575 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 129. 576 ALAJIA, Alejandro, BATISTA, Nilo, SLOKAR, Alejandro, ZAFFARONI, E. Raúl. Direito penal

brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, 2006,

p. 174. 577 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 409.

135

uma verdadeira assunção do pluralismo578, uma “substituição de uma filosofia da

necessidade por uma teoria da contingência”579. O mundo não está “lá fora”, mas nos

olhos do observador [Die Welt entsteht im Auge des Betrachters]580.

O aporte filosófico dessas reflexões é evidente. Frente à famosa pergunta de

Kant581, “como é possível o conhecimento?”, Luhmann responde “traçando uma

distinção”, estabelecendo que para se reconhecer o que é “conhecimento” deve distinguir

também o que é “não-conhecimento”. A pergunta pelo fundamento do conhecimento é

transformada em pergunta pela distinção da distinção, ou seja, ao invés do unidade busca-

se a diferença utilizada operativamente para promover a distinção, ou ainda, enfatiza-se

a operação, e não mais a essência. Isso significa que a perspectiva luhmanniana dissolve

as categorias com as quais a tradição trabalhou (supostamente sobre bases ontológicas)

ao abordar estas mesmas categorias como distinções582.

Neste processo de desontologização da realidade é fácil reconhecer “que a

circularidade e os paradoxos já não podem mais ser rejeitados, mas serão chamados para

desempenhar um papel”583, de tal forma que a gestão do paradoxo será um dos temas

mais discutidos no âmbito da teoria autopoiética dos sistemas. Aqui importa destacar a

colocação de Günther Teubner, que após questionar o radicalismo do “critical legal

578 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 02.

Contra esta crítica do anything goes Luhmann sustenta que “sistemas são, ao contrário, garantias de que

nem tudo vale; de que só ale o que pode ser tornado possível no contexto de sua unidade operativa. Qualquer

abertura, qualquer variação pressupõe esta unidade. Qualquer aprendizagem exige por sua vez a garantia

de que a autopoiesis do sistema pode ser realizada mesmo com estruturas modificadas”. Ver LUHMANN,

Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, em BONI, Luís A. & STEIN, Ernildo (org.). Dialética e

liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Porto

Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 438-439. 579 MOELLER, Hans-Georg. The radical Luhmann. Nova Iorque: Columbia University Press, 2012, p. 46

[tradução livre do inglês]. 580 Este é um título de um texto de Humberto Maturana. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS

BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 38. 581 Para evitar simplificações excessivas é importante destacar o problema a partir do qual Kant formula

suas considerações. Nesse sentido, é indispensável a referência a Hume e sua compreensão do

conhecimento como algo derivado da experiência. Kant não nega que o conhecimento comece com a

experiência, mas questiona se todo conhecimento se origina da experiência. Após diferenciar duas fontes

(faculdades) - sensibilidade, que dá os objetos, e entendimento, que pensa os objetos – a partir das quais se

dá o conhecimento, o filósofo de Königsberg sustentará que mesmo a experiência está estruturada por

princípios a priori (intuições e conceitos) que constituiriam a própria possibilidade da experiência. Ver, de

forma geral, KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p.

36 e ss (B1). 582 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 32.

Basta aqui lembrar das quatro tábuas das categorias de Kant. Ver KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 110-111 (B106). 583 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 130

[tradução livre do inglês]. Vale a pena notar, para continuarmos nosso debate filosófico com Luhmann, que

o sociólogo observa na teoria dos sistemas uma espécie de mediador para neo-kantianos e neo-

wittgensteinianos. Ver Ibidem, p. 132.

136

studies movement” dos EUA e da Inglaterra, sustenta que a descoberta das contradições

e paradoxos não pode levar à desconstrução destes, isto é, não seria possível eliminar o

paradoxo, mas sim reconstruí-lo584. Como salienta Sonja Buckel, os paradoxos

decorrentes da autorreferência são um ponto de partida que, em oposição à ideia de

contradição presente em Hegel, constituem uma espécie de “dialética sem síntese”, “um

produzir experimental, incremental, errante, de ordens sociais”585.

No lugar do sujeito kantiano que constitui a unidade da multiplicidade pela

síntese, Luhmann coloca o sistema autorreferente, e ao invés de uma realidade constituída

transcendentalmente, permite a multiplicidade dos mundos. Dessa forma, alguém

habituado à ênfase na racionalidade do indivíduo, na consideração da ação social como

algo (uma cola?) que une indivíduo e sociedade a partir da consideração dos meios e

finalidade presentes, e que aceita a premissa ontológica do conhecimento, observando no

homem o único produtor de sentido, então, alguém acostumado a essas semânticas (que

podem ser resumidas na ideia de que a consciência seria o sujeito do mundo) já pode

antever a radicalidade do pensamento luhmanniano quando o sociólogo, indagando-se

acerca do local onde poderia ser feita uma descrição adequada da sociedade moderna no

final do século passado, responde: “Não em Frankfurt”586.

É de certa forma curioso que o rechaço à distinção sujeito/objeto como premissa

para sua construção teórica da sociedade, escolhendo a diferença como orientação chave

para a compreensão da identidade, acaba “inserindo” a teoria luhmanniana na própria

tradição filosófica da qual ele busca se afastar587. É interessante notar que o sociólogo de

584 TEUBNER, Günther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, p. 15. Importa então considerar o paradoxo não mais como erro do pensamento, mas como

característica da realidade social que permitiria uma tematização produtiva. 585 BUCKEL, Sonja. Subjektivierung und Kohäsion: Zur Rekonstruktion einer materialistischen Theorie

des Rechts. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2007, p. 30. apud BACHUR, João Paulo. Às portas do

labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010,

p. 107. 586 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 193

[tradução livre do inglês]. Por isso é razoável dizer, nas palavras de Celso Fernandes Campilongo, que

“passa-se de uma racionalidade do sujeito para uma racionalidade do sistema. Enquanto a primeira envolve

certezas intersubjetivas, a segunda implica capacidade de guiar o Sistema, reduzir sua complexidade e

aumentar a estabilidade de um mundo em contante mudança”, em CAMPILONGO, Celso Fernandes.

Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 20. 587 Luhmann comenta sua relação com a filosofia em entrevista concedida a Willis Santiago Guerra Filho:

“é comum me considerarem um filósofo, uma vez que opero com conceitos abstratos, de forma, por assim

dizer, arquitetônica, pois procuro visualizar a estrutura de uma teoria, e isso não é muito comum na

sociologia, com a grande exceção de Talcott Parsons. A filosofia não produziu nenhuma teoria realmente

operativa com um conteúdo social, ao se limitar a abordar temas, sem dúvidas importantes, como o da

subjetividade, mas que não são suficientes para dar conta da compreensão das sociedades contemporâneas”.

Ver GUERRA, FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade pós-moderna: introdução a

uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 95-96.

137

Bielefeld desenvolve no plano da teoria da sociedade algo próximo do que Martin

Heidegger enfatiza em Identidade e Diferença, no qual sustenta que a diferença é mais

do que um acréscimo que nossa representação propicia para o pensar do ser e do ente,

pois uma vez que “ser” mesmo refere-se ao ser que é ente, “já encontramos sempre ente

e ser em sua diferença”, de tal forma que tanto o ser quanto ente tornam-se fenômenos

que emergem da diferença588. Esta matriz filosófica do pensamento luhmanniano não

passou desapercebida por Jochem Hennigfeld e Heinz Jansohn, organizadores do livro

Filósofos da atualidade, em que Luhmann aparece como um dos autores. Assim, Detlef

Horster salienta que Luhmann substitui o enfoque ontológico “europeu antigo” por um

enfoque funcional, de tal forma que a determinação de um conceito não mais se relaciona

com a pergunta pela sua essência, mas sim pelo questionamento acerca de sua função

social589. Não à toa Habermas defende que a proposta luhmanniana “procura vincular-se

menos com a tradição especializada da teoria da sociedade, de Comte a Parsons, do com

a história dos problemas da filosofia da consciência que vai de Kant a Husserl”590. Neste

sentido, também Hans-Georg Moeller enfatiza o background filosófico de Luhmann, que

leva a filosofia da necessidade para uma teoria da contingência, como já destacado591. O

fato de Luhmann ter recebido em 1989 o prêmio Hegel não deixa dúvidas acerca do status

filosófico de sua teoria.

588 HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a Filosofa? Identidade e Diferença. Petrópolis, RJ: Vozes, São

Paulo: Livraria Duas Cidades, 2013, p. 67-69. João Paulo Bachur enfatiza isso ao afirmar: “Tudo se passa

como se Luhmann tivesse aceito o desafio posto por Heidegger à metafísica ontológica de “pensar a

diferença enquanto tal” – oferecendo, contudo, uma saída sociológica, e não filosófica”, em BACHUR,

João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro:

Beco do Azougue, 2010, p. 34. 589 HENNIGFELD, Jochem & JANSOHN, Heinz. Filósofos da atualidade. São Leopoldo: Ed. Unisinos,

2006, p. 244-246. Não deve passar despercebido, entretanto, o caráter ontológico presente em Luhmann,

quando este afirma que sua teoria tem como premissa o fato de que existem sistemas empíricos. Ver

LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 37. Para um artigo

“perverso” que procura debater essa questão, intitulado “Luhmann’s Ontology”, de William Rasch, ver LA

COUR, Anders & PHILOPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Luhmann observed. Radical

theoretical encounters. Inglaterra: Palgrave Macmillan, 2013, p. 38-59. 590 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 511.

Em outro momento, Habermas salienta que “N. Luhmann herda a teoria do sistema da fenomenologia

transcendental de Husserl, invertendo a filosofia do sujeito e transformando-a num objetivismo radical. As

teorias estruturalistas da sociedade, de Lévi-Strauss até Althusser e Foucault, são o mesmo passo, de outra

maneira”. Ver HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 71. 591 MOELLER, Hans-Georg. The radical Luhmann. Nova Iorque: Columbia University Press, 2012, p. 46.

Em seu primeiro livro sobre Luhmann, o autor também apresenta o que denomina como “contexto

filosófico” de Luhmann, apresentando considerações sobre Kant, Hegel, Marx, Husserl, Habermas e

autores contemporâneos, como Derrida. Ver MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls to

systems. Illinois: Open Court, 2006, p. 163-198. Para uma discussão atual ver LA COUR, Anders &

PHILOPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Luhmann observed. Radical theoretical encounters.

Inglaterra: Palgrave Macmillan, 2013.

138

Isso fica ainda mais evidente quando o sociólogo de Bielefeld salienta a cristalina

percepção, hoje, de que o acúmulo de conhecimento não torna o mundo mais transparente,

e que desse acúmulo não deriva o acerto das decisões tomadas, libertando-nos, em parte,

do fardo iluminista da marcha para o progresso592. A construção significativa do mundo

não obedece leis de uma essência qualquer – razão, espírito ou consciência – como se a

descoberta desta fosse capaz de orientar as instituições sociais em determinada direção.

Também não há vinculação do legislador por meio de estruturas lógico-objetivas, ainda

que de forma relativa593. O significado é sempre contingente e sempre está sujeito à

construção de um sistema, seja ela psicofísico ou social. Neste sentido específico a

proximidade com o Tractatus de Wittgenstein é notória: “Tudo o que vemos poderia

também ser diferente. Tudo que podemos em geral descrever poderia também ser

diferente”594.

Mas para além dessas cercanias com o pensamento filosófico595, que

indubitavelmente demonstram a potência de sua construção teórica, é importante

592 Por fardo iluminista da marcha para o progresso entende-se a compreensão político-social decorrente da

Era das Luzes. A apresentação feita por Oswaldo Giacoia Jr. é precisa: “Na história do Ocidente, o

Esclarecimento constitui um marco filosófico, social e político. Nele ganharam expressão as esperanças

mais fortes de emancipação humana, cultivadas desde os primórdios da racionalidade lógica. Anseios foram

depositados no lumen naturalis (na luz natural da razão) e nos recursos da ciência e da tecnologia, vistos

como capazes de solucionar os enigmas do Universo, de garantir o domínio humano sobre as forças da

natureza e de realizar a justiça e a transparência nas relações políticas nas sociedades modernas”, em

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Heidegger urgente: introdução a um novo pensar. São Paulo: Três Estrelas,

2013, p. 117. 593 MARTÍN, Luís Gracia. O finalismo como método sintético real-normativo para a construção da teoria

do delito, em Revista da Associação brasileira de professores de ciências penais, volume 2. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 10. 594 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Editora da Universidade de

São Paulo, 2010, p. 247. Também em Da certeza observamos uma proximidade, quando o filosófico

enfatiza a especificidade do uso “Eu sei” (Ich weiss), “pois “Eu sei” parece descrever um estado de coisas

que garante como um facto aquilo que é sabido. E sempre se esquece da expressão “Eu acreditei que

sabia””, em WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Portugal: Edições 70, 2011, p. 109. Não à toa Günther

Teubner salienta que Luhmann, ao separar comunicação (sistema social) e consciência (sistema

psicofísico), isto é, ao eliminar o ser entre a consciência e a comunicação “combina, de certa forma, Husserl

com Wittgenstein: a fenomenologia dos jogos de linguagem com a da consciência, sem, contudo, mesclá-

las em algo único (como faz a différance, de Derrida, e a intersubjetividade, de Habermas). Ver TEUBNER,

Günther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicapa: Editora Unimep, 2005, p. 69. 595 Existem tantas outras possibilidades de associação. Aqui, entretanto, não é possível desenvolver, por

exemplo, a proximidade entre o construtivismo radical luhmanniano manifestada no conceito de autopoiese

e suas consequências para a compreensão das ficções semânticas criadas no interior de cada sistema para

fins de legitimação com a “filosofia do como se” de Hans Vaihinger, que, além de propor um “Kant radical”,

vale-se, inclusive, de estudos na área da biologia. Ver VAIHINGER, Hans. A filosofia do como se: sistema

das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade, na base de um positivismo idealista. Chapecó:

Argos, 2011, p. 90-97. O estudo da íntima relação entre Luhmann e Hegel crítico de Kant também seria

fundamental. A atualidade dessa associação pode ser vista, por exemplo, quando Slavoj Zizek analisa a

proximidade dos estudos atuais da biologia, citando os estudos de Varela (pressima de Luhmann!), com o

pensamento de Hegel. Ver ZIZEK, Slavoj. Menos que nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético.

São Paulo: Boitempo, 2013, p. 544.

139

compreender de que forma Luhmann observa a distinção ontológica ser/não-ser, como

esta associação foi substituída pela semântica do sujeito, e de que maneira essas

semânticas se relacionam com a estrutura social. Para tanto, não é possível começar pela

ênfase na consciência (sujeito), sendo necessário dar um passo atrás e remeter às

explicações tradicionais das distinções ser/não-ser e todo/parte.

A semântica das sociedades pré-modernas é denominada de ontologia596,

resultado de uma forma de observar que compreende a distinção ser/não-ser como initial

difference, a partir da qual todas as demais distinções se subordinam. Sua plausibilidade

está no pressuposto de que somente o ser é, e que o não-ser não é, de tal forma que ser e

pensar apresentam-se uniformemente. Como o nada não é, ou seja, não existe, sendo

utilizado apenas como contos mitológicos, Luhmann salienta que esta distinção

ontológica primária apresenta-se como uma defesa da ordem que é, garantindo a unidade

do mundo597. Isso foi possível graças ao auxílio da regra lógica de opostos, a partir da

qual defende-se que ao se assinalar algo exclui-se seu oposto (um grego não pode ser um

bárbaro, alguém bom não pode ser alguém mal). Todas as distinções posteriores referem-

se ao lado ser da distinção (re-entry) como o lado positivo, fazendo com que as questões

referentes ao “entre” um lado e outro sejam direcionadas para o âmbito do “nada”. Por

este motivo Luhmann sustenta que o “ser” apresenta-se como um conceito extremamente

geral que distingue somente do não-ser, “um médium para todas as coisas ou formas

possíveis”598. Como tudo isso é possível?

A proeminência do “ser” pode se sustentar como explicação plausível enquanto

esteve respaldada por uma certo tipo de estrutura social. Aqui estamos uma vez mais

diante da articulação entre semânticas sociais e estruturas sociais, já que no contexto da

distinção ser/não-ser a sociedade encontrava-se diferenciada pela hierarquia, atribuindo

aos indivíduos posições sociais sólidas (pense-se, por exemplo, na nobreza)599. O que

interessa destacar é que a sociedade moderna, caracterizada pela diferenciação funcional,

596 Isso não significa que na modernidade não possa existir uma ontologia da filosofia do sujeito, que

considere possível um acesso à realidade ontológica pela razão subjetiva. 597 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, p. 710-712. 598 Ibidem, p. 715 [tradução livre do espanhol]. 599 Esta atenção ao contexto social manifesta a estreita vinculação entre complexidade e evolução da

sociedade, de tal forma que uma teoria da evolução deve tentar explicar como é possível que algumas

estruturas cada vez mais improváveis surjam e funcionem como se fossem normais. Trata-se do problema

da solução do paradoxo da probabilidade do improvável. Ver Ibidem, p. 326. Se por um lado a diferenciação

do sistema aumenta a complexidade do ambiente, por outro o aumento da complexidade do ambiente força

novas seleções por parte do sistema, o que, evidentemente, aumenta a complexidade do sistema. Luhmann

identifica quatro formas diversas de diferenciação: segmentária (gênero, idade); centro/periferia

(campo/cidade); estratificação (nobre/servo); e funcional.

140

destrói todos os pontos de apoio característicos da diferenciação por estratificação600, o

que acaba repercutindo na normatividade da semântica do ser, cada vez mais incapaz de

se estabilizar contrafaticamente601. Isto entretanto, não ocorreu rapidamente. Se por um

lado tornou-se óbvia a percepção – facilitada pela difusão da escrita e, posteriormente, da

imprensa602 –que não é possível negar as diferenças de opinião que se produzem na

sociedade acerca da identidade do ser, por outro desenvolveu-se a distinção entre epistéme

(saber estrito) e dóxa (opinião comum), que alicerçada na distinção interna ao ser entre

ser e pensar garantia que os valores lógicos de verdadeiro ou falso fossem colocados a

serviço do ser. O princípio da identidade, a proibição de contradição, e a consequente

condenação dos monstros paradoxais (sempre compreendidos como erros) constituem-

se, para Luhmann, como uma descrição simplificada do mundo que correspondia à

sociedade pré-moderna. A diversidade do mundo, cada vez mais desvelada pela crescente

complexidade, era compreendida como diferença de essências, organizadas

cosmologicamente entre gêneros e espécies do ser e do pensar que, articuladas em uma

construção hierárquica da sociedade, não tardaram em compreender aquele que se

imagina outro como louco: o ser é o que é e o não-ser não é603.

Este tipo de descrição do mundo, que pressupõe um locus a partir do qual reclama-

se autoridade na comunicação social, também está presente na diferenciação social

centro/periferia (pense-se na distinção cidade/campo), a partir da qual a distinção

todo/partes torna-se fundamental. Nesta semântica, a unidade da identidade da diferença

apresenta-se sob a fórmula de que o todo é algo a mais que a soma das partes. A defesa

da ordem articula-se com este “algo a mais”, compreendido como “natura” presente nas

partes que se aderem para formar o todo – e aqui encontram-se os indivíduos como partes

600 É importante ler esta frase com uma certa cautela, para que não se interprete que na sociedade

moderna caracterizada pela diferenciação funcional não existam problemas típicos da diferenciação por

estratificação, uma vez que Luhmann admite que mesmo na atual sociedade podem coexistir tipos distintos

de diferenciação. Esta temática será abordada mais adiante. 601 Aqui é importante observar a distinção entre autobservação e autodescrição. Enquanto a primeira

é somente operação comunicativa dirigida dentro do sistema para o próprio sistema, no sentido de constante

delimitação de seus limites, a segunda refere-se à elaboração textual dessas observações, no sentido de que

condensa referências por meio da construção de uma semântica que facilita a autorreferência do sistema.

Ver Ibidem, p. 697-708. 602 Jan-Dirk Müller sustenta que as modificações derivadas da organização do conhecimento pela

imprensa e da função social da escrita foram tão drásticas quanto as recentes modificações derivadas do

advento das mídias eletrônicas. Ver MÜLLER, Jan-Dirk. The body of the book: the media transition from

manuscript to print, em GUMBRECHT, Hans Ulrich & PFEIFFER, Ludwig (Orgs.). Materialities of

communication. California: Stanford University Press, 1994, pp. 33. Para uma análise acerca da relação

entre impressão de livros e diferenciação funcional, ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad.

México: Herder, 2007, p. 225-234, 578. Para uma análise das autodescrições jurídicas como “publicação

de imprensa”, ver LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 572. 603 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 717-719.

141

que convivem na cidade. O que é importante notar, segundo Luhmann, é que as distinções

homem/mulher, amo/servo/ cidadão/habitante, entre outras, são compreendidas como

distinções dadas pela própria natureza, excluindo assim a pergunta pela unidade da

sociedade604. Com isso torna-se inevitável a referência a uma instância maior (a

compreensão cosmológica da natureza ou o Criador), o que significa dizer que esta forma

de diferenciação social mantêm-se através de uma concepção religiosa do mundo,

fundamental para a manutenção tanto da ordem de uma sociedade estratificada quanto da

ordem de uma cidade organizada.

Isso porque na relação entre todo e partes ocupa lugar particularmente destacado

a presença de governantes e governados. Segundo Luhmann, este tipo de compreensão,

que já pode ser observado em Aristóteles, acaba identificando as “qualidades superiores”

do estrato que governa com a moral. Uma vez mais a semântica da natureza dá substrato

para essa articulação, já que “a “eminência” das partes superiores pode-se comprovar

cosmologicamente como algo típico da natureza”605. Daí que a distinção todo/parte é

completada pela distinção acima/abaixo, é dizer, aludindo-se à hierarquia. Luhmann

chama a atenção para o fato de que a ordenação hierárquica da sociedade defende a ideia–

também com base em Aristóteles, sempre segundo o sociólogo alemão – de que uma

ordem constituída por partes perfeitas e partes menos perfeitas (por exemplo, homens e

mulheres) seria mais perfeita que uma ordem constituída somente por partes perfeitas.

Perceba-se: o mecanismo semântico que fundamenta a “debilidade natural” das mulheres

é o mesmo que justifica a miséria dos miseráveis.

Outra distinção fundamental para a manutenção da semântica das partes e do todo

é aquela entre partes visíveis/partes invisíveis. Ora, em uma descrição religiosa do mundo

a invisibilidade – que só pode ser venerada – garante a ausência da pergunta pela unidade

da distinção. Luhmann entende que isto talvez tenha facilitado a necessidade de

legitimação dos estratos superiores que diziam-se predestinados por Deus e que

defendiam que a salvação só pode ser alcançada pela fé correta606. É interessante notar

que por muito tempo a religião pode manter sua descrição do mundo, sustentando que as

inconsistências decorrentes da diversidade eram, na verdade, sinônimo da perfeição

divina que, entretanto, não podia ser observada. Ocorre que a manutenção da distinção

todo/partes pela distinção mundo/Deus entra em crise quando a escrita e a imprensa

604 Ibidem, p. 725. 605 Ibidem, p. 728. 606 Ibidem, p. 732.

142

começam a se desenvolver, permitindo a comparação e verificação das inconsistências

dos textos teológicos. É dizer, a imprensa divulga diversas versões de interpretações sobre

a distinção mundo/Deus, dissolvendo a unidade (invisível!) da visão de mundo fundada

na religião607.

Como essa dissolução repercute na initial difference ser/não-ser? Aqui entra em

cena o ser humano que, como parte da sociedade, agora exige que seja ele mesmo,

também, o todo. Por um lado como homme universal, isto é, generalizando-se o humano,

e por outro, individualizando seu próprio ser, como algo único. A “apoteose do ser

humano”, todo-e-parte da sociedade, pode então ser desenvolvida pela distinção da lógica

de valores entre positivo/negativo. O lado positivo assinala o ser, e o lado negativo

assinala o nada, e com isso a descrição do mundo articula-se a partir de uma ontologia

metafísica. Em que pese os problemas que esta ontologia teve que enfrentar608, o que

importa destacar é que esta semântica enfraquece com a diferenciação funcional da

sociedade, a partir da qual a autonomia dos sistemas sociais evidencia cada vez mais a

precariedade do cosmos das essências hierarquicamente estabelecidas.

Luhmann sustenta que neste contexto de rechaço à semântica religiosa ou

metafísica-cósmica do conhecimento pelo ser, “foi impossível dar imediatamente o passo

seguinte e renunciar a toda ideia de fundamentação exterior capaz de proporcionar uma

certeza última”609. Neste cenário aparecerá uma semântica de transição610 que, incapaz de

lidar descritivamente com uma sociedade cada vez menos caracterizada pelos estratos

típicos do feudalismo, deposita no sujeito todas as esperanças. Assim, o título de sujeito

dado ao homem parte-e-todo aparece como o mais importante plano de salvação611, uma

607 Ibidem, p. 733. Para uma análise das relações entre imprensa enquanto aquisição evolutiva,

religião e economia, ver BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social

de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 58 e ss. 608 Segundo Luhmann, “Naturalmente nem tudo funciona sem problemas. Na defesa da ontologia

eleática e na controvérsia com os sofistas descobrem-se paradoxos. Constroem-se conceitos ambivalentes

– como o conceito de movimento – para poder apresentar as relações de tempo. No conceito de natureza

inclui-se um componente normativo com o auxílio do esquema perfeição/corrupção. Isto permite que – sem

contradizer abertamente a ontologia – se entenda a natureza teleologicamente e a ordem social de modo

jusnaturalista”. LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 736 [tradução

livre do espanhol; grifos no original]. 609 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 425 [tradução livre do

espanhol]. Guilherme Gonçalves apresenta este movimento da seguinte forma: “A razão era uma aspiração

criada externamente ao homem (pertencia a Deus) e representava um plano a ser alcançado. De forma

radicalmente diversa, o racionalismo moderno reduziu-a aos movimentos do pensamento, aos estados

mentais e, portanto, ao sujeito. Introduziu-a, em outras palavras, no ser humano, o que proporcionou

redescrever a noção normativa de racionalidade: a razão não é meta externa, mas um fim em si, inerente ao

próprio homem”. Ver GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 56. 610 LUHMANN, Niklas. Social Systems. Califórnia: Standford University Press, 1995, p.XLII. 611 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 217.

143

“solução de apuro”612 que mobiliza recursos – notadamente a construção de uma teoria

da consciência autorreferencial, transcendental, compreendida como sujeito, que seria

fonte de conhecimento de si próprio e das possibilidades de conhecimento – para tentar

descrever a emergência da sociedade moderna, utilizando-se da distinção sujeito/objeto

para desenvolver este programa teórico. Uma vez que o sujeito é resultado de uma teoria

da consciência autorreferente, “a consciência pode referir-se a si mesma e representar sua

própria unidade como condição de todas suas operações”613. Luhmann salienta que esta

teorização teve como pano de fundo o liberalismo do século XVIII, que utilizava a figura

do indivíduo que validava seus próprios interesses, sentimentos e metas, como tentativa

de superação dos entraves históricos decorrentes da estrutura social marcada pela

estratificação. O indivíduo como sujeito era a construção que canalizava as insatisfações

sociais, uma espécie de “conspiração contra a sociedade”614 que inseriu a transcendência

religiosa do ser no próprio sujeito, uma espécie de depósito de todas as obscuridades e

inseguranças em forma de liberdade615.

É importante atentar para a alteração dos termos, pois a palavra “sujeito” não

designa aqui uma continuação semântica com a palavra “indivíduo”. A utilização destes

signos relaciona-se com semânticas e estruturas sociais distintas. Segundo Luhmann, a

teoria do sujeito – que tem início com Descartes – altera o sentido da subjetividade, uma

vez que, anteriormente, o significado do termo “sujeito” estava associado às qualidades

individuais616, garantido pela então diferenciação hierárquica da sociedade que atribuía

aos indivíduos posições sociais sólidas por meio da estratificação, possibilitando assim a

distribuição desigual de poder e riqueza (ou seja, distribuição desigual das possibilidades

de comunicação). Com a invenção do sujeito, o indivíduo (ser humano) perde sua

objetividade, que é transferida para os sujeitos, de tal forma que este serve como base

para ele mesmo e para tudo o mais617.

Com esta alteração, a incerteza proporcionada pelo início da diferenciação

funcional foi substituída pela certeza da consciência que sabe de si mesma, isto é, pela

autorreferência das operações conscientes que determinam a autonomia do sujeito frente

ao social. Segundo Luhmann, trata-se aqui do entendimento kantiano de que o

612 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 688. 613 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 217 [tradução

livre do espanhol]. 614 Ibidem, p. 218 [tradução livre do espanhol]. 615 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 221. 616 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 67. 617 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 217.

144

fundamento da subjetividade do sujeito refere-se à capacidade de constituir relações de

unidade a partir da diversidade, isto é, na medida em que o indivíduo desenvolve essa

possibilidade ele atua como sujeito, como consciência segura de si mesmo618. O problema

da incerteza (também social) foi concebido como o problema do conhecimento (somente

subjetivo619), e com isso a compreensão do que é o social (a sociedade) apresenta-se de

maneira inteiramente nova. Aqui já não se pode partir das diferentes qualidades dos seres

humanos enquanto moradores do campo ou na cidade, nem do estrato social em que

nasceram. Como salienta Luhmann, “agora deve-se explicar como é possível a ordem

social apesar da subjetividade individual dos seres humanos – seja através de um contrato

social, de uma reflexão mútua, de um resíduo substancial “transcendental” comum a

todos”620.

Neste contexto a igualdade e a liberdade aparecem como atributos naturais dos

indivíduos, e uma vez que estes não se encontram realizados na sociedade, os mesmos

passam a ser valorados como “direitos humanos” cujo cumprimento pode-se exigir. Dessa

forma são aceitos como símbolos que, na transição para a sociedade funcionalmente

diferenciada, substituem uma unidade da sociedade que já não é imaginável. Ocorre que

neste universalismo social constrói-se a ideia de que o sujeito deve esforçar-se, e que a

preguiça e a falta de ambição para formar-se como autêntico sujeito são reprováveis.

Note-se que aqui ganha força o liberalismo da burguesia que desarticulava exigências

por transformações sociais à política com o “fundamento” do interesse individual

autodeterminado. Que dessa forma uma teoria da sociedade não poderia ser desenvolvida

fica ainda mais evidente quando, diante da semântica do sujeito dono de si mesmo (do

entendimento do ser humano como indivíduo e humanidade ao mesmo tempo), o social

618 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 68. 619 É fundamental perceber que a partir das premissas luhmannianas – notadamente na articulação entre a

biologia de Varela e Maturana e a cibernética de segunda ordem de Heinz von Foerster – o conhecimento

não se refere somente ao homem. Uma vez compreendido o conhecimento como operação que distinção a

partir da qual processa-se informação, então não é algo específico de um sujeito. Como salienta Helga

Gripp-Hagelstange, “o que desde Descarte e Kant se via como um abismo entre a subjetividade pensante e

o ser puro da natureza não é tão “insalvável” como se pensava. O que antes parecia que nos destacava frente

a outros seres viventes, agora é precisamente o plano da cognição que nos faz constitutiva e

irrevogavelmente ser parte da natureza”, em LUHMANN, Niklas. La politica como sistema. México:

Instituto Tecnológico e de Estudos, 2009, p. 33 [tradução livre do espanhol]. 620 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 809 [tradução livre do

espanhol].

145

passa a ser compreendido somente como sistema de necessidades, é dizer, como

economia621.

Por esta razão Luhmann sustenta que o sujeito “teve a função de dar fundamento

à inclusão de todos na sociedade a partir da autorreferência de cada um”622, como uma

fórmula salvadora diante dos sistemas funcionais. E é a partir dessas articulações que

chegamos à sociedade dos sujeitos. Ocorre que para uma semântica que ainda observa o

paradoxo como algo ruim, esta solução “social” é extremamente paradoxal: como um

sujeito, uma consciência autorreferencial, que se põe a si mesmo e ao mundo como única

existência, pode construir uma sociedade com outros sujeitos? Isso só é possível mediante

uma interpretação transcendental do conceito de sujeito, a partir da qual todo sujeito pode

encontrar em si mesmo necessidades que ele mesmo consegue pressupor em todos os

outros da mesma forma. Segundo Luhmann, “o erro da construção está em igualar

subjetividade e generalidade, e em atribuir este igualar à consciência – a qual encontra-se

simplesmente dada a si mesma”623.

Logo percebe-se que o status transcendental do sujeito é um empecilho teórico. O

sociólogo de Bielefeld salienta duas tentativas filosóficas de lidar com essa

transcendentalização da consciência. Em Husserl observa-se a chamada redução

fenomenológica, a partir da qual se pretendia concentrar a “fenomenologia

transcendental” no problema “de que a (assim transcendentalizada) consciência é um

modo de operar que não para de reatualizar autorreferência (noesis) e heterorreferência

(noema), razão pela qual deveria funcionar em forma de intencionalidade”624. Já em

Heidegger, o esforço do §10 de Ser e Tempo625 para evitar qualquer interpretação

621Uma análise dessa construção semântica no âmbito da teoria política, a partir da qual se impõe a distinção

entre Estado e sociedade, premissa para a construção da ideia de Estado de Direito, ver LUHMANN, Niklas.

Teoria política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 41-45. 622 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 812. 623 Ibidem, p. 814 [tradução livre do espanhol]. 624 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 218 [tradução livre

do espanhol]. Em outro texto Luhmann esclarece que “a concepção [fenomenológica] era a de que a

consciencia sempre se refere simultáneamente a si própria e a fenômenos. Nenhuma dessas suas referências

pode ser deixada de lado, sem que a consciência perca sua qualidade de consciência. A forma-ação da

intencionalidade é então aquele momento que permite uma ligação de autorreferência (nóesis) e referência

externa (nóema); e isso numa forma procesual, temporal, de tal modo que a consciência pode oscilar entre

entrega ao mundo (Hingabe an di Welt) e reflexão e estabelecer e deslocar ênfases”, em LUHMANN,

Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, em BONI, Luís A. & STEIN, Ernildo (org.). Dialética e

liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Porto

Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 437. 625 O §10 refere-se à “delimitação da analítica do Dasein em relação à antropologia, à psicologia e à

biologia”, no qual Heidegger apresenta o que chama de caracterização proibitiva do seu tema de

investigação. O que importa para o filósofo é delimitação do “ser do homem todo” que costumeiramente é

associado à unidade corpo-alma-espírito. Ver HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Campinas, SP: Editora

da Unicamp; Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012, p. 149-161.

146

antropológica do “ser-aí”, no sentido de redução ao existente, também é considerado por

Luhmann como um fracasso, principalmente em virtude da recepção francesa

humanizadora do filósofo que, segundo Luhmann, somente com Derrida foi descortinada

em direção ao tratamento dos paradoxos626.

Essa oscilação teórica que buscava resolver os problemas da filosofia do sujeito

está relacionada com a falta de clareza na identificação do porque a semântica do sujeito

fracassa. Luhmann enfatiza uma vez mais que o contexto por trás dessas dificuldades é o

Iluminismo, que vê a si mesmo num mundo que precisa ser iluminado, racionalizando

tudo que esteja em seu caminho e criando tantas racionalidades quanto forem necessárias,

sem que se pergunte como isso é possível627 e depreciando o problema da

complexidade628. Por isso sustenta que a força de convencimento da semântica do sujeito

consistiu precisamente em excluir a pergunta pela sociedade como ordem social629. Com

isso desenvolve-se a ideia de que qualquer sujeito poderia postular os fatos de sua própria

consciência como condições transcendentais, como se a autorreflexão da consciência

fosse capaz de descobrir as condições de subjetividade de todos os outros sujeitos,

inserindo-os assim em um contexto social. Mas dessa forma, segundo Luhmann, o

problema do estar-no-mundo converte-se no problema do estar-em-si-mesmo, de tal

maneira que o status do mundo permanece indeterminado e, com ele, a diferença entre

um sujeito e outros sujeitos desaparece630. Isso ocorre devido à impossibilidade da

consciência admitir outro sujeito, é dizer, frente à pluralidade dos sujeitos também

dotados de operações conscientes autorreferentes (intersubjetividade), e por contar com

um esquematismo lógico binário que impede observar a diversidade de observadores do

mundo, já que reduziu o problema da incerteza social derivada da diferenciação funcional

da sociedade ao problema do conhecimento (consciência), desconsiderando que existem

outros sistemas empíricos com capacidade de autorreflexão631. Por isso Luhmann afirma

que o ponto de partida está em considerar as “operações empíricas (ou seja, observáveis)

626 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 218. A recepção

francesa de Heidegger através do termo “réalité humaine” também é mencionada em LUHMANN, Niklas.

Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 182. 627 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 24-

25. 628 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980,

p. 27. 629 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 816. 630 Ibidem, p. 691. 631 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 218-219 [tradução

livre do espanhol], e LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 692-693.

147

de sistemas empíricos, cuja realidade para si próprios, porque autoproduzida, está fora de

questão”632.

O conceito de sociedade em Fichte, compreendida como relação de seres racionais

entre si, de tal forma que o conceito de sociedade não seria possível sem que existissem

seres racionais, evidencia o problema da construção subjetiva da sociedade. Esta condição

prévia – a racionalidade – não poderia advir da experiência, tradicionalmente

compreendida como insegurança decorrente da percepção sensitiva, e sim da autoanálise

da razão633. Esta remissão ao sujeito só foi possível pela assunção de que existiam

conhecimentos verdadeiros e seguros na ciência, e não à toa Kant pretendia levar a

metafísica para este caminho634. Neste contexto a socialidade é compreendida através da

antropologização do sujeito, alterando a antiga semântica do geral/particular na qual a

individualidade era apresentada como a maior concretização possível do homem (homem

cidadão indivíduo). “Agora vale que o mais geral no homem é precisamente sua

individualidade, já que qualquer um é indivíduo concreto”635. Esta individualidade

generalizada passa a ser interpretada como sujeito, daí derivando a ideia de humanidade.

O alcance da comunidade dos homens, então, também é resolvido no interior do sujeito:

entram em cena a exigência ética e os imperativos categóricos636. A solução do problema

da socialidade apresentada por Husserl com o apelo à comunidade de mônadas é, segundo

632 LUHMANN, Niklas. Por que uma “teoria dos sistemas”?, em BONI, Luís A. & STEIN, Ernildo (org.).

Dialética e liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis, RJ: Editora

Vozes; Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1993, p. 436. Ver também a

nota 18, logo na sequência, na qual afirma que a frase acima destacada é “um argumento cartesiano, como

se vê, que agora, contudo, é estendido a todos os sistemas autopoiéticos, também aos sistemas vivos e aos

sistemas comunicativos”. 633 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 74. A referência ao

livro de Fichte “Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten” está na nota 80. 634 Isso já está claro na primeira frase do Prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura: “Só o

resultado permite imediatamente julgar se a elaboração dos conhecimentos pertencentes aos domínios

próprios da razão segue ou não a via segura da ciência”. Ver KANT, Immanuel. Crítica da razão pura.

Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 15 (BVII). 635 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 75 [tradução livre do

espanhol]. 636 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 76. Vale a pena

observer o raciocínio de Kant: “A representação de um princípio objetivo, na medida em que é necessitante

para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão) e a formula do mandamento chama-se imperativo

(…). Eles [imperativos] dizem que seria bom fazer ou omitir algo, só que o dizem a uma vontade que nem

sempre faz algo porque lhe é representado que é bom fazê-lo. Bom em sentido prático, porém, é o que

determina a vontade mediante as representações da razão, por conseguinte, não em virtude de causas

subjetivas, senão objetivamente, isto é, em virtude de razões que são válidas para todo ser racional enquanto

tal (…). O imperative categórico seria aquele que representaria uma ação como objetivamente necessária

por si mesma, sem referências a um outro fim (…). O imperative categórico, que declara a ação como

objetivamente necessária por si só, sem referência a qualquer intenção, isto é, também sem qualquer outro

fim, vale como um princípio apodíctico (prático)”. Ver KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica

dos costumes. São Paulo: Discuso Editorial: Barcarolla, 2009, p. 185-191 (grifos no original).

148

Luhmann, tão pobre que chega a parecer uma ironia637, e salienta que, se o sujeito é

considerado como a base de si mesmo, e com ele do mundo, então não pode haver outro

sujeito, sendo esta a razão pela qual a “razão” necessita distinguir entre

transcendental/empírico.

A chamada “intersubjetividade”, pela qual o próprio Husserl foi criticado por não

considerá-la, é então chamada à ação. Luhmann, entretanto, a compreende como uma

necessidade prática para permitir o desenvolvimento da semântica do sujeito, que deve

ser presumida, e não produzida, pois dessa forma poder-se-ia comprovar se ela foi

alcançada ou não. Diante da autorreferência da consciência, a intersubjetividade é

somente uma palavra638, um a-conceito639 que pressupõe uma introspecção na consciência

do outro. Trata-se, na melhor das hipóteses, de uma “fórmula de compromisso” à qual

alguém recorre quando quer e não quer recorrer ao sujeito, no sentido de que a

intersubjetividade indica o que não indica, isto é, introduz na teoria da subjetividade algo

que esta não pode conceber: ““inter” contradiz “sujeito”; ou dito com mais exatidão: cada

sujeito tem sua própria intersubjetividade”640. Além disso, Luhmann sustenta que por

alguma razão desconhecida a intersubjetividade, que inicialmente constitui-se como uma

“estrutura da bifurcação entre consenso e dissenso”, acaba sendo considerada como “mais

intersubjetiva” enquanto consensual, de tal forma que os casos nos quais observam-se

desvios são considerados como realização não plena da condição humana641.

Contra a proposta “bem intencionada”642 de Habermas, que segundo Luhmann

pretende alcançar uma vinculação interna do sujeito frente à identidade coletiva pelo

conceito de intersubjetividade, o sociólogo de Bielefeld sustenta que a premissa de que

qualquer indivíduo participante de um processo comunicativo já se predispõe à ceder

637 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 219. 638 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 131. Vale

a pena notar que “Habermas é por excelência o representante da visão progressista do pensamento europeu

que Luhmann desde sempre refutou por meio de sua crítica às pretensões emancipatórias de uma tradição

iluminista que se encontra arraigada a dogmas que remontam ao iluminismo. Nessa medida, Luhmann e

Habermas constituem uma referência negativa um para o outro”. Ver VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O

direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006, p. 85. 639 LUHMANN, Niklas. Cómo es posible el orden social? México: Herder, 2009, p. 70. 640 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 32. Por isso mesmo

Luhmann defende Husserl da crítica, pois a intersubjetividade acaba desmoronando a própria teoria do

sujeito. Se por um lado Husserl desenvolveu uma interpretação transcendental pela intencionalidade como

saída, Luhmann desenvolve uma interpretação empírica, e para o sociólogo “ambas as linguagens teóricas

são recíprocamente traduzíveis em uma medida maior da que até agora foi vista”. Trata-se da proximidade

teórica decorrente da autorrefêrencia, que na epistemologia tradicional refere-se exclusivamente ao sujeito,

e que em Luhmann refere-se tanto a sistemas psicofísicos quanto a sistemas sociais. Ver Ibidem, p. 33. 641 Ibidem, p. 36. 642LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimento comunicativo.

México: Anthropos Editorial, 2005, p. 132.

149

diante dos melhores argumentos é, além de pouco elaborada, marcada por uma

predisposição ao consenso que não se justifica (pelo menos não a partir de uma

perspectiva não normativa) nem considera adequadamente o problema da

insinceridade643. De toda forma, não se pode esperar com segurança suficiente que os

demais se deixem comprometer mediante esta lógica (ainda mais nos casos de

comunicação entre ausentes), que não deixa de manifestar seu autoritarismo diante dos

homens verdadeiramente viventes, inseridos num mundo de egoísmo, mediocridade e

maldade desmedida644.

O apelo ao sujeito compreendido antropologicamente deu lugar à imagem do

“barril sem fundo” em cuja superfície se refletem as “danças macabras” da psicanálise, é

dizer, além da suspeita do “abismo da razão” adiciona-se a problemática referente ao

“abismo do inconsciente”, inacessível para a consciência autorreferente. A conclusão de

Luhmann, citando René Girard, é que o sujeito é uma construção de outro sujeito. E

mesmo este, que pretendeu criar a ordem social a partir dele mesmo, agora sequer

encontra lugar dentro da ordem social. O desassossego resultante até pode ser

transformado em exigências de fundamentação e participação na sociedade (“mais

democracia!”), como forma de se construir uma semântica “crítica” desta a partir do

fundamento do sujeito. Mas resta a pergunta: fundamento do quê? De maneira geral,

Luhmann entende que o refúgio no sujeito foi possível graças às premissas humanistas a

partir das quais se supôs uma transcendência capaz de garantir um mínimo de acordo

social. No entanto, o preço a pagar por esta foi construção foi o entendimento de que as

contravenções contrárias à razão eram compreendidas como desrespeito às normas,

possibilitando assim uma engenhosa fundamentação para a prisão dos seres humanos que

se “desviavam”645.Ora, se esta semântica ainda domina o sistema jurídico-penal, não

643 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 150. 644 LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimento comunicativo.

México: Anthropos Editorial, 2005, p. 119-121 [tradução livre do espanhol]. Também numa perspectiva

crítica à ideia de mais intersubjetividade a partir das novas formas de comunicação, Bachur sustenta que

“contra o que sugere a intuição, tais novas formas de comunicação não tornaram a sociedade “mais

intersubjetiva”; ao contrário, aprofundaram o individualismo moderno: de um lado, quando o indivíduo não

tem conhecimento de algo que de todos é sabido, a culpa já não pode ser imputada à opinião pública,

anônima, mas apenas a ele próprio, que não leu o suficiente, não tem formação suficiente; e, de outro lado,

a crítica, a apresentação de opiniões próprias e interpretações originais se torna um mecanismo de

individuação”, em BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de

Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 62. No mesmo sentido, partindo de análises

desconexas com o pensamento luhmanniano, mas relacionadas com o que o “capitalismo operativo”, ver

as análises de Gilles Lipovetsky, especialmente sobre indiferença, em LIPOVETSKY, Gilles. A era do

vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 17-30. 645 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 818.

150

poderiam as reflexões luhmannianas embasarem uma compreensão crítica dos discursos

legitimadores deste sistema? Ou ainda seria possível levar a sério opiniões que defendem

que a teoria de Luhmann partiria de determinados valores ideológicos a partir dos quais

“os indivíduos são subsistemas funcionais e subordinados ao todo”646?

Essas dificuldades fazem com que Luhmann tenha que efetuar uma tragical

choice para a continuidade dos estudos para a descrição da sociedade moderna: ou se

renuncia à sociedade, ou ao sujeito647. Assim, a sociedade e seus sistemas sociais (direito,

política, arte etc.) têm como elemento básico a comunicação, ao passo que os seres

humanos têm como elemento básico a consciência. Dessa forma, a sucessão de

comunicações e de ideias são processos que não ocorrem no mesmo sistema648. O

escândalo, entretanto, pode ser desmascarado: o deslocamento do homem da sociedade

para o ambiente não significa uma desconsideração do homem, uma proposta reacionária

e autoritária que descarta o sujeito. A caracterização do pensamento luhmanniano como

anti-humanista só faz sentido quando compreendida como anti-humanismo

metodológico, sem que com isso entenda-se essa metodologia como uma categoria

ética649. O próprio Luhmann destaca que o ambiente é muito mais complexo, rico em

alternativas e possibilidades que o sistema650, já que “não se encontra determinado por

estruturas normativas, racionalidades ou instituições. Como ambiente, o homem está

sujeito a viver e atuar em horizonte temporal ilimitado. Colocá-lo no ambiente significa

emancipá-lo; concebê-lo como produtor de suas próprias ações”651, ou seja, esta seria a

646 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 828, nota 37. 647 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 219. 648 Ibidem, p. 44. 649 NEVES, Marcelo. Niklas Luhmann: “Eu vejo o que tu não vês”, em ALMEIDA, Jorge de. & BADER,

Wofgang. Pensamento alemão no século XX. Volume I. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 262. 650 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 201. 651 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 55. De forma mais incisiva:

“Para a velha teoria europeia iluminista, quando o homem era o centro da sociedade, toda humanidade era

tratada pelo conceito de sujeito, um ente abstrato que concentrava em si a totalidade das características

humanas. Esta tradição metafísica desconsiderava a diversidade empírica e eliminava as diferenças. Ao

eliminar os homens, a ideia de sujeito trazia em si uma carga autoritária. Ao redescrevê-lo no ambiente,

Luhmann busca resgatá-lo como horizonte de possibilidades. No ambiente, os homens não estão limitados

por nenhum a priori, por nenhuma norma. Esta é a condição para a autonomia das consciências”, em

Ibidem, p. 55-56.

151

única forma de levar o indivíduo a sério652, uma autêntica “pressão por autonomia”

[Zwang zur autonomia], como sintetiza Manuel da Costa Andrade653.

Partindo da pergunta pela forma como os homens distinguem-se uns dos outros

em um mundo que já não é caracterizado pela semântica metafísico-teológica que

reservava a Deus a possibilidade de pensar ele mesmo sem ter que se distinguir dos

demais, Luhmann questiona como o homem encara o paradoxo da unidade da

multiplicidade. Do que se distingue o sujeito? De animais, do mundo, de outros sujeitos?

A partir dessas questões ele apresenta duas perguntas fundamentais ao sujeito: de quem

ou do que o sujeito se distingue e qual é sua unidade, uma vez que esta é definida por uma

distinção que pode ser selecionada de múltiplas formas654. A solução encontrada por

Luhmann, como já destacado, está no giro contingente da identidade para a diferença, na

consideração do próprio sujeito como “conceito paradoxal”, no sentido de que a unidade

da distinção do sujeito refere-se ao paradoxo da autobservação que, por sua vez, pode

seguir diversos caminhos dependendo do que (ou de quem) o sujeito se diferencie. O

resultado, uma vez mais crítico à ideia de consenso e de intersubjetividade, está na

constatação de que este enquadramento teórico “significa que não há garantia alguma de

que todos os sujeitos venham a utilizar a mesma via”655.

Mas por que este esclarecimento sociológico não foi alcançado antes? A resposta

ajuda a compreensão da razão pela qual Luhmann também rompe com os autores

clássicos da sociologia. De forma geral, pode-se dizer que a crítica à semântica do sujeito

foi bloqueada pela sociologia do conhecimento, que pressupunha ser capaz de uma

reflexão maior que a própria sociedade656, e pela caracterização das descrições do século

XIX como ideologias, é dizer, como teorias subsistêmicas (teorias econômicas, teorias

jurídicas etc.) que acabam introduzindo novas distinções (Estado/sociedade;

652 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 62. Também em

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Mexico: Herder, 2005, p. 104, nota 19. Por isso afirma:

“Nenhuma classificação, nenhuma subdivisão e muito menos nenhuma classificação política sobre os

homens deve limitar o futuro, sobretudo quando os seres humanos pertencem ao ambiente do sistema”, em

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 172 [tradução livre do espanhol]. 653 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimba Editora,

2004, p. 19. 654 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 220. 655 Ibidem. Segundo Orlando Filho, “Luhmann pretende que sua teoria dos sistemas incorpore a

incomunicabilidade e a insinceridade, emancipando-se da remissão a princípios, ao discurso ou aos a priori

sociais e suas respectivas razões”. Ver VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito

brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25. 656 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 221, nota 13.

152

comunidade/sociedade; individual/coletivo; capital/trabalho etc.) que, hoje, atestam a

incapacidade da sociedade moderna refletir sobre sua própria unidade.

Essas construções, entretanto, são incapazes de compreender a sociedade atual, e

Luhmann apresenta mais quatro bloqueios epistemológicos que impedem o

desenvolvimento de outras alternativas: 1) que a cognição é ela mesma racional; 2) que o

aprendizado melhora e não prejudica a condição do sistema e sua capacidade de adaptação

ao ambiente; 3) que mais comunicação contribui para o entendimento, e não o contrário;

4) e que a racionalidade pode ser compreendida como uma forma de programa, como

maximização do uso ou como entendimento racional657.

Para superar essas dificuldades, Luhmann propõe um ponto de partida alicerçado

na teoria dos sistemas, de tal forma que não seja mais necessário dar continuidade ao

humanismo vétero-europeu ou à semântica do sujeito. Esta troca de paradigma,

entretanto, conduz a dificuldades linguísticas consideráveis, uma vez que não somente a

filosofia da consciência, mas também a linguagem trata de sujeitos, bastando observar

que diversos verbos remetem seu significado cotidiano a um ator dotado de

consciência658. É por este motivo que Luhmann enfatiza que sua proposta deve levar em

consideração quatro revoluções semânticas: 1) uma concepção radicalmente operativa

dos sistemas que serve de base para a compreensão da unidade do sistema; 2) a

autorreferência (continuidade recursiva) das operações elementares que, como condição

de produção das operações do sistema, designa o conceito de autopoiese, que vale não só

para a consciência, mas também para os sistemas sociais; 3) um ponto de partida

decorrente da teoria da diferença, de tal forma que toda operação produz uma diferença e

um ponto cego; 4) e, uma vez que a identidade é diferença, todo observador se vê preso

em um paradoxo quando pergunta “o que é ... ?”, de tal forma que o paradoxo pode ser

desfeito pela formação de sólidas identidade que, entretanto, devem ser entendidas de

forma contingente, como identificações. Como resultado, Luhmann salienta que toda

657 LUHMANN, Niklas. Observations on Modernity. Califórnia: Standford University Press, 1998, p. 30. 658 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos, 1998, p. 391. Bachur enfatiza esta peculiar

relação entre conceitos da teoria dos sistemas e linguagem estruturada por sujeito e predicado. O que

importa destacar é que “não obstante todo o esforço de elaboração conceitual de Luhmann (que muitos

consideram artificial ou meramente estético), a teoria social não consegue descrever a sociedade senão com

recurso às formulações do juízo articulado por sujeito e predicado. A indução subjetivista porporcionada

pelos verbos agir, comunicar, observar etc. tem de ser rigorosamente afastadas (…) a redundância

conceitual de Luhmann não é um capricho: uma definição conceitual sempre limita as possibilidades

significativas dos conceitos posteriormente apresentados (...). Esse, aliás, deveria ser o primeiro

esclarecimento acerca da teoria de sistemas sociais de Luhmann”.”. Ver BACHUR, João Paulo. Às portas

do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010,

p. 88-89.

153

teoria é uma teoria de sistemas observadores, no sentido de que o mundo não nos diz nada

acerca das preferências referenciais. Assim, quando se quer saber qual referência

sistêmica coloca um observador como fundamento deve-se observar o observador659.

Com isso Luhmann entende ser possível resolver os problemas da ontologia, do

consenso e da intersubjetividade, abrindo-se novas possibilidades descritivas do mundo

pela pluralidade de observadores, para além da compreensão social centrada na ideia de

racionalidade da ação. É por este motivo que seu “iluminismo sociológico” (soziologische

Aufklärung) rompe com autores como Weber e Durkheim, para os quais o conceito de

ação representa um continuum entre homem e sociedade, é dizer, como se o social fosse

um agregado de ações individuais. Na particular relação com a sociologia, é necessário

destacar em que medida Luhmann afasta-se de Parsons. Este passo é fundamental para

que se compreenda o significado da substituição da ação pela comunicação como

operação do sistema social.

2.3. Crítica à teoria da ação de Talcott Parsons

Luhmann estava descontente com o chamado modelo de sistemas de ação

proposto por Talcott Parsons, com quem estudou na Universidade de Harvard na década

de 60. No entanto, isso não o impede de considerar a construção teórica do sociólogo

norte-americano a única teoria sociológica capaz de observar o que está ocorrendo na

sociedade660. Mas então, qual o motivo da insatisfação?

Luhmann considera que seria possível compreender todo o trabalho desenvolvido

por Parsons com a frase “ação é sistema”, no sentido de que a ação só é possível enquanto

sistema661. Este é um entendimento que buscava superar as dificuldades de

entrelaçamento entre ação e sociedade. Para Parsons – sempre segundo Luhmann – a ação

seria uma “propriedade emergente” da realidade, é dizer, deveriam existir componentes

(que não são ações) que teriam que ser articulados para que as ações fossem possíveis.

Dessa forma, a tarefa da sociologia seria efetuar uma teoria analítica da ação (realismo

analítico), dissecando o fenômeno da ação em elementos individuais662.

659 “Com a escolha de uma referência sistêmica se indica, simultaneamente, o sistema que traça seus

próprios limites e, nele mesmo, divide o mundo em sistema e ambiente”. Ver LUHMANN, Niklas.

Complejidad y modernidad. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 224-225 [tradução livre do espanhol]. 660 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 35, nota 23. 661 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 07-08 [tradução

livre do inglês]. 662 Ibidem, p. 08.

154

Em que pese a influência de Weber (subjetivismo do sentido a partir da ideia de

meios e fins) e Durkheim (realismo normativo a partir da ideia da sociedade como

unidade moral)663, no modelo teórico de Parsons a ação não é compreendida a partir da

intenção ou da vontade do autor, que só seria um momento na realização da ação que, no

entanto, também deve satisfazer outras condições, tais como a distinção entre meios e fins

e a existência de valores coletivamente estabelecidos664. Dessa forma a ação não está

subordinada ao autor, mas o autor que está subordinado à ação665.

O que importa destacar aqui é que ao estabelecer estes fundamentos da chamada

teoria dos sistemas abertos666, Parsons é confrontado com a possibilidade de orientação

da ação, ou seja, do sistema. É neste momento que o problema da contingência667

manifesta-se em sua sociologia. Diante dele, Parsons apela à “estabilidade de normas

duráveis, compreensíveis e assimiláveis”668 como mecanismo para orientar o agir.

Luhmann critica esta solução - a imprescindibilidade de normas –, e a compreensão da

forma como essa crítica é desenvolvida é fundamental para que se comece a perceber não

só o que difere Luhmann de Parsons, mas, principalmente, como a apropriação que Jakobs

faz de Luhmann aproxima-o, curiosamente, da teoria de Parsons.

Uma boa forma de se observar isso está na análise da função do direito: o

sociólogo de Bielefeld sustenta que a saída apresentada por seu professor em Harvard

identifica sistemas sociais e estruturas normativas, na medida em que aquele constitui-se

destas, o que acabaria forçando “a utilização de um conceito de sistema social reduzido à

ação referida a normas”, e que, no plano do direito, levaria ao obscurecimento da

compreensão da função específica do dever-ser normativo669. Além desta crítica, que

663 Para uma análise de como Parsons “relaciona a objetividade do quadro normativo da sociedade à la

Durkheim à contingência da ação subjetiva à la Weber”, ver LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito.

Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 30, e LUHMANN, Niklas. Introduction to

systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 08-09. 664 O desenvolvimento dessas questões leva ao chamado esquema AGIL, composto por quatro componentes

que seriam responsáveis por moldar a ação: adaptação, instrumentalização de objetivos, integração e

manutenção de padrão, tal como Guilherme Gonçalves e Orlando Filho apresentam. Ver GONÇALVES,

Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na

obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 28. 665 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 09. 666 Segundo Luhmann, a teoria dos sistemas abertos é uma resposta à lei de entropia, de tal forma que estes

sistemas são chamados abertos pois eles deveriam explicar porque, ao invés da entropia, observamos a

criação de ordem neles. Neste contexto, abertura significa que uma troca com o ambiente acontece. Ver

Ibidem, p. 28. 667 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 30. 668 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

31. 669 Idem. Para ajudarmos na contraposição, que faremos a partir do próximo capítulo, lembramos ao leitor

que Jakobs identifica normas com expectativas normativas, naquilo que chama de mundo social. A

155

poderia ser estendida à identificação entre ordem social e ordem normativa feita por

Jakobs, a partir da qual a sociedade é composta por normas essenciais670, é importante

destacar outra dificuldade enfrentada pela teoria de Parsons. No parágrafo anterior

afirmou-se que a ação não está associada à motivação do ator. Mas, em que pese a

limitação que a teoria dos sistemas abertos estabelece ao entendimento subjetivo da

temática, presente por exemplo na articulação feita por Weber entre ação e racionalidade

do autor671, o sociólogo norte-americano não consegue definir o âmbito autônomo das

esferas funcionais, é dizer, a teoria dos sistemas abertos não determina que tipos de

relações existem entre sistema e ambiente, não conseguindo especificar o que seria um

sistema672. A saída pelo realismo analítico, desenvolvida por Parsons em A estrutura da

ação social, em 1968, em que o conhecimento referente às formas de atuação social é

resultado de uma construção conceitual, acaba reintroduzindo o subjetivismo por meio da

solução normativa presente no “consenso implícito como característica indispensável da

ação”673.

É neste ponto que Luhmann compreende ser possível desenvolver a problemática

referente à ação a partir da cibernética e da teoria dos sistemas. Assim, a pergunta pela

especificidade do sistema, isto é, de como o sistema pode reproduzir a distinção entre

sistema e ambiente, leva à compreensão de que a abertura do sistema para o ambiente só

é possível por meio de seu fechamento operacional (autorreferência). Ou seja, a distinção

entre sistemas abertos e fechados acaba sendo substituída pela pergunta acerca de como

o fechamento operacional pode produzir abertura674. O que interessa a Luhmann é a

pergunta pelos limites deste conceito de ação e de como se poderia pensar sociedade e

indivíduo a partir da tematização individualista da ação, como se esta fosse uma espécie

de cola675. Em linguagem teórico-sistêmica, trata-se da pergunta pelo rendimento

proximidade com Parsons, e não com Luhmann, como veremos, fica mais clara quando compreendemos

que “Parsons atribui ao direito a função integrativa: reduz complexidade e possibilita a ordem social à

medida que estabelece parâmetros para a coordenação da ação (...). A integração de ações divergentes é

possível somente pelo recurso a normas estáveis”, conforme GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre

certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 30-31. 670 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 07. 671 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 184 e ss. 672 Ibidem, p. 29-32. Dessa forma, segundo Guilherme Gonçalves e Orlando Filho, “a

heterorreferencialidade, utilizada para eliminar a distinção sujeito/objeto, foi incapaz de gerar

autorreferencialidade”. Ver GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 32. 673 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 114 [tradução livre do

espanhol]. 674 Ibidem, p. 33. 675 LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 187.

156

explicativo do conceito de ação para a análise da sociedade atual, sem qualquer referência

à consciência ou à racionalidade676. Esses questionamentos, entretanto, não devem levar

à contraposição entre uma teoria da ação e uma teoria dos sistemas, já que a teoria dos

sistemas, na tradição sociológica, “sempre se compreendeu como teoria da ação ou como

teoria de sistemas de ação”677, bastando recordar a classificação feita por Luhmann da

teoria de Parsons como “ação é sistema”. Em Luhmann comunicação e ação formam uma

relação de redução de complexidade, sendo a ação uma autossimplificação indispensável

ao sistema, fundamental para o estabelecimento de relações de causalidade678.

Segundo Guilherme Gonçalves e Orlando Bôas Filho, a superação da teoria dos

sistemas abertos demanda um duplo movimento: o desenvolvimento de uma crítica

radical à teoria do conhecimento, substituindo a distinção sujeito/objeto por outra

(construtivismo radical, que Luhmann denomina construtivismo operativo), tal como já

foi demonstrado, e a substituição do conceito de ação por uma estrutura capaz de,

simultaneamente, tornar possível a autonomia e a dependência da sociedade em relação

ao homem, rompendo assim com a ideia de que a ação humana seria um continuum entre

homem e sociedade. Não à toa Luhmann substitui o conceito de ação pelo conceito de

comunicação, sendo este decisivo para o conceito de sociedade. Daí sua assertiva de que

na sociedade só existe comunicação, e que somente a comunicação comunica679. A

compreensão da “teoria comunicativa” de Luhmann, entretanto, de forma alguma

compreende que o indivíduo comunica, já que este encontra-se no ambiente, razão pela

qual toda informação de um fato social é informação atribuída, gerada no interior do

sistema. Isso pode parecer absurdo, e, de fato, levou a uma série de críticas à teoria

luhmanniana. Portanto, o esclarecimento sobre como se relacionam comunicação e

consciência, e qual papel cumpre o conceito de pessoa no interior da teoria dos sistemas

autopoiéticos será agora objeto de investigação. Este passo é fundamental para que no

próximo capítulo algumas certezas típicas da dogmática jurídico-penal – tais como a ideia

de que o indivíduo “comunica à sociedade” que não respeita seus “valores fundamentais”,

676LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimento comunicativo.

México: Anthropos Editorial, 2005, p. 112. 677LUHMANN, Niklas. Introduction to systems theory. Cornwall: Polity Press, 2013, p. 186 [tradução livre

do inglês]. 678 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 141. Segundo Bachur,

“a ação deixa de depender da intenção subjetiva para ter sentido – e, por conseguinte, a intenção subjetiva

pode ser mais bem compreendida à luz do contexto situacional do agente”. Ver BACHUR, João Paulo. Às

portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do

Azougue, 2010, p. 86. 679 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 169.

157

ou seja, que o comportamento jurídico-penalmente relevante possui como significado um

esboço de mundo contrário àquele da sociedade680 – sejam devidamente problematizadas.

2.4. O conceito de comunicação, a pergunta pela participação da consciência

e o conceito de pessoa

Uma vez apresentadas as críticas luhmannianas referentes à tentativa de

compreensão da sociedade a partir da semântica do sujeito, é importante destacar quais

são as consequências da utilização da distinção sistema/ambiente para a relação entre

sociedade e indivíduos, notadamente no âmbito da comunicação. O estudo dessas

questões nos leva diretamente para a repetida crítica de que a teoria de Luhmann seria

anti-humanista.

Uma vez que a teoria dos sistemas autopoiéticos não compreende a comunicação

como práxis comunicativa, racionalmente estruturada, Luhmann questiona: o que se

ganharia e o que se perderia com uma teoria dos sistemas autopoiéticos de

comunicação?681 Aqui já se pode suspeitar que a utilização da diferença como conceito

nuclear, a compreensão do sistema como estruturalmente fechado (autorreferente), o

suporte decorrente do approach construtivista e a consequente “negação” da

intersubjetividade são peças fundamentais.

O primeiro ponto que deve ser destacado é que Luhmann não recorre à metáfora

da transmissão, é dizer, não compreende o processo comunicativo como transmissão de

informação do emissor para o receptor, pois dessa forma sugere-se a ideia demasiada

ontológica de que a ênfase da comunicação (de um sujeito!) está no ato de comunicar

algo que, acredita-se, permanece idêntico682. Por esta razão o sociólogo de Bielefeld

680 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en derecho penal. Bogotá: Universidad Externado de

Colombia, 2004, p. 13 [tradução livre do espanhol]. 681LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimento comunicativo.

México: Anthropos Editorial, 2005, p. 127. 682 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 142. Bachur salienta que

“a teoria da comunicação de Luhmann rejeita expressamente o ato de fala como ponto de partida. Tomando

a assimilação entre fala e comunicação como evidente em si mesmo, essa última fica reduzida à metáfora

da transferência de um conteúdo entre dois sujeitos, do emissor para o receptor, como se tal conteúdo fosse

uma coisa transportável entre consciências. A metáfora da transferência sugere que o emissor dispõe de

algo, que é precisamente aquilo que o receptor obtém; pressupõe que o conteúdo transferido pelo emissor

é idêntico àquele absorvido pelo receptor. Para romper com esse ponto de partida, a comunicação tem de

ser depurada dessa analogia reificante, pois ela pressupõe um continnum entre consciência e comunicação

e, desta feita, assimila toda comunicação à linguagem falada e rebaixa a escrita a mero registro da linguagem

fonética”. Ver BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas

Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 63.

158

apresenta outro conceito de comunicação, a partir do qual o conhecimento sobre sistemas

psicofísicos e sócias já não pode ser integrado683, uma vez que somente nos sistemas

sociais existe comunicação, como já destacado. Uma frase de nosso autor exemplifica

bem o que se encontra neste conceito: “comunicação é obviamente impossível sem

consciência, mas também é impossível sem nenhum dissenso”684.

A afirmação de que somente a sociedade comunica, e de que somente a

comunicação pode influenciar a comunicação, parte do entendimento de que a

comunicação só é possível enquanto processo autorreferencial, como síntese de três

seleções: informação, ato de comunicar e ato de entender. Esses três componentes não

devem ser interpretados como funções, atos ou horizontes de validade, mas sim como

distinções que ocorrem no sistema685. Como já destacado, a autorreferência não é um

atributo específico da consciência, estando presente também nos sistemas sociais. Dessa

forma, a comunicação, enquanto operação específica dos sistemas sociais, depende da

compreensão da mesma, de tal forma que existe tanto a possibilidade de aceitação quanto

a possibilidade de rechaço: “em uma formulação um pouco diferente, pode-se dizer

também que a comunicação transforma a diferença entre informação e ato de comunicar

na diferença de aceitação ou rechaço da comunicação”686. É dizer, a comunicação só

ocorre quando estas seleções estão presentes de forma congruente687, não havendo espaço

para a ideia habermasiana de coincidência de opiniões racionalmente estabelecidas.

Com isso percebe-se como o conceito de comunicação luhmanniano, ao destacar

a seleção e a diferença, afasta-se da compreensão intencional e linguística do termo,

enfatizando a própria emergência da comunicação688. O que importa em Luhmann é que

tudo começa (mas não termina) pelo estabelecimento de uma diferença entre informação

e ato de comunicar. A coordenação desta diferença, no sentido de fixação de um estado –

aceitar/rejeitar – à informação comunicada, é o que gera, enquanto reação, a

683 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 156. Vale

notar a advertência feita por Luhmann: “Deveria ser notado unicamente como precaução que isso

naturalmente não significa que a comunicação seja possível sem vida e consciência”. Ver Ibidem, p. 157

[tradução livre do inglês]. 684 Ibidem, p. 162 [tradução livre do inglês]. 685 Ibidem, p. 160 686 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 149. 687 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 157. 688 Isso não exclui a presença da intenção da comunicação na comunicação por meio da linguagem, o que,

entretanto, é somente uma possibilidade de comunicação.

159

comunicação. Por isto Luhmann define a comunicação como “a menor unidade

negável”689.

É a partir da ênfase na possibilidade de rechaço num contexto de seleção

coordenada que a comunicação é caracterizada como evento extremamente

improvável690. Luhmann identifica três improbabilidades da comunicação: entendimento,

acesso e êxito. Em primeiro lugar, é improvável que ego entenda o que pretende alter, já

que, além das possibilidades de mal-entendido, ambos constituem-se como sistemas

autopoiéticos. Em segundo lugar, é improvável que a comunicação chegue a mais pessoas

do que aquelas presentes em uma situação concreta, e isto se intensifica na medida em

que se requer que a comunicação seja transmitida sem alterações. Por fim, também é

improvável que, mesmo quando a comunicação seja compreendida, se aceite seu

conteúdo. Ocorre que sem comunicação não há sociedade, é dizer, não existiriam sistemas

sociais e, consequentemente, não existiriam indivíduos. Por isso foram desenvolvidas

formas (processos seletivos) que possibilitaram a superação dessas improbabilidades e,

com isso, permitiram a construção dos sistemas sociais.

Luhmann denomina de meios essa conquista evolutiva (funcional) que permitiu

transformar o improvável em provável691. E aqui as relações entre comunicação e

linguagem ficam mais claras. Existem três diferentes meios, que estão relacionados com

as três improbabilidades mencionadas. Assim, o meio que intensifica a compreensão da

comunicação é a linguagem que, mediante a utilização de regras para o uso dos signos,

reduz a complexidade e permite combinações significativas. Luhmann enfatiza que a

linguagem pode ser compreendida como uma técnica especial cuja função é “ampliar

praticamente ao infinito o repertório da comunicação compreensível, assegurando que

quase qualquer acontecimento possa aparecer e ser trabalhado como informação”692. A

partir da linguagem, a escrita, a imprensa e as telecomunicações puderem se desenvolver,

é dizer, surgiram os meios de comunicação. Com isso alcança-se uma difusão

extraordinária do processo comunicativo, que passa a ser co-desenvolvido (conservado,

689 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 153. A ênfase está na

crítica à predominância do consenso nos processos comunicativos: “Também há comunicação quando ego

considera insuficiente a comunicação e não quer cumprir o desejo acerca do quem informa, não quer seguir

a norma à qual remete o caso. Que ego tenha que distinguir entre a informação e o ato de comunicar, o

capacita para a crítica e em todo caso para o rechaço. Isto não altera em nada o fato de que houve

comunicação. Ao contrário: como se expôs anteriormente, também o rechaço é fixação do estado próprio

com base em uma comunicação. Dentro do processo comunicativo, então, está integrada necessariamente

a possibilidade de rechaço”. Ver Idem, [tradução livre do espanhol; grifos no original]. 690 Ibidem, p. 156. 691 Ibidem, p. 158. 692 Ibidem, p. 158.

160

comparado, melhorado) por cada um desses meios de comunicação. Cada um por meio

de sua técnica específica contribui para que a comunicação se expanda cada vez mais (por

isso esses meios de comunicação também são chamados de meios de difusão), reforçando

a ideia de que a comunicação serve como base para comunicações seguintes. Neste

contexto expansivo, é cada vez mais difícil que uma informação possa ter êxito, é dizer,

possa motivar a aceitação. Aqui entram em cena os meios de comunicação

simbolicamente generalizados693, que têm como função utilizar generalizações para

simbolizar a relação entre seleção e motivação. “Verdade”, “amor”, “poder” e “direito”

asseguram de maneira suficiente o cumprimento da proposta de seleção da

comunicação694.

A partir dessas considerações Luhmann considera que a linguagem, os meios de

difusão e os meios de comunicação simbolicamente generalizados são conquistas

evolutivas “que em mútua dependência fundamentam e aumentam os rendimentos do

processamento informativo que pode aportar a comunicação social”695. Cumpre enfatizar

que este entendimento não pode partir da premissa de que a comunicação seria uma ação,

já que a comunicação inclui mais acontecimentos seletivos em sua unidade que o ato de

comunicar. Dessa forma, os sistemas de comunicação (sistemas sociais) são livres para

comunicar acerca de ações ou qualquer outra coisa, “mas devem entender o ato de

comunicar mesmo como ação, e somente neste sentido este se converte no componente

necessário da autorreprodução do sistema de instante em instante” 696. Se retomarmos a

caracterização que Luhmann faz da teoria de Parsons – “sistema é ação” – pode-se

observar como a ideia de que um sistema de comunicação se compreende como sistema

de ação não é falsa, mas sim uma ideia unilateral. Com isso é possível compreender

porque o sociólogo de Bielefeld apresenta a ação como um processo de adjudicação

(Zurechnungsprozesse), como redução de complexidade. Dentro desta perspectiva as

ações são unidades de sentido697 que possuem uma história própria, um evento onde

693 Para uma visão abrangente, ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007,

p. 245 e ss. 694 Não à toa, como será destacado em breve, Luhmann compreende a função do sistema jurídico como

generalização de expectativas normativas nas três dimensões de sentido. 695 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 160. 696 Ibidem, p. 163. 697 Ibidem, p. 120. Vale a pena notar que “os sistemas sociais e psíquicos são sistemas de sentido, isto é, o

sentido é o médium que permite a criação seletiva de formas sociais e psíquicas. Ele se constitui com base

na distinção atualidade/potencialidade. Para Luhmann, sentido é o valor fundamental para a construção da

experiência: ao se experimentar um evento, abre-se para um conjunto de possibilidades antes não

conhecidas que poderão ser ulteriormente experimentadas. Em outras palavras, a atualização de uma

experiência (seleção de alternativas disponíveis) projeta novas possibilidades. O sentido é a permanente

161

confluem personagens, espaços e tempos próprios. Em outras palavras, as ações são

construções dos sistemas que permitem isolar um evento no fluxo de comunicação social.

Um sistema de comunicação é um sistema operativamente fechado que constrói

seus próprios elementos pela própria comunicação. E isto não é novidade alguma, mas

somente enfatiza a caracterização autopoiética deste sistema que produz e reproduz por

si próprio tudo que funciona para ele mesmo enquanto unidade. Luhmann sabe que a tese

de que a comunicação não tem finalidade [Zweck] é tão difícil de se aceitar quanto a tese

de que o sistema é autopoieticamente fechado698. De toda forma, deve restar claro que

não é possível aproximar o conceito de comunicação de Luhmann com a ideia de

racionalidade da ação comunicativa de Habermas. Mas, com este tipo de análise,

Luhmann consegue separar as relações entre comunicação, ação e teoria do sujeito, e

assim superar a construção sociológica derivada da ontologia metafísica, oferecendo o

que considera ser uma teoria mais adequada para a descrição da sociedade moderna. A

ênfase na possibilidade de rechaço da comunicação e a compreensão do processo

comunicativo sem apelar para a figura do sujeito permitem observar que o sistema não

está orientado estruturalmente para o consenso, de tal forma que a construção de sua

ordem interna está relacionada com a redução da complexidade do ambiente pelo

aumento de sua complexidade. A pergunta pela ordem de um sistema social particular,

então, relaciona-se com a forma a partir da qual este sistema organiza sua comunicação.

Esta, que sempre deixa em aberto sua possibilidade de rechaço, constitui-se naturalmente

como comunicação arriscada, é dizer, que desvela e desenvolve produtivamente o risco

da rejeição. Dessa forma, as construções de identidade (contingentes!) dos sistemas

sociais não podem fugir da duplicação da realidade decorrente da possibilidade simétrica

consenso/dissenso699, em que pese apresentarem-se continuamente como projeto de

segurança para a sociedade, notadamente no âmbito jurídico-penal.

reprodução desse atualizar e potencializar de experiências”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite &

VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas

Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 54. 698 Entretanto, é exatamente este o mérito apontado por Bachur na teoria luhmanniana: “O mérito da

concepção luhmanniana é substituir uma teoria da comunicação contruída conforme a metáfora da

transmissão por uma toeria da emergência da comunicação: sistemas somente podem operar mediante

comunicação, que, por sua vez, só ocorre nos sistemas; comunicação emerge assim como redundância, sem

uma finalidade predeterminada. Apenas para que não pairem dúvidas: enquanto a metáfora da transmissão

pressupõe o sujeito, a teoria de sistemas sociais entende a comunicação como emergência social objetiva.

Por essa razão, a comunicação é a única operação genuinamente social – logo, uma operação social que,

rigoramente, considerada, ocorre sem sujeito”. BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma

recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 66. 699 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 163.

162

A partir dessas considerações a pergunta pelo lugar que o ser humano ocupa no

interior desta construção teórica é inevitável, mesmo porque tradicionalmente entende-se

que o ser humano comunica algo a alguém. Luhmann é taxativo: “um sistema social não

pode pensar; um sistema psicofísico não pode comunicar”700. Mas isso não exclui as

interdependências altamente complexas que existem entre ambos, apresentadas por

Luhmann com o conceito de interpenetração (tipo específico de acoplamento estrutural

entre sistemas que co-evoluem)701. O ser humano, como já mencionado, está localizado

no ambiente do sistema702, de tal forma que sua relação com a comunicação pode ocorrer

somente como barulho, interferência, distúrbio. A consciência jamais atua diretamente

sobre a comunicação, assim como a comunicação jamais atua diretamente sobre a

consciência, o que significa que em hipótese alguma observa-se um mixagem

autopoiética dos dois sistemas. No entanto, um sistema coloca à disposição sua própria

complexidade para construir o outro sistema703.

Luhmann enfatiza que essa premissa (deslocamento do homem para o ambiente

da sociedade) não significa que o homem deva ser considerado como menos importante

em comparação com a semântica tradicional humanista, e que quem suspeita disso não

entendeu a troca de paradigma da teoria dos sistemas704. Mas se a comunicação não pode

existir sem a consciência, como, então, a consciência participa da comunicação?

Luhmann compreende que um sistema psicofísico, desde que inicia sua existência,

pode muito bem ativar sua consciência sem qualquer presença de comunicação. O ser

humano pode vivenciar uma série de acontecimentos nele mesmo, observar coisas e

mesmo perceber ele mesmo pensando e falando consigo mesmo. Por outro lado, a

comunicação dificilmente pode acontecer sem a participação da consciência, e durante a

700 Ibidem, p. 165. 701 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 199-235. 702 Segundo Guilherme Gonçalves e Orlando Bôas Filho, “deslocar o homem da sociedade não significa

matar, eliminar ou descartar o ser humano, mas simplesmente colocá-lo em outro lugar, no ambiente. Como

dito anteriormente, o ambiente é muito mais complexo, rico em alternativas e possibilidades que o sistema.

Não se encontra determinado por estruturas normativas, racionalidades ou instituições. Como ambiente, o

homem está sujeito a viver e atuar em horizonte temporal ilimitado. Colocá-lo no ambiente significa

emancipá-lo; concebê-lo como produtor de suas próprias ações, como máquinas históricas

autorreferenciais. Para a velha teoria europeia iluminista, quando o homem era o centro da sociedade, toda

humanidade era tratada pelo conceito de sujeito, um ente abstrato que concentrava em si a totalidade das

características humanas. Esta tradição metafísica desconsiderava a diversidade empírica e eliminava as

diferenças. Ao eliminar os homens, a ideia de sujeito trazia em si uma carga autoritária. Ao redescrevê-lo

no ambiente, Luhmann busca resgatá-lo como horizonte de possibilidades. No ambiente, os homens não

estão limitados por nenhum a priori, por nenhuma norma. Esta é a condição para a autonomia das

consciências”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos

sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 55-56. 703 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 202. 704 Ibidem, p. 201.

163

evolução social a linguagem, a escrita e imprensa foram responsáveis por construir um

link operativo entre sistemas psicofísicos e sociais, permitindo assim a conservação da

adaptação, ou seja, a “constante acomodação da comunicação na consciência”705. Dessa

forma, o sistema social, enquanto observador do ser humano, utiliza a consciência como

um medium, isto é, pode observar a consciência como uma série de coisas (como

liberdade, como transmissora de informações), e a partir disto abstrair o fato de que todas

as operações da consciência são determinadas por sua própria estrutura (da mesma forma,

a consciência pode fazer uso da linguagem para tratar a comunicação como um médium).

O que importa para o sistema social é compreender a consciência, virtualmente, como

algo que participa da comunicação. É neste momento – em que a consciência é ao mesmo

tempo sistema autopoiético e medium – que importa destacar a linguagem, que serve

como acoplamento estrutural (abertura cognitiva) entre os dois sistemas706 É ela que

possibilita esta dupla tematização da consciência. E por meio dela que os sistemas

sensibilizam-se um ao outro. Ou seja, palavras e frases, tudo aquilo que pode ser dito “não

são nem pensamento nem comunicação: o pensamento e a comunicação atribuirão

significados diferentes para a linguagem”707.

Além disso, é fundamental perceber uma outra forma de guia para a observação

da consciência pelo sistema social: a pessoa. Em Luhmann a personalidade está

relacionada com a regulação da interação social, de tal forma que por “pessoa” não se

deve entender um objeto especial, mas um tipo de distinção que guia a observação como

forma de dois lados. Pessoa é, então, uma “limitação individualmente atribuída de

possibilidades de conduta” 708, collages de expectativa709 que servem como ponto de

referência para o sistema social, ou então “marcas de identidade às quais se refere no

processo de comunicação”710. É a partir da criação da pessoa, pelo sistema social, que o

sistema psicofísico é tematizado comunicativamente, é dizer, o conceito de pessoa

permite a sincronização entre consciência e sociedade (e aqui joga um papel fundamental

a causalidade, também construída, decorrente da ação)711.

705 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 173

[tradução livre do inglês]. 706 Ibidem, p. 175. 707 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 58. 708 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 237 [tradução livre

do espanhol] (ênfase acrescentada). 709 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 132. 710 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 492, nota 42. 711 Vale a pena destacar o paralelo entre o conceito de pessoa em Luhmann e o conceito de pessoa em Marx,

tal como apresentado por Bachur: “Tudo indica que a construção de pessoas pelos sistemas sociais é

164

Luhmann ressalta que o fato do indivíduo ter que adotar a forma de uma pessoa

não afeta a autopoiese da consciência, razão pela qual salienta que a forma pessoa serve

exclusivamente para a auto-organização do sistema social, isto é, “para resolver o

problema da dupla contingência limitando o repertório de conduta dos participantes”712.

É importante notar que a forma pessoa é a chave para compreender como os dois tipos de

sistemas constroem relações reais e evoluem conjuntamente. Para que a autonomia da

autopoiese de cada um possa ser mantida e compatibilizada, Luhmann vale-se do conceito

de acoplamento estrutural. Como já destacado, são eles os responsáveis por proporcionar

interpenetrações e irritações. A interpenetração é uma relação inter-sistêmica, entre

sistemas que pertencem reciprocamente um ao entorno do outro713 (sistema psicofísico e

sistema social), permitindo que um sistema pressuponha as realizações complexas de

outro sistema como parte do próprio sistema. Este é o raciocínio pelo qual pode-se

concluir que a pessoa permite que a complexidade do ser humano possa ser objeto de

consideração pelo sistema social. Isso significa que a “integração” da sociedade não pode

ser pensada a partir do sujeito, já que as generalizações simbólicas socialmente

institucionalizadas ocupam um papel fundamental714.

Já foi apresentado o conceito de integração em Luhmann como “redução dos graus

de liberdade dos sistemas parciais”715. Isso significa que é neste contexto que cada

sistema atribui sentido ao indivíduo (pessoa) a partir de suas próprias operações. Ocorre

que, como repetidamente destacado, a diferenciação funcional não significa igualdade de

oportunidades de desenvolvimento para os sistemas parciais716, assim como não significa

que não existam estratificações no interior da estrutura funcional717, o que acarreta

semelhante à construção de pessoas para Marx – cf. O capital: crítica da economia política [1867-1890],

3ª ed., trad. R. Barbosa & F. R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural (coleção “Os economistas”), 1988, liv. I,

t. I, pp. 79/80: “As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por

isso, como possuidores de mercadores”, em Ver BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma

recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 95, nota 32. 712 LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 242 [tradução livre

do espanhol]. 713 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 201. 714 Como salienta Bachur, “obviamente não é possível falar em uma espécie de determinismo absoluto,

como se os indivíduos fossem apenas marionetes de leis sociais absolutas. Trata-se apenas de reconhecer

que pesa sobre os indivíduos, qual rija crosta de ação (para usarmos uma clássica expressão weberiana), a

institucionalização social de padrões simbólicos para a orientação do comportamento individual – a

sociedade não é composta pelas pessoas; ao contrário, as pessoas são compostas pela sociedade”. Ver

BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio

de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 81. 715 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 662 e LUHMANN, Niklas.

La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 478 716 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 610. 717 Ibidem, p. 612.

165

consequências para os sistemas psíquicos. É evidente que essa situação pode implicar

diferenças de tratamento no âmbito da comunicação sobre pessoas. Se existem diferenças

materiais entre sistemas parciais, a forma como um indivíduo é tematizado ou não em

num sistema pode repercutir (irritação) em outros sistemas. Em um primeiro momento

isso poderia levar à um argumento de contingência, no sentido de que tratar-se-ia de uma

hipótese. Mas Luhmann entende que a teoria da sociedade deveria estar preocupada em

responder a pergunta acerca de como diferenças tão marcantes de oportunidades de vida

se reproduzem na sociedade atual, e entende que a resposta para isso está em considerá-

las como “produtos secundários” da racionalidade operativa dos diversos sistemas

funcionais, com destaque para o sistema econômico que reforça suas igualdades e

desigualdades718. Se este subproduto pode interferir, e até que ponto, na própria lógica da

diferenciação funcional, é um tema deixado em aberto pelo sociólogo.

O pano de fundo dessas considerações é a articulação entre inclusão e exclusão no

âmbito da sociedade funcionalmente diferenciada, desenvolvida por Luhmann com mais

detalhes a partir de 1993. O aprofundamento dessas questões levará o sociólogo a discutir

a possibilidade da distinção inclusão/exclusão constituir-se como distinção primária da

sociedade, e serve como ponte para o questionamento acerca da contingência deste

fenômeno que integra a sociedade de forma “negativa”.

2.5. A contradição manifesta: diferenciação funcional e a distinção

inclusão/exclusão

As discussões em torno da questão da exclusão social no pensamento de Luhmann

geralmente gravitam, em grande parte, em torno das críticas colocadas por Marcelo Neves

no início da década de noventa, quando o autor apresentou sua análise do caso brasileiro

no âmbito da teoria luhmanniana, discutindo a eficácia da Constituição e o problema da

positividade do direito naquilo que denominou de limites à autorreferência tanto do

sistema jurídico quanto do sistema político na modernidade periférica719. Posteriormente

Neves passa a se referir à este contexto (países periféricos) como modernidade

negativa720, isto é, “hipercomplexidade desagregadora do moralismo hierárquico

718 Ibidem, p. 614, 616. 719 NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische

Betrachung und eine Interpretation des Falls Brasilien. Berlim: Duncker & Humbold, 1992. 720 NEVES, Marcelo. Entre Subintegração e Sobreintegração: a cidadania inexistente in: DADOS –

Revista de Ciências Sociais, vol. 37, nº 2. Rio de Janeiro: Iuperj, p. 264, NEVES, Marcelo. Entre Têmis e

166

tradicional”721 na qual os sistemas sociais não conseguiriam construir autonomamente

seus “topos específicos”. Aqui Neves enfatiza que um dos maiores obstáculos para a

realização do Estado Democrático de Direito é a generalização de relações de

subintegração e sobreintegração, de tal forma que a falta de inclusão no sistema jurídico

leva à inexistência da cidadania “como mecanismo de integração jurídico-política

igualitária da população na sociedade”722. É a partir do desenvolvimento deste raciocínio

que Neves afirma que tal generalização de relações de subintegração e sobreintegração

“fazem implodir a Constituição como ordem básica da comunicação jurídica e também

como acoplamento estrutural entre política e direito”723. Isso nos leva para o conceito de

“constitucionalização simbólica” enquanto alopoise do sistema jurídico (déficit de

autonomia operacional do direito positivo estatal), a partir do qual desenvolvem-se

relações de “subcidadania” e “sobrecidadania” 724 num contexto de déficits

democráticos725.

Essas questões estão intimamente relacionadas com a ideia da distinção

inclusão/exclusão como metacódigo da sociedade moderna, que mediaria todos os outros

códigos dos sistemas sociais parciais726. Luhmann desenvolve este raciocínio

principalmente a partir de 1993. Entretanto, antes de abordarmos como o sociólogo

alemão desenvolve suas reflexões sobre o tema, é interessante observar de que forma a

distinção inclusão/exclusão foi colocada nos escritos anteriores. Vale notar, entretanto,

que a temática não está presente em Os direitos fundamentais como instituição (1965),

em que o autor, em que pese salientar que a diferenciação funcional não comporta

somente vantagens, destaca que seria uma “saudável” hipótese científica “supor que as

Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006 p. 237; NEVES, Marcelo. Aumento da

complexidade nas condições de insuficiente diferenciação funcional: o paradoxo do desenvolvimento

social da América Latina, em SCHWARTZ, Germano (org.). Juridicização das esferas sociais e

fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012,

p. 201. Para uma discussão com Orlando Bôas Filho acerca da pluralidade de vias de acesso à modernidade,

além da crítica à idealização da modernidade presente em Marcelo Neves, ver VILLAS BÔAS FILHO,

Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 298, nota 82 e 322. Para

uma crítica que pretende contribuir para uma articulação entre teoria dos sistemas e teorias pós-coloniais,

ver GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e teoria dos sistemas. Notas para uma agenda de

pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 249-277. 721 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006 p. 238. 722 Ibidem, p. 248. 723 Ibidem, p. 251. 724 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 145-

146, 186. 725 NEVES, Marcelo. E se faltar o décimo segundo camelo? Do direito apropriador ao direito invadido,

em ARNAUD, A. J & LOPES JÚNIOR, D. (org.). Niklas Luhmann: do sistema social à sociologia jurídica.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 147. 726 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 661.

167

ordens sociais diferenciadas estejam em condições de resolver o problema da existência

humana no mundo de modo muito mais eficaz em comparação com ordens sociais não

diferenciadas”727.

Em Teoria política no Estado de bem-estar (1981) Luhmann conceitua inclusão

como “incorporação da população global às prestações dos distintos sistemas funcionais

da sociedade”728, fazendo assim referência ao acesso às prestações do sistemas de

referência e à dependência dos distintos modos de vida individuais diante de tais

prestações. Em que pese Luhmann não utilizar aqui a distinção inclusão/exclusão”, isso

não significa que o sociólogo de Bielefeld não aborde a questão da exclusão. Assim, em

uma nota de rodapé destaca que “a exclusão de grupos inteiros da população da

participação nas prestações sociais, poderia ser qualificada, portanto, como exclusão”729.

Nesta nota Luhmann já destaca um problema que será desenvolvido em escritos

posteriores (a relação entre diferenciação funcional e exclusão social), ao questionar se a

evolução das modernas condições de vida na Europa poderia ser caracterizada como uma

inclusão gradual, enquanto que, pelo contrário, o desenvolvimento planificado e

acelerado de acordo com um plano de outras regiões requer exclusões provisionais,

salientando que tampouco a história da Europa está isenta de exclusões730. Esta

preocupação também está presente quando afirma que a desigualdade efetiva de

possibilidades se reproduz de modo afuncional, desafiando assim as normas de

inclusão731.

Apesar de alguns anos depois, em Sistemas sociais (1984), Luhmann voltar a

mencionar os conceitos de inclusão e exclusão, agora no contexto das interpenetrações

entre sistemas, neste momento não há qualquer análise a respeito da “contribuição

negativa” da exclusão social para a lógica inclusiva (em princípio) da diferenciação

funcional732. É em O direito da sociedade (1993), após as críticas de Marcelo Neves, que

727 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 291 [tradução livre

do italiano]. Infelizmente aqui não é possível discutir como a distinção inclusão/exclusão poderia ser

“introduzida” na discussão sobre os direitos fundamentais, já que na tese luhmanniana tais direitos seriam

responsáveis por manter a diferenciação funcional da sociedade, evitando a politização dos diversos

sistemas sociais parciais. 728 LUHMANN, Niklas. Teoria política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 47-

48 [tradução livre do espanhol]. 729 Ibidem, p. 48, nota 12 [tradução livre do espanhol]. 730 Idem, [tradução livre do espanhol]. 731 Ibidem, p. 49. 732 No máximo poder-se-ia dizer que neste texto Luhmann já apresenta uma relação de simultaneidade entre

inclusão e exclusão. Esta percepção é importante, uma vez que na década de 90 o sociólogo alemão

aprofundará seus estudos sobre exclusão (incluindo visitas a favelas brasileiras) e criticará propostas

teóricas que trabalhem com a “hipótese” de inclusão total. Vale a pena destacar, então, que “a

168

Luhmann aprofunda o tema da exclusão social. Aqui o sociólogo de Bielefeld enfatiza

que falar sobre uma sociedade funcionalmente diferenciada não significa falar de uma

sociedade harmônica dotada de garantias inerentes de estabilidade733. Em que pese

enfatizar o caráter universal do sistema jurídico734, Luhmann considera o que denomina

“desenvolvimentos regionais”, e é neste contexto em que situa a inclusão defeituosa de

grandes setores da população na comunicação dos sistemas funcionais. Aqui Luhmann

suspeita que a “diferenciação aguda” entre inclusão e exclusão, resultado da diferenciação

funcional, é incompatível com esta, podendo até mesmo minar sua concretização, e por

isso formula a já aludida tese de que a diferença entre inclusão e exclusão serviria como

meta-código que mediaria todos os outros códigos735. Consequentemente, a integração

social enquanto “redução dos graus de liberdade dos sistemas parciais”, no âmbito da

exclusão, será compreendida como “integração negativa” devido ao caráter altamente

integrativo da exclusão, já que “a exclusão de um âmbito funcional impede a inclusão em

outros”736.

Deve ser destacado que o ponto alto das reflexões de Luhmann sobre o tema

ocorre em Inclusão e exclusão (1995). Neste texto seu objetivo é corrigir as formulações

teóricos acerca da inclusão, pois “falta um conceito para aquilo que está ausente quando

a inclusão não ocorre”737. Por este motivo o sociólogo alemão vale-se do conceito de

forma, já que ela permite observar que toda denominação referente à um lado de uma

distinção pressupõe a existência do outro lado. Daí sua assertiva de que “inclusão

denomina, então, o lado interno da forma, cujo lado externo é a “exclusão”. Portanto,

apenas pode-se falar de inclusão, de maneira dotada de sentido [sinnvoll], quando houver

exclusão”738, e aqui deve-se entender tanto a inclusão quanto a exclusão no âmbito do

interpenetração conduz à inclusão na medida em que a complexidade dos sistemas contribuidores é utilizada

também pelos sistemas receptores, mas também conduz à exclusão na medida em que uma pluralidade de

sistemas interpenetrantes têm que se distinguir uns aos outros em sua autopoiese para possibilitar a

interpenetração”. Ver LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 207

[tradução livre do espanhol]. 733 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 650. 734 Ibidem, p. 652. Luhmann trabalha aqui com a noção de violações de direitos humanos. Para uma análise

acerca das alterações no conceito de direitos humanos, que antes (em Direitos fundamentais como

instituições, de 1965) eram considerados direitos eternos, ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização

simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 160, nota 138. 735 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 661. 736 Ibidem, p. 662 [tradução livre do espanhol]. 737 LUHMANN, Niklas. Inclusão e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê

Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 17. Há tradução espanhola do artigo em

LUHMANN, Niklas. Complejidad y modernidad. Madrid: Trotta Editorial, 1998, p. 167-196. 738 Por isso Luhmann afirma que “a tarefa da teoria consiste, então, em relacionar a diferença de inclusão e

exclusão aos requisitos da formação de sistemas e, em especial, às consequências de determinadas formas

de diferenciação, que foram constituídas no curso da evolução social”. Ver LUHMANN, Niklas. Inclusão

169

nexo comunicativo, ou seja, enquanto identificação dos seres humanos como pessoas. O

que é interessante destacar é que na sociedade moderna não observa-se uma regulação

social unitária da inclusão739. Em explícita referência a Habermas, Luhmann ironicamente

salienta o que chama de “discurso dos intelectuais do século XX”, no qual pensa-se “que

a inclusão no todo da sociedade seria atingível por uma esfera pública discutidora, que

filtraria o que parece razoável a cada pessoa razoável”740. A intenção de Luhmann é clara:

o fascínio de propostas desse tipo, que pretendem criticar a sociedade, só é possível

mediante o entendimento de que a sociedade é comporta por indivíduos, e “pelo fato de

que a exclusão não estaria sequer prevista” 741.

Mas, como já destacado, na teoria dos sistema sociais autopoiéticos os seres

humanos estão no ambiente da sociedade funcionalmente diferenciada. Quais são as

implicações desse ponto de partida para a temática da exclusão social? Apesar da inclusão

ser regulada autonomamente por cada sistema social parcial, Luhmann está ciente de que

a sociedade moderna pode produzir e tolerar desigualdades extremas na distribuição de

bens públicos e privados, e também considera que nos chamados países em processo de

modernização existiria um abismo quase insuperável entre âmbitos de inclusão e

exclusão, de tal forma que esta distinção apresentar-se-ia como diferenciação primária da

sociedade742. Neste texto Luhmann considera que redes de inclusão, enquanto formas não

previstas (parasitárias) de estabilização, seriam responsáveis por estabelecer uma espécie

de “integração transversal”, costumeiramente descrita como “obstáculo ao

desenvolvimento”743. E é a partir dessa ideia de redes que o sociólogo alemão explica os

fenômenos descritos como corrupção que colocam em xeque a prometida performance

funcional744. Neste momento Luhmann recupera a ideia de “integração negativa”, e

e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 19. 739 Isso já é destacado no livro de 1965. Ver LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione.

Bari: Dedalo, 2002, p. 73. 740 LUHMANN, Niklas. Inclusão e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê

Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 25. 741 Idem. 742 Ibidem, p. 27. 743 Luhmann critica as teorias de modernização que confiam na capacidade produtiva dos sistemas

funcionais, “donde se tem a esperança de que o desenvolvimento econômico, a democratização política, a

positivação e o cumprimento do direito, a intensificação da pesquisa científica possam vir a ser realizados

em tempo relativamente curto e simultaneamente em todo o mundo”. Ver Ibidem, p. 28. 744 Vale a pena notar que neste texto Luhmann centra suas atenções “nos países da modernidade periférica”,

ou “países em processo de modernização”, citando o Brasil e, também, a região sul da Itália. Apesar de já

ter destacado em 1981, em Teoria política no Estado de bem-estar, que mesmo na Europa o problema da

exclusão poderia ser observado, em escritos posteriores, como será destacado, Luhmann parece enfatizar

as consequências da “distinção primária” entre inclusão e exclusão para a sociedade de modo geral (como

Weltgesellschaft), e não somente em casos “periféricos”. De toda forma, há extensa discussão sobre caráter

170

salienta o afrouxamento da integração pela inclusão e integração rígida pela exclusão,

“porque a exclusão de um sistema funcional traz consigo quase automaticamente a

exclusão de outros”745.

O que importa ser enfatizado é que nesta conjuntura a sociedade estaria

supercodificada [supercodiert] pela distinção entre inclusão e exclusão, a ponto da lógica

da diferenciação funcional apresentar-se manifestamente como artificial. Daí o “anúncio”

de uma diferenciação primária da sociedade por inclusão e exclusão que “teria como

consequência efeitos reversos sobre os próprios sistemas funcionais, [que se

reconheceriam] incapazes de satisfazer suas próprias demandas de inclusão, passando a

se adequar a isso”746. A adequação a partir da qual observa-se um “deslocamento

comunicativo” da pessoa para o corpo747, isto é, quando o outro vale apenas como corpo,

é uma das consequências que levam Luhmann a afirmar a necessidade de se enriquecer a

teoria da diferenciação social e, principalmente, de desistir da expectativa de se descrever

a sociedade atual tendo como parâmetro somente, por exemplo, a diferenciação

funcional748.

Tal “enriquecimento” pode ser observado já em 1996, quando é editado Para além

da barbárie. Neste texto o sociólogo alemão apresenta a distinção feita por Schiller entre

selvagens – que percebem o mundo sensivelmente – e bárbaros – que cultivam uma

monocultura da razão. Mais uma vez ironicamente, Luhmann considera que, a partir da

perspectiva destacada, um dos mais notórios bárbaros da atualidade seria justamente

Habermas. Entretanto, o interesse do sociólogo alemão é utilizar uma distinção que

permita comparações com a clássica distinção grega entre bárbaros e helenos: chega-se

então, uma vez mais, à articulação entre inclusão e exclusão749.

conservador da teoria dos sistemas sociais enquanto teoria da modernização. Ver SOUZA, Jessé. Niklas

Luhmann, Marcelo Neves e o “culturalismo cibernético”, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo

(Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p.149-182, especialmente 153-161. 745 LUHMANN, Niklas. Inclusão e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê

Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 38. 746 Ibidem, p. 39. Diante do metacódigo da inclusão/exclusão, Marcelo Neves sustenta que esta distinção

seria uma metadiferença que lutaria com a diferença entre sistema e ambiente, e analisa o posicionamento

de Stichweh, para quem esta conclusão estaria presente já na obra do Luhmann. Ver NEVES, Marcelo.

Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006 p. 252, nota 82. 747 Para uma discussão acerca do que poderia significar esta contraposição entre pessoa e corpo para uma

“teoria geral da exclusão”, ver Jessé. Niklas Luhmann, Marcelo Neves e o “culturalismo cibernético”, em

DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2013, p. 176. 748 LUHMANN, Niklas. Inclusão e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê

Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 43. 749 LUHMANN, Niklas. Beyond barbarism, em MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls

to systems. Illinois: Open Court, 2006, p. 262.

171

É aqui que Luhmann destaca que a estratificação social é um subproduto

[byproduct] dos sistemas funcionais, notadamente do econômico e do educacional. Após

reafirmar as alterações estruturais observadas a partir da diferenciação funcional, é

destacado o princípio da inclusão geral de todos nos sistemas parciais, a partir do qual

cada um destes decide sobre a forma de inclusão. Luhmann salienta que este nível de

inclusão é simbolicamente celebrado como liberdade e igualdade para todos os

indivíduos, o que significa que cada sistema de referência assume que a população

constitui um ambiente homogêneo a partir do qual é possível se diferenciar

exclusivamente a partir de critérios internos750. Mas antes de especificar a relação entre

diferenciação funcional e a distinção inclusão/exclusão, Luhmann aborda aquela “lógica

totalitária” decorrente da filosofia do sujeito, aqui já destacada: a ideia do ser humano

racionalmente iluminado (o sujeito), socialmente responsável que apenas adora a razão e,

consequentemente, exclui o reconhecimento de qualquer referência externa (o outro).

Após mencionar os desenvolvimentos filosóficos correspondentes à esta ideia (Kant,

Schelling e Hegel), o sociólogo de Bielefeld questiona: “isso pode ser interpretado como

uma nova cosmologia para uma sociedade sem exclusão?”751.

A resposta de Luhmann, como já mencionado, só pode ser que a inclusão só é

possível simultaneamente à exclusão, e isso devido à forma intrínseca da própria

distinção. Os exemplos das “favelas da América do Sul” e das “minas de carvão de

Wales” são provas de que a exclusão existe. É interessante notar que, se por um lado no

artigo Inclusão e exclusão Luhmann vale-se da distinção centro e periferia para formular

suas considerações a respeito das redes parasitárias de inclusão, neste texto o autor

considera que teorias de exploração, supressão social, marginalidade, ou sobre um

aumento na contradição entre centro e periferia, todas essas teorias ainda seriam

“governadas” pelo desejo de inclusão total, além de procurarem por bodes expiatórios

tais como o capitalismo752. Entretanto, a inclusão total é vista somente como mero

idealismo, incapaz de perceber que a distinção inclusão/exclusão pode ser a diferença

guia [guiding difference] do século XXI. Daí sua afirmação:

“A diferenciação funcional, em oposição à

autodescrição reivindicada pelos sistemas parciais, não

750 Ibidem, p. 265. 751 Ibidem, p. 267 [tradução livre do inglês]. 752 Ibidem, p. 269.

172

pode realizar o postulado da inclusão total. Sistemas

funcionais, quando operando racionalmente, excluem

pessoas ou as marginalizam de modo tão drástico que

traz consequências no que diz respeito ao acesso a

outros sistemas funcionais”753.

A consequência deste tipo de descrição – aqui sem referência à distinção

centro/periferia754 – está na alta integração da sociedade moderna pela exclusão, enquanto

“integração negativa” sem consenso que desacredita a autodescrição da sociedade

moderna como humanista. Pois bem, todas essas reflexões são retomadas em A sociedade

da sociedade, de 1997. É importante observar como Luhmann coloca a discussão sobre o

tema em sua principal obra, sobretudo devido à importante contenda que existe acerca do

“conservadorismo” luhmanniano no âmbito das teorias da modernização755.

Nesta obra é destacada uma vez mais a particularidade da forma de inclusão na

sociedade moderna, salientando a necessidade de se compreender a articulação entre

inclusão e exclusão a partir da noção matemática de forma: só há inclusão quando a

exclusão é possível, ainda que seja, ou sobretudo, como unmarked space756. Isso significa

que a inclusão de todos nos sistemas funcionais é uma inclusão em princípio, uma

maneira da sociedade moderna “se salvar – pelo menos por enquanto – de perceber o

outro lado da forma (a exclusão) como fenômeno socioestrutural”757. Esta cegueira seria

então favorecida pela semântica de inclusão iluminista do século XVIII, que enfatiza a

realização dos direitos humanos como grande questão para a modernidade ao mesmo

tempo em que aumenta-se, por exemplo, a legislação penal e as penas de morte758.

753 Ibdem, p. 270 [tradução livre do inglês]. 754 Isso não impede que se utilize a distinção centro/periferia como “distinção secundária”, dependente da

distinção Sul/Norte global, pois em hipótese alguma nega-se que existam regiões economicamente

“periféricas”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e teoria dos sistemas. Notas para

uma agenda de pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê

Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 250. 755 Jessé Souza sustenta que a teoria luhmanniana repetiria os mesmos preconceitos das teorias clássicas da

modernização conservadora, ao distinguir entre sociedades centrais e periféricas, já que as primeiras

serviriam como modelo de “sociedade virtuosa”, “onde os princípios universais são pressupostos como tão

eficientes que as “redes de relacionamento” não podem exercer as suas consequências deletérias”. Ver

SOUZA, Jessé. Niklas Luhmann, Marcelo Neves e o “culturalismo cibernético”, em DUTRA, Roberto &

BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 158. Por

outro lado, vale a pena notar a crítica de Luhmann ao conceito de modernização, a partir da qual questiona

se não seria melhor abandonar este “estranho conceito”. Ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la

sociedad. México: Herder, 2007, p. 862. 756 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 491-492. 757 Ibidem, p. 496. 758 Ibidem 2007, p. 498.

173

Mas, atualmente, já não é possível ocultar a reflexão sobre a exclusão enquanto

problema estrutural da sociedade moderna, e aqui Luhmann refere-se também à regiões

da sociedade do mundo eufemisticamente denominadas como países em desenvolvimento,

citando o caso de industrialização avançada do Brasil como exemplo. Não há aqui

referência à distinção centro/periferia para abordar a questão da inclusão/exclusão, que

parece ser substituída pela distinção global/regional, e mesmo a explicação pela

“corrupção”, apresentada em Inclusão e exclusão, já não é considerada satisfatória759. Daí

ser possível afirmar que Luhmann não sustenta que existira uma espécie de sociedade

modelo na qual poder-se-ia observar a efetividade e o “normal funcionamento” da

diferenciação funcional. Isso fica claro quando discute a formação de guetos no Rio, em

Chicago e em Paris760. Por isso é importante considerar sua afirmação de que podemos

despertar “da ilusão de um estado de inclusão nunca antes alcançado”761. O que Luhmann

afirma é que, em que pese o problema da exclusão ser uma consequência direta da

diferenciação funcional, “em algumas regiões do globo terrestre” a distinção

inclusão/exclusão está a ponto de se tornar uma meta-diferença que, como já destacado,

mediatizaria os códigos dos demais sistemas funcionais762. Novamente o sociólogo

alemão afirma que o problema da amplificação recíproca das exclusões não pode ser

atribuído a um único sistema funcional – apesar de em 1981 sustentar que a economia

alcançara [erlangt] um primado social que antigamente era possuído pelo sistema

político763 –, e salienta que seria necessário contar com um sistema secundário de funções

responsável por trabalhar os efeitos da exclusão decorrentes da diferenciação funcional

que, talvez, constitua-se como um novo sistema funcional764.

759 Ibidem p. 639. Para uma análise do Brasil em termos de “autopoiese periférica”, ver CAMPILONGO,

Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82. 760 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 639-640. 761 Ibidem, p. 499 [tradução livre do espahol]. 762 Ibidem, p. 501. O que não significa que na Europa, por exemplo, não existam problemas de exclusão

social. A observação de que Luhmann não parte de um modelo europeu bem sucedido de diferenciação

funcional pode contribuir para a discussão colocada por Jessé Souza acerca do conservadorismo da teoria

luhmanniana. 763 LUHMANN, Niklas. Ausdifferenzierung des Rechts. Beiträge zur Rechtssoziologie und Rechtstheorie.

Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 149. Como já mencionado, Marcelo Neves destaca essa alteração:

“em suas primeiras obras, Luhmann confirmava, a meu ver, com razão, a compatibilidade da diferenciação

funcional com o primado das expectativas cognitivas. Essa tese foi revivificada recentemente por Teubner

e Fischer-Lescano. A sociedade é, então caracterizada como uma sociedade que se reproduz primariamente

como base nas expectativas cognitivas (economia, ciência e técnica), podendo ser compreendida mesmo

como uma sociedade que se distingue por “um primado social da economia” ou como “sociedade

econômica””. Ver Marcelo. Aumento da complexidade nas condições de insuficiente diferenciação

funcional: o paradoxo do desenvolvimento social da América Latina, em SCHWARTZ, Germano (org.).

Juridicização das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre:

Editora Livraria do Advogado, 2012, p. 206. 764 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 502.

174

Entretanto, é oportuno notar que Luhmann admite a existência de centros na

sociedade mundial, ocupados principalmente por mercados financeiros internacionais

que “produzem flutuações que regionalmente levam logo a estruturas dissipativas e à

necessidade de auto-organização”765. A distinção global/regional não deve favorecer

interpretações de que as diferenças regionais já não tenham importância, uma vez que,

segundo Luhmann, é a própria lógica da diferenciação funcional que favorece a produção

dessas diferenças766. Por isso considera que seria pouco realista conceber o primado da

diferenciação funcional como autorrealização principiológica, enfatizando a noção de

“condicionamento complexo e precário de condicionamentos” no âmbito da sociedade

mundial767. As consequências deste tipo de relação entre diferenciação funcional e

condicionamentos regionais podem ser observadas em qualquer sistema parcial.

Luhmann menciona, em diálogo com Neves, que elas podem até impedir a autonomia

autopoiética do sistema jurídico768, e alguns anos antes (1993) o sociólogo já havia

mencionado que a importância atual do sistema jurídico e a dependência dos sistemas

funcionais diante do código lítico/ilícito poderiam ser consideradas uma “anomalia

europeia”769.

Por fim, é importante destacar que as críticas de Luhmann à proposta

habermasiana de legitimação – preocupada em possibilitar que todos os potencialmente

afetados por uma norma válida possam concordar como participantes de um discurso

racional – também recuperam a discussão sobre a exclusão social, e terminam com uma

765 Ibidem, p. 640. Se os sistemas sociais parciais conseguem atualmente ser protegidos desta flutuação

financeira, é assunto que mereceria posterior desenvolvimento. De toda forma, na década de 70 Luhmann

afirmava que “os sistemas parciais, para poderem execer sua função constante e confiavelmente, têm que

ser protegidos contra flutuações em outras esferas por eles incontroláveis”. Ver LUHMANN, Niklas.

Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 227. 766 Em sentido próximo, Campilongo destaca que “apesar da extraordinária força que as relações de

mercado e a economia internacional ganharam com a globalização, nada indica que o Estado, as leis, a

ciência ou, em linguagem técnica, os subsistemas funcionalmente diferenciados da política, do direito, da

ciência etc. estejam tornando-se indiferenciados ou completamente submetidos a um único vértice,

supostamente o sistema econômico (...). A globalização torna cada vez mais evidente as intensas

interdependências entre os subsistemas”, em CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade

complexa. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 115. 767 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 643. 768 Para uma discussão a respeito do déficit de autonomia do sistema jurídico enquanto “hipercontato

intrassistêmico”, ver CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. 2ª

ed. São Paulo: - Saraiva, 2011, p. 172. Para uma análise que problematize a questão da autonomia a partir

da “sobrecarga de informação advinda do ambiente que, por não ser devidamente filtrada, gera problemas

de operacionalização por sua instância central, constituída pelos tribunais”, ver VILLAS BÔAS FILHO,

Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 383. 769 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 664. Aqui não é o momento

para uma vez mais colocar em discussão se o “europeia” corresponde ao “centro da modernidade”, e se esta

semântica, presente em “Inclusão e Exclusão”, pode ser também observada em “A sociedade da sociedade”

no contexto da distinção global/regional.

175

dúvida acerca da satisfatoriedade de um entendimento normativo da racionalidade.

Luhmann considera que o abandono desta ideia poderia permitir, em diálogo com o

pensamento de Marx, um estudo da sociedade tal como ela é, e assim descobrir possíveis

variações sociais para uma condição de menor sofrimento770. A que tudo indica, essa

temática poderia ser introduzida na discussão sobre os direitos fundamentais como

instituição, já que, em 1965, se por um lado ainda Luhmann não debatia a questão da

exclusão, por outro considerava, como já destacado, que a diferenciação funcional da

ordem social poderia resolver em grande medida o problema da existência humana, desde

que tal diferenciação estive articulada com os direitos fundamentais, salientando que uma

ordem social funcionalmente diferenciada deveria garantir mecanismos de generalização

em ao menos quatro esferas: (i) em relação à autorepresentação da pessoa; (ii) em relação

à formação de expectativas de comportamento confiáveis; (iii) em relação à satisfação de

necessidades econômicas e (iv) em relação à possibilidade de tomar decisões

vinculantes771.

Essas considerações evidentemente não esgotam o amplo debate acerca da

produtividade da distinção inclusão/exclusão para a teoria dos sistemas autopoiéticos

sociais, notadamente nas análises do “Sul global”, nem das formas de “enriquecimento”

que podem ser desenvolvidas772. Mas a vale a pena destacar, por fim, um raciocínio que

será desenvolvido no próximo capítulo. Já foi destacado como Luhmann, em pese taxar

o “capitalismo” como bode expiatório para os problemas decorrentes da exclusão social,

não nega que o início da diferenciação funcional possa estar intimamente relacionado

com a diferenciação funcional da economia. Antes mesmo da compreensão do primado

social da economia, em 1976 o sociólogo de Bielefeld salientava que “somente a

diferenciação funcional do sistema econômico (...) faz com a sociedade alcance um nível

de complexidade que exige diferenciações funcionais para todos os âmbitos

770 LUHMANN, Niklas. Quod Omnes Tangit. Remarks on Jürgen Haberma’s Legal Theory, em ARATO,

Andrew & ROSENFELD, Michel (ed.). Habermas on law and democracy: critical exchanges. Califórnia:

University of California Press, 1998, p. 172. 771 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 77. É importante

notar que os direitos fundamentais não têm a função de criar esses mecanismos, já que eles pressupõem um

estado de desenvolvimento social. Nesse sentido, Campilongo também chama a atenção para a relação entre

globalização, desigualdade e direitos fundamentais no plano nacional. Ver CAMPILONGO, Celso

Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 127. 772 Para um estudo que articula a cumulatividade das exclusões e a transmissibilidade intersistêmica das

mesmas a partir da teoria de classe de Marx, ver BACHUR, João Paulo. Desigualdade, classe social e

conflito. Uma releitura a partir da teoria de sistemas de Niklas Luhmann, em DUTRA, Roberto &

BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 183-217.

176

funcionais”773. É a partir disso que Bachur sustenta que a economia monetária estruturada

pela contradição entre capital e trabalho “rompe definitivamente com os fundamentos da

sociedade estratificada – e, ao fazê-lo, o faz para a sociedade como um todo”774.

Dito isso, e uma vez recuperada a discussão feita no início do capítulo acerca da

relação entre autopoiese e acoplamentos estruturais, em que a nova conceituação dada

por Bachur (autopoiese = autonomia + interdependência)775 foi apresentada, então é

razoável sustentar as principais aquisições evolutivas da economia, tais como o dinheiro

(meio de comunicação simbolicamente generalizado da economia), a propriedade privada

(acoplamento estrutural entre economia e direito) e o contrato (acoplamento estrutural

entre economia e direito), influenciam a posterior diferenciação funcional dos outros

sistemas sociais. Que o direito positivo proteja esses interesses através das garantias

constitucionais (acoplamento entre direito e política) à propriedade privada e à liberdade

de contratar não é mero acaso776. Que o Direito penal também contribua para isso,

também não. Daí a afirmação de Bachur: “economia, direito e política moldam-se

reciprocamente nessa atuação conjunta”777.

Ora, se por um lado Jakobs também aborda essa questão ao formular que não

existiria uma igualdade de relações entre os sistemas, mas sim a estabilidade de

determinada reação entre eles, ele também compreende que a consequência deste

particular sistema de relações estaria na auto-compreensão do direito como parte da

economia778. Mas se o penalista de Bonn chega à essas conclusões distanciando-se de

Luhmann, como destacado, não seria possível potencializar analiticamente esses análises

a partir de Luhmann, já que “o capitalismo somente pode ser perfeitamente

compreendido à luz da teoria da diferenciação funcional de sistemas sociais”779? E mais

do que isso: não seria possível então estabelecer um juízo crítico acerca das

autodescrições produzidas pelo direito penal? O fato de Luhmann sustentar que a culpa

como manifestação de um estado interno do indivíduo seria somente uma mitologia, uma

773 LUHMANN, Niklas. Evolution und Geschichte apud BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto:

para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 179. 774 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 181. 775 Ibidem, p. 158. 776 Ibidem, p. 188-189. 777 Ibidem, p. 192. 778 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em

GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Colômbia: Universita Externado de Colombia, 2007, p. 214. 779 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 258.

177

ficção que encobriria sua função de explicar a decepção como se fosse algo isolado780,

não poderia contribuir para uma esclarecimento sobre a forma como são construídas as

semânticas de legitimação deste sistema, não mais relacionadas com o “respeito às

estruturas reais do mundo”781, mas com a compreensão de sua ficção densamente

elaborada? Isso não permitiria irritar produtivamente as pretensões reflexivas que são

produzidas no interior do sistema jurídico-penal e proporcionar um novo material de

pesquisa para a criminologia crítica?

Essas discussões já são suficientes para, a partir de agora, analisar como o sistema

jurídico é compreendido no interior da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos. Luhmann

escreveu sobre política, arte, direito, educação, família, economia, amor etc. Para o

projeto de pesquisa aqui desenvolvido importa sobremaneira compreender o que

Luhmann entende por direito, já que Jakobs refugia-se nas considerações “jurídicas”

luhmannianas em diversos momentos, como já destacado no primeiro capítulo.

2.6. O direito da sociedade mundial

2.6.1. Considerações preliminares

Após a década de 80, Luhmann aplica o referencial teórico da autopoiese para

analisar diversos sistemas (sociais). No ano de 1990 é publicado A economia da

sociedade, seguido em 1993 pelo O direito da sociedade e, em 1995, A arte da sociedade

é editada. Em entrevista concedida a Willis Santiago Guerra Filho, em 1993, no Recife,

o sociólogo alemão já manifestava sua intenção de publicar, algum dia, “um livro sobre

teoria da sociedade, trazendo uma visão de todo o conjunto, e sistematizando os resultados

parciais anteriormente obtidos”782. Isto aconteceria em 1997, com a edição de A sociedade

da sociedade, como já destacado. Postumamente foram publicados, em 1998, A política

da sociedade e A religião da sociedade. É importante destacar, uma vez mais, que o

conceito de autopoiese – introduzido em Sistemas sociais, em 1984 – não interrompe nem

780 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 53 [tradução livre do espanhol]. 781 ALAJIA, Alejandro, BATISTA, Nilo, SLOKAR, Alejandro, ZAFFARONI, E. Raúl. Direito penal

brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, 2006,

p. 175. 782 GUERRA, FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade pós-moderna: introdução a

uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 94.

178

desprestigia783 os estudos jurídicos de Luhmann anteriores à década de 80 (Os direitos

fundamentais como instituição, de 1965; Direito e automação na administração pública,

de 1966; Legitimação pelo procedimento, de 1969; Sociologia do direito, de 1972;

Sistema jurídico e dogmática jurídica, de 1974; Diferenciação do direito, de 1981), em

que pese ser possível observar algumas diferenças significativas diante do O direito da

sociedade784, como será destacado.

Diante de tão vasta produção, é evidente que não se pretende aqui abordar todo o

pensamento luhmanniano que se refere ao direito. Isso seria, além de impossível,

improdutivo. Como já salientado no início do capítulo, importa aqui apresentar as

fundamentais reflexões de Luhmann sobre a função do direito, sua relação com os temas

da positividade e da legitimação, além das relações entre autodescrições e

heterodescrições. Desde logo é importante destacar que ao estudar o direito Luhmann

utilizará todo o aparato teórico-metodológico presente em sua teoria da sociedade,

mantendo o compromisso com seus pontos de partida, e tendo como objetivo

compreender o direito como unidade através da teoria dos sistemas785, já que o ponto de

partida está na distinção entre sistema e ambiente.

Isso significa que o sistema jurídico não é nem mais nem menos importante que

os demais subsistemas da sociedade, ou seja, não é possível, a partir desta premissa

teórica, defender qualquer pretensão de regulação direta do direito em outras esferas

783 A diferença mais importante no âmbito da presente pesquisa refere-se ao conceito de norma, como será

demonstrado. Por enquanto basta destacar, nas palavras de Orlando Bôas Filho, que “a produção de

Luhmann sobre o direito é bastante vasta e abrange um período longo, de modo que muitas de suas obras

são anteriores à incorporação do conceito de autopoiesis em sua obra. Não obstante, não há uma ruptura na

obra de Luhmann que invalide seus escritos anteriores (...). Contudo, a introdução do novo paradigma da

autopoiesis irá trazer, para além de consideráveis mudanças terminológicas, uma maior radicalização no

tratamento do direito, que será concebido como um subsistema autorreferencial e autopoiético do sistema

social global”. Ver VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.

São Paulo: Max Limonad, 2006, p. 182. Ver também GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS

FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo:

Saraiva, 2013, p. 85. 784 Orlândo Bôas filho, seguindo Pierre Guibentif, apresenta um panorama geral das análises de Luhmann

sobre o direito, identificando três fases: (i) na primeira seria possível observar “obras de juristas

endereçadas a juristas”; (ii) na segunda encontraríamos “trabalhos sociológicos sobre o direito”; (iii) por

fim, na terceira fase seria possível observar o direito como sistema autopoiético. Ver VILLAS BÔAS

FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006, p.

182-183. Recentemente, segundo Guilherme Gonçalves e Orlando Bôas Filho, Pierre Guibentif passou a

indicar uma quarta fase, na qual teríamos relações entre sistemas sociais e o ser humano. Ver

GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito

e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 85, nota 43. 785 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 73. Por isso o sociólogo

afirma: “o programa da teoria implica que o direito mesmo é quem produz todas as distinções e descrições

que utiliza, e que a unidade do direito não é mais que o fato de sua autoprodução: autopoiesis”, em Ibidem,

p. 85 [tradução livre do espanhol].

179

funcionais, em que pese ser possível observar, talvez de forma mais clara do que em

outros âmbitos, a existência de uma cultura mundial do direito, em grande parte devido à

especial atenção que é dada às violações de direitos humanos786.

O direito é então compreendido como um sistema que tem sua própria função,

assim como o sistema político, econômico etc., e que, tal como a sociedade, tem a

comunicação como base para sua autopoiese. É a partir dessas considerações que o

sociólogo de Bielefed buscará demonstrar como a sua teoria encontra-se em melhores

condições para descrever o direito da sociedade mundial, indicando a identidade (pela

diferença) e os limites desse subsistema, e sustentando que o próprio objeto (o direito)

determina seus limites (fechamento operacional como consequência teórica do paradigma

da autopoiese)787. Daí sua afirmação de que “o direito mesmo determina, portanto, o que

pertence ao direito e o que não”788. Isto só é possível graças à explicação dos problemas

pela distinção sistema/ambiente, em substituição às explicações provenientes de

princípios. Essa é a condição para que se possa alcançar um entendimento razoável acerca

do direito da sociedade789, enquanto teoria social do direito decorrente das relações entre

teoria do direito e teoria da sociedade. E esta compreensão, destaque-se, já está presente

em 1969, quando afirma que o sistema conceitual jurídico “está completamente separado

das teorias científicas que se referem ao mundo que e como é”790.

Neste momento é importante fazer uma breve referência ao último tema da

presente exposição, como se aqui já se fizesse uma advertência inicial. Trata-se da

distinção entre teoria do direito, dogmática jurídica e sociologia do direito, ou seja, a

diferença entre modos de descrição do sistema jurídico a partir de duas possibilidades:

observação interna e observação externa, questão fundamental em O direito da sociedade

(1993) e ausente em Os direitos fundamentais como instituição (1965). A menção a estes

dois contextos tem um motivo: em sua obra (constantemente esquecida, talvez em virtude

da posterior “guinada autopoiética”) sobre os direitos fundamentais, Luhmann propõe um

786 Ibidem, p. 652. 787 Luhmann sustenta que a desvantagem de sua proposta, se é que poderia ser considerada como

desvantagem, está na extrema complexidade e abstração de seus conceitos. Ver Ibidem, p. 77. 788 Ibidem, p. 68 [tradução livre do espanhol]. Trata-se aqui da relação circular entre estrutura e operação,

no sentido de que “as estruturas somente podem ser criadas e alteradas por meio daquelas operações que,

por sua vez, se especificam mediante as estruturas”. Ver Ibidem, p. 91 [tradução livre do espanhol]. 789 Luhmann considera que a relação entre direito e sociedade é ambígua: “de um lado, a sociedade é o

ambiente do sistema jurídico; de outro, todas as operações do sistema jurídico são operações que se efetuam

dentro da sociedade; portanto, são operações da sociedade. O sistema jurídico realiza a sociedade enquanto

se diferencia dela”. Ver Ibidem, p. 89 [tradução livre do espanhol]. 790 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 42 [tradução livre do espanhol].

180

tipo de relação entre sociologia e dogmática jurídica bem particular, chegando a sustentar

que o método sociológico poderia até concorrer com o método dogmático no que tange à

interpretação constitucional dos direitos fundamentais791. Esta compreensão será

posteriormente suavizada em O direito da sociedade. É dizer, Luhmann tornar-se-á

“cético” na medida em que desenvolve os pressupostos da autopoiese em sua análise do

direito, trabalhando com as noções de acoplamento estrutural e, consequentemente, de

irritação não coordenada. Mas isso não implica invalidar as considerações feitas no livro

sobre os direitos fundamentais, pois nesta obra já se encontra o entendimento de que, a

partir da ideia de que tais direitos têm como função manter a diferenciação funcional e

evitar a tendência à politização dos diversos sistemas sociais parciais (o que significa o

afastamento de Luhmann diante da compreensão desses direitos a partir dos interesses do

indivíduo idealizado), a contribuição sociológica, capaz de demonstrar a

interdependência da tematização do direitos fundamentais nos diversos âmbitos

funcionais, e não somente na polarização Estado/cidadão típica do liberalismo que

bloqueia o conhecimento de uma realidade complexa, não deve ser considerada como

uma espécie de “direito natural sociológico”792. Ou seja, em que pese a pesquisa

sociológica não poder reclamar um valor interpretativo para a dogmática, e assim não

poder constituir um programa de decisão, em que pese tal “constatação negativa”, como

diz Luhmann793, ela pode dar como principal contribuição para a dogmática a reflexão

acerca da necessidade de execução legislativa dos direitos fundamentais como condição

fundamental para manutenção da diferenciação funcional da sociedade, oferecendo

“pontos de apoio suficientes para a valoração das soluções mais adequadas aos

problemas”794.

Que fique desde logo estabelecido: Luhmann não constrói uma teoria do direito,

mas uma teoria da sociedade, isto é, suas “considerações jurídicas” constituem-se como

observação externa795. Não pode haver dúvidas acerca das próprias palavras de Luhmann,

quando afirma que o destinatário da sociologia do direito não é o sistema jurídico, mas o

791 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 276. 792 Ibidem, p. 299. 793 Ibidem, p. 300. 794 Ibidem, p. 306 [tradução livre do italiano]. 795 “Renunciamos à ideia de uma teoria que pudesse orientar a prática, e descrevemos o sistema jurídico

como um sistema que se observa e se descreve a si mesmo e que, consequentemente, ao desenvolver suas

próprias teorias se comporta de maneira construtivista; é dizer, sem nenhuma intenção de representar o

mundo exterior ao sistema. Ver LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p.

77 [tradução livre do espanhol]. Ver também GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO,

Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva,

2013, p. 16.

181

sistema científico, e que apesar de todas as coincidências com as formulações teóricas do

direito, suas análises “devem evitar toda implicação normativa”796.

Feito este esclarecimento, uma abordagem inicial às análises do direito poderia

desde logo colocar a seguinte pergunta: qual problema social é resolvido pelo processo

de diferenciação de normas jurídicas no interior de um sistema jurídico? E a resposta

seria: “trata-se da função de estabilização das expectativas normativas através da

regulação da generalização temporal, material e social”797. Mas acrescente-se: “o direito

não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as

expectativas”798. Como tal função relaciona-se com o mencionado alívio? Para que isso

seja compreensível, alguns esclarecimentos são indispensáveis. Primeiramente é preciso

compreender a relação entre sistema jurídico e diferenciação funcional, para então

articular os entendimentos de Luhmann a respeito da função do direito com a distinção

entre expectativas cognitivas e normativas e com a positivação e legitimidade do direito.

Este passo será fundamental para que, após apresentarmos a última compreensão

luhmanniana acerca da função do sistema jurídico, seja possível analisar o derradeiro

conceito de norma799.

2.6.2. Entre funções do direito, expectativas e positivação: caminhos até a

autopoiese do sistema jurídico

Segundo Luhmann, descrever o direito a partir da teoria dos sistemas nos leva ao

estabelecimento de uma relação entre teoria do direito e teoria da sociedade. Entretanto,

a função acima mencionada - estabilização das expectativas normativas através da

regulação da generalização temporal, material e social – refere-se à segunda manifestação

796 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 85 [tradução livre do

espanhol]. Em 1965 o raciocínio não difere muito, em que pese ser possível uma interpretação mais

“favorável” à relação entre dogmática e sociologia: “Provavelmente a dogmática poderá reconhecer e

compreender melhor o próprio sentido e o sentido das decisões sobre normas de direito positivo que

interpreta, se o conhecimento das funções sociológicas à deixe informada sobre outras possibilidades de

solução dos problemas”. Ver LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo,

2002, p. 309 [tradução livre do italiano]. 797 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 188 [tradução livre do

espanhol]; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro,

1983, p.115. 798 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

115. 799 Como será enfatizado, em Os direitos fundamentais como instituição (1965) Luhmann apresenta seu

primeiro entendimento acerca da função do direito. Em Sociologia do direito (1972) e em Sobre a

diferenciação do direito (1981) tal entendimento é alterado e, por fim, em O direito da sociedade (1993)

Luhmann apresenta seu terceiro e último entendimento sobre a função do direito.

182

do sociólogo alemão sobre o tema. Em que pese existir ainda um terceiro entendimento,

em que o próprio Luhmann retifica suas considerações anteriores800, existe algo comum

a todas essas manifestações: o ponto de partida teórico jamais refere-se a algum valor ou

determinada norma, mas à relação entre direito e sociedade, posteriormente substituída

pela distinção sistema/ambiente. Dito isso, é importante notar que a quase identidade das

questões tratadas nos escritos das décadas de 70 e 80 em relação à grande obra da década

de 90 demonstram, como já salientado, que a incorporação do conceito de autopoiese não

significa uma ruptura, mas sim a radicalização de alguns desenvolvimentos teóricos,

principalmente no âmbito da função do direito.

Neste sentido, vale a pena ressaltar, ainda que sinteticamente, qual seria a primeira

função do direito apresentada por Luhmann. Em Os direitos fundamentais como

instituição (1965) o sociólogo alemão analisa o tratamento dogmático dado aos direitos

fundamentais, então compreendidos como valores imutáveis fundamentados ora de

acordo com o direito natural ora pela as ciências do espírito801, e salienta que a sociologia

interroga-se pela função desses direitos, chegando à ideia de institucionalização802. Aqui

importa compreender que os direitos fundamentais contribuem, enquanto estrutura social

e não como interesses do indivíduo idealizado, para a manutenção do “potencial de

diferenciação da sociedade”803 como racionalidade funcional, na medida em que têm

como função evitar que este tipo de diferenciação seja corrompida pelo sistema

político804. É neste contexto, em que a existência humana poderia ser libertada dos

“pesadíssimos fardos do ambiente natural e social que caracterizam nossa história”805,

que encontra-se uma primeira função do direito, já que este é apresentado como sendo

responsável por tornar segura esta ordem social, isto é, trata-se de compreender o direito

como suporte (base de apoio) da estrutura da ordem social, de tal forma que a ordem

jurídica seria assim considerada justa806.

800 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 192, nota 21. A correção

refere-se à “função secundária” do direito enquanto guia para comportamentos, como será destacado. 801 Para uma análise detalhada, ver o terceiro capítulo, em LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come

istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 79-98. 802 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 43-44 e nota 14.

Perceba-se que o conceito de instituição é, aqui, sociológico, e relaciona-se com a antecipação do consenso

e seu respectivo alargamento. 803 Ibidem, p. 68. 804 Ibidem, p. 78. 805 Ibidem, p. 293 [tradução livre do italiano]. 806 Ibidem, p. 268-271.

183

É fundamental perceber que esta interpretação – que quase sugere uma função

integrativa do direito, hipótese que também será descartada807 – será gradativamente

abandonada por Luhmann. Em Sociologia do direito (1972) o sociólogo alemão

restringirá consideravelmente a função do direito, tema anteriormente abordado em As

normas desde uma perspectiva sociológica (1969), momento em que já refletia sobre a

função do dever no âmbito da sociedade funcionalmente diferenciada. Dessa forma,

apesar de salientar que “o direito exerce uma função essencial, se não decisiva, no alcance

de uma complexidade mais alta e estruturada em sistemas sociais”808, e mesmo ressaltar

que “é necessário ver e pesquisar o direito como estrutura e a sociedade como sistema em

uma relação de interdependência recíproca”809, ao discutir a possibilidade de mudança

social juridicamente planejada, Luhmann sublinha que “a sociedade não pode ser

reconstruída apenas a partir de sua constituição jurídica”810, já que no contexto de uma

sociedade extremamente complexa e diferenciada funcionalmente “qualquer mudança

jurídica específica produz efeitos difusos”811. Diante deste novo quadro teórico, como

será formulada a função do direito?

A resposta está associada ao problema da dupla contingência (decorrente da

percepção de que tanto Alter como Ego observam suas seleções como contingentes812).

Uma vez que a complexidade e a contingência não podem ser eliminadas, o direito estará

atento com a possibilidade de coordenar seleções imprevisíveis. Para resolver este

problema Luhmann remete ao conceito de expectativas de expectativas. O que isso

significa? A ideia básica é que o mundo apresenta ao homem uma multiplicidade de

possíveis experiências e ações, em contraposição ao seu limitado potencial em termos de

percepção, assimilação de informação, e ação atual e consciente813. Daí a caracterização

807 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 183. 808 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

13. 809 Ibidem, p. 15. 810 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

121. 811 Ibidem, p. 131. Por isso Luhmann considera que “intervenções específicas no sistema jurídico de

sociedades altamente diferenciadas, em geral planejadas em termos unifuncionais, não podem ser

concebidas pelo padrão de interação elementar em termos de expectativa e satisfação, ou de ordem e

obediência. Elas atingem um sistema diferenciado, que abriga uma multiplicidade de relações

sitema/ambiente, e desencadeiam efeitos múltiplos igualmente diferenciados”, em Ibidem, p. 144. 812 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 141-171. 813 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

45. A relação entre as expectativas do homem num contexto de multiplicidade de experiências e ações é

desenvolvida por Tércio Sampaio: “Luhmann vê a sociedade como um sistema de interações. As interações

que podem ocorrer são infinitas, donde a sua complexidade. O sistema social consiste numa redução desta

complexidade, caso em que algumas interações são selecionadas. Em todo sistema pode ocorrer, porém,

que as interações selecionadas não se realizem, realizando-se outra que não hava sido prevista. Todo

184

dessas possibilidades como simultaneamente complexas e contingentes. Frente a essa

situação, são desenvolvidas estruturas para assimilar a experiência, absorvendo e

controlando o duplo problema da complexidade e contingência que, como salientado,

articulam-se com as seleções recíprocas de Alter e Ego. Perceba-se: é neste contexto em

que o dever, enquanto símbolo da preservação da expectativa (historicidade), resolve

problemas ligados ao “modo humano de relacionar-se com o mundo”814.

Segundo Luhmann, certas premissas da experimentação e do comportamento que

possibilitam um bom resultado seletivo são enfeixadas constituindo sistemas,

estabilizando-se frente a desapontamentos. É isso que permitirá a formação e

estabilização de expectativas com relação ao mundo circundante815. Entretanto, é

importante perceber que as expectativas não se referem à subjetividade, mas são

estruturas dos próprios sistemas sociais816. Feito este esclarecimento, dois tipos de

contingência podem ser observados: contingência simples e dupla contingência. Cada

uma desenvolve um tipo de expectativa, conforme a complexidade de cada situação.

Diante do primeiro tipo de contingência (simples) erigem-se estruturas estabilizadas de

expectativas que são mais ou menos imunes a desapontamentos, e Luhmann dá como

exemplo a perspectiva de que “à noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de

pé”817. Já no segundo tipo de contingência (dupla) observa-se a necessidade de outras

estruturas de expectativas (reflexivas), denominadas expectativas de expectativas. Aqui

entra em cena a noção de risco e complexidade decorrentes da liberdade de

comportamento dos outros homens, já que a conduta não pode ser compreendida como

fato determinado, como algo necessário, mas sim como algo possível, algo esperado,

expectável enquanto produto de uma seleção entre várias seleções possíveis. Luhmann

destaca que tal seleção é comandada pelas estruturas de expectativas do outro, e por isso

afirma que “para encontrar soluções bem integráveis, confiáveis, é necessário que se

possa ter expectativas não só sobre o comportamento, mas sobre as próprias expectativas

sistema, por isso, assume este risco, o risco da contingência que, em termos humanos, se traduz na angústia

das desilusões possíveis. O conhecimento diminui esta angústia, ao estabelecer regularidades em que

confiamos ao interagir”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica, p. 09. 814 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 31-33 [tradução livre do espanhol]. 815 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

46. 816 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 268-269. Segundo

Luhmann, “as estruturas transformam o indefinido em palpável, a amplidão em redução. Ver LUHMANN,

Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 54. 817 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

47.

185

do outro”818. Daí a noção de expectativas de expectativas, no sentido de que A tem uma

expectativa sobre a expectativa que B tem de A:

“Sob as condições da dupla contingência,

portanto, todo experimentar e todo agir social possui

uma dupla relevância: uma ao nível das expectativas

imediatas de comportamento, na satisfação ou no

desapontamento daquilo que se espera do outro; a outra

em termos de avaliação do significado do

comportamento próprio em relação à expectativa do

outro. Na área de integração entre esses dois planos é

que deve ser localizada a função do normativo – e assim

também do direito”819.

Como resultado, o trato social só é possível através da expectativa de expectativas,

que podem atingir outros planos de reflexividade, como as expectativas sobre

expectativas de expectativas, abrangendo uma série de temas e pessoas. Por isso Luhmann

afirma que, diferentemente do que ocorre com a natureza, a adaptação entre os homens é

dada não somente mediante expectativas de comportamento aprendidas, mas também

mediante expectativas de expectativas: “este esperar as expectativas alheias é algo

exigível a todo comportamento humano que leve em consideração o homem enquanto tal;

(...) tanto para a cooperação como para o conflito”820. Ocorre que, nessa situação, a

possibilidade de estabelecimento de orientações congruentes fica significativamente

reduzida. Se considerarmos sistemas sociais pequenos e constantes (como a família e

grupos de amigos), dita possibilidade ainda se apresenta de maneira mais palpável.

Entretanto, com a crescente complexidade dos sistemas sociais e,

consequentemente, com o aumento da complexidade dos riscos e erros, faz-se necessária

a criação de reduções e simplificações, indispensáveis na busca de orientação821. Ora, tais

818 Ibidem, p. 48. 819 Idem. 820 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 35 [tradução livre do espanhol]. É neste sentido que o

dever apresenta-se como algo despersonalizado, generalizável. 821 Segundo Tércio, “para sobreviver, o homem tem que desenvolver mecanismos que garantam, num certo

grau de confiança, as expectativas dos outros, as próprias e as seleções de expectativas que ambos fazem.

Conviver, assim, é assegurar-se contra desilusões. Estes mecanismos são estruturas que reduzem a

complexidade, instaurando-se, assim, os sistemas sociais, onde, então, as interações se tornam

186

simplificações necessitam de imunização contra o risco do erro, criando segurança em

termos de expectativas, à qual se segue, apenas secundariamente, a segurança sobre o

comportamento próprio e a previsibilidade do comportamento alheio. Por isso Luhmann

afirma, e isso já merece aqui o devido destaque, que a segurança na expectativas sobre

expectativas é muito mais importante que a segurança na satisfação de expectativas

enquanto comportamento próprio ou de terceiros822.

A relação entre expectativa e comportamento remete instantaneamente à função

do direito. Apesar de ainda não ser o momento adequado para aprofundar essa questão, é

razoável preparar o terreno recuperando a seguinte frase de Luhmann, já citada: “o direito

não é primariamente um ordenamento coativo, mas sim um alívio para as

expectativas”823. Que alívio é esse? Para o sociólogo de Bielefeld a orientação a partir da

norma dispensa a orientação a partir das expectativas, já que ela absorve o risco de erros

da expectativa e permite a suposição de que aquele que diverge age erradamente, ou seja,

resguarda-se a expectativa e imputa-se a defraudação à ação errada. Ora, aqui está

justamente o alívio que a norma possibilita à consciência no contexto da complexidade e

contingência824. Ocorre que, uma vez que as estruturas de expectativas constituem-se

como condensação entre variáveis, o problema da frustração dessas expectativas torna-se

então imanente.

A complexidade do mundo, a pluralidade de acontecimentos possíveis ou não,

fazem com que as estruturas de expectativas tenham que lidar com essa sobrecarga. Ou

seja, as expectativas reduzem a complexidade mediante a delimitação de um âmbito de

possibilidades de eleição. Isso significa que elas somente tornam as seleções prováveis, é

dizer, admite-se a frustração de expectativas como algo natural. Assim, toda e qualquer

expectativa pode ser frustrada, uma vez que ela mesma constitui-se como antecipação do

futuro, sempre contingente825. Por isso são necessários mecanismos de processamento

dinamicamente estáveis”. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, Função Social da Dogmática Jurídica, p.

104. 822 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p.33 e LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I.

Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 52. 823 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

115. 824 Ibidem, p. 53. 825 Por isso Luhmann afirma que “as expectativas sempre são experiências presente, na qual o tempo age

apenas como horizonte do que foi e do que será. Esse horizonte é considerado na experiência presente, na

medida em que presentifica-se o passado enquanto base de expectativas e o futuro enquanto possibilidade

de comportamento no caso de frustração”. LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de

Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 194.

187

dessas frustrações, que podem ocorrer de duas maneiras: (i) adaptando a expectativa à

situação fática (expectativa cognitiva) ou (ii) mantendo a expectativa contrafaticamente

(expectativa normativa)826. Assim, quando a expectativa desapontada adapta-se à

realidade decepcionante estamos diante de expectativas cognitivas. Por outro lado,

quando decide-se seguir a vida protestando contra a realidade decepcionante estamos

diante de expectativas normativas. Nas palavras do próprio Luhmann: “as expectativas

cognitivas são caracterizadas por uma nem sempre consciente disposição de assimilação

em termos de aprendizado, e as expectativas normativas, ao contrário, caracterizam-se

pela determinação em não assimilar os desapontamentos”827.

Entretanto, é fundamental perceber que tratam-se de dois tipos de estratégia

diferentes, mas funcionalmente equivalentes. Luhmann enfatiza que essa distinção não é

rígida, pois é possível que mesmo quando se tem expectativa cognitiva (quando há

possibilidade de assimilação), nem todo desapontamento leva à adaptação – pode-se

buscar explicações ad hoc, ou tratar o desapontamento como exceção. O mesmo ocorre

com as expectativas normativas, que também podem ser alteradas, já que a possibilidade

de continuidade de manutenção de expectativas normativas continuamente desapontadas

tem seus limites: “as placas de estacionamento proibido cercadas pelos carros parados

acabam por não mais provocar expectativas normativas, mas tão-só cognitivas: olha-se

para ver se há algum policial por perto”828. Assim, a sustentação ou renúncia depende da

relevância da expectativa e das chances de realizá-la. Neste contexto, vale a pena notar

que a compreensão luhmanniana da formação do direito não está sedimentada em uma

suposta hierarquia de fontes do direito, mas sim através de processos reflexivos da

826 “Ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são

adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém

as transgride”. É importante notar que é possível ter expectativas normativas anteriores à defraudação, pois

estas partem, sempre, da ideia de compartilhamento das mesmas. Essa questão será fundamental quando

discutirmos as críticas que Mariana Thorstensen Possas faz à presença de Luhmann em Jakobs. Por

enquanto basta destacar o exemplo da secretária: “No caso de esperar-se uma nova secretária, por exemplo,

a situação contém componentes de expectativas cognitivas e também normativas. Que ela seja jovem,

bonita, loura, só se pode esperar, quando muito, ao nível cognitivo; nesse sentido, é necessária a adaptação

no caso de desapontamentos, não fazendo questão de cabelo louro, exigindo que os cabelos sejam tingidos,

etc. Por outro lado espera-se normativamente que ela apresente determinadas capacidades de trabalho.

Ocorrendo desapontamentos nesse ponto, não se tem a sensação de que a expectativa estava errada”. Ver

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 56

(grifo acrescentado). O exemplo da secretária também pode ser encontrado em LUHMANN, Niklas. Las

normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral de la sociedad. Madrid:

Editorial Trotta, 2013, p. 39. 827 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Vol. I Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 56. 828 Ibidem, p. 63. Por isso Luhmann afirma que “a própria opção pelo estilo normativo ou cognitivo das

expectativas é mutável, e que, no correr do tempo, a norma pode deslocar-se do estilo normativo para a

tolerância do cognitivo (ou vice-versa)”, em Ibidem, p. 65.

188

expectativa de expectativas, que permitem uma diferenciação entre expectativas

cognitivas e normativas829. Mas como essas formas de reação diante da frustração

relacionam-se com o direito, mais especificamente, com a função do direito enquanto

generalização congruente de expectativas normativas nas dimensões de sentido temporal,

social e material830?

Em primeiro lugar importa considerar que, segundo Luhmann, a decisão entre

aprender ou não aprender é feita geralmente antes da própria defraudação: “a decisão é

dada de antemão ao indivíduo através do sistema social: através do fato de que se espera

normativamente que ele deva esperar normativa ou cognitivamente”831. Em que pese

existirem diversas expectativas cotidianas que não se deixam classificar como cognitivas

ou normativas, para salvaguardar estas são necessários desenvolvimentos de papeis

sociais específicos, como o do juiz, ao passo que para salvaguardar aquelas entram em

cena, por exemplo, a figura do intelectual e do mestre. Ocorre que, neste último caso,

observar-se-ia que tais papéis atuam para uma manutenção quase normativa dessas

expectativas na medida em que servem para a transmissão do saber recebido e para a

explicação das decepções. Dessa forma, Luhmann considera que há um desequilíbrio

entre o desenvolvimento dos papéis que auxiliam a tipificação de uma expectativa como

cognitiva ou normativa: “há, portanto, uma espécie de preferência natural pelas

expectativas e resoluções de decepção normativas” 832. Em segundo lugar, cumpre

observar que se a expectativa de tipo normativo cumpre tamanha função para o homem,

isso significa que deve-se abandonar a esperança de uma unificação social da vivência

normativa, já que a norma de um pode se converter em decepção do outro, naquilo que é

denominado como “problema da dupla decepção”833. Perceba-se: Luhmann é um teórico

do conflito, e é neste contexto em que o direito será chamado para desempenhar uma

função que resolva tal problemática.

Dito isso, seria oportuno compreender a possibilidade de resolução do quadro

traçado a partir da proximidade existente entre o conceito de expectativas normativas e o

conceito de norma jurídica enquanto “expectativas de comportamento estabilizadas em

829 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 40. 830 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

121; e LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 188. 831 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p; 40 [tradução livre do espanhol]. 832 Ibidem, p. 41 [tradução livre do espanhol]. 833 Ibidem, p. 46.

189

termos contrafáticos”834. Isso significa que a norma jurídica nada mais é do que a

normatização da expectativa, no sentido de dar suporte à estabilização da frustração por

meio de mecanismos que absorvem tal frustração, tais como a sanção e, por exemplo, o

ato de ignorar a violação da norma. É importante considerar, entretanto, que Luhmann

enfatiza que a sanção enquanto estratégia de estabilização contrafática não deveria levar

à tentativa de definição do conceito de norma como comportamento sancionado, já que

assim ignora-se que a manutenção da expectativa é muito mais importante que sua

implementação835.

Essa explicação é satisfatória? Segundo Luhmann, a resolução do problema da

dupla decepção não pode satisfatoriamente ser alocada na noção de dever, já que este

estabiliza somente a dimensão temporal, não abarcando as dimensões social e material.

Por isso afirma que a qualidade do dever nos proporciona duração, não consenso836. Ora,

para compreender adequadamente o que se entende por função do direito e sua relação

com a generalização de expectativas normativas é necessário relembrar o que Luhmann

entende por sentido.

No âmbito da teoria dos sistemas, como já destacado, o sentido é tido como

medium que possibilita a criação seletiva das formas sociais e psíquicas, tendo uma forma

específica: realidade e possibilidade. Trata-se de uma aquisição evolutiva que permite ao

sistema trabalhar a diferença sistema/ambiente. Essa forma específica do sentido é

realizada a partir de três dimensões que operam de forma autônoma: dimensão temporal,

social e material. Luhmann irá remeter a problemática das dimensões de sentido para o

âmbito do sistema jurídico, afirmando que o direito deverá produzir congruência seletiva

entre as três dimensões de sentido, a fim de assegurar a manutenção contrafática de

expectativas normativas837. Tal generalização é fundamental pois permite superar as

descontinuidades características de cada dimensão.

Na dimensão temporal a preocupação jurídica central está em imunizar as

expectativas normativas frente às desilusões. Para isso, são necessários mecanismos

capazes de neutralizar as expectativas dos acontecimentos individuais que lhe são

834 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

57. 835 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 44 e LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I.

Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 73. 836 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 47. 837 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

115.

190

contrários. Aqui está localizada a explicação da normatização da estabilização das

frustrações, tal como apresentado.

Já na dimensão social, o foco está em criar mecanismos abstratos que imunizem

o sistema jurídico do dissenso. Para contornar o problema decorrente do excesso de

interesses e comportamentos na sociedade moderna complexa, faz-se necessária a

institucionalização de expectativas de comportamentos838. Trata-se de um problema

extremamente complexo, já que envolve as já citadas expectativas de expectativas e as

expectativas de expectativas de expectativas, e assim por diante. Isso remete à questão

referente ao consenso e ao dissenso, tema de ampla discussão para os estudiosos do

direito. Luhmann considera muito rara a existência de um consenso fático pleno, e

defenderá a necessidade de se maximizar o mínimo consenso, de se expandir as

predisposições ao consenso839, ou então, de se provocar o consenso em caso de

necessidade840. Com isso, a institucionalização não amplia o consenso, mas o supõe a

partir de um mínimo existente, criando-se (ficção) uma abstração que imuniza o direito

em relação ao dissenso, sem, no entanto, eliminá-lo841. Por isso afirma que “aquele cujas

expectativas sejam contrárias à instituição, terá contra si o peso de uma auto-evidência

presumida”842. Se no âmbito da dimensão temporal o principal (mas não o único!)

mecanismo de absorção das frustrações é a sanção, na dimensão social Luhmann aponta

o contrato e o procedimento843. Isso, então, seria suficiente para resolver o problema da

dupla decepção?

Luhmann está ciente de que em sociedades complexas o número de possíveis

decepções aumenta. Neste contexto, o mecanismo de institucionalização já não pode

limitar-se a recorrer às expectativas protegidas, e terá que recorrer a “normas especiais”,

838 Ibidem, p. 77. 839 Ibidem, p. 79-80. 840 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 47. 841 Nesse sentido, Tércio Sampaio relaciona consenso, terceiros e instituições: “Ligando-se assim o

problema do consenso à questão da escassez de atenção de terceiros, podemos dizer que a função das

instituições não está na obtenção do consenso de fato, mas na economia do consenso. A questão não está

na produção do consenso, mas na poupança que, via de regra, é atingida através de uma antecipação do

consenso na expectativa de expectativa, que passa a ser um suposto e não precisa mais ser questionada

concretamente em cada caso. Justamente isto é que se obtém pela institucionalização, ou seja, a

possibilidade de supor consenso”. Ver FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, Função Social da Dogmática

Jurídica, p. 110. 842 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

81. Daí sua afirmação de que “as instituições se fundamental, então, não na concordância fática de

determináveis manifestações de opiniões, mas sim no sucesso ao superestimá-las”, em Ibidem, p. 84. 843 Ibidem, p. 81; LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 65 e 67. Complementar.

191

de tal maneira que o sociólogo chega mesmo a afirmar que a busca da resposta diante da

pergunta “como é possível que se institucionalizem as projeções precárias?” nos leva às

raízes do direito844. Isso pode ser reformulado como necessidade de generalização na

dimensão material de sentido, responsável por oferecer segurança contra contradições

entre interesses e expectativas comportamentais individualizadas, naquilo que Luhmann

denomina como “princípios de identificação”845. O risco referente à orientação a partir

das expectativas dos outros torna necessário um ponto de referência abstrato que oriente,

de forma coerente, as mais variadas manifestações sociais.

Em outras palavras, poder-se-ia dizer que trata-se de uma síntese de experiências

possíveis que oferecem conteúdo às expectativas. Daí Luhmann falar em “sínteses de

sentido”. Tais sínteses possibilitam a formação de um complexo feixe de diversas

expectativas possíveis846. Resumidamente, pode-se dizer que existem quatro tipos:

pessoas concretas, determinados papéis, determinados programas e determinados valores.

Enquanto os dois primeiros sofrem com os problemas da concretude, os dois últimos estão

expostos ao risco de elevada abstração847. Segundo Luhmann, a sociedade moderna

privilegia papéis e programas, já que estes permitem uma reprodução adequada da

complexidade social848, e por isso mesmo destaca a contínua diferenciação dinâmica de

papéis particulares para a administração da justiça como aspecto chave para se

compreender a resolução do problema da dupla decepção.

Aqui importa destacar brevemente a fundamental função desempenhada pela

sentença judicial, isto é, pela decisão do juiz (que cumpre um papel social), especialmente

nos casos de sanção jurídico-penal. Luhmann destaca que o sistema jurídico, no âmbito

de complexidade acima mencionado, e após institucionalizar suas normas, não poderá

mais cotidianamente explicar as defraudações a partir da figura, por exemplo, do “doente

mental”. É evidente que, em se tratando dos chamados inimputáveis, este tipo de

semântica termina o conflito. Entretanto, o que o sociólogo alemão procura destacar é que

para as expectativas normativamente institucionalizadas deverá ser também

844 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 50. 845 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

99. 846 Para uma análise detalhada acerca da sínteses de sentido, ver LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito.

Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 93-108. 847 Ibidem, p. 102-103. 848 Ibidem, p. 107-109.

192

institucionalizada uma explicação da decepção “em grande medida fictícia, a saber: a da

culpa individual”849. Vale a pena destacar o seguinte raciocínio de Luhmann:

“A vantagem tantas vezes mencionada, e que é tida como

um avanço na história do direito penal, a saber, a vantagem de

um ponto de referência para uns meios motivacionais de maior

qualidade e para uma atribuição mais precisa da ação à um

estado “interno”, constitui somente a mitologia da culpa e não

sua função. A função da culpa é possibilitar a redenção. A culpa

é uma explicação da decepção que permite isolar o

acontecimento decepcionante e não observá-lo como um

desastre imprevisível que deve continuar e que se prolonga aos

filhos e aos netos. Na medida em que a culpa serve de medida

para o castigo, ela põe, ao mesmo tempo, um fim às

consequências da ação, ao menos um fim “oficial”850.

Dessa breve apresentação das dimensões de sentido já é possível observar que elas

apresentam incongruências entre si. Ou seja, o processo de estabilização do sistema

jurídico irá depender da combinação da generalização nas três instâncias apresentadas.

Elas atuam conjuntamente, de maneira compatível, em uma relação de reciprocidade: a

seleção de uma dimensão delimita o campo do possível para seleção de outra dimensão.

São essas considerações que permitem compreender o segundo entendimento acerca da

função do direito apresentada por Luhmann enquanto estrutura de um sistema social que

tem como base a generalização congruente de expectativas normativas851. Também é

importante destacar que, neste momento (Sociologia do direito, 1972), Luhmann admite

uma função principal do direito – segurança das expectativas, principalmente enquanto

expectativas de expectativas – e uma função secundária – segurança do preenchimento

dessas expectativas através do comportamento esperado852, ideia que também estará

presente em Diferenciação do direito (1981)853.

849 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 53 [tradução livre do espanhol]. 850 Idem [tradução livre do espanhol]. 851 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

121. 852 Ibidem, p. 115. 853 LUHMANN, Niklas. Ausdifferenzierung des Rechts. Beiträge zur Rechtssoziologie und Rechtstheorie.

Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 73. Ainda que neste momento Luhmann já destacasse que a

193

Em que pese esta ênfase na função secundária do direito enquanto guia para

comportamentos, que depois será compreendida enquanto prestação do direito a outros

sistemas sociais, é importante destacar mais um raciocínio presente no já citado As

normas desde uma perspectiva sociológica (1969), em que Luhmann analisa algumas

particularidades do procedimento judicial fundamentais para a posterior discussão acerca

da função do direito em O direito da sociedade (1993). Embora o litígio (conflito de

expectativas normativas) seja um “conflito sobre o direito ao conflito”, os juízes

(novamente: que cumprem um papel social) transformam isso em uma divergência

cognitiva, isto é, constrói-se um cenário no qual as partes apresentam-se como dispostas

ao aprendizado, notadamente no âmbito dos fatos e das normas jurídicas. Tudo se passa

como se no procedimento jurídico as perturbações e as expectativas normativas fossem

estilizadas e transformadas, sendo apresentadas enquanto tipos cognitivos. Após a decisão

o resultado pode muito bem ser observado por um terceiro observador: o perdedor

presumidamente orientar-se-á pelo aprendizado já que sua concepção do mundo foi

substituída por uma sentença que determina o mundo, e o ganhador articulará esta

construção judicial do mundo como correspondente ao conhecimento do seu mundo, não

tendo motivo algum para refletir sobre como foi dada “razão” à sua construção854.

O ponto desconcertante disso tudo está em notar a improbabilidade do rendimento

exigido pelo processo judicial, já que as condições para o aprendizado em um

procedimento caracterizado por situações decepcionantes são bastante desfavoráveis.

Segundo Luhmann, somente sociedades muito complexas podem construir instituições

“tão inverossímeis”855, e aqui a positivação do direito joga um papel fundamental. Uma

vez mais questiona-se: como tal articulação é feita?

Neste momento – anterior à incorporação do conceito de autopoiese – o sociólogo

de Bielefeld articula o conceito de direito positivo com a capacidade de internalização da

modificação, isto é, enquanto experimentação constante e atual do direito que privilegia

o entendimento de que o direito é escolhido através de decisões e que sua vigência decorre

de decisões. Por isso o autor entende que “o direito positivo é irrestritamente determinado,

possibilidade de articulação dessas suas funções em um único instrumento jurídico seria limitada, fruto de

uma resposta precipitada [voreilig]. 854 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral

de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 54-55. 855Ibidem, 2013, p. 55.

194

mas não irrestritamente determinável”856. Ou seja, entra em cena a ideia de que tanto a

validação quanto o estabelecimento do direito remetem à decisão857, que também pode

ser modificada por outra decisão (daí o caráter contingente do direito), culminando no

entendimento de que “positividade significa variabilidade estrutural do direito”858.

Presume-se então que os afetados pelo direito devem aprender as modificações

desencadeadas pela positivação, isto é, exige-se uma predisposição primariamente

cognitiva frente ao direito. Entretanto, em O direito da sociedade, após a incorporação

do conceito de autopoiese, a questão da positividade é alocada na análise do fechamento

operacional do direito, isto é, enquanto articulação entre decisão acerca do código

lícito/ilícito e autopoiese do próprio sistema859. Mas este desenvolvimento não deve ser

compreendido somente como articulação entre decidibilidade e alterabilidade do sistema

jurídico. Como salienta Neves, a positividade do direito em Luhmann deve ser

compreendida como um movimento que parte da decidibilidade e chega à autopoiese. Ou

seja, afasta-se a crítica de Habermas que via o conceito de positividade como conceito

“decisionista”, nos moldes da teoria política de Carl Schmitt, uma vez que “se enfatiza

que o aspecto da decidibilidade fica subordinado à dimensão do fechamento ou autonomia

operacional”860.

Dito isso, e enfatizando novamente que a incorporação do paradigma da

autopoiese radicaliza a forma como Luhmann descreve o sistema jurídico, notadamente

no âmbito da função do direito, é interessante notar que em Sistemas sociais (1984) já se

observa tal transformação. Uma vez apresentado o primeiro conceito de função do direito,

em 1965, enquanto manutenção da estrutura da diferenciação funcional, e o segundo

conceito, em 1972 e 1981, enquanto estabilização contrafática de expectativas normativas

856 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983,

p.10. Isso já pode ser encontrado em LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari:

Dedalo, 2002, p. 82. 857 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito. Vol. I Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 237. 858 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983,

p.34. 859 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 70. Segundo Neves, “trata-

se, a rigor, de uma rearticulação do conceito, de acordo com a qual se enfatiza que o aspecto da

decidibilidade fica subordinado à dimensão do fechamento ou autonomia operacional. A positividade

significa que a decisão, mesmo se vier a alterar radicalmente o direito, receberá o seu significado normativo

do próprio sistema jurídico. Nessa perspectiva, a noção de autopoiese (autorreferência, autonomia ou

fechamento operacional, “autodeterminidade”) do direito passa a constituir o cerne do conceito de

positividade”. Ver NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins

Fontes, 2006, p. 80. 860 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.79-

80. Com isso também afasta-se a crítica de Tércio em FERAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da norma

jurídica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 174.

195

nas três dimensões de sentido (função primária) e guia para comportamento (função

secundária), no terceiro conceito referente à função do direito, em 1993, a função

secundária será transformada em prestação do direito, como será destacado861. O que deve

ser por enquanto salientado é que em 1984 Luhmann já enfatiza que o direito não tem

como função orientar comportamentos862, e reafirma, tal como já fizera nos escritos da

década de 70 e no início da década de 80, que o direito produz segurança para as

expectativas de comportamento num contexto de antecipação de possíveis conflitos863,

destacando que “a função do direito não consiste em cuidar que se atue legal o

ilegalmente” 864.

2.6.3. A função do direito a partir do paradigma autopoiético

Feitas essas primeiras considerações, a partir das quais foram destacados os dois

primeiros conceitos de função do direito e a forma como o paradigma da autopoiese

interfere nessas formulações, é importante compreender, ainda que de maneira

simplificada, como Luhmann analisa o sistema jurídico em O direito da sociedade

(1993)865. Como consequência da incorporação do conceito de autopoiese, Luhmann

861 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 114, nota 120. 862 De toda forma, é curioso notar que em Legitimação pelo procedimento (1969) Luhmann já afirmava

“que a transformação estrutural tem de dizer respeito a um contexto social de expectativas – e não a uma

personalidade individual – é, de resto, condição prévia para uma mudança efetiva de comportamento. A

adoção duma nova cocenpção de direito, sugerida pela decisão oficial, sozinha significaria pouco. A

conformidade atingida por este meio é, muitas vezes, sobreestimada pelos sociólogos e, em primeiro lugar,

mesmo pelas teorias jurídicas pré-sociológicas, que pretendem que todos os problemas se podem resolver

pela divulgação das convicções certas. Na verdade, ainda está por resolver em sociologia o problema da

eficácia de ação de alterações de orientação e só é certo que, de novas orientações, não decorre sem mais

nada um comportamento correspondente”. Ver LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p.34 [ênfase adicionada]. 863 “O direito só trata de evitar a aparição violenta de um conflito e de colocar à disposição a forma de

comunicação adequada para cada conflito”, em LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos

Editorial, 1998, p. 338 [tradução livre do espanhol]. 864 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 339 [destaque

acrescentado]. Além disso importa considerar, como mencionado por Willis Guerra Filho, que nesta obra

da década de 80 as expectativas cognitivas e normativas parecem se interpenetrarem. Ver GUERRA

FILHO, Willis Santiago & GARBELLINI, CARNIO, Henrique (col.). Teoria da ciência jurídica. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 214. De fato, Luhmann afirma que “a mescla de componentes de expectativas

cognitivas e normativas é uma situação cotidianamente normal e requer uma grande destreza (com os

correspondentes problemas de sintonização a referentes à conduta social) para dosificar as reações segundo

as decepções”. Ver LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 293

[tradução livre do espanhol]. 865 É importa perceber que essa diferenciação entre conceitos referentes à função do direito é, acima de

tudo, didática, e não deve levar à interpretação de descontinuidade entre os escritos. Neste trabalho não é

possível aprofundar um tema que parecer dar unidade às transformações observadas: o conceito de sistema

imunológico. Se em Os direitos fundamentais como instituição (1965) o conceito não aparece, isso não

impede Luhmann de salientar que o direito tem a tarefa de manter segura a estrutura da diferenciação

196

sublinha o fato de que o direito constrói sua realidade a partir daquelas operações que

reproduzem o sentido específico do direito, isto é, mediante operações recursivamente

fechadas, e isso nada mais é do que o desenvolvimento da premissa construtivista radical,

que Luhmann denomina de “construtivismo operativo”866. Ou seja, uma vez que a

diferenciação funcional da sociedade, como resposta ao crescimento da complexidade

social, manifesta-se a partir da criação de sistemas sociais parciais responsáveis por

solucionar problemas sociais específicos, a positividade do direito será considerada como

“seletividade intensificada do direito”, apta à preencher a função de estabelecimento da

congruência tridimensional já assinalada867. Como será destacado, essa construção será

responsável por fornecer uma nova roupagem ao tema da legitimidade do direito.

Por isso é importante aprofundar um pouco mais a relação entre autopoiese e

fechamento operacional. No fluxo comunicativo social, as comunicações jurídicas são

responsáveis por produzirem e conservarem estruturas sociais, permitindo assim que as

operações seguintes possam ser enlaçadas, confirmando ou modificando as delimitações

previamente estabelecidas (estruturas). É por esta razão que Luhmann compreende o

direito (e qualquer outro sistema autopoiético) como “sistema histórico” ou “máquina

histórica”868, no sentido de que cada operação autopoiética modifica o sistema869.

Entretanto, é fundamental perceber a possibilidade de serem observadas determinadas

funcional (ver LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 268).

Ocorre que, em Sistemas sociais (1984), o sociólogo afirma, valendo-se da ideia de sistema imunológico

enquanto sistema responsável por proteger a própria autopoiese, que o direito deve cumprir a função de um

sistema de imunidade, assegurando o quanto possível a autopoiese do sistema de comunicação representado

pela sociedade contra perturbações internas (ver LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México:

Anthropos Editorial, 1998, p. 339), ideia que não se afasta, em que pese a nova nomenclatura, a concepção

apresentada no livro sobre os direitos fundamentais. De toda forma, em O direito da sociedade (1993)

Luhmann afirma que “se vemos o sistema jurídico como um modo de introduzir e integrar um futuro aberto

à sociedade, podemos entende-lo igualmente como o “sistema imunológico” desta” (ver LUHMANN,

Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 642). Para uma proposta atual que explore essa

questão, articulando a noção de luhmanniana de sistema imunológico com a ideia de auto-imunidade de

Derrida, ver GUERRA FILHO, Willis Santiago. Luhmann and Derrida: Immunology and Autopoiesis, em

LA COUR, Anders & PHILOPPOPOULOS-MIHALOPOULOS, Andreas. Luhmann observed. Radical

theoretical encounters. Inglaterra: Palgrave Macmillan, 2013, p. 227- 242. Uma construção que vê na

imunologia uma mudança no paradigma autopoiético, ver GUERRA FILHO, Willis Santiago. Imunologia:

mudança no paradigma autopoiético?, em Campo Jurídico, vol. 2, n. 1, p. 157-174. 866 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 97. 867 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

237-238. 868 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 105 e 113. Para uma discussão

acerca da relação de simultaneidade entre sistema e ambiente, ver Ibidem, p. 101. 869 Pode-se também compreender o direito como “máquina não-trivial”: “Sendo sinteticamente

determinado, ele é analiticamente indeterminável; sendo dependente do passado, ele é imprevisível. A

indeterminação do direito aparece assim directamente relacionada com a sua autonomia”, em TEUBNER,

Günther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 04.

197

características (operações), intituladas “unidades emergentes” do sistema870. Assim, o

direito pressupõe que sua comunicação funciona, podendo ser entendida ou não, aceita

ou rechaçada871, mas sempre partindo da premissa de que o sistema opera em contínuo

contato consigo mesmo. Perceba-se que isso vale, também, para o direito penal.

Entretanto, não no sentido dado por Zaffaroni, que critica o discurso jurídico-penal por

construir ficções e metáforas “inventados ou trazidos de fora, sem nunca operar com

dados concretos da realidade social”872. O problema “real” está em questionar qual

“realidade” Zaffaroni observa, e, principalmente, como a realidade jurídico-penal é

construída internamente.

Essas formulações, entretanto, não são suficientes para garantir o fechamento

operacional do direito (naquele sentido de positividade mencionado) enquanto sistema

autopoiético. Ainda falta um processo de distinção especificamente jurídico, uma redução

de complexidade singular para que seja possível considerar o sistema jurídico como

sistema autônomo873. Para tanto é imprescindível o desenvolvimento de uma função

jurídica e o estabelecimento de um código jurídico, pois somente quando estes são

tomados conjuntamente produzem o efeito (comunicação jurídica) de que as operações

jurídicas possam se distinguir e reproduzir a partir delas mesmas874, sem qualquer input,

já que não há qualquer comunicação jurídica fora do sistema jurídico.

Quando o sistema jurídico leva em consideração fatos externos, ele o faz enquanto

diferença interna que faz a diferença, isto é, atribui ao ambiente conhecimentos, e não

normas, e tudo isto é uma operação interna e não uma processo de transferência de

informação do ambiente para o sistema. Daí a afirmação de Luhmann de que “a distinção

entre fechado operativamente e aberto cognitivamente se pratica somente dentro do

sistema”875. Com isso explicita-se que o direito só pode reconhecer seus próprios limites.

Esta é a razão pela qual Luhmann sustenta que deve corrigir algumas colocações presentes

em Sociologia do direito (1972) e Diferenciação do direito (1981), nos quais a

importância do código jurídico não tinha sido devidamente analisada e aprofundada876.

870 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 109. 871 Ibidem, p. 112. 872 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. A perda de legitimidade do sistema penal.

5ª edição. 2ª reimpressão. Rio de Janeiro: Revan, 2012, p. 48. 873 A relação entre autonomia e autopoiese é, segundo o próprio Luhmann, dura: ou se dá ou não se dá. Ver

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 121. 874 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 116. 875 Ibidem, p. 141 [tradução livre do espanhol]. 876 Ibidem, p. 128, nota 61.

198

Entretanto, vale a pena atentar que o código, por si só, não permite que o sistema

se feche, já que sempre resta a alternativa entre o valor positivo (lícito) e o valor negativo

(ilícito). Como já destacado, aqui são fundamentais os programas condicionais enquanto

regras (legislação) que decidem acerca de qual valor deve prevalecer, isto é, que

possibilitam o processamento de cognições (capacidade de adequação) dentro do sistema.

Por isso Luhmann sustenta que a programação complementa a codificação fornecendo

conteúdo, de tal forma que o sistema concede a possibilidade de alterações sem o temor

de perda de identidade877.

Neste contexto, é importante destacar que Luhmann compreende a unidade do

direito não como uma premissa, mas como resultado das operações jurídicas, como algo

que emerge enquanto símbolo de validade jurídica878. Este símbolo não possui um valor

intrínseco, e significa unicamente aceitação da comunicação no contexto dinâmico do

sistema jurídico. Perceba-se: esta descrição é uma heterobservação. No plano da

autodescrição existem inúmeras propostas para o problema da unidade do direito: fontes

do direito; norma fundamental (hipotética ou fictícia) de Kelsen; ênfase na Constituição

ou na regra de reconhecimento de Hart. Ocorre que, desde um ponto de vista sociológico,

externo, a referência à unidade será substituída por uma representação de enlace que

remete ao código, enquanto indicador da autorreferência879.

Ou seja, a validade é um “valor distintivo”, um “símbolo de associação” resultado

da realização recursiva das operações do próprio sistema, compreendo-a como forma que

marca a diferença entre dois lados: válido/inválido. É fundamental perceber que essas

considerações são feitas por um observador que considera a validade desde uma

perspectiva temporal, isto é, limitada no tempo como duração perceptível de determinada

norma enquanto válida. Por isso Luhmann afirma que a única base da validade está “na

simultaneidade de todas as operações fáticas do sistema sociedade e de seu ambiente:

tudo o que sucede, acontece simultaneamente no agora – e não no passado nem no

877 Ibidem, p. 252. Aqui está a noção de segurança jurídica, que remete à certeza de julgamento de casos

pelo código jurídico, e que se diferencia da questão referente à previsibilidade das decisões dos tribunais.

Uma análise exaustiva da relação entre codificação e programação pode ser encontrada no 4º capítulo do

livro. Guilherme Leite e Orlando Bôas Filho ressaltam que “apenas os programas têm um status normativo

e conferem uma qualidade normativa às expectativas concretas”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite &

VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas

Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 113. 878 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 154. 879 Ibidem, p. 129.

199

futuro”880. Isso significa que o sistema jurídico (mas não só ele), incapaz de determinar o

tempo, constrói uma semântica cronológica do mesmo, valendo-se de ficções/imputações

que supõem a confirmação de sua validade.

Essa construção teórica faz com que o consenso seja negado enquanto condição

da validade jurídica881. Como, então, Luhmann encara o problema da legitimidade do

direito, já destacado? Em absoluto respeito às suas premissas, o sociólogo alemão não

buscará uma saída apelando para valores ou princípios, nem aceitará uma proposta que

parta da ideia de formação discursiva de uma racionalidade pública com vistas ao

estabelecimento de um consenso882. A resposta luhmanniana só poderá ser localizada,

então, no interior do próprio sistema jurídico, no âmbito da discussão acerca de como o

sistema organiza seu fechamento operacional, substituindo os antigos fundamentos

jusnaturalistas.

É neste contexto que Orlando Bôas Filho destaca que o transporte do problema da

validação das normas para dentro do sistema jurídico “torna ainda mais inquietante a

questão da legitimação”, já que esta deve favorecer a implementação da função do direito

– estabilização contrafática de expectativas normativas –, notadamente na dimensão

social de sentido, sem contradizer os pressupostos “da autorreferêncialidade inerente aos

demais subsistemas, ao sistema social global e também aos sistemas psíquicos” 883. Por

isso Luhmann resolve o problema ao apresentar o conceito de legitimidade como “uma

disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de

certos limites de tolerância”, no sentido amplo de “estabelecer a legitimidade sobre o

reconhecimento das decisões como obrigatórias”884, enfatizando assim sua dimensão

social enquanto institucionalização, já que os próprios procedimentos são apresentados

880 Ibidem, p. 166 [tradução livre do espanhol]. Isso parece não ter irritado a dogmática jurídico-penal

dominante a ponto de questionar a semântica da prevenção do direito penal, tema que será abordado no

próximo capítulo. 881 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 147.

Para uma discussão sobre a relação entre legitimidade e democracia, ver LUHMANN, Niklas. Sociologia

do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 63 e seguintes. 882 Orlando Bôas Filho destaca que “na perspectiva da teoria dos sistemas fica excluída logo de início toda

e qualquer solução teórica que, tal como a de Habermas, suponha orientações de cunho normativo, uma vez

que não se pode recorrer a uma instância que sirva de equivalente ao “mundo da vida”, entendido como

“horizonte” ou “pano de fundo” (Hintergrund) do agir comunicativo”. Ver VILLAS BÔAS FILHO,

Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 169. 883 VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 172. Para uma discussão aprofundada, ver VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o

direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 169-176 e GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS

BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 142-149. 884 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980,

p. 30 e 32.

200

como sistemas sociais que possuem a função específica de produzir decisões

vinculantes885. Como consequência do anti-humanismo metodológico presente na teoria

luhmanniana, observa-se que “a legitimidade do direito não pode ser dependente de que

entrem em função determinadas estruturas motivacionais psíquicas”886.

Tal conceito de legitimidade sem qualquer verniz normativo, obtida a partir de

uma perspectiva sistêmica, cumpre destacar, é suficiente para os propósitos de

Luhmann887. E isso também permite observar que o direito não possui um papel de

integração social. Por isso o sociólogo de Bielefeld afirma que “a relevância social do

direito é inegável; sua função integradora, entretanto, pode ser colocada em dúvida”888. E

o questionamento parte, uma vez mais, da análise do tempo do direito e da tentativa de

encobrir a indeterminabilidade do futuro mediante a construção (ficção) da função

motivacional do direito. Aqui está a simbologia do dever-ser das expectativas e a premissa

para as teorias imperativistas da norma generalizada, fundamentais para a construção de

segurança em um horizonte de incerteza inerente889.

Esse ocultamento traz à tona a questão referente à função do direito, já que esta

articula-se com os custos sociais decorrentes dos enlaçamentos temporais efetuados pelas

expectativas. Como já mencionado, Luhmann reafirma, dando continuidade às reflexões

presentes em Sociologia do direito (1972) e Diferenciação do direito (1981), a função de

estabilização generalizada das expectativas normativas nas três dimensões de sentido,

salientando uma vez mais que a segurança conquistada neste contexto refere-se à

expectativa. É importante perceber que não escapa às considerações do sociólogo alemão

a necessidade do direito se impor, demonstrando assim quais expectativas possuem

respaldo social ou não, como também não passa desapercebido que o direito também

possui “propensão às crises de confiança que são transmitidas simbolicamente”, hipótese

885 Ibidem, p. 39. 886 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

68. 887 VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 174-176. Guilherme Gonçalves e Orlando Bôas Filho destacam que “a definição da legitimidade em

termos de disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido é totalmente

compatível com a função que o direito visa desenvolver, pois, ao garantir a disposição para a aceitação das

decisões, ela garante a implementação fática do direito em para uma teoria funcionalista, isso basta”. Ver

GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais. Direito

e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 146-147. 888 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 183 [tradução livre do

espanhol]. 889 Ibidem, p. 186. Para uma abordagem crítica da evolução da noção de “certeza do direito” nas concepções

formas e materiais do direito, ver GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São

Paulo: Saraiva, 2013, p. 157-208.

201

em que o direto “tem que recorrer a formas mais naturais para restaurar, de novo, a

confiança”890.

De toda forma, fato é que em O direito da sociedade (1993) Luhmann assevera

que quando se trata de diferenciação de um sistema social, este só pode desempenhar

somente uma função para sociedade891. Isso traz consequências para a ideia de função

primária e secundária do direito, tal como apresentadas nos escritos da década de 70 e 80,

e acaba repercutindo no conceito de norma jurídica. Luhmann enfatiza que a partir da

definição funcional do direito a norma jurídica não será compreendida a partir de alguma

essencialidade que a caracterizaria, mas como distinção referida às possibilidades de

comportamento diante da frustração de uma expectativa: renúncia à expectativa ou

manutenção da mesma. Por isso afirma que o conceito de norma enquanto expectativa de

conduta estabilizada contrafaticamente “determina um lado de uma forma que tem

(também) dois lados”892.

O aspecto fundamental desta definição funcional da norma está em desconsiderar

a tomada de decisão prévia a respeito das motivações para cumprir ou não tais normas. E

isso significa que agora o sociólogo alemão afasta-se das teorias do direito tradicionais

que supõem que a norma se constitua a partir das motivações que levam ao seu

cumprimento, enfatizando que sua função não é orientar motivações, não é assegurar um

determinado comportamento. Daí a frase de Teubner: “o veneno da recursividade pode

ser fatal para as frágeis construções teóricas jus-efetivistas”893. A norma somente protege

quem tem esta expectativa, e com isso Luhmann destaca que a existência de uma segunda

função do direito – referente à orientação da conduta – dificultaria o próprio fechamento

operacional do sistema jurídico894. Para exemplificar a capacidade dessa formulação

teórica de responder à pergunta pela capacidade de sustentabilidade de uma norma diante

890 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 189 [tradução livre do

espanhol]. Que o recurso a essas “formas naturais” possa ter alguma relação com a expansão do direito

penal e, principalmente, com a expansão da pena privativa de liberdade, é um hipótese de pesquisa que

pode ser desenvolvida. 891 Idem. 892 Ibidem, p. 190-191. Destaque-se também que a partir desta compreensão “nos desviamos, também, em

outro sentido, do tradicional tratamento da teoria do direito. Não determinamos o direito a partir de certo

tipo de normas, é dizer, não de acordo com um cosmos ordenado por essências que se estrutura segundo

gêneros e espécies. Consideramos a norma como uma das formas da função geral de estabilização, que

adquire qualidade jurídica porque é diferenciada dentro do sistema jurídico. Isto não é senão uma

consequência da teoria dos sistemas autopoiéticos que postula: sistemas deste tipo produzem seus próprios

elementos e, por eles, suas próprias estruturas”. Ver Ibidem, p. 193 [tradução livre do espanhol]. 893 TEUBNER, Günther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicapa: Editora Unimep, 2005, p. 37. 894 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 192-193, com destaque para

a nota 21, na qual faz referência aos trabalhos anteriores (Sociologia do direito e Diferenciação do direito)

em que defendia esta segunda função do direito enquanto guia para o comportamento.

202

de uma realidade fortemente adversa, Luhmann faz um paralelo com a sociedade norte-

americana de 1776, na qual a promulgação de direitos humanos convivia com uma

sociedade que permitia a escravidão, expropriações massivas e limitações drásticas da

liberdade religiosa895.

Cumpre destacar, entretanto, que a ideia de guia de comportamento não é

eliminada, mas realocada para o nível da prestação do direito frente aos outros sistemas

sociais, na qual também observa-se a resolução de conflitos896. É importante perceber que

a não satisfação da prestação do direito não repercute na função do direito. E isso é

particularmente natural para Luhmann, já que o sociólogo enfatiza a relação entre

prestação do direito e desenvolvimento de equivalentes funcionais em outros sistemas

sociais como forma de assegurar o comportamento desejado, principalmente devido ao

fato de que o direito já não é capaz de garantir, suficientemente, tais condutas897.

Antes de abordar o último tema de análise, referente à relação entre autodescrições

e heterodescrições, cumpre ainda esmiuçar um pouco mais essa relação entre segurança

de expectativa e certeza de comportamento, questionando: uma vez que o direito positivo

“nada tem a ver com equilíbrio, eliminação de conflitos ou funcionamento harmônico e

sem choques da sociedade”898, como então se relaciona a sociedade e seu direito? Qual

será a certeza do direito?

Essas questões dizem respeito à possibilidade de construção estável do tempo pelo

direito. Em 1969 Luhmann já afirmava que o sentido do processo jurídico está em

absorver incertezas através de graus de seleção, de tal forma que os participantes do

processo possuem “a certeza de que será tomada uma decisão; e a incerteza quanto à

natureza desta”, o que lhe permite considerar a incerteza quanto ao resultado o aspecto

essencial do procedimento jurídico899. Este entendimento não é alterado pela

895 Ibidem, p. 192. 896 Ibidem, p. 215. 897Ibidem, p. 216. Em sentido próximo, Campilongo realça que “em sistemas altamente diferenciados, não

se afasta a hipótese de que o direito seja substituído por outros equivalentes funcionais, por formas

alternativas de resolução dos conflitos ou, melhor ainda, por alternativas funcionais ao direito – e não um

direito alternativo”, em CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2011, p. 148. 898 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Das certezas incertas: posfácio sobre a contingência, e,

GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 267. 899 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980,

p. 45-46. Segundo Guilherme Gonçalves, “as regras procedimentais aumentam, simultaneamente, a

cognição do magistrado – a verdade suficiente – e a incerteza do êxito. Isso porque a legitimação pelo

procedimento não se refere às decisões corretas ou justas, mas à certeza de que, até a decisão, o processo

gera incerteza sobre quem será a parte vencedora”. Ver GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre

certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 254.

203

incorporação do conceito de autopoiese, como era de se esperar. Pense-se, por exemplo,

na consideração de Luhmann, em 1993, acerca da chamada “segurança jurídica” que, no

âmbito das relações entre código e programas, garante que as questões levadas ao sistema

jurídico serão (certeza) contempladas a partir do código lícito/ilícito, ao mesmo tempo

em que não garante nem determina (incerteza) qual será a decisão tomada pelo tribunal900.

De forma mais clara ainda, a compreensão da norma jurídica (expectativa normativa)

enquanto projeção temporal faz com que sua própria validade seja considerada

provisória, isto é, contingente, razão pela qual Luhmann afirma que também essas normas

se convertem em algo cognitivamente dotado de sensibilidade. Consequência: “o direito

da sociedade moderna deve avançar sem um futuro certo”901.

Quando Luhmann afirma que aquele que deposita sua confiança no direito pode

realmente contar com um apoio jurídico em casos de defraudações de expectativas, mas

que este mesmo indivíduo não pode contar com a hipótese de que o direito mantenha sua

validade, isto é, que o símbolo que enlaça as expectativas normativas cultive-se

permanentemente, isto significa que mesmo as expectativas normativas sofrem

modificações902, o que dificulta a compreensão de construções que partem do

entendimento, atribuído à teoria luhmanniana, de que tais expectativas manifestam “a

identidade da sociedade” (compreensão estática) e de que o indivíduo deveria dar

garantias de se comportar (manutenção do papel social de cidadão fiel ao direito) de

acordo com elas, como observado no primeiro capítulo após a apresentação da presença

de Luhmann em Jakobs903.

Dito isso, e uma vez que o direito é considerado como um modo de “introduzir e

integrar um futuro aberto à sociedade”904, importa destacar no momento a presença

daquilo que Guilherme Gonçalves denomina como dois paradoxos constitutivos do

direito. E aqui, uma vez mais, é importante mencionar a ideia de estabilidade temporal

enquanto tentativa normativa de repressão da contingência das teorias do direito que,

900 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 253. 901 Ibidem, p. 634 [tradução livre do espanhol]. 902 Ibidem, p. 635. 903 JAKOBS, Günther. Imputación jurídico-penal, desarrollo del sistema con base en las condiciones de la

vigencia de la norma, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa

de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004, p. 76; JAKOBS, Günther. La ciencia del derecho penal ante las

exigencias del presente, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa

de la sociedad. Madrid: Civitas, 2004, p. 28; JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática

jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003, p. 47-74. A contraposição entre os dois autores será feita no próximo

capítulo. 904 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 642 [tradução livre do

espanhol].

204

como já destacado, ocorrem simultaneamente à fragmentação inerente da sociedade

funcionalmente diferenciada905. Para que isso seja possível, entra em cena novamente a

semântica do tempo cronológico, “segundo a qual de um ponto do presente é possível

determinar ações futuras e, por conseguinte, quando o futuro se tornar presente, ter

segurança quando ao passado”906, fundamental para a semântica da prevenção jurídico-

penal.

Entretanto, dessa forma ignora-se a dimensão complexa do tempo articulada à

circularidade do mesmo. Uma vez que as decisões deste momento levam em consideração

o momento seguinte (contingente!) enquanto forma de adequabilidade daquela decisão

(pense-se aqui, por exemplo, nos juízos a respeito da reincidência (objetivada) como

elemento orientador de decisões no âmbito processual penal), então a projeção dos efeitos

da decisão não pode ter qualquer relação com uma linearidade entre “antes” e “depois”907.

Essa constatação permite observar a função do direito de garantir segurança às

expectativas a partir de um outro prisma. Uma vez que o direito não dá certeza alguma

quanto ao comportamento, isto é, quanto à confirmação daquela expectativa normativa,

isso significa, para além da compreensão de que as frustrações são inerentes, que a norma

jurídica é uma forma artificial de vinculação do tempo que tem como objetivo construir

confiança social. Ocorre que, na interpretação de Gonçalves, as expectativas normativas

ocultam uma especial relação inerente à própria positivação do direito, qual seja a

conservação da certeza do ambiente por meio da incerteza do direito. Isso significa que

ao reduzir a incerteza social do ambiente através da forma expectativa normativa, o

próprio direito aumenta sua incerteza interna. Como isso ocorre?

Trata-se aqui da premissa já apresentada de que para diminuir a complexidade

externa o sistema aumenta sua complexidade interna. Assim, ao efetuar esse processo o

direito produz uma série de novos elementos e estruturas. Disso deriva “o primeiro

paradoxo constitutivo do direito”: que “as expectativas normativas, como certezas do

905 Segundo Guilherme Gonçalves, “as teorias jurídicas modernas surgem da angústia das consciências e

buscam conter a contingência pelo recurso a valores universais que buscam transformar o direito em um

centro de certeza. Note-se que o processo é paradoxal: a sociedade moderna instaura formas jurídicas

contingentes e complexas que, por sua vez, ativam semânticas totalizantes que as reprimem e representam

o direito como um sistema de controle das possibilidades sociais”. Ver GONCALVES, Guilherme Leite.

Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 162. 906 Ibidem, p. 212. 907 Ibidem, p. 213-214. Assim, “o “antes” não leva ao “depois” planejado, nem o “depois” ao “antes” mais

adequado. No meio desse percurso, existe o presente, dotado de infinitas possibilidades tanto em relação

ao passado quando ao futuro. Quando se decide com base naquilo que não se pode efetivamente conhecer,

exposições a riscos e a eventos danosos são inevitáveis. Não há espaço para seguranças absolutas”. Em

GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 215.

205

ambiente, são incertezas do direito”908, de tal forma que a variabilidade das expectativas

normativas por meio da positivação nada mais é do que a manifestação da adaptação das

formas jurídicas às transformações sociais909.

O “segundo paradoxo constitutivo do direito” está no código comunicativo. De

acordo com Luhmann o direito é composto por programas condicionais, no estilo “se,

então”, que muitas vezes apresentam problemas de compatibilidade (pense-se na ideia de

que o direito novo se sobrepõe ao antigo, e na outra que prevê a primazia do direito

constitucional, etc.)910. Pois bem, os programas introduzem problemáticas do ambiente

no interior do sistema jurídico aumentando o número de direitos e garantias. Essa situação

acaba criando dificuldades para a tomada de decisão que, entretanto, serão contornadas

pela aplicação do código do direito: lícito/ilícito. Isso, entretanto, não leva à segurança

alguma, uma vez que a decisão pode variar entre um lado e outro, como já destacado. Daí

o paradoxo: uma vez que a incerteza da oscilação de uma decisão entre lícito/ilícito é a

única certeza do direito, “o código lícito/ilícito reduz a incerteza do direito, aumentando

a incerteza da sociedade911.

É a partir dessas reflexões que a relação entre autodescrições e heterodescrições

do sistema jurídico ganha especial relevância. Entenda-se: no primeiro capítulo foi

destacado que um dos principais rechaços à teoria luhmanniana refere-se à sua

incapacidade crítica. Entretanto, a partir do arcabouço teórico apresentado neste capítulo

pode-se perceber, em primeiro lugar, de que forma o radicalismo construtivista

luhmanniano permite uma teoria social do direito (heterobservação) que afasta-se

radicalmente das autodescrições tradicionais do sistema jurídico. Temas como os de

hierarquia de normas, fontes do direito, norma fundamental, legitimidade, regulação de

comportamentos, entre outros, são observados a partir de premissas que distanciam-se da

tradição vétero-européia, já que nem mesmo a ruptura em relação aos fundamentos

tradicionais do pensamento jurídico, naquilo que se denominou como positivismo

jurídico, foi suficientemente abrupta para suscitar reflexões de caráter epistemológico no

âmbito da cognição912.

908 Ibidem, p. 246. Dialogando com a interpretação marxista feita por De Giorgi, Guilherme Gonçalves

afirma: “esse paradoxo está associado ao modo de produção do sistema jurídico. Expectativas normativas

não derivam de nenhuma premissa natural. Ao contrário, por meio de uma abstração, o sistema jurídico

produz igualdade formal (não natural), ocultando diferenças reais”. 909 Ibidem, p. 248. 910 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedade. México: Herder, 2005, p. 263 911 GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 250. 912 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 586.

206

Mas não se trata aqui de “somente” uma outra discrição. O ponto alto da proposta

luhmanniana está justamente em trabalhar com os pontos cegos das observações internas

dos sistemas, sendo isto uma consequência, dentre outras, da fundamental articulação

entre observações de primeira ordem e de segunda ordem. Como já destacado, na

observação de primeira ordem as distinções são utilizadas sem que se perceba a criação

de contingência, já que o movimento (que consome tempo) de designação do “unmarked

space” para o “marked space” apresenta-se na própria execução da operação de

observação. Somente na observação de segunda ordem há espaço para a inclusão de

contingência, pois como observação da observação aquilo que é observado depende

sempre de quem observa. Perceba-se: a observação de segunda ordem não deixa de ser

uma observação de primeira ordem, na medida em que ela também utiliza uma distinção

para marcar um espaço (observar uma observação). Entretanto, este tipo de observação

(de um segundo observador) também observa o que o observador observa e como ele

observa, podendo inclusive observar o que o observador não observou, e assim ver que o

observador não observa que não observa o que não observa913. Este é o contexto a partir

do qual Luhmann sentencia: “Eu vejo algo que vocês não veem”914.

Ora, se por um lado é certo que a teoria dos sistemas autopoiéticos sociais também

possui pontos cegos, por outro parece razoável sustentar que suas descrições, na medida

em que observam aspectos não observáveis pelas semânticas internas dos sistemas,

poderiam produtivamente irritá-las. É neste sentido que defende-se uma “potência

crítica”915 da proposta luhmanniana, ou reivindica-se “um status crítico à teoria dos

sistemas”916. Trata-se aqui do desenvolvimento de uma imagem construída pelo próprio

Luhmann: que sua teoria, “enquanto forma de acoplamento estrutural do sistema da

913 Nas palavras de Luhmann: “O observador de primeira ordem – é dizer, a comunicação social normal –

observa o mundo (para retomar a fórmula de Maturana) em um “nicho”; por isso para ele o mundo está

dado onticamente. Sua filosofia seria uma ontologia. O observador de segunda ordem, em troca, pode

reconhecer uma relação sistema/ambiente que poderia estar organizada no mundo dado para ele (em seu

nicho) também de outra maneira. Aquilo que o observador de primeira ordem vê e aquilo que não vê, para

o observador de segunda ordem depende de quais distinções são postas na base da observação e estas

sempre poderiam ser outras distinções”. Ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México:

Herder, 2007, p. 888 [tradução livre do espanhol]. 914 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction, Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 187

[tradução livre do inglês]. 915 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Potência crítica da ideia de direito como um sistema social

autopoiético na sociedade mundial contemporânea, em SCHWARTZ, Germano (org.). Juridicização das

esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Livraria do

Advogado, 2012, p. 59. 916 GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 216.

207

ciência, se utilize junto com as teorias reflexivas dos sistemas funcionais”917. Este é o link

para o último tema do capítulo.

2.6.4. Sobre autodescrição e heterodescrição

Para Luhmann, a sociologia observa o direito desde uma perspectiva externa

(heterodescrição), e o jurista desde uma perspectiva interna (autodescrição)918. Neste

sentido, teoria do direito [Rechtstheorie] e dogmática jurídica [juristische Dogmaitk]

seriam formas de autodescrição, isto é, níveis de reflexão responsáveis por fornecer ao

sistema jurídico “uma versão simplificada da complexidade operacional que lhe é

constitutiva”919, e a necessidade de distinção entre as duas seria uma consequência

provocada pela diferenciação funcional da sociedade entre um sistema jurídico e um

sistema científico, pressuposto para que se possa refletir sobre a função da dogmática

jurídica920. Assim, se por um lado a característica principal da dogmática jurídica está na

proibição de negação, no sentido de que depende da “inegabilidade dos pontos de partida”

(por levar em consideração os interesses do legislador), o que diminui sua possibilidade

de crítica, por outro sua “função positiva” está em promover uma utilização flexível do

material jurídico, razão pela qual Luhmann sustenta que a dogmática relaciona-se com a

produção de dúvidas, “com o aumento de incertezas suportáveis”921. Já a teoria do direito

seria o nível de reflexão “com disposição para a crítica”922, responsável por oferecer uma

representação da unidade, função, autonomia e indiferença do sistema jurídico923,

917 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedade. México: Herder, 2005, p. 618 [tradução livre do

espanhol]. 918 Ibidem, p. 69. 919 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 150. 920 LUHMANN, Niklas. Sistema giuridico e dogmatica giuridca. Bolonha: Il Mulino, 1978, p. 39. 921 Ibidem, p. 46 [tradução livre do italiano]. Para uma análise da dogmática jurídica enquanto “instância

instrumental de viabilização do direito”, ver FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, Função Social da

Dogmática Jurídica. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980, p. 117. 922 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 71 [tradução livre do

espanhol]. 923 Ibidem, p. 571. Marcelo Neves esclarece que em Sistema jurídico e dogmática jurídica (1974) Luhmann

incluía a teoria do direito dentro do sistema científico. Isto foi alterado em escritos posteriores, quando ela

é definida como autorreflexão do sistema jurídico. Para uma discussão acerca do entendimento da

dogmática jurídica enquanto teoria reflexiva, e sobre a capacidade limitada de crítica da teoria do direito

em face do sistema jurídico, ver NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2007, p. 154, nota 125.

208

lembrando-se, entretanto, que a possibilidade crítica de uma autodescrição não pode

colocar em dúvida a própria premissa de formação do sistema.924

Uma vez que a teoria sociológica do direito é uma descrição externa do sistema

jurídico, sua principal vantagem é poder trabalhar com perspectivas incongruentes, não

estando obrigada a respeitar normas internas, nem costumes. Entretanto, tal teoria deve

descrever seu objeto tal como os juristas o entendem. Por isso Luhmann afirma que seu

objeto de estudo é um objeto que se observa e descreve a si mesmo925. Para que isso fique

claro, é fundamental destrinchar um pouco mais a relação entre autodescrições do sistema

jurídico e sociologia.

As autodescrições são observações de segunda ordem, e buscam representar a

unidade do sistema no interior do próprio sistema. Por isso Luhmann estabelece que a

autodescrição (reflexão) seria a tematização do próprio sistema no qual a operação

autodescritiva acontece926. A principal consequência deste enquadramento teórico é que

as autodescrições possuem como limite as próprias restrições do sistema, de tal forma

que o direito as confere um estatuto normativo927. Ou seja, uma teoria do direito não pode

compreender a norma jurídica como um fato social (o que significa que a distinção entre

fatos e normas é uma distinção interna ao sistema jurídico), e por isso mesmo compreende

a norma como aquilo que é devido, nem pode duvidar que as pessoas se orientem pelo

norma “válida”, caso contrário a própria autodescrição não poderia se diferenciar da

descrição externa (sociológica, por exemplo). Por isso Luhmann afirma que “a função de

estabilização da expectativa se interpreta como uma indicação de comportamento”928. É

importante notar, entretanto, que trata-se justamente de uma interpretação que, mediante

a articulação entre programas normativos e código jurídico, torna possível a construção

de uma identidade ao sistema.

Esta identidade está intimamente relacionada com o problema da decibilidade do

direito, uma vez que este é abordado como instância de decisão. Aqui reside, segundo

Luhmann, o “problema distintivo” da autodescrição jurídica, que relaciona-se com os dois

paradoxos do direito acima apresentados e, naturalmente, com o problema do

enlaçamento do tempo: o sistema jurídico promete uma resposta aos diversos

924 LUHMANN, Niklas. LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p.

395. 925 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 70 e 568. 926 Ibidem, p. 569. 927 Ibidem, p. 131. 928 Ibidem, p. 573 [tradução livre do espanhol].

209

questionamentos que lhe são direcionados, e simultaneamente obriga todas suas

operações a partirem da existência (futura) de tal resposta. Vale a pena destacar, neste

contexto, as tentativas de fundamentação externa da unidade do sistema jurídico, por

exemplo no âmbito religioso, econômico, ou científico, sendo que neste último observa-

se a tentativa kelseniana de considerar a Grundnorm como hipótese do pensamento, ou

seja, como condição para o conhecimento científico do direito929.

É justamente neste ponto que a abordagem luhmanniana pode apresentar-se

frutífera, já que diante dessas externalizações “uma crítica por parte da teoria dos sistemas

encontra aqui material amplo de ação”930. O motivo? Ela parte da diferença, da distinção

entre sistema e ambiente, algo que as outras teorias não fazem, e consequentemente

consegue observar, primeiramente, as inúmeras controvérsias931 decorrentes da busca

pelos fundamentos da ordem jurídica no sistema ou no ambiente e, em segundo lugar, a

partir de suas próprias premissas, ela pode observar que o problema da unidade relaciona-

se com a distinção observação/descrição, isto é, que a unidade é resultado da realização

da própria operação que, como já destacado, é inobservável enquanto observação de

primeira ordem. Consequentemente há um deslocamento do recurso à unidade para o

caráter fechado do sistema, no sentido de fechamento operacional já apresentado, e isto

nada mais é do que o resultado de que “em descrições policontexturais a unidade só pode

ser expressada na forma de observação de segunda ordem”932.

Aqui é importante destacar que o desgaste de fundamentação cosmológica da

ordem social, exacerbado com a diferenciação funcional da sociedade, dificulta a resposta

pela decisão acerca daquilo que possui ou não validade jurídica. Já foi apresentado a

reposta luhmanniana que, enquanto descrição externa, desenvolve a ideia de símbolo de

929 Ibidem, p. 576. Uma análise sobre as relações entre direito natural e direito positivo a partir de arcabouço

teórico, ver Ibidem, p. 579-592. 930 Ibidem p. 578 [tradução livre do espanhol] (ênfase acrescentada). Na introdução à edição italiana de

Diferenciação do direito [Ausdifferenzierung des Rechts], Raffaele De Giorgi faz um balanço sobre a teoria

jurídica dos anos 1970, e salienta que “a ciência jurídica não pode enfrentar o problema da variabilidade

estrutural do direito positivo porque não “tematizou” o acréscimo evolutivo implícito na positivação do

direito e porque assentou premissas exteriores ao sistema jurídico para enfrentar o problema dos limites e

do controle da variabilidade estrutural do direito”. Ver DE GIORGI, Raffaele. Luhmann e a teoria jurídica

dos anos 1970, em CAMPILONGO, Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. 2ª ed. São Paulo:

Saraiva, 2011, p. 180. 931 “A aparente desconexão, a diversidade daquilo que se repete, o final colocado no início, permitem-nos

ver a historicidade do direito, isto é, a sua compatibilidade, a paradoxalidade da sua constituição, a sua

capacidade de se autocondicionar e de operar com uma pluralidade de autodescrições que não se deixam

ligar a um princípio unitário”, em DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o

futuro. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris Editora, 1998, p. 78. 932 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 904 [tradução livre do

espanhol].

210

validade. Isso, como já destacado, não pode ser aceito pelo sistema jurídico pois, em que

pese constituir material cognitivo fundamental para sua relação simultânea com o

ambiente, é o direito que processa o conhecimento de forma jurídica: “duplica a realidade

em termos normativos”933. Daí as construções autodescritivas a partir de ideias como

fontes do direito, Constituição etc. O que Luhmann quer destacar com tudo isso é que o

fracasso teórico das observações internas de tentar coincidir validade e fundamentação

do direito, e por isso as caracteriza como obstáculos epistemológicos (Bachelard)934.

Faz-se necessário, então, uma teoria que comporte maior complexidade e que não

oculte as dependências socais, “ecológicas”, do direito. Luhmann exemplifica isso com

uma alteração de pergunta: não mais “o que deve ser considerado como direito tendo

como base a fonte de direito determinante?”, mas sim “como o sistema faz o que faz?”,

ou “como encadeia operações entre si diante de um irritação permanente por parte do

ambiente?”935. É isto o que possibilita a compreensão do fechamento operacional como

ponto de partida para a compreensão da autonomia funcional do direito. Entretanto, como

pode-se perceber, um acesso desse tipo não é possível no interior do sistema, é dizer, o

questionamento da unidade do sistema jurídico enquanto condição de sua operatividade

enclausurada só pode ser construído no ambiente. Em outras palavras: as autodescrições

não podem observar isso. Mas se as comunicações jurídicas só existem no interior do

sistema jurídico, e não são não permitidas referências externas na teoria luhmanniana,

como então tematizar essas fundamentais heterodescrições?

Este é o ponto chave da relação entre dogmática jurídica/teoria do direito e

sociologia do direito. Partindo-se da premissa de que é necessário encontrar

autodescrições capazes de se sustentar nos dias de hoje, isto é, capazes de lidar com a

relação de aumento da complexidade interna do direito pela redução da complexidade

externa do ambiente, a pergunta pela utilidade da teoria sociológica ganha destaque,

notadamente devido aos próprios bloqueios da construção teórica da autopoiese936.

Luhmann responde que não há muito o que dizer a favor da utilidade da teoria sociológica

em geral e da teoria da sociedade em particular para a autodescrição do sistema

933 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e diferenciação social. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 92. 934 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 603. 935 Ibidem, p. 607. 936 Uma análise interessante a respeito da “utilidade” da teoria luhmanniana para os juristas pode ser

encontrada em KING, Michael. What’s the use of Luhmann’s Theory?, em KING, Michael &

THORNHILL, Chris. Luhmann on law and politics. Oxford: Hart Publishing, 2006, p. 37-52.

211

jurídico937. Entretanto, o sociólogo alemão salienta que isso se deve, principalmente, às

análises empíricas convencionais da sociologia, que acabam não descrevendo o sistema

jurídico como sistema jurídico. Mas, diante de uma outra teoria sociológica, sedimentada

nas premissas aqui exaustivamente colocadas, ou seja, uma proposta mais complexa que

inicie pela reflexão da diferença como consequência do processo de diferenciação

funcional entre os sistemas, se este for o ponto de partida, então seria possível explicar

por que existe um abismo entre autodescrições e heterodescrições e, dessa forma, propor

“conceitos de mediação provenientes da descrição externa (sociológica)”938.

Perceba-se: aqui está a hipótese que orienta uma parte desta pesquisa, qual seja a

possibilidade da teoria autopoiética dos sistemas sociais acoplar-se estruturalmente à

dogmática jurídico-penal. Uma mediação analítica ousada poderia partir da ideia de que

uma visão global do direito permite “interpretar a lógica da normatização à luz da

realidade histórica e social em que ela é concretizada”939 e, fazendo as ressalvas inerentes

ao conceito de realidade histórica e social (processo de diferenciação social), sustentar

que, se por um lado tal aproximação “acarreta uma canalização da irritação por meio da

inclusão/exclusão de possibilidades que preserva a autonomia”940 tanto do sistema

jurídico quanto do sistema científico (descrição sociológica), por outro não exclui que a

dogmática jurídico-penal, ainda fortemente enlaçada pela semântica liberal e ontológica,

possa então integrar autodescrições e heterodescrições941. Dessa forma, o

desenvolvimento crítico da teoria luhmanniana942 poderia contribuir para o processo de

937 “A autodescrição do sistema jurídico toma como ponto de partida o código deste. A descrição

sociológica usual do aparato jurídico desenvolveu enfoques completamente diversos, de fato, praticamente

contrários – e subversivos se levado em consideração o parecer dos juristas”. Ver LUHMANN, Niklas. El

derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 614 [tradução livre do espanhol]. 938 Ibidem, p. 617 [tradução livre do espanhol]. Já em 1972 o sociólogo afirmava que “a sociologia do

direito, graças à sua maior complexidade e ao seu campo de comparação mais distendido, possibilita à

teoria do direito localizar seus conceitos fundamentais como decisões de estruturas, que são contingentes

mas significantes”, em LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 191. 939 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 188. 940 GONÇALVES, Guilherme Leite & VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas sociais.

Direito e Sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 152. Uma relação mais

“afável” entre sociologia e dogmática jurídica é proposta em Os direitos fundamentais como instituição

(1965), quando o conceito de autopoiese ainda estava ausente. Ver LUHMANN, Niklas. I diritti

fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 295-315. 941 Trata-se de um argumento expansivo, já que Luhmann não exclui a possibilidade a teoria do direito

integrar as descrições mencionadas. Ver LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder,

2005, p. 77. 942 Note-se que a ênfase está no desenvolvimento da proposta luhmanniana, no sentido de que é necessário,

utilizando a expressão de Guilherme Leite, irritar a teoria autopoiética, isto é, “alargar o horizonte cognitivo

da teoria dos sistemas sociais de Luhmann”. Ver GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e

212

superação do chamado “atraso da chamada ciência jurídico-penal”, já que esta lida

somente com a realidade simbólica do direito, isto é, com a condensação de sentido

derivada de uma observação interna já estabelecida por processos de seleção943.

Neste contexto, o próximo capítulo, ao fazer um balanço da controversa relação

entre Jakobs e Luhmann e demonstrar a potencialidade crítica da teoria dos sistemas

sociais, além de permitir uma avaliação das proposições inseridas no projeto de

(re)normatização da dogmática jurídico-penal, e com isso possibilitar a irritação

produtiva das pretensões reflexivas que são produzidas no interior do sistema jurídico-

penal, também abre espaço para o desenvolvimento de uma nova agenda de pesquisa para

a criminologia crítica.

teoria dos sistemas. Notas para uma agenda de pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto &

BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 272. 943 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. II. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

190.

213

III CAPÍTULO – Entre dogmática jurídico-penal e criminologia crítica:

possibilidades de relacionamento a partir da teoria luhmanniana

3. Breves apontamentos para a consideração da presença de Luhmann em

Jakobs

Antes de qualquer consideração acerca da possível relação entre teoria dos

sistemas sociais autopoiéticos, direito penal e criminologia crítica, é fundamental deixar

claro uma vez mais em que medida se entende essa relação. Não se trata, como já

enfatizado no capítulo anterior, de transporte teórico de uma teoria formulada no âmbito

do sistema científico para outros âmbitos, mas sim da compreensão de que sua

potencialidade crítica pode contribuir para que aquele abismo entre autodescrições e

heterodescrições mencionado no capítulo anterior possa ser confrontado com “conceitos

de mediação provenientes da descrição externa”944. Como já destacado, a hipótese da

presente pesquisa é que o radicalismo construtivista luhmanniano ignorado por Jakobs

em escritos da segunda fase e da ponte para a terceira fase poderia potencializá-los

criticamente, isto é, irritar produtivamente as pretensões reflexivas que são produzidas no

interior do sistema jurídico-penal, desqualificando teoricamente os avanços normativos

típicos da terceira fase e contribuindo, assim, tanto para o desenvolvimento de uma nova

agenda de pesquisa para a dogmática jurídico-penal quanto para a criminologia crítica.

Para demonstrar a plausibilidade desta hipótese, o primeiro capítulo apresentou as

variações na teoria da pena de Jakobs e a forma como o material de estímulo luhmanniano

é traduzido em cada fase (elementos de condensação), além de enfatizar como a chamada

“prevenção geral positiva” manifesta-se nas três fases destacadas. Também foi possível

perceber como autores estrangeiros e nacionais observam o chamado “funcionalismo

radical”, notadamente no que tange à chamada presença de Luhmann em Jakobs, e pode-

se até mesmo notar a associação feita entre a premissa luhmanniana e o direito penal do

inimigo. Por fim, a exposição também demonstrou como a teoria de Luhmann manifesta-

se nessas fases, seja de maneira “positiva” ou “negativa”, salientando, principalmente,

quais críticas são feitas por Jakobs ao sociólogo de Bielefeld.

Tendo desenvolvido este mapeamento, o segundo capítulo foi responsável por

expor as características fundamentais da macrossociologia luhmanniana. Além de

944 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 617 [tradução livre do

espanhol].

214

destacar seu contexto filosófico e os obstáculos epistemológicos que pretendia superar

tendo como objetivo a construção de uma teoria capaz de descrever a sociedade atual, a

pesquisa apresentou os principais conceitos que caracterizam o radicalismo

epistemológico e sociológico de Luhmann, enfatizando as dificuldades que a teoria

enfrentou ao abordar o tema da exclusão social e como este permite compreender os

paradoxos da sociedade funcionalmente diferenciada, servindo como importante estímulo

para o contínuo processo de alargamento cognitivo da teoria dos sistemas sociais

autopoiético. Por fim, ao final do capítulo anterior analisou-se a forma como este arsenal

teórico foi incorporado na análise do direito da sociedade, notadamente no âmbito da

função do direito e nas particulares relações entre autodescrições e heterodescrições.

Como já destacado na introdução, este capítulo está dividido em duas partes. A

primeira está dividida em duas etapas. Inicialmente, a pesquisa até aqui desenvolvida

passará por um teste de produtividade. Assim, após breve retomada das valorações

negativas diante da presença de Luhmann em Jakobs, expostas no primeiro capítulo e

que, como já destacado, possuem o grave problema de ignorarem o potencial crítico

inserido no construtivismo radical luhmanniano enquanto crítica à distinção

sujeito/objeto, serão apresentados três estudos que pretendem analisar justamente o

sentido dado pelo penalista de Bonn aos conceitos da teoria autopoiética dos sistemas

sociais (respectivamente, de Juan Garcia Amado, Bernardo Feijoo Sánchez e Mariana

Thorstensen Possas). Entrará em cena, então, o mencionado teste, já que tais estudos

poderiam esgotar a hipótese de pesquisa aqui defendida, demonstrando então a

capacidade de rendimento crítico da teoria autopoiética para a dogmática jurídico-penal

e para a criminologia crítica. Entretanto, como será demonstrado, isso não ocorre por dois

motivos: primeiramente, porque os dois primeiros estudos negam qualquer capacidade

crítica à teoria luhmanniana, evidenciando a incompreensão do real sentido do

construtivismo radical enquanto crítica e alternativa à distinção sujeito/objeto, sendo por

isso insuficientes para a sequência da pesquisa; em segundo lugar, porque o terceiro

estudo, em que pese atentar para a capacidade crítica do pensamento de Luhmann e

questionar o sentido dado por Jakobs aos conceitos sociológicos, não articula

consistentemente isso com o construtivismo radical luhmanniano, nem considera a

evolução do pensamento do penalista de Bonn, bloqueando assim o desenvolvimento da

hipótese de pesquisa mencionada.

No entanto, é importante considerar que não era objetivo da autora brasileira

esgotar a capacidade de rendimento da macrossociologia luhmanniana (o que sequer seria

215

possível), e sim apenas problematizar a forma como Jakobs (entretanto, como destacado,

sem mencionar as fases deste autor) apropria-se de alguns conceitos de Luhmann. Isso

significa que seu estudo deixa em aberto a possibilidade de desenvolvimento desta

contribuição luhmanniana, principalmente devido ao argumento de que o potencial

inovador da teoria autopoiética dos sistemas sociais teria sido perdido nas análises feitas

pelo penalista de Bonn945, como será demonstrado.

Assim, diante desta porta aberta e do amplo material recolhido nos primeiros

capítulos, a segunda etapa terá como objetivo efetuar uma contraposição crítica acerca da

presença de Luhmann em Jakobs a partir do seguinte raciocínio: se Jakobs analisa a

preponderância do sistema econômico e sua força para exigir do direito penal a defesa

cognitiva da configuração social afastando-se de Luhmann946, e na terceira fase recupera

o pensamento do sociólogo alemão para estabelecer a salvaguarda cognitiva da vigência

da norma através da dor penal947, seria o caso de considerar que o radicalismo

construtivista luhmanniano, ignorado por Jakobs em seus escritos da segunda fase e da

ponte para a terceira fase, poderia potencializar criticamente seus escritos enquanto

irritação produtiva das pretensões reflexivas produzidas no interior do sistema jurídico-

penal, o que também permitiria desqualificar teoricamente os avanços normativos da

terceira fase que desembocam no “Direito penal do inimigo”. Com isso, o objetivo desta

primeira parte será alcançar uma primeira proposta de conclusão parcial, qual seja que

o radicalismo luhmanniano não tematizado por Jakobs, nem pela crítica, nem por parte

da crítica da crítica, pode contribuir, enquanto potencialidade crítica, para irritar

produtivamente as pretensões reflexivas que são produzidas no interior do sistema

jurídico-penal, possibilitando assim uma nova agenda de pesquisa para a dogmática

jurídico-penal.

Este raciocínio leva à segunda parte deste capítulo, em que se procurará explorar

os traços gerais de uma possível articulação entre criminologia crítica e teoria dos

sistemas sociais. Isso será desenvolvido em duas etapas. Na primeira será feita uma

945 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 273, 302 e ss. 946 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 58, nota 84 e JAKOBS,

Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em GÓMEZ JARA-

DÍEZ, Carlos (Coord.). Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación.Colômbia: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 213-214, nota 11; JAKOBS, Günther.

Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la

configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 68. 947 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 140, nota 141.

216

aproximação geral ao pensamento criminológico através da análise da capacidade da

teoria luhmanniana desqualificar a chamada “ideologia da defesa social”, premissa das

escolas clássica e positiva. Como isso será feito? Após breve retomada dos argumentos

levantados na primeira parte, que demonstram a capacidade crítica da macrossociologia

luhmanniana, será destacado que este material permite uma aproximação à teoria marxista

do direito. Se a diferenciação funcional não pode realizar o postulado da inclusão total,

de tal forma que a estratificação social acaba sendo um subproduto dos sistemas

funcionais948, e se o meta-código da inclusão/exclusão social pode mediatizar todos os

outros códigos949, então não seria possível negar a existência de “uma efetiva acumulação

seletiva de oportunidades comunicativas que repõe a totalidade social como uma escala

multidimensional de desigualdade”950, o que significa que a construção formal da

igualdade jurídica é uma ficção jurídico-penal que oculta o fato de que as exclusões

sociais em cadeia contradizem o projeto da sociedade moderna funcionalmente

diferenciada, tal como destacado no capítulo anterior.

Ora, isso está muito próximo do argumento colocado por Baratta951 quando

sustenta, em diálogo com a teoria marxista do direito, que o direito penal revela, como

todo direito burguês, a contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de

direito e desigualdade substancial dos indivíduos, “que, nesse caso, se manifesta em

relação às chances de serem definidos e controlados como desviantes”952. Tamanha

proximidade permite considerar a capacidade da teoria luhmanniana questionar, valendo-

se do “alargamento cognitivo”953 já destacado, um dos pilares fundamentais da ideologia

da defesa social, qual seja o princípio da igualdade (a lei penal é igual para todos, de tal

forma que a reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos). Se Baratta

apresenta diversas teorias que negam cada um dos seis princípios, aqui será analisada,

948 LUHMANN, Niklas. Beyond barbarism, em MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls

to systems. Illinois: Open Court, 2006, p. 264. 949 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 661. 950 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 238. 951 É importante perceber que um diálogo com Baratta estaria longe de ser um absurdo, já que o autor

italiano “tinha um enorme fascínio pelo pensamento de Luhmann”. Ver DE GIORGI, Raffaele. Direito,

tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 155. 952 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 164. 953 GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e teoria dos sistemas. Notas para uma agenda de

pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (orgs.) Dossiê Niklas Luhmann.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 272.

217

como destacado, a competência da teoria luhmanniana para responder criticamente a

todos os princípios, no que pode-se chamar de segundo teste de produtividade.

Demonstrada esta aptidão, a segunda etapa procurará questionar, primeiramente,

a proximidade entre teoria (crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos e os problemas

fundamentais que originaram a chamada “nova criminologia”, para então apresentar sua

efetiva capacidade de contribuição para a criminologia crítica a partir de dois exemplos:

de um lado, para o desenvolvimento de uma “teoria geral do crime”, algo comumente

apontado como um dos déficits da teoria criminológica, já que na criminologia observam-

se inúmeras abordagens heterogêneas. Este é o caminho proposto por Kai-D.

Bussmann954, e que será apresentado. Por outro, ela também poderia dar novo fôlego para

as abordagens críticas, sendo esta a perspectiva da “criminologia crítica radical

construtivista” de Nicolas Carrier955, que também será objeto de consideração. Com a

junção das duas etapas espera-se chegar à segunda proposta de conclusão parcial, qual

seja a possibilidade da teoria (crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos também poder

contribuir para uma nova agenda de pesquisa no âmbito da criminologia crítica.

3.1. Primeira parte

3.1.1. Três estudos sobre a presença de Luhmann em Jakobs

Como já foi destacado, não é fácil orientar-se pelas interpretações acerca da

presença da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos no interior do processo de

(re)normatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal elaborado por Jakobs. Além

da costumeira falta de menção às fases do penalista de Bonn, a desconsideração do

construtivismo radical luhmanniano faz com que o estudo acerca da potencialidade de

Luhmann para o direito penal e a criminologia seja constantemente ignorada.

Apesar disso, de um modo geral, pode-se separar os posicionamentos da doutrina

em dois grupos: o primeiro deles é composto por valorações negativas, nas quais a teoria

de Luhmann é apresentada como responsável pelo caráter conservador, autoritário e

acrítico do chamado “funcionalismo radical”, sendo assim incompatível com o que se

954 BUSSMANN, Kai-D. Variantion, Selection and Stabilization: An Evolutionary Theory of Crime and

Control, em BUSSMANN, Kai-D. & KARSTEDT, Susanne (Ed.). Social dynamics of crime and control.

New Theories for a World in Transition. Oxford-Portland Oregon: Hart Publishing, 2006, p. 243-256. 955 CARRIER, Nicolas. Critical criminology meets radical constructivism, em Crit. Crim, nº. 19, 2011, p.

331-350.

218

denomina Estado Democrático de Direito. Já o segundo grupo apresenta valorações

positivas que observam no mesmo Luhmann uma possibilidade de inovação atraente,

atenta à complexidade das relações entre sistema e ambiente e recheada de instrumentos

teóricos interessantes, tais como a ideia de equivalentes funcionais.

Uma vez destacadas essas considerações, resta então observar algumas análises

selecionadas, feitas por Juan Antonio García Amado, Bernardo Feijóo Sánchez e Mariana

Thorstensen Possas. Após a apresentação de cada uma delas, em ordem cronológica, o

teste de produtividade será então realizado.

Juan Antonio García Amado e o estudo da influência de Luhmann no direito penal

Em 2000 Garcia Amado escreve Dogmática penal sistêmica? Sobre a influência

de Luhmann na teoria penal, com o objetivo de analisar os fundamentos do direito penal

colocados por Jakobs e Lesch e que teriam uma relação de proximidade com a teoria dos

sistemas luhmanniana. Este estudo é importante, já que será base, por exemplo, para

Bernardo Feijoo Sánchez analisar as relações entre Luhmann e direito penal956. A tese de

Garcia Amado é de que os penalistas alemães mencionados não poderiam ir além da

incorporação de elementos sistêmicos, pois neste caso seria necessário ou renunciar ao

cultivo de uma dogmática penal padrão, ou assumir que tal discurso deveria desdobrar-se

em duas análises distintas: (i) a explicação da razão de ser e o fundamento do sistema

jurídico-penal enquanto “ponto de vista externo” e (ii) o cultivo do discurso próprio da

teoria interna do sistema penal, abstraindo-se das consequências da análise anterior. Para

o autor espanhol, Jakobs e seus seguidores não distinguem entre esses dois níveis e

956 Por isso o penalista espanhol afirma que “é curioso que tenha que vir uma pessoa alheia ao debate

jurídico-penal para realizar precisões que não são encontradas dentro do debate entre especialistas”. Em

FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o hacia

una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización del

derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 41 [tradução livre

do espanhol]. As considerações de Garcia Amado também serão base para as ponderações de Ricardo

Jacobsen Gloeckner, como será destacado.

219

pretendem fundar o segundo no primeiro, conduzindo assim “a verdadeiras aporias e a

mais de uma inconsequência”957.

Após apresentar algumas ideias gerais da teoria de Jakobs, tais como a crítica à

compreensão individualista da sociedade, a ideia de que o direito penal está orientado

para garantir a identidade normativa da sociedade, e que esta seria constituída por normas,

chegando-se assim à conclusão de que a pena deve garantir a existência dessas normas

indispensáveis que estruturam o social e o individual, Garcia Amado salienta que a

principal modificação feita por Jakobs e sua escola está na localização do fenômeno

jurídico-penal, não mais assentado na consciência individual, mas na comunicação958.

Aqui estaria uma das presenças mais notáveis do pensamento luhmanniano no interior da

construção teórica de Jakobs, e é neste momento que o autor espanhol inicia suas

considerações a respeito da “teoria sistêmica”.

Primeiramente, Garcia Amado sustenta que para a teoria sistêmica a sociedade

existe quando os indivíduos podem coordenar suas ações, sendo que tal coordenação seria

possível somente sobre a base de que “os atos, gestos, etc. são algo mais que eventos

empíricos, possuem significado, têm uma relevância comunicativa, expressam um

sentido”959. Por isso afirma que a sociedade só é possível através dessas comunicações, o

que significa que a sociedade funciona por intermédio dos indivíduos, “com o que estes

são partícipes e executores de uma comunicação que os transcende”960. A premissa para

este tipo de raciocínio estaria no próprio Luhmann, já que na nota de rodapé 07 o

estudioso espanhol chega mesmo a sustentar que a comunicação só é alcançada quando

há transmissão de informação entre pelo menos dois indivíduos, de tal forma que este

acontecimento permitiria a constituição da sociedade. Prova disso é que o argumento de

autoridade lançado por Garcia Amado é justamente uma passagem de Luhmann: “a

sociedade – diz Luhmann – não se compõe de pessoas, mas de comunicações entre

pessoas”961.

957 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 233 [tradução livre do

espanhol]. 958 Ibidem, p. 237. 959 Idem [tradução livre do espanhol]. 960 Idem [tradução livre do espanhol]. 961 Ibidem, p. 238, nota 07 [tradução livre do espanhol]. Este raciocínio não é compatível desde uma

perspectiva realmente atenta às premissas luhmannianas, além de demonstrar total desconhecimento dos

conceitos elementares forjados no interior da teoria autopoiética dos sistemas sociais. Como já destacado

no segundo capítulo, o conceito de comunicação em Luhmann rompe deliberadamente com a metáfora da

transmissão, e o conceito de pessoa é compreendido como construção do sistema social que possibilita a

tematização dos sistemas psíquicos. A crítica a este tipo de leitura será realizada mais adiante. De toda

220

Em segundo lugar, o autor espanhol destaca que a noção luhmanniana de redução

de complexidade não é abordada por Jakobs. Após salientar que a redução de

complexidade pelo sistema social implica aumento de complexidade, Garcia Amado

menciona que é neste contexto em que subsistemas sociais serão formados para dar conta

da necessidade de especialização da comunicação. Cada um desses sistemas operaria com

comunicações e “se especifica de acordo com um código e um programa próprio”962. E é

a partir dessas considerações que o direito passa a ser analisado.

Em que pese não apresentar um ponto de partida para suas considerações

“jurídicas” a partir de Luhmann (o livro sobre direitos fundamentais, os estudos sobre a

legitimação pelo procedimento, a sociologia do direito ou a descrição autopoiética do

sistema jurídico, por exemplo), Garcia Amado estabelece que o direito permite que os

indivíduos orientem suas condutas. E, diante da possibilidade de defraudação das

expectativas, entende que no caso da resposta normativa “os sistemas já não se adaptam

às circunstâncias, mas defendem suas estruturas contra elas”963. O que importa destacar é

que a manutenção da “expectativa original” é o que possibilitaria a orientação

intersubjetiva das condutas, sem a qual o problema da dupla contingência seria insolúvel

e, dessa forma, Garcia Amado entende que o direito serve para “assegurar as expectativas

não modificáveis por atos particulares dos indivíduos” 964.

Dito isso, ele salienta que todas essas reflexões sobre a “teoria sistêmica” devem

ser entendidas como pressupostos para que seja possível compreender a proposta de

Jakobs, destacando que a ideia da função do direito penal como estabilização contrafática

de expectativas é oriunda principalmente dos escritos de Luhmann presentes em

Sociologia do direito. Feita esta ressalva, Garcia Amado está consciente de que tal

narrativa faz com que seja necessário reformular os conceitos de partida do direito penal,

ainda ancoradas na tradição iluminista, dando como exemplo, sem menção a qualquer

fase de Jakobs, a ideia presente no Tratado de que delito e pena seriam comunicações, ou

seja, que ocorreriam no plano simbólico comunicativo, de tal forma que o objetivo da

norma penal seria resguardar a confiança de que os sujeitos atuem de determinado modo,

ao passo que pena teria a missão de manter a norma como modelo de orientação da

forma, mais adiante Garcia Amado faz considerações corretas a respeito da teoria luhmanniana,

notadamente no quis diz respeito à compreensão do homem como ambiente do sistema. Ver Ibidem, p. 250-

251. 962 Ibidem, p. 239 [tradução livre do espanhol]. 963 Ibidem, p. 240 [tradução livre do espanhol]. 964 Ibidem p. 241 [tradução livre do espanhol].

221

conduta. Assim, o “ato de comunicação da pena” teria como destinatário não o

delinquente, mas o conjunto de cidadãos que possuem certas expectativas que a norma

expressa, “mostrando-lhes que estão certos e que o defeito está no atuar do outro”965 e,

consequentemente, protegendo a configuração básica da sociedade.

Após essas análises Garcia Amado chama a atenção para o caráter descritivo da

teoria de Jakobs. Seu objetivo é demonstrar a necessidade de se diferenciar o sistema

jurídico-penal tal como ele se apresenta na sociedade, enquanto forma de manutenção da

ordem social, das condições de legitimidade deste sistema, que decorrem de

interpretações de um sistema material de valores que considera-se preferível. Isto seria

particularmente importante pois Jakobs e sua escola “nem sempre são suficientemente

claros e contundentes ao diferenciar estes extremos”966. De toda forma, o filósofo do

direito considera que esses autores “passam pela prova” da inconsistência teórica pois

acabam desenvolvendo uma dogmática do sistema jurídico-penal alemão atual, sendo

assim explicável “que joguem com os concretos pressupostos normativos de tal sistema,

que são pressupostos materiais que têm haver com uma determinada concepção da

sociedade, cristalizada em princípios constitucionais e direitos fundamentais”967. Assim,

o que Garcia Amado considera problemático está no fato de que para praticar essa

dogmática os autores têm que negar boa parte dos pontos de partida da teoria sistêmica,

já que devem tratar como “real” algo que para Luhmann seria somente uma “ficção

instrumental dos sistemas jurídicos-penais atuais”, dando como exemplo a categoria do

sujeito968.

É neste sentido que o autor fala em “aporias de uma dogmática penal sistêmica”,

pois uma aplicação consequente das premissas luhmannianas faria com que Jakobs

utilizasse a linguagem dogmática sabendo que esta não descreveria nem teria como base

a mundo “real”, mas contribuiria, isso sim, para construir uma ficção na qual a realidade

é aquilo que corresponde ao fechamento operacional do sistema penal, “que constrói seus

conceitos e categorias não para refletir o mundo dos sujeitos e os acontecimentos tal como

são, mas tal como devem supor-se para que o sistema funcione cumpra com seu trabalho

de redução de complexidade”969.

965 Ibidem, p. 245 [tradução livre do espanhol]. 966 Ibidem, p. 246 [tradução livre do espanhol]. 967 Ibidem p. 247-248 [tradução livre do espanhol]. 968 Ibidem, p. 248 [tradução livre do espanhol]. 969 Ibidem, p. 248-249 [tradução livre do espanhol].

222

O que Garcia Amado quer destacar é que um teórico que almeje relacionar

dogmática penal e teoria dos sistemas deve estar consciente de que ao passar de uma para

outra verifica-se uma “troca de mundo”, já que estamos diante de dois sistemas distintos

(dogmática penal enquanto autodescrição do sistema jurídico-penal e a macrossociologia

luhmanniana como heterodescrição do sistema científico). E, por entender que Jakobs e

sua escola oscilam entre esses polos sem pauta clara, observa que a confusão teórica

consequente é resultado “de ser radical nas premissas mas não querer sê-lo nas

consequências”970.

O primeiro exemplo utilizado para esclarecer essas dificuldades refere-se ao

conceito de sujeito. Desde uma perspectiva luhmanniana, afirma Garcia Amado, o sujeito

seria uma construção do sistema social, “uma mera peça de sua mecânica funcional”971.

Mas em Jakobs, e aqui a referência está uma vez mais no Tratado, observa-se a ideia de

que a imputação ocorre através da responsabilidade pela própria motivação, como

destacado no primeiro capítulo. Ocorre que, se o delito expressa uma motivação, então

isso significaria que o delito seria uma espécie de demonstração da consciência subjetiva,

algo que vai de encontro à ideia luhmanniana de que o sistema social não pode observar

a consciência do indivíduo972.

A culpabilidade aparece como segundo exemplo das aporias da dogmática penal

sistêmica, já que aqui Jakobs trabalha com a ideia de que culpável seria o autor que

demonstra não ter motivação jurídica dominante (defeito volitivo), ou seja, por faltar uma

disposição para motivar-se de acordo com a norma jurídica (fidelidade ao direito). Ora,

neste caso, ou assume-se que existe uma consciência autônoma livre que legitima a

imputação da liberdade, hipótese que afasta as premissas sistêmicas, ou assume-se que a

imputação dessa liberdade seria somente uma construção do próprio sistema, de tal forma

que o sujeito seria mais uma daquelas peças da mecânica funcional, perspectiva que afasta

o ancoramento valorativo da pessoa e de sua liberdade no conceito de culpabilidade que

passa a ser compreendido apenas como “conceito puramente instrumental”973. Trata-se,

no fundo, de indagar se os processos motivacionais a que se refere Jakobs974 são reais ou

970 Ibidem, p. 249 [tradução livre do espanhol]. 971 Ibidem, p. 253 [tradução livre do espanhol]. 972 Ibidem, p. 253 [tradução livre do espanhol]. 973Idem [tradução livre do espanhol]. 974 Diante da pergunta acerca do que seria o defeito volitivo, Jakobs responde: “o decisivo não é que o

defeito seja percebido conscientemente na mente do autor, mas que deva localizar-se ali, e isto ocorre

sempre que o autor evitar uma motivação dominante de evitar infrações ao direito. Consequentemente,

“defeito volitivo” deve ser sempre entendido como “déficit de vontade”, e concretamente como défict de

223

normativamente construídos975, questionamento que também pode ser colocado da

seguinte forma:

“Coloquemos em outros termos a interrogação

que nos ocupa: dado que tanto pena como delito são

comunicações, comunica-se o sistema penal através da

pena com os indivíduos enquanto sujeitos reais livres,

autônomos e donos de seus atos, ou, pelo contrário,

mediante pena e delito comunica-se o sistema consigo

mesmo, como parte de sua autopoiesis, de sua

permanente autoconstituição, utilizando o sujeito

unicamente como veículo dessa comunicação e,

portanto, construindo-o segundo seja conveniente ao

sistema?”976

Para Garcia Amado, a segunda construção seria a mais luhmanniana, mas nem de

longe Jakobs e sua escola caminham coerentemente nessa direção977, já que isso

dissolveria a própria dogmática jurídico-penal enlaçada por aquelas disposições liberais

que levam em conta o ser humano de carne, osso e consciência978. Por isso sustenta que

tais autores encontram-se em um “terreno intermediário”, fruto da mescla entre

considerações volitivas que parecem pressupor o sujeito racional, real e autônomo (isto

é, o livre arbítrio), e descrições da normatividade do sistema jurídico-penal, a partir das

quais se castiga o indivíduo não por ser como é, “mas por ser visto como o sistema o vê,

posto que, em boa lógica sistêmica, o sistema não pode vê-lo como realmente é”979.

motivação fiel ao Direito”. Ver JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p.

383 [tradução livre do espanhol]. 975 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 254. 976 Ibidem, p. 254-255 [tradução livre do espanhol]. 977 Perceba-se, neste contexto, que o desenvolvimento dessa ideia pode ir ao encontro da criminologia

crítica, como será destacado. Que esta potencialidade também possa ser utilizada no âmbito da ciência penal

também será objeto de consideração, nos moldes colocados por Baratta: “o confronto entre ciência do

direito penal e teoria sociológica, acreditamos, não é destituído de utilidade para o processo da primeira,

especialmente em relação à superação dos elementos místicos e ideológicos que nela ainda pesam, como

mal digerida herança do passado”. Ver BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito

penal. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 45. 978 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 255. 979 Idem [tradução livre do espanhol].

224

Dito isso, o autor espanhol salienta que não concorda com o rechaço generalizado

frente às propostas inovadoras de Jakobs e sua escola, principalmente por não observar

em Luhmann uma premissa conservadora. Mas conclui seu estudo apresentando um juízo

crítico (negativo) baseado em duas razões: em primeiro lugar, pelo fato dos penalistas

alemães não serem suficientemente luhmannianos para construir uma teoria penal

funcionam coerente, completa e sem estranhas aderências no que tange, por exemplo, à

figura do sujeito e seus processos motivacionais, como destacado. Em segundo lugar,

porque esses autores não teriam levado em consideração o que Luhmann expõe sobre a

função da teoria e da dogmática, o que teria impedido a mescla de “ordens discursivas

diversas”980. Esta segunda observação é fundamental, pois como o próprio Garcia Amado

salienta, e como foi enfatizado no segundo capítulo, Luhmann explica que a teoria do

direito e a dogmática jurídica são construções internas do próprio sistema jurídico. Na

visão do filósofo do direito, a teoria ou dogmática do direito penal não pode ir além dos

dados e elementos do próprio sistema, pois caso contrário, ou a doutrina em questão seria

incompreensível ou, caso ela se imponha, existiria o risco de dissolução do próprio

sistema ou alteração do perfis do mesmo981.

Assim, o que Garcia Amado quer destacar é que a teoria dos sistemas não

fundamenta nem critica qualquer elemento de determinado sistema, mas somente

descreve suas estruturas e operações. Neste contexto, existiriam “verdades distintas”

produzidas pelos diversos sistemas, razão pela qual a teoria dos sistemas afirma que o

sujeito individual é inventado por cada sistema social, ao passo que a dogmática jurídico-

penal sustenta que o sujeito penal existe e é livre. Dessa maneira, diante da consolidação

de sentido “o sujeito é livre” interna ao sistema jurídico-penal, qualquer afirmação

contrária vinda de um dogmático penal será considerada, pelo sistema, como

manifestação de um teórico inimputável. Por isso afirma que “o teórico de qualquer

sistema tem que crer nos postulados básicos sobre os quais o sistema se constitui (...), e

se não crê tem que ao menos dissimular enquanto queira jogar o jogo dessa teoria”982. Se

isto não for feito, a alternativa seria somente a “esquizofrenia teórica”, concluindo seu

estudo afirmando que não imputaria a Jakobs e sua escola nem esquizofrenia nem

dissimulação, mas ironicamente salienta que tais autores conseguiram frear o ímpeto

sistêmico a favor da dogmática a tempo de evitar que seus colegas se escandalizem em

980 Ibidem, p. 261 [tradução livre do espanhol]. 981 Ibidem, p. 262. 982 Ibidem, p. 263 [tradução livre do espanhol].

225

excesso ou que suas cátedras passassem “a ser de sociologia ou de coisas piores, como a

filosofia do direito”983.

Bernardo Feijoo Sánchez entre teoria sistêmica e teoria intersubjetiva

O primeiro capítulo já havia destacado a possibilidade de se pensar a perspectiva

comunicacional da pena a partir do modelo habermasiano de comunicação, notadamente

nas breves considerações feitas acerca da proposta de Klaus Günther. E o próprio Feijoo

Sánchez fora apresentado como um dos discípulos de Jakobs que caminha nesta direção.

Entretanto, aqui importa destacar como este direcionamento relaciona-se com o estudo

da presença de da macrossociologia luhmanniana no interior do projeto de

renormatização dos conceitos da dogmática jurídico-penal, já que “somente levando em

consideração a teoria da sociedade de Luhmann é possível entender a troca de paradigma

que assume a teoria funcional de Jakobs para a reflexão sobre o direito penal”984.

Dito isso, vale a pena considerar as principais reflexões do penalista espanhol

sobre a possível contribuição da teoria dos sistemas autopoiéticos para a “teoria global do

direito penal”985. Após salientar a importância do sociólogo de Bielefeld para o atual

debate acerca dos fundamentos do direito penal, Feijoo considera que a influência

luhmanniana em Jakobs ajuda os intérpretes a compreender a obra do penalista de Bonn.

Para tanto, antes é preciso estar atento às costumeiras críticas que são feitas à teoria

sistêmica, que Feijoo reúne da seguinte maneira: tratar-se-ia de uma teoria que (i) defende

uma visão organicista da sociedade e do direito penal; (ii) é responsável por facilitar o

abandono dos interesses do sujeito em favor das necessidades funcionais dos sistemas

sociais instrumentalizando assim o indivíduo e (iii) ao funcionalizar todos os aspectos do

mundo para a manutenção sobrevivência do sistema social manifesta-se como uma teoria

politicamente conservadora dirigida a manter o status quo e a negar os conflitos sociais.

Apresentadas essas críticas, Feijoo entende que elas “não são acertadas e dificultam o

aproveitamento de alguns aspectos interessantes da teoria dos sistemas sociais de

Luhmann”986.

983 Idem [tradução livre do espanhol]. 984 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 39 [tradução

livre do espanhol]. 985 Ibidem, p. 21 [tradução livre do espanhol]. 986 Ibidem, p. 24 [tradução livre do espanhol].

226

Entretanto, o objetivo do penalista espanhol é demonstrar que apesar da

macrossociologia luhmanniana permitir a colocação de novos problemas teóricos e novas

indagações científicas, ela exclui aquilo que se denominava no pensamento tradicional

europeu como razão prática, e com isso todo e qualquer conotação normativa com

conteúdo axiológico ou valorativo. Assim, por ser uma teoria a partir da qual só é possível

observar e descrever aspectos funcionais, a doutrina jurídico-penal não aceitou seguir

suas premissas teóricas que acabavam indo de encontro “à certas valorações na nossa

sociedade e, sobretudo, à uma certa tradição metodológica e epistemológica da nossa

disciplina”987.

Feijoo entende que a perspectiva luhmanniana seria insuficiente para abordar

todas as questões essenciais da ciência moderna do direito penal e, além disso, considera

que mesmo os aspectos sistêmicos mais frutíferos para uma “teoria global do direito

penal” poderiam ser desenvolvidos a partir de outras perspectivas provenientes das

ciências sociais, notadamente aquelas que trabalham com a intersubjetividade, em que

pese salientar que o conceito de comunicação luhmanniano não se aproxima daquele

habermasiano988.

Após apresentar um panorama geral da teoria autopoiética dos sistemas sociais, o

penalista espanhol começa a responder às críticas enumeradas anteriormente, salientando

que a questão da contingência é um tema fundamental para a formação dos sistemas

sociais, bloqueando assim a crítica referente à “defesa do status quo”, já que em Luhmann

observar-se-ia um “dinamismo ilimitado”. Baseando-se na leitura de Sistemas sociais,

também considera que indivíduo e sociedade estão inter-relacionados, de tal forma que

as críticas que tacham a teoria sistêmica como holista ou organicista também não teriam

fundamento. Para o penalista espanhol, o que não se percebe é que na macrossociologia

luhmanniana o humanismo clássico é excluído enquanto instrumento teórico para

descrever a sociedade, sendo justamente esta metodologia anti-individualista mal

compreendida que provoca a repulsa generalizada por parte da doutrina penal, em que

pese Feijoo considerar este desacoplamento entre ordem social e indivíduo um empecilho

significativo para o desenvolvimento de uma teoria penal sistêmica989.

Nesse sentido, antes de desenvolver a análise crítica a respeito da potencialidade

luhmanniana e, assim, apresentar sua proposta rumo à intersubjetividade, o discípulo de

987 Ibidem, p. 25 [tradução livre do espanhol]. 988 Ibidem, p. 26-28, nota 15. 989 Ibidem, p. 30-33.

227

Jakobs analisa alguns pontos da teoria de seu mestre que merecem atenção. Assim,

salienta que no sistema funcional do penalista de Bonn o conceito sistêmico de direito

enquanto subsistema fechado frente ao sistema político é uma peça fundamental:

“normatização, que é um conceito chave de sua teoria, significa que o direito tem plena

autonomia como subsistema social para outorgar significado ou sentido à realidade que

percebemos (construtivismo)”990. A relação entre sociedade, norma, sanção e pessoa

também é abordada pelo penalista espanhol, que após citar a já mencionada passagem de

Jakobs – “a sociedade, segundo a compreensão da teoria dos sistemas a que eu agora sigo,

é comunicação”991 – salienta a compreensão do delito como processo de comunicação

entre pessoas (também consideradas como estruturas normativas) no enquadramento do

direito penal enquanto ordenamento orientado a garantir a identidade normativa e a

configuração básica da sociedade992.

Neste contexto, também é interessante notar o esclarecimento que Feijoo faz de

um dos livros mais importantes de Jakobs, apresentado detalhadamente no primeiro

capítulo: Sociedade, norma e pessoa. Ele elucida que nas construções teóricas iniciais de

Jakobs existiam dois elementos básicos, sociedade e norma (o que levava à uma teoria

sobre a normatividade e a sanção), que posteriormente foram enriquecidas com o conceito

de pessoa. Entretanto, Feijoo sustenta que os dois primeiros elementos devem ser

entendidos em um contexto funcional-sistêmico, que na perspectiva de Jakobs permitem

a construção da sociedade enquanto conjunto de normas a partir das quais insere-se a

discussão da pena como resposta à defraudação das expectativas normativas, sem que

com isso haja garantia de que no futuro as condutas ocorram de acordo com ditas

expectativas993. A partir da consideração do delito como “exemplo insuportável” que

desorienta a vida social, Feijoo salienta que Jakobs apresenta a pena como instrumento

responsável por “deixar as coisas como estavam, não para a vítima, mas para a validade

do direito”994.

Assim, o penalista espanhol chama a atenção para o fato de que Luhmann

influencia a teoria da pena de Jakobs (a pena apenas confirma a identidade normativa da

990 Ibidem, p. 38 [tradução livre do espanhol]. 991 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito Penal: bens jurídicos ou a vigência da norma?, em

GRECO, Luís. O bem jurídico como limitação do Poder Estatal de incriminar?, p. 175. 992 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 39. 993 Ibidem, p. 46. 994 Ibidem, p. 48.

228

sociedade, na chamada prevenção geral positiva), e também sua teoria do delito (da

imputação jurídico-penal). Entretanto, Feijoo aponta uma diferença importante entre os

autores, que refere-se ao fato de que o penalista, em sua teoria da imputação jurídico-

penal (teoria do delito), sustenta que a pena deve prevenir um infidelidade generalizada à

norma. Para tanto, Jakobs utiliza-se de um fundamento “alheio à teoria dos sistemas

sociais de Luhmann”, qual seja a distinção fidelidade/infidelidade ao direito como

premissa para a orientação de sentido do direito penal. Dessa maneira, Jakobs seria um

observador das estruturas penais que, ao eleger a mencionada distinção como meio

analítico, descreve todas as outras categorias dogmáticas a partir dela, razão pela qual,

por exemplo, a culpabilidade é compreendida como déficit de fidelidade ao direito995.

Assim, todo o aparato conceitual de Jakobs depende daquilo que se considera como “grau

suficiente de fidelidade ao ordenamento jurídico”996.

Feitas essas considerações, Feijoo passa a expor sua posição pessoal, a partir da

qual aprofundará os mencionados inconvenientes da chamada teoria sistêmica. Para o

autor, a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos “não é útil para uma teoria do direito

penal”, principalmente por conter “limites” correspondentes à uma sociedade mundial.

Por esta mesma razão Jakobs teria abandonado Luhmann em diversos momentos,

preferindo voltar os olhos à Hegel para assim construir uma teoria do direito penal

estatal997. Além disso, o penalista espanhol também inclui na crítica à utilização da teoria

dos sistemas no direito penal a questão da legitimidade deste, salientando que grande

parte da crítica à proposta de Jakobs – e de qualquer outra que defenda uma perspectiva

sistêmica (luhmanniana) – manifesta-se justamente nesta articulação entre normatização

e legitimidade, já que a proposta do penalista de Bonn não vincula a normatização nem à

orientação pelas consequências nem à orientação político-criminal. Mas Feijoo está

convencido de que a compreensão da teoria de Jakobs como tecnocrática está fadada ao

fracasso, pois este buscaria somente compreender a normatividade do direito penal

partindo da premissa de que, uma vez que a sociedade funciona, a ordem social protegida

pela pena tem algum tipo de valor que a legitime.

995 Ibidem, p. 52, nota 109. 996 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Civitas: Madrid, 2003, p.

11 [tradução livre do espanhol]. 997 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 55-56.

229

Mesmo assim, Feijoo sustenta ser possível criticar Jakobs pela ambiguidade de

seus escritos. Perceba-se que este argumento já foi aqui destacado, em que pese aparecer

de maneira distinta: primeiramente através da leitura de Luís Greco, que questiona se a

função do direito penal é apresentada em Jakobs em sentido descritivo (o modo como o

direito penal realmente opera) ou em sentido normativo/prescritivo (aquilo que o direito

penal deve almejar) 998; de modo similar, como há pouco apresentado, Garcia Amado

denuncia as aporias da dogmática jurídico-penal sistêmica de Jakobs e sua escola, já que

esses autores oscilam entre abordagens dogmáticas e sociológicas sem prévia elucidação;

e agora, Feijoo entende por ambiguidade o fato de que em algumas ocasiões Jakobs

analisa os problemas dogmáticos desde uma perspectiva funcional abrangente, válida

para qualquer sistema social, e em outros momentos tais problemas são abordados desde

uma normatividade concreta, qual seja o Estado alemão contemporâneo, sem qualquer

esclarecimento acerca de qual perspectiva pode ser utilizada no caso concreto999.

Como conclusão final de suas reflexões acerca da possível contribuição

luhmanniana para o direto penal, Feijoo apresenta a crítica substancial que, na esteira de

Garcia Amado, refere-se ao “excessivo positivismo de Jakobs”, no sentido de que o

penalista de Bonn se limitaria a observar e descrever as distinções do direito penal, isto

é, sem propiciar uma abordagem crítica acerca da realidade do direito penal1000. Esta

“neutralidade valorativa” seria escandalosa para grande parte da doutrina penal, e

segundo Feijoo, representaria um dos pontos cegos da perspectiva funcional. Por isso

afirma que “Jakobs tem razão ao assinalar que o direito penal não pode ser mais legítimo

que o sistema que defende, mas não tratou o tema de que pode ser menos"1001, de tal forma

que a proposta do penalista de Bonn, justamente por contar com a presença de Luhmann,

acaba reduzindo a ciência do direito penal somente à dogmática, banindo a perspectiva

político-criminal e crítica1002, motivo pelo qual desenvolve sua proposta desde uma

perspectiva habermasiana.

998 GRECO, Luis. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de

Janeiro: Renovar, 2004, p. 38. 999 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 60. 1000 Ibidem, p. 60-61. 1001 Ibidem, p. 66 [tradução livre do espanhol]. 1002 Vale a pena destacar o argumento do penalista espanhol: “A ciência do direito penal, em uma linha

muito luhmanniana, estaria reduzida ao trabalho dogmático (dirigida ao juiz), sendo banida o trabalho de

política criminal (dirigido ao legislador). Somente neste ponto tem razão a crítica de que o funcionalismo

jakobsiano converte a ciência do direito penal em uma disciplina que compromete o legislador e carece de

capacidade crítica”, em Ibidem, p. 74-76 [tradução livre do espanhol].

230

Mariana Thorstensen Possas e a comparação entre Jakobs e Luhmann

Em 2005 é publicado um artigo de Mariana Thorstensen Possas que tem como

objetivo analisar de que forma Jakobs apropria-se de alguns elementos da teoria de

Luhmann para construir sua teoria da prevenção geral positiva. Para a autora, “apesar da

louvável incursão no campo da sociologia, o artigo ressalta o fato de Jakobs ter alterado

alguns conceitos luhmannianos e, com isso, comprometido a possibilidade de propor uma

visão alternativa e efetivamente inovadora do direito penal e da pena criminal, fora dos

moldes da racionalidade penal”1003. O interesse aqui é, então, observar se como

argumentos colocados articulam-se com a teoria luhmanniana.

Para tanto, é necessário compreender, ainda que brevemente, o que se entende por

“racionalidade penal moderna”, termo cunhado por Álvaro Pires1004. É interessante notar

que Pires articula Foucault e Luhmann, já que este conceito remete à uma forma empírica

específica de racionalidade, um sistema de pensamento (premissa foucaultiana) que acaba

sendo selecionado dentre outras possibilidades existentes (premissa luhmanniana) pelo

sistema jurídico-penal. Tal sistema de pensamento, cuja qualificação moderna refere-se

à segunda metade do século XVIII, momento em que este sistema de pensamento

começou a se diferenciar, está ligado a práticas institucionais – “justiça penal”, “criminal”

– e é construído por uma “rede de sentidos com unidade própria no plano do saber e que

liga estreitamente fatos e valores, o que lhe confere um aspecto normativo”1005.

Aqui é importante destacar os efeitos da racionalidade penal moderna, já que o

argumento de Possas é de que a proposta de Jakobs, em que pese apresentar-se como

“novidade”, não conseguiria romper as amarras do tradicional sistema de pensamento.

Assim, Pires destaca a naturalização da estrutura normativa selecionada pelo sistema

penal como um desses efeitos, no sentido de que na articulação entre norma de

comportamento e norma de sanção a pena aflitiva, notadamente a de prisão, assumirá “o

lugar dominante no autorretrato identitário do sistema penal”1006, favorecendo a imagem

1003 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 267. 1004 PIRES, Álvaro. La formation de la rationalité pénale moderne au XVIII siécle, em DEBUYST, C.;

DIGNEFFE, F. & PIRES, A. Historie des savoirs sur le crime et la peine, vol. 2. Bruxelles: De Boeck

Université, 1998. 1005 PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos, em Novos Estudos

CEBRAP, nº 68, março de 2004, p. 40. 1006 Ibidem, p. 41.

231

de que a resposta aflitiva deve ser a resposta natural diante do crime. Por isso Pires

qualifica esta racionalidade penal moderna, que oculta a observação de que existem outras

possibilidades de atualização do sistema jurídico-penal, como “obstáculo

epistemológico”1007.

É a partir dessas considerações que Possas considera que a chamada teoria da

prevenção geral positiva “funciona apenas como como nova forma de justificar o sistema

moderno e ainda dominante de aplicação de penas, sem grandes novidades”1008. A autora

interpreta este problema a partir da ideia de que o conteúdo teórico desta proposta –

condensada nos escritos de Jakobs – não possibilita significativos avanços, e isto em razão

da forma como o penalista de Bonn apropria-se da teoria de Luhmann. Ou seja, seria

possível empreender uma relação inovadora entre direito penal e sociologia a partir da

teoria luhmanniana, mas Possas entende que “parte desse potencial foi perdido”1009.

Para confirmar sua hipótese, a autora apresenta alguns aspectos da sociologia do

direito de Luhmann (diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas, o

problema da sanção jurídica e a questão referente à função do direito na sociedade) e, em

seguida, os compara com o sentido que Jakobs dá aos mesmos elementos, para assim

desmistificar a associação rasteira entre os dois autores, enfatizando que existe uma

mudança de sistemas em cada um dos autores, naquilo que Garcia Amado chamou de

“mudança de mundos”, ou seja, a proposta luhmanniana constrói-se no interior do sistema

científico, e a jakobsiana no interior do sistema jurídico-penal1010.

Assim, após apresentar algumas ideias gerais da teoria autopoiética dos sistemas

sociais, tais como o fato de que a sociedade moderna se caracteriza pela diferenciação

funcional, de tal forma que cada sistema social desenvolve uma comunicação própria, e

salientar a “exclusão” dos indivíduos da sociedade, Possas apresenta algumas reflexões

de Luhmann sobre os temas já mencionados. No que diz respeito à diferenciação das

1007 Ibidem, p. 43. Aqui não é possível analisar detalhadamente os aspectos da racionalidade penal elencados

por Pires em quatro pontos: i) o sistema penal projetaria sua identidade por ele mesmo produzida como

essencialmente punitiva, a partir da qual “o procedimento penal hostil, autoritário e acompanhado de

sanções aflitivas é considerado o melhor meio de defesa contra o crime”; ii) a punição é apresentada como

obrigatória ou necessária; iii) o sistema de pensamento é produzido antes ou independentemente das visões

políticas do mundo e iv) as relações entre direitos humanos e direito penal decorrentes da tutela penal dos

direitos humanos são paradoxais e conflitantes. Ver Ibidem, p. 43-47. 1008 Isto porque a prevenção geral positiva, ao utilizar penas aflitivas para gerar o efeito “positivo”, acaba

aproximando-se das chamadas “teorias dos meios exclusivamente negativos”. Ver POSSAS, Mariana

Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma comparação entre

Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-outubro, 2005, p. 270-

271. 1009 Ibidem, p. 273. 1010 Ibidem, p. 288.

232

expectativas, a autora chama a atenção para a ideia de que a expectativa normativa “surge

da observação de diferentes formas de reação que o indivíduo (consciência individual)

pode apresentar diante das experiências de decepção em relação às suas expectativas”1011,

e apresenta a distinção feita por Luhmann em Sociologia do direito entre expectativas que

se adaptam à realidade (cognitivas) e aquelas que não são abandonadas em caso de

frustração (normativas). Dito isso, e após mencionar que as normas são o produto de

expectativas que foram mantidas ou estabilizadas diante da recepção, sustenta que a

diferenciação entre o cognitivo e o normativo “só pode ser determinada a partir do caso

de desapontamento e a partir do tipo de reação produzida”1012.

O segundo elemento apresentado por Possas refere-se ao problema da sanção, e

está em íntima relação com considerações feitas acerca da racionalidade penal moderna.

O objetivo da autora é demonstrar que a sanção é vista por Luhmann desde um ponto de

vista geral, mais abrangente que a ideia de sanção penal, sendo somente uma das

possibilidades de reação disponíveis para o processamento de desapontamentos. Por isso

afirma que a função da sanção seria a mesma para todo o direito: “nessa lógica, a função

da prisão, da reparação de danos, ou dos trabalhos comunitários seria exatamente a

mesma”1013. Assim, o que realmente importa é tornar o desapontamento real explicável

para garantir a continuidade da vigência da norma. Possas está atenta à crítica que

Luhmann faz à proposta de conceituar a norma jurídica pela sanção (“teoria da sanção”),

e salienta que com isso perde-se de vista a existência de outras possibilidades de reação

possíveis que podem ser interessantes inclusive para a pessoa responsável pelo frustração,

além de ocultar o fato de que “manter a expectativa, independentemente da forma de

reação, é mais relevante que a maneira como ela é reafirmada”1014. Daí a consideração de

que a grande contribuição de Luhmann neste tópico seria “desconstruir uma antiga ideia

de sanção, que necessariamente acompanha (e define) a norma e que é, no caso do direito

penal, essencialmente punitiva”1015.

Por fim, a função do direito da sociedade é o último tema apresentado por Possas.

Após mencionar algumas funções de outros sistemas sociais, a autora apresenta a função

1011 Ibidem, p. 277. 1012 Ibidem, p. 278. 1013 Ibidem, p. 279. 1014 Ibidem, p. 281. 1015 “A sanção, mesmo que em um sentido amplo, não é o único mecanismo disponível para a resolução de

conflitos. Às vezes ela é realmente necessária, mas nem sempre. E mesmo quando necessária, não significa

que ela precisa assumir a forma de uma punição causadora de grande sofrimento. Se pensada no domínio

do direito penal, essa perspectiva pode gerar muitas reflexões interessantes, especialmente no âmbito das

justificações da pena, limitadas ao estilo puramente aflitivo de punir”. Ver Ibidem, p. 282.

233

do direito como estabilização contrafática de expectativas normativas, e salienta que as

sínteses regulativas de sentido não tem como função primária regular o comportamento

alheio, tornando-o previsível, mas sim garantir a segurança da expectativa: “não é tão

relevante o que cada um vai fazer, mas o que cada um pode fazer”, de tal forma que “a

função do direito será então manter (estabilizar) esta normatividade apesar das

decepções”1016. Possas então ressaltar dois pontos importantes para a compreensão da

função do direito: i) a distinção entre auto-descrição apresentada pelo sistema social e

função desempenhada pelo mesmo, no sentido de que a primeira é responsável pela

criação da identidade do sistema, independentemente daquilo que observadores externos

observam, o que significa que a função atribuída ao sistema por este observador

“raramente coincide com a função que o próprio sistema construiu no seu discurso sobre

si mesmo”1017; ii) a distinção entre função e prestação, de tal forma que a primeira é única,

específica e estável, ao passo que a segunda pode variar consideravelmente, sendo

portando necessário não confundir uma com a outra pois, segundo Possas, “só se pode

dizer que o direito deixa de cumprir sua função quando as expectativas deixarem de ser

normativas (transformando-se em cognitivas, ou quando transferidas a outros sistemas

normativos)”1018.

Realçados esses três elementos, a autora enumera as possíveis contribuições para

a reflexão sobre o direito penal: i) a função do direito penal não seria primariamente

coativa; ii) a função da penal criminal não seria distinta de outras espécies de sanções; iii)

a utilização de outros tipos de sanções não transformaria o direito penal em direto civil

ou administrativo e iv) por não ter uma status privilegiado a pena de prisão não significa

uma melhor estratégia de manutenção das expectativas. É a partir deste material que

Possas abordará a construção significativa dada por Jakobs à teoria de Luhmann acerca

desses mesmos três elementos para, então, realizar a comparação entre os dois autores.

No que diz respeito à diferenciação entre expectativas cognitivas e normativas,

Possas salienta que Jakobs tematiza esta questão de maneira completamente diferente da

de Luhmann, já que utiliza a distinção com vistas à separação entre fato (ser) e norma

penal (dever ser). Por isso ressalta: “Jakobs utiliza a distinção luhmanniana tão somente

para pensar e justificar a manutenção do direito penal e, sobretudo, para justificar a

1016 Ibidem, p. 284-285 (ênfase no original). 1017 Ibidem, p. 285. 1018 Ibidem, p. 286.

234

diferença entre o direito penal e as outras modalidades do direito”1019. Assim, observar-

se-ia uma ontologização das expectativas, no sentido de que elas são apresentadas como

cognitivas ou normativas a priori. E isso contrariaria Luhmann, já que em suas

formulações “o tipo de expectativa só se revela depois da reação, portanto a

posteriori”1020. Além disso, Possas enfatiza que em Jakobs a diferenciação é feita de tal

forma que se adeque ao modelo de atribuição de responsabilidades e, ao abordar a

articulação expectativas normativas e sanção, o penalista de Bonn acabaria sustentando a

racionalidade penal moderna, já que “o autor ressalta a importância atribuída a uma das

modalidades de imposição das expectativas normativas: a sanção penal aflitiva”1021.

A partir dessa discussão Possas analisa mais detalhadamente o segundo elemento

de comparação: a relação entre sanção jurídica e pena (sanção jurídico-penal aflitiva).

Para a autora, Jakobs não problematiza o conceito de sanção, de tal forma que as

considerações de Luhmann a respeito da possibilidade de se responder à defraudação de

diferentes formas (incluindo os diversos tipos de sanções) restaria ignorada. Daí sua

afirmação de que “Jakobs não ultrapassa as fronteiras da sanção penal e não desloca a

importância dada pelo direito penal às penas aflitivas”1022, tendo como consequência a

distorção do pensamento de Luhmann e a transformação de sua sociologia do direito em

um discurso sobre a pena. O problema fundamental seria, então, o bloqueio dos elementos

chaves e criativos da teoria luhmanniana a partir da ênfase na pena aflitiva enquanto

responsável pela própria existência da sociedade, nos moldes da racionalidade penal

moderna.

Para deixar mais clara suas considerações, Possas vale-se de uma citação de

Jakobs: “a prestação que realiza o Direito Penal consiste em contradizer por sua vez a

contradição das normas determinantes da identidade da sociedade”1023, já mencionada no

primeiro capítulo. A autora salienta então os diversos problemas presentes nessa

afirmação, realizando ainda que em escada menor (já que em seu estudo não há qualquer

menção às fases de Jakobs) o mesmo exercício de comparação que será desenvolvido

brevemente. Assim, Possas chama a atenção para as seguintes descontinuidades teóricas:

1019 Ibidem, p. 289 (ênfase no original). 1020 Ibidem, p. 290. 1021 Possas salienta isso apresentando dois exemplos mencionados por Jakobs para ilustrar a manutenção

das expectativas normativas, ambos referindo-se à pena aflitiva. Ver Ibidem, p. 292. 1022 “Ainda que em algumas passagens, como mencionado acima, empregue o termo sanção, na grande

maioria das vezes refere-se ou parece referir-se verdadeiramente à pena”, Ibidem, p. 293 (ênfase no

original). 1023 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole Editora, 2003, p. 04.

235

a identificação entre prestação e função, apesar da diferença fundamental entre os

conceitos; a ideia de que a estabilização de expectativas normativas seria função do direito

penal, ao passo que tal função refere-se ao direito como um todo; e a suposição de que as

normas penais seriam responsáveis pela identidade da sociedade. Este “Luhmann

segundo Jakobs” traria como consequência, então, a consolidação do direito penal (e da

pena aflitiva!) como ator insubstituível e indispensável para a sociedade1024.

Dito isso, resta então a análise comparativa no que diz respeito à função do direito,

particularmente do direito penal. Aqui Possas salienta que Jakobs reduz a função do

direito à função do direito penal e, pior, restringe este à pena aflitiva. Neste contexto,

seria possível observar no pensamento do penalista de Bonn a articulação de três planos

de reflexão: i) sobre a função das normas na sociedade; ii) sobre a função das normas

penais na sociedade e iii) sobre a função do direito penal na sociedade. No primeiro plano

de reflexão Possas enfatiza que, para Jakobs, a sociedade é composta por normas, sendo

que existiria uma distinção entre normas que não necessitam de uma estabilização

especial, por já serem asseguradas por via cognitiva, e normas jurídicas e morais que

necessitam de uma estabilização mediante sanção em razão de sua contingência, sendo

que estas seriam responsáveis pela estrutura da sociedade. Ora, além da já mencionada

ênfase na “teoria da sanção”, Possas recorda que a hipótese das normas jurídicas

constituírem a estrutura da sociedade seria, desde uma perspectiva luhmanniana, “sem

sentido”, já que o sociólogo de Bielefeld desenvolve sua teoria a partir da existência de

diversos sistemas sociais, cada qual contendo uma estrutura própria e fechado

operacionalmente. E, em que pese Luhmann afirmar que “toda convivência humana é

direta ou indiretamente cunhada pelo direito”, e que “sempre é imprescindível um mínimo

de orientação através do direito”1025, isso não significaria que o direito detenha um papel

especial, fundamental para a configuração da sociedade1026.

1024 Por isso afirma, também, que “ao considerar-se a pena aflitiva, cujo modelo padrão, hoje é a prisão,

como a sanção indispensável para garantir a identidade da sociedade, as outras modalidades de afirmação

das normas e mesmo de sanções ficam completamente ofuscadas por seu “brilho”. Ora, isso significa que

resta à sociedade (e ao direito penal) conviver com a pena sem cogitar modifica-la, seja introduzindo novas

sanções, seja simplesmente reduzindo o uso e a duração das penas aflitivas”. Ver POSSAS, Mariana

Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma comparação entre

Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-outubro, 2005, p. 295-

296. 1025 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

07. 1026 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 298.

236

O segundo plano de reflexão destacado está em íntima relação com a ideia de que

existiriam normas jurídicas responsáveis pela estrutura da sociedade, de tal forma que a

importância das normas penais é uma consequência direta deste entendimento, já que

estas serão compreendias como responsáveis por sustentar a ordem social. Nesse sentido,

Possas destaca que na concepção de Jakobs existiriam normas jurídicas, ou seja,

expectativas normativas, que seriam imprescindíveis para o funcionamento da vida social,

sendo que tais normas receberiam proteção pelo direito penal. Por isso a autora sustenta

que “Jakobs produz aqui uma diferenciação valorativa, que hierarquiza as normas de

comportamento numa escala de maior ou menor relevância para a constituição social”1027,

o que não seria passível de generalização, já que da real importância das normas de

comportamento resguardadas pelo direito penal não deriva, necessariamente, a

compreensão de que as normas penais estruturariam a sociedade.

Por fim, surge quase que naturalmente no terceiro plano de reflexão a questão

acerca da função do direito penal na sociedade, já mencionada enquanto proteção e

confirmação da identidade social. Aqui Possas entende estar mais evidente a atualização

da racionalidade penal moderna, já que Jakobs parece supor que sem a especial

contribuição do direito penal, notadamente da pena aflitiva, a sociedade correria o risco

de simplesmente não mais existir1028. Não à toa, como já salientado no primeiro capítulo,

Jakobs sustenta que “o Direito Penal constitui um cartão de visitas da sociedade altamente

expressivo”1029. Mas, segundo a autora, este tipo de construção semântica faz parte de

uma “visão jurídico-penal do mundo”, na qual existiria uma separação ontológica entre

direito penal e direito civil, única hipótese a partir da qual legitima-se a representação do

direito penal “como uma via privilegiada de descrição e interpretação da sociedade”1030.

E enfatiza, uma vez mais, que em termos de teoria dos sistemas as comunicações jurídicas

representam somente uma forma de atribuição de sentido, sendo isto válido, também, para

o direito penal, razão pela qual “o direito não pode, ele mesmo, produzir a identidade da

sociedade, e menos ainda o direito penal”1031.

1027 Ibidem, p. 299. 1028 “Trata-se de um argumento de resistência à evolução interna das normas de sanção em direito penal

que reconduz o quatro estrito das teorias da sanção que sustentam os meios puramente negativos. Isso

evidencia como a teoria da prevenção geral positiva não se afasta das teorias clássicas da dissuasão e da

retribuição do ponto de vista de uma evolução interna do direito penal”. Ver Ibidem, p. 299-300. 1029 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole Editora, 2003, p. 07. 1030 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 300. 1031 Ibidem, p. 301.

237

Feito este exercício de comparação, Possas apresenta sua conclusão, afirmando

que a proposta de Jakobs, construída a partir do (novo) sentido dado à teoria autopoiética

dos sistemas sociais, não permite uma transformação significativa na maneira de pensar

a pena. E questiona: qual seria então a possível contribuição da sociologia luhmanniana

para uma nova reflexão sobre o direito penal? Ou então: “onde está o potencial inovador

da teoria de Luhmann que foi perdido na análise de Jakobs?”1032 Para a autora, o sociólogo

de Bielefeld poderia “ajudar a construir um outro retrato da noção de sistema social que

pode se revelar inovadora se aplicada ao direito penal”1033, justamente por romper a

associação (naturalizada) entre crime e pena aflitiva ao salientar que a sanção não é a

única alternativa possível para estabilizar contrafaticamente a norma jurídica violada.

Isso, evidentemente, não significa negar a importância simbólica da pena aflitiva, mas

sim repensá-la para além das amarras da racionalidade penal moderna, sublinhando a

possibilidade de sua substituição por sanções administrativas ou civis e a valorização de

tentativas de resolução de conflitos como a conciliação, a reparação de danos, multas

reparatórias, serviços à comunidade, tratamento em liberdade e mesmo equivalentes

funcionais como desculpas e explicações.

3.1.2. Teste de produtividade da pesquisa: a insuficiência analítica dos dois

primeiros estudos e a necessidade de aprimoramento do terceiro

Os estudos apresentados são inegavelmente importantes, já que eles conseguem,

por exemplo, dar duas respostas às três principais valorações negativas (caráter

conservador, autoritário e acrítico decorrente do conceito de autopoiese) apresentadas no

primeiro capítulo, já que enfatizam que a presença de Luhmann em Jakobs nada tem a

ver com o suposto caráter conservador ou autoritário do chamado “funcionalismo

radical”1034. Além disso, os autores procuram para esclarecer alguns aspectos da relação

entre Jakobs e Luhmann. Nesse sentido, Garcia Amado defende as incoerências

1032 Ibidem, p. 302. 1033 Idem 1034 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 261; FEIJOO SÁNCHEZ,

Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o hacia una teoria

intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización del derecho penal

y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 24; POSSAS, Mariana

Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma comparação entre

Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-outubro, 2005, p. 274-

275.

238

observáveis nos conceitos de “sujeito” e de “culpabilidade”, ambos marcados, em Jakobs,

por um apelo à “motivação do autor” enquanto consciência autônoma livre, ao passo que

em Luhmann tratar-se-ia de atribuições de sentido pelos sistemas sociais que,

invariavelmente, não podem observar os indivíduos tal como são (consciência),

evidenciando assim a mescla de discursos inconciliáveis1035. Em que pese o esforço

analítico, a crítica não é procedente, já que Jakobs insiste diversas vezes que o problema

da motivação é um problema do autor, e que o direito penal não se preocupa com isso.

Já Feijoo Sánchez chama a atenção para o fato de que, em que pese Luhmann ser

imprescindível para a compreensão da teoria da pena enquanto defesa da identidade da

sociedade (prevenção geral positiva) e para a teoria do delito enquanto teoria da

imputação jurídico-penal, Jakobs utilizaria a distinção fidelidade jurídica/infidelidade

jurídica, alheia à proposta de Luhmann, para observar o sistema jurídico-penal, razão pela

qual toda a construção teórica do penalista de Bonn dependeria desta distinção1036. Por

fim, Mariana Possas enfatiza as diferenças de sentido entre Jakobs e Luhmann quando

abordam temas como expectativas cognitivas e normativas, a relação entre sanção jurídica

e pena e a articulação entre função do direito penal e sociedade1037.

Outras análises importantes podem ser destacadas, tais como a crítica à

ambiguidades dos escritos de Jakobs, bem como a necessidade de se diferenciar

dogmática jurídico-penal e sociologia para evitar o surgimento de aporias que podem

surgir da desconsideração da transposição direta desta para aquela. Além disso, também

é enfatizado que o “anti-humanismo” de Luhmann só faz sentido enquanto proposta

metodológica que afasta o sujeito enquanto instrumento analítico para a compreensão da

sociedade, e não como manifestação de um pensamento tecnocrático que busca legitimar

o sistema a todo custo, insistentemente destacado no levantamento da “repercussão geral”

apresentada ainda no primeiro capítulo.

1035 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 253. Cumpre ressaltar,

entretanto, que aqui Garcia Amado não considera (ou esquece) o argumento de Jakobs de que sua proposta

seria somente uma descrição da imputação do sistema jurídico-penal. Nada impede que determinada

semântica do direito produza a ideia de um sujeito livre ao qual imputa-se culpabilidade pela falta de

motivação do autor, no sentido de que este não satisfez um standart de comportamento. 1036 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o

hacia una teoria intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización

del derecho penal y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 52, nota 109. 1037 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 287-301.

239

No entanto, como já destacado, os dois primeiros estudos, de Garcia Amado e

Feijoo Sánchez, possuem aquilo que foi chamado de “insuficiência analítica”. Por qual

motivo? Ora, diante da ideia de que a sociologia luhmanniana teria um caráter acrítico

(última das valorações negativas destacadas), é importante perceber uma diferença

significativa entre os autores mencionados, já que os espanhóis aproximam-se

consideravelmente, ambos insistindo na incapacidade crítica da proposta

luhmanniana1038, de tal forma que a dogmática jurídico-penal por ela influenciada só

poderia apresentar uma descrição das estruturas e operações do direito penal, ao passo

que Mariana Possas apresenta um leitura mais atenta às premissas da teoria autopoiética

dos sistemas sociais, notadamente na sua capacidade para permitir uma nova reflexão

sobre a pena e a função do direito penal1039. Esta diferenciação é fundamental pois

demonstra, no caso de Garcia Amado e Feijoo Sánchez, a desconsideração das possíveis

articulações entre autodescrições e heterodescrições, no sentido de que a teoria

luhmanniana poderia servir como acoplamento estrutural entre sistema científico e

sistema jurídico-penal, irritando produtivamente as teorias reflexivas deste. Assim, os

autores espanhóis não atentam para uma premissa fundamental da teoria autopoiética dos

sistemas sociais: que o construtivismo radical luhmanniano enquanto crítica e alternativa

à distinção sujeito/objeto, manifestado no conceito de autopoiese a partir do qual

estabelece-se a capacidade de cognição autorreferente do sistema, é a base a partir da qual

as descrições da teoria luhmanniana não são somente outras descrições, já que elas

conseguem trabalhar com os pontos cegos das observações internas dos sistemas, sendo

isto uma consequência, dentre outras, da fundamental articulação entre observações de

primeira ordem e segunda ordem. Com isso, a teoria luhmanniana consegue observar

aspectos não observáveis pelas semânticas internas dos sistemas, podendo portanto irritá-

las produtivamente. É por este motivo que os estudos de Garcia Amado e Feijoo Sánchez,

apesar de importantes, são insuficientes para o desenvolvimento da hipótese de pesquisa

deste trabalho.

1038 GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Dogmática penal sistémica? Sobre la influencia de Luhmann en la

teoría penal, em Doxa. Cuadernos de Filosofía del derecho, nº. 23, 2000, p. 263; FEIJOO SÁNCHEZ,

Bernardo. La normativización del derecho penal: hacia una teoría sistémica o hacia una teoria

intersubjetiva de la comunicación?, em FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. Normativización del derecho penal

y realidade social. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 25, 60-61, 74-76. 1039 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 302-304.

240

Mas isso não ocorre no trabalho de Mariana Possas, já que a “potência crítica”1040

da proposta luhmanniana, ou seu “status crítico”1041, não passa desapercebido, sendo este

o principal mérito de suas reflexões. Aliás, como demonstrado, a autora enfatiza que o

potencial crítico e inovador presente na teoria de Luhmann acaba sendo desperdiçado nas

análises de Jakobs1042, e até enumera possíveis contribuições para o direito penal que

poderiam ser desenvolvidas ((i) a função do direito penal não seria primariamente coativa;

(ii) a função da penal criminal não seria distinta de outras espécies de sanções; (iii) a

utilização de outros tipos de sanções não transformaria o direito penal em direto civil ou

administrativo e (iv) por não ter uma status privilegiado a pena de prisão não significa

uma melhor estratégia de manutenção das expectativas). Assim, para Possas o sociólogo

de Bielefeld poderia “ajudar a construir um outro retrato da noção de sistema social que

pode se revelar inovadora se aplicada ao direito penal”1043, justamente por romper a

associação (naturalizada) entre crime e pena aflitiva ao salientar que a sanção não é a

única alternativa possível para estabilizar contrafaticamente a norma jurídica violada.

Tudo isso, como pode-se perceber, refere-se aos pontos positivos do estudo realizado pela

autora brasileira.

No entanto, se por um lado foi salientado que tais reflexões podem contribuir para

o desenvolvimento da contribuição da macrossociologia luhmanniana para uma nova

forma de pensar a pena e a função do direito penal, por outro também foi destacado que

a autora não esgota a capacidade de rendimento de Luhmann para este projeto. Ou seja,

é possível ir além da assertiva de que a naturalização entre crime e pena poderia ser

criticada desde uma perspectiva luhmanniana. Mas porque isso ocorre? Há alguma

argumento que bloqueia uma percepção mais acurada do radicalismo luhmanniano?

De forma geral, aqui entende-se que, apesar do enorme esforço para realizar um

balanceamento adequado da possível contribuição de Luhmann para essas questões,

existem ao menos dois déficits nas análises de Possas: quanto ao primeiro, a autora não

articula consistentemente a perspectiva inovadora e crítica da teoria luhmanniana com o

construtivismo radical que lhe é inerente, não observando tal radicalidade enquanto crítica

1040 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Potência crítica da ideia de direito como um sistema social

autopoiético na sociedade mundial contemporânea, em SCHWARTZ, Germano (org.). Juridicização das

esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Livraria do

Advogado, 2012, p. 59. 1041 GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 216. 1042 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 273. 1043 Ibidem, p. 302.

241

e alternativa à distinção sujeito/objeto e, consequentemente, inviabilizando preciosas

investigações, por exemplo, acerca da semântica de essencialização do crime a partir de

uma perspectiva luhmanniana, tanto no plano dos discursos de legitimação do direito

penal (proteção de bens jurídicos, harm principle, etc.), de um lado, quanto no âmbito das

discussões da criminologia (impulso criminoso, criminoso “diferente”, comportamento

socialmente negativo, etc.) de outro.

Nesse sentido, cinco insuficiências podem ser destacadas para auxiliar a

observação dos campos que poderiam ser explorados a partir do estudo de Possas: i) a

questão da legitimidade: a autora não aborda como a legitimação do sistema é

compreendida por Luhmann, de tal forma que a própria análise da ideia de legitimidade

do direito penal feita por Jakobs resta ocultada1044. Se a legitimidade do sistema é sempre

legitimidade produzida pelo sistema, a teoria luhmanniana pode contribuir para uma

análise crítica dos discursos que pretendem legitimar o direito de punir; ii) a questão da

função do direito: Possas mescla escritos do Sociologia do direito, de 1972, e do O direito

da sociedade, de 1993, sem atentar para a alteração do conceito de função, tal como

apresentado no segundo capítulo. Em que pese mencionar a distinção feita por Luhmann

entre função e prestação no livro sobre o direito da sociedade1045, passa desapercebido o

deslocamento da ideia da norma como guia de comportamento, antes compreendida como

função secundária do direito, mas que em 1993 passa a ser apresentada como prestação

social que não compromete a função desempenhada pelo sistema jurídico (estabilização

contráfatica de expectativas normativas nas três dimensões de sentido). No mais, por não

considerar as fases de Jakobs (naquilo que será colocado como segundo déficit), Possas

também não percebe que parte considerável dos escritos de Jakobs é anterior à

incorporação do conceito de autopoiese no interior da teoria dos sistemas sociais, o que

permite a realização de uma leitura crítica mais balanceada; iii) a questão das expectativas

normativas e cognitivas: a autora entende que a diferenciação entre expectativas

cognitivas e normativas só pode ocorrer após um desapontamento, criticando Jakobs por

defini-las a priori1046. Entretanto, Possas não observa que é no nível pessoal é possível

esperar normativamente uma determinada situação, de tal forma que pode existir uma

1044 JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1999, p. 40. 1045 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 285, nota 18. 1046 Ibidem, p. 289-290.

242

expectativa normativa anterior à defraudação e, neste caso, não se terá a sensação de que

a expectativa estava errada1047, e também não considera que, segundo o próprio Luhmann,

a decisão entre aprender ou não aprender é feita geralmente antes da própria defraudação:

“a decisão é dada de antemão ao indivíduo através do sistema social: através do fato de

que se espera normativamente que ele deva esperar normativa ou cognitivamente”1048.

Além disso, passa batido o fato de que a “ontologização” da expectativa feita por Jakobs

na verdade corresponde ao normal funcionamento do direito penal (Jakobs é um

observador do direito penal dentro do direito penal), que constrói ontologias. Mas isso

precisa ser desconstruído a partir da percepção das semânticas que dão fundamento à esta

ficção, algo não explorado pela autora; iv) a questão da compreensão estática das

expectativas normativas: como consequência do item acima destacado, Possas entende

que só se pode dizer que o direito deixa de cumprir sua função quando as expectativas

deixam de ser normativas e passam a ser, por exemplo, cognitivas1049. Com isso também

passa batida a mencionada compreensão luhmanniana das normas jurídicas (expectativas

normativas) enquanto projeção temporal, de tal forma que sua própria validade torna-se

provisória, isto é, contingente, razão pela qual Luhmann afirma que também essas normas

se convertem em algo cognitivamente dotado de sensibilidade. Por isso o sociólogo de

Bielefeld afirma que aquele que deposita sua confiança no direito pode realmente contar

com um apoio jurídico em casos de defraudações de expectativas, mas isto não significa

que ele deva contar com a hipótese de que o direito mantenha-se igual, isto é, que sua

validade cultive-se permanentemente, já que as expectativas normativas podem sofrer

modificações1050; v) a questão dos paradoxos constitutivos do direito: enlaçada pela

compreensão estática das expectativas normativas, tal como Jakobs, Possas não é capaz

de observar que o direito é considerado como um modo de “introduzir e integrar um futuro

1047 Esta distinção fica mais clara com o exemplo da secretária: “no caso de esperar-se uma nova secretária,

por exemplo, a situação contém componentes de expectativas cognitivas e também normativas. Que ela

seja jovem, bonita, loura, só se pode esperar, quando muito, ao nível cognitivo; nesse sentido, é necessária

a adaptação no caso de desapontamentos, não fazendo questão de cabelo louro, exigindo que os cabelos

sejam tingidos, etc. Por outro lado espera-se normativamente que ela apresente determinadas capacidades

de trabalho. Ocorrendo desapontamentos nesse ponto, não se tem a sensação de que a expectativa estava

errada”. Ver LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro,

1983, p. 56 (grifo acrescentado). O exemplo da secretária também pode ser encontrado em LUHMANN,

Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La moral de la sociedad.

Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 39. 1048 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La

moral de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p; 40 [tradução livre do espanhol]. 1049 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 286. 1050 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 635.

243

aberto à sociedade”1051, no sentido de que a forma jurídica tenta reprimir a contingência

através da ideia de estabilidade temporal decorrente da semântica do tempo cronológico.

Mas, uma vez que o direito não dá certeza alguma quanto ao comportamento, isto é,

quanto à confirmação daquela expectativa normativa, isso significa, para além da

compreensão de que as frustrações são inerentes, que a norma jurídica é uma forma

artificial de vinculação do tempo que tem como objetivo construir confiança social.

Ocorre que, como já destacado na interpretação de Guilherme Gonçalves, as expectativas

normativas ocultam uma especial relação inerente à própria positivação do direito, qual

seja a conservação da certeza do ambiente por meio da incerteza do direito. Isso significa

que ao reduzir a incerteza social do ambiente através da forma expectativa normativa, o

próprio direito aumenta sua incerteza interna, pois ao efetuar esse processo ele produz

uma série de novos elementos e estruturas. Daí o primeiro paradoxo constitutivo do

direito, pois “as expectativas normativas, como certezas do ambiente, são incertezas do

direito”1052. Por fim, Possas também não atenta para a particularidade do código

comunicativo lícito/ilícito que leva ao segundo paradoxo constitutivo do direito, pois na

medida em que os programas introduzem problemáticas do ambiente no interior do

sistema jurídico aumenta-se assim a complexidade interna do sistema jurídico. Como

destacado, essa situação cria dificuldades para a tomada de decisão, dificultando a ideia

de segurança jurídica, já que a decisão pode variar entre um lado e outro, como já

destacado. Manifesta-se aqui o segundo paradoxo: uma vez que a incerteza da oscilação

de uma decisão entre lícito/ilícito é a única certeza do direito, “o código lícito/ilícito reduz

a incerteza do direito, aumentando a incerteza da sociedade1053.

Feitas essas considerações, é importante atentar para o segundo déficit das

análises. Possas não levanta a questão acerca das fases de Jakobs, e consequentemente

não aborda o tema referente à ambiguidade dos textos do penalista de Bonn pois, ao que

tudo indica, em que pese Jakobs insistir que só estaria descrevendo como funciona o

processo de imputação da sociedade atual1054, a autora compreende que suas reflexões

1051 Ibidem, p. 642 [tradução livre do espanhol]. 1052 GONCALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 246.

Dialogando com a interpretação marxista feita por De Giorgi, Guilherme Gonçalves afirma: “esse paradoxo

está associado ao modo de produção do sistema jurídico. Expectativas normativas não derivam de nenhuma

premissa natural. Ao contrário, por meio de uma abstração, o sistema jurídico produz igualdade formal (não

natural), ocultando diferenças reais”. 1053 Ibidem, p. 250. 1054 JAKOBS, Günther. Culpabilidad y prevención, em JAKOBS, Günther. Estudios de derecho penal.

Madrid: Civitas, 1997, p. 95; JAKOBS, Günther. El principio de culpabilidad, em JAKOBS,

Günther. Estudios de derecho penal. Madrid: Civitas, 1997, p. 387-388; JAKOBS, Günther. Sociedade,

norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 45; JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación

244

buscam fundamentar (proposições normativas) uma “nova” teoria do direito de punir

(prevenção geral positiva)1055. Em que pese ser de todo legítimo defender este tipo de

interpretação, ainda que contra a “vontade do autor”, fato é que Possas passa por cima

deste problema que, para a presente pesquisa, é de fundamental importância. Como já

mencionado na introdução, defende-se aqui a ideia de que diversos escritos de Jakobs da

segunda fase e da ponte para a terceira fase, se concebidos como descrições, tal como o

autor postula, podem ser criticamente potencializados através de uma aproximação mais

atenta às premissas luhmannianas, o que não significa em hipótese alguma negar a

relevância dos escritos do penalista de Bonn, notadamente no Tratado e naqueles que

integram a segunda fase.

Como já destacado na introdução, ao se ignorar a questão referente às fases do

penalista de Bonn corre-se o risco de favorecer a interpretação de que o pensamento deste

autor seria caracterizado por uma continuidade linear, bem articulada. Definitivamente

não é o caso. No entanto, em seu estudo Possas menciona quatro trabalhos de Jakobs

(Tratado, Sociedade norma e pessoa, Sobre a teoria da pena, e O que protege o direito

penal: bens jurídicos ou a vigência da norma?) sem qualquer menção às fases.

Basta aqui retomar as características gerais de cada um desses textos para se

mostrar o quanto tamanha desconsideração pode ser prejudicial. No Tratado

(caracterizado como ponte entre a primeira segunda fase) a função da pena afasta-se

gradualmente dos efeitos de psicologia social observados nos primeiros escritos de

Jakobs, notadamente Culpabilidade e prevenção, de 1976. Por isso foi salientado que a

característica fundamental da segunda fase do pensamento de Jakobs está na ênfase na

compreensão do significado da violação normativa e da pena e do aspecto comunicativo

que as relaciona, naquilo que foi chamado de preponderância da dimensão significativo-

comunicativa, já que o próprio penalista afirma que tanto a violação normativa quanto a

pena estão no plano do significado, e não das consequências externas do

jurídica. Colômbia: Universidad Externado de Colombia, 1999, p. 42; JAKOBS, Günther. O que é

protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em GRECO, Luís & TÓRTIMA,

Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro:

Lumens Juris, 2011, p. 174. 1055 Observe-se que Possas chega a dizer que a teoria de Jakobs, em diversos momentos, não estaria

suficientemente clara. Mas a autora não relaciona isso com a costumeira crítica referente à ambiguidade

dos escritos do penalista de Bonn enquanto variação entre proposições descritivas e normativas. O que é

apresentado é uma crítica à não elucidação de alguns conceitos fundamentais de sua obra. Ver POSSAS,

Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma comparação

entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-outubro, 2005, p.

288.

245

comportamento1056. Este é o contexto a partir do qual a prevenção geral positiva é

apresentada no Tratado como reconhecimento normativo decorrente de três expedientes:

i) exercitar a confiança normativa; ii) exercitar a fidelidade jurídica; e iii) exercitar a

aceitação das consequências.

Já em Sociedade, norma e pessoa Jakobs compreende a sociedade como um

contexto de comunicação1057, e salienta que o funcionalismo está orientado a garantir

aquilo que chama de identidade normativa da sociedade1058. Com isso enfatiza-se a

compreensão comunicativa do fato criminoso, compreendido como uma afirmação

dotada de um significado específico – a contradição da norma – e da pena, também

compreendida como uma afirmação dotada de um significado próprio – resposta que

confirma a norma1059. E aqui, diferentemente do que afirmara no Tratado, Jakobs sustenta

que independentemente dos efeitos de psicologia social a pena já significaria uma

autocomprovação da sociedade1060, chegando mesmo a sustentar que os estudos

empíricos sobre a prevenção geral positiva dizem respeito ao entorno da teoria, e não ao

núcleo, que estaria preocupado com o restabelecimento pelo Direito penal no plano da

comunicação da vigência perturbada da norma1061.

O texto Sobre a teoria da pena, por sua vez, insere-se naquilo que foi denominado

ponte para a terceira fase, já que reafirma aspectos da fase anterior, notadamente a ênfase

na dimensão significativo-comunicativa da pena e a crítica aos elementos de psicologia

social, ao mesmo tempo em que aborda a necessidade de materialização desta enquanto

privação dos meios de desenvolvimento do autor. Como já destacado, quanto ao primeiro

aspecto Jakobs admite que a ideia de que a norma seria um esquema de orientação, tal

como apresentada no Tratado, aproxima-se consideravelmente da teoria finalista de

Welzel, que observava na função ético-social do Direito penal o fortalecimento da atitude

favorável ao Direito pelos cidadãos, e critica essas duas propostas por terem uma

“configuração demasiadamente psicológica”1062. Daí a defesa que tanto a confiança na

norma quanto a atitude conforme ao Direito (fidelidade) – cruciais em Culpabilidade e

prevenção e mesmo no Tratado – seriam “somente aspectos derivados da realidade da

1056 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo

Horizonte: Del Rey Editora, 2009, p. 26. 1057 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 10. 1058 Ibidem, p. 01 1059 Ibidem, p. 03. 1060 Ibidem, p. 04. 1061 Ibidem, p. 04-05. 1062 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal.

Estudios compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 657 [tradução livre do espanhol].

246

sociedade, que é a única decisiva”1063. Por isso acaba considerando que favorecer a

confiança na norma e promover a fidelidade ao direito poderiam até ser elementos

desejados, mas não integrariam o conceito de pena e, por esta razão, estariam ausentes do

conceito de prevenção geral positiva. Já o segundo aspecto, detalhadamente apresentado

no primeiro capítulo, contradiz todo este desenvolvimento teórico apresentado, já que

considera que diante da objetivação do fato delitivo, isto é, de seu significado que também

altera a realidade (“não esta sociedade!”), também a pena deveria perdurar, ser objetivada

e com isso constatar a realidade social1064. Isso pode ser observado quando Jakobs diz que

a pena pública existe para caracterizar o delito como delito, ou seja, “como confirmação

da configuração normativa concreta da sociedade”1065.

Por fim, o último texto mencionado por Possas, O que é protegido pelo Direito

Penal: bens jurídicos ou a vigência da norma?, também integra a ponte para a terceira

fase de Jakobs, já que nele observa-se novamente o argumento de que a pena é uma

resposta objetiva à falta de respeito ao direito demonstrada pelo comportamento do autor,

que não só declarou algo errôneo sobre o alcance de sua liberdade, mas “o fez usurpando

os direitos de terceiros, ou seja, ele não apenas postulou uma sociedade de estrutura

diversa, mas também deu um passo no sentido de torná-la real”1066. E o que é mais

curioso, Jakobs afirma neste texto que “a sociedade, segundo a compreensão da teoria de

sistemas a que eu agora sigo, é comunicação”1067, o que significaria que todas as

afirmações apresentadas neste texto poderiam ser acompanhadas de um “conforme

Luhmann”. Mas é justamente aqui que o penalista de Bonn literalmente “deixa em

aberto”1068 a possibilidade dos fins de psicologia social reintegrarem o núcleo teórico do

conceito de pena, algo que será desenvolvido na terceira fase como necessidade de

sedimentação cognitiva dos entes normativas, novamente com apoio em Luhmann1069.

Ora, por não considerar a discussão sobre o caráter descritivo da teoria de Jakobs

e a existência de fases no pensamento deste autor, além de não abordar reflexões

importantes decorrentes do construtivismo radical luhmanniano, o estudo de Possas não

permite responder algumas perguntas fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa:

1063 Idem [tradução livre do espanhol]. 1064 Ibidem, p. 652 [tradução livre do espanhol]. 1065 Ibidem, p. 645 [tradução livre do espanhol] (ênfase acrescentada). 1066 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 176. 1067 Ibidem, p. 175. 1068 Ibidem, p. 177. 1069 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 140, nota 141.

247

essa nova presença de Luhmann significa que neste texto e em outros posteriores há uma

apropriação rigorosa da teoria luhmanniana? Isso significa que as utilizações

luhmannianas anteriores são arbitrárias?

Além disso, Possas também passa batido pelas duas críticas que Jakobs faz a

Luhmann (a chamada presença “negativa”) e que possuem como pano de fundo o

fortalecimento do sistema econômico, o que também prejudica o desenvolvimento da

pesquisa aqui realizada. Como foi apresentado no segundo capítulo, a discussão referente

ao “primado da economia” e ao “primado da diferenciação funcional” na teoria

luhmanniana é cada vez mais atual. Se Jakobs distancia-se de Luhmann para enfatizar

como a comunicação econômica é mais forte e subordina os demais sistemas, de tal forma

que a economia seria a responsável por estabelecer os deveres que compõem o conceito

de pessoa, isso não está muito distante da ideia de “código forte da economia” apresentada

por Neves1070, nem do estudo crítico de Bachur que compreende o pontapé inicial para

recursividade da reprodução autopoiética na diferenciação funcional da economia1071, em

que pese serem necessários aprimoramentos conceituais, como já destacado. Mesmo

assim, não seria possível fazer um movimento de interpretação regressiva? Se Jakobs

analisa a preponderância do sistema econômico e sua força para exigir a defesa cognitiva

da configuração social afastando-se de Luhmann (ainda que não integralmente)1072, e na

terceira fase recupera o pensamento do sociólogo alemão para estabelecer a salvaguarda

cognitiva da vigência da norma1073, seria o caso de considerar que o radicalismo

construtivista luhmanniano, ignorado por Jakobs em seus escritos da segunda fase e da

ponte para a terceira fase, poderia potencializar criticamente seus escritos deste período

enquanto irritação produtiva das pretensões reflexivas produzidas no interior do sistema

jurídico-penal, o que poderia surtir efeitos no Tratado (como a retirada dos efeitos

psicossociais, por exemplo) e servir como base para o questionamento dos avanços

normativos típicos da terceira fase que desembocam no “Direito penal do inimigo”. Nada

disso pode ser desenvolvido a partir do estudo de Possas. Para além de Jakobs a partir de

1070 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 29. 1071 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 176. 1072 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 58, nota 84 e JAKOBS,

Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em GÓMEZ JARA-

DÍEZ, Carlos (Coord.). Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación.Colômbia: Universidad Externado de Colombia, 2007, p. 213-214, nota 11; JAKOBS, Günther.

Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la

configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 68. 1073 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 140, nota 141.

248

um outro Luhmann: este é o próximo passado da pesquisa que será desenvolvido na

segunda etapa desta primeira parte.

3.1.3. A crítica da presença de Luhmann nas fases de Jakobs: uma nova

compreensão do “material de estímulo” para o questionamento dos

“elementos de condensação” e dos “elementos permanentes”

O objetivo desta segunda etapa da primeira parte é efetuar a dupla análise

mencionada na introdução: verificar quais elementos de condensação integram os

elementos permanentes, e analisar de que forma uma interpretação regressiva formulada

a partir de uma outra leitura de Luhmann permite uma crítica tanto aos elementos de

condensação quanto aos elementos permanentes. Vale a pena relembrar o motivo deste

empreendimento teórico: uma eventual desconsideração da tensão existente entre

elementos permanentes, elementos de condensação e material de estímulo bloquearia a

reflexão acerca da possibilidade de que algum “material de estímulo” renegado possa ser

reconsiderado no interior do próprio projeto para fins de desenvolvimento crítico. Uma

vez que a sequência das fases de Jakobs é conflituosa, quais resultados poderiam ser

observados se o “material de estímulo” luhmanniano fosse (re)selecionado e atualizado

enquanto “elemento permanente”? Que tipo de contribuição poderia ser observada para a

dogmática jurídico-penal a partir do próprio Jakobs? Como será demonstrado, este é o

caminho que abrirá a porta para a possível contribuição da teoria luhmanniana para a

criminologia crítica, particularmente interessada em desconstruir os discursos de

legitimação do direito penal.

Comparação entre os elementos de condensação e os elementos permanentes

A primeira análise tem início com a comparação entre os elementos de

condensação, referentes à tradução feita por Jakobs de alguns conceitos luhmannianos no

decorrer de todas as suas fases, e os elementos permanentes que foram estabelecidos

como síntese final do pensamento do autor.

Os elementos de condensação elencados no primeiro capítulo foram: i)

diferenciação entre mundo social e natural como diferenciação entre expectativas

normativas e cognitivas; ii) distinção entre sistemas sociais (comunicação) e psíquicos

(consciência); iii) compreensão da pessoa (deve manifestar fidelidade ao direito) como

249

construção social (jurídica); iv) identificação entre expectativas normativas e identidade

social; v) compreensão do delito como falha de comunicação; vi) compreensão do sistema

jurídico como sistema social que deve alcançar uma complexidade adequada à sociedade;

vii) identificação entre funções sociais e prestações sociais; viii) compreensão da função

do direito penal, enquanto sistema social parcial, como garantidor da solidez das

expectativas normativas essenciais (identidade social); ix) admissão dos equivalentes

funcionais como formas de substituição da pena; x) compreensão da pena como processo

de comunicação que deve confirmar a vigência da norma, mantendo-a como modelo de

orientação; xi) assunção de que as certezas normativas necessitam de um apoio cognitivo.

Já os elementos permanentes seriam: i) imputação como processo pessoal de

responsabilização; ii) delito como manifestação comunicativa e material que altera a

realidade social; iii) direito penal como responsável pela defesa da identidade social; e iv)

pena como reação comunicativa e material que garante a base cognitiva da construção

social pela orientação de condutas.

Com a leitura de cada um desses blocos percebe-se que a maioria dos elementos

de condensação aparece implicitamente, fundidos nos dois elementos permanentes de

imputação como processo pessoal de responsabilização e de compreensão do direito penal

como responsável pela defesa da identidade social. Este é o caso da diferenciação entre

mundo social e natural enquanto diferenciação entre expectativas normativas e cognitivas

(primeiro item dos elementos de condensação), da distinção entre sistemas sociais e

psíquicos (segundo item dos elementos de condensação), da compreensão da pessoa como

construção jurídica (terceiro item dos elementos de condensação), da identificação entre

expectativas normativas e identidade social (quarto item dos elementos de condensação),

da compreensão do sistema jurídico como sistema social que deve alcançar uma

complexidade adequada à sociedade (sexto item dos elementos de condensação), e da

identificação entre funções sociais e prestações sociais (sétimo item dos elementos de

condensação).

Também é possível perceber que dois elementos de condensação aparecem

explicitamente nos elementos permanentes, quais sejam a compreensão da função do

direito penal como garantidor da identidade social (oitavo item dos elementos de

condensação), novamente, e a assunção de que as certezas normativas necessitam de um

apoio cognitivo (décimo primeiro item dos elementos de condensação), ideia que será

articulada com a finalidade da pena.

250

Além disso, é importante destacar que dois elementos de condensação receberam

um verdadeiro upgrade (materialização do delito e da pena) a partir de ideias provenientes

dos escritos da terceira fase, culminando nos elementos permanentes de delito como

manifestação comunicativa e material que altera a realidade social e da pena como reação

comunicativa e material que garante a base cognitiva da construção social pela orientação

de condutas. Este é o caso da compreensão do delito como falha de comunicação (quinto

item dos elementos de condensação) e da compreensão da pena como processo de

comunicação que deve confirmar a vigência da norma, mantendo-a como modelo de

orientação (décimo item dos elementos de condensação).

Por fim, o único elemento de condensação que não é integrado nos elementos

permanentes refere-se à ideia de equivalentes funcionais como forma de substituição da

pena (nono item dos elementos de condensação), elencada no Tratado e nunca mais

retomada manifestamente, em que pese ser possível considerar sua presença implícita nos

escritos da segunda fase, quando Jakobs salientava que o importante para a pena era

comunicar a vigência da norma sem que os efeitos de psicologia social integrassem o

conceito de pena. Ora, nada impediria que, nesses casos, a pena enquanto violência e dor

penal fosse substituída por outras medidas. No entanto, como pode-se observar, Jakobs

caminhou na direção exatamente contrária, legitimando a necessidade da dor penal para

fins de segurança (cognitiva) social.

Esta comparação permite observar qual é o caminho percorrido por determinado

conceito luhmanniano, desde sua tradução e alocação na dogmática jurídico-penal

durante as fases de Jakobs, até sua sedimentação nos elementos permanentes que

sintetizam o pensamento final do penalista de Bonn. Mas qual é o nível de

comprometimento com o pensamento de Luhmann em cada um desses momentos? Se em

Sociedade, norma e pessoa (1996) Jakobs salientava que suas considerações não

respeitavam os fundamentos da teoria do sociólogo alemão1074, e se em O que é protegido

pelo Direito Penal: bens jurídicos ou vigência da norma? (2003) Jakobs sustenta que a

partir de então ele seguia a teoria dos sistemas1075, isso significa que os escritos da terceira

fase, ao rearticularem os elementos de condensação com os fins de psicologia social,

podem ser considerados como manifestações condizentes com os pressupostos da teoria

1074 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 03. 1075 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 175.

251

luhmanniana? Então os elementos permanentes de sua teoria que sintetizam seu

pensamento final, ao englobarem explícita ou implicitamente os elementos de

condensação, também seriam luhmannianos? Ou tal material de estímulo poderia ter mais

relação com os escritos da segunda fase? E se tudo isso refere-se, por ora, à chamada

presença “positiva” de Luhmann, o que dizer sobre a presença “negativa” do sociólogo

alemão, referente às críticas que Jakobs faz aos conceitos de comunicação e acoplamento

estrutural quando estuda o fortalecimento do sistema econômico, tema ignorado nos

escritos da terceira fase?

Perceba-se a relação: de um lado, os escritos da segunda fase e da ponte para a

terceira fase em que Jakobs estuda a economia como “sistema diretor” que determina o

conceito de pessoa e que leva o direito penal à tutela cognitiva da configuração social,

abrindo a porta para Direito penal do inimigo, são aqueles em que o penalista alemão

mantem uma postura dúbia em relação à teoria luhmanniana, valendo-se de alguns

conceitos desta para construir sua teoria da pena ao mesmo tempo em que critica alguns

de seus conceitos por serem insuficientes para compreender a força do sistema

econômico; do outro, nos escritos da terceira fase, após a “nova adesão” à teoria

luhmanniana manifestada pelo autor, Jakobs não recupera a ideia do predomínio da

economia e defende a salvaguarda cognitiva da vigência da norma através da dor penal

por meio da inserção dos fins de psicologia social naqueles elementos de condensação.

Até aqui, apenas descreveu-se as premissas e variações manifestadas pelo próprio Jakobs.

No entanto, como pode-se perceber, existe um emaranhado de relações neste

mapeamento que evidenciam a tensão existente entre material de estímulo, elementos de

condensação e elementos permanentes. O fato de que as inúmeras questões colocadas não

são esclarecidas pelo próprio autor pode ser uma consequência da dificuldade admitida

diante do conceito de acoplamento estrutural1076. Enquanto o esclarecimento não é feito

pelo próprio Jakobs, entende-se aqui que é justamente isso o que impede a adequada

compreensão da teoria dos sistemas sociais, contribuindo para que a teoria de Jakobs seja

mais labiríntica do que aquela construída pelo sociólogo de Bielefeld. Assim, nas

próximas páginas buscar-se-á demonstrar como um entendimento rigoroso do “problema

do acoplamento estrutural”, intimamente relacionado com o conceito de autopoiese, como

1076 Ein Gespräch mit Herr Professor Dr. Günther Jakobs [Uma entrevista com o Senhor Dr. Professor

Günther Jakobs], realizada em 2008 para a Erste europäische Internetzeitschrift für

Rechtsgeschichte [Primeira revista digital europeia de história do direito]. [tradução livre do alemão].

Disponível em http://www.forhistiur.de/es/2008-10-schmoeckel-von-mayenburg/ (acesso em 13/10/2014).

252

destacado no segundo capítulo, permite uma interpretação regressiva, tornando a teoria

luhmanniana positiva bem ali onde ela se manifesta de forma negativa e, uma vez

(re)inserida no interior do próprio projeto de Jakobs, esta nova presença permite um

desenvolvimento crítico tanto dos elementos de condensação quanto dos elementos

permanentes.

O problema dos acoplamentos estruturais: retomada da potencialidade crítica da

teoria luhmanniana

Uma boa maneira de se começar a análise é retomar justamente o momento em

que Jakobs manifesta-se sobre o conceito de acoplamento estrutural. Como destacado no

capítulo anterior, o penalista de Bonn entende que tal conceito não é suficiente para dar

conta das relações entre os sistemas sociais, já que “se deveria aceitar que cada sistema

trata de ser um entorno adequado para os outros sistemas, de maneira que estes sejam um

entorno óptimo para ele”1077. Por trás desta compreensão está a ideia de que o ambiente

óptimo não deriva da igualdade dos sistemas, mas da estabilidade de determinada relação

entre eles, e neste particular relacionamento jogaria um papel fundamental o sistema

econômico, mais forte e capaz de subordinar os demais, tornando-os ambientes

adequados à sua pretensão. Mas não seria possível abordar essas questões desde uma

perspectiva luhmanniana?

Tudo isso está muito próximo da discussão apresentada no capítulo anterior acerca

da conturbada relação entre autopoiese e acoplamentos estruturais. Como já destacado, o

próprio Luhmann salienta que a diferenciação funcional não garante de forma alguma

iguais oportunidades para todos os sistemas funcionais1078. Daí que alguns sistemas

sociais podem ser “mais desenvolvidos” que outros, já que contam com uma

complexidade interna maior e com um meio de comunicação simbolicamente

generalizado mais “forte”. Mas isso significaria, como diz Jakobs, que diante do

predomínio da economia o direito se converteria em uma parte dela?

Essa questão remete ao debate acerca do início da diferenciação funcional, tema

abordado por Luhmann em diversas ocasiões, e à relação entre autopoiese e acoplamentos

1077 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em

GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Colômbia: Universita Externado de Colombia, 2007, p. 214, nota 11 [tradução livre do

espanhol]. 1078 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 610.

253

estruturais, ambos intimamente conectados. Em 1965 o sociólogo alemão afirmava que

“um vasto processo cultural” relacionado à mobilização de vínculos materiais (dinheiro)

e pessoais (organizações) é responsável por possibilitar “o potencial comunicativo da

sociedade e sua capacidade de definir as situações de maneira diferenciada e variável”1079,

e salientava que “certamente o desenvolvido para uma diferenciação social mais forte não

teve início contemporaneamente em todos os âmbitos funcionais”1080. Em 1976, período

em que Luhmann abordava a sociedade como caracterizada pelo primado da economia,

pode-se ler que a diferenciação funcional do sistema econômico faria com que a sociedade

alcançasse “um nível de complexidade que exige diferenciações funcionais para todos os

âmbitos funcionais”1081. A possível ênfase no aspecto econômico é deixada em aberto por

Luhmann em 1981, quando entendia que a caracterização da sociedade como “dinâmica”

poderia ser atribuída ao capitalismo ou à diferenciação funcional1082. Por fim, em 1997,

encontra-se a vaga afirmação de “que o decisivo é que em algum momento a

recursividade da reprodução autopoiética começa a controlar a si mesma e alcança um

fechamento”1083.

Como salienta Neves, com a incorporação do conceito da autopoiese, ocorrida em

1984, percebe-se um afastamento das explicações que colocavam ênfase na sociedade

econômica, de tal forma que Luhmann passa a enfatizar a horizontalidade dos sistemas

autopoiéticos1084. Neste contexto, Bachur também nota que seria possível observar o que

chama de “tratamento desequilibrado” das questões que envolvem o conceito de

autopoiese e de acoplamento estrutural, já que Luhmann focalizaria a autonomia

manifestada no primeiro em detrimento da interdependência derivada do segundo1085.

De fato, as considerações de Luhmann permitem este raciocínio. Como já

apresentado, ele afirma que “os acoplamentos pressupõem uma continuidade de

1079 LUHMANN, Niklas. I diritti fondamentali come istituzione. Bari: Dedalo, 2002, p. 72 [tradução livre

do italiano]. 1080 Ibidem, p. 293 [tradução livre do italiano]. 1081 LUHMANN, Niklas. Evolution und Geschichte apud BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto:

para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 179. 1082 LUHMANN, Niklas. Teoria política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 84,

nota 42. 1083 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 561 [tradução livre do

espanhol]. 1084 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 28, nota

103. 1085 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 157-158.

254

materialidade”1086, e que estes só podem ocorrer caso “não suprimam a autopoiesis dos

sistemas parciais”1087. Diante desta situação, mas considerando o inegável ganho teórico

manifestado no conceito de autopoiese, Bachur entende que existiria uma

indissociabilidade entre autopoiese, acoplamentos estruturais e evolução, e por isso

propõe uma “reparação conceitual”, de tal forma que autopoiese significaria autonomia

mais interdependência1088.

Ora, uma vez que o sistema econômico foi o primeiro a se diferenciar

funcionalmente (algo salientado pelo próprio Luhmann), então seria possível considerar

os acoplamentos estruturais entre direito e economia a partir de uma determinada relação,

como expressa Jakobs, e que nos dizeres de Bachur refere-se ao fato de que a

diferenciação funcional da economia “oferece apenas as precondições para que a

autopoiese dos outros sistemas ocorra concomitantemente com os acoplamentos”1089.

Ou seja, a partir desta construção luhmanniana crítica1090 também é possível

compreender a desigualdade existente entre os sistemas. Não à toa Bachur defenderá a

tese de que o “em algum momento” mencionado por Luhmann (acima destacado) refere-

se ao desenvolvimento do capitalismo, afirmando que este seria “a alavanca histórica que

pôs em marcha aquela contínua diferenciação paralela de uma maioria de sistemas

funcionais”1091. Em sentido muito próximo, Neves considera que o sistema econômico

possui um código binário mais forte (ter/não ter), que inclusive poderia levar à

“desdiferenciação economicamente condicionada no âmbito da sociedade mundial”1092.

Perceba-se: isso não significa tomar o direito como parte da economia, como quer

Jakobs, e assim cair em mais um discurso economicista. Bachur e Neves fazem questão

de enfatizar isso: o primeiro, salientando a diferenciação funcional da economia não é

1086 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 74 [tradução livre do

espanhol]. 1087 Ibidem, p. 476 [tradução livre do espanhol]. Como colocado no capítulo anterior, Luhmann não é muito

claro ao abordar o tema, já que também afirma que sem os acoplamentos estruturais a diferenciação

funcional teria sido interrompida desde o início. Ver LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad.

México: Herder, 2007, p. 617. 1088 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 158. 1089 Ibidem, p. 181. 1090 Aqui é importante sempre considerar o alargamento cognitivo da teoria dos sistemas sociais. Ver

GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e teoria dos sistemas. Notas para uma agenda de

pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (orgs.) Dossiê Niklas Luhmann.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 272. 1091 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 176. 1092 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 29.

Como destacado no segundo capítulo, aqui Neves salienta que este seria m problema persistente na

modernidade periférica.

255

causa da diferenciação dos demais sistemas funcionais1093, o segundo destacando que o

primado social da economia não significa uma necessária falta de autopoiese nos demais

sistemas sociais1094. Mas pode-se compreender, como destacado no capítulo anterior, que

essa desigualdade entre os sistemas também repercute no âmbito da exclusão social. Uma

exclusão do sistema econômico é particularmente potente para iniciar uma exclusão em

efeito cascata, e a capacidade crítica da teoria dos sistemas para lidar teoricamente com

isso permite observar as contradições da diferenciação funcional, manifestamente incapaz

de cumprir a inclusão principiológica.

Ora, esta “recuperação” de Luhmann traria alguma consequência para a primeira

crítica feita por Jakobs à teoria luhmanniana em Sociedade, norma e pessoa, referente ao

conceito de comunicação? Isto é, uma vez reintroduzido um novo material de estímulo

luhmanniano em Jakobs pela porta do acoplamento estrutural, que tipo de consequência

uma interpretação regressiva acarretaria para o texto mencionado e para as outras

manifestações de Jakobs acerca da teoria luhmanniana?

O problema da comunicação: início da interpretação regressiva

Já foi aqui destacado que em Sociedade, norma e pessoa Jakobs adverte que suas

considerações “não são em absoluto consequentes a essa teoria, e isso nem sequer no que

se refere a todas as questões fundamentais”1095. No entanto, isso não o impede de

estabelecer, citando Luhmann, que “funções são as prestações que – sozinhas ou

juntamente com outras – mantêm um sistema”1096, ou então que o sistema jurídico deve

alcançar “uma complexidade adequada com referência ao sistema social”1097, por

exemplo. De toda forma, fato é que para Jakobs existiriam duas sociedades, a instrumental

e a pessoal, sendo que esta “só começa com normas que vinculam ambas as partes”1098.

Por isso o penalista de Bonn critica o conceito “homogêneo” de comunicação

luhmanniano, a partir do qual existiria somente um tipo comunicação (de sociedade)1099.

1093 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 181. 1094 NEVES, Marcelo. Aumento da complexidade nas condições de insuficiente diferenciação funcional: o

paradoxo do desenvolvimento social da América Latina, em SCHWARTZ, Germano (org.). Juridicização

das esferas sociais e fragmentação do direito na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Editora Livraria

do Advogado, 2012, p. 206. 1095 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 02-03. 1096 Ibidem, p. 03. 1097 Ibidem, p. 08. 1098 Ibidem, p. 21. 1099 Ibidem, p. 58-59, nota 84.

256

Aqui importa relembrar os conceitos referentes a cada tipo de comunicação: na

instrumental, o outro é visto como um cálculo estratégico, já que a psique humana

traduziria as necessidades do corpo a partir do código satisfação/insatisfação. Dessa

forma, o indivíduo não se vê obrigado a nada, é dizer, não pratica qualquer dever para

com o outro, já que se considerada centro preferencial do mundo1100); já na pessoal, o

outro é visto como um igual, como pessoa, detentor de deveres e direitos1101,

prevalecendo um código normativo que vincula as pessoas1102 e afastando o código das

próprias preferências. Para que isso possa fazer algum sentido é necessário compreender

a sociedade como conjunto de normas, e é exatamente isso o que Jakobs faz: “A

constituição da sociedade tem lugar por meio de normas”1103. Dito isso, pergunta-se:

como a discussão anterior a respeito do acoplamento estrutural pode ter alguma relação

com isso?

A resposta: descrevendo de outra forma aquilo que Jakobs chama de

funcionalismo jurídico-penal. Já que neste texto o próprio Jakobs enfatiza que não

respeita as premissas luhmannianas, mas mesmo assim continua utilizando-o como

material de estímulo, esta nova descrição poderia valer-se da particular relação entre

acoplamento estrutural e autopoiese e ao final, manter o conceito de comunicação

luhmanniano. Isto é, se neste texto a assumida falta de respeito aos “fundamentos” da

teoria dos sistemas sociais termina na crítica ao conceito de comunicação luhmanniano,

o desenvolvimento do caminho contrário, naquilo que se chamou interpretação

regressiva, traria que tipo de consequência?

Esta segunda pergunta pode começar a ser respondida a partir do próprio Jakobs.

Como ele bem sabe, Luhmann exclui os homens da sociedade, já que “do mesmo modo

que a consciência segue suas próprias regras, também o faz a comunicação”1104. Ora, Isso

significa que cada um desses sistemas (social e psíquico) estabelece distintas relações

entre sistema e ambiente, isto é, “distintos acessos ao mundo”1105, de tal forma que

nenhum deles “é observável em sua totalidade e em seus fundamentos de seleção”1106.

Aqui joga importante papel o conceito de interpenetração, tipo específico de acoplamento

1100 Ibidem, p. 51. 1101 Ibidem, p. 46. 1102 Ibidem, p. 55. 1103 Ibidem, p. 10. 1104 Ibidem, p. 02. 1105 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 237 [tradução livre do

espanhol]. 1106 Idem.

257

estrutural entre sistemas que co-evoluem, como é o caso dos sistemas sociais e psíquicos.

Nesta particular relação os sistemas pertencem reciprocamente um ao entorno do outro,

de tal forma que um sistema põe à disposição sua própria complexidade para a construção

do outro sistema. Mais do que reafirmar a fundamental importância do ambiente para o

sistema, este conceito mantêm a autonomia e a seletividade desses sistemas1107.

Isso significa que somente a comunicação comunica, e que consequentemente o

homem continua sendo ambiente da sociedade. Mas Jakobs não dá este passo, e

aparentemente ignora o conceito de interpenetração. Aqui é de fundamental importância

a nota 79 de Sociedade, norma e pessoa, em que o penalista de Bonn expressamente diz

que considera “exagerado contrapor como princípio a pessoa constituída

comunicativamente à consciência subjetiva”1108, já que neste caso “as “irritações” do

conhecimento deixariam à mercê da causalidade o desenvolvimento desse processo de

comunicação”1109. O desconforto com o “anti-humanismo” fica evidente quando sustenta

que “tem de ser alguém que pode entender, simular entendimento ou tratar de chegar a

uma relação”1110, de tal forma que “o processo de comunicação deve ter, pois, em

consideração o conhecimento em sua unidade e complexidade”1111. Ou seja: Jakobs não

só não aceita (ou não compreende) que o sentido seja desvinculado do ser, como não

compreende (ou ignora) o significado do conceito de interpenetração acima exposta (o

que comprova suas dificuldades com o conceito de acoplamento estrutural).

Dito isso, o que importa notar é que seus dois tipos de comunicação partem do

“indivíduo particular”1112, e por isso mesmo sua proposta necessita compreender a

sociedade como conjunto de normas. Esta consequência teórica não pode passar

despercebida. Note-se: como era de se esperar (seja pela advertência feita por Jakobs seja

pela rejeição/incompreensão demonstrada), aqui o penalista de Bonn contradiz seu

próprio argumento inicial, de que não entendia a sociedade a partir do indivíduo. Já que

este é tomado como elemento da sociedade, isso significa não só que o homem depende

da sociedade, mas fundamentalmente que a configuração desta depende de determinadas

relações entre os homens. Daí a ideia de que o homem deve ser capaz de respeitar

determinadas normas para que a sociedade não sucumba, principalmente aquelas

1107 Ibidem, p. 202. 1108 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 56, nota 79 (ênfase no

original). 1109 Idem. 1110 Idem (ênfase acrescentada). 1111 Idem. 1112 Ibidem, p. 47,54.

258

“essenciais”. A colocação de Jakobs ilustra isso de forma primorosa: “a identidade da

sociedade se determina por meio de regras de configuração, vale dizer, por meio de

normas”1113. Que a partir desta construção o penalista de Bonn chegue à conclusão de que

certas normas, que dependem da disposição subjetiva (daquele indivíduo que faz parte da

sociedade) devem ser garantidas “precisamente por meio da sanção”1114, não chega a ser

surpresa alguma: direito penal como garantidor da segurança da sociedade é o resultado

esperado desta construção teórica. Mas se aqui fosse reinserido aquele material de

estímulo luhmanniano mais atento às suas premissas, como esta construção poderia ser

observada?

Primeiro desenvolvimento da potencialidade crítica: questionamento dos

elementos de condensação

Duas reflexões de Luhmann apresentadas no capítulo anterior podem ajudar. Ao

discutir os problemas da semântica do sujeito, particularmente a necessidade do a-

conceito de intersubjetividade e da transcendência como elemento de garantia de um

mínimo de acordo na sociedade “humanista”, o sociólogo sustenta que o contraponto

desta construção foi o entendimento de que as contravenções contrárias à razão eram

compreendidas como desrespeito às normas, possibilitando assim uma engenhosa

fundamentação para a prisão dos indivíduos que se “desviavam”1115. Mas o que foi

necessário para que esta queda do reino da razão pudesse ser fundamentada? Entra em

cena aqui a culpa individual como mecanismo de repressão da contingencia que permite

isolar o acontecimento decepcionante, tratando-o como motivação deficiente do autor

(pessoal formal que não respeita direitos e deveres) e não “como um desastre imprevisível

que deve continuar e que se prolonga aos filhos e netos”1116.

Ora, essa construção está muito próxima do axioma fundamental do direito

natural, de uma “obrigação e um dever transcendentes à existência humana”1117, em que

“só uma ordem legal que pretenda impor-se pelo seu caráter obrigatório, ou seja, por meio

1113 Ibidem, p. 10-11. 1114 Ibidem, p. 12. 1115 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 818. 1116 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La

moral de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 53 [tradução livre do espanhol]. 1117 WELZEL, Hans. Diritto naturale e giustizia materiale. Milão: Giuffrè Editora, 1962, p. 364 [tradução

livre do italiano].

259

do dever, pode ser denominada Direito”1118. Tão próxima que pode ser facilmente

observada em semânticas de legitimação do direito penal: Welzel sustenta que “o

reconhecimento do homem como pessoa responsável é o pressuposto mínimo que uma

ordem social deve mostrar se não quer obrigar simplesmente pelo seu poder, e sim como

Direito”1119, disso resultando que uma norma só poderá ser imposta como direito quando

“manter incólumes as propriedades ou os componentes essenciais que fazem com que o

homem (...) adquira a condição de pessoa responsável”1120. Por trás desta construção –

que no finalismo remete à esfera ontológica das estruturas lógico-objetivas e à direção

finalística da conduta – está a compreensão do homem como ser capaz de comprometer-

se. Mas quando isso decorre da internalização do dever (atribuída), isso nada mais é do

que uma construção normativa do homem. Um animal capaz de prometer, como dizia

Nietzsche, “não é este o verdadeiro problema do homem?”1121.

Perceba-se que qualidade do dever, ao mesmo tempo fundamento da norma e da

pessoa, não é problematizada. Citando Welzel, Luhmann salienta que esta qualidade é

inserida no próprio conteúdo da norma, e “não se pergunta, por exemplo, para que o dever

ou se podemos viver sem o dever ou com que poderíamos substituir o dever”1122, de tal

fomra que sequer é colocada a pergunta pelos equivalentes funcionais do dever. É

importante notar que, em que pese a ideia de fidelidade ao direito de Jakobs presente no

conceito de prevenção geral positiva dos escritos da primeira e terceira fases,

caracterizados pelos fins de psicologia social, estar muito próxima desta compreensão, o

penalista de Bonn simplesmente não questiona a pessoa enquanto construção jurídica.

Ora, se ele mesmo insiste que suas descrições seriam neutras1123, uma observação

(externa) a partir da teoria dos sistemas não poderia revelar o autoritarismo dessas

construções de legitimidade (interna) que ignoram, por exemplo, a temática da exclusão

social? Como se verá, a partir da retomada do material de estímulo luhmanniano é

1118 MARTÍN, Luís Gracia. O finalismo como método sintético real-normativo para a construção da teoria

do delito, em Revista da Associação brasileira de professores de ciências penais, volume 2. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 09-10. 1119 WELZEL, Hans. Diritto naturale e giustizia materiale. Milão: Giuffrè Editora, 1962, p. 364 [tradução

livre do italiano]. 1120 MARTÍN, Luis Garcia. O finalismo como método sintético real-normativo para a construção da teoria

do delito, em Revista da Associação brasileira de professores de ciências penais, volume 2. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 10. 1121 NIETZSCHE. Friedrich. Genealogia da moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,

p. 47. 1122 LUHMANN, Niklas. La moral de la sociedad. Madrid: Trotta Editora, 2013, p. 30, nota 05 [tradução

livre do espanhol]. 1123 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 45.

260

possível estabelecer algumas considerações que questionam o sentido dado por Jakobs

aos conceitos da teoria dos sistemas sociais. Por isso foi salientado que um novo Luhmann

a partir de Jakobs permite um desenvolvimento crítico da teoria deste autor.

Este caminho tem início com a compreensão da culpa jurídico-penal como um dos

elementos de uma densa construção semântica que busca ocultar o paradoxo do

fundamento (ausente) do sistema penal. Este, como todos os outros sistemas sociais,

inventa sua própria realidade, simplifica a comunicação social e, em seu interior,

desenvolve semânticas que buscam orientar a comunicação interna. É necessário

perceber, no entanto, que aqui não há uma certeza absoluta. Não se pode esquecer que

toda seleção implica desconsideração de outras possibilidades que ficam à disposição

para seleções futuras, e por isso toda e qualquer natureza do direito penal é natureza

construída. Assim, a pergunta pela forma como se constrói esta realidade deve começar

pela observação da distinção primária a partir da qual o sistema jurídico-penal opera.

Perceba-se que, até aqui, o próprio Jakobs estaria de acordo com esta ênfase na pergunta

sobre como ocorre a imputação.

No entanto, Jakobs observa o direito penal no interior do direito penal e,

consequentemente, precisa trabalhar com as distinções normativamente selecionadas pelo

sistema. Consequentemente, ele não consegue observar de que forma o direito penal

oculta o paradoxo da autofundação. Trata-se aqui da distinção entre direito penal e crime,

base a partir da qual outras distinções podem ser feitas. Isso nada mais significa que essa

distinção permite a construção de teorias do crime e teorias do direito penal. Assim como

direito e sociedade co-evoluem, na medida em que a premissa luhmanniana está na

diferença entre sistema e ambiente, direito penal e crime também co-evoluem.

Como toda distinção, esta também possui seu ponto cego, ou seja, através da

distinção não se vê a unidade da diferença entre direito e crime. Já que todas as

observações são produzidas no presente, também a distinção entre direito penal e crime

se produz no presente. Mas pergunta-se, o que é o presente? Como é possível observar o

presente? Segundo De Giorgi, o presente representa a unidade da diferença entre passado

e futuro, sendo, entretanto, inobservável. No entanto, por meio da semântica do tempo

cronológico, o presente, quando atualizado, já é passado em relação à observação. Essa

construção pretende ocultar a já mencionada dimensão complexa do tempo: quando a

projeção dos efeitos também motiva as escolhas, é dizer, quando o “efeito contribui para

261

gerar a causa que o produz”1124, o efeito acaba tornando-se efeito de si mesmo. Ora, isto

rompe com a noção de linearidade entre “antes” e “depois”. No entanto, para proteger a

estabilidade temporal, o direito penal articula a semântica do tempo cronológico à uma

segunda distinção, fundamental para sua pretensão de vinculação do futuro, qual seja a

distinção causa/efeito1125. Com isso o direito penal consegue construir a imagem de que

o presente aparece como efeito do passado, e como causa do futuro1126. É essa sofisticada

semântica geral – tão importante para as chamada funções preventivas – que permite ao

direito penal construir projetos “racionais” para o futuro.

Neste contexto a “ordem social” é objeto de proteção pelo direito penal, como

bem sustentado por Jakobs que, como visto, compreende a identidade social como

resultado daquelas expectativas normativas essenciais. Uma vez mais o interesse aqui está

em perguntar: como isso é construído? E novamente: esta é uma pergunta impossível par

ao observador que está dentro do sistema (Jakobs). De acordo com De Giorgi, a

contraposição entre direito e crime, como se fossem realidades diferentes e contrapostas,

permite que observações da política, da moral e da sociologia construam autovalores,

assim como a percepção produz objetos. Estes, entendidos como entidades que têm sua

existência, serão chamados, pelo direito, de bens jurídicos e, pelo crime, de desvio. Ora,

é a partir desta construção que bens jurídicos e desvios são ontologizados, compreendidos

como realidade a partir de sua universalização. Perceba-se: Jakobs sabe muito bem que o

Direito penal não pode partir da ontologia, e critica profundamente esta concepção. No

entanto, ele uma vez mais não é capaz de observar a ontologia produzida pelo direito

penal. É neste específico sentido que se pode falar que o penalista de Bonn ontologiza as

expectativas, pois as toma como um dado oferecido pelo sistema, abordando-as desde

uma perspectiva estática, “segura”. O resultado disso é um só: prevenção e tutela de bens

jurídicos/normas essenciais à sociedade: a “fonte” de legitimação do direito penal já pode

operar.

No entanto, a partir da teoria dos sistemas sociais é possível compreender que

essas construções referem-se a autodescrições do sistema jurídico-penal. Isso significa

que elas derivam das próprias seleções do sistema, isto é, são produzidas por ele mesmo,

1124 ESPOSITO, Elena. La memoria sociale. Mezzi per comunicare e modi di dimenticare. Roma-Bari:

Laterza, 2001, p. 245. apud GONÇALVES, Guilherme Leite. Direito entre certeza e incerteza. Horizontes

críticos para a teoria dos sistemas. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 214. 1125 Para uma descrição detalhada do problema da causalidade no interior do direito penal ver DE GIORGI,

Raffaele. Azione e imputazione. Semantica e critica di un principio nel diritto penale. Lecce: Edizioni

Milella, 1984, p. 95 ss. 1126 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.122.

262

o que significa que os bens jurídicos não são compreendidos como “interesses humanos

que carecem de proteção penal”1127. Uma vez que o homem está no ambiente do sistema

jurídico e, como observado anteriormente, não é capaz de determinar as seleções deste

sistema social, seja em respeito à premissa autopoiética, seja em consideração à diferença

entre comunicação e consciência, toda tematização de fatos externos (interesses dos

homens, uma vez mais) é compreendida como informação que foi gerada

internamente1128. Quando o sistema jurídico (penal) leva isso em consideração, ele o faz

enquanto diferença interna que faz a diferença, isto é, atribui ao ambiente conhecimentos,

e não normas, e tudo isto é uma operação interna e não uma processo de transferência de

informação do ambiente para o sistema. Assim como o interesse é “humano” na medida

em que foi atribuído pelo sistema ao ser humano, também o crime não pode ser

considerado como uma falha de comunicação do homem, como quer Jakobs. O que ocorre

é a construção significativa pelo sistema de determinado acontecimento como delito.

O que importa destacar é que esses autovalores possuem uma realidade própria,

uma temporalidade. Perceba-se o enriquecimento produzido pela articulação entre

semântica do tempo cronológico e das consequências para as relações entre direito e

crime: o futuro passa a ser compreendido como algo que pode ser tratado, evitado ou

construído por políticas criminais, “ou, como se diz, de forma metafísica, para a

prevenção da criminalidade”1129. A consequência final é eloquente: o tempo do direito

penal é o tempo da ordem, e o tempo do crime é o tempo da desordem. Caberá ao direito

penal, “guardião da sociedade”, proteger sua “identidade”, seus valores essenciais.

Mas esta ficção pode ser cada vez mais elaborada, permitindo ao direito penal

construir detalhadamente sua complexidade: a contingência do futuro é reprimida em

torno da ideia de prevenção; a complexidade da relação entre sociedade e seres humanos

(sistemas sociais e psicofísicos) e o não saber de suas diferenças simplifica-se como

integração; e a desconsideração das diferenças dos indivíduos é ocultada pela

ressocialização1130, como bem colocado, uma vez mais, por De Giorgi. Será a

contingência manifestada na variabilidade estrutural do direito positivo um problema para

esta semântica? Claro que não, já que também desenvolve-se no interior do sistema

1127 HASSEMER, Winfried. Linhas gerais de uma teoria pessoal do bem jurídico, em GRECO, Luís &

TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de incriminar?. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 21. 1128 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 140-141. 1129 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 123-124. 1130 Ibidem, p. 127.

263

jurídico-penal uma semântica que contorna este problema ao pressupor que os

destinatários do direito, considerados como pessoas, devem aprender as modificações

desencadeadas pela positivação, ou seja, devem ter uma predisposição cognitiva frente ao

direito, permitindo que o direito penal se imponha e mantenha seu status de guardião das

expectativas essenciais da sociedade e orientador das condutas. Aqui observa-se a

salvaguarda cognitiva da configuração social já estabilizada, que Jakobs em um primeiro

momento diz ser exigência da economia.

No entanto, como o direito penal consegue operacionalizar esta complexa

condensação de sentido derivada de tantas semânticas? O conceito jurídico-penal de ação

é uma boa forma de observar como este sistema constrói sua ficção densamente

elaborada. A função deste conceito está relacionada com o desnível de complexidade

existente entre sistema e ambiente, não no sentido de que o sistema deva se adequar à

complexidade do ambiente, o que poderia sugerir que em algum momento existiria uma

identidade de complexidade entre sistema e ambiente (o que significaria o fim da

diferença entre ambos). O sistema simplesmente reduz a complexidade do ambiente,

sempre maior, com o auxílio da ação enquanto autossimplificação indispensável para o

estabelecimento de relações de causalidade1131. A imputação da ação garante a evolução

do sistema.

Dessa forma é construída uma narrativa singular a partir da identificação entre

crime e ação e que, por meio da imputação e das diversas semânticas mencionadas,

possibilitam ao direito penal construir sua realidade. Como já foi destacado, no teoria dos

sistemas sociais de Luhmann, as ações são unidades de sentido1132, construções dos

sistemas que permitem isolar um evento no fluxo de comunicação social. No âmbito do

direito penal, a ação (imputada) desempenha o fundamental papel de orientar o fluxo

comunicativo. Para tanto, ela será detentora de uma história própria, como evento onde

confluem personagens, espaços e tempos próprios, atribuídos por cada uma das

semânticas mencionadas. É a partir desta redução de complexidade que o direito penal

atribuirá responsabilidade aos homens e evluirá. Para tanto, aquela semântica da

causalidade do agir será relacionada com mais uma semântica especialmente importante

para o direito penal: a ideia do homem livre e racional, herança do Iluminismo, articulada

com aquela compreensão que o vê como ser capaz de comprometimento. Juntas, elas

1131 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 141. 1132 Ibidem, p. 120.

264

servirão como base para construção da pessoa como sujeito responsável que deve arcar

com seus deveres, um dos pilares da teoria da imputação jurídico-penal.

Essas reflexões buscam somente demonstrar a capacidade crítica da teoria

luhmanniana de observar a forma como o direito penal constrói sua ficção densamente

elaborada. Como pode-se perceber, contrariamente à opinião de que “a teoria sistêmica

representa uma descrição, cética e tecnocrática, do modo de funcionamento do sistema,

mas não uma valoração e muito menos uma crítica do próprio sistema”1133, ela pode muito

bem observar a “naturalidade” do direito penal que é (deve ser) como é.

Isso fica ainda mais claro ao se perceber que a realidade que o direito penal

constrói é a realidade da autorreferência interna do sistema penal, que não tem equivalente

na realidade externa do ambiente. Mas como Jakobs não pode observar isso, ele não pode

concluir que o direito penal não pode controlar a “realidade” da comunicação social1134,

ou a “identidade” da sociedade. Isto lhe é dado. No entanto, como o próprio Luhmann

estabelece, sistemas “não podem se legitimar dentro do todo da sociedade como condição

da ordem em si”1135. Ou seja, o direito penal só é capaz controlar a si mesmo, não tendo

por isso qualquer função de estabilização da presumida “ordem social”, em que pese ser

esta a imagem apresenta pela autodescrição do referido sistema.

Isso traz dificuldades enormes dificuldades para a ideia de que o direito penal teria

qualquer fim de psicologia social. É claro que isso é efetivamente colocado no nível da

autodescrição do sistema jurídico-penal. No entanto, desde uma perspectiva luhmanniana

atenta ao desenvolvimento de suas reflexões “jurídicas”1136, o direito não tem como

função orientar comportamentos, isto é, “a função do direito não consiste em cuidar que

se atue legal o ilegalmente” 1137, algo que, diga-se de passagem os escritos da segunda

fase de Jakobs também defendem. Por isso Luhmann salienta que a norma não se constitui

a partir das motivações que levam ao seu cumprimento, de tal forma que sua função não

é orientar motivações, não é assegurar um determinado comportamento1138. É dizer, o

direito só pode ter uma função, qual seja dar segurança (produzida) às expectativas

1133 MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. Bogotá: Editorial Temis, 2004, p. 16

[tradução livre do espanhol]. 1134 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 130. 1135 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 590-591 [tradução livre do

espanhol]. 1136 Vale a pena lembrar que até o início da década de 80 Luhmann compreendia que o direito tinha como

função orientar comportamentos, ainda que secundariamente, como destacado no capítulo anterior. 1137 LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales. México: Anthropos Editorial, 1998, p. 339 [destaque

acrescentado]. 1138 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 191-192.

265

normativas no processo de estabilização contrafática das mesmas nas três dimensões de

sentido, de tal forma que a orientação de condutas é relegada à condição de prestação

social, como já destacado.

Neste contexto, é importante compreender a norma jurídica (expectativa

normativa) enquanto projeção temporal. Isso significa que sua própria validade é

considerada provisória, isto é, contingente, como forma de se ocultar a complexidade e

contingência do mundo. Consequentemente, também essas normas se convertem em algo

cognitivamente dotado de sensibilidade, ou seja, também elas sofrem modificações1139.

Por isso que aquele que conta com um apoio normativo em caso de defraudação da

expectativa não pode contar com a hipótese de que o direito mantenha sua validade, o que

reforça ainda mais a impropriedade, desde uma perspectiva luhmanniana, de se falar em

identidade social enquanto expectativas normativas essenciais, como quer Jakobs1140.

Como já mencionado, o que há é produção da identidade penal como se esta estivesse

associada à defesa das normas essenciais da sociedade.

Este problema com o conceito de expectativas normativas repercute na

diferenciação feita por Jakobs entre essas e as expectativas cognitivas, naquilo que o

penalista chama, respectivamente, de mundo social e mundo natural. Como já destacado,

Jakobs não consegue observar a ontologização feita pelo direito penal. No entanto, o

problema aqui não está na “ontologização das expectativas” tal como colocado por

Mariana Possas1141, que ignora esta construção de ontologias pelo direito penal. Vale

lembrar que as expectativas “por natureza” normativas, como salienta a autora, não são

um problema para Luhmann, já que, como destacado, a decisão entre aprender ou não

aprender após a defraudação “é dada de antemão ao indivíduo através do sistema social:

através do fato de que se espera normativamente que ele deva esperar normativa ou

cognitivamente”1142. A problemática maior está na consequência da desconsideração da

preferência pelas expectativas normativas nas relações pessoais. As expectativas

cognitivas e normativas são funcionalmente equivalentes, e representam condensações de

sentido que permitem a orientação tanto para a comunicação (sistemas sociais) quanto

1139 Ibidem, p. 635. 1140 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

DelRey, 2009, p. 61. 1141 POSSAS, Mariana Thorstensen. O problema da inovação da teoria da prevenção geral positiva: uma

comparação entre Jakobs e Luhmann, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 56, setembro-

outubro, 2005, p. 289-290. 1142 LUHMANN, Niklas. Las normas desde una perspectiva sociológica, em LUHMANN, Niklas. La

moral de la sociedad. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p; 40 [tradução livre do espanhol].

266

para a consciência (sistemas psicofísicos). No entanto, como destacado, Luhmann

considera haver um desequilíbrio entre o desenvolvimento dos papéis que auxiliam a

tipificação de uma expectativa como cognitiva ou normativa, de tal forma que a escolha

pela normatividade teria uma espécie de “preferência natural”1143. Ao não atentar para

isso, Jakobs ignora que, diante desta situação, deve-se abandonar a esperança de uma

unificação social da vivência normativa, já que a norma de um pode se converter em

decepção do outro, naquilo que é denominado como “problema da dupla decepção”1144.

A validade provisória do direito, mencionada acima, enfatiza essa questão. Jakobs,

ao não abordar nenhuma dessas questões, apresenta uma compreensão estática das

expectativas normativas, como se elas representassem genuinamente a identidade social,

não percebendo que a identidade do direito penal é identidade produzida pelo direito

penal, como destacado, e que a positivação do direito institucionaliza as expectativas

normativas ao mesmo tempo em que legaliza sua transformação. Dessa forma, sua

afirmação de que as expectativas normativas “configuram o esquema de interpretação

imprescindível para que possam adquirir um significado socialmente vinculante as ações

individuais”1145, além de encobrir que tal significado refere-se àquele vinculado pela

semântica do direito penal, ignora que Luhmann é um teórico do conflito.

Como pode-se perceber, os significados dados por Jakobs à teoria luhmanniana

(elementos de condensação) não são coerentes desde uma perspectiva atenta aos alicerces

desta proposta. No entanto, cabe ainda uma breve reflexão acerca daquela nova adesão a

Luhmann, manifestada em 20031146, já que nos escritos posteriores à esta vinculação

Jakobs altera uma vez mais sua teoria, desta vez reintroduzindo os fins de psicologia

social a partir da necessidade de dor penal. No início deste trabalho de interpretação

regressiva foi questionado: os elementos permanentes que sintetizam o pensamento final

de Jakobs, ao englobarem explícita ou implicitamente os elementos de condensação,

também seriam luhmannianos?

Segundo desenvolvimento da potencialidade crítica: questionamento dos

elementos permanentes

1143 Ibidem, p. 41 [tradução livre do espanhol]. 1144 Ibidem, p. 46. 1145 JAKOBS, Günther. La imputación objetiva en Derecho penal. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1998, p. 26. 1146 JAKOBS, Günther. O que é protegido pelo Direito penal: bens jurídicos ou a vigência da norma? em

GRECO, Luís & TÓRTIMA, Fernanda Lara (Org.). O bem jurídico como limitação do poder estatal de

incriminar? Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2011, p. 175.

267

Com as críticas aos elementos de condensação pode-se perceber não só a

inadequação destes de uma perspectiva atenta às premissas luhmannianas. O principal

ganho decorrente das análises anteriores está na percepção do potencial crítico da teoria

luhmanniana para observar como o sistema jurídico-penal faz o que faz, e que pode ser

introduzido nos escritos do próprio Jakobs, notadamente no Tratado e em escritos da

segunda fase.

É importante lembrar que a maioria dos elementos de condensação estão inseridos

nos dois elementos permanentes de imputação como processo pessoal de

responsabilização e de compreensão do direito penal como responsável pela defesa da

identidade social. Além disso, outros dois elementos de condensação aparecem

explicitamente nos elementos permanentes, quais sejam a compreensão da função do

direito penal como garantidor da identidade social, novamente, e a assunção de que as

certezas normativas necessitam de um apoio cognitivo. Isso significa que a crítica feita

aos tais elementos de condensação têm aqui passe livre, incidindo também nestes dois

elementos permanentes.

No entanto, foi observado que dois elementos de condensação foram

“enriquecidos” por duas ideias características da terceira fase do pensamento de Jakobs,

permitindo assim a consolidação de dois elementos permanentes: a materialização da

compreensão comunicativa do crime, que alteraria a realidade social, e a também

materialização da pena enquanto reação comunicativa que, só assim, garantia a base

cognitiva da construção social pela orientação de condutas. Trata-se, agora, de verificar

se um exercício de interpretação regressiva também pode desqualificar os avanços

normativos típicos da terceira fase.

Neste sentido, é fácil perceber que as reflexões acima desenvolvidas parecem

confirmar essa viabilidade. Primeiramente, a ideia de que o crime comunica “não esta

sociedade”1147 já foi aqui devidamente problematizada desde uma perspectiva

luhmanniana: este significado é construído pelo direito penal, e não pelo homem. Trata-

se de uma estratégia semântica produzida internamente para reduzir a complexidade do

ambiente, uma atribuição que permite a condensação de sentido que busca legitimar o

direito penal como sistema de controle especial da sociedade, garantidor de suas normas

essenciais.

1147 JAKOBS, Günther. Sobre la teoría da pena, em JAKOBS, Günther. Moderna dogmática penal.

Estudios compliados. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 649 (tradução livre do espanhol).

268

Em segundo lugar, o argumento característico da terceira fase de Jakobs, a partir

do qual o delito atacaria o caráter vinculante da norma e sua base cognitiva, razão pela

qual seria necessária uma dupla objetivação, a primeira no plano simbólico enquanto

contradição comunicativa ao fato e que significaria que a norma continua vigente, e a

segunda no plano material enquanto dor penal que reestabelece a base cognitiva da norma

violada e que significaria que ela pode continuar a ser vista como modelo de orientação

de conduta, esta construção não pode fazer sentido algum desde uma teoria radical

construtivista como é a luhmanniana.

Repita-se: sistemas sociais e psíquicos, ainda que fortemente imbricados pelo

conceito de interpenetração, não se misturam, é dizer, não há mixagem autopoiética, e

sim preservação da autonomia de cada um. O ambiente do sistema não contém nenhuma

informação, que é produzida internamente, pelo sistema.

Mas este esclarecimento não é suficiente para fechar a porta aberta pela defesa da

necessidade de salvaguarda cognitiva dos entes normativos ao chamado “Direito penal

do inimigo”, tal como observado nos últimos escritos de Jakobs. Segundo o penalista

alemão, aquele que não consegue demonstrar sua base cognitiva por um determinado

período de tempo constante passa a ser visto não como pessoa, mas como inimigo1148, de

tal forma que nestes casos o Direito penal do inimigo buscaria eliminar o perigo1149

manifestado no agir sem garantias. Aqui é fundamental perceber a alteração semântica

que passa a orientar o sistema jurídico-penal nesses casos, e isto pode ser uma vez mais

analisado (criticamente) pela teoria dos sistemas sociais.

Há pouco foi enfatizado como o “Direito penal do cidadão” vale-se de uma

semântica da ação densamente articulada. Neste contexto, o homem era tematizado como

sujeito responsável, dotado de liberdade para determinar seu agir de acordo com os

direitos e deveres inerentes ao papel de pessoa, naquela tradicional formalização abstrata

da igualdade que caracteriza o liberalismo penal e que, se por um lado oculta as

contraditórias relações sociais da sociedade funcionalmente diferenciada, por outro

certamente cumpre seu papel de fortalecimento do status do sistema jurídico-penal como

guardião da sociedade. Pois bem, tudo isso é alterado quando algo inominado por Jakobs

1148 MELIÁ, Manuel Cancio & SÁNCHEZ, Bernando Feijoo (Ed.). Teoría funcional de la pena y de la

culpabilidad. Madrid: Civitas, 2008, p. 15. 1149 JAKOBS, Günther. Direito penal do inimigo. Noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado

Editora, 2012, p. 47.

269

entra em cena: o risco. E quando o risco entra em ação evita-se que a própria ação ocorra.

Como isso ocorre?

O ponto crucial desta alteração está numa modificação da semântica do tempo

cronológico. Como destacado, o “Direito penal do cidadão” (agora é necessário utilizar o

termo para diferenciá-lo do “Direito penal do inimigo) era capaz de vincular o futuro de

forma estável, já que, segundo De Giorgi, o individualismo burguês necessitava

apresentar o futuro como horizonte aberto à ação racional1150. A realidade produzida pelo

direito penal baseava-se, então, em ações dos indivíduos que eram capazes de se

autodeterminar pela ação. Isso garantia uma sensação de controle do tempo pelo direito

penal.

Mas a sociedade de hoje, entretanto, não compreende o futuro dessa maneira. O

futuro passa a ser percebido como horizonte incerto, como questionamento das escolhas

feitas, como risco. E isso modifica o projeto de segurança do direito penal. Essa alteração

implica a suspensão daquela ordem do direito construída com base na ação, pois evitar o

risco significa evitar, antes, a ação. Da ação como conceito facilitador para a construção

de um futuro estável, como destacado, chega-se ao risco como conceito inibidor da

própria construção do futuro. Ao imputar não mais a ação, mas o risco, o próprio direito

penal se arrisca, é dizer, incorre na ilusão de controle. Diante disso aquelas semânticas do

“Direito penal do cidadão” quase não seriam mais operacionalizáveis, se não fosse pela

sobrevida da ideia de prevenção. No novo projeto de segurança do direito penal, a

prevenção ao risco seria, ela mesma, segurança, e por isso legitimadora deste direito

penal. Perceba-se: nada de “aparentemente” novo, já que o sistema jurídico-penal

continua construindo sua legitimidade a partir de semânticas densamente articuladas.

No entanto, é importante destacar que a incorporação do risco pelo direito penal

leva à dissolução das categorias jurídicas desenvolvidas anteriormente. Como salienta De

Giorgi, ao intervir com a pretensão de prevenir um risco, o direito penal associa o risco

àquelas referências externas que o direito penal da ação tinha cancelado por meio da

redução da comunicação social ao evento chamado ação1151. A nova temporalidade

inserida no direito penal é traduzida no interior do sistema como aumento dos crimes de

perigo abstrato, de mera conduta ou de preparação. A questão do limite do direito penal

perde cada vez mais sentido, uma vez que o próprio estabelecimento de um limite

manifesta-se como risco ao projeto de prevenção ao risco. Não se percebe que a segurança

1150 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 131. 1151 Ibidem, p. 132.

270

da não-ação é uma circularidade que somente incrementa o risco, e não se compreende

(também no caso do “Direito penal do cidadão”) que não se pode prevenir aquilo que não

se sabe se acontecerá.

Aqui é fundamental perceber que a manifestação de um “Direito penal do

inimigo” rompe com a igualdade entre os homens abstratamente produzida pelo Direito.

Mas isso não leva à demanda pela igualdade social e o questionamento da exclusão social

produzida pela sociedade funcionalmente diferenciada, ocultada pelas semânticas

tradicionais do direito penal liberal. Muito pelo contrário, o que se observa é a

essencialização do inimigo como construção seletiva da exclusão não gerenciada pelos

sistemas sociais. Que isso também esteja associado à expansão do direito penal também

não é de todo surpreendente. Ao tentar impedir o risco aniquila-se qualquer possibilidade

do agir, em qualquer esfera social.

Mas as consequências não param por aí: aquela pessoa compreendida como capaz

de se autodeterminar pela ação, ou seja, a pessoa como construção decorrente do homem

do Iluminismo passa a ser excluída. Se o crime partia da existência daquela pessoa, ou

seja, se o crime era construído no existir, isto é, no movimento denominado ação

antijurídica, como associar o crime à pessoa se, a partir da semântica do risco, a realização

do crime encontra-se em um estado prévio ao existir, ao agir? Daí a afirmação de De

Giorgi de que existir é o crime que se deve evitar1152, pois a construção do homem como

pessoa, isto é, como ser que existe, como presença, dá lugar à construção do homem como

não-pessoa, que por não agir não produz risco. Dessa forma, o crime a ser prevenido não

é aquele decorrente da ação da pessoa, mas a transformação da não-pessoa em pessoa às

quais podem ser imputadas ações.

Perceba-se a radical alteração ocasionada pela inserção do risco: neste contexto o

homem deve ser capaz, mais do que nunca, de poder prometer a fidelidade ao direito. A

sensação de insegurança e o medo daí decorrente são a matéria bruta para semânticas que

destinam ao direito penal o papel de guardião da constituição da sociedade. Para isso, são

construídas sofisticadas teses: pela semântica do apoio cognitivo, ou seja, a partir da ideia

do dever de prometer imputa-se a falta de fidelidade ao direito e acredita-se, assim, que o

direito penal vigente poderá orientar condutas1153. Em outras palavras: a atual tese de

Jakobs, quando afirma que um titular de direito só pode ser tratado como pessoa quando

1152 Ibidem, p. 135. 1153 JAKOBS, Günther. La pena estatal: significado y finalidad. Madrid: Civitas, 2006, p. 138.

271

atue conforme a norma, ou seja, quando a pessoa tenha um substrato cognitivo1154, nada

mais é do que a construção da não-pessoa como homem que deve prometer, como

negação de risco para a sociedade. Por isso tem razão Baratta quando afirma que a

distinção entre cidadãos fiéis à lei e cidadãos violadores da lei “não é uma ordem dada

mas um ordem produzida continuamente de novo”1155.

Aqui, o Direito penal insere uma nova temporalidade: a dor penal é a lembrança

da promessa a ser cumprida. Neste contexto, a afirmação de Jakobs não poderia ser mais

“natural”: “quem não presta uma mínima garantia cognitiva de comportamento fiel ao

direito se exclui a si mesmo”1156. Se pela semântica do risco o Direito penal “aparece”

(enquanto autoprodução) como “salvação”, a contraposição entre bem e mal, cidadão fiel

e cidadão infiel, homem de bem e o homem de mal, amigo e inimigo, todas essas

distinções acoplam-se facilmente com a linguagem moral. O homem que deve prometer

sua conduta em conformidade à norma serve de substrato para um direito penal

moralizador que se desenvolve rapidamente.

Com isso nota-se uma fragmentação das construções dogmáticas, resultado das

duas semânticas gerais produzidas no interior do direito penal: cidadão e inimigo. Daí a

importância de uma teoria que consiga observar as distinções utilizadas em cada uma e,

principalmente, o ponto de união (prevenção) que favorece a tão temida expansão do

Direito penal do inimigo para o Direito penal do cidadão. Este papel crítico, como

demonstrado, é efetivamente cumprido pela teoria dos sistemas sociais.

3.1.4. Primeira proposta de conclusão parcial

“A direção sociológica é, a meu juízo, talvez a que possua maiores possibilidades

de futuro entre as correntes do atual pensamento jurídico-penal alemão”1157. A crítica do

direito penal por meio de um para além de Jakobs a partir de um outro Luhmann não está

1154 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal. Madrid: Civitas, 2003,

p. 54. 1155 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 107. 1156 JAKOBS, Günther. Dogmática de derecho penal y la configuración normativa de la sociedad. Madrid:

Civitas, 2004, p. 73. 1157 MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Buenos Aires: BdeF Editora, 2003,

p. 272.

272

relacionada com o “respeito às estruturas reais do mundo”1158, mas com a compreensão

de sua ficção densamente elaborada. Na sociedade moderna funcionalmente diferenciada

a realidade do direito penal é a realidade do direito penal, construída a partir de suas

próprias seleções (e por isso aberta ao futuro), e não revelada por uma historicidade

prévia. A sociedade moderna orienta-se pela diferença, não pela identidade. Como

destacado, neste contexto é produzida uma semântica que apresenta o Direito penal como

protetor da “identidade da sociedade” e que pode muito bem se desenvolver tanto como

Direito penal do cidadão quanto como Direito penal do inimigo. Demonstrar a

artificialidade e os ocultamentos dessas construções autoritárias e, principalmente,

observar a semântica da prevenção como chave de segurança que permite e potencializa

o movimento de uma velocidade à outra, como diria Silva Sánchez, é uma das

capacidades críticas da teoria luhmanniana.

Isso significa que, ao final deste longo percurso, o trabalho de Jakobs seja

simplesmente considerado inapropriado, de tal forma que o melhor que se tem a fazer é

simplesmente desconsiderar seus contraditórios escritos? Absolutamente não. Como já

fora enfatizado em diversas oportunidades, se Jakobs considera que suas descrições são

neutras, nada impede que a interpretação crítica regressiva aqui efetuada possa irritar

produtivamente as pretensões reflexivas que são produzidas no interior do sistema

jurídico-penal ao propor “conceitos de mediação provenientes da descrição externa

(sociológica)”1159, de tal forma que a dogmática jurídico-penal integre autodescrições e

heterodescrições.

Aqui pode jogar desempenhar um papel interessante aqueles escritos em que

Jakobs analisa a força do sistema econômico ao mesmo tempo em que entende que o

Direito penal não tem qualquer relação com os fins de psicologia social (curiosamente,

momento em que ele critica conceitos luhmannianos). Essa “segunda fase” de Jakobs,

além de ter maior proximidade com os escritos de Luhmann presentes em O direito da

sociedade (entenda-se: desconsideração da ideia do direito como guia de comportamento

como função do sistema jurídico), possibilita uma série de questionamentos acerca da

relação entre Economia e Direito Penal, notadamente no âmbito da exclusão social e de

sua possível consequência para a imputação de culpabilidade.

1158 ALAJIA, Alejandro, BATISTA, Nilo, SLOKAR, Alejandro, ZAFFARONI, E. Raúl. Direito penal

brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª edição, 2006,

p. 175. 1159 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 617 [tradução livre do

espanhol].

273

Os próprios escritos de Jakobs permitem esta relação. Basta lembrar que, apesar

de todas as pessoas estarem em princípio incluídas nos sistemas sociais – de tal forma que

o acesso a todos estaria garantido –, a exclusão social apresenta-se como uma espécie de

“meta-código” que permeia todos os sistemas sociais, demonstrando assim a contradição

inerente à própria estrutura da sociedade funcionalmente diferenciada, como destacado.

É dizer, os sistemas sociais produzem exclusão em massa, reduzindo diversas pessoas a

“corpos remanescentes que tentam sobreviver ao próximo dia”1160. Ora, Jakobs não deixa

de abrir sua teoria para questões sociais no Tratado1161, e enfatiza em diversos escritos

como o predomínio da economia (que em um primeiro momento é compreendida como

comunicação instrumental1162, e que depois é considerada como comunicação pessoal1163

que acaba instrumentalizando o próprio direito1164), chega a conduzir o direito penal à

tutela cognitiva da configuração social1165. E é dele a ideia, manifestada no prefácio à

edição brasileira do Tratado, em 2008, de que uma imputação legítima só é possível

quando a sociedade satisfaz as exigências da modernidade, isto é, quando ela ofereça,

“especialmente nos âmbitos da educação, da política e da economia, chances de

participação que possibilitem uma existência livre”1166. Não seria então o caso de,

valendo-se desse novo estímulo luhmanniano, questionar que tipos de instrumentos

dogmáticos poderiam dar conta desta complexa relação entre diferenciação funcional da

sociedade e exclusão social?

Dito isso, cumpre então destacar que a hipótese de pesquisa está parcialmente

confirmada: o radicalismo luhmanniano não tematizado por Jakobs, nem pela crítica, nem

por parte da crítica da crítica, pode contribuir, enquanto potencialidade crítica, para irritar

produtivamente as pretensões reflexivas que são produzidas no interior do sistema

jurídico-penal e para desqualificar os avanços normativos que desembocam no “Direito

penal do inimigo”, possibilitando assim uma nova agenda de pesquisa para a dogmática

1160 LUHMANN, Niklas. Inclusão e exclusão, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.)

Dossiê Niklas Luhmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 41-42. 1161 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p. 691-692. 1162 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Barueri: Manole, 2003, p. 58. 1163 JAKOBS, Günther. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Colômbia: Universidad Externado de

Colombia, 1999, p. 44-47. 1164 JAKOBS, Günther. La imputación jurídico-penal y las condiciones de vigencia de la norma, em

GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Teoría de sistemas y derecho penal. Fundamentos y posibilidades de

aplicación. Colômbia: Universita Externado de Colombia, 2007, p. 214, nota 11. 1165 JAKOBS, Günther. Personalidad y exclusión en derecho penal, em JAKOBS, Günther. Dogmática de

derecho penal y la configuración normativa de la sociedade. Madrid: Civitas, 2004, p. 68. 1166 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal. Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte:

Del Rey Editora, 2009, p.673.

274

jurídico-penal. Esta é a primeira proposta de conclusão parcial que, diga-se de passagem,

pode ter especial relevância para o cenário brasileiro, em que grande parcela dos

excluídos de fato, aqueles corpos destituídos de direitos básicos que “gravitam à margem

das prestações dos subsistemas sociais, dentre os quais o jurídico”1167 é justamente

incluída pelo sistema penal. A semântica tradicional liberal do direito penal pode até

formular considerações sobre prevenção, liberdade e essência das coisas para ocultar e

legitimar a prática penal atual. No entanto:

Dizer o direito, Recht sprechen, não pode

significar dizer a essência, nem apregoar o ser e, muito

menos, a verdade. A verdade, disse Heinz von Förster, é

a invenção de um mentiroso. Aqui, o mentiroso é o

direito penal1168.

3.2. Segunda parte

3.2.1. Primeira etapa

Na primeira parte do presente capítulo foi confirmada a potencialidade da teoria

luhmanniana para contribuir para uma nova agenda de pesquisa no âmbito da dogmática

jurídico penal. Uma vez que mesmo Baratta “tinha uma enorme fascínio pelo pensamento

de Luhmann”1169, trata-se, agora, de verificar se isso também pode ser visto no âmbito da

criminologia crítica.

Assim que se pergunta pela possível relação entre Luhmann e criminologia crítica

percebe-se que a resposta mais comum afirma que tal articulação só pode ser um

disparate, e talvez este seja a justificativa para que o pensamento do sociólogo de

Bielefeld raramente seja objeto de consideração. Mas basta observar para a potencialidade

crítica da teoria dos sistemas sociais para perceber que as coisas não são tão “claras”

assim. Por isso foi enfatizado no capítulo anterior o tema referente ao paradoxo

observável na experiência real da sociedade funcionalmente diferenciada decorrente da

exclusão social em cadeia, além da interpretação que aproxima, diante da porta aberta

1167 VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 333. 1168 DE GIORGI, Raffaele. Direito, tempo e memória. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 153. 1169 Ibidem, p. 155.

275

pelo próprio Luhmann, a relação entre capitalismo e diferenciação funcional. Como isso

pode contribuir para o pensamento criminológico e, notadamente, para a criminologia

crítica?

Retomar algumas reflexões pode auxiliar. Como destacado, o próprio Luhmann

salienta que somente a diferenciação funcional do sistema econômico agrega

complexidade suficiente à sociedade, de tal forma que a diferenciação funcional dos

outros sistemas sociais passa a ser uma exigência1170. A partir disso, Bachur considera

que as principais aquisições evolutivas da economia (dinheiro, propriedade privada, e

contrato) influenciam a posterior diferenciação funcional dos outros sistemas sociais, e

por isso mesmo afirma que sistema econômico, jurídico e político “moldam-se

reciprocamente nessa atuação conjunta”1171. Aqui poder-se-ia considerar que a

consolidação do livre-mercado necessita de operações jurídicas que, além de formularem

os casos de transferência de propriedade, punam aqueles que atentem contra essa estrutura

social capitalista. Neste momento joga um papel fundamental a própria forma jurídica de

igualdade abstrata entre os homens. Não à toa Pasukanis afirma que a realização das

relações de troca no Direito penal “é um aspecto da realização do Estado de direito como

forma ideal das relações entre produtores de mercadorias independentes e iguais que

atuam no mercado”1172.

No entanto, não seria adequado insistir em mais uma determinação da punição (e

consequentemente do direito penal) pela economia. Desde a perspectiva crítica

luhmanniana não pode passar desapercebido que o desencadeamento da diferenciação

funcional pela economia não significa que esta determine a reprodução autopoiética dos

outros sistemas sociais. Como destacado, a autorreprodução de cada sistema e as

semânticas criadas a partir das autodescrições são operações do sistema de referência, não

derivam do ambiente. Isso, evidentemente, não exclui as relações entre sistema

econômico e sistema jurídico-penal (autonomia não significa isolamento) que, como será

destacado, podem ser abordados com o conceito de “controle social”.

Nesse sentido específico podem ser lidas as palavras Georg Rusche e Otto

Kirchheimer: “o sistema penal de uma dada sociedade não é um fenômeno isolado sujeito

apenas às suas leis especiais. É parte de todo o sistema social, e compartilha suas

1170 LUHMANN, Niklas. Evolution und Geschichte apud BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto:

para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 179. 1171 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 192. 1172 PASUKANIS, E. B. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 154.

276

aspirações e seus defeitos”. Em outras palavras, fechamento operacional e abertura

cognitiva do sistema jurídico-penal. Aqui vale a pena atentar para o paradoxo que esses

autores mencionam, referente ao fato de que um lado, o “progresso do conhecimento

humano” tornou o problema penal mais compreensível e, consequentemente, mais perto

de uma solução, mas por outro a revisão da “política penal” estaria mais longe do que

nunca, “por causa de sua dependência funcional a uma dada ordem social”1173. Ora, a

teoria dos sistemas sociais sabe muito bem que o conhecimento não orienta as operações

dos sistemas sociais. O direito penal inventa a si mesmo! No entanto, ela pode ver a

condensação de sentido produzida pelas autodescrições desse sistema, e assim observar

criticamente a ficção densamente elaborada para fins de legitimação.

Ora, já foi observado neste capítulo como o sistema jurídico-penal constrói a

figura da culpa individual do autor como falta de motivação de fidelidade ao direito,

permitindo assim isolar a defraudação da expectativa e reforçar o papel do direito penal

como guardião das normas essenciais da sociedade. Tudo isso, sem dúvida, pode

contribuir para uma melhor compreensão da sociedade funcionalmente diferenciada. No

entanto, seria possível observar uma contribuição mais “efetiva” da teoria dos sistemas

sociais para o pensamento criminológico?

Como destacado no início deste capítulo, pode-se aproximar esta teoria com o

enfoque marxista que entende que o direito penal revela, como todo direito burguês, a

contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade

substancial dos indivíduos, “que, nesse caso, se manifesta em relação às chances de serem

definidos e controlados como desviantes”1174. O próprio Luhmann entende que o

marxismo e as teorias de “esquerda” não são teoricamente radicais suficientes para

empreender uma análise crítica, já que utilizam instrumentos conceituais pouco abstratos,

e salienta que projeto poderia valer-se da distinção sistema/ambiente1175. De fato, a teoria

dos sistemas sociais não deixa de considerar a seletividade acima destacada, pois permite

compreender a diferenciação funcional como projeto autocontraditório em que a

estratificação social acaba sendo um subproduto dos sistemas funcionais1176. Uma vez

que o meta-código da inclusão/exclusão social pode mediatizar todos os outros

1173 KIRCHHEIMER, Otto & RUSCHE, Georg. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan, 2ª ed,

2012, p. 282. 1174 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 164. 1175 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 39. 1176 LUHMANN, Niklas. Beyond barbarism, em MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From

souls to systems. Illinois: Open Court, 2006, p. 264.

277

códigos1177, então observa-se a existência de “uma efetiva acumulação seletiva de

oportunidades comunicativas que repõe a totalidade social como uma escala

multidimensional de desigualdade”1178, de tal forma que a construção formal da igualdade

jurídica é uma ficção jurídico-penal que oculta as exclusões sociais em cadeia que

contradizem o projeto da sociedade moderna funcionalmente diferenciada, tal como

destacado no capítulo anterior.

Isso significa que a teoria luhmanniana também é capaz de questionar um dos

pilares fundamentais da ideologia da defesa social (premissa das escolas clássica e

positiva), qual seja o princípio da igualdade (“a criminalidade é violação da lei penal e,

como tal, é o comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos,

de tal forma que a reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos”1179). Em

primeiro lugar, a “criminalidade” é produzida, ou seja, é significado construído e

atribuído pelo sistema jurídico-penal, como já enfatizado. O “crime” é construção que

permite ao sistema reduzir a complexidade do ambiente, atribuindo significado a fatos

externos, de tal forma que a chamada “cifra negra” manifesta justamente esse desnível de

complexidade entre sistema e ambiente. Perceba-se, ela simplesmente demonstra que o

direito penal opera como opera. Em segundo lugar, a perspectiva social sistêmica também

permite desqualificar a pretensão de igualdade da aplicação penal, já que a lógica da

exclusão social parece levar, "contraditoriamente", à inclusão privilegiada neste sistema.

Ora, se Baratta apresenta diversas teorias sociológicas que negam cada um dos seis

princípios, como destacado, seria a teoria dos sistemas sociais capaz de questionar todos

os outros princípios da ideologia de defesa social?

Antes de realizar este segundo teste de produtividade, é importante deixar claro

que com isso não se propõe uma substituição das teorias que contradizem cada um desses

princípios pela teoria dos sistemas sociais. Uma observação a partir das lentes

luhmannianas não é “a” resposta para o pensamento criminológico. O que se procura aqui

é verificar se uma teoria social geral poderia dar conta de todas as críticas, o que seria de

extrema importância para uma criminologia marcada por abordagens heterogêneas. Daí a

possível relação com a criminologia crítica, especialmente interessada em avaliar a

1177 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 661. 1178 BACHUR, João Paulo. Às portas do labirinto: para uma recepção crítica social de Niklas Luhmann.

Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010, p. 238. 1179 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 42.

278

capacidade de integração de todas essas teorias em uma teoria geral do desvio, algo que

fazia parte das preocupações da nova criminologia1180.

Dito isso, cumpre então analisar o primeiro princípio da ideologia da defesa social,

qual seja o princípio da legitimidade, segundo o qualo Estado, como expressão da

sociedade, está legitimada para reprimir a criminalidade decorrente de determinados

indivíduos, de tal forma que as instancias oficiais de controle reafirmem os valores

fundamentais da sociedade1181. Ora, com tudo o que já foi dito aqui demonstra-se que

também esta tese pode ser impugnada pela teoria dos sistemas sociais. Primeiramente,

questionando esta especial relação unitária entre Estado e Direito construída desde o

pensamento kantiano ao propor uma análise social que parta da diferenciação funcional

de cada sistema. Consequentemente, enfatiza-se o caráter policontextural da sociedade,

no sentido de que a sociedade moderna é multicêntrica, não existindo portanto nenhuma

instância de observação superior. Isso significa que o Estado não é expressão da

sociedade, e que portanto a repressão da criminalidade será desenvolvida pelo direito

penal de formas bem peculiares, tais como aquelas semânticas de legitimidade observadas

na primeira parte. Em segundo lugar, é importante uma vez mais atentar para a questão

da criminalidade atribuída aos indivíduos, tal como já colocada na análise do princípio

anterior. Por fim, a ideia de que a resposta à punição reafirma a identidade social, como

visto, nada mais é do que a identidade produzida pelo direito penal no interior de sua

densamente elaborada ficção de legitimação.

O segundo princípio apresentado por Baratta é aquele do bem e do mal, no sentido

de que o crime é compreendido como um dano para a sociedade, de tal forma que o

delinquente aparece como elemento negativo e disfuncional do sistema social. Ou seja,

“o desvio criminal é, pois, o mal; a sociedade constituída, o bem”1182. Este entendimento

também pode ser rebatido a partir do material aqui compilado. Ora, o crime não é algo

“ruim”. O crime é um evento comunicativo criado pelo sistema jurídico-penal a partir de

sua própria seletividade e que, como será destacado ao final do capítulo, exerce um papel

“positivo”. Ele é uma redução da complexidade e, neste sentido, algo rotineiro para a

1180 TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo; YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of

deviance. New York: Routledge, 2013, p. 287. Adiante-se, desde já, que existiriam incompatibilidades com

as teorias que se desenvolvem a partir da ideia de anomia de Durkhiem, responsável pela crítica ao princípio

do bem e do mal, como será destacado. É devido exatamente a esses “conflitos teóricos” que a proposta de

conclusão aqui é por uma nova agenda de pesquisa para a criminologia crítica. 1181 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 42. 1182 Idem.

279

manutenção e evolução do referido sistema. Da mesma forma, o “delinquente” é

construído pela atribuição significativa do sistema, e será inserido na semântica da ação

penal para fins de determinação da imputabilidade. Ou seja, também o delinquente não é

algo “disfuncional”. Muito pelo contrário, é um elemento fundamental para enlaçar as

operações seguintes do sistema jurídico-penal.

O próximo princípio é o da culpabilidade, a partir do qual o crime é compreendido

como expressão de uma atitude interior reprovável, contrária aos valores e normas

fundamentais da sociedade1183. Nada de novo para o exercício de contraposição que vem

sendo feito aqui. Repita-se: na teoria dos sistemas sociais não há transferência de

informação do ambiente para o sistema. Ainda que se partisse da identidade construída

pelo direito penal de que ele protege a identidade da sociedade, enquanto semântica

(produzida) de legitimação deste sistema, mesmo assim o déficit de fidelidade ao direito

é, uma vez mais, atribuído. Como já destacado, diante da variabilidade estrutural

decorrente da positivação do direito, este presume (constrói esta semântica) que os

afetados pelo direito devem aprender as modificações desencadeadas pela positivação,

exigindo assim uma predisposição primariamente cognitiva frente ao direito. Neste

sentido, a fidelidade ao direito também é atribuída e, como foi salientado, articula-se com

aquela semântica fundamental para o direito penal se impor: o livre arbítrio, a partir do

qual o homem seria responsável pelas suas escolhas.

Princípio da finalidade ou da prevenção é o quarto princípio da ideologia da defesa

social. Com ele defende-se que a pena não só retribui, mas previne o crime. Segundo

Baratta, como sanção abstratamente prevista a pena teria a função de criar uma

contramotivação ao comportamento criminoso, e como sanção concreta ela exerceria a

função de ressocialização1184. Ora, frente a isso basta mencionar novamente a construção

do tempo cronológico, que permite ao direito penal dar segurança ao futuro, planejando-

o. No entanto, esta é uma estratégia de repressão da complexidade e da contingência que

pretende ocultar a já mencionada dimensão complexa do tempo. Como destacado, é esta

semântica da prevenção que permite ao Direito penal “fundamentar” sua tutela de bens

jurídicos “essenciais”. Além disso, também neste princípio observa-se a pretensão de

determinação do comportamento humano, algo que a teoria dos sistemas sociais também

questiona. Por fim, como também já enfatizado, a semântica da ressocialização só é

possível mediante a desconsideração das diferenças dos indivíduos (sistemas psíquicos)

1183 Idem. 1184 Idem.

280

pela incorporação da transcendência do homem. O direito penal não tem qualquer função

reeducativa para com os homens, sendo esta mais uma semântica construída que permite

sua “fundamentação” como sistema de controle.

Uma vez que o quinto princípio da ideologia da defesa social (princípio da

igualdade) já foi questionado, cumpre então analisar o sexto e último princípio, qual seja

o do interesse natural e do delito natural, segundo o qual o núcleo central dos delitos

representa ofensas aos interesses essenciais da sociedade, de tal forma que os interesses

protegidos pelos direito penal são interesses comuns a todos1185. Frente a isso a teoria

luhmanniana, enquanto teoria do conflito, apresenta uma crítica à esta visão consensual

da sociedade, negando assim a perspectiva integrativa deste princípio. Além disso, deve-

se uma vez mais enfatizar que a criminalidade não é uma qualidade ontológica, e sim um

status social atribuído. Como destacado, a contraposição entre direito e crime, como se

fossem realidades diferentes e contrapostas, permite a construção de autovalores,

entendidos como entidades que têm sua existência, e que serão chamados, pelo direito,

de bens jurídicos e, pelo crime, de desvio. Ora, é a partir desta construção que bens

jurídicos e desvios são ontologizados, compreendidos como realidade a partir de sua

universalização. Mas isso, como insistentemente destacado, é mais uma construção.

Com essas reflexões percebe-se que a partir de um único instrumental teórico – a

teoria dos sistemas sociais – é possível questionar a premissa das escolas clássica e

positiva: a ideologia da defesa social. Concluído este teste de produtividade, pergunta-se:

por que isso é importante?

Segundo Baratta, as teorias liberais da criminologia (teorias psicanalíticas da

criminalidade e da sociedade punitiva; teoria estrutural-funcionalista do desvio e da

anomia; teoria das subculturas criminais; teoria das técnicas de neutralização; teoria do

labelling approach e sociologia do conflito) que criticam a mencionada ideologia

apresentam premissas metodológicas e sistemáticas muito heterogêneas entre si, de tal

forma que “não é possível, por isso, servir-se contemporaneamente destas diversas teorias

como se elas formassem um corpus teórico homogêneo”1186. A consequência disso seria

que essas teorias não poderiam ser integradas em um sistema, o que significa que elas

representariam apenas uma crítica parcial à ideologia da defesa social.

Diante deste quadro, o pensador italiano ainda salienta o que denomina de

“escassa permeabilidade da ciência jurídico-penal às aquisições das ciências sociais,

1185 Idem. 1186 Ibidem, p.150-151.

281

enfatizando que os juristas sequer haviam recepcionado as teorias liberais mencionadas.

Dessa forma, “o atraso da ciência jurídica em face da ciência social contemporânea é

enorme”1187, algo que só poderia ser superado diante de um novo modelo integrado de

ciência penal (particular articulação entre uma concepção geral da sociedade, do homem

e da ciência jurídica) em que existiria uma relação entre ciência (social) e técnica

(jurídica), de tal forma que o jurista “será cientista, e não mero técnico, na medida em

que, finalmente, se tronará um cientista social e sustentará com a ciência a sua obra de

técnico”1188. Diante deste contexto, o que importa destacar é a indagação que Baratta faz,

referente às características que tal ciência social deve ter para que tal projeto seja possível.

Para este autor, somente uma ciência social comprometida na transformação de

seu objeto de estudo pode cumprir este papel, isto é, que busque transformar a realidade

estudada, e assim desenvolva um papel de controle e de guia em relação à técnica jurídica.

Como é sabido, uma teoria desse tipo seria uma teoria materialista, inspirada

fundamentalmente por Marx. Então pergunta-se: o que isso tem a ver com Luhmann?

Se a teoria dos sistemas sociais for observada como mera pirâmide conceitual,

muito pouco pode ser dito. A ortodoxia luhmanniana jamais se aproximaria de um projeto

como este. Deve-se, então, permanecer em silêncio? Ora, a presente pesquisa dialoga com

propostas manifestamente pouco ortodoxas, e busca enfatizar a capacidade de

perturbação da pergunta “como a ordem social é possível?”. O próprio Luhmann

afirma1189 o potencial crítico da capacidade de distinção das distinções, e durante todo

este percurso as possíveis relações entre diferenciação funcional e capitalismo foram

enfatizadas. Como salientando no início do segundo capítulo, a própria formação de uma

“teoria crítica dos sistemas”1190 evidencia a produtividade deste empreendimento.

Mas então, o que esta teoria dos sistemas sociais cujos horizontes foram

cognitivamente alargados1191 para uma direção marxista pode agregar ao pensamento

criminológico? Seria a teoria luhmanniana uma candidata ao cargo desta nova ciência

social? É importante deixar claro: não se trata aqui de defender que tal papel deva ser

cumprido pela teoria (crítica) dos sistemas sociais, ainda que seu robusto arsenal teórico

1187 Ibidem, p. 155. 1188 Ibidem, p. 156. 1189 LUHMANN, Niklas. Sociología del riesgo. México: Universidad Iberoamericana, 2006, p. 38. 1190 MOELLER, Hans-Georg. Luhmann explained. From souls to systems. Illinois: Open Court, 2006, p.

IX. 1191 Ver GONÇALVES, Guilherme Leite. Pós-colonialismo e teoria dos sistemas. Notas para uma agenda

de pesquisa sobre o direito, em DUTRA, Roberto & BACHUR, João Paulo (Orgs.) Dossiê Niklas Luhmann.

Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 272.

282

consiga dar conta da ideologia da defesa social. Este protagonismo foi desenvolvido pela

chamada “nova criminologia”, isto é, a criminologia crítica. No entanto, como será

demonstrado, recentemente foram feitos alguns estudos que buscam dar novo ânimo aos

estudos críticos criminológicos, justamente a partir das reflexões de Luhmann. Assim,

antes de analisarmos esta efetiva capacidade de contribuição, é importante analisar ainda

que brevemente o contexto em que a criminologia crítica surgiu. Isso pode auxiliar a

compreender por que a teoria dos sistemas sociais esteve ausente de seu mapa conceitual

por tanto tempo.

3.2.2. Segunda etapa

Como ficou claro na etapa passada, a teoria (crítica) dos sistemas sociais

autopoiéticos não só é capaz de desqualificar o substrato teórico das escolas clássica e

positivista, como também pode ser aproximada ao pensamento marxista. No entanto,

como destacado, a nova ciência social foi desenvolvida pela chamada “nova

criminologia”1192. Isso significa que as reflexões aqui colocadas desde uma perspectiva

luhmanniana estão desconectadas dos problemas fundamentais desta nova linha de

pesquisa?

Segundo Jock Young, na introdução à edição comemorativa de 40 anos de A nova

criminologia, este movimento teve início a partir da tentativa de síntese crítica da teoria

da subcultura e da teoria do labelling approach, ambas caracterizadas por não

conseguirem abordar a sociedade desde uma perspectiva abrangente (a primeira por não

considerar a dinâmica da sociedade, a segunda por não teorizar a sociedade de um modo

geral)1193. Baratta, por sua vez, destaca que a criminologia crítica parte de uma dupla

seleção. A primeira refere-se aos bens protegidos penalmente e aos comportamentos que

serão considerados ofensivos aos mesmos. Já a segunda manifesta-se na escolha dos

1192 Segundo Ryanna Pala Veras, “a criminologia crítica adota o novo paradigma da reação social e da

sociedade conflitual, o primeiro construído pelo labelling approach e o segundo, pela criminologia do

conflito, mas o faz aprofundando e concretizando as considerações de caráter político feitas até então ao

sistema penal, bem como seus mecanismos de atuação, seleção e definição do fenômeno criminal. O

principal objetivo da criminologia crítica foi a desconstrução do discurso jurídico-penal, por meio de uma

descrição macrossociológica da realidade, ou seja, sua meta inicial é demonstrar como o programa oficial

do direito penal é falso e encobre uma função real e oculta, que é a de reproduzir as desigualdades sociais

e manter de forma eficiente o status quo social”. Em VERAS, Ryanna Pala. Nova criminologia e os crimes

do colarinho branco. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 131. 1193 YOUNG, Jock. Introduction to 40th anniversary edition, em TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo;

YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of deviance. New York: Routledge, 2013, p.

XVIII-XXIV.

283

indivíduos estigmatizados, notadamente em um contexto no qual uma desigualdade maior

necessita de um controle repressiva igualmente maior1194. Com isso seria desmascarada a

já mencionada ficção da forma jurídica do contrato entre iguais, percebendo-se que as

normas penais, além de serem construídas e aplicadas de forma seletiva, manifestam a

real função do direito penal de reprodução e produção das relações de desigualdade1195.

E isso, diga-se de passagem, estaria alinhado às fundamentais reflexões de Rusche e

Kirchheimer, que concluem que a questão da criminalidade não pode ser desassociada da

estrutura da sociedade capitalista, “que tem necessidade, por motivos ideológicos e

econômicos, de uma marginalização criminal”1196.

Frente a essas considerações, a proximidade com a teoria (crítica) dos sistemas

sociais autopoiéticos parece de todo razoável, já que ela, além de desqualificar os

princípios da ideologia da defesa social a partir de um único quadro teórico, é

particularmente capaz de observar as semânticas de legitimação produzidas nas

autodescrições do sistema jurídico-penal e que o possibilitam construir sua identidade de

protetor dos valores fundamentais da sociedade. No mais, como inúmeras vezes

destacado, ela também permite observar as contradições reais da diferenciação funcional

da sociedade que, além de gerar como subproduto a estratificação, também engendra uma

escalada de exclusão em massa, sendo oportuno relembrar neste contexto a

essencialização do inimigo como construção jurídico-penal seletiva da exclusão não

gerenciada pelos sistemas sociais.

Também é importante levar em consideração que quando A nova criminologia é

editada, em 1973, as conclusões referentes ao potencial crítico de uma teoria geral do

desvio levam em consideração as contribuições de Ralf Dahrendorf, George Vold, Austin

Turk e Richard Quinney, que propunham (novas) teorias do conflito em contraposição às

teorias consensuais até então dominantes e que fundamentavam-se nos trabalhos de

Durkheim e Parsons1197. Ora, se Luhmann desenvolve um projeto sociológico crítico à

tradição sociológica, criticando também a teoria de Parsons pelo apelo à “estabilidade de

normas duráveis, compreensíveis e assimiláveis”1198 como mecanismo para orientar o

1194 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan:

Instituto Carioca de Criminologia, 6ª ed., 2011, p. 161, 206. 1195 Ibidem, p. 166. 1196 Ibidem, p. 190. 1197 TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo; YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of

deviance. New York: Routledge, 2013, p. 252-255. 1198 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Vol. I. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p.

31.

284

agir, e se, como destacado, também pode ser observada uma aproximação à teoria

marxista no processo de alargamento cognitivo da teoria luhmanniana, então a teoria dos

sistemas sociais não seria merecedora de uma especial atenção pela criminologia crítica?

Um olhar mais atento aos questionamentos que deram origem à este movimento

permite observar que a aproximação não é tão óbvia quanto parece. Assim, é fundamental

atentar para a crítica que Taylor, Walton e Young dirigem às teorias do conflito:

Se elas estão discutindo a gênesis do

comportamento ou a derivação de rótulos, as novas

teorias do conflito observam uma relação relativamente

simples entre poder, interesse e a consciência do homem

(como sendo formada em tais conjunturas de interesses)

(...) tal concepção mina ou rebaixa uma observação

alternativa do homem como criadores intencionais e

inovadores da ação. Particularmente, isso leva à uma

abordagem do crime na qual a ação é meramente e

simplesmente um produto de interesses poderosos ou de

uma sociedade desigual – em oposição ao entendimento

de que seria um produto do propósito individual ou de

ações coletivas realizadas para resolver as

desigualdades de poder e interesse1199.

Não pode passar desapercebido, em que pese as possíveis relações entre

criminologia crítica e teoria (crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos levantadas, que a

primeira exige como requisito para uma teoria geral do desvio a compreensão da ação

também como ação humana. Isso significa que o primeiro obstáculo epistemológico

mencionado por Luhmann em A sociedade da sociedade, referente à ideia de que a

sociedade é constituída por homens concretos e por relações entre seres humanos1200, é

uma premissa fundamental da “nova criminologia”.

Isso fica ainda mais claro quando Young, na mencionada introdução, elenca os

requisitos formais e materiais que uma adequada teoria geral do desvio deve cobrir. No

primeiro caso, os requisitos são: 1. Origens mais amplas (que sublinhem as causas do ato

1199 TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo; YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of

deviance. New York: Routledge, 2013, p. 284 [tradução livre do inglês]. 1200 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 11.

285

desviante); 2. Origens imediatas (que respondam à pergunta pela origem imediata do ato

desviante); 3. Conduta atual (que esclareça como o comportamento se relaciona com a

causa); 4. Origens imediatas da reação social; 5. Origens mais amplas da reação social;

6. Resultado da reação social na ação posterior do desviado; 7. Persistência e alteração

das ações nos termos apresentados nos pontos anteriores. No segundo, os requisitos são:

1. Seres humanos são simultaneamente determinados e determinantes; 2. Uma sociedade

pluralista diversificada; 3. Uma sociedade de classes baseada nas desigualdades de

riqueza e poder; 4. Um modelo [social] processual sequencial que é histórico e aberto ao

futuro; 5. Uma dialética entre estrutura e consciência; 6. Uma visão holística da sociedade

e do indivíduo; 7. Uma teoria que seja isomórfica (simétrica), dando as mesmas

explicações para a reação social e para a ação. 8. Dados empíricos que expliquem todos

os casos de desvio; 9. Deve envolver uma criminologia consciente da história e da posição

social-histórica dos teóricos, que abordarão o crime não como um tecnicismo, um

problema superficial que necessita de correção, mas que lidarão com a sociedade

enquanto totalidade1201.

Como pode-se perceber, a enumeração desses requisitos demonstra outras tantas

dificuldades para a irritação produtiva da criminologia crítica pela teoria luhmanniana,

tais como, por exemplo, a ênfase na “descoberta” da causalidade social-econômica, o

entendimento holístico da sociedade (parte/todo), a consequente aceitação do homem

como parte da sociedade, e o já mencionado destaque à ação humana.

Ora, desde uma perspectiva luhmanniana não existe qualquer realidade

independente do observador. Isso significa que a tematização do mundo é uma

aproximação necessariamente incompleta, de tal forma que o mundo não é mais

compreendido nem como um agregativo corpo rum que poderia ser ordenado segundo

nomes, tipos e gêneros, nem como universais sérum, totalidade das coisas e ideias1202. Ou

seja, rechaça-se a premissa de que o mundo seria o mesmo para todos os observadores, e

que poderia ser determinado mediante observação1203.

Não à toa Luhmann substitui o conceito de ação por uma estrutura capaz de,

simultaneamente, tornar possível a autonomia e a dependência da sociedade em relação

1201 YOUNG, Jock. Introduction to 40th anniversary edition, em TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo;

YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of deviance. New York: Routledge, 2013, p.

XXv-XXVI. 1202 LUHMANN, Niklas. Teoria della società. Milão: Franco Angeli Editora, 2009, p. 48-49, e

LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 109. 1203 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 116.

286

ao homem. Por isso afirma que na sociedade só existe comunicação, e que somente a

comunicação comunica1204. Além do mais, nessa perspectiva a pergunta pela realidade

deve sempre procurar observar as distinções do observador, ou seja, questionar como ela

é produzida.

Perceba-se: não há uma única preferência referencial a partir da qual o mundo

possa ser compreendido e modificado, de tal forma que sua proposta enfatiza as distintas

possibilidades descritivas do mundo pela pluralidade de observadores, para além da

compreensão social centrada na ideia de racionalidade da ação. É por este motivo que seu

“iluminismo sociológico” (soziologische Aufklärung) rompe com o conceito de ação que

representa um continuum entre homem e sociedade, é dizer, como se o social fosse um

agregado de ações individuais.

Isso significa que diversas premissas que norteiam a criminologia crítica poderiam

muito bem ser integradas naquilo que Luhmann chama de instrumentos conceituais pouco

elaborados1205. Pelo próprio contexto em que surgiu, a “nova criminologia” repete os

entusiasmos humanistas que Luhmann tanto repudiava para a compreensão da sociedade

moderna. Ela acredita que pode abstrair-se das determinações da sociedade capitalista,

isto é, considerar-se como instância crítica externa à esta sociedade e por isso mesmo

atuar nela para fins de emancipação. Aqui a utilização da distinção sujeito/objeto é

notória1206.

Deve-se, então, romper com qualquer possibilidade de aproximação com a teoria

luhmanniana, particularmente capaz de observar as contradições da sociedade moderna a

partir da distinção sistema/ambiente? É oportuno destacar que no texto original da A nova

criminologia, os autores (Ian Taylor, Paul Walton, além de Young) admitem na conclusão

que não foram capazes de analisar no trabalho as limitações de uma sociologia ambígua

que se isola do entendimento econômico das estruturas sociais e que fora desenvolvida

dentro dos confins da sociedade capitalista em desenvolvimento1207.

Ora, esses dois déficits não demonstram o paradoxo desta empreitada crítica? E

aqui Luhmann não poderia ser esclarecedor? O sociólogo de Bielefeld sabe muito bem

1204 LUHMANN, Niklas. Theories of Distinction. Califórnia: Stanford University Press, 2002, p. 169. 1205 LUHMANN, Niklas. Teoría política en el Estado de Bienestar. Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 39. 1206 Isso fica particularmente claro quando Lola Aniyar de Castro, ao apresentar o problema epistemológico

da criminologia, refere-se à filosofia crítica como sendo radical, já que “vai à essência das coisas, procede

à derruabada dos mitos, quer dizer, dos fetiches da existência, das categorias objetivadas, para atingir a

essência”. Ver CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983,

p. 09. 1207 TAYLOR, Ian; WALTON, Paulo; YOUNG, Taylor. The new criminology. For a social theory of

deviance. New York: Routledge, 2013, p. 286.

287

que uma teoria da sociedade não pode ser imune à diferenciação funcional dos sistemas

sociais, já que o próprio sistema científico encontra-se condicionado por ela. Assim, uma

teoria social só pode ser construída na sociedade (capitalista). Se a reflexividade

decorrente desta premissa pode ser, num primeiro momento, desconcertante, num

segundo momento percebe-se que ela joga um papel fundamental, qual seja “esclarecer

as influências recíprocas que existem entre, por exemplo, economia, direito e

política”1208, e assim contribuir para uma melhor compreensão crítica dos paradoxos da

sociedade funcionalmente diferenciada (capitalista), principalmente devido ao fenômeno

da exclusão social.

Essas reflexões demonstram alguns problemas internos da criminologia crítica.

Além disso, é importante perceber que o fortalecimento do capitalismo a partir da década

de 90 minou cada vez mais os entusiasmos com este movimento. Se por um lado podem

ser observados descontentamentos com a capacidade analítica da teoria, por outro seu

rendimento crítico também foi constantemente questionado e reelaborado1209. Neste

contexto, vale a pena destacar a posição de David Garland, que sustenta não ser necessária

uma teoria geral do desvio1210. Para o autor, o evento penal não é uma entidade única,

unificada, já que o sistema penal seria uma “instituição complexa” com diversas áreas

que conectam-se com outras esferas socais, produzindo inúmeros efeitos.

Consequentemente, não seria possível prever como os “desenvolvimentos penais”

acontecerão, de tal forma que uma síntese geral das diversas interpretações acerca da

1208 BOERS, Klaus. Kriminologische Forschung und Systemtheorie, em BOERS, Klaus (Org.).

Kriminologische Perspektiven. Wissenschaftliches Symposium zum 70. Geburtstag von Klaus Sessas.

Münster: Waxmann, 2012, p. 252 [tradução livre do alemão]. 1209 Basta aqui mencionar o desenvolvimento do realismo de esquerda ao final da década de 70 e da

criminologia cultura no início da década de 90. Quanto ao primeiro, especial destaque deve ser dado ao

livro de John Lea e Jock Young, What is to be done about law and order?, em que os autores buscaram

estabelecer as premissas básicas do realismo de esquerda desde uma perspectiva socialista (1. O crime

realmente é um problema social; 2. Deve-se olhar para a realidade atrás das aparências; 3. Deve-se levar a

sério o controle do crime; 4. Deve-se olhar realisticamente para as circunstâncias tanto do ofensor quanto

da vítima; 5. Deve-se ser realista quanto ao policiamento; 6. Deve-se ser realista quanto ao problema do

crime no presente período). Ver LEA, John & YOUNG, Jock. What is to be done about law and order?

Londres: Pluto Press, 1993, p. 262-273. Já David Garland denomina como “crise do modernismo penal” a

situação na qual o conhecimento dos grupos profissionais que operam no sistema penal ficou desacreditado,

tanto no âmbito externo quanto no âmbito dos próprios membros. Além disso, considera que “sentimentos

punitivos” e “gestos expressivos”, que parecem “absolutamente antimodernos”, tenderiam a confundir a

teoria social no que tange à análise da punição e seu desenvolvimento histórico. E afirma: “Nem mesmo o

mais criativo leitor de Foucault, Marx, Durkheim e Elias poderia prever estes desdobramentos recentes, e

certamente nenhuma previsão deste tipo jamais surgiu”. Uma análise atual acerca da “perpétua sensação de

crise” do pensamento criminológico e dos argumentos referentes às “falhas da teoria” também é feita pelo

autor. Ver GARLAND, David. A cultura do controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea.

Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 44, 67-68. 1210 GARLAND, David. Punishment and Modern Society. Chicago: University of Chicago Press, 1990, p.

284.

288

punição – tal como aquela que sustenta que a punição é “acima de tudo” isso,

“basicamente” aquilo – não seria satisfatória, apesar de retoricamente forte1211.

Isso jogaria a favor ou contra uma aproximação à teoria luhmanniana, tal como

destacado logo acima? O próprio Garland dá uma pista (na última frase de uma nota de

rodapé). Em suas considerações sobre qual modelo teórico seria mais produtivo para

compreender a punição, o autor faz uma articulação interessante. Após apresentar a ideia

de “fato social total”, a partir da qual Marcel Mauss analisava as trocas nas sociedades

arcaicas (em que a totalidade do presente manifestava-se como um fenômeno

simultaneamente repleto de aspectos econômicos, culturais, religiosos, jurídicos e

estéticos), Garland salienta que nessas sociedades os atores sociais experimentam o

presente nessa totalidade descrita pelo pensador francês. No entanto, essa percepção da

totalidade seria possível nas sociedades atuais? Isso é particularmente importante para o

autor, já que ele compreende a punição como uma instituição social complexa,

manifestamente influenciado pela ideia de Mauss1212. Mas complexa em que sentido?

O raciocínio aqui é que nas práticas cotidianas a punição de alguma forma constrói

uma condensação de relações sociais e significados culturais, servindo então para diversas

finalidades (expressão do poder estatal, estabelecimento de uma moralidade coletiva,

veiculação de uma expressão emocional ou demonstração de uma política social

economicamente condicionada). É importante retomar a pergunta: a “totalidade” da

punição enquanto instituição social complexa, ideia derivada do “fato social total” de

Mauss, poderia ser observada nos dias de hoje? Resposta de Garland: “Na sociedade

moderna funcionalmente diferenciada, no entanto, o ponto crucial é que o “fato social

total” talvez não seja vivenciado como tal”1213. Ora, então a condensação de sentido

manifestada na punição talvez tenha alguma relação com a teoria luhmanniana, já que o

termo “sociedade moderna funcionalmente diferenciada” é característico desta

construção?

Esta é uma questão em aberto. Não há qualquer referência explícita ao sociólogo

alemão na obra de Garland, nem em notas de rodapé nem na bibliografia. No entanto,

parece que a “marca luhmanniana” mencionada pode realmente contribuir para o debate.

Perceba-se: o argumento do criminólogo é que um estudo sociológico poderia tornar

explícita as “dimensões sociais da punição”, no sentido de afastar a explicação utilitária

1211 Ibidem, p. 285-286. 1212 Ibidem, p. 287. 1213 Ibidem, p. 287, nota 10 (tradução livre do inglês) (ênfase acrescentada).

289

da punição (predominantemente negativa), como se ela só tivesse uma finalidade

instrumental de controle social. Para tanto, dá como exemplo a prisão, instituição

comumente taxada como falida, mas que ao contrário do discurso propagandeado por

“especialistas”, possui diversos objetivos sociais que são ignorados pelas análises que

estabelecem como ponto de partida a “irracionalidade” desta instituição1214. Como se verá

a seguir, os dois estudos que explicitamente dialogam com Luhmann procuram

justamente colocar em pauta a discussão referente ao potencial da teoria dos sistemas

sociais autopoiéticos para a criminologia crítica. Destaque-se: este caminho segue a linha

proposta pelo próprio Garland:

Quanto mais a compreensão de alguém acerca

das instituições começa a capturar suas nuances e

complexidade – e seus efeitos positivos juntamente com

os negativos – mais profunda, informada e incisiva será

a crítica que alguém pode levantar1215.

Uma vez desenvolvidas essas reflexões, cumpre agora apresentar os dois estudos

mencionados. Já que a primeira etapa deste capítulo demonstrou a capacidade da teoria

(crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos contribuir para a dogmática jurídico-penal,

resta agora verificar se mais alguns elementos podem confirmar sua possível contribuição

para uma nova agenda de pesquisa para a criminologia crítica.

Kai-D. Bussmann: por uma teoria da evolução do crime e do controle

Para Kai-D. Bussmann o pensamento criminológico possui um enorme déficit,

qual seja a já destacada ausência de uma teoria geral do crime e do controle social, de tal

forma que a criminologia continua a apresentar um incontável número de teorias com um

campo de aplicação bem específico1216. Além disso, o autor sustenta que a tentativa de

explicar o crime desde uma perspectiva centrada na figura do ofensor através de

causalidades postuladas não encontra evidências empíricas, afirmando que o grande

1214 Ibidem, p. 288-289 1215 Ibidem, p. 290 (tradução livre do inglês). 1216 BUSSMANN, Kai-D. Variantion, Selection and Stabilization: An Evolutionary Theory of Crime and

Control, em BUSSMANN, Kai-D. & KARSTEDT, Susanne (Ed.). Social dynamics of crime and control.

New Theories for a World in Transition. Oxford-Portland Oregon: Hart Publishing, 2006, p. 243.

290

mérito do labelling approach foi colocar o referencial de observação como ponto central

do debate.

No entanto, a tentativa de resolver todos os problemas da questão do crime

somente a partir de uma perspectiva construtivista seria um empecilho, já que o

entendimento do crime como problema social (e não somente jurídico-penal) não seria

objeto de consideração. Fazendo um resumo dos inúmeros déficits do pensamento

criminológico, Bussmann apresenta os seguintes pontes: 1. Ausência de uma teoria que

possibilite o processamento das conquistas positivas do crime; 2. Ausência de uma teoria

que leve em consideração a inevitabilidade do crime; 3. Ausência de uma teoria que retire

o crime e o ofensor de uma conotação negativa sem simultaneamente deslizar em

trivialidades e em construtivismo autossatisfatório; 4. Ausência de uma teoria que

possibilite o processamento dos aspectos positivos do controle social da lei penal; 5.

Ausência de uma teoria consistente que tente confirmar o link inseparável entre crime,

estrutura social e semânticas da sociedade1217.

É diante dessas dificuldades que o autor apresenta a estrutura geral de uma “teoria

do crime”. Para tanto, vale-se dos elementos luhmannianos de variação, seleção e

estabilização, que poderiam ser utilizados tanto para analisar sistemas sociais quanto

sistemas psicofísicos. Dito isso, Bussmann enfatiza que o ponto central desta teoria coloca

a variação como elemento central da evolução, de tal forma que o crime poderia ser

conceituado como variação de possibilidades.

No entanto, é importante perceber que desde uma perspectiva luhmanniana toda

variação gera uma diferença. Ou seja, “um desvio daquilo que anteriormente era

considerado usual, e este diferença compele à uma seleção favorável ou contrária à

inovação” 1218. Por isso o autor reafirma a tese de Sessar de que “a situação cria o ofensor”,

no sentido de que o mais importante a ser analisado são os links potenciais a partir dos

quais uma variação pode ocorrer. Ora, dessa forma explica-se porque a pobreza não está

diretamente ligada ao crime, mas sim o processo de empobrecimento, o lhe permite

concluir que a razão primária do crime está no jogo de variações decorrente da dinâmica

da sociedade. Ou seja, “crime é, em todo caso, sempre uma parte da operação básica do

desenvolvimento social”1219.

1217 Ibidem, p. 244. 1218 Ibidem, p. 245 (tradução livre do inglês). 1219 Ibidem, p. 246 (tradução livre do inglês).

291

Feitas essas considerações, Bussmann salienta que o crime não deve ser visto

como algo que existe, no sentido ontológico. No entanto, não seria suficiente dizer que o

crime é um problema de referência, tal como colocado pelo labelling approach. Por isso

afirma que “não existe crime, mas criminalização. Consequentemente, a única coisa que

existe são comunicações que fazem uma discriminação”1220. Perceba-se que há uma união

de elementos dentro de uma única teoria: controle social e crime. Pois o crime enquanto

discriminação só aparece diante do controle social enquanto seleção.

A consequência imediata deste raciocínio é que o foco das análises passa das

causas do crime para a relação entre a estrutura da sociedade e as semânticas que ela

prefere. E aqui torna-se extremamente importante levar em consideração a

autorreferencialidade dos sistemas (sociais ou psíquicos), pois a partir dela afirma-se que

aquilo pode existir são estímulos que intensificam variações e seleções, mas não

determinação da seleção por uma causalidade qualquer.

Bussmann também faz questão de enfatizar que essa perspectiva teórica em

hipótese alguma desconsidera o indivíduo. Basta aqui lembrar o conceito de

interpenetração apresentado no capítulo anterior, e que serve de base para que o autor

compreenda que cada ser humano reage ao ambiente social, isto é, reage aos mecanismos

de controle social, percebendo as oportunidades de variação, assim como o ambiente (no

caso, os sistemas sociais) reage frente a ele. De toda forma, não se pode esquecer que a

questão do crime não está conectada somente aos indivíduos, e é neste momento em que

a proximidade com o escrito de Garland acima mencionado pode ser observada.

O autor enfatiza que as relações entre sistema penal, comércio, política e meios de

comunicação em massa são fundamentais. Além do direito penal ser o sistema “chefe”,

já que é o responsável por selecionar o evento “crime”, esta comunicação joga um papel

relevante na sociedade funcionalmente diferenciada. Ainda que operativamente fechado,

e por isso incapaz de determinar o comportamento de outros sistemas (sociais ou

psíquicos), fato é que o direito penal fornece uma semântica que pode ser utilizada pelo

ambiente, notadamente aquele composto por outros sistemas sociais. No caso específico

dos indivíduos, Bussmann chama a atenção para os conceitos jurídicos presentes na

linguagem (lembre-se: acoplamento estrutural entre sistema psíquico e sistema social) e

que, assim, “guiam nossas percepções, nossas interpretações da realidade e nossos

julgamentos”1221. Ora, isso demonstra uma tentativa de controle por parte do direito penal,

1220 Idem. 1221 Ibidem, p. 249 (tradução livre do inglês).

292

pois para que o indivíduo o tematize será necessário utilizar as distinções deste sistema,

isto é, termos e categorias do direito penal, e assim se comprometerá com a específica

construção da realidade jurídico-penal derivada das distinções (normativas!) por ele

utilizadas.

Também é importante perceber que após a diferenciação jurídico-penal do

elemento “crime”, este será objeto de comunicação de diversos outros sistemas,

exercendo uma particular influência nos chamados meios de comunicação1222. Por isso

Bussmann afirma que o direito penal possui um truque: “suga mais e mais comunicações,

comportamentos e discursos para o seu mundo, enquanto, por outro lado, ele

pessoalmente diagnostica mais e mais desvios pela mesma razão”1223. Disso o autor

deriva algumas reflexões interessantes: o direito penal integra especificamente pela

exclusão; a questão referente a mais ou menos lei penal não tem qualquer relação com a

“prevenção”; o direito penal é responsável por enfatizar a existência de um mundo

comum, consensual; seu impacto, neste sentido, não é somente negativo (repressivo).

No entanto, ainda é necessário analisar a capacidade desta teoria geral do crime

de influência luhmanniana responder ao problema dos paradoxos. Isto é, como explicar a

funcionalidade de uma seleção negativa como aquela feita pelo direito penal, se ela está

frequentemente associada a altos custos para indivíduos e para a própria sociedade?

Segundo Bussmann, certos comportamentos não são compatíveis com outros domínios

sociais (sistemas sociais), sendo incapazes de providenciarem links para a futura evolução

de um sistema. Isso significa que os limites da variação também levam em consideração

acoplamentos (lembre-se: a legislação está localiza na fronteira do sistema jurídico) com

outros sistemas, demonstrando assim a dimensão complexa do crime. Para tanto, basta

observar os chamados “benefícios do crime” para outros sistemas sociais: a escalada de

seguros e da indústria de segurança no âmbito econômico; a personalização de problemas

pela política e o potencial de distração pública que o crime permite; garantia de novas

1222 A seguinte passagem de Luhmann esclarece a questão: “O sucesso dos meios de comunicação em toda

a sociedade deve-se à imposição de temas, independentemente se as posições tomadas são positivas ou

negativas em relação às informações, às proposições de sentido, às nítidas valorizações. Em geral, o

interesse do tema se baseia no fato de que ambas as posições são possíveis” (...) “Por isso, pode-se dizer

também que os meios de comunicação mantenham a sociedade desperta. Eles produzem uma disposição

continuamente renovada para que esta esteja preparada para surpresas, mesmo para os distúrbios. Nesse

sentido, os meios de comunicação “ajustam-se” à dinâmica própria acelerada de outros sistemas de função,

como a economia, a ciência e a política, que confrontam continuamente a sociedade com novos problemas”.

Ver LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005, p. 31, 48. 1223 BUSSMANN, Kai-D. Variantion, Selection and Stabilization: An Evolutionary Theory of Crime and

Control, em BUSSMANN, Kai-D. & KARSTEDT, Susanne (Ed.). Social dynamics of crime and control.

New Theories for a World in Transition. Oxford-Portland Oregon: Hart Publishing, 2006, p. 250.

293

notícias para os meios de comunicação, etc. Por isso a pretensão de erradicação do crime

é, no mínimo, simplista, já que ele funciona como um conector (de comunicações)

altamente operativo para os sistemas sociais: “o crime serve para coordenar as relações

entre vários discursos e sistemas”1224.

Feitas todas essas considerações, Bussmann apresenta as seguinte conclusões: sua

proposta concede uma estrutural geral comum para as teorias criminológicas que já

existem; o crime é visto como algo normal, necessário para o potencial de variação da

sociedade; sua proposta desvela a necessidade de variação presente no direito penal; este

sistema evolui sem intenções; ela também evidencia a contribuição do crime para diversos

sistemas sociais; a conotação negativa do crime é justamente a razão de seu sucesso; a

teoria demonstra que, uma vez que diversos sistemas sociais utilizam o conceito de crime,

eles então providenciam links potenciais para o crime junto aos sistemas psicofísicos;

essas “conversas sobre o crime” atualizam o crime como tópico da sociedade. Um resumo

disso tudo é apresentado da seguinte forma:

O crime não é somente um problema, mas forma

os materiais para alterações sociais, para a evolução.

Agora alguém pode ver mais claramente como a lei

penal é obrigada a desenvolver o crime, e que o crime

tem sido uma parte essencial da evolução de vários

subsistemas que se desenvolvem com esses tipos de

variação e estabilizam o crime como um fenômeno

social. Finalmente, o crime é uma parte inseparável do

escopo de variação. E acima de tudo, o crime é parte da

liberdade da sociedade e de sua dinâmica de

desenvolvimento, e portanto será sempre um paradoxo

(produtivo) dentro da evolução social1225.

Nicolas Carrier: por uma criminologia crítica radical construtivista

O segundo estudo selecionado que analisa a possibilidade de contribuição da

teoria dos sistemas sociais autopoiéticos para a criminologia crítica foi feito por Nicolas

Carrier. Logo em sua primeira fase o autor salienta aquele que parece ser o motivo para

1224 Ibidem, p. 253 (tradução livre do inglês). 1225 Ibidem, p. 254 (tradução livre do inglês).

294

a ausência sistemática de Luhmann nos estudos da sociologia criminal: “criminologia

crítica e construtivismo radical são frequentemente considerados um par impossível”1226,

uma espécie de esquizofrenia, e destaca que o argumento comumente colocado é que tal

aproximação privaria a criminologia de sua capacidade crítica (algo que, como visto, é

comum nas análises acerca da relação entre Luhmann e Jakobs). No entanto, o autor

considera que o construtivismo radical pode catalisar a criminologia crítica, naquilo que

denominará de criminologia crítica radical construtivista.

Antes do desenvolvimento de tal raciocínio a extrema variabilidade das

abordagens criminológicas é salientada por Carrier, tal como fizera Bussmann,

destacando que aquilo que se considera como criminologia crítica possui uma unidade

caracterizada pela (alegada) utilização de metodologias menos convencionais. No

entanto, o autor defenderá a tese de que “a epistemologia de Luhmann pode fornecer uma

boa fundamentação alternativa”1227, notadamente para os conceitos de controle social,

poder/força, e legitimidade.

Para que isso seja possível, Carrier primeiramente retoma o posicionamento que

considera impossível uma postura crítica desde uma perspectiva radical construtivista.

Ora, uma vez que o construtivismo repousa na recusa de distinguir entre o fenômeno e o

simbólico, ela acaba por fazer desaparecer a clássica diferença entre ontologia e

epistemologia, o que impediria que a criminologia se posicionasse criticamente diante de

seu objeto de estudo. No entanto, o autor vê nesta supressão o potencial radical crítico da

teoria luhmanniana que poderia fundamentar uma nova criminologia.

Feita esta primeira aproximação, alguns aspectos gerais da epistemologia

sistêmica são apresentados, dando-se destaque para o fato da teoria assumir a

inacessibilidade às coisas (tais como injustiça, crime, dano), compreendidas como

produtos culturais de um dado contexto histórico-social. Ou seja, não existiria algo

diferente ou algo superior do que aquilo que é produto de um observador1228. Dessa forma,

a consequência deste raciocínio – assumir que nossa relação com o mundo é totalmente

autorreferencial – para a criminologia seria considerar que a essência do crime não

poderia residir senão no discurso que a sustenta. Com isso Carrier destaca que os sistemas

comunicativos seriam capazes de construir objetos sociais, e chama a atenção para a

1226 CARRIER, Nicolas. Critical criminology meets radical constructivism, em Crit. Crim, nº. 19, 2011, p.

331 (tradução livre do inglês). 1227 Ibidem, p. 332 (tradução livre do inglês). 1228 Ibidem, p. 335.

295

proximidade desta análise com o conceito de “formação discursiva” utilizado por

Foucault, nada estranho ao pensamento criminológico. Ora, essas considerações revelam

que as “críticas” que veem em Luhmann uma teoria solipsista seriam infundadas.

Com isso abre-se a porta para um entendimento desafiador acerca das relações

entre direito e seu ambiente, já que a criminalização, por exemplo, seria vista como uma

delimitação jurídica entre o permitido e o proibido que ocorre a partir das próprias

operações do sistema jurídico-penal, o que afasta a concepção ontológica do crime e seus

questionamentos causais1229. Neste contexto, Carrier explora um pouco mais as possíveis

contribuições de uma possível criminologia crítica radical construtivista. Partindo-se da

ideia de que cada sistema social constrói sua identidade, de tal forma que a sociedade

moderna seria policêntrica, com pluralidades irreconciliáveis, então o conceito de

controle social construído no âmbito teoria da reação social, que refere-se somente à

relação desvio/crime, seria bem estreito1230. Mas por que?

Neste caso, o controle social abarcaria somente o processamento social de

desviantes e criminosos. No entanto, “a criminalização nem sempre se justifica por, ou

está ligada à realidades patológicas, nem é a mera solidificação da distinção

normal/patológico”1231. Além disso, Carrier salienta um paradoxo decorrente desta

estreita vinculação entre controle social, desvio e crime: estes são vistos comumente como

produtos daquele, mas a alta do nível de criminalidade é vista como resultado do colapso

do mesmo controle social. Assim, uma sociologia radicalmente construtivista permite

considerar o controle social desde uma perspectiva comunicativa na qual diversos

discursos aproximam-se. Ou seja, o controle social seria um mecanismo de redução da

complexidade. Por isso ele considera que a próprio construção social já seria controle, de

tal forma que os dois conceitos seriam sinônimos1232.

Como já destacado, esta abordagem luhmanniana também permite questionar a

maneira como o tema do poder e da força é desenvolvido no pensamento criminológico.

Segundo Carrier, é necessário descartar o entendimento de que a falta de outros modos

de dar sentido à realidade, que não seja pela criminalização, seria uma questão de poder.

Se construção social e controle social são sinônimos, e se existem diversos sistemas

sociais, então o foco da análise deveria estar na influência que ocorre entre as diversas

1229 Ibidem, p. 336. 1230 Ibidem, p. 338. 1231 Idem (tradução livre do inglês). 1232 Ibidem, p. 339.

296

instâncias sociais e os indivíduos, que não necessariamente manifestam-se enquanto

força.

Com a limitação do conceito de poder pelo de influência seria possível considerar

“a capitalização dos meios que estruturam, seja pela ameaça da força, ou pela ameaça do

uso da força, o “campo de possibilidades” da ação”1233. E isso, uma vez mais, também é

influência da teoria luhmanniana, que apresenta o poder como uma capacidade, uma

“possibilidade não atualizada de mobilizar sanções”1234. Perceba-se o ganho analítico: se

o poder é uma possibilidade, então a repressão policial não é poder, mas instância de

poder pela força, de tal forma que apresentam-se distinções (poder como possibilidade de

sanção e força como atualização da sanção) que poderiam guiar a análise de diferentes

modos de operação do controle social. Daí sua hipótese: “se a criminalização é uma forma

particular de controle social, então talvez nós seríamos capazes de observar diferentes

usos da criminalização: como influência, poder e força”1235.

Por fim, a última contribuição da criminologia crítica radical construtivista

analisada por Carrier refere-se à capacidade de deslegitimar o poder e a força da

criminalização, não só como interesses políticos e econômicos, mas como

questionamento do paradoxo do direito de proibir e punir. Isso ocorre pois uma

criminologia desse tipo poderia observar que as tentativas de solidificar os princípios

normativas de legitimação seriam em vão, já que a autoridade jurídica, em razão da

autorreferência, só pode estar nela mesma: “violência sem qualquer fundamentação

(externa)”1236. Ora, se a legitimação só pode ser auto-legitimação, então seria possível

observar que semânticas tradicionais (Deus, razão, contrato) foram produzidas para

ocultar esta reflexividade, e que, atualmente, o paradoxo do direito de proibir e punir seria

gerenciado a partir da referência externa ao consenso, aos valores fundamentais ou à

justiça, articulada com a ficção de dever de obediência ao direito. A consequência desta

semântica é clara: a punição de indivíduos que se recusam a seguir a lei já pode ser

fundamentada.

Feitas todas essas considerações, Carrier apresenta as seguintes conclusões: o

construtivismo radical pode catalisar a criminologia crítica; uma criminologia crítica

radical construtivista problematiza os conceitos de controle social, poder/força e de

1233 Idem (tradução livre do inglês). 1234 Ibidem, p. 340 (tradução livre do inglês). 1235 Ibidem, p. 341 (tradução livre do inglês). 1236 Ibidem, p. 342 (tradução livre do inglês).

297

legitimidade do direito penal, além de questionar a essencialização do crime e propor uma

interpretação atenta ao processo de criminalização, já que “o direito de proibir e punir

sempre será, desde um ponto de vista construtivista, altamente problemático”1237.

3.2.3. Segunda proposta de conclusão parcial

“Ao invés de parecer glorificar a punição como uma importante instituição social

funcional, a sociologia da punição pode ser tomada para sugerir suas limitações e apontar

para caminhos alternativos de organização das tarefas”1238. Acrescente-se: isso é feito

desde uma perspectiva crítica.

Nesta segunda parte do presente capítulo, a teoria (crítica) dos sistemas sociais

autopoiéticos foi confrontada com a criminologia crítica, e indagou-se se o potencial

crítico demonstrado na parte anterior, referente à dogmática jurídico-penal, também

poderia ser observado nesta seara. Uma vez que grande parte do pensamento

criminológico tradicionalmente apoia-se na sociologia, talvez fosse esperado que a

presença de Luhmann encontrasse neste campo maior permeabilidade.

No entanto, como observado, as coisas não são bem assim. Aqui é importante

frisar um aspecto inquietante: o sociólogo de Bielefeld é amplamente ignorado pela

criminologia, daí a total pertinência das palavras de Carrier ao caracterizar esta relação

como esquizofrênica. Frente a isso, a primeira tentativa de aproximação partiu do material

compilado na parte anterior, na qual a especial capacidade da teoria (crítica) dos sistemas

para observar as contradições da sociedade funcionalmente diferenciada decorrentes da

exclusão social a partir de uma aproximação ao pensamento marxista já fora destacada.

Ora, se isso parecia sugerir uma aproximação entre esta teoria e a proposta materialista

da “nova criminologia”, esta suspeita foi colocada à prova analisando-se a capacidade de

todos os princípios da ideologia da defesa social serem rebatidos a partir do arsenal

teórico luhmanniano.

Feito mais este teste de produtividade, verificou-se que, inicialmente, parecia

existir uma convergência entre os problemas fundamentais que deram origem à

criminologia crítica e a especial capacidade da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos

1237 Ibidem, p. 344 (tradução livre do inglês). 1238 GARLAND, David. Punishment and Modern Society. Chicago: University of Chicago Press, 1990, p.

292 (tradução libre do inglês).

298

de abranger diversas críticas a partir de um único material teórico, aspecto sabidamente

considerado como um dos pontos fracos do pensamento criminológico.

Mas uma observação mais apurada dos anseios e premissas da “nova

criminologia” permitiu verificar que seu enquadramento teórico representa um verdadeiro

bloqueio epistemológico para a teoria luhmanniana, particularmente em razão da

compreensão da ação como ação humana, reafirmando o já mencionado continuum entre

homem e sociedade, e do enlaçamento teórico à distinção sujeito/objeto. Como tantas

outras teorias críticas, também a criminologia deste tipo pretende ser capaz de se

desvencilhar desta sociedade e, desde uma perspectiva externa, observar seu objeto de

estudo criticamente para, então, voltar à ação e modificar a realidade social. Nada menos

luhmanniano.

Ocorre que uma pista na última frase de uma das últimas notas de rodapé de um

dos criminólogos mais respeitados da atualidade permitiu reconsiderar a possibilidade de

aproximação entre Luhmann e criminologia crítica, como destacado. Então, a hipótese de

pesquisa seguiu seu rumo: apresentadas as principais reflexões de Bussmann e Carrier,

foi possível observar como diversas assertivas acerca da produtividade luhmanniana já

haviam sido mencionadas no decorrer da pesquisa. Mas, fundamentalmente, os estudos

selecionadas demonstraram de que forma o encantamento dos conceitos luhmannianos

pode ser efetivamente utilizado pelo pensamento criminológico.

Assim, a segunda parcela da hipótese de pesquisa também está confirmada,

permitindo assim o estabelecimento da segunda proposta de conclusão parcial: a teoria

(crítica) dos sistemas sociais autopoiéticos pode contribuir para uma nova agenda de

pesquisa no âmbito da criminologia crítica.

299

CONCLUSÃO

Para além de Jakobs a partir de um outro Luhmann, possibilitando uma nova

agenda de pesquisa tanto para a dogmática jurídico-penal quanto para a criminologia

crítica. Esta foi a hipótese de pesquisa cuja possibilidade de rendimento se buscou

demonstrar no presente trabalho.

No primeiro capítulo procurou-se analisar, após breve contextualização da obra

de Jakobs e apresentação da repercussão geral doutrinária sobre o “fundamento

luhmanniano” no chamado “funcionalismo radical”, de que maneira este penalista

apropriou-se desses conceitos sociológicos para fundamentar sua teoria da pena em cada

uma de suas conflituosas fases, apresentadas setorialmente como “primeira fase”, “ponte

para a segunda fase”, “segunda fase”, “ponte para a terceira fase” e “terceira fase”.

Influenciada pela divisão qualitativa proposta por Gramsci, a abordagem da presença de

Luhmann em Jakobs foi feita através da divisão entre “material de estímulo”

luhmanniano, “elementos de condensação” decorrentes do significado dado por Jakobs à

este material, e “elementos permanentes” que sintetizam o pensamento final do penalista

de Bonn. Com isso foi possível perceber que apesar da influência contínua de Luhmann,

Jakobs afasta-se deste em alguns escritos das chamadas “segunda fase” e “ponte para a

terceira fase”, nos quais analisa a preponderância do sistema econômico na sociedade e

critica os conceitos luhmannianos de comunicação e acoplamento estrutural. A ambígua

relação entre os autores ficou ainda mais clara quando destacou-se a “nova adesão” à

teoria luhmanniana em um dos escritos que antecedem a chamada “terceira fase”,

momento em que Jakobs fundamenta a necessidade de apoio cognitivo pelo direito penal

(anteriormente vinculada à força da economia) a partir de Luhmann, e reintroduz os

elementos cognitivos em sua teoria da pena, período em que o tema do Direito Penal do

Inimigo aparece sistematicamente.

Feito este levantamento, o segundo capítulo procurou apresentar de modo geral os

principais conceitos da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, dando especial ênfase à

capacidade crítica decorrente de suas premissas, notadamente o construtivismo radical.

Também foi enfatizada a questão da exclusão social, momento em que a lógica

contraditória da própria diferenciação funcional foi destacada a partir de uma

interpretação que articula o arsenal teórico luhmanniano com o pensamento marxista. Por

fim, também foram analisadas as reflexões de Luhmann sobre o direito da sociedade

moderna, desde seus primeiros escritos até aqueles que valem-se do conceito de

300

autopoiese, com especial atenção para os temas referentes à função do direito, o conceito

de norma jurídica e a relação entre autodescrições e heterodescrições. Com isso preparou-

se o terreno para a avaliação crítica da presença de Luhmann em Jakobs.

Assim, no terceiro capítulo, após a realização do teste de produtividade desta

pesquisa, a comparação crítica entre o material levantado no primeiro capítulo e aquele

compilado no segundo capítulo permitiu o alcance de duas propostas de conclusão

parciais: a primeira, referente à possibilidade de uma nova agenda de pesquisa para a

dogmática jurídico-penal, teve como ponto de partida o questionamento do significado

dado por Jakobs aos conceitos luhmannianos (“elementos de condensação”), que também

integram os chamados “elementos permanentes”. Após a crítica a estes elementos,

destacou-se que um novo material de estímulo luhmanniano, particularmente atento ao

construtivismo radical e à lógica contraditória presente na própria diferenciação funcional

da sociedade, poderia, enquanto interpretação regressiva, observar o autoritarismo das

autodescrições ocorridas no direito penal que buscam construir uma semântica de

legitimação e assim irritar as pretensões reflexivas que são produzidas no interior do

sistema jurídico-penal. Dessa forma, as descrições “neutras” que Jakobs diz fazer em

escritos da “segunda fase” e da “ponte para a terceira fase” poderiam ser potencializadas

a tal ponto de bloquearem os avanços em direção ao Direito Penal do Inimigo típicos da

“terceira fase”, como destacado.

Com isso, ainda no terceiro capítulo, a pesquisa desenvolveu-se até a segunda

proposta de conclusão parcial, referente à capacidade da teoria luhmanniana contribuir

para uma nova agenda de pesquisa no âmbito da criminologia crítica. Para tanto, em um

primeiro momento foi destacado como a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos permite

questionar todos os princípios da ideologia da defesa social, premissa das escolas clássica

e positiva. Em que pese esta primeira aproximação ao pensamento criminológico, foram

destacadas algumas premissas da “nova criminologia” que dificultam uma relação mais

estreita entre as duas teorias. No entanto, após a discussão dos problemas referentes à

capacidade crítica da criminologia crítica, observou-se uma discussão no interior do

pensamento criminológico que poderia indicar sua possível permeabilidade à teoria

luhmanniana, momento em que foram destacados dois estudos que buscam desenvolver

essa potencialidade.

Feitas essas considerações, é possível estabelecer algumas diretrizes referentes à

possível relação entre dogmática jurídico-penal, criminologia crítica e teoria dos sistemas

sócias autopoiéticos. Se as duas conclusões parciais destacaram a possibilidade de

301

contribuição desta teoria para os âmbitos destacados, cumpre agora ressaltar algumas

aproximações gerais a respeito da forma como isso pode ser feito.

Primeiramente, é importante uma vez mais destacar que a teoria luhmanniana é

uma teoria da sociedade, e não uma teoria do direito penal, e que justamente por isso ela

permite a observação do paradoxo do direito penal que é o que é na exata medida em que

não é aquilo que seria enquanto construção semântica para fins de legitimação. Ao romper

com a noção de fundamentos, a teoria dos sistema sociais transforma a ontologia ainda

presente no pensamento jurídico-penal em construção do direito penal, e assim possibilita

desvelar o autoritarismo das ficções densamente elaboradas. Mas isso só pode ser visto

por uma teoria que rompa com a distinção sujeito/objeto e que compreenda a realidade

como realidade construída pelo observador.

A dogmática jurídico-penal, por sua vez, é uma autodescrição do sistema penal,

razão pela qual necessita trabalhar com as distinções normativamente estabelecidas por

este sistema trabalha. Isso quer dizer que a dogmática jurídico-penal, em que pese ter a

importante função de promover uma utilização flexível do material jurídico, não pode

colocar em dúvida a própria premissa de formação do sistema. Ou seja, ela trabalha com

as semânticas tradicionais que permitem ao direito penal construir sua identidade e seu

fundamento de guardião dos interesses fundamentais da sociedade. Consequentemente,

ela não pode compreender a norma jurídica como um fato social, e por isso mesmo

observa a norma como aquilo que é devido, manifestando o status normativo que o Direito

atribui à sua reflexão. Por isso Luhmann afirma que “a função de estabilização da

expectativa se interpreta como uma indicação de comportamento”1239.

Já a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos realiza uma descrição externa do

direito, e por isso não está presa aos pressupostos deste sistema. Ela parte da diferença,

da distinção entre sistema e ambiente, e consequentemente consegue observar,

primeiramente, as inúmeras controvérsias decorrentes da busca pelos fundamentos da

ordem jurídica no sistema ou no ambiente e, em segundo lugar, a partir de suas próprias

premissas, ela pode observar que o problema da unidade relaciona-se com a distinção

observação/descrição, isto é, que a unidade é resultado da realização da própria operação.

Nesse sentido, a teoria luhmanniana comporta muito mais complexidade, e não oculta as

dependências sociais, “ecológicas”, do direito. Por isso ela está interessada na pergunta

“como o sistema faz o que faz?”, ou “como encadeia operações entre si diante de um

1239 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Herder, 2005, p. 573 [tradução livre do

espanhol].

302

irritação permanente por parte do ambiente?”1240. É isto o que possibilita a compreensão

do fechamento operacional como ponto de partida para a compreensão da autonomia

funcional do direito penal. No entanto, como já destacado, um acesso desse tipo não é

possível no interior do sistema, lugar em que se encontra Jakobs. Ou seja, o

questionamento da unidade do sistema jurídico enquanto condição de sua operatividade

enclausurada só pode ser construído no ambiente.

Isso não impede que a dogmática jurídico-penal recepcione “conceitos de

mediação provenientes da descrição externa (sociológica)”1241, daí derivando a

possibilidade da teoria autopoiética dos sistemas sociais acoplar-se estruturalmente à ela,

irritando-a a partir da realidade contraditória da diferenciação funcional manifestada na

exclusão em cadeia, e assim questionando sua semântica liberal e ontológica. Ora, este

último aspecto é manifestamente empreendido por Jakobs, que enfatiza a necessidade de

aproximar estrutura social e semântica social para então compreender o processo de

imputação que ocorre na sociedade.

Por isso entende-se aqui que Jakobs dá exatamente o primeiro passo que permite

esta aproximação entre dogmática jurídico-penal e teoria dos sistemas sociais. Dessa

forma, o “para além de Jakobs a partir de um outro Luhmann” não significa

desconsideração da obra do penalista de Bonn. Exatamente o contrário, já que, como

destacado em diversas oportunidades, é possível realizar um movimento de interpretação

regressiva que, a partir a partir de um novo material de estímulo luhmanniano atento às

suas fundamentais premissas irrite as condensações de sentido reflexivas desenvolvidas

no interior do sistema jurídico-penal.

De modo mais concreto, pode-se dizer que os escritos da segunda fase de Jakobs

podem exercer um especial atrativo, já que em razão da ênfase na dimensão significativo-

comunicativa da pena são afastados os efeitos de psicologia social, algo relativamente

próximo àquilo que Luhmann manifesta em O direito da sociedade, no qual o sistema

jurídico não tem como função orienta comportamentos. No entanto, o principal benefício

para uma nova agenda de pesquisa no âmbito da dogmática jurídico-penal está em analisar

a capacidade de rendimento crítico desta premissa no interior do Tratado, obra em que

Jakobs organiza toda a teoria da imputação. É dizer: quais seriam as consequências de

uma reestruturação do Tratado a partir da qual a pena não tivesse mais como fim o

exercício do reconhecimento normativo? Se por um lado Jakobs colocou em evidência a

1240 Ibidem, p. 607. 1241 Ibidem, p. 617 [tradução livre do espanhol].

303

pergunta pela forma como se imputa comunicatiamente a violação de deveres para a

proteção da “identidade normativa” da sociedade, utilizando neste raciocínio alguns

elementos luhmannianos, como destacado, o que poderia surgir da compreensão de que

o direito penal só protege a sua identidade? Se as considerações de Jakobs acerca da

imputação objetiva articulam-se a partir da noção de violação de deveres decorrente de

papéis sociais objetivamente estabelecidos, que influência a questão da exclusão social

(desenvolvida densamente por Luhmann somente após 1993, ou seja, posteriormente à

segunda edição do Tratado) poderia ter? É dizer, a construção dos conceitos de pessoa e

de pessoa, essencialmente normativos, sequer questionam a exclusão social. No entanto,

se esta é produto direto da diferenciação funcional, de que forma o direito penal poderia

considerá-la? Haveria espaço para uma rediscussão da co-culpabilidade? Essas questões

podem contribuir para a consideração do Tratado como peça de resistência no interior do

próprio projeto de Jakobs, bloqueando assim o desenvolviemento dos instrumentos

dogmáticos para fins de psicologia social, tal como observa-se nos escritos da terceira

fase.

No entanto, é claro que também poderia ser dito que não há qualquer motivo para

o direito penal considerar a exclusão social, já que ele mesmo caracteriza-se, enquanto

forma jurídica, pelo ocultamento da desigualdade real através da igualdade abstrata e,

uma vez que ele mesmo não tem fundamento, a construção de sua legitimidade somente

mascara sua violência sem fundamento. Esta postura é inegavelmente importante,

principalmente para a criminologia, especialmente interessada em desconstruir o

discursos de legitimação do direito penal. Mas ela também é inegavelmente inútil para

abordar um direito penal que não só continua a existir como integra a sociedade (sistemas

sociais) a partir do crime, fornecendo assim um rico material comunicativo que será

autonomamente desenvolvido por outros sistemas.

Diante desta situação, esta nova agenda de pesquisa poderia sugerir a necessidade

de novos instrumentos dogmáticos que tematizem a exclusão social como elemento para

a decisão que afasta a imputação penal, colocando-se, por exemplo, mais ênfase na

questão referente aos equivalentes funcionais, tão pouco explorados por Jakobs. No

entanto, não pode passar desapercebido que o penalista de Bonn oberva o direito penal de

dentro do direito penal, sem as lentes luhmannianas. Por isso sua proposta de descrição

dos instrumentos dogmáticos que explicam o processo de imputação é especialmente

interessante, pois permite a observação de diversas distinções que o sistema penal utiliza

e que são costumeiramente ocultadas pelas semânticas tradicionais. Daí a ênfase de que

304

as “descrições neutras” que ele empreende podem ser criticamente potencializadas, de tal

forma que seja possível integrar autodescrições e heterodescrições. Em que medida

Jakobs observa o direito penal no interior do direito influenciado por Luhmann é algo que

não se pode quantificar, já que o próprio penalista reconhece suas dificuldades com a

teoria do sociólogo. Mas isso não impede que uma nova agenda de pesquisa para a

dogmática jurídico-penal seja desenvolvida a partir desta porta aberta.

Neste sentido, a articulação entre os chamados ser e dever exigiria da dogmática

jurídico-penal uma atenção particular à compreensão normativa de suas proposições, sem

que com isso caia em normativismo alheio à experiência. Da mesma forma, a tematização

da experiência pelo direito não deveria ser traduzida como sociologismo jurídico, com a

consequente redução da ciência jurídica à descrição sociológica. Ou seja, nem formalismo

jurídico, nem realismo jurídico, mas teoria social do direito e, no âmbito desta pesquisa,

uma teoria social do direito penal que incorpore a contingência. Perceba-se um ultimo

argumento que joga a favor deste exercício de interpretação regressiva com fins de

potencialização crítica de alguns escritos de Jakobs: aqui poderia ser desenvolvida a

compreensão da adequação social enquanto primeira trava para a determinação da

incidência penal, algo que o próprio Jakobs deixa em aberto em seu Tratado1242,

influenciada pela ideia de que uma imputação legítima só é possível quando a sociedade

satisfaz as exigências da modernidade, isto é, quando ela ofereça, “especialmente nos

âmbitos da educação, da política e da economia, chances de participação que possibilitem

uma existência livre”1243. Claro que, no contexto da sociedade funcionalmente

diferenciada apresentado, a imputação legítima nunca aconteceria, já que as exigências

da modernidade são colapsadas pela própria lógica desta sociedade. No entanto, isso não

impossibilita que heterodescrições e autodescrições acoplem-se estruturalmente, e que

esta, um vez que lida somente com a realidade simbólica do direito resultado da

condensação de sentido derivada de uma observação interna já estabelecida por processos

de seleção, possa ser continuamente irritada por uma observação que vê o que ela não vê.

Se essas reflexões percorrem o difícil caminho entre dogmática jurídica e

sociologia, as possíveis relações entre teoria dos sistemas autopoiéticos e criminologia

são manifestamente para uma agenda de pesquisa podem até parecer mais claras, mas são

igualmente desafiadoras. Não à toa foi possível observar a construção de uma “teoria

1242 JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal – Teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo

Horizonte: Del Rey Editora, 2009,, p. 691-692. 1243 Ibidem, p.673.

305

geral do crime e do controle”1244 e “criminologia crítica radical construtivista”1245, ambas

influencias pelas reflexões de Luhmann. Uma nova agenda de pesquisa para a

criminologia crítica pode desenvolver esses caminhos, buscando enfatizar a relação entre

crime e outros sistemas sociais, para a partir daí oferecer elementos para uma política

criminal, por exemplo. Pense-se, também, na possibilidade de enriquecer os estudos

acerca da relação entre Direito penal e sistema econômico: quais distinções utilizadas

pelo direito penal permitiram a estabilização de suas estruturas desde a diferenciação

funcional da economia?

Em todo caso, é importante não esquecer que o preço a pagar pelo radicalismo

luhmanniano em sua possível relação com a criminologia crítica passa pela revisão de

suas premissas. Como destacado, ela está presa à distinção sujeito/objeto, tema que

merece uma discussão e que é pouco desenvolvido por Bussmann e Carrier. Também é

importante considerar que a especial capacidade da teoria dos sistemas sociais

autopoiéticos responder criticamente aos princípios da ideologia da defesa social poderia

levantar a discussão referente à possibilidade desta teoria servir como parâmetro daquela

ciência social de que nos fala Baratta, capaz de assumir um papel crítico e reconstrutivo

no chamado “novo modelo integrado de ciência penal”1246. A proposta é interessante,

principalmente em virtude da possibilidade de aproximação ao pensamento marxista

mencionada. No entanto, uma vez mais, não se deve esquecer que o direito penal é um

sistema operacionalmente fechado, de tal forma que mesmo diante de um acoplamento

estrutural com a criminologia crítica radical construtivista, por exemplo, a reação frente

à irritação ocorrerá a partir de seus próprios critérios.

Por fim, se a metodologia da ciência jurídico-penal caminhava já na década de 70

para a compreensão da ciência penal como ciência social, é dizer, como estudo do direito

enquanto sistema social, então a articulação entre direito penal e teoria autopoiética dos

sistemas sociais é caracterizada tanto pela continuidade quanto pela ruptura: continuidade

por estabelecer vínculos com questionamentos que ocuparam a atenção da dogmática

jurídico-penal ao longo da história; e ruptura por afastar-se das explicações e

sistematizações que foram desenvolvidas ao longo das escolas penais. Assim, o estudo da

1244 BUSSMANN, Kai-D. Variantion, Selection and Stabilization: An Evolutionary Theory of Crime and

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306

articulação entre direito penal e a teoria dos sistemas sociais de Luhmann pode revelar

limites e possibilidades do método jurídico-penal na atualidade, bem como irritar

produtivamente a dogmática jurídico-penal e fornecer um material teórico vigoroso para

a retomada da criminologia crítica.

307

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