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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Nayara Graciela Sales Brito ANÁLISE CRÍTICA DA ESPECIAL SITUAÇÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI A PARTIR DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO BRASIL MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Nayara Graciela Sales Brito

ANÁLISE CRÍTICA DA ESPECIAL SITUAÇÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI A PARTIR DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA FALTA

DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO BRASIL

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2012

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Nayara Graciela Sales Brito

ANÁLISE CRÍTICA DA ESPECIAL SITUAÇÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI A PARTIR DO ESTUDO DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DA FALTA

DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO BRASIL

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito das Relações Sociais sob a orientação do Prof. Doutor Dirceu de Mello.

SÃO PAULO 2012

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Agradecimentos se fazem necessários para muitos, dentre os quais destaco:

A Deus, por estar sempre presente, ora ao meu lado, ora me carregando em seus braços, deixando seu par de pegadas na areia dos caminhos da minha vida.

Ao Professor Doutor Dirceu de Mello, estimado orientador, pelos sólidos conhecimentos jurídicos e metajurídicos transmitidos ao longo dos anos em que fui sua aluna e orientanda, pessoa que honra todas as funções assumidas. Nada seria possível sem a sua inestimável ajuda. O convívio fez crescer a minha admiração, sentimento que permanecerá, ainda quando a cidade de São Paulo transformar-se em doces lembranças.

A meu pai, pelo incentivo e amor incondicional. A minha mãe, fonte de inspiração, por me ensinar a acreditar na vitória por meio do esforço incansável e honesto, associado à leveza do agir ético e solidário.

Aos meus irmãos, Diego e Nataly, pelo carinho e ajuda constantes, e a certeza de que seremos companheiros para sempre.

A Ricardo, cujo companheirismo e compreensão fizeram mais suportável o estudo que poderia parecer inesgotável, mas, aos olhos do amor, exteriorizava-se em paciência e alegria pelas metas conquistadas.

À Professora Doutora Alessandra Greco, orientadora de um pensar atual, arrojado e inteligente, que muito contribuiu para o aperfeiçoamento deste trabalho.

Ao Professor Doutor Oswaldo Henrique Duek Marques, sempre buscando os novos desafios do conhecimento, muito agradeço pela valiosa orientação e pelas aulas que me fizeram amadurecer ideias importantes para esta pesquisa.

Ao Doutor Gilberto Passos de Freitas, pelas luzes seguras da sua doutrina, que despertaram a minha atenção quanto à relevância da questão ambiental.

À Doutora Cleonice Souza Lima, inteligência ímpar que abrilhanta o Ministério Público baiano, agradeço pelas pertinentes observações ao meu trabalho, como também pelas palavras de incentivo.

Aos funcionários da biblioteca do IBCCRIM, em especial, Cintia Aparecida e Alex Victor da Silva, sempre educados e solícitos quando demandados.

Às minhas amigas em terras paulistas, Aldléia Brocanelli, Ryanna Veras, Ana Maria Ferreira, Greice Füller, que fizeram menos árdua essa difícil tarefa de permanecer tanto tempo longe dos familiares e amigos da calorosa Bahia.

A todos, enfim, que de alguma forma colaboraram, com a amizade, sugestões, correções e torcida, dentre muitos que aqui gostaria de citar, Gabriel Marques, Maria de Lourdes Siqueira e Fabíola Souza

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“Ninguém ignora tudo.

Ninguém sabe tudo.

Todos nós aprendemos alguma coisa.

Todos nós ignoramos alguma coisa.

Por isso, aprendemos sempre.”

Paulo Freire (1921-1997)

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RESUMO

Esta dissertação tem como escopo a análise da especial questão do desconhecimento da lei penal, partindo-se do estudo histórico da responsabilidade criminal e do erro até o advento das teorias da culpabilidade e os respectivos tratamentos sobre a consciência da ilicitude. Examina-se a evolução da culpabilidade e do erro de proibição no Brasil, sobretudo por meio do estudo dos diversos diplomas penais, como também de alguns projetos de lei. Expõem-se o desenvolvimento teórico sobre o objeto da consciência da ilicitude e a posição majoritária da doutrina brasileira no sentido de considerá-lo como sendo a contrariedade à ordem comunitária. Justifica-se o trabalho pela complexidade e relevância do tema, tanto para a teoria do delito, quanto para a pragmática jurídica, mormente em se considerando a edição de inúmeras leis que ingressam no ordenamento jurídico pátrio, muitas delas advindas do período pós- industrial, como meio de se acompanhar os riscos da sociedade globalizada e tecnológica. O percurso teórico filia-se à linha histórico-cronológica, sem a pretensão de esgotar as abordagens relativas ao assunto, nem oferecer soluções para todas as correntes de pensamento expostas. Apresentam-se as concepções sobre a culpabilidade: psicológicas, normativas, finalistas e as visões funcionalistas de Claus Roxin e de Günther Jakobs. Em seguida, o estudo perpassa pelas teorias formal, material e intermediária do objeto da consciência da ilicitude, para se alcançar um posicionamento crítico da inescusabilidade da ignorância da lei penal em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Direito Penal, culpabilidade, falta de consciência da ilicitude, desconhecimento da lei penal.

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ABSTRACT

The scope of this study is to examine the ignorance of the law issue beginning with a historical study of criminal liability and mistake, moving on to the birth of culpability theories and the approaches to the knowledge of unlawfulness. This study addresses the development of culpability and mistake of law in Brazil, mainly through the study of Brazilian criminal statutes and bills. To this end, this study shows the development of the theory around the object of the knowledge of unlawfulness, and the prevailing opinions of Brazilian jurists in the sense of considering it to be in opposition to the established order of the community. This study is justified by the complexity and importance of the topic, both to crime theory and legal pragmatics, especially when one considers the numerous statutes enacted in Brazil, many of which date from the post-industrial period, as a means of keeping up with the risks posed by a global and technological society. The theoretical framework follows the historical and chronological line, and is not intended to exhaust the approaches to the subject nor is it aimed at offering solutions to all the lines of thought herein mentioned. This study covers different conceptions of culpability: psychological, normative, finalist, and the functional views of Claus Roxin and Günther Jakobs. Next, formal, material and intermediary theories of the object of the knowledge of unlawfulness is addressed in order to attain a critical view of inexcusable nature of the ignorance of the law defense in the face of the dignity of the human person. Keywords: Criminal Law, culpability, lack of knowledge of unlawfulness, ignorance of the law

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................ 11

CAPÍTULO I

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE PENAL, DO ERRO SOBRE A ILICITUDE DO FATO E DA IGNORÂNCIA DA LEI

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................... 14

1.2 A RESPONSABILIDADE PENAL NA VIDA PRIMITIVA E A DESCONSIDERAÇÃO DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ...................................................................................... 20

1.2.1 A mentalidade do povo primitivo................................................ 21

1.2.2 A responsabilidade penal objetiva nas comunidades primevas 24

1.2.3 A desconsideração do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei............................................................................. 26

1.3 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ORIENTAL E A IRRELEVÂNCIA DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ...... 27

1.3.1 O Código de Hamurabi................................................................... 27

1.3.2 A Lei Mosaica.................................................................................. 30

1.3.3 O Código de Manu.......................................................................... 31

1.3.4 A desconsideração da falta de consciência da ilicitude do fato e da ignorância da lei no Direito Oriental ..................................... 31

1.4 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO GREGO ................ 32

1.4.1 A consciência da ilicitude para Aristóteles .................................. 33

1.5 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ROMANO .............. 34

1.5.1 A questão da falta de consciência da ilicitude: dicotomia “erro de fato – erro de direito” e o critério desculpável do erro..........

36

1.6 A RESPONSABILIDADE PENAL NA IDADE MÉDIA E A CULPABILIDADE ............................................................................. 42

1.6.1 A questão da consciência da ilicitude no Direito Germânico e no Direito Canônico........................................................................ 44

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1.6.2 A falta de consciência da ilicitude no direito estatutário intermédio....................................................................................... 45

1.7 A RESPONSABILIDADE PENAL E A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO PERÍODO DAS LUZES ........................................... 46

CAPÍTULO II TEORIAS DA CULPABILIDADE E OS RESPECTIVOS TRATAMENTOS SOBRE A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

2.1 O SISTEMA CLÁSSICO E A TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE ............................................................................. 50

2.1.1 A ação causal.................................................................................. 51

2.1.2 Culpabilidade como categoria autônoma do delito.................... 52

2.1.3 A imputabilidade como precedente da culpabilidade................. 53

2.1.4 O dolo e a culpa.............................................................................. 54

2.1.5 Críticas ao conceito psicológico da culpabilidade..................... 55

2.2 A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE ..................... 58

2.3 SISTEMA NEOCLÁSSICO DO DELITO E A TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE ....................... 60

2.3.1 Influências....................................................................................... 60

2.3.2 Reinhard Frank e a Normalidade das Circunstâncias Concomitantes................................................................................

60

2.3.3 Goldschmidt e a distinção entre norma jurídica e norma de dever................................................................................................ 63

2.3.4 Berthold Freudenthal e a inexigibilidade de conduta diversa..... 64

2.3.5 A concepção normativa de Edmund Mezger............................... 66

2.3.6 Teoria psicológico-normativa e a dignidade da pessoa humana............................................................................................ 69

2.4 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DO DOLO......................................................................................... 70

2.4.1 Teoria estrita do dolo..................................................................... 71

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2.4.2 Teoria limitada do dolo.................................................................. 72

2.5 O SISTEMA FINALISTA E A TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE............................................................................. 74

2.5.1 Precursores do sistema finalista.................................................. 74

2.5.2 Hans Welzel e o sistema finalista.................................................. 76

2.5.3 Críticas ao sistema finalista.......................................................... 81

2.5.3.1 A ontologia como fonte do Direito .................................................... 82

2.5.3.2 O livre-arbítrio em Hans Welzel e o “poder atuar de outro modo” .. 83

2.5.4 A distinção entre erro de tipo e erro de proibição ............................. 85

2.6 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DA CULPABILIDADE............................................................................. 88

2.6.1 Teoria extremada e teoria limitada da culpabilidade.................. 88

2.7 O FUNCIONALISMO NO DIREITO PENAL ..................................... 98

2.7.1 Culpabilidade e erro de proibição em CLAUS ROXIN................. 103

2.7.2 Culpabilidade e erro de proibição em GÜNTHER JAKOBS......... 110

2.8 A POSIÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NA TEORIA DO DELITO PARA O FUNCIONALISMO............................................... 115

CAPÍTULO III

A CULPABILIDADE E O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

3.1 O DIREITO PENAL INDÍGENA À ÉPOCA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL....................................................................................... 118

3.2 HISTÓRICO DA CULPABILIDADE E DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO ............................... 121

3.2.1 A responsabilidade penal no Livro V as ordenações Filipinas.. 121

3.2.2 A Constituição do Império de 1824............................................... 125

3.2.3 Código Criminal de 1830................................................................ 126

3.2.4 Código Penal de 1890..................................................................... 130

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3.2.5 Projeto de Virgílio de Sá Pereira................................................... 132

3.2.6 Código Penal de 1940..................................................................... 135

3.2.7 Anteprojeto de Nélson Hungria e o Código Penal de 1969 como tentativas de substituição ao Código Penal de 1940........ 139

3.2.8 Reforma da parte geral de 1984.................................................... 141

CAPÍTULO IV

DESCONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO E DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL

4.1 OBJETO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE ................................... 146

4.1.1 Critério formal ................................................................................. 147

4.1.2 Critério material.............................................................................. 149

4.1.3 Critério intermediário: “Valoração Paralela na Esfera do Profano”.......................................................................................... 159

4.2 RELAÇÃO ENTRE OS TRÊS CRITÉRIOS E A INSUFICIÊNCIA DE CADA UM DELES...................................................................... 163

4.3 O “DEVER DE INFORMAR-SE” DE HANS WELZEL ....................... 164

4.4 MEIOS DE ACESSO À CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE .................. 167

4.5 TEORIA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL............................................ 168

4.6 O PRINCÍPIO DA INESCUSABILIDADE DA IGNORÂNCIA DA LEI PENAL VERSUS O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE .................... 177

CONCLUSÃO................................................................................................. 183

REFERÊNCIAS.............................................................................................. 186

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INTRODUÇÃO

No dia 23 de junho de 2000, na localidade de Planaltina, o lavrador Josias

Francisco dos Anjos foi preso pela Polícia Florestal por raspar a casca de uma

árvore com o intuito de fazer chá para a sua esposa, que sofre da doença de

Chagas. No momento de sua prisão, manifestou grande surpresa, dizendo que, em

sua ignorância, não sabia ser “[...] crime tirar raspa de árvore, que foi Deus que fez,

para dar chá para minha mulher [...]”.1 Além deste caso emblemático, há notícia de

condenações efetivas no âmbito penal, impondo aos réus o cumprimento de pena

em situações envolvendo, por exemplo, o uso de aparelho sem fio de longo alcance,

tipificado como atividade clandestina de comunicação; comercialização de

agrotóxicos em determinadas condições; assim como certos casos de crimes contra

a fauna, dentre outros. Tal contexto pode conduzir, concretamente, a injustiças

flagrantes, servindo de mote para o desenvolvimento desta pesquisa, voltada para

analisar, criticamente, de que modo o desconhecimento da lei repercute na seara

criminal e quais os consectários da falta de consciência de ilicitude no Brasil.

Os problemas da falta de consciência da ilicitude e da ignorância da lei penal

revelam-se, nos dias hodiernos, como essenciais para o estudo do Direito Penal,

levando-se em conta a complexidade da sociedade contemporânea, multicultural e

globalizada, que tem por consequência o surgimento de inúmeras leis penais

extravagantes na tentativa de acompanhar os riscos sociais. Há crimes que não

correspondem à noção de ilícito social, moral ou ético. Além disso, não são todas as

pessoas que têm uma escolarização básica e a viabilidade de acesso aos meios de

informação, para que se possa delas exigir o esforço pela busca de instrução com o

fim de alcançarem a consciência profana do caráter ilícito do fato.

Questiona-se sobre o tratamento mais adequado para a aplicação do princípio

da inescusabilidade da ignorância da lei penal, revelando-se necessária a defesa da

natureza relativa deste em face do respeito ao princípio da culpabilidade e da

dignidade da pessoa humana a ele inerente.

O Estado Democrático de Direito reclama a eficiência na persecutio criminis

para o julgamento dos responsáveis por condutas tipificadas na legislação penal,

1 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u3083.shtml. Último acesso em 16 fev. 2012, às 22:03 hs.

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prestigiando a observância da proteção aos direitos fundamentais dos investigados e

acusados e, por conseguinte, enxergá-los como indivíduos dentro do contexto social

em que estão inseridos. Desse modo, relevam-se as condições pessoais, tais como

o grau de letramento e a possibilidade de acesso à informação, a fim de efetivar-se a

justiça possível nas decisões judiciais.

Com o título “Análise crítica da especial situação do desconhecimento da lei a

partir do estudo da evolução doutrinária da falta de consciência da ilicitude no

Brasil”, desenvolve-se este trabalho mediante pesquisa exploratória, buscando-se

subsídios em autores, legislação e jurisprudência brasileiros, trazendo como

referencial teórico as obras de Galdino Siqueira, Alcides Munhoz Netto, Francisco de

Assis Toledo, Juarez Cirino dos Santos, dentre outras, bem como a doutrina

estrangeira, com as obras de Juan Córdoba Roda, Francisco Muñoz Conde, Hans

Welzel, Claus Roxin, Günther Jakobs, pretendendo-se, tão somente trazer à baila

essa importante discussão, sem esgotar o assunto, que continua a necessitar de

luzes para o seu aprimoramento, visando à efetivação da justiça penal.

Na procura de alternativa que atendam a princípios éticos e jurídicos,

empreendeu-se esta pesquisa, tendo como método o hipotético-dedutivo, por meio

do qual se percorre os contornos dos institutos do erro sobre a ilicitude do fato e do

desconhecimento da lei penal, para se chegar à constatação, mediante o estudo

histórico, da evolução do tratamento do primeiro e do retrocesso do segundo nos

dias atuais, comparando-se ao antigo direito romano. Como técnica, utilizou-se,

primordialmente, a pesquisa bibliográfica e documental, focada, esta, em

jurisprudência colacionada, pontualmente, dos tribunais estaduais sobre o assunto.

Intenta-se demonstrar, com este trabalho, a evolução do tratamento do

instituto do erro sobre a ilicitude do fato, por meio do desenvolvimento das teorias

sobre a culpabilidade, em contraposição à especial situação do desconhecimento da

lei penal, já que continua a ser apregoada a sua inescusabilidade, mas, atualmente,

sem qualquer fundamentação material.

No primeiro capítulo, enceta-se um escorço histórico da responsabilidade

penal, a qual percorreu um longo caminho, da responsabilidade objetiva à

responsabilidade arrimada na ligação subjetiva entre o autor e o fato delituoso,

perpassando-se pelo estudo do erro sobre a ilicitude do fato e do desconhecimento

da lei penal.

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Em seguida, no segundo capítulo, faz-se uma abordagem da culpabilidade

como categoria do delito, haja vista que é nela que se situa a consciência da

ilicitude, abordando-se as teorias causalistas, neokantistas, finalistas e funcionalistas

da culpabilidade, como também os respectivos tratamentos sobre a consciência da

ilicitude.

No terceiro capítulo, analisam-se a culpabilidade e o erro de proibição no

Direito Penal Brasileiro, desde o descobrimento do Brasil até o Código Penal de

1940, com a posterior Reforma Penal de 1984, examinando-se, ainda, o Projeto de

Virgílio de Sá Pereira, de 1927, bem como o Anteprojeto de Nélson Hungria e o

Código Penal de 1969 (que sequer começou a vigorar).

No quarto capítulo, realiza-se o estudo específico do desconhecimento da

ilicitude do fato e da lei penal, destacando-se o tema do objeto da consciência da

antijuridicidade, o qual pode ser agrupado em três principais critérios, a saber:

formal, material e intermediário, revelando-se todos insuficientes. Também é

abordada a questão do dever de informar-se para obter a consciência do injusto,

bem como dos meios de acesso à informação. Menciona-se o posicionamento

tradicional da doutrina brasileira no tocante ao objeto da consciência da ilicitude, do

qual se utiliza para concluir, por incongruência lógica, que o desconhecimento da lei

penal é sempre inescusável. Anota-se, outrossim, o equívoco de decisões dos

tribunais brasileiros que, apesar de entenderem a falta de consciência da ilicitude e o

desconhecimento da lei penal como conceitos diversos, posicionam-se no sentido de

que não há erro de proibição em razão da obrigatoriedade do conhecimento da lei

penal. Por fim, afirma-se a necessidade de considerar o princípio da

inescusabilidade da ignorância da lei penal, ante o fato posto em julgamento,

sobretudo em relação ao princípio da culpabilidade.

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CAPÍTULO I

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE PENAL, DO ERRO SOBRE A ILICITUDE DO FATO E DA IGNORÂNCIA DA LEI

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde o momento em que o homem passou a conviver com outrem, surgiram

os conflitos e, consequentemente, a criminalidade. O delito se manifesta em todas

as sociedades, tanto nas ditas mais primitivas, quanto nas consideradas civilizadas.

A título ilustrativo, a Bíblia é um documento do qual se pode extrair o

reconhecimento de que a história do fato punível acompanha a da humanidade.

Conforme a versão bíblica, em Gênesis, o primeiro pecado foi cometido por Adão e

Eva, ao comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.2

Eles haviam sido advertidos de que a execução de tal feito teria como punição

a morte, como se verifica no trecho transcrito a seguir: “E o Senhor Deus lhe deu

essa ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do

conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,

certamente morrerás”.3 Desconsiderando a admoestação, houve a prática do

referido ato e, por conseguinte, o homem foi condenado a conhecer o bem e o mal.

Consoante ensinamento de Santo Agostinho, tal pecado assumiu tamanha

gravidade que, “em virtude dele, a natureza humana piorou e se transmitem aos

descendentes o próprio pecado e a necessidade da morte”. Para ele, o pecado

original consubstancia-se na fonte da vida carnal e das paixões viciosas.4

A propósito desse assunto, entende-se que o homem foi condenado à morte

espiritual e desenvolveu a consciência de pecado e o sentimento de culpa, os quais

acarretam ideia de reparação. Afirma Dirk Fabricius que os sentimentos de culpa,

2 “Embora, do ponto de vista religioso, essa conduta seja considerada pecado, do ponto de

vista humano, marca o início da liberdade e o nascimento da razão.” (MARQUES; MINERBO, 2011, p. 46-54). No sentido de que o pecado original constitui a condição que concede ao homem o conhecimento de sua humanidade, ensina Maria Zelia de Alvarenga: “Todavia, a ultrapassagem do interdito é a condição que confere humanidade, pois somente ela dá ao homem a condição de saber-se humano. Humanidade e mortalidade dão a cada um de nós competência para atualizarmos mudanças, ou seja, tornarmo-nos seres humanos em contínua e crescente transformação [...]”. (ALVARENGA, 2009, p. 121).

3 Livro de Gênesis- capítulo 2, versículos 16 e 17. 4 AGOSTINHO, 1990, p. 131.

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segundo observação comum na psicanálise, alertam-nos “para o fato de que

magoamos alguém. Eles levam à fuga, para fugir da vingança, mas também à

reparação”. Nessa perspectiva, a culpabilidade considerada como objeto dos

sentimentos de culpa, é vista como um mal infligido, bem como uma razão para a

reparação.5

Ora, diante da constatação de que a existência do fato punível está

relacionada à da humanidade, surge a questão do conhecimento da natureza

humana.6 Nesse contexto, recorde-se a frase inscrita na entrada do templo de

Delfos, na Grécia: “conhece-te a ti mesmo”, a qual serviu de inspiração para a

filosofia de Sócrates e que expressa, até os dias hodiernos, uma relevante e difícil

questão, dada a grande complexidade física, biológica, moral e psíquica dos seres

humanos, as suas diferenças, aspirações, as múltiplas formas de expressão dos

sentimentos bons e ruins, etc.

Como consabido, o homem está sujeito a cometer erros, evidência

corroborada pela máxima latina “errare humanum est”. Além do erro, outra falha

humana é o desconhecimento ou a ignorância de determinado objeto, já que é

impossível ao homem alcançar o conhecimento sobre todas as coisas. Dessarte, o

Direito Penal não poderia deixar de cuidar das inúmeras falhas humanas e as suas

consequências no âmbito da responsabilidade penal.

Etimologicamente, o vocábulo “erro” provém do latim ërror, öris e significa

desvio, engano, falta. Já a palavra “ignorância” advém do latim ignorantĭa e traduz-

se em falta de conhecimento, falta de saber.7

Os termos “ignorância” e “erro” consubstanciam-se em fenômenos

psicológicos diversos.8 A ignorância é a ausência total do conhecimento de

determinado objeto. Por outro lado, o erro é o falso conhecimento do objeto e, na

visão de Aníbal Bruno, impede o sujeito de alcançar a representação real do fato.9

Distingue Alcides Munhoz a ignorância do erro, de acordo com a lição de

Carnelutti, do seguinte modo:

5 FABRICIUS, 2009, p.21. 6 Nesse aspecto, cumpre citar a frase de Magalhães Noronha: “a história do Direito Penal é

a história da humanidade. Êle surge com o homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual sombra sinistra, nunca dele se afastou”.(NORONHA, 1959, v.1, p.32).

7 HOUAISS, 2001, p.1190; 1568. 8 GARCIA, 2008, p. 386. 9 BRUNO, Aníbal, 1959, p.109.

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Constituem dois estados metafisicamente distintos: a falta de qualquer conhecimento sobre um objeto e o seu falso conhecimento. Assim, enquanto a ignorância apresenta-se desacompanhada de qualquer percepção da realidade, o erro é determinado por uma percepção desconforme àquela. Entre ambos existe a mesma distância que separa o não ver do ver mal.10

Dessa feita, o erro pode ser caracterizado como um estado positivo e a

ignorância traduzida como um estado negativo.11

No entanto, no atual Código Penal brasileiro, “erro e ignorância quase sempre

se equivalem; assim, quando ele faz referência ao erro (por exemplo, nos arts. 20,

caput, 21 etc), está também se referindo à ignorância”.12

Insta traçar, outrossim, a distinção entre os dois termos acima expostos com a

palavra “dúvida”. Segundo Alcides Munhoz Netto, a ignorância difere da dúvida, já

que aquela pressupõe a ausência de qualquer representação e, na dúvida, há mais

de uma representação, sendo que uma delas está conforme a realidade. Além disso,

a dúvida não se confunde com o erro, pois a “perplexidade ou incerteza entre as

várias previsões que a caracterizam é incompatível com a formação de um

convencimento em contraste com a realidade, que é da essência do erro”. Munhoz

Netto também assinala que, diferentemente do que ocorre com o erro, a dúvida não

vicia a vontade.13

Em Direito Penal, a falta de consciência da ilicitude (real ou potencial), a qual

consiste no cerne deste trabalho, consubstancia-se em uma das modalidades de

erro, a saber, o erro de proibição. Dessa forma, quando o autor age sem saber que

sua conduta está proibida pelo ordenamento, atua em erro de proibição, que poderá

afastar a própria culpabilidade.

Em se considerando o “erro de proibição”, alguns doutrinadores afirmam que

não se pode confundi-lo com o “erro sobre a ilicitude”, porque aquele é mais amplo

10 CARNELUTTI, 1952 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.01. 11 GARCIA, 2008, p.386. 12 GOMES, 2001, p.24.

Segundo Pulitanò, todo erro supõe ignorância, porque quem erra, desconhece, total ou parcialmente, o objeto do conhecimento. Mas nem toda ignorância supõe o erro: pode existir ignorância sem erro. Tem-se feito uma distinção entre a ignorância pura, consistente na simples e absoluta ausência de conhecimento, de uma ignorância-erro, em que o desconhecimento provoca uma falsa representação da realidade. (PULITANÒ, 1976, p.10-11 apud COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, 1999, p.660).

13 MUNHOZ NETTO, 1978, p.04. Note-se que o tratamento jurídico dos casos de dúvida resolve-se no âmbito da estrutura que se outorgue ao dolo, à culpa e, especialmente, ao dolo eventual. Cf. COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, 1999, p.660.

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do que este. A expressão “proibição” abrange também a ignorância ou engano sobre

a lei, e não apenas o desconhecimento ou engano sobre a ilicitude. Assim, todo erro

sobre ilicitude é erro de proibição, mas nem todo erro de proibição é erro sobre a

ilicitude.14

Note-se que a maioria da doutrina brasileira afirma que a falta de consciência

da ilicitude de um comportamento e o desconhecimento da norma legal “são coisas

completamente distintas”.15

Essa distinção também pode ser inferida do disposto no atual Código Penal.

Com efeito, reza a primeira parte do caput, do art. 21, que “o desconhecimento da lei

é inescusável”. Em seguida, acerca do erro sobre a antijuridicidade, dispõe o

referido diploma que “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se

evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”. A ignorância da lei serve

apenas como circunstância atenuante genérica, segundo dispõe o art. 65, II, do

estatuto penal.16

Constata-se, pois, ser a opinião majoritária da doutrina no nosso país, bem

como as posições legal e jurisprudencial adotadas as de que o desconhecimento da

lei constitui erro de proibição irrelevante. Saliente-se, por oportuno, que a despeito

de entendermos como institutos diversos, muitas vezes, principalmente quando se

está diante da legislação extravagante, quando o agente erra sobre o conteúdo

proibitivo da norma, em verdade, não conhecia a própria lei.

Importante destacar-se, ainda, que a Lei de Contravenções Penais, no art. 8º,

dispõe sobre a relevância do desconhecimento da lei: “No caso de ignorância ou de

errada compreensão da lei, quando escusáveis, a pena pode deixar de ser

aplicada”.17Assim, verifica-se que a referida lei cuida de uma exceção ao princípio da

inescusabilidade da ignorância da lei penal e que, ao nosso ver, baseia-se na menor

censurabilidade das condutas ali previstas. Mas os atos que não são objeto de

14 BRODT, 1996, p.65. Não se pode olvidar, nesse aspecto, do chamado erro sobre os

pressupostos fáticos de uma causa de justificação, o qual, conforme veremos ao longo desta exposição, refere-se à antijuridicidade dos fatos, mas foi considerado pela teoria limitada da culpabilidade, atualmente adotada pela doutrina majoritária e pela legislação no Brasil, como excludente do dolo, e não da culpabilidade. Assim, chama-se, majoritariamente, a essa modalidade de erro de “erro de tipo permissivo”. Trata-se, portanto, de uma espécie de erro sobre a ilicitude que não se consubstancia em erro de proibição. Então, nem todo erro de proibição é erro sobre ilicitude e vice-versa.

15 Pela maioria, cf. BITENCOURT, 2006, p.462. 16 GOMES, 2010, p.270, 280. 17 Ibidem, p.536.

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censura social não se esgotam nas contravenções, já que há muitos crimes sem

reprovação ética, moral e social.

Ante o depreendido, a presente exposição cuida do tema da falta de

consciência da ilicitude, mas não apenas centrada no erro sobre a ilicitude, como

também trata da questão da ignorância da lei penal, sem a pretensão de exaurir

todos os problemas relativos aos aspectos que envolvem tema tão complexo, que é

o erro de proibição direto em Direito Penal.

Vale mencionar, preliminarmente, que o legislador pátrio da reforma penal de

1984 preferiu, seguindo a orientação de Assis Toledo, utilizar-se da expressão

“ilicitude” ao tratar, no artigo 23 do Código Penal, da “exclusão de ilicitude”, para

referir-se à relação de contrariedade entre o ato e a ordem jurídica, como também o

fez no artigo 21, ao cuidar do “erro sobre a ilicitude”.18

Ocorre que, antes da referida reforma da parte geral, o Código Penal usava o

tradicional termo “antijuridicidade”, assim como era consagrado na maioria dos

países europeus, com exceção de Portugal.19 No entanto, atualmente, não apenas a

legislação, bem como muitos autores brasileiros acolheram o entendimento segundo

o qual a infração penal constitui-se em um fato jurídico, tendo em vista que sua

prática provoca efeitos no campo jurídico. Desse modo, haveria uma incongruência

afirmar-se que um fato jurídico é, ao mesmo tempo, antijurídico. Essa posição

encontra respaldo na lição de Carnelutti, como também nos ensinamentos de Assis

Toledo.20

Impende traçar, por fim, a distinção entre dois vocábulos que são, muitas

vezes, considerados sinônimos, a saber, ilícito e injusto. O ilícito é a contradição

entre o fato típico e o ordenamento jurídico. Já o injusto consubstancia-se na

oposição entre o fato típico e a compreensão social. Como ensina Bitencourt, com

arrimo na lição de Welzel, a antijuridicidade é um predicado e o injusto constitui-se

em um substantivo. Segundo Bitencourt, o “injusto é a forma de conduta antijurídica

propriamente: a perturbação arbitrária da posse, o furto, a tentativa de homicídio etc.

A antijuridicidade é uma qualidade desta forma de conduta”, ou seja, a contradição

em que se encontra com a ordem jurídica.21

18 GOMES, 2010, p.270-271. 19 BITENCOURT, 1999, p.277. 20 CARNELUTTI, 1933 apud TOLEDO, 1977, p.70-71. 21 BITENCOURT, op. cit., p.276.

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19

Por conseguinte, um fato típico pode ser ilícito, mas considerado justo e

também admitido pela sociedade. Diferentemente do fato ilícito, o injusto é

caracterizado por graus, a depender da intensidade de reprovação social causada

pelo comportamento penalmente ilícito.

Não obstante a relevância das distinções tecidas pelos doutrinadores entre

“antijuridicidade”, “ilicitude” e “injusto”, cumpre notar que o presente estudo

apresentará os termos como sinônimos, sobretudo em virtude da invocação de

autores estrangeiros, que empregam com bastante frequência a terminologia

“antijuridicidade” e “injusto” em seus textos.

Por meio de um estudo histórico, verifica-se que as questões da falta da

consciência da ilicitude e do desconhecimento da lei penal já eram consideradas

desde a Antiguidade, especialmente na obra de Aristóteles, apesar de o filósofo

posicionar-se pela irrelevância de seus efeitos jurídicos. No direito romano,

estabeleceu-se a distinção entre erro de fato e erro de direito, a qual perdurou por

muitos séculos, constituindo-se na “pedra fundamental de toda a teoria do erro nos

quadros do Direito Penal”.22 Todavia, entendemos que referida distinção, no antigo

direito romano, não era determinante para a relevância ou não do erro, tendo em

vista que os romanos já consideravam o caráter desculpável da falta de consciência

da ilicitude e do desconhecimento da lei penal, conforme veremos mais adiante.

Não obstante o avanço do antigo direito romano, o tema do desconhecimento

da ilicitude do fato permaneceu, durante muito tempo, relegado a segundo plano em

todo o mundo, com poucas perspectivas de ser acolhido na prática jurisdicional,

sempre temerosa de que o criminoso pudesse, de maneira fácil, furtar-se à

responsabilidade penal. Verifica-se, então, que prevaleceu a dicotomia “erro de fato

e erro de direito” para se estabelecer a relevância daquele e a irrelevância deste,

não havendo qualquer preocupação com o caráter censurável ou não do erro.

Como consequência, ao desconhecimento da antijuridicidade e da lei,

negava-se qualquer tipo de relevância, inclusive meramente atenuatória da

responsabilidade, apesar de o princípio da culpabilidade, referente à exigência de

Aponta Cleber Masson (2010, p.352.) como exemplo de fato típico, ilícito, mas justo, a receptação relativa à aquisição de discos musicais derivados de pirataria, com violação de direitos autorais (CP, art. 1 84).

22ALBUQUERQUE, 1968 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.55.

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dolo ou culpa para fundamentar a responsabilidade penal, já havia sido admitido no

plano doutrinário, jurisprudencial e, ainda que, com certo atraso, legislativo.23

O princípio error juris nocet, ou seja, de que o erro de direito prejudica, não

mais poderia se sustentar em razão da exigência do juízo de culpabilidade para a

imposição da pena, caso contrário, haveria uma violação ao princípio da

culpabilidade. Assim, percebe-se que a questão do erro de proibição envolve a

contraposição entre a efetividade do Direito Penal e o respeito ao princípio da

culpabilidade.

Dessarte, verifica-se a necessidade do estudo da evolução histórica do erro

sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei penal, destacando-se sua estreita

relação com o caminho gradativo da responsabilidade penal objetiva em direção à

responsabilidade penal arrimada na culpabilidade. Cumpre, desde já, observar que a

questão da consciência da ilicitude foi considerada muito antes do surgimento da

culpabilidade como categoria autônoma do delito.

Impõe-se ressaltar que, neste primeiro capítulo, trataremos do histórico da

responsabilidade penal e, mais especificamente, do erro sobre a ilicitude do fato e

da ignorância da lei penal, desde a vida primitiva até a moderna. Já a distinção entre

erro de tipo e erro de proibição será cuidada no capítulo segundo, referente à

evolução das teorias da culpabilidade, tendo em vista que essa dicotomia adveio há

pouco tempo, sob o influxo do sistema finalista e da teoria normativa pura da

culpabilidade.

1.2 A RESPONSABILIDADE PENAL NA VIDA PRIMITIVA E A DESCONSIDERAÇÃO DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

Para melhor compreensão da responsabilidade penal na cultura dos povos

primevos, importa atentar à análise da mentalidade do homem primitivo, sobretudo

em comparação com a do homem considerado civilizado, conforme será realizado

no tópico seguinte.24

23 Prólogo de Francisco Muñoz Conde na obra de Cezar Roberto Bitencourt (1996, p.08). 24 Duek Marques explica que o estudo dos mitos de castigos oriundos das comunidades

primitivas tem como objeto não apenas os antigos documentos, mas também o sistema de regras dos selvagens de hoje, que deve guardar semelhança com o do homem arcaico no que tange à forma de controle social. (MARQUES, 2008, p. 06). Nessa linha de raciocínio, posiciona-se Enrico Ferri (1998, p.33), ao destacar a necessidade de se

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1.2.1 A mentalidade do povo primitivo

Ocorre que os primitivos vivem, pensam, sentem, movem-se e agem num

mundo que, sob numerosos aspectos, não coincide com o nosso,25 especialmente

levando-se em consideração as peculiaridades da sociedade atual, marcada pela

intensa velocidade nas comunicações e aprofundado grau de integração entre os

povos.

Lévy-Bruhl aponta que, entre as diferenças que separam a mentalidade das

sociedades consideradas inferiores à nossa, há uma que desperta a atenção de um

grande número de estudiosos que as observaram em condições mais favoráveis, ou

seja, antes que tivessem sido modificadas por um contato prolongado com os

brancos. Tal característica essencial das comunidades primevas é a decidida

aversão pelo raciocínio, por aquilo que os lógicos chamam de operações discursivas

do pensamento.26

Essa repulsão ao raciocínio do homem primevo não provém de uma

incapacidade radical ou de uma falta natural de poder de compreensão, mas se

explica, sobretudo, por todos os seus hábitos de espírito.27

A mentalidade selvagem, consoante pontua Lévy Brhul, é “mística e pré-

lógica”. Ao contrário, a do homem moderno é regida pela lei da causalidade.28

Doutra banda, João Bernardino Gonzaga entende como incorreta a asserção

de que o homem primitivo possui mentalidade pré-lógica, no sentido de falta de

recorrer à observação da vida nos selvagens contemporâneos. Já Aníbal Bruno ressalta a percepção crítica que se deve ter ao aplicar às sociedades arcaicas das primeiras idades fatos perpetrados pelos selvagens da atualidade, já que estes possuem uma cultura influída por longa experiência histórica e um contato eventual com homens e fatos da vida civilizada (1959, p.54-55).

25 Em sua versão original: “[...] les primitifs vivent, pensent, sentent, se meuvent et agissent dans um monde qui sur nombre de points ne coincide pas avec le nôtre”(LÉVY-BRUHL, 1947, p.47).

26 No original: “Parmi les différences qui séparent la mentalité dês societés inférieures de la nôtre, Il em est une qui a arrêté l‟attention d‟um grand nombre de ceux qui les ont observées dans les conditions les plus favorables, c‟est-à-dire avant qu‟elles eussent été modifiées par um contact prolongé avec les blancs. Ils ont constate chez les primitifs une aversion décidée pour le raisonnement, pour ce que les logiciens appellent les operations discursives de la pensée” (Ibidem, p.01).

27 “[...] ils ont remarque em même temps que cette aversion ne provenait pás d‟une incapacite radicale, ou d‟une impuissance naturelle de leur entendement, mais qu‟elle s‟expliquait plutôt par l‟ensemble de leurs habitudes d‟esprit”. (LÉVY-BRUHL, loc. cit).

28 “J‟ai exposé ailleurs les raisons qu‟il y a de considérer cette mentalité comme „mystique‟ et „prélogique‟” (Ibidem, p.47).

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22

harmonia e síntese na sua cultura. Para ele, esse homem não vive à margem da lei

da causalidade.29

Explicando a distinção entre a mente do homem arcaico da mentalidade do

cientista, Gonzaga preleciona sobre a diferença entre magia e ciência, de maneira

que a segunda não se consubstancia no desenvolvimento da primeira e demonstra

que o universo do primitivo também é governado por leis causais, embora irreais. A

afetividade representa o ponto de partida da cultura primeva, por meio da qual há

um raciocínio que se desenvolve de forma coerente, senão vejamos:

Magia e ciência não se justapõem numa relação de começo e fim, isto é, de sucessivos graus de conhecimento, a segunda representando um desenvolvimento da anterior. São, ao contrário, dois moldes culturais, duas estruturas de pensamento distintas, ambas intrinsecamente coerentes e completas, que trabalham em posições paralelas. Assim, o rústico, com sua fantasia criadora, concebe também um universo harmônico e lógico, do mesmo modo que o cientista. Universo regido por ligações causais, ainda que ilusórias. É que, não dispondo de meios para localizar o encadeamento das coisas – só possível de compreender através de dados que não estão ao seu alcance, - sua afetividade o leva a conceber o mundo à imagem e semelhança dos próprios sentimentos, das suas emoções projetadas no ambiente externo. O ponto de partida da cultura primitiva está, pois, nessa afetividade, sobre a qual entretanto repousa um raciocínio que se desdobra coerentemente. As conclusões que tira são lógicamente válidas. As premissas de que partem é que se revelam falsas.30

Dessarte, distingue-se o homem civilizado do primitivo, no sentido de que

aquele dispõe de muitas informações que lhe dão uma compreensão da causalidade

dos fenômenos naturais. Já os primitivos vivem perdidos entre mistérios e perigos

reais ou imaginários, para os quais não dispõem de explicações racionais. Falta-lhes

segurança, tendo em vista que não possuem consciência das próprias forças.31

Assinala Oswaldo Henrique Duek Marques que o pensamento primitivo “é

simbólico e desse prisma deve ser analisado”. As tradições, os tabus e os totens

29 GONZAGA, [19--], p.72. O autor apresenta um estudo da atividade repressiva dos tupis,

habitantes do Brasil, no século XVI, tendo como base a pesquisa das fontes quinhentistas atualmente disponíveis. Gonzaga justifica a escolha do exame dos tupis por constituírem-se em grupo dominante e porque a eles se referem, sobretudo, as observações deixadas pelos cronistas. (Ibidem, p. 14).

30 GONZAGA, loc. cit. 31 Ibidem, p.71.

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23

restam impregnados na mente do povo primevo, que a eles obedece de maneira

natural e inconsciente.32

Importa aduzir, a título de esclarecimento, o conceito de totem, no entender

de Sigmund Freud :

Via de regra é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva ou a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o antepassado comum do clã; ao mesmo tempo, é o seu espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus próprios filhos. Em compensação, os integrantes do clã estão na obrigação sagrada (sujeita a sanções automáticas) de não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua carne (ou tirar proveito dele de outras maneiras).33

Já o significado de tabu diverge em dois sentidos. Significa, por um lado,

“sagrado”, “consagrado”; por outro, quer dizer “misterioso”, “perigoso”, “proibido”,

“impuro”. Como assinala Sigmund Freud:34

Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes ocorre levantar a questão. Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural e estão convencidos de que qualquer violação terá automaticamente a mais severa punição.

Desse modo, o termo “tabu” traduz um sentido de algo que não se pode

abordar, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. Coincide, muitas

vezes, com nossa acepção de “temor sagrado”. As proibições dos tabus não

possuem fundamento e têm origem desconhecida, embora, para aqueles por elas

dominados, como os indígenas, sejam vistas como algo natural.35

Observa-se, assim, que a relação dos povos indígenas com o sobrenatural,

com os mitos e tabus, os seus rituais, seu modo de se vestir, de se pintar, de curar

as doenças, são bem distintas das sociedades consideradas civilizadas e traduzem

outra forma de compreender o mundo, a qual se reflete no Direito Penal.

32 MARQUES, 2008, p.08. 33 FREUD, 1999, p.13. 34 Ibidem, p.31. 35 Freud acrescenta: “Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes

ocorre levantar a questão. Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural e estão convencidos de que qualquer violação terá automaticamente a mais severa punição.” (Ibidem, p.28;31).

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24

A organização jurídica primitiva era baseada no denominado vínculo de

sangue, “representado pela recíproca tutela daqueles que possuíam descendência

comum”, do qual se originava a chamada vingança de sangue.36

Luis Jiménez de Asúa ensina que a diferença entre a privação da paz e a

vingança de sangue, para os primitivos, arrima-se no fato de o autor pertencer ou

não à mesma tribo contra a qual praticou a infração. Quando o agente cometeu o

ilícito no interior e contra a sua tribo ou algum de seus membros, a pena se

apresenta, sobretudo, como a sua expulsão da comunidade de paz, estabelecida

pela própria tribo.37

Já no caso de o autor, não pertencente à tribo, perturbá-la ou cometer

qualquer ato contra um ou vários de seus membros, a pena se constitui,

principalmente, como um combate contra o estrangeiro e seus familiares. Cuida-se

de uma vingança de sangue que se exerce de tribo contra tribo, ou seja, uma

vingança coletiva, a qual termina com o desaparecimento de uma das partes

contendoras.38

Enuncia Enrico Ferri que a vingança não constitui apenas um direito, mas um

dever, imperioso na moral primitiva, porquanto a moral humana consagra e impõe

sempre o que é útil à conservação da espécie.39

Após a análise da mentalidade primitiva, verificaremos, no tópico a seguir,

como os povos primevos consideravam alguém ou algo responsável por algum

acontecimento ou por, até mesmo, algum fenômeno puramente espiritual.

1.2.2 A responsabilidade penal objetiva nas comunidades primevas

No que tange à responsabilidade penal, cumpre mencionar que, no direito

primitivo, não havia a noção de imputabilidade, culpa, causalidade objetiva.40 A

repressão penal atuava até contra o mero pensamento. Nesse esteio, Fauconnet

preleciona: 36 MARQUES, 2008, p.10. 37 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1992, p.242. 38 JIMÉNEZ DE ASÚA, loc. cit. 39 FERRI, 1998, p.33-34.

Nessa linha de intelecção, afirma Fragoso que a vingança de sangue é um dever sagrado, visando aplacar a ira da divindade e, dessa forma, a pena se constitui em expiação religiosa. (FRAGOSO, 1995, p.26).

40 GONZAGA, [19--], p. 96.

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25

Um fenômeno puramente espiritual pode ser suficiente para gerar a responsabilidade. Há por certo um ato, mas ato interno; o corpo não intervém e nenhuma mudança se produz no mundo exterior. O agente é a vontade; seu ato consiste em adotar, face a um imperativo, atitude de atenção e obediência, ou, ao contrário, de insatisfação e revolta. Podemos chamar essa responsabilidade de subjetiva pura e de intervenção voluntária no ato interno à situação que a engendra.41

Na mentalidade arcaica, a existência de qualquer mal, inclusive decorrente

de fenômenos da natureza, constitui causa para a busca de um responsável. Nas

palavras de Kelsen:

O homem primitivo faz decorrer os eventos que quer compreender não de elementos da mesma espécie, mas de elementos de espécie diversa, não de um objeto, mas de um sujeito, não de uma coisa, mas de uma pessoa. Quando quer explicar algo, não pergunta: “Como ocorreu isto?”. Mas: “Quem o fêz?”. Por exemplo, em épocas de seca, não procura o que, mas quem impede a chuva de cair.42

O homem primevo não se importa, dessarte, com a intenção do agente. A

infração gera suas consequências independentemente da vontade do autor do

fato.43 Acerca de tal constatação, Sigmund Freud preleciona sobre a violação

involuntária e suas consequências automáticas:

Ouvimos histórias dignas de fé como qualquer violação involuntária de uma dessas proibições é de fato automaticamente punida. Um transgressor inocente, que, por exemplo, tenha comido um animal proibido, cai em profunda depressão, prevê a morte e em seguida morre de verdade. Essas proibições dirigem-se principalmente contra a liberdade de prazer e contra a liberdade de movimento e comunicação.44

E não é apenas isso. A ausência de intenção constitui uma circunstância

agravante, ao invés de uma escusa, tendo em vista que, para os povos primitivos,

coisa alguma sobrevém por acaso. Na circunstância de uma ação involuntária, o

agente já deve ser vítima de um poder oculto, ou objeto de uma cólera que se deve

dissipar, salvo – hipótese ainda mais grave - se ele contiver dentro de si, sem o seu

conhecimento, algum princípio do mal.45

41 FAUCONNET, 1928 apud GONZAGA, [19--], p.96. 42 KELSEN, 1953 apud GONZAGA, [19--], p.99-100. 43 Tradução livre do texto citado por Lévy-Bruhl, em seu original: “D‟abord, l‟infraction à la

règle engendre ses conséquences indépendamment des intentions de l‟agent, et d‟une façon pour ainsi dire automatique.” (LÉVY-BRUHL, 1947, p.308).

44 FREUD, 1999, p.31. 45 Conforme o estatuído em sua versão original: “Si la fausse a été accidentelle, les choses

se passent exactement de la même manière. Mais il y a plus. L'absence d'intention, chez

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26

Para o homem arcaico, a verdadeira causa da infração pertence sempre ao

mundo invisível. O homem é, ao mesmo tempo, culpado e vítima. As duas noções

não se distinguem na mentalidade primitiva. Se referida causa consiste num

princípio que habita no homem, ele é um azarado, um feiticeiro e a acusação fatal

não tardará a ocorrer.46

Assim como a condenação criminal independe dos nexos de causalidade

objetiva e subjetiva, também não importa o requisito da imputabilidade para o

homem primitivo. É irrelevante o fato de o agente se achar, no momento do crime,

privado de discernimento e vontade.47

Os primitivos não consideram os estados de coação, de embriaguez, os

distúrbios emocionais, bem como a idade ou o sexo dos agentes. As crianças, por

exemplo, sempre foram responsabilizadas nas sociedades pré-letradas, até em

razão do pensamento de que nelas podia estar encarnado algum adulto já falecido.48

Por fim, registre-se que a vingança de sangue, sem qualquer controle, gerava

guerras intermináveis entre as famílias, em prejuízo da própria comunidade, que

restava enfraquecida, mormente diante de guerras externas.49 Por isso, a vingança

passou a ser regulamentada e administrada por um poder central e o seu caráter

primitivo e privado passou a ser substituído pelas penas públicas.

1.2.3 A desconsideração do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei

Nas mais remotas formas de vida social e, por conseguinte, nas mais antigas

manifestações de Direito Penal, não há qualquer prova da existência do juízo de

celui qui se rend coupable d'une infraction, constitue plutôt une circonstance aggravante qu'une excuse. En effet, rien n'arrive par hasard. Comment se fait-il donc que cet homme ait été ainsi amené à commettre sa faute sans le vouloir et sans le savoir? Il faut qu'il soite déjà victime d'une puissance occulte, ou l'objet d'une colère qu'il faudrait apaiser, à moins-hypothèse encore plus grave - qu'il ne recèle en lui-même, à son insu, quelque principe malfaisant.”(LÉVY- BRUHL, op. cit., p. 308-309).

46 No original: “La vraie cause appartient donc toujours au monde invisible. Si elle s'exerce du dehors, l'homme est à la fois coupable et victime, (les deux notions ne se distinguent pas pour la mentalité primitive comme pour nous). Si elle consiste en un principe qui habite en lui, il est un porte-malheur , un sorcier, et l'accusation fatale ne tardera pas à se formuler” (Ibidem, 309-310).

47 GONZAGA, [19--], p.103. 48 O autor ainda destaca que a vingança dos silvícolas se exerce até contra animais, plantas

e quaisquer coisas inanimadas, em razão da lei da compensação e da crença de que tudo, na natureza, pode ter uma alma. (Ibidem, p. 103-104).

49 MARQUES, 2008, p.11.

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27

culpabilidade entre os povos. Ao revés, o que há são provas da existência de uma

responsabilidade meramente objetiva, principalmente arrimada em “tabus”,

dominantes na mentalidade primitiva. Portanto, as primitivas formas de reação ao

crime não atendiam ao conteúdo subjetivo, atendo-se apenas aos seus aspectos

exteriores.

Nos antigos clãs, a imposição da perda da paz inspirava-se na preocupação

de livrar o grupo da ira da divindade ofendida pelo delito de um de seus membros.

Ademais, para a vingança de sangue e para a compositio, o decisivo era o resultado

fixado pela medida.50

Ante todo o exposto, verifica-se, também, não haver qualquer registro de que

os primitivos emprestavam valoração jurídica ao problema da ignorância ou do falso

conhecimento da antijuridicidade ou da regras costumeiras e, consequentemente,

não se dispensava qualquer relevância ao tema do erro no Direito Penal.51

1.3 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ORIENTAL E A IRRELEVÂNCIA DO TEMA DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

Após a exposição sobre a responsabilidade penal objetiva na sociedade

primitiva, cabe traçar breves apontamentos acerca do direito no antigo Oriente, já

que considerou a existência de atos intencionais e não intencionais, tratando-se,

portanto, dos primeiros lineamentos da concepção de culpa em seu sentido estrito.

Apresentaremos, a seguir, o Código de Hamurabi, a Lei Mosaica e o Código de

Manu.

1.3.1 O Código de Hamurabi

O Código de Hamurabi é um dos mais remotos conjuntos de leis escritas de

que se tem conhecimento, no qual há duzentos e oitenta e um preceitos.52 Há

estimativas de que tenha sido elaborado pelo rei Hamurabi, também conhecido por

Kamu-Rabi, aproximadamente, em 1700 a.C.

50 MUNHOZ NETTO, 1978, p.23-24. 51 Ibidem, p.23. 52 Não há o 13º (décimo terceiro) artigo no Código, provavelmente em razão de ter sido

considerado um número de azar ou sacro.

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Tal estatuto foi descoberto por uma expedição francesa, em 1901, na região

da antiga Mesopotâmia correspondente à cidade de Susa, atual Irã. Famoso por ser

o primeiro corpo de normas com base no princípio da lei de talião, segundo o qual

deve haver equivalência da punição em relação ao crime.53

No tocante ao talião como um progresso na antiguidade, vale destacar a lição

de Ferri:

O talião, que atualmente nos povos civilizados é símbolo de ferocidade bárbara, foi na humanidade primitiva um grande progresso moral e jurídico, justamente porque impôs um limite, uma medida à reação pela vindicta defensiva (olho por olho, dente por dente).54

Pela leitura dos preceitos da legislação de Hamurabi, encontram-se, neste

Código, aspectos de Direito Civil, Administrativo e Penal.55 Percebe-se a atenção

dispensada, sobretudo, à proteção da propriedade, da família e da honra. Apesar da

existência de severas punições às condutas, bem como da distinção da pena em

relação à classe social, nota-se que já havia a previsão de institutos muito próximos

aos atualmente vigentes no nosso ordenamento jurídico, a exemplo do direito à

herança, da adoção e da reparação do dano causado por erro médico.56

Insta também referir-se à responsabilidade decorrente da prática da profissão,

mormente a do exercício da Medicina, tão antiga quanto a própria vida, constatando-

53 O termo talião tem origem no latim, cujo significado é tal ou igual, do qual advém a

expressão "olho por olho, dente por dente". 54 FERRI, 1998, p.34. 55 Sobre a previsão de matéria penal no Código de Hamurabi, afirma Sebastian Soler: “[...]

en el cual se encuentra el caráter público del derecho penal firmemente estabelecido, pues la protección del Rey sobre los súditos se extiende minunciosamente a todos los bienes” (SOLER, 1951, p.57).

56 Direito à herança disposto nos artigos 162 e 163: “162º - Se um homem tomou uma mulher como esposa e ela lhe gerou filhos, e depois essa mulher morreu, seu pai não poderá reclamar o dote. O dote é de seus filhos; 163º - Se um homem tomou uma esposa e ela não lhe deu filhos, e depois essa mulher morreu, se seu sogro lhe devolveu o preço que o pai do noivo pagou ao pai da noiva, seu marido não poderá reclamar o dote dessa mulher. Seu dote é da casa de seu pai.” Direito à adoção: “185º - Se um homem adotou uma criança desde o nascimento e a criou, essa criança adotada não poderá ser reclamada; 186º - Se um homem adotou uma criança e, depois que a adotou, ela continuou a reclamar por seu pai ou sua mãe, essa criança adotada deverá voltar à casa de seus pais”. Responsabilidade do médico, vg: “218º - Se um médico fez uma incisão difícil com lanceta de bronze em um homem livre ou se lhe abriu a região superciliar, e destruiu o olho do homem, eles cortarão a sua mão; 219º - Se o médico fez uma incisão difícil com lanceta de bronze no escravo de um homem vulgar e causou a sua morte, deverá restituir um escravo idêntico ao escravo morto; 220º - Se ele abriu a região superciliar com lanceta de bronze e destruiu o seu olho, ele pesará a metade de seu preço .” (VIEIRA, 2000, p.30, 34; 37).

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se que, do estudo da historicidade acerca da responsabilidade dos médicos, não se

observa qualquer dispositivo referente à perquirição sobre um elemento subjetivo do

comportamento, vigorando a responsabilidade objetiva. Nessa linha de preleção,

anota Miguel Kfouri Neto:

Paralelamente, em artigos sucessivos, impunha-se ao cirurgião a máxima atenção e perícia no exercício da profissão; em caso contrário, desencadeavam-se severas penas que iam até a amputação da mão do médico imperito (ou desafortunado). Tais sanções eram aplicadas quando ocorria morte ou lesão ao paciente, por imperícia ou má prática, sendo previsto o ressarcimento do dano quando fosse mal curado um escravo ou animal. Evidencia-se, assim, que inexistia o conceito de culpa, num sentido jurídico moderno, enquanto vigorava responsabilidade objetiva coincidente com a noção atual: se o paciente morreu em seguida à intervenção cirúrgica, o médico o matou – e deve ser punido. Em suma, naquela época, o cirurgião não podia dizer, com uma certa satisfação profissional, como o faz hoje: a operação foi muito bem-sucedida, mas o paciente está morto.57

Outrossim, com relação à seção dos delitos, disposta no citado Código

(artigos 196 a 214), não se vislumbra a exigência de uma relação subjetiva entre o

fato e seu autor, mas apenas a preocupação com a proporcionalidade da pena em

relação ao ato perpetrado, com exceção dos casos em que a vítima pertence a uma

classe social inferior.58

Segundo preceitua Nilo Batista, a “responsabilidade penal, pois, estava

associada tão-só a um fato objetivo e não se concentrava sequer em quem

houvesse determinado tal fato objetivo. Era, pois, uma responsabilidade objetiva e

difusa”.59

Malgrado a existência de pena sem culpabilidade no Código de Hamurabi,

observam-se elementos subjetivos em alguns de seus preceitos, a exemplo do

termo “negligente” nos artigos 55 e 125, inferindo-se que já havia a distinção entre

atos intencionais e não intencionais.60 Nesse sentido, Sebastian Soler considera

57 KFOURI NETO, 2001, p.38. 58 Por exemplo: “196º - Se um homem destruiu um olho de outro homem, destruirão o seu

olho; 197º - Se quebrou o osso de um homem, quebrarão o seu osso; 198º - Se destruiu o olho de um homem vulgar ou quebrou seu osso, pesará uma mina de prata; 199º - Se destruiu o olho do escravo de um homem ou quebrou o osso do escravo, pesará a metade do preço”. (VIEIRA, 2000, p. 35-36).

59 BATISTA, 1999, p.102. 60 Insta transcrever os dispositivos citados para um melhor entendimento do assunto: “55º -

Se um homem abriu seu canal para irrigação, foi negligente e as águas carregaram o campo do vizinho, ele medirá o grão correspondente ao de seu vizinho”; “125º - Se um homem deu em custódia qualquer coisa sua e lá onde depositou, desapareceu, quer por

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como avanço considerável do Código a distinção entre atos intencionais e não

intencionais.61

Há, também, a previsão de atos resultantes de caso fortuito, conforme se

detecta, por exemplo, nos artigos 45 e 48 do diploma sob apreço.62

Sobre a previsão de atos voluntários, decorrentes de imprudência ou

negligência, bem como dos resultantes de caso fortuito nas leis de Hamurabi:

“Nelas, todavia – escreve Alimena, se distinguem, de maneira bastante clara, o fato

voluntário, doloso, do ocasionado por imprudência ou negligência ou do resultante

de caso fortuito”.63

1.3.2 A Lei Mosaica

O direito do povo israelita encontra-se exposto no Pentateuco, conjunto dos

cinco primeiros livros do antigo testamento (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e

Deuteronômio), atribuídos a Moisés. Cuida-se de 613 (seiscentas e treze)

disposições, ordens e proibições.

Diferentemente da legislação de Hamurabi, no Pentateuco, o direito tem um

caráter marcadamente religioso, a pena é dotada de um sentido expiatório e é

imposta por ordem da divindade.

Impende informar que a Legislação Mosaica diferenciava o homicídio doloso

do imprudente, dado que o cometimento daquele era sancionado por meio de certas

formas de vingança privada, enquanto que o homicida culposo era julgado e

confinado, apenas podendo ser morto pelo parente da vítima no caso de ruptura do

confinamento.64

uma brecha, quer por uma escalada de muro, qualquer coisa sua juntamente com qualquer coisa do dono da casa, o dono da casa, porque foi negligente, deverá substituir tudo que lhe foi dado em custódia e desapareceu e restituir ao dono dos bens. O dono da casa procurará sua propriedade perdida e a retomará do ladrão”. (VIEIRA, 2000, p.20; 26, grifo nosso)

61 SOLER, 1951, p.57. 62 “45º - Se um homem arrendou o seu campo a um agricultor e já recebeu a renda de seu

campo, e, depois disso, o campo foi inundado fortuitamente, o prejuízo será do agricultor” [...]; 48º - Se um homem tem sobre si uma dívida e o seu campo foi inundado, ou a torrente carregou ou por falta de água não cresceu grão no campo; naquele ano ele não dará grão a seu credor, ele anulará o seu contrato e não pagará os juros daquele ano” (VIEIRA 2000, p.19).

63 ALIMENA, 1910 apud MACHADO, 1943, p.10. 64 SOLER, op. cit., p.58.

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1.3.3 O Código de Manu

O Código de Manu é a legislação mais antiga do mundo indiano e estabelece

o sistema de castas na sociedade Hindu. Foi escrito entre os séculos II a.C. e II d.C.

No estatuto sob exame, as sanções variam de acordo com a casta à qual

pertencem o transgressor e a vítima, conforme pode ser detectado, por exemplo, no

art. 264, do título XIV, que trata das injúrias: “Um ksatriya, por ter injuriado um

Brâmane, merece uma multa de cem panas; um Vaisya, uma multa de cento e

cinquenta ou duzentos, um Sudra, uma pena corporal”.65

Acrescentem-se a isso diversas formas de elemento subjetivo, a exemplo dos

termos “negligente” e “culpa” nos artigos 291 e 292, respectivamente:

Art. 291. Se o cocheiro é capaz de conduzir bem, mas negligente, ele merece a multa; mas, se o cocheiro é desasado, as pessoas que estão no carro devem cada uma paga cem panas. Art. 292. Se um cocheiro, encontrando no caminho animais ou outro carro, vem a matar por sua culpa seres animados, deve, sem nenhuma dúvida, ser condenado à multa, conforme a regra seguinte.66

Nesse direito, assim como no restante do direito oriental, ainda não se mostra

possível buscar formas de verdadeira individualização da responsabilidade e da

pena.67

1.3.4 A desconsideração da falta de consciência da ilicitude do fato e da ignorância da lei no Direito Oriental

Cabe aduzir que o direito do Oriente não se ocupou do tema do erro, quer

seja sobre os elementos do tipo penal, quer seja sobre a ilicitude do fato. Outrossim,

não houve preocupação com a ignorância da lei penal.

Nessa direção, anota Munhoz Netto, “A pena sacral recaía sobre atos

praticados ou não, em condições de imputabilidade, de sorte que seria indiferente a

circunstância do sujeito conhecer ou não, a proibição”.68

65 VIEIRA, 2000, p.80. 66 Ibidem, p.83. 67 SOLER, 1951, p.58. 68 MUNHOZ NETTO, 1978, p.24.

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1.4 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO GREGO

Tendo em vista as diversas cidades-Estado gregas independentes umas das

outras, havia inúmeras legislações na antiga Grécia, mas delas restaram apenas

fragmentos, a exemplo das leis espartanas de Licurgo, das leis atenienses de

Dracon e Solon.

Aponta Sebastian Soler dois passos fundamentais do povo grego na história

das instituições jurídicas, a saber: a redução do poder político a um poder humano

livre das bases teocráticas tipicamente orientais e a gradual elevação do indivíduo à

autoconsciência de seu valor pessoal.69

Os filósofos e dramaturgos gregos nos legaram diversos princípios relativos

aos fundamentos e fins da pena, como também o reconhecimento da relevância da

vontade no embasamento e na graduação das sanções penais.70 Não se pode

olvidar a influência do pensamento de Sócrates, de Platão e de Aristóteles para a

política e o direito.

Apesar de alguns autores afirmarem que os gregos conceberam unicamente

a responsabilidade objetiva71, informa Luiz Luisi que, nas Leis de Solon, por

exemplo, havia diversas formas de homicídio, nos termos expostos a seguir:

As Leis de Solon, - segundo pesquisas feitas por Alessando Levi, previam diversas formas de homicídio. O voluntário, punido com pena de morte, e julgado pelo Areópago. O involuntário punido com pena de exílio temporário, se não tivesse havido uma transação em que todos os parentes próximos da vítima estivessem de acordo quanto ao valor da indenização. O justificado, em legítima defesa, - era julgado pelo Delfinio.72

69 Na versão original: “Pero el genio de este pueblo se deben dos pasos fundamentales para

la historia de las instituciones jurídicas: la reduccion del poder político a un poder humano liberado de las bases teocráticas típicaente orientales, y la gradual elevación del individuo a la autoconciencia de su valor personal. Ambas evoluciones no se cumplieron sino en el curso de varios siglos” (SOLER, 1951, p. 59).

70 LUISI, 2003, p.33. 71 Neste sentido: MUÑOZ MARTÍNEZ, Nancy Yanira. Teoría Alemana de la culpabilidade,

p.01 apud MACHADO, 2010, p.35. 72 LUISI, loc. cit.

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No entanto, vale ressaltar que, além da responsabilidade individual, existiu,

por muito tempo, a responsabilidade coletiva no antigo direito grego, sobretudo nas

ofensas de caráter público e religioso.73

1.4.1 A consciência da ilicitude para Aristóteles

Aristóteles apresentou a ideia de livre arbítrio, exercendo considerável

influência no Direito Penal do Ocidente, mormente no que se refere à culpabilidade

penal.74

Decerto, Aristóteles pressupunha que os seres humanos podem, segundo sua

razão, eleger entre o bem e o mal, razão por que só lhes podem ser imputadas as

ações executadas livremente. Então, deve-se considerar involuntário todo

comportamento levado adiante sem o conhecimento do concreto significado

normativo do atuar. No entanto, contrariamente ao que se poderia inferir, o filósofo

descartou a relevância ao error iuris a partir de uma perspectiva teleológico-objetiva

que unia ética e direito, afirmando que o ser humano devia agir, por natureza, em

favor da comunidade, pois, caso contrário, não é ser humano. A infração grave da

norma há de ser imputada à sua má vontade.75

Assim, verifica-se que Aristóteles, sem embargo de ter se preocupado com o

tema da ignorância da ilicitude, considerava inadmissível a escusa dela decorrente.

Apesar de reputar contrário à natureza das coisas o conhecimento geral das leis,

considerava que a ignorância não poderia ser invocada de forma eficaz, já que

haveria a culpa, ante o dever e a possibilidade de conhecê-las.76

73 Neste sentido, estatui Sebastian Soler: “Es de transcendente interés, sobre todo, el paso

de la responsabilidad colectiva del genos a la responsabilidad individual. En general, desde antiguo, para los crímenes comunes, el derecho griego no castigaba sino al autor. Pero son numerosas las ofensas de carácter público y religioso en las cuales se mantuvieron sanciones colectivas durante bastante tiempo. Los traidores y los tiranos sucumbían con toda su familia, hecho éste que no puede ser explicado solamente como el resultado de la acción tumultuaria, sino también como aplicación de la ley” (SOLER, 1951, p.59).

74 “A idéia de culpabilidade, através do livre arbítrio de Aristóteles, deveria apresentar-se no campo jurídico, após firmar-se no terreno filosófico e ético. Já com Platão, nas Leis, se antevê a pena como meio de defesa social, pela intimidação – com seu rigor – aos outros, advertindo-os de não delinquirem” (NORONHA, 1959, p.34).

75 RIGHI, 2003, p.20. 76 MUNHOZ NETTO, 1978, p.24.

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Cabe, por fim, citar as palavras de Aristóteles sobre a ignorância das

prescrições legais:

Punimos igualmente as pessoas que ignoram quaisquer [1114 a] prescrições das leis que a todos cumpre conhecer, e podem facilmente conhecer, e do mesmo modo em todos os casos em que a ignorância seja atribuída à negligência, pois presumimos que dependa dos culpados o não ser ignorantes, uma vez que poderiam ter-se informado de uma maneira mais zelosa.77

A justificativa de Aristóteles para a obrigatoriedade do conhecimento das leis

baseava-se na facilidade de se obter tal conhecimento. Nota-se que, àquela época,

era realmente mais fácil de conhecer o direito do que nos dias atuais, haja vista que

não havia o mesmo número de leis, como também a sociedade não era tão

complexa e multicultural.

1.5 A RESPONSABILIDADE PENAL NO DIREITO ROMANO

O direito romano passou por uma longa evolução, tendo em vista que durou

cerca de dez séculos, podendo ser dividido em várias épocas, de acordo com as

características sociais, políticas e econômicas da sociedade.78

Nos primórdios, a vontade do autor do delito já funcionava como fundamento

da pena, dado que a Lex Numa dos tempos do Rei Numa Pompílio, ou seja, no

século IX antes de Cristo, diferenciava duas formas de homicídio: o parricídio

intencional, ao qual se aplicava a pena de morte, e o homicídio imprudente, cuja

sanção consubstanciava-se no oferecimento de um carneiro aos parentes da

vítima.79

77 ARISTÓTELES, 2004, p.66. 78 Pode-se distinguir os períodos do direito romano em quatro fases, quais sejam: I) O

período régio, da data convencional da fundação de Roma (754 a.C) à expulsão dos reis (510 a.C). O governo é de forma monárquica patriarcal, baseada em princípios tradicionais de natureza prevalentemente religiosa. Fonte do direito neste período é sobretudo o costume; algumas leges regiae se atribuem aos reis Rômulo, Numa Pompílio e Sérvio Túlio.II) O período da República, de 510 a.C até a instauração do Principado por obra de Otaviano Augusto em 27 a.C. A este período pertence a Lei das XII Tábuas, de 450 a.C. mais ou menos. III) O período do Principado, de Augusto até o imperador Diocleciano (anos 27 a.C – 284 d.C). IV) O período da Monarquia absoluta, da ascenção ao trono de Diocleciano, em 284 d.C., à morte do imperador Justiniano, em 565. (CORREIA; SCIASCIA, 1949, p. 07-08).

79 LUISI, 2003, p.33.

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A Lei das Doze Tábuas (em latim: Lex Duodecim Tabularum ou Duodecim

Tabulae), considerada como “uma grande lei fundamental do Estado”80 do antigo

direito romano, estabeleceu a igualdade legal entre patrícios e plebeus, bem como

delimitou as atribuições do Poder Judiciário, que eram exercidas pelos cônsules. A

partir desta legislação, estabelece-se a diferença entre delitos públicos e privados.

Registre-se que os dez primeiros códigos foram formulados em 451 a.C. por

um decenvirato (um grupo de dez homens) e, em 450 a.C., o segundo decenvirato

concluiu os dois últimos. As Doze Tábuas, então, foram promulgadas e inscritas em

doze tabletes de madeira, os quais foram afixados no fórum romano, de modo que

todos pudessem ter o seu conhecimento.

Nessa legislação, há a exigência do dolo em várias figuras delituosas, tais

como nos crimes de magia, infidelidade do patrono, infidelidade do tutor, injúria,

dentre outros.81

Contudo, tanto o conceito de culpa, quanto o de dolo não estavam expostos

na legislação. Referidas definições foram desenvolvidas por meio da interpretação

científica das leis. A culpa, para os romanos, fundava-se não apenas no critério da

previsibilidade, mas também no da prevenção, conforme acentua Raul Machado.82

No entanto, no direito romano, a culpa não representou uma forma particular

de criminalidade. A noção de culpa dos romanos não coincide com a hodierna

concepção dela. Vale dizer que o direito romano, em todas as fases de sua história,

não conheceu o crime culposo, propriamente dito.83

Acresça a esses aspectos, os dolus bonus e dolus malus, distinção feita pelos

romanos. O primeiro é o que o próprio agente emprega para se defender dos

ataques injustos de outrem, ou com outro fim lícito. Já o dolus malus, ou dolus

simplesmente, existe sempre que, ciente e deliberadamente, procura-se prejudicar

outrem com fraude ou por qualquer outro meio contrário à lei.84

80 FARIA, 1906, p.61. 81 LUISI, 2003, p. 33. 82 MACHADO, 1943, p.15. 83 MOMMSEN, 1848, p.98; 15. 84 FARIA, op. cit., p. 358. O autor ainda cita como exemplo do dolus bonus a hipótese de

alguém ocultar a verdade para impedir que um furioso pratique o que lhe seria prejudicial, ou aos outros.

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Escreve Assis Toledo que o dolus malus dos romanos se constituía, com

nitidez, do elemento anímico-intencional e de um plus: “a sua valoração como algo

mau, perverso, ilícito. Era, pois, um dolo valorado, normativo, adjetivado de „mau‟”.85

A imputabilidade era relevante no direito romano, porque havia inúmeros

textos que excluíam a responsabilidade penal dos insanos e dos menores.

Entretanto, com o transcorrer do tempo, passou-se a admitir uma responsabilidade

atenuada do impúbere.86

Diante do exposto, verifica-se que os romanos não conceberam uma teoria

geral da culpabilidade, mas trouxeram uma grande contribuição para o Direito Penal,

por meio do desenvolvimento do estudo do dolo e da culpa em seu sentido estrito e

da imputabilidade penal.

Dessarte, no que se refere ao estudo da responsabilidade penal, não

podemos concordar com a famosa afirmação de Carrara, segundo a qual os

romanos foram gigantes em direito civil e pigmeus em direito penal87. Embora não

tenha havido idêntico grau de desenvolvimento em ambas as esferas, pode-se notar

a consideração, pelos romanos, de aspectos relevantes também no âmbito da

Dogmática Penal.

Além disso, destaque-se que os romanos traçaram a distinção entre erro de

fato e erro de direito, dando maior relevância àquele, já que a regra era da

inescusabilidade do error iuris, apesar das inúmeras exceções, conforme

verificaremos no tópico a seguir.

1.5.1 A questão da falta de consciência da ilicitude: dicotomia “erro de fato – erro de direito” e o critério desculpável do erro

Como foi afirmado no presente trabalho, os romanos dirigiram suas atenções

ao tema da existência da vontade na formação delituosa, uma vez que havia

inúmeras figuras dolosas e culposas em suas legislações. Como se não bastasse,

também desenvolveram o estudo da imputabilidade e do erro.

85 TOLEDO, 1994, p.220. 86 “Um texto de Gaio sustenta que quem está próximo à puberdade é capaz de furtar. E

Ulpiniano sustenta que embora impúbere se pode imputar um fato delituoso, desde que seja „capaz do dolo‟” (LUISI, op.cit., p. 34).

87 ZAFFARONI, 2009, p. 165.

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Observe-se que os romanos não construíram regras gerais sobre o dolo, a

culpa, a imputabilidade e o erro, mas sim, resolveram questões particulares, as

quais foram comentadas pelos escritores, tornando-as fortes o bastante para

adquirirem o valor de princípios absolutos.88

Os romanos distinguiram o erro de fato do erro de direito, já que aquele se

refere ao erro do agente sobre as circunstâncias do fato criminoso ou sobre uma

circunstância justificante. Por outro lado, o erro de direito diz respeito ao erro do

agente sobre a “obrigação de respeitar a norma por ignorância da antijuridicidade de

sua conduta, baseada no desconhecimento da lei penal que proíbe ou que ordena

agir, ou sem ignorá-la absolutamente, dela só tem notícia imperfeita que o conduz a

uma apreciação falsa”.89

Ocorre que os termos “erro” e “ignorância”, para os romanos, tinham o mesmo

significado e eles usavam, originalmente, as expressões ignorantia facti e ignorantia

juris.90

Importa mencionar que, consoante grande parte da doutrina, o antigo direito

romano atribuiu relevância ao erro de fato, como se observa em algumas passagens

do Digesto, tais como: “não comete delito de adultério a mulher que crendo o marido

morto, convola novas núpcias, desde que o seja desculpável”; “não responde por

furto quem como herdeiro se apropria de coisa de alguém considerado morto”. 91

No entanto, quanto ao erro de direito, valia a máxima contida na lei 9, do título

VI, do Digesto: “regula est juris quidem ignoratiam cuique nocere, facti vero

ignorantiam non nocere”92, a qual expressa que a ignorância do direito prejudica, a

do fato não.

Aponta-se como razão da regra da inescusabilidade do erro de direito o fato

de que o ordenamento de então era constituído por “um conjunto de normas

expressas e bem definidas, pelo que seria mais fácil o conhecimento das leis do que

os extremos de fato de um crime”. Além disso, dispõe Jiménez de Asúa que o motivo

para a irrelevância do erro de direito é encontrado na 2a lei do título “De juris et facti

ignorantia” do Digesto, já que Neracio dizia não tratar do mesmo caso a ignorância

88 DORADO, 1895; FERRINI, 1899 apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.24-25. 89 GOMES, 2001, p.43; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.20-21. 90 CORREIA; SCIASCIA, 1949, p.60. 91 Exemplos extraídos do livro de LUISI, 2003, p.34. 92 DIAS, 2007, p.532-533; MUNHOZ NETTO, 1978, p.27.

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de direito e a de fato, porque o direito pode e deve ser limitado, já a interpretação do

fato engana, muitas vezes, aos prudentíssimos.93

Note-se que essa mesma regra aparece também indicada, ainda que como

um preceito particular, na 11ª lei do título II, Des his qui notantur infâmia, do Livro III,

do Digesto: “ignorantia enim, excusatur non juris sed facti”. 94

No entanto, verifica-se que a regra da inescusabilidade do erro de direito

possuía numerosas exceções, não sendo pacífica a opinião de que um enunciado

genérico relativo à irrelevância do erro de direito possa ser encontrado nas fontes.

De fato, as decisões particulares, no Corpus Iuris, concluem tanto pela irrelevância

do erro de direito, quanto por sua relevância.95

A maior parte das exceções à regra acima exposta encontra-se assinalada de

uma maneira casuística e espalhada em todo o Corpo de Direito. Amor Neveiro

apresentou uma divisão em quatro categorias dos casos em que a ignorantia iuris

servia como escusa, a qual foi exposta por Jiménez de Asúa: a) quanto à natureza

da lei ignorada; b) quanto à natureza do ato contrário à lei; c) quanto à qualidade das

pessoas que a ignoram; d) quando concorrem várias das circunstâncias anteriores

reunidas.96

No que tange à primeira categoria de escusa da ignorantia iuris ou erro de

direito, referente à natureza da lei ignorada, havia a distinção entre as leis

puramente positivas e as fundadas diretamente no Direito natural. A questão reside

em saber se a ignorância de direito serve como desculpa quando se trata daquelas

leis que o Direito romano denominava “civis”, ou seja, as que não tinham

fundamento natural.97

Para Teodoro Mommsen, a ignorância de direito no que concerne às leis

“civis” não escusa, salvo em favor das mulheres e dos rústicos.98 Doutra banda,

Ferrini sustenta que, quando se cuida dessas normas de mera criação jurídica, é

admissível (com algumas exceções) a plena ignorância da norma e a consequente

eliminação do dolo.99 Já para Amor Neveiro, não se pode estabelecer como regra

absoluta, nem como regra geral, que a ignorância de uma lei dessa classe pudesse

93 MUNHOZ NETTO, 1978, p.27; JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27. 94 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27. 95 MUNHOZ NETTO, 1978, p.29. 96 NEVEIRO, 1914 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.27-30. 97 JIMÉNEZ DE ASÚA, op. cit.,p.28. 98 MOMMSEN, 1848, p. 100 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.28. 99 FERRINI, 1905 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.28.

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servir como escusa para o seu descumprimento. Mas Neveiro reconhece casos

excepcionais, mais numerosos do que aqueles admitidos por Mommsen.100

Relativamente à segunda categoria, que diz respeito à natureza do ato

contrário à lei, explica Jiménez de Asúa, com base na lição de Amor Neveiro, que

são aqueles casos em que a natureza legal ou real do ato objetivamente punível

exigia o conhecimento da lei proibitiva. A falta deste conhecimento eximia o agente

de pena total ou parcialmente. Um exemplo contido no Digesto é o do magistrado

que sentenciava contra o direito e era castigado se agisse com dolo. Se o seu ato

fosse decorrente de imprudência do assessor, ficava o magistrado isento de pena, a

qual recaía apenas sobre aquele.101

Quanto à terceira categoria, segundo a qual a escusa decorre das qualidades

pessoais, entendia-se que, em certos casos, o erro de direito só beneficiava as

mulheres, os menores, os rústicos ou os soldados.102

Por último, no que propende à escusa da ignorantia iuris decorrente da

reunião de várias circunstâncias, pode-se apontar o exemplo do incesto, que era

proibido pelo Digesto, bem como pelo direito das gentes. O erro de direito poderia,

excepcionalmente, servir de escusa às mulheres se o incesto fosse iuris civilis, não

gentium, isto é, praticado com colaterais e não com ascendentes ou descendentes.

Além disso, aos menores do sexo masculino, o erro de direito, em matéria de

incesto, poderia valer, com as mesmas limitações.103

Ressalte-se que há diversidade de tendências entre o direito clássico e o pós-

clássico. No primeiro, admitia-se a ignorantia iuris em certos casos particulares, já no

direito pós-clássico e justianeu, havia concessões em favor dos menores e das

mulheres. Acrescente-se que era admitida a escusabilidade da ignorância e do erro

de direito no que tange a relações de direito extrapenal, como também a qualquer

erro de fato, seja conexo ou não a noções jurídicas. Nos casos em que a lei

100 NEVEIRO, 1914 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29. 101 NEVEIRO, 1914, p.09- 10 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29; Digesto, título II, do

Livro II, apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.29. 102 MUNHOZ NETTO, 1978, p.32. 103 §§2,4 y7, ley 38, tít.V, lib.XLVIII del Digesto apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.30;

Digesto, XLVIII,V, apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.33.

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extrapenal fosse o fundamento prévio da norma punitiva, a ignorância dela era

equiparada ao erro de fato, eliminando, assim, o dolo.104

Conforme foi afirmado no tópico anterior, os romanos distinguiram o dolo em

dolus bonus e dolus malus. Infere-se que este último se constituía da vontade aliada

a um mau propósito, ou seja, a vontade associada à consciência da antijuridicidade.

Daí se poder afirmar que, para os romanos, o dolo tinha um elemento naturalístico,

que era a vontade e um elemento normativo, qual seja, a consciência da

antijuridicidade.105

Nessa linha de preleção, Binding defendeu que, em direito penal romano, o

“conhecimento da norma violada” era pressuposto irrenunciável do dolus malus,

tornando o tema do erro relevante para a culpa, uma vez que o erro de direito

também importaria para a não imputação do comportamento doloso.106

Note-se que esse posicionamento vai de encontro à doutrina romanista

tradicional, mas que, ao nosso modo de ver, revela-se como o mais correto. Havia

diversas decisões considerando o erro de direito relevante para o fim de excluir o

dolo do agente e imputar a sua conduta apenas a título de culpa. O que tornava o

erro relevante era o seu critério desculpável ou não.

Diante das inúmeras exceções, tanto no direito clássico, quanto no pós-

clássico, à regra pauliana que apregoava a irrelevância do error iuris, conclui

acertadamente Jorge de Figueiredo Dias no sentido de que não era a natureza

intrínseca do erro, ou seja, ser de fato ou de direito, que fundamentava a delimitação

ou a solução do problema da falta de consciência da ilicitude, mas sim o seu caráter

desculpável ou não. No entendimento do autor, “o que se pretendeu

fundamentalmente foi regular, de forma unitária, o âmbito do erro desculpável de

uma parte e o do indesculpável de outra parte, e portanto afirmar, em via de

princípio, a relação entre o erro e a culpa do agente na actuação”.107

Dessa maneira, percebe-se, de acordo com os novos estudos sobre os textos

romanos, que o fator determinante para os efeitos atribuídos a cada modalidade de 104 GIOFFREDI, 1970 apud TOLEDO, 1977, p.32; MANZINI, Trattato di Diritto Penale

Italiano. 4 ed. Torino: UTET, 1961, v.II, p.19-20 apud TOLEDO, 1977, p.32; MUNHOZ NETTO, 1978, p.34.

105 Observe-se que o elemento é chamado de naturalístico porque está presente na natureza humana, e não uma criação do direito. Por outro lado, o elemento normativo caracterizava-se pelo juízo de valor, realizado pelo pretor, o qual qualificava a vontade como má. (BRANDÃO, 2010, p.227-228).

106 BINDING, 1914 apud DIAS, 2009, p.30-31. 107 DIAS, 2009, p.35.

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erro era a relação entre o erro e a culpa, e não a natureza do erro em si (se de fato

ou de direito).

Nesse ponto, verifica-se que o antigo direito romano estava à frente do nosso

direito penal brasileiro, já que, nos dias hodiernos, ainda há a tendência de se

relacionar o problema da responsabilidade do autor pelo seu comportamento com o

princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal.

Não se considera, atualmente, se o erro de proibição ou a ignorância da lei

penal é desculpável ou não, para se atribuir a responsabilização penal do sujeito.

Estabelece-se a distinção entre erro de proibição e ignorância da lei penal,

atribuindo-se a exclusão da culpabilidade para aquele, no caso de ser inevitável, ou

diminuindo-se a pena, caso ele seja evitável. Em se tratando da ignorância da lei

penal, nega-se qualquer tipo de relevância desta para a culpabilidade, ainda que

seja inevitável o desconhecimento da norma. A ignorância da lei penal funciona

apenas como uma atenuante genérica, disposta no art. 65, II, do nosso diploma

penal. Referida atenuante independe da evitabilidade ou não da ignorância.

Verifica-se, pois, que o atual princípio da inescusabilidade da ignorância da lei

penal possui relação com a regra pauliana da irrelevância do erro de direito.

Segundo preleciona Figueiredo Dias, a completa identificação das duas questões só

foi possível em épocas em que o pensamento jurídico se guiou pelo dogma do

positivismo legalista, pois que referida ligação só é admissível mediante uma prévia

redução do direito à lei.108

Desse modo, ultrapassado o dogma positivista acima mencionado,

entendemos que não deveria haver um tratamento diferenciado do problema da

delimitação da falta de consciência da ilicitude e do princípio da irrelevância da

ignorância da lei penal, tendo em vista que, mesmo no antigo direito romano,

embora a regra de Paulo determinasse a irrelevância do erro de direito, o que, em

verdade, delimitava a irrelevância ou não do erro era o seu caráter desculpável.

Assim, atualmente, deve-se considerar, conforme apresentaremos mais adiante, que

a ignorância da lei também pode se apresentar como relevante em determinados

casos.

108 DIAS, 2009, p.53-54.

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1.6 A RESPONSABILIDADE PENAL NA IDADE MÉDIA E A CULPABILIDADE

O direito canônico e o direito comum, na Idade Média, mantêm a exigência do

dolo e a noção da culpa nas formas de negligência e imprudência. Entretanto,

subsistiu uma forte presença da responsabilidade objetiva, com o advento do

princípio “versari in re ilícita” (literalmente significa: tratar com coisa ilícita), segundo

o qual há responsabilidade por fatos causados por uma conduta ilícita, mas que não

foram previstos e nem queridos, como também não haviam sido previsíveis.

Portanto, havia responsabilidade decorrente de caso fortuito ou força maior.

Saliente-se que foi nessa fase histórica do direito que surgiu o dolo indireto ou

eventual, por meio do estudo desenvolvido por Diego Covarrubias.109

Cabe mencionar que Santo Agostinho, no início da Idade Média, mais

precisamente no século IV, compreendia que a responsabilidade penal tinha como

pressupostos a inteligência e a vontade.

Sobre a vontade tratada por Santo Agostinho, escreve Brandão que ela é

“fundamental no homem, porque a construção da ordem do ser é dinâmica e é

formada pelo livre-arbítrio da vontade. É a vontade que possibilita ao homem fazer

uso das coisas, pelo agir.”110 Vale citar o pensamento de Santo Agostinho sobre o

livre-arbítrio:

Ou ter-se-á esquecido de que, quando investigamos cerca das realidades que se conhecem por meio da razão, reconheceste também que é pela razão que reconhecemos a própria razão? Portanto, se é pela vontade livre que fazemos uso de tudo o mais, não te deves admirar que seja também pela própria vontade que dela possamos fazer uso. De algum modo, é a vontade que, quando faz uso de tudo o mais, faz uso também de si mesma, tal como a razão, que conhece tudo o mais, também se conhece a si mesma.111

São Tomás de Aquino, no início do século XIII, também expõe a

responsabilidade penal fundada na vontade e na liberdade do homem.

Conforme assevera Cláudio Brandão, a origem da atual noção de pessoa

como ser humano deita suas raízes na Idade Média, tendo como base a filosofia

cristã. Nas palavras do autor:

109 LUISI, 2003, p. 35. 110 BRANDÃO, 2004, p.173. 111 SANTO AGOSTINHO, 2001, apud BRANDÃO, 2004, p.173-174.

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não se reconhecerá o ser humano por ele integrar a atividade política do Estado, mas por ele ser uma criatura feita à imagem e semelhança de Deus e ser o objeto do amor divino. Deve-se ressaltar, contudo, que a extensão temporal deste período - durou cerca de mil anos – fez com que a relevância atribuída à pessoa humana estivesse ligada a um processo de avanços e retrocessos, onde ora se reconheceria essa dignidade, ora se fazia concessões – movidas provavelmente pelos interesses políticos da Igreja Católica – que atenuam a relevância da figura humana considerada em sua dignidade.112

Ressalte-se, por oportuno, que foram os pós-glosadores e os práticos

italianos, nos fins da Idade Média, que cunharam um conceito comum abrangente do

dolo e da culpa. Não obstante constituírem-se em duas espécies diversas, a culpa

passou a ser considerada um conceito geral, no qual se encontram o dolo e a culpa

em sentido estrito. Portanto, deve-se aos comentaristas e aos práticos do século XVI

a compreensão da culpabilidade como reprovação ou repreensibilidade.113

Nesse aspecto, profere Jescheck que as raízes da teoria da culpabilidade se

encontram na ciência do Direito Penal italiano da Baixa Idade Média e na doutrina

do Direito Comum elaborada nos séculos XVI e XVII. Com efeito, o Direito Natural,

cujo reconhecido representante é Samuel Puffendorf (1634-1694), expõe a primeira

estrutura da teoria da culpabilidade, por meio do conceito de imputação como a ação

livre que se reputa pertencente ao autor e, por conseguinte, fundamento de sua

responsabilidade.114

Sobre o Direito Natural, Garofalo afirma que as normas tinham como base a

moral, os costumes e os sentimentos altruístas, conceituando o delito natural da

maneira abaixo descrita:

A ofensa feita a parte do denso moral formado pelos sentimentos altruístas de piedade e de probidade – não, bem entendido, à parte superior e mais delicada deste sentimento, mas a mais comum a que considera patrimônio moral indispensável de todos os indivíduos em sociedade. Essa ofensa é precisamente o que nós chamaremos de delito natural.115

112 BRANDÃO, op. cit., p.172. 113 LUISI,2003, p. 35. 114 JESCHECK, 1981, p.577; Expõe no mesmo sentido: BITENCOURT, 2006, p. 416-417. 115 GAROFALO, 1997, p. 29.

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Em se pensando na culpabilidade como imputação e, por conseguinte, como

vontade livre e responsabilidade moral, convém ler este excerto de Ronaldo Tanus

Madeira:116

As primeiras manifestações teóricas a respeito da culpabilidade confundiam-na com o conceito de imputação ou imputabilidade, no sentido de atribuibilidade. Assim, a imputabilidade significava atribuir ao ser humano a causa de seu ato. [...] Imputar a alguém um fato criminoso é considerar, segundo a ótica de Punfendorf, que esse fato não decorreu de caso fortuito ou força maior. Imputabilidade significava vontade livre e responsabilidade moral.

No entender de Pufendorf, assim, a liberdade do agir humano constitui-se em

pressuposto fundamental para a existência de um mundo moral. O conceito de

culpabilidade relacionado à imputação corresponde a uma concepção do livre

arbítrio absoluto no século XVII, em razão do desenvolvimento do jus-naturalismo

associado a influências ainda marcantes do tomismo. Ocorre que, à concepção de

imputação como atribuição da responsabilidade da ação livre ao seu autor,

seguiram-se outras, como a dos hegelianos, segundo os quais a imputação subjetiva

se dava em razão de o indivíduo, livremente, por sua vontade particular, afastar-se

da vontade geral, ou seja, da lei.117

No tópico a seguir, cuidaremos do tema do erro na Idade Média, para o direito

germânico, o direito canônico, bem como para o direito italiano intermédio.

1.6.1 A questão da consciência da ilicitude no Direito Germânico e no Direito Canônico

No Direito germânico, os problemas da ignorância da lei e do erro eram

totalmente desconhecidos.118 Já no Direito Canônico, inicialmente, preponderou o

princípio da irrelevância do erro sobre a lei. Posteriormente, reaparecem as diversas

classes de ignorância e erro. Com Graciano, estabeleceu-se a distinção entre

ignorantia iuris naturalis e ignorantia iuris civilis. A ignorância de direito natural

prejudicava todos os adultos. Todavia, na “Summa Coloniensis”, estão excluídos

116 MADEIRA, 1999, p.59. 117 BITENCOURT, op. cit., p.417; No mesmo sentido: JESCHECK, loc. cit. 118Nesse sentido, Diritto penale germânico rispetto all’Italia, en Enciclopedia di Diritto

penale, dirigida por Pessina, vol. I, Milán, 1995, p.462 apud JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.31.

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expressamente da obrigação de conhecimento da lei os jovens, os surdos, os mudos

e os enfermos da mente.119

Com o transcorrer do tempo, a doutrina canonista passou a atenuar o rigor do

princípio da irrelevância do error iuris. A ignorância de normas locais, emanadas de

bispos, tornou-se escusável, se ela não decorresse de negligência crassa e supina.

Posteriormente, estendeu-se esse critério a todas as leis penais. Mesmo nos casos

em que o desconhecimento da lei não decorresse de negligência crassa e supina, o

erro era considerado se, para determinado delito, fosse exigido efetivo conhecimento

jurídico.120

1.6.2 A falta de consciência da ilicitude no direito estatutário intermédio

No direito estatutário intermédio, o erro sobre o direito natural e divino era

inescusável, tendo em vista que todos deviam conhecer as suas leis. Do mesmo

modo, não se admitia a ignorância do direito romano, ou seja, do direito comum a

todas as gentes. Todavia, em algumas leis e de acordo com muitos escritores,

admitia-se a escusabilidade do erro no que concerne às leis locais, especialmente

em se tratando de forasteiros. Os estatutos do Sena e das florescentes cidades de

Lombardia, por exemplo, declaravam expressamente a eficácia da ignorância das

leis locais quanto aos forasteiros. Outrossim, para o Direito Civil, prevaleciam as

exceções romanísticas relativas às mulheres, aos menores, aos soldados e aos

rústicos.121

Ocorre que o direito estatutário intermédio, quanto ao erro, inspirou-se no

direito romano e no direito canônico. Da mesma maneira que no antigo direito

romano, no direito italiano intermédio, o que determinava a relevância ou não do erro

era o critério de ele ser ou não desculpável, haja vista que o error iuris naturalis ou

quasi naturalis não escusava porque era indesculpável ou vencível, já o error iuris

civilis escusava sempre que fosse desculpável ou invencível.122

119MUNHOZ NETTO, 1978, p.36. 120 Ibidem, p.36-37. 121 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1942, p.32-33. 122 MUNHOZ NETTO, 1978, p.38-39; No mesmo sentido anota Dias (2009, p.39).

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Sem que haja pretensão de exaustividade, impende realizar uma breve

análise das contribuições (ou não) do Iluminismo para a questão da culpabilidade e

do erro, o que será versado no tópico constante a seguir.

1.7 A RESPONSABILIDADE PENAL E A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NO PERÍODO DAS LUZES

Vale destacar, primeiramente, o pensamento do contratualista racional do

século XVII, Thomas Hobbes. Assinala Hobbes que, no estado natural, os homens

são egoístas, então, é necessário um poder comum para que não haja “uma guerra

de todos contra todos”. Cumpre ressaltar que “a guerra não é apenas a batalha, o

ato de lutar, mas o período de tempo em que existe a vontade de guerrear”.123

Além de ter explanado sobre a natureza humana e a necessidade de

governos e sociedades, o filósofo inglês se preocupou com o tema da ignorância da

lei, afirmando que ela somente é admitida como desculpa se a lei civil do próprio

país não tiver sido amplamente divulgada para que todos tomem conhecimento e se

o ato perpetrado não for de encontro à lei natural. Segundo o autor, em qualquer

outro caso, o desconhecimento da lei civil não é razoável, já que a punição consiste

na consequência da violação da lei, em qualquer Estado.124

Percebe-se que o filósofo apenas se preocupou com o tema da ignorância,

mas não apresentou avanços em relação ao que já se entendia no antigo direito

romano, trazendo como novidade o fundamento contratualista da obrigação de

conhecimento das leis.

123 O filósofo inglês elenca três causas principais de disputa, inerentes à natureza humana, a

saber: competição, desconfiança e glória. A competição estimula os homens a se atacarem para adquirir algum lucro, a desconfiança assegura-lhes a segurança, enquanto a glória garante-lhes a reputação. Segundo Hobbes, a primeira causa conduz os homens a servirem-se da violência “para se apossar do pessoal, da esposa, dos filhos e do gado de outros homens”, a segunda os leva ao uso da violência para defender esses bens, a terceira os faz utilizarem-se da força por razões insignificantes, “como uma palavra, um sorriso de escárnio, uma opinião diferente da sua ou qualquer outro sinal de subestima direta de sua pessoa, ou que reflita sobre seus amigos, sua nação, sua profissão ou o nome de sua família”. Outrossim, o filósofo traça alguns pontos de diferença entre os homens e algumas criaturas vivas, como abelhas e formigas, destacando-se, por exemplo, o fato de que estas criaturas não competem entre si em busca da honra e da dignidade, como o fazem os seres humanos. É justamente em razão deste fator que surge, entre os homens, a inveja e o ódio e, finalmente, a guerra. (HOBBES, 2009, p. 95; 125).

124 HOBBES, 2009, p.207.

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O Iluminismo não trouxe grandes mudanças no que toca à culpabilidade,125 a

despeito das suas inúmeras contribuições para o Direito Penal, a exemplo da

consolidação do princípio da humanidade das penas, como reação às violações aos

direitos do homem, verificadas, sobretudo, nas monarquias absolutas instauradas na

era moderna.

Oportuno mencionar a obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonesana,

mais conhecido como o Marquês de Beccaria, tendo em vista o seu influxo para o

processo de humanização das penas. Tal livro foi escrito há mais de dois séculos,

mas “nele já se proclamavam e defendiam os direitos do homem”126 e influenciou

diversas legislações estrangeiras, no sentido de as penas serem específicas e

variadas, além da necessidade de proporcionalidade na relação entre o crime e a

pena, dentre outras contribuições.

Beccaria estabeleceu as bases que serviram, mais tarde, para construir uma

ciência criminal orientada pela ideia de criar um sistema de garantias para o sujeito

e, ao mesmo tempo, de legitimar a intervenção repressiva do Estado.127

Entanto, o marquês sustentou a maior importância do dano causado pelo fato

delituoso do que a vontade do agente:

As precedentes reflexões dão-me o direito de afirmar que a única e verdadeira medida do delito é o dano causado à nação, errando, assim, os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a intenção de quem o comete. Esta depende da impressão atual dos objetos e da precedente disposição do espírito. Elas variam de homem para homem, e, em cada homem, com a velocíssima sucessão das ideias, das paixões e das circunstâncias [...] Às vezes, os homens, com a melhor das intenções, causam o maior mal à sociedade. Outras vezes, com a maior má vontade, causam o maior bem.128

Romagnosi, em sua obra “Gênese do Direito Penal”, defendeu que imputar

um ato a alguém é afirmar que um seu agir próprio, impossível de ser atribuído a

outrem, foi sua causa.129 Assim, percebe-se que não houve significativo acréscimo à

imputação moral de Pufendorf, tratada no tópico 1.5 deste trabalho.

125 LUISI, 2003, p. 35. 126 LINS E SILVA, 1991, p.02. 127 RAMÍREZ, 2005, p.122. 128 BONESANA, 2011, p.45. 129 TANGERINO, 2009, p.49.

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Aponta Luiz Luisi, entretanto, a existência de iluministas que enfatizaram a

relevância da vontade do agente na configuração do crime, tais como Gaetano

Filangieri e Pascoal de Melo Freire.130

Cumpre esclarecer que o problema do erro sobre a consciência da ilicitude

não foi tratado de forma unitária na Idade Moderna. Na Alemanha, por exemplo,

havia a ideia de proteger os indivíduos, ainda que tivessem atuado com a mais reta

consciência, por ignorarem leis que estavam fora do alcance do conhecimento, ou

seja, escritas em linguagem confusa, de interpretação difícil e de aplicação arbitrária.

Além disso, havia uma reação contra os excessos legislativos do estado autoritário.

Assim, foi preservada a relevância do erro de direito e impediu-se a propagação do

princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal.131

Entretanto, em outros países, como na França, na Itália e em Portugal, a

questão do erro de direito caminhou progressivamente em direção à máxima “nul

n‟est censé ignorer la loi pénale” (não é desculpa ignorar a lei penal), em razão da

convergência de alguns fatores. Por um lado, havia o silêncio dos autores sobre o

assunto. Conforme já explicitado, Beccaria negou relevância à intenção do agente,

estabelecendo como questão fundamental o dano produzido pela conduta. Diante

disso, contata-se que o marquês de Beccaria não tratou do problema do erro em

Direito Penal.132

Além da doutrina, o Código Penal francês de 1810 silenciou sobre o tema do

erro, como também a jurisprudência dos países supracitados elevou o princípio da

inescusabilidade da ignorância da lei penal à categoria de máxima intocável.133

Nesse contexto, as grandes codificações do Direito Penal acolheram a regra

da inescusabilidade da ignorância da lei no direito positivo, com algumas

concessões, a exemplo dos “crimes de direito positivo” no Direito Penal francês.134

Observe-se que, almejando a superação das injustiças decorrentes do

entendimento de que o erro de direito é inescusável, a doutrina, principalmente a

italiana, passou a distinguir o erro de direito penal do erro de direito extrapenal. O

primeiro, referente à ignorância da lei penal, não escusa. Já o erro de direito

130 TANGERINO, 2009p.35. 131 DIAS, 2009, p.43. 132 DIAS, op. cit., p.43-44. 133 DIAS, loc. cit. 134 MOTTA, 2009, p.36.

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extrapenal, que incide sobre normas extrapenais é escusável, aplicando-se o

mesmo tratamento oferecido ao erro de fato.135

Atualmente, tanto na Alemanha quanto na Itália, a jurisprudência e a doutrina,

em sua maioria, entendem que a antiga dicotomia “erro de fato – erro de direito” (ou

a atual distinção “erro de tipo-erro de proibição”) não funciona como fundamento

para a relevância ou não do erro, mas sim como mera justificativa formal de

soluções. As decisões sobre a relevância do erro pautam-se, no fundo, por

considerações de culpa e de justiça material.136

Para um melhor entendimento sobre a atual distinção entre erro de tipo e erro

de proibição, relevante, no Brasil e em diversos outros países, para a delimitação de

seus efeitos jurídicos, mister se torna a análise da evolução do conceito de

culpabilidade, a qual será tratada no próximo capítulo.

135 MOTTA, 2009, p.36. 136 DIAS, 2009, p.49.

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CAPÍTULO II

TEORIAS DA CULPABILIDADE E OS RESPECTIVOS TRATAMENTOS SOBRE A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

2.1 O SISTEMA CLÁSSICO E A TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE

Na segunda metade do século XIX, ocorre uma mudança no panorama do

pensamento europeu, dado que as ciências particulares galgam um lugar de

destaque em prejuízo das ideias metafísicas e filosóficas.

Merece destaque o positivismo jurídico, que determinava a atuação do jurista

restrita ao Direito Positivo e à sua interpretação, excluindo-se as valorações de

ordem filosófica. Caracterizava-se, outrossim, por uma perspectiva extremamente

naturalista, razão pela qual apenas se centrava no mundo físico, tendo nítida

preferência pela cientificidade, relegando os conhecimentos psicológicos e sociais.

Em consequência, a teoria da liberdade de vontade ficou enfraquecida, tornando-se

inadmissível o conceito de culpabilidade concebido pelo Direito Natural.

Importa destacar que a análise específica do positivismo jurídico será

realizada em momento posterior do presente trabalho, ocasião em que se buscará

cotejar a vertente doutrinária aos estudos concernentes ao desconhecimento da lei

como causa de redução de pena.

A partir do momento em que Franz Von Liszt iniciou o desenvolvimento da

moderna teoria do delito, arrimada na distinção entre antijuridicidade e culpabilidade,

surgiram diferentes concepções de culpabilidade, as quais correspondem às

diversas fases da evolução da teoria do crime.

O sistema clássico de delito (ou causal-naturalista), no qual se integra a teoria

psicológica da culpabilidade, foi desenvolvido na Alemanha, nas últimas décadas do

século XIX, por Franz von Liszt e difundido na Europa por Ernst von Beling,

principais representantes da Escola Positivista-Naturalista137, cuja influência

encontra-se no positivismo jurídico e no naturalismo.

Franz von Liszt foi o primeiro expositor da concepção psicológica. Porém, foi

Beling quem contribuiu decisivamente para a sua difusão, razão por que ela é

137 Não se pode confundir com a Escola Positiva, também denominada Positivismo

Criminológico, da qual se destacam os estudos de Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo.

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conhecida como sistema Liszt-Beling. Vale aduzir que foi von Beling quem

desenvolveu um componente estrutural para a teoria do delito, a saber, a tipicidade,

a qual se juntou à antijuridicidade e à culpabilidade na formação do conceito

tripartido de crime. Comenta Córdoba Roda que o tipo, em Beling, alheio à influência

própria da filosofia dos valores, tem um caráter puramente neutro e descritivo, por

representar um simples deslocamento ou tradução da realidade para o conceitual.

Entre a ação e o tipo havia uma simples relação de subsunção.138

Hans Welzel denomina o sistema clássico de delito de Liszt-Beling-Radbruch,

por Radbruch ter defendido o conceito causal de ação, o qual exige unicamente a

causalidade da vontade em relação ao fato, e que remete completamente à

culpabilidade o problema de qual era o conteúdo do querer.139

Diante do exposto, deve-se sempre ter em mente que o sistema causalista

corresponde à ideia da ciência do Direito em seu tempo e espaço, bem como se

identifica com os aspectos íntimos de um povo e sua cultura. De fato, esse

pensamento jurídico-penal foi construído sob a influência do positivismo, para o qual

ciência consitui apenas aquilo que pode ser mensurável, ou seja, apreendido pelos

sentidos. Observaremos, então, que os conceitos referentes aos elementos do delito

e sua estrutura foram construídos com essa base de cunho positivo-naturalista.

2.1.1 A ação causal

Para a concepção causalista, a ação é a produção de um resultado mediante

o uso de forças físicas, perceptível do ponto de vista material, “devida à tensão

muscular, no delito comissivo e ao descanso físico, no delito omissivo”.140

A ação era concebida como puro processo causal externo, desprovida de

valor, dado que o anímico, o psíquico era uma questão relativa à culpabilidade. Daí

se conduziu a um sistema bipartido, no qual identificava no crime um elemento

objetivo e um subjetivo.

Por essa razão, a teoria clássica do delito desenvolveu-se pela divisão da

infração penal em partes separadas pela percepção dos sentidos: a externa e a

interna. A parte externa refere-se à antijuridicidade, enquanto a parte interna atribui-

138 CÓRDOBA RODA, 1963, p.13. 139 WELZEL, 1993, p.46. 140 MAURACH, 1966, p.23.

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se à culpabilidade. Esta se apresenta como o conjunto de elementos subjetivos do

fato.141

Além disso, a ideia de causalidade consubstanciava-se em elemento definidor

fundamental do delito. Assim como o injusto é definido a partir do conceito de

causalidade, como causação de um ato lesivo, a culpabilidade se concebe como

uma relação de causalidade psíquica, como o nexo entre a mente do sujeito e o

resultado. O delito aparece, assim, como resultado de uma dupla vinculação causal:

a relação de causalidade material dá lugar à antijuridicidade e a conexão de

causalidade psíquica consiste na culpabilidade.142

Nessa ordem de ideias, lecionam Zaffaroni e Pierangeli:143

culpabilidade era a relação psicológica que havia entre a conduta e o resultado, assim como a relação física era a causalidade. O injusto se ocupava, pois, dessa causalidade física – causação do resultado -, enquanto à culpabilidade cabia a tarefa de tratar a relação psíquica. O conjunto de ambas as relações dava por resultado o delito.

2.1.2 Culpabilidade como categoria autônoma do delito

Com efeito, até o surgimento da concepção psicológica, ilicitude e

culpabilidade confundiam-se, não havendo diferenciação em seus conceitos que

faziam parte, assim, de uma categoria única na estrutura do delito. Foi com a teoria

psicológica que a culpabilidade se firmou como categoria lógico-jurídica autônoma,

desvinculada da ideia de ilicitude. Para a doutrina naturalista ou causal da ação,

destarte, a culpabilidade consiste na ação psicológica entre o fato e o seu agente.

Franz von Liszt apresenta a culpabilidade, em seu sentido mais amplo, como

a responsabilidade do autor pelo ato ilícito que tenha realizado. O juízo de

culpabilidade expressa a consequência ilícita que traz consigo o fato cometido e o

atribui à pessoa do infrator. No sentido estrito, o penalista aduz que a culpabilidade é

tão somente a relação subjetiva entre o ato e o autor.144

De maneira minuciosa, conceitua Aníbal Bruno a culpabilidade em seu estrito

sentido, segundo a teoria psicológica, como “uma situação interior, fase subjetiva do

141 MIR PUIG, 2002, p.517. 142 MIR PUIG, loc. cit. 143 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p.523. 144 VON LISZT, 1999, p.387-388.

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crime – vontade consciente dirigida no sentido do ato criminoso, ou simples falta ao

dever de diligência, de que provém um resultado previsível de dano ou de perigo”.145

Pode-se destacar como grande defensor desta teoria, no Brasil, Basileu

Garcia:146

A culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu autor. Reveste, no Direito Brasileiro, as formas de dolo e culpa. [...] Decomposto idealmente o delito nos seus dois elementos – o subjetivo, também chamado psíquico ou interno, e o objetivo, também denominado material, físico ou externo – a culpabilidade integra o primeiro desses elementos, coincide com ele.

Na América Latina, um dos seguidores dessa concepção foi Sebastian Soler,

nada obstante entender equivocada a sua denominação. Para o autor, a concepção

psicológica da culpabilidade é extremamente vantajosa, do ponto de vista teórico,

sobretudo por sua simplicidade pedagógica. Entretanto, segundo Soler, não há

teoria da culpabilidade que represente um psiquismo puro. Além da conexão

psicológica com o resultado, deveria haver uma relação do sujeito com as normas e,

portanto, uma valoração normativa. O sujeito não é apenas dotado de psiquismo,

mas também partícipe da ordem jurídica, inserido em suas valorações.147

2.1.3 A imputabilidade como precedente da culpabilidade

Para a teoria psicológica da culpabilidade, a imputabilidade constitui-se em

elemento precedente necessário da culpabilidade,148 sendo também chamada de

“capacidade de culpabilidade”. Não se trata, portanto, de elemento da culpabilidade,

mas de requisito necessário para a sua análise. Para que a culpabilidade mereça

145 BRUNO, 2005, p.15. 146 GARCIA, 2008, p. 349-350. 147 O autor afirma: “Nuestro ponto de vista pone de manifesto que, si bien la culpabilidad

como hecho es algo psíquico, el concepto de culpabilidad no es puramente psicológico, pues sólo puede hablarse de culpas cuando las acciones son referibles a uma esfera de normas. La naturaleza de la culpabilidad está dada por el modo de referencia de la personalidad a las normas.” (SOLER, 1951, p. 72.)

148 Vale mencionar que Franz von Listz diferencia dois elementos da imputação contida no juízo de culpabilidade: a) A imputabilidade do autor, a qual se dá com aquele estado psíquico do autor que o garanta a possibilidade de conduzir-se socialmente, ou seja, com a faculdade que tem o agente de determinar-se, de um modo geral, pelas normas da conduta social, da religião, da moral, etc; b) A imputação do ato, a qual se dá quando o autor conhecia a significação antissocial de sua conduta ou quando podia e devia conhece-la; ou seja, quando o agente , no caso concreto, não tenha sido determinado pelas normas de conduta social (LISZT, 1999, p.389).

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consideração do Direito, importa que o sujeito tenha capacidade de compreender o

caráter ilícito do fato ou de orientar sua conduta de acordo com esse entendimento.

Essa teoria, portanto, contém um aspecto importante centrado na pessoa do agente

transgressor, sua capacidade, sem a qual não pode haver a correspondente

responsabilização.

Expõe Aníbal Bruno três momentos da posição do agente perante a lei penal,

segundo a teoria sob apreciação, a saber: “imputabilidade, culpabilidade e

responsabilidade penal. Imputabilidade que é a capacidade de entender e de querer;

culpabilidade, que é aquele vínculo psíquico suficiente para prender o agente,

imputável, ao fato, como seu autor; e responsabilidade, que é o dever jurídico que

incumbe ao imputável, culpado de determinado fato punível, de responder por ele

perante a ordem de Direito”.149

2.1.4 O dolo e a culpa

O dolo e a culpa são considerados não apenas como espécies da

culpabilidade, mas também a sua totalidade, tendo em vista que são formas

concretas pelas quais se pode revelar o vínculo psicológico entre o autor e a

conduta perpetrada.150

Trata-se de uma evolução no estudo da responsabilidade penal, haja vista

que a responsabilidade penal passa a ser subjetiva, por meio do exame do dolo e da

culpa do agente, e não apenas da causação do dano.151

No que tange à consciência da antijuridicidade, insta notar que o tratamento

não era uniforme. Havia divergência quanto à autonomia da consciência da ilicitude

entre os próprios sistematizadores da teoria causal-naturalista: von Liszt rejeita-a e

Beling confere-lhe relevância. Dessa forma, o dolo era natural ou psicológico para os

autores que não consideravam a consciência da ilicitude. De outra parte, para os

149 BRUNO, 2005, p.15-16. 150 Assis Toledo critica a teoria psicológica, comparando-a com o entendimento do dolo no

direito romano. Para o autor, “o conceito de dolo entre os romanos não era puramente psicológico. Ao contrário, apresentava-se mais complexo e enriquecido”. Ademais, o penalista explica que a “noção psicológica do dolo tem apoio na interpretação de preceitos do Código italiano (o famoso Código Rocco).” (TOLEDO, 1994, p.221).

151 GOMES, 2001, p.37.

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que admitiam a consciência da antijuridicidade, o dolo era normativo ou, tal como

denominavam os romanos, “dolus malus”.152

Demonstradas as bases do conceito psicológico da culpabilidade, torna-se

necessário examinar as principais críticas formuladas em seu desfavor.

2.1.5 Críticas ao conceito psicológico da culpabilidade

A concepção psicológica da culpabilidade mostrou-se insuficiente, pois que

não explica as questões da culpa inconsciente, do doente mental, do estado de

necessidade exculpante, do erro de proibição, da coação moral irresistível, dentre

outras.

De fato, na culpa inconsciente, o resultado, conquanto previsível, não foi

sequer previsto pelo agente e, assim sendo, não houve ligação psicológica entre o

autor e o fato delituoso.

Diante dessa incongruência, alguns doutrinadores pensaram que a culpa

inconsciente não seria um problema de direito penal. Não representava a

culpabilidade, mas sim uma “contravenção culpável de diferentes classes de

normas”.153 Outros, tal como Radbruch, sustentaram a unidade do dolo e da culpa.

Jiménez de Asúa ensina que, para Radbruch:

El concepto de culpa pertenece unicamente la exigência de la imprudência, de la no previsión del resultado previsible. La valuación debe ser, pues, eliminada y sólo queda el hecho, consecuencia de lo cual es que, entonces, se podrá facilmente llevar la culpa junto al dolo, bajo um concepto único que les abarque.154

Percebe-se, portanto, a falta de coerência da teoria sob análise ao definir a

culpabilidade como algo exclusivamente psíquico e incluir a culpa como uma das

suas espécies, notadamente no que se refere à culpa inconsciente, visto que na

culpa não há a vontade, ou seja, falta-lhe nexo de correspondência com o resultado

e, na culpa inconsciente, sequer há a previsão do resultado delituoso por parte do

agente.

Em se referindo à questão do doente mental, para a maioria dos defensores

da teoria psicológica, por ele ser inimputável torna-o inculpável e, dessa forma,

152 TAVARES, 1980, p.25. 153 BRUNONI, 2010, p. 141. 154 JIMÉNEZ DE ASÚA, 1956, p.286.

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como a imputabilidade é um pressuposto da culpabilidade, sequer se chega à

valoração da existência de dolo ou culpa. Contudo, decerto que ele age com uma

relação psicológica, razão por que não se poderia afastar a existência do delito em

sua conduta.

Diante do entrave, expõem Zaffaroni e Pierangeli as duas correntes que

tentaram contorná-lo, mas que não lograram êxito; uma, já acima exposta, no

sentido de a imputabilidade servir como pressuposto da culpabilidade; a outra,

minoritária, defendendo a inimputabilidade como causa de exclusão da pena, mas

não do delito:

Alguns tentaram contornar este inconveniente, afirmando que a imputabilidade é um pressuposto da culpabilidade, o que, evidentemente, não é correto, porque o mais frequente será que o doente mental aja com capacidade para uma relação psicológica, isto é, para o dolo. Outros, em franca minoria, são mais coerentes quanto ao sistema que defendem e afirmam que a inimputabilidade é uma simples causa de exclusão da pena, mas não do delito. O certo é que o problema da culpa, tal como o da imputabilidade, não podia ser satisfatoriamente resolvido dentro desta concepção.155

Ademais, registre-se que a concepção psicológica não explica

adequadamente as hipóteses do estado de necessidade exculpante,156 da coação

moral irresistível, nem a do erro de proibição. Nesses casos, para a teoria

psicológica, a inculpabilidade decorre da ausência de dolo, já que este pressupõe

uma vontade livre e consciente. No entanto, nota-se que há, nos casos apontados,

um vínculo psicológico entre o ato e seu autor e, desse modo, a culpabilidade não

poderia ser excluída pela falta do dolo.

Ronaldo Tanus Madeira aduz que o dolo e a culpa, para a teoria sob exame,

são frutos da criação do legislador, possuindo uma existência apenas jurídica:

155 ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p.523. 156 No estado de necessidade exculpante, o sujeito atua dolosamente e, mesmo assim, não

é considerado culpável, por sacrificar um bem jurídico de igual valor ao preservado, representando, dessa forma, um entrave para a aceitação da teoria psicológica. Ressalte-se que o tema do estado de necessidade exculpante é bastante discutido na doutrina brasileira, já que a legislação não é expressa quanto à ponderação de bens, como também não define a natureza dos bens em conflito. A maioria dos doutrinadores orienta-se no sentido de que o art. 24 do Código Penal apenas cuida do estado de necessidade como excludente de ilicitude. Assim, o entendimento majoritário é o de que direito brasileiro acolheu a teoria unitária, segundo a qual o estado de necessidade exclui sempre a ilicitude, e não a teoria diferenciadora, a qual preceitua que o estado de necessidade pode excluir tanto a ilicitude (quando se preserva um bem maior em sacrifício de um bem menor) quanto a culpabilidade (no caso em que há o sacrifício de um bem jurídico igual ao preservado).

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Para a teoria psicológica da culpabilidade, os menores, os doentes mentais e os que atuam sob coação moral irresistível ou em estado de necessidade não atuam dolosa nem culposamente. Isto porque, a teoria psicológica da culpabilidade, de cunho eminentemente formal, dá ao dolo e à culpa um conteúdo existencial puramente jurídico. O dolo e a culpa são uma criação do legislador, possuindo uma existência puramente jurídica.157

Ressalte-se, ademais, a crítica de Welzel sobre a teoria psicológica porquanto

também existem elementos subjetivos nas causas de justificação, sendo impossível

fazer a separação entre a parte externa e a interna.158

Por fim, observa-se que a concepção psicológica não permite a graduação da

culpabilidade, em razão da rigidez de suas categorias sistemáticas. A culpabilidade

puramente psicológica passou, atualmente, a chamar-se de aspecto subjetivo do

tipo.

Ante os problemas elencados, restou demonstrada a impossibilidade de se

conceituar a culpabilidade de forma totalmente psicológica, tornando-se

imprescindível a existência de caracteres normativos para a sua definição. Inclusive,

vale destacar que o principal articulador da teoria psicológica, Franz von Liszt,

modificou o seu entendimento, na 25ª edição de Lehrbruch, passando a posicionar a

culpabilidade no esquema normativista, se bem que com um elemento estranho,

qual seja, o caracterológico. Para o penalista, a culpabilidade não apenas supõe a

comprovação do distanciamento entre a conduta do agente e a exigência jurídica,

como também “suscita o problema do porquê o processo de motivação foi

defeituoso, acarretando, então, na valoração do caráter do autor e no

reconhecimento de sua perigosidade, isto é, na disposição anti-social do sujeito”.159

Não se pode negar o aspecto positivo da teoria psicológica no que se reporta

à clara sistematização, nem tampouco o benefício que trouxe para o Direito Penal,

em razão da defesa de uma imputação pessoal e subjetiva.

Sucede que toda concepção de culpabilidade está ligada a seu tempo e ,

nesse período, o direito era considerado como qualquer outra ciência exata ou da

natureza. Assim, referida concepção não pôde subsistir devido às inúmeras

incongruências já expostas, como também ao problema de que, segundo aduz

157 MADEIRA, 1999, p.61. 158 WELZEL,1993, p.130. 159 MACHADO, 2010, p.48.

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Reale Júnior, “[...] a culpabilidade psicológica não respondia, na verdade, ao

imperativo de individualização e eticização da responsabilidade”.160

De fato, foi apenas com a admissão dos elementos normativos na

culpabilidade, conforme veremos mais adiante, que se passou a atender, de melhor

forma, ao princípio da individualização da pena e à responsabilidade penal subjetiva.

2.2 A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE

Conforme já exposto no primeiro capítulo, a plasticidade das soluções, no que

concerne à ignorância da antijuridicidade, adotadas pelo direito romano, canônico e

pelo direito italiano intermédio, desapareceu com as primeiras codificações no

Direito Penal. A preocupação com a obrigatoriedade da lei preponderou em relação

ao critério da culpabilidade e passou-se, portanto, a adotar a regra da absoluta

inescusabilidade da ignorância do ilícito por erro de direito.161

O dolo, conforme já exposto no presente trabalho, compunha-se apenas de

dois elementos, a saber, um intelectivo, constituído pela representação do resultado

e um volitivo, referente à manifestação de vontade. Note-se que a consciência da

antijuridicidade, como elemento normativo, foi afastada do conceito de dolo pela

maioria da doutrina que perfilhava o sistema causalista de ação.

Nesse sentido, Franz von Listz enunciou que “o dolo, pois, deve definir-se, em

primeiro lugar, como a representação do resultado, que acompanha a manifestação

de vontade”,162 não havendo necessidade da consciência da antijuridicidade.

Também segue essa linha de preleção Manzini, ao aduzir que a noção de delito

doloso decorre da consciência e da voluntariedade, uma vez que o agente deve

prever e querer a consequência de sua ação. Já a consciência da antijuridicidade

“não é necessária para a existência do dolo; se fosse, implicaria uma investigação

que, muitas vezes, invalidaria os preceitos penais”.163

No entanto, alguns doutrinadores propugnavam pela presença da consciência

da antijuridicidade no dolo. Carrara, por exemplo, conceituava o dolo como “intenção

160 REALE JUNIOR, 2000, p.129. 161 MUNHOZ NETTO, 1978, p.42. 162 LISZT, [19--], p.410 apud BRANDÃO, 2010, p. 229. 163 MANZINI, 1948, p.159 apud BRANDÃO, loc cit.

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mais ou menos perfeita de praticar um ato que se sabe contrário à lei”, sendo

exigido apenas o conhecimento da lei em sua forma potencial.164

Há uma incongruência, ao nosso modo de pensar, em se aceitar a existência

do “dolus malus”, carregado de elemento normativo, de valoração e, ao mesmo

tempo, defender-se uma teoria psicologicamente neutra da culpabilidade.

De fato, prevaleceu o entendimento de que o dolo passa a ser considerado

natural, não mais sendo composto pela consciência da antijuridicidade, mas apenas

pela previsibilidade aliada à vontade da realização do fato. Há um abandono,

portanto, do conceito de dolo formulado pelos romanos.165

Para a teoria psicológica da culpabilidade, portanto, a causalidade se

encontrava caracterizada na tipicidade e na antijuridicidade. Por outro lado, o vínculo

subjetivo constituía a essência da culpabilidade. Desse modo, havia uma concepção

puramente objetiva do injusto.

Seguindo essa tendência, o sistema causal-naturalista acolheu, com base em

von Ihering, o conceito de antijuridicidade objetiva e, dessa concepção, alguns

adeptos do sistema, a exemplo de von Liszt, concluíram pela irrelevância do erro de

direito. Em se admitindo que a antijuridicidade é objetivamente determinada, por

meio de falso silogismo, conclui-se que são inadmissíveis erros incidentes sobre a

ilicitude.166

Entretanto, posteriormente, houve a descoberta de elementos subjetivos do

injusto, apontados por Hegler e Max Ernest Mayer, bem como desenvolvidos por

Mezger. Assim, a clássica bipartição do delito em parte objetiva (injusto) e parte

subjetiva (culpabilidade) não mais poderia ser sustentada.167

Perecebe-se, pois, que, à época da teoria psicológica da culpabilidade,

prevaleciam a antiga dicotomia romana “erro de fato-erro de direito” e o princípio

romano “error iuris nocet”, ou seja, o erro de direito era inescusável, com a exceção,

admitida em alguns países, ao erro de direito sobre lei extrapenal, que então era

equiparado ao erro de fato, tal como ocorria, por exemplo, na França, na Espanha e

na Alemanha.168

164 CARRARA, 1956 apud BRANDÃO, 2010, p. 230. 165 BRANDÃO, 2010, p. 230. 166 GOMES, 2001, p.41; 43. 167 Ibidem, p.40. 168 Ibidem, p. 42-44.

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2.3 SISTEMA NEOCLÁSSICO DO DELITO E A TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE

Desde o seu surgimento, a dogmática jurídico-penal vem evoluindo de modo

a atender às exigências sociais de cada época. Assim, como as regras da natureza

já não mais satisfaziam as soluções de todas as questões, o sistema neoclássico

desponta com as regras de valores, influenciado pelas ciências humanas.

2.3.1 Influências

Como reação às concepções causais-naturalistas fundamentadoras do

sistema Liszt-Beling, exsurge a teoria teleológica do delito, ligada à teoria do

conhecimento da filosofia do neokantismo, revigorando o método da significação e a

valorização das ciências hermenêuticas. Cuida-se do abandono do naturalismo ou

positivismo para a inserção, no Direito Penal, do normativismo axiológico.169

Assim, verifica-se que o neokantismo, com base na supervalorização do

dever ser, por meio da introdução de considerações axiológicas, acaba por substituir

o positivismo-naturalista. A ciência do Direito, diferentemente das ciências naturais,

preocupa-se com os “fins” e não com as “causas”. Em razão disso, há uma

independência entre elas. Ao lado das ciências naturais, mas separadamente delas,

cabe ao Direito promover e construir uma ciência de fins humanos.170

Sucede que as questões da vida em sociedade não mais poderiam ser

solucionadas pelas leis da natureza. O sistema neoclássico do delito visa a

compreender os fatos, atribuindo-lhes finalidades e valores. Sendo assim, a conduta

passou a ter um significado social, e não um mero movimento corporal.

2.3.2 Reinhard Frank e a Normalidade das Circunstâncias Concomitantes

Reinhard Frank é considerado o fundador da teoria normativa da

culpabilidade,171 também denominada de psicológico-normativa, por ter concebido,

169 GOMES, 2001, p.60. 170 MASSON, 2010, p.72. 171 BITENCOURT, 2006, p.420; TOLEDO, 1994, p.223.

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no início do século XX, a culpabilidade como reprovabilidade da conduta típica e

ilícita.

Entretanto, Frank também admitiu a culpabilidade como relação psíquica

entre o agente e o resultado delituoso, por meio dos elementos psicológicos

traduzidos no dolo e na culpa. Sendo assim, a culpabilidade passa a ser tida como

uma relação psicológica e um juízo de reprovação.

O dolo e a culpa, por conseguinte, deixam de ser espécies da culpabilidade,

para se tornarem elementos dela, insuficientes para completarem o seu conceito, já

que também se exigem a imputabilidade e a normalidade das circunstâncias

concomitantes do fato punível. Além disso, o dolo exige a consciência da

antijuridicidade, constituindo-se em elemento psicológico-normativo da culpabilidade.

O dolo, para a teoria psicológico-normativa, é considerado como “vontade e

previsibilidade aliadas ao elemento normativo consciência da antijuridicidade”.172 Há

uma censura ao fato em razão de o indivíduo ter podido conhecer a ilicitude de sua

vontade. Assim, o dolo se constitui não apenas pela consciência e vontade de

realizar os elementos integrantes do tipo, mas também pela consciência atual do

injusto.

Não se pode olvidar que a obra de Frank de 1907 (Sobre a estrutura do

conceito de culpa) refletiu a tendência da dogmática penal, desde o início do século

XX, da superação do positivismo-naturalista pela metodologia neokantiana do

chamado “conceito neoclássico do delito” e da substituição de conceitos

naturalísticos e descritivos por conceitos normativos e valorados da culpabilidade.173

Reinhard Frank inicia o seu trabalho criticando a concepção psicológica da

culpabilidade e aduz que o posicionamento de von Liszt traduz-se num círculo

vicioso, tendo em vista que, à indagação de quando uma pessoa é penalmente

punível por seu comportamento, responde-se: quando seu comportamento é

culpável. E à pergunta sobre quando seu comportamento é culpável, responde von

Liszt: quando a pessoa é responsável por seu comportamento.174

Frank adverte que deve ser observado o uso da linguagem cotidiana em

comparação com o significado jurídico e nos oferece o exemplo de um caixa de uma

casa comercial e de um carteiro encarregado de fazer entrega de um dinheiro, os

172 BRANDÃO, 2010, p.231. 173 FRAGOSO, 1995, p.195; BITENCOURT, 2006, p.422. 174 FRANK, 2000, p. 26.

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quais cometem, separadamente, o delito de apropriação indébita. Ocorre que o

primeiro dispõe de boa condição financeira, não tem família e tem custosas

amantes. O segundo recebe um módico salário, sua mulher está enferma e tem

vários filhos pequenos. Apesar de ambos saberem que se apropriam ilicitamente de

dinheiro alheio e de não haver diferença alguma com relação ao dolo, todos dirão

que a culpabilidade do caixa é maior.175

Percebe-se, por essa passagem, a preocupação de Frank com os valores

sociais, com o que o povo concebe como culpabilidade, diferentemente da

culpabilidade do sistema causalista, que era considerada de acordo com as regras

da natureza. Para Frank, importam as regras sociais, ou, melhor dizendo, da cultura.

Segundo o autor, a linguagem comum e o fato de os tribunais considerarem

as circunstâncias concomitantes, para atenuar ou aumentar a culpabilidade, a

normalidade das circunstâncias em que atua o agente também deve integrar o

conceito de culpabilidade. Frank também critica a concepção de que imputabilidade

seja pressuposto da culpabilidade, porque um enfermo mental pode querer a ação e

concretizar o delito (agir com dolo). Nessa medida, Radbruch já discordava do

entendimento segundo o qual a imputabilidade seria pressuposto da culpabilidade.

Radbruch considerava a imputabilidade não como culpabilidade, mas como

capacidade de pena, segundo preleciona Frank.176

Diferentemente de Radbruch, entende Frank que a imputabilidade faz parte

da culpabilidade e aponta como uma das vantagens dessa interpretação a doutrina

da participação, visto que o inimputável partícipe da infração penal é inculpável em

razão de sua inimputabilidade. Porém, sua atuação é considerada no sentido

jurídico, por ter praticado o fato delituoso com dolo ou culpa.177

Diante do expendido, verifica-se que, para Reinhard Frank, a culpabilidade se

forma pela concorrência dos seguintes elementos: a) dolo ou culpa; b)

imputabilidade; c) normalidade das circunstâncias em que atua o agente.

Apesar de Frank ter estruturado o conceito de culpabilidade de forma

condizente com o juízo de valor negativo sobre o autor, ou seja, de acordo com uma

concepção normativa, nota-se que não houve um desenvolvimento detalhado do que

175 FRANK, 2000, p. 28. 176 Ibidem, p.35. 177 Ibidem, p.36.

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seja “reprovabilidade”, como também o termo “normalidade das circunstâncias

concomitantes”178 é dotado de muita vagueza.

Ademais, Frank recebeu críticas da doutrina alemã, no sentido de que o

elemento “circunstâncias anormais” é estranho ao agente e, por isso, não pode ser

considerado na normatização da culpabilidade. Ante tais críticas, Frank modificou a

sua concepção, “excluindo a normalidade das circunstâncias como elemento da

culpabilidade, substituindo-a pela relação entre as circunstâncias e o agente, o efeito

delas sobre este”.179 Então, a denominada “normalidade das circunstâncias” passou

a ser chamada de “normalidade da motivação”.

James Goldschmidt tece críticas à admissão da “motivação normal” ou

“circunstâncias concomitantes” como elemento normativo da culpabilidade.

Segundo o autor, a “motivação normal” é um elemento psíquico da culpabilidade,

assim como a imputabilidade, o dolo e a culpa. Para Goldschmidt, a característica

“normativa” da culpabilidade deve ser sempre uma vinculação normativa do fato

psíquico.180

Assim, Goldschmidt não apenas criticou o conceito de culpabilidade de Frank,

no sentido de que não era puramente normativo, como também trouxe uma

definição de reprovação com base na violação de uma norma de dever, conforme

traçaremos no tópico seguinte.

2.3.3 Goldschmidt e a distinção entre norma jurídica e norma de dever

Goldschmidt desenvolveu a teoria psicológico-normativa, fundamentando o

conceito normativo de culpabilidade na diferença entre “norma jurídica” e “norma de

dever”. Para o autor, norma jurídica relaciona-se com a antijuridicidade, é de caráter

objetivo e geral. A norma de dever é independente da norma jurídica e se vincula à

culpabilidade, sendo de caráter subjetivo e individual. Segundo ele, “ao lado de cada

norma de direito que determina a conduta exterior, há uma norma de dever que

exige uma correspondente conduta interior”. Assim, o autor traz a vontade contrária

178 Impende informar que Frank, na 8ª – 10ª edição de sua obra modifica a expressão

“circunstâncias normais concomitantes” para “motivação normal” apud GOLDSCHMIDT, 2002, p.84).

179 REALE JUNIOR, 2000, p.132. 180 GOLDSCHMIDT, 2002, p.87-88.

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ao dever para a construção do conceito de culpabilidade. A norma de dever impõe

ao indivíduo motivar sua conduta conforme a representação que tenha da

possibilidade de ela estar proibida pela norma jurídica.181

Note-se que, no tocante aos elementos da culpabilidade traçados por Frank

(dolo ou culpa, imputabilidade e “motivação normal”), Goldschmidt considera-os

como pressupostos da culpabilidade. Esta se dá apenas em razão da vontade

contrária ao dever.182

No que diz respeito à doutrina brasileira, Reale Júnior critica a dicotomia

estabelecida por Goldschmidt entre norma de direito e norma de dever, assinalando

que a norma jurídica não se refere apenas a comportamentos exteriores, já que ela

se impõe como um valor, um dever ser. A imperatividade da norma constitui a sua

própria razão de ser, senão vejamos:

O direito impõe valores e se impõe como valor. Assim sendo, a norma jurídica não proíbe apenas comportamentos exteriores, nem a determinação à obediência pode ser fixada autonomamente, pela norma de dever, que deve coexistir ao lado da norma jurídica. A imperatividade da norma não é autônoma, mas constitui a sua própria ratio essendi.183

2.3.4 Berthold Freudenthal e a inexigibilidade de conduta diversa

Berthold Freudenthal foi o terceiro autor que contribuiu para a elaboração da

teoria psicológico-normativa, pois que elencou a inexigibilidade de conduta diversa

na formulação do juízo de censura. Para Freudenthal, a exigibilidade de um

comportamento conforme o direito era o elemento que diferenciava a culpabilidade

da inculpabilidade.

O autor, assim como fez Reinhard Frank e com base num sistema teleológico

referido a valores, compara a culpabilidade na linguagem dos leigos com a dos

juristas e, segundo Freudenthal, aqueles consideram insuportável a condenação de

um inocente. Porém, algumas vezes, os juristas declaram culpável o sujeito que, na

linguagem do povo, nada poderia ter feito, ou seja, agiu como qualquer outro teria

feito no seu lugar. Para Freudenthal, o povo aceita tais condenações porque lhe são

inacessíveis os conceitos técnicos do Direito Penal, que se converte em uma ciência

181 GOLDSCHMIDT, 2002, p.90-91; BITENCOURT, 2006, p.421; BRUNO, 2005, p.17. 182 GOLDSCHMIDT, op. cit., p.86. 183 REALE JUNIOR, 2000, p.135.

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oculta. Contudo, tal aceitação não pode ser feita pelo Estado e cabe aos juristas

evitar o deplorável abismo entre o povo e o Direito.184

Nesse sentido, pode-se dizer que o instituto do erro de proibição pode ser

apontado como um exemplo específico, por vezes, do descompasso existente entre

a produção normativa e a sua recepção pelos destinatários. Relação que será mais

bem explorada em posterior análise a ser efetuada no bojo deste trabalho.

Retomando a exposição, constata-se que Freudenthal buscou diminuir a

distância entre a consciência popular e a legislação por meio do elemento normativo

da exigibilidade de conduta conforme o direito quando o agente deveria e poderia

agir de outra forma.

Freudenthal aponta decisões do Tribunal Supremo da Alemanha, nas quais

seus membros declararam que o pressuposto da admissão da culpa reveste-se na

dúplice comprovação: por um lado, objetiva, respeitante ao cuidado devido; por

outro, referente à evitabilidade subjetiva. Além disso, comenta decisões segundo as

quais a exigibilidade de não execução do fato é questão que tem de ser estabelecida

em concreto, de maneira individualizada.185

Para o autor, a sua teoria não é mais do que a concretização do princípio

impossibilium nulla est obligatio (nula é a obrigação impossível) no âmbito da

doutrina jurídico-penal do dolo.186

A concepção de Freudenthal foi objeto de muitas críticas, em razão da

vaguidade do critério para se determinar a exigibilidade ou não da conduta, tais

como a consciência popular e os valores sociais, contrariando a segurança da

ordem jurídica. Nessa linha de intelecção, cumpre transcrever o pensamento de

Aníbal Bruno no sentido de que a aplicação indiscriminada da inexigibilidade de

conduta diversa como causa de exclusão da culpabilidade pode contrariar a

capacidade humana de resistir à pressão dos fatos e, por fim, vai de encontro à

segurança da ordem jurídica:187

O princípio de não exigibilidade, se aplicado com tal indiscriminação, adquiriria amplitude incompatível com os fundamentos do Direito Penal, resultando, por fim, um critério anárquico, contrário à necessária segurança da ordem jurídica. Devemos concordar com MEZGER em que o Direito exige necessariamente esforços e

184 FREUDENTHAL, 2003, p.63-64. 185 Ibidem, p.92-94. 186 bidem, p.98. 187 BRUNO, 1959, p.105. Neste sentido: REALE JUNIOR, 2000, p.136.

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sacrifícios para que se evite a prática de crimes. A não exigibilidade de conduta diversa supõe que a ocorrência excede a natural capacidade humana de resistência à pressão dos fatos, pois se o Direito não impõe heroísmos, reclama uma vontade anticriminosa firme, até o limite em que razoavelmente pode ser exigida de um homem normal.

2.3.5 A concepção normativa de Edmund Mezger

Edmund Mezger, a partir de 1923, tornou-se adepto da teoria normativa da

culpabilidade e foi quem forneceu os contornos definitivos à concepção normativa.188

Mezger conceitua a culpabilidade como “o conjunto daqueles pressupostos da pena

que fundamentam, frente ao sujeito, a reprovabilidade pessoal da conduta

antijurídica. A ação aparece, por isso, como expressão juridicamente desaprovada

da personalidade do agente”.189

Assim, apresenta Mezger a culpabilidade como um juízo valorativo sobre a

situação fática da culpabilidade. Esse juízo refere-se à concepção normativa da

culpabilidade. Segundo o autor, o juízo sobre a situação fática da culpabilidade é

externo à psique do agente, ou seja, cuida-se de um juízo de referência, que se

traduz na imissão de uma valoração sobre o fato praticado. A soma da situação

fática da culpabilidade com o juízo de valor consubstancia-se na culpabilidade como

reprovabilidade. Cumpre trazer à colação os dizeres de Mezger sobre a concepção

normativa da culpabilidade:

A culpabilidade jurídico-penal é, antes de tudo, uma determinada situação de fato, de ordinário psicológica (situação fática da culpabilidade), na qual se conecta a reprovação contra o autor e, consequentemente, a pena que tem de lhe ser aplicada. Neste sentido, a culpabilidade significa um conjunto de pressupostos fáticos da pena situados na pessoa do autor; para que alguém possa ser castigado, não basta que tenha procedido antijurídica e tipicamente, mas é preciso também que sua ação lhe seja pessoalmente reprovada [...] Todavia, a culpabilidade é também, ao mesmo tempo e sempre, um juízo valorativo sobre a situação fática da culpabilidade (a chamada concepção normativa da culpabilidade) [...] A culpabilidade não é, portanto, apenas a situação fática da culpabilidade, mas esta situação fática como objeto de reprovação da culpabilidade [...] Este reconhecimento de que a culpabilidade jurídico-penal não é uma situação de fato psicológica, mas uma situação fática valorizada

188 TOLEDO, 1994, p.223. 189 MEZGER, 1949, p.01-02.

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normativamente, se designa com o nome de concepção normativa da

culpabilidade.190

Dessa maneira, percebe-se que Mezger traça a culpabilidade a partir de um

ponto de vista puramente normativo, e não por dados de caráter ético ou subjetivo. A

definição de culpabilidade baseia-se na reprovabilidade de dado comportamento do

agente, isoladamente considerado.

Em se referindo à ação, segundo a lição de Mezger, ela é ontológica e

finalística, mas que deve ser valorada na culpabilidade, e não na tipicidade. Assim,

Mezger, em momento algum, nega que a ação, ontologicamente considerada, seja

um ato de vontade dirigida a um fim. Porém, para o autor alemão, o conteúdo da

vontade (ou seja, o que o sujeito quer conseguir com sua ação) somente deve ser

objeto de valoração na culpabilidade, sendo formas desta o dolo ou a culpa, com

exceção de alguns tipos delitivos, em que o legislador tenha interesse em dar

relevância penal à conduta, ante a presença de dadas finalidades, motivações ou

desejos.191

Nessa medida, responde Assis Toledo, com base na concepção de Mezger,

às perguntas “o que é a culpabilidade?” e “onde ela se encontra?” da seguinte

maneira:

a)culpabilidade é um juízo de valor sobre uma situação fática de ordinário psicológica; b)os seus elementos psicológicos (dolo ou culpa) estão no agente do crime, mas o seu elemento normativo está no juiz, não no criminoso.192

Esse trecho do texto de Assis Toledo representa uma das grandes críticas à

concepção de Mezger, haja vista que o autor alemão retirou a culpabilidade do

psiquismo do réu para situá-la na cabeça do juiz.193

Realmente, cabe ao juiz realizar a valoração normativa da culpabilidade,

entendida como uma situação fática objeto de reprovação, apesar de os elementos

psicológicos estarem no agente. Reprova-se a situação, e não o homem por ter

cometido a conduta delituosa.

Insere Mezger o dolo e a culpa como duas formas ou elementos de

culpabilidade, e não mais como espécies dela, tal como pretendia Frank.

190 MEZGER, 1949, p.03-05. 191 MEZGER, 1958, p.87-89; MUÑOZ CONDE, 2001, p.82-83. 192 TOLEDO, 1994, p.224. 193 Rosenfeld e Antolisei apresentaram críticas neste sentido (TOLEDO, loc. cit).

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Juntamente com o dolo ou a culpa, integram a culpabilidade: a imputabilidade e a

ausência de causas de exclusão da culpabilidade.194

No que concerne ao dolo, aduz Mezger que “actúa dolosamente el que

conoce las circunstancias de hecho y la significación de su acción y ha admitido en

su voluntad el resultado”.195 Dessa forma, há uma formação dupla do dolo, com um

elemento emocional, qual seja, o querer, e um elemento intelectual, que é a

consciência da antijuridicidade da ação.

Mezger prescreve que o então vigente artigo 59 do Código Penal alemão

exige apenas o conhecimento dos pressupostos do delito e não as consequências

dele. Assim, para o autor, não é necessário conhecer a punibilidade da ação para

que haja o dolo. Basta o conhecimento da significação antijurídica da ação, pois,

segundo a lição de Mezger, “sólo comete dolosamente la acción el que há captado

totalmente, por completo, la significación de la misma; y a ello pertenece sin duda el

saber la significación que la atribuye, al castigarla, el ordenamento jurídico”.196

No que tange à culpa, apenas existente nos casos dispostos em lei, leciona

Mezger que “actúa culposamente el que infringe un deber de cuidado que

personalmente le incumbe y puede prever la aparición del resultado”.197

Além do dolo ou da culpa, para que uma conduta seja culpável, exige-se a

imputabilidade e, segundo Mezger, “es imputable el que posee al tempo de la acción

las propriedades personales exigibles para la imputación a título de

culpabilidade”.198

Explica o autor que a pena deve adaptar-se às peculiaridades da pessoa do

sujeito da infração penal. Ressalte-se que há alguns pressupostos da

imputabilidade, a saber: a) que o sujeito tenha completado quatorze anos no

momento da execução da ação; b) que o jovem maior de quatorze, mas que ainda

não tenha completado dezoito anos, seja capaz, ao tempo do ato, de acordo com

seu desenvolvimento intelectual e moral, de dar-se conta do caráter contrário à lei de

sua conduta e de conformar sua vontade a referido conhecimento; c) que todo autor

194 Nas palavras de Mezger: “Según el Derecho positivo, actúa culpablemente 1. El

imputable que 2. Actúa dolosa o – em los casos especialmente determinados – culposamente y 3. Em cuyo favor no existe ninguna causa de exclusión de la culpabilidade.”( MEZGER, 1949, p.37).

195 Ibidem, p.91. 196 Ibidem, p.139-140. 197 Ibidem, p.171. 198 Ibidem, p.58.

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de uma conduta tipicamente antijurídica, quer seja jovem, quer seja adulto,

encontre-se, ao tempo da execução do ato, em um estado de “consciência e de

saúde de espírito” que garanta sua livre determinação de vontade.199

Igualmente, a culpabilidade, para Mezger, exige que o agente não tenha

atuado sob o amparo de uma das causas de exclusão de culpabilidade, que poderão

ser as causas específicas de exclusão reconhecidas pela lei, a exemplo do excesso

de legítima defesa, e do estado de coação. Além das causas dispostas em lei,

constitui-se em causa geral que exclui a culpabilidade a inexigibilidade de conduta

distinta da realizada.200

Por fim, cumpre mencionar que, tentando resolver o problema prático da

responsabilidade dos criminosos habituais, criou Mezger o conceito de

“culpabilidade pela condução de vida”, a fim de possibilitar a atribuição de culpa

àquele que agisse dolosamente, mas sem ter tido a atual consciência da ilicitude. O

sujeito responde criminalmente em razão de sua culpa na formação do caráter, do

modo de condução da sua vida.

A tentativa de Mezger para solucionar a questão dos criminosos habituais ou

por tendência deve ser rechaçada, em razão de ele ter retomado a culpabilidade

exclusivamente do autor, por meio da qual se busca reprovar o agente, e não o fato,

considerando sua vida anterior ao ato delituoso e analisando a sua personalidade.

Ou seja, pune-se o agente pelo que ele é, não pelo que ele fez.

2.3.6 Teoria psicológico-normativa e a dignidade da pessoa humana

Apesar das sérias críticas dispensadas às ideias dos penalistas que

desenvolveram a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, como também ao

fato de que essa concepção encontra-se superada, tanto no mundo, quanto no

Brasil, cumpre mencionar seus influxos positivos.

Ocorre que a referida teoria contribuiu decisivamente para a construção de

um conceito de culpabilidade com base na dignidade da pessoa humana, como se

infere da ideia de reprovabilidade de Frank; a inserção da violação à norma interna

de dever, de Goldschmidt; a inexigibilidade de Freudenthal; assim como da

revalorização da consciência da ilicitude. Conforme preleciona Sebástian Mello, as 199 MEZGER, 1949, p. 59. 200 Ibidem, p.191-205.

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citadas concepções “exigiam o valor da justiça na imposição da pena a um indivíduo

concreto, permitindo uma individualização da imputação, ao revés do que ocorria

com o positivismo de von Liszt, que negava o livre arbítrio e fundamentava a pena

na defesa social”.201

No entanto, aduz o autor que tais postulados não são suficientes para a total

concretização da dignidade humana no âmbito penal, em virtude, principalmente, de

suas concepções generalizantes, as quais se fundam na ideia de homem médio:

Portanto, percebe-se que o normativismo neokantiano – sobretudo Frank, Goldschmidt e Freudenthal – representa um avanço na consideração da pessoa; além disso, ela cumpre uma missão individualizadora da culpabilidade, revelando uma valorização do indivíduo perante o Estado. No entanto, seus postulados ainda são insuficientes para a concretização plena da dignidade humana em Direito Penal, sobretudo em suas concepções generalizantes, que fundam o juízo de censura e de poder atuar de outro modo na abstração representada pelo homem médio.202

De fato, vivemos numa sociedade multicultural, na qual deve haver um

respeito às diferenças entre as pessoas e não reduzi-las a uma identidade,

infringindo a dignidade da pessoa humana e a própria noção do princípio

constitucional da igualdade, cuja aplicação deve adotar como ponto de partida a

desigualdade. Atualmente, no Direito Penal do Estado Democrático de Direito, a

discussão dos limites da intervenção penal deve ter como ponto fulcral a dignidade

da pessoa humana, fundamento do Estado Brasileiro constante no artigo 1º, inciso

III, da Constituição Federal de 1988.

2.4 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DO DOLO

A consciência da ilicitude ganha especial relevo para a estrutura do delito com

a visão psicológico-normativa da culpabilidade, por meio do desenvolvimento de

duas teorias do dolo: a estrita e a limitada, explicitadas a seguir.

201 MELLO, 2010, p.153. 202 Ibidem, p.154.

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2.4.1 Teoria estrita do dolo

Segundo a teoria psicológico-normativa da culpabilidade, conforme já

afirmado, o dolo, que se situa na culpabilidade, é normativo, ou seja, a consciência

da ilicitude consubstancia-se em parte integrante do dolo, e não em elemento

autônomo da culpabilidade (tal como ocorre atualmente). Desse modo, o sujeito

apenas pode atuar de forma dolosa se tiver consciência da ilicitude de sua conduta.

Daí surge a teoria estrita, extrema ou extremada do dolo.

Para essa concepção, o erro adquire um tratamento unitário, a saber,

constitui-se em causa excludente do dolo. A antiga dicotomia “erro de fato-erro de

direito” não mais subsiste em suas consequências, já que tanto o erro de fato quanto

o erro de direito excluem o dolo, o primeiro por faltar ao agente a consciência e a

vontade de perpetrar o fato previsto em lei como crime, o segundo por faltar ao

agente a consciência da ilicitude. Não mais prevalece, então, o princípio de que o

erro de direito é irrelevante. Assim, se o erro for inevitável, não há responsabilidade

penal; se for evitável, pode haver a condenação por culpa.203

Conforme a teoria estrita do dolo, o conhecimento da antijuridicidade deve ter,

do ponto de vista psicológico, o mesmo caráter e intensidade que o conhecimento

de qualquer outro dado configurador do fato delitivo, quer seja um simples elemento

descritivo do tipo, quer seja um elemento normativo ou um pressuposto objetivo de

uma causa de justificação. O conhecimento de todos esses dados, incluindo o da

antijuridicidade, tem que ser atual e referente ao momento do fato.204 Assim, o

elemento normativo do dolo é a atual e real consciência da ilicitude da conduta

perpetrada pelo agente.

A teoria estrita do dolo trouxe a importância da consciência da ilicitude para

a responsabilidade penal, tal como fizeram os antigos romanos, com a diferença de

que, agora, trata-se de uma sistematização teórica, e não apenas de resolução de

questões particulares. Como bem expõe Muñoz Conde, não se pode discutir o

mérito dessa teoria de ter sido a primeira a colocar em relevo a necessidade, por

considerações intrassistemáticas e político-criminais evidentes, de exigir o

203 MOTTA, 2009, p.41-42. 204 MUÑOZ CONDE, 2003, p.25.

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conhecimento da antijuridicidade como requisito imprescindível para a imposição de

uma pena.205

No entanto, a teoria estrita do dolo contém inúmeras falhas. O seu principal

problema consiste na lacuna decorrente de algumas hipóteses de erro de proibição

evitável. No caso de o erro de proibição ser evitável, haveria a exclusão do dolo,

mas subsistiria a responsabilidade penal a título de culpa, se houvesse a previsão

da figura típica culposa.

Todavia, como cediço, nem todas as infrações penais possuem a modalidade

culposa expressamente estabelecida. Nesses casos, em razão da falta de

conhecimento atual da ilicitude e da ausência de previsão da figura típica culposa,

haveria a impunidade do autor, mesmo em se tratando de erro plenamente evitável.

Além disso, delitos de maior gravidade poderiam ficar sem resposta penal, em

virtude da ausência dos correspondentes tipos culposos.

Outra relevante objeção apontada à teoria estrita do dolo diz respeito ao

inconveniente de se demonstrar a atualidade do conhecimento da antijuridicidade. O

delinquente habitual ou o profissional que faz da delinquência seu meio de vida, por

exemplo, apenas em raras ocasiões, leva em consideração a antijuridicidade de seu

ato no momento de realizá-lo, ainda que tenha uma consciência geral da

“anormalidade” de sua forma de vida. A aplicação coerente da teoria estrita do dolo

conduziria, também nestes casos, a impunidades improcedentes.206

2.4.2 Teoria limitada do dolo

Diante das inúmeras críticas dirigidas à teoria estrita do dolo, seus próprios

defensores, a exemplo de Mezger, ampliaram seus conceitos, com o propósito de

solucionar os problemas práticos existentes. Surge, então, a teoria limitada do dolo,

que trouxe, na verdade, restrições à teoria estrita do dolo. Entretanto, grande parte

dos problemas já existentes na teoria extremada do dolo permaneceu sem solução

na teoria limitada.

205 MUÑOZ CONDE, p.26. 206 Ibidem, 2003, p.32.

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Vale notar que a teoria limitada do dolo encontra seu ponto de partida no

Projeto Gürtner de 1936, cujo texto declarava:207

Atua dolosamente quem leva adiante o fato com consciência e vontade, sendo consciente de praticar o injusto ou de infringir a lei [...] O erro é irrelevante se se baseia em uma atitude que é incompatível com uma concepção sana de Direito e injusto [...] Atua por culpa o sujeito que desconhece que sua conduta é antijurídica ou antilegal [...]

Mezger, defensor da teoria limitada do dolo, introduziu o “estado de inimizade

ou de cegueira ao direito” para corrigir a impunidade decorrente da teoria estrita.

Para a teoria limitada, o erro evitável exclui o dolo, subsistindo a responsabilidade a

título de culpa, com a exceção de o erro derivar de uma cegueira jurídica, já que,

neste caso, subsiste a responsabilidade a título de dolo. Trata-se, portanto, de um

dolo fictício.208

Posteriormente, a teoria limitada do dolo passou a considerar que a

consciência da ilicitude não mais precisaria ser atual ou real, sendo suficiente a

potencial consciência da ilicitude para a reprovação do erro do agente sobre a

ilicitude dos fatos.

Segundo dispõe Muñoz Conde, o conceito de “inimizade ou cegueira jurídica”

é impreciso e pouco adequado para descobrir a atitude mais ou menos

despreocupada que muitos delinquentes demonstram em relação às normas

jurídicas.209 Além disso, nota-se que a presunção do dolo nas hipóteses de “cegueira

jurídica” cria uma espécie da denominada “culpabilidade pela condução da vida”, a

qual se incompatibiliza com a culpabilidade pelo fato.

Ocorre que o Direito Penal moderno passou a girar em torno do fato

perpetrado pelo agente, e não de sua personalidade, significando uma grande

conquista da humanidade, pois longo foi o período durante o qual a pessoa

respondia mais pelo que era do que pelo fato que cometeu. Referida mudança se

deveu, principalmente, ao princípio da culpabilidade, o qual preceitua que o indivíduo

apenas pode ser considerado culpado em relação a determinado fato ilícito.

Ademais, a teoria limitada do dolo não preencheu as lacunas de punibilidade,

especialmente as que decorrem da ausência de disposição legal da modalidade

culposa quando há o erro de proibição evitável.

207 CÓRDOBA RODA, 1962, p.108-109. 208 MOTTA, 2009, p.43. 209 MUÑOZ CONDE, 2003, p.33.

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Verifica-se, então, que as teorias do dolo não lograram êxito, tendo em vista

que a sua aplicação resulta em muitos casos de impunidade e, por conseguinte, de

injustiça.

O desenvolvimento da doutrina finalista da ação desencadeou na formulação

das teorias da culpabilidade, as quais passam a considerar a consciência da ilicitude

como elemento autônomo do juízo de culpabilidade. Portanto, faz-se oportuno o

estudo sobre o sistema finalista de ação e as suas conseqüências para a teoria do

delito, especialmente para o desenvolvimento do conceito de culpabilidade.

2.5 O SISTEMA FINALISTA E A TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE

Na segunda metade do século XX, a teoria finalista rompe com a tradição do

Direito Penal, com o abandono do conceito causal de ação para a defesa de um

conceito final e a consequente retirada de todos os elementos subjetivos da

culpabilidade que a integravam até então, principalmente em decorrência dos

estudos desenvolvidos por Alexander Graf zu Dohna, Hellmuth von Weber e Hans

Welzel.

2.5.1 Precursores do sistema finalista

Graf zu Dohna e Hellmuth von Weber foram os precursores da teoria finalista

da ação, mas expuseram manifestações isoladas, das quais não se pode extrair

resultados dogmáticos para a construção de um novo sistema jurídico penal. Mas foi

Hans Welzel quem sistematizou e divulgou a teoria finalista da ação.210

Dohna apresenta a famosa distinção entre objeto da valoração e valoração do

objeto. Para o autor, a vontade de ação (dolo) é o objeto da valoração. Já o juízo de

antijuridicidade e o juízo de culpabilidade são encontrados ante o resultado de uma

valoração.211 Assim, Dohna reduz o conceito de culpabilidade e o de antijuridicidade

à valoração do objeto; e o de dolo ao objeto de valoração. Verifique-se o

ensinamento do autor:

210 JESCHECK, 1993, p.191 apud PACHECO, 2009, p.113. 211 TOLEDO, 1994, p.230; MACHADO, 2010, p.69.

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Primordialmente, todo delito é uma ação, pois unicamente uma ação humana pode ter, hoje, como conseqüência, uma pena. Não se pode chegar a determinar o conceito de delito sem referir-se à característica „ação‟. Até que ponto a afirmação de que o delito é ação necessita ser retificada resultará de posteriores considerações. Do ponto de vista da valoração do objeto, apresentar-se-á, como segunda característica geral do delito, a antijuridicidade; como terceira, a culpabilidade. Com isso, chegamos ao seguinte resultado sintético: delito é ação antijurídica e culpável.212

Porém, não nos parece ter sido apenas essa a contribuição trazida por Graf zu Dohna. O autor também apresentou a ação como concreção de vontade, porquanto não são as características exteriores que determinam o delito como uma ação, tendo em vista que há delitos de pura atividade, que se traduzem em um movimento corporal sem resultado. Além disso, há os delitos de comissão por omissão, os quais produzem um resultado sem atividade corporal. Para o autor, a vontade da ação pode ser dirigida a produzir ou evitar a atividade corporal, conforme se depreende da sua lição:

Não é essencial ao delito um aspecto exterior perceptível pelos sentidos. Isso falta nos autênticos delitos de omissão. Por outro lado, os delitos de pura atividade se traduzem em um movimento corporal sem resultado, os delitos de comissão por omissão em um resultado sem atividade corporal e a grande massa dos delitos de resultado em uma associação de movimento corporal e resultado. Não são características exteriores as que fazem afirmar que o delito é ação, pois ação é concreção de vontade. Essa vontade pode ser dirigida a produzir ou a evitar a atividade corporal. Tomadas nesse sentido, ação e omissão são formas de manifestar-se a ação.213

Hellmuth von Weber concebe uma interpretação unitária do normativismo na

culpabilidade. Para ele, a reprovabilidade permanece na antijuridicidade da ação, ou

seja, “reprovamos o autor que se tenha comportado antijuridicamente”. O ato

culpável é caracterizado como o agir antijurídico de quem poderia ter se comportado

conforme o direito.214

Percebe-se a relevância do conceito de poder para definir a estrutura da

culpabilidade, por meio da evitabilidade do atuar antijurídico. Enquanto a

antijuridicidade corresponde a uma nota de dever, a culpabilidade refere-se a uma

212 Tradução livre do seguinte trecho: “Primordialmente, todo delito es uma acción, pues

unicamente uma acción humana puede hoy tener por consecuencia una pena. No se puede llegar a determinar el concepto del delito, sin referirse a la característica “acción”. Hasta qué punto la afirmación de que el delito es acción necessita ser rectificada, resultará de posteriores consideraciones. Desde el punto de vista de la valoración del objeto (IB), se presentará, como segunda característica general del delito, la antijuridicidade; como terceira, la culpabilidade. Com ello llegamos al siguiente resultado sintético: Delito es acción antijurídica y culpable”. (DOHNA, 1958, p.14.)

213 DOHNA, 1958, p.18. 214 QUINTANO RIPOLLÉS, 1959 apud MACHADO, 2010, p.71.

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característica de poder, mais detalhada que a simples diferenciação entre o

elemento objetivo e o subjetivo. Ressalte-se que a noção de poder na evitabilidade

da conduta gira em torno das questões do livre-arbítrio e do determinismo, mesmo

porque só se pode evitar algo quando se é livre.215

2.5.2 Hans Welzel e o sistema finalista

Com o término da II Guerra Mundial, Welzel voltou a estudar a filosofia

finalista, que houvera iniciado na década de 30, e transformou a concepção de

tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade, por meio do conceito de ação final,

conforme verificaremos nesta exposição.

O sistema finalista não está fundamentado na causalidade, mas na vontade

humana, que dirige o resultado a um objetivo criminoso. Dessa forma, a “finalidade”

aparece como a pedra de toque do sistema penal, diferentemente do sistema

causal. A premissa objetiva (causal) deu lugar a um ponto de partida subjetivo

(vontade final humana). Não obstante a idealização oposta de ambas as

concepções, deve-se notar que elas se igualam por possuírem uma base

ontológica.216

A concepção de ação lastreada na atividade final humana não nasceu do

pensamento de Welzel, porquanto já havia sido considerada por Samuel von

Pufendorf (1636-1694) e suas raízes remontam a Aristóteles. Com efeito, Pufendorf

não entendia como ação humana qualquer movimento proveniente de um homem,

mas apenas aquele que é dirigido pelas específicas capacidades humanas, a saber,

o intelecto e a vontade.217

O finalismo concebeu que, ao tipo legal, pertence a vontade final reitora, na

forma de dolo, além de “outros elementos subjetivos requeridos pelo tipo respectivo,

tais como as intenções, tendências etc”.218

Sobre o conceito finalista de ação, aponta Maurach que sua origem se deve a

diversas causas, contudo aduz que ela se baseia em duas raízes ou troncos, uma

215 MACHADO, loc. cit. 216 OLIVÉ, 2011, p.46. 217 WELZEL, 1993, p.45. 218 MAURACH, Reinhart, 1966, p.31. O autor ainda anota que “A parte subjetiva do tipo

forma seu componente, a parte objetiva é seu componente causal, sendo o componente causal dominado e dirigido pelo componente final”.

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de caráter psicológico-filosófico; a outra, de perfil dogmático jurídico-penal. Senão

vejamos:

A primeira raiz é de caráter filosófico e psicológico. É a reação contra o conceito naturalista ou causal da ação desenvolvido por LISZT e seus adeptos, que prosseguiu desenvolvendo-se sob a designação de “conceito social de ação”. Para apresentá-lo de forma exagerada, pode dizer-se que este conceito de ação não era em absoluto um conceito de ação, mas sim um “processo de causação”: “ação é igual à causação de um resultado típico”. A segunda raiz é produto do desenvolvimento da dogmática tipicamente jurídico-penal e, especialmente, da evolução necessária da doutrina do “tipo” inaugurada por BELING (1907).219

A teoria da ação final apresentou, então, um conceito ontológico de ação, já

que esta se consubstancia no processo dos fins propostos, como o estabelecimento

final das relações causais naturais. A tipicidade não se esgota na causalidade, mas

na atividade humana. O finalismo surge com base no entendimento de que o direito

deve, primeiramente, estudar a realidade, por meio de uma análise fenomenológica

para, depois, trazer considerações jurídicas. No que tange à estrutura ontológica da

ação, comenta Winfried Hassemer sobre a influência da filosofia fenomenológica:

Invocando a Filosofia fenomenológica (Hartmann, Scheler) ele baseou o sistema do fato punível na Ontologia, isto é, em uma estrutura compreensível do existente, do mundo. Esta estrutura não é resultado de uma “constituição da realidade”, nem resultado da intervenção humana, nem é constituída por pré-compreensões; ela está além do conhecimento humano e é acessível a este, e a verdade do conhecimento humano pode ser determinada nela.220

Para Welzel, o dolo não pode estar situado no juízo de culpabilidade, haja

vista que toda ação humana é dirigida a um fim e deve ser dotada de seu elemento

característico, ou seja, a intencionalidade, o seu finalismo, conforme se evidencia a

seguir:

Ação humana é exercício de atividade final. A ação é, por isso, acontecimento „final‟, não somente „causal‟. A „finalidade‟ ou o caráter final da ação se baseia em que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua atividade, obter, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade,

219 MAURACH, Reinhart, 1966, p.23. 220 HASSEMER, 2005, p.303. Note-se que, para Luiz Régis Prado, com base na obra

Introducción a la filosofia Del Derecho, de Hans Welzel, a origem do pensamento finalista é oriunda do filósofo Richard Hönigswald, bem como nos trabalhos dos psicólogos Karl Bühler, Theodor Erismann, Erich Jaensch, Wilhem Peters, e dos fenomenologistas P.F Finke e Alexander Pfänder, e não em Nicolai Hartmann, apesar de este ter contribuído, em momento posterior, na reformulação do seu pensamento. (PRADO, 2000 apud MACHADO, 2010, p.72). Já Maurach aponta a influência filosófica de Honigswald e Nicolai Hartmann para o trabalho de Welzel (MAURACH, 1966, p.26).

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conforme seu plano, à consecução destes fins. Em virtude do seu saber causal prévio, pode dirigir os distintos atos de sua atividade de tal modo que oriente o acontecimento causal exterior a um fim e o determine finalmente.221

Retirou-se o dolo e a culpa strictu sensu da culpabilidade e os inseriu no

conceito de ação. Como corolário lógico, tais elementos passaram a se localizar no

tipo legal, tendo em vista que este é a descrição da ação proibida. Outra

consequência da posição de Welzel foi a de que os tipos passaram a ser

considerados como tipos dolosos ou tipos culposos.222

Importante mencionar que o finalismo excluiu a consciência da ilicitude do

dolo e a inseriu, como elemento autônomo, no conceito de culpabilidade, pondo

término ao antigo dolus malus dos romanos, o qual, segundo ensina Assis Toledo,

“já vivera muito e não mais correspondia às necessidades de um direito penal

moderno, impregnado de contribuições valiosas da criminologia”.223

Configurando a consciência da ilicitude como núcleo central da culpabilidade,

sintetiza-nos Jescheck:

Consciência do injusto configura o núcleo central da culpabilidade, pois a decisão de cometer o fato, com pleno conhecimento da norma jurídica a ele relativa, caracteriza, de modo mais claro, a deficiência que o autor sofre em sua atitude jurídica interna.224

Acentuando, também, a relevância da consciência da ilicitude, disserta

Jiménez de Asúa:

Resulta evidente que a exigência do conhecimento da injustiça do ato – entendida pelo agente como dever – é absolutamente imprescindível em qualquer teoria da culpabilidade, mas muito mais na normativa. Não poderíamos reprovar alguém que não tivera

221 Tradução livre do trecho da obra do autor: “Acción humana es ejercicio de actividad final.

La acción es, por eso, acontecer „final‟, no solamente „causal‟. La finalidad o el carácter final de la acción se basa em que el hombre, gracias a su saber causal, puede prever, dentro de ciertos límites, las consecuencias posibles de su actividad, ponerse, por tanto, fines diversos y dirgir su actividad, conforme a su plan, a la consecución de estos fines. En virtude de su saber causal prévio puede dirigir los distintos actos de su actividad de tal modo que oriente el acontecer causal exterior a um fin y así lo sobredetermine finalmente.” (WELZEL, 1993, p.39.)

222 Sobre os tipos dolosos e culposos, com base na lição de Hans Welzel, escreve Jiménez de Asúa que os dolosos são “auténticas acciones finalistas que desde la preparación del acto buscan su objetivo, y culposas que, si bien son um acontecimento „causal ciego‟, pueden y deben reputarse „acción‟ porque su efecto es „evitable finalmente‟” (JIMÉNEZ DE ASÚA, 1950, p.197.)

223 TOLEDO, 1994, p.228. 224 Tradução livre, JESCHECK, 1993, p.408.

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consciência de que seu ato é contrário ao dever de respeitar a norma [...].225

No entanto, não foi apenas isso. O finalismo reelaborou o conceito normativo

e transformou a consciência da ilicitude em consciência potencial da ilicitude.

Segundo a visão finalista, para se atribuir reprovação a um ato, é suficiente que seu

autor tenha a possibilidade de saber que ele vai de encontro ao ordenamento

jurídico. De acordo com o ensinamento de Tavares, “esse conhecimento potencial é

representado pela capacidade concreta de o autor informar-se acerca da proibição

ou determinação jurídica com base em suas condições pessoais, onde, inclusive,

deve-se levar em conta seus defeitos e limitações”.226

A teoria normativa pura da culpabilidade, afastando o dolo da culpabilidade e

destituindo daquele a consciência da ilicitude, resultou, por exemplo, na

possibilidade de um inimputável praticar uma conduta dolosa. Foi também com a

teoria finalista de ação que a participação passou a ser possível somente em

condutas dolosas.

Ante o exposto, depreende-se que Welzel está, em princípio, de acordo com

todos os elementos da teoria psicológica e da teoria normativa da culpabilidade, mas

os considera mal distribuídos na estrutura do crime.227

Dessa feita, nota-se a grande contribuição da teoria finalista para a extração

dos elementos subjetivos da culpabilidade, dando origem a uma concepção

normativa pura.

De fato, houve um verdadeiro intercâmbio entre os elementos estruturais do

crime, tal como enunciou Assis Toledo.228 Para a teoria psicológico-normativa, a

culpabilidade pressupõe a imputabilidade e se forma pelos seguintes elementos: a)

dolo e culpa strictu sensu; b) possibilidade e exigibilidade de outra conduta; c)juízo

de censura ao autor, por não ter exercido, nas circunstâncias, a possibilidade. O

dolo, para essa concepção, compõe-se de: voluntariedade; previsão do fato;

consciência atual da ilicitude. Por seu turno, para a teoria normativa pura da

culpabilidade, esta se compõe de: a) imputabilidade; b) consciência potencial da

225 Tradução livre, JIMÉNEZ DE ASÚA, 1956, p.463. 226 TAVARES, 1980, p.83. 227 TOLEDO, 1994, p.226. 228 TOLEDO, loc. cit.

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ilicitude; c) possibilidade e exigibilidade de conduta diversa; d) juízo de censura ao

autor por não ter exercido, quando podia, este juízo.229

Cabe asseverar que o sistema finalista coaduna-se tanto com um conceito

bipartido de crime (fato típico e ilícito), quanto com uma concepção tripartida (fato

típico, ilícito e culpável), sendo esta a atualmente mais aceita pelos penalistas e a

mais condizente com um Direito Penal do Estado Democrático de Direito. Ressalte-

se que a adoção da teoria bipartida de crime implica aceitação do conceito finalista

de conduta, tendo em vista que, na teoria clássica, o dolo e a culpa encontram-se na

culpabilidade e, desse modo, um sistema clássico e bipartido seria a consagração

da responsabilidade objetiva.

Pode-se afirmar que a teoria finalista funda-se na noção filosófica de que a

pessoa, em razão de sua condição de ser humano, possui um projeto de ação

orientado a determinados fins. Por esse motivo, há o reconhecimento do homem

como pessoa responsável, com dignidade, ou seja, possuidor de um valor intrínseco

mínimo que deve ser preservado, tais como a defesa da vida, da liberdade, do

patrimônio, dentre outros direitos.230

A culpabilidade compreendida como “reprovabilidade pessoal”, nos termos da

teoria normativa pura, obteve grande repercussão e acolhida pelos penalistas do

mundo e do Brasil, constituindo-se, até o momento presente, na concepção

dominante na doutrina.231 Menciona Hirsch que, atualmente, a teoria do injusto

229 Cuida-se dos elementos traçados por Assis Toledo (1994, p.226). Cumpre notar que a

maioria dos autores brasileiros trata a culpabilidade como sendo composta por três elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

230 Nesse sentido, leciona Fábio Guedes Machado (2010, p. 73) que de Welzel é a ideia “que o reconhecimento do homem como pessoa responsável é o pressuposto mínimo de uma ordem social que não quer se fazer valer do poder, destarte, ressalta com esta colocação a dignidade da pessoa humana.”

231 Enrique Bacigalupo afirmou sobre a aceitabilidade do finalismo na Argentina, com citação da obra de Ortega y Gasset: “Creo que, em este sentido, en la Argentina es posible hablar de uma generación del finalismo que, como diría ORTEGA Y GASSET, comenzaba en aquel tempo a vivir um momento de „iniciación y beligerância constructiva‟” (BACIGALUPO, 2006, p.70). Também Maurach referiu-se à ampla receptividade da teoria na Alemanha: “Pode-se dizer que, hoje em dia, aproximadamente um têrço dos penalistas alemães sustentam o conceito finalista de ação” (MAURACH, 1966, p. 22). Maurach ainda profere que “embora grande parte dos penalistas alemães não se mostre claramente a favor ou contra o conceito finalista de ação, estão absolutamente dispostos a reconhecer as consequências resultantes da nova doutrina” (MAURACH, loc cit.). Na Espanha, aponta José Cerezo Mir (2007, p.863) diversos adeptos desta concepção, tais como Córdoba Roda, Francisco Muñoz Conde-M García, Mir Puig, dentre outros.

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pessoal é dominante na Alemanha, enquanto a “teoria da ação causal” é

majoritariamente rechaçada.232

Importante é a lição de Cláudio Brandão sobre a culpabilidade como juízo de

reprovação pessoal:233

Quando se diz que a culpabilidade é um juízo de reprovação pessoal, diz-se que a mesma é um juízo que recai sobre a pessoa. Por isso dizer-se que a culpabilidade é o elemento mais importante do crime, porque o Direito Penal há muito abandonou a responsabilidade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva, para debruçar-se sobre a responsabilidade pessoal.

Assim, a culpabilidade está relacionada a uma visão do homem como pessoa. Para a

concepção finalista, o homem é visto como o ser capaz de decidir sobre a conduta que será

realizada. Parte-se, portanto, do pressuposto da liberdade de vontade humana para que se

alcance o juízo de reprovabilidade.

Sob a bandeira da teoria do injusto pessoal, tem sido aplicada,

principalmente, a classificação do dolo típico como elemento do injusto do delito

doloso e da contrariedade ao cuidado como elemento do injusto do delito culposo,

como também têm sido aceitas as teorias da participação e do erro de proibição

desenvolvidas pelo finalismo.234

Por fim, torna-se necessária a análise de algumas críticas desferidas ao

sistema finalista, objetivo do tópico seguinte.

2.5.3 Críticas ao sistema finalista

A despeito da relevância das contribuições oferecidas pelo sistema finalista

da ação em relação ao sistema causal, impende mencionar, ainda que, de maneira

perfunctória, a existência das principais objeções que lhe foram direcionadas, no que

diz respeito às suas consideráveis interpretações, tanto no que se reporta aos

elementos, como ao fundamento material da culpabilidade.

232 HIRSCH, 2007, p.84. 233 BRANDÃO, 2010, p.223. 234 Ibidem, p.223

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2.5.3.1 A ontologia como fonte do Direito

A primeira grande objeção verbera que o finalismo pretende derivar decisões

jurídicas da ontologia, ou seja, a ontologia teria sido elevada à categoria de fonte do

direito. Tratar-se-ia o finalismo, segundo os críticos, de uma espécie de

representação jusnaturalista. Afirmam os críticos que “As soluções somente podem

ser extraídas das valorações, e não de meras considerações do Ser”.235

Essa objeção é combatida por Hans Joachim Hirsch, discípulo de Welzel.

Afirma Hirsch que o finalismo exige a observância às estruturas e ao conteúdo

concreto dos objetos aos quais está vinculado o ordenamento jurídico. Cuida-se,

aqui, apenas parcialmente de descobertas ontológicas, como, por exemplo, dos

conceitos de ação e de causalidade. Também são considerados os fenômenos

sociais gerais, a exemplo da culpabilidade.236

Considera Hirsch que, por essa razão, a concepção finalista de ação não

traça uma oposição entre o ontológico e o social-normativo, mas sim uma relação

entre as estruturas da matéria de regulação e o direito. O direito não inventa a

realidade que pretende regulamentar, todavia regula uma realidade dada. Welzel

nunca sustentou a fundamentação, usual entre os jusnaturalistas, de que os

resultados obtidos por sua metodologia derrogam os preceitos de direito positivo.237

Pode-se afirmar que, para Welzel, as elaborações científicas, enquanto

soluções corretas, mostram a necessidade eventual de reforma da legislação. Na

defesa do finalismo, assevera Hirsch que, se, da análise científico-dogmática, for

entendido que um preceito legal é objetivamente incorreto, em virtude da errônea

matéria de regulação, não significa para os finalistas que o preceito, em questão,

seja inválido, mas sim que a ciência reclama sua retificação.238

235 OLIVÉ, 2011, p.47. 236 HIRSCH, 2007, p.86. 237 Ibidem, p.86-87. 238 HIRSCH, loc. cit.

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2.5.3.2 O livre-arbítrio em HANS WELZEL e o “poder atuar de outro modo”

O Direito Penal hodierno é baseado em uma ótica de liberdade normativa

pura, de modo que o indivíduo é considerado como detentor de uma liberdade de

autodeterminação.

Note-se que a concepção material de livre-arbítrio, segundo a qual o sujeito é

culpável quando, analisando-se de forma retrospectiva, poderia ter atuado de outra

maneira, é bastante criticada pelos penalistas nos dias atuais. Assim, o sujeito é

culpado quando pratica um ilícito penal à medida que poderia, no caso concreto, ter

dirigido sua vontade em conformidade ao direito, porém não o fez.

Em se referindo ao aspecto antropológico, cumpre observar que a liberdade

existencial é uma característica positiva e decisiva do homem, segundo o

entendimento de Hans Welzel. A capacidade de realizar ações finais é o primeiro

requisito essencial do homem e nela residem os pressupostos biológicos da

desvinculação dos impulsos.239

Hassemer argumenta que a Teoria Final da Ação, em sua origem, tem

relação com a ideologia nazista, tendo em vista que o conceito pessoal de ação e de

antijuridicidade, núcleos do pensamento finalístico, encontra um correspondente

contemporâneo e distorcido do “Direito Penal da vontade” criado pelo pensamento

penal nazista.240

Desde a década de 60 do século XX, momento em que as bases da teoria

normativa pura já tinham sido acolhidas pelos Tribunais da Alemanha, já havia

críticas e se buscava uma alternativa, no campo doutrinário, à tese de liberdade de

Welzel e o seu “poder atuar de outro modo”.

Uma das principais objeções ao livre-arbítrio de Welzel refere-se à falta de

demonstração empírica da possibilidade de alguém atuar de uma ou de outra

maneira. Nessa diretriz, Roxin propugna pelo fracasso dessa concepção, haja vista

que o pressuposto de uma liberdade de decisão, teoricamente concebível como um

“poder atuar de outro modo” do indivíduo não seria suscetível de constatação

científica, conforme veremos mais adiante neste trabalho.241

239 WELZEL, 2004, p.135-136. 240 HASSEMER, 2001, p.44. 241 ROXIN, 1997, p.799.

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Buscando tratar a culpabilidade de modo diferente do exposto por Welzel e

evitando o problema do indemonstrável livre arbítrio humano, Roxin apresentou um

conceito funcionalista da culpabilidade, associando a necessidade da pena a uma

finalidade predominantemente preventiva, de acordo com o que apresentaremos em

tópicos adiante.

Sobre o assunto, Oswaldo Henrique Duek Marques e Marion Minerbo

desenvolveram um interessante estudo acerca da noção de liberdade sob o ponto

de vista da Filosofia do Direito e da Psicanálise.

Os autores iniciaram o artigo com a afirmação de que a experiência cotidiana

parece nos deixar em dúvida sobre a capacidade de o homem realizar escolhas

essenciais durante sua vida, já que muitas decisões são determinadas por pressões

externas ou por desejos inconscientes. A ausência de liberdade absoluta se afigura

ainda mais reduzida nos casos em que o indivíduo possui transtorno mental, quando

age sob coação psíquica, ou nas situações em que se encontra, na comunidade em

que vive, tolhido para desenvolver suas aptidões e sonhos. Segundo Duek e Marion,

a falta de uma absoluta liberdade “parece ser condição inerente à existência

humana”.242

Duek e Marion posicionam-se no sentido de que deve existir uma

conscientização da perspectiva ontológica de liberdade, não normativa, para que

haja não apenas novos enfoques sobre a culpabilidade, sobretudo no que se

relaciona à inexigibilidade de conduta diversa como causa excludente de

culpabilidade, como também para a humanização do Direito Penal, sem o

enfraquecimento das almejadas funções preventivas e ressocializadoras.243

Diante dos problemas insolúveis decorrentes da falta de demonstração

empírica da liberdade de atuar de outro modo, tornou-se necessário o

desenvolvimento epistemológico da culpabilidade, principalmente representado pelo

funcionalismo penal. Trataremos dessa dogmática jurídico-penal mais adiante neste

trabalho, após a análise da falta de consciência da ilicitude pela concepção finalista,

a qual ainda é a dominante nos dias atuais.

242 MARQUES, 2011, p.48. 243 Ibidem, p.52.

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2.5.4 A distinção entre erro de tipo e erro de proibição

A teoria finalista da ação influenciou decisivamente para a distinção legislativa

entre erro de tipo excludente do dolo e o erro de proibição excludente da

culpabilidade (em hipóteses de inevitabilidade). A falta de direcionamento da ação

exclui o dolo, mas a falta de consciência do injusto na direção intencional (final e

dolosa) do curso causal apenas pode recair sobre a existência ou quantidade de

reprovação.244

Conforme leciona Assis Toledo, a teoria normativa pura trouxe uma grande

contribuição para o tema do erro, uma vez que ela está estreitamente ligada à

admissibilidade da escusabilidade de algumas hipóteses do antigo erro de direito:

“ou se aceita a culpabilidade normativa e, com ela, a escusabilidade de algumas

formas do erro de direito, ou se permanece sustentando a inescusabilidade do erro

de direito e, com isso, se rejeita uma das maiores conquistas da moderna ciência

penal”.245

Welzel, então, traçou a distinção entre erro de tipo e erro de proibição, no

sentido de que o primeiro se dá sobre uma circunstância objetiva do fato do tipo

legal, seja de caráter fático (descritivo) ou normativo. Erro de tipo é não apenas o

erro sobre a coisa, o corpo, a causalidade, mas também sobre o “caráter lascivo”,

“coisa alheia”, “documento”, “funcionário”. Exclui-se o dolo da realização típica,

havendo a possibilidade de que o agente seja castigado pelo ato culposo quando

para este havia previsão legal.246

Por outro lado, o erro de proibição é aquele que se dá sobre a antijuridicidade

do fato, com pleno conhecimento da realização do tipo. Se inevitável, exclui a

culpabilidade. Já o erro de proibição evitável funciona como causa de diminuição da

culpabilidade. No dizer de Welzel:

El error de tipo es el error sobre uma circunstancia objetiva del hecho del tipo legal: excluye el dolo de la realización típica (dolo de tipo). El autor puede ser castigado por hecho culposo, cuando este está sancionado com pena.

244 OLIVÉ, 2011, p.46. 245 TOLEDO, 1994, p.222. 246 WELZEL, 1993, p.197.

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Error de prohibición es el error sobre la antijuridicidad Del hecho, com pleno conocimiento de la realización del tipo (luego, com pleno

dolo de tipo).247

Assim, o erro de tipo é aquele que recai sobre qualquer elemento constitutivo

do tipo, independente de sua natureza. Por sua vez, o erro de proibição é o que

incide sobre o caráter ilícito do fato.248 Verifica-se que a distinção entre erro de tipo e

erro de proibição tem por fundamento a diferenciação entre tipo e ilicitude, e não a

antiga oposição entre a situação de fato e o conceito jurídico.249

Não se pode confundir o antigo erro de fato com o atual erro de tipo, nem o

antigo erro de direito com o erro de proibição. Como vimos, o erro de fato teve sua

origem na dicotomia romana “erro de fato-erro de direito”, adotada, posteriormente,

pela teoria psicológica da culpabilidade. Essa modalidade de erro diz respeito àquele

que recai sobre a situação fática de um tipo penal. Já o atual erro de tipo possui uma

abrangência de significado maior, pois faz parte de seu contexto um erro que recai

não somente sobre os elementos fáticos, contidos no tipo penal, mas também sobre

os elementos normativos do tipo. Estes últimos são os que exigem um juízo de valor

(jurídico, ético, cultural, etc) para serem conhecidos. Na época em que prevalecia a

antiga dicotomia romana, o erro sobre os elementos normativos do tipo era tido

como erro de direito.250

Sobre o erro de tipo como abrangente dos elementos normativos do tipo, e

não apenas das circunstâncias de fato do tipo legal, comenta Bacigalupo, com base

nos ensinamentos de Welzel, o assunto de acordo com a previsão no Código Penal

argentino:

Lo que falsearia el sistema de la ley es afirmar que el error mencionado en el art. 34, inc. 1º, es um error limitado solo a lo fáctico, o sea, que no alcanzaría a los elementos normativos del tipo. En este sentido caben algunas reflexiones en torno a la significación del concepto de neutralidad valorativa del tipo. La “realidad del mundo social del obrar humano es una realidad de significaciones y no una realidad indiferente al sentido, como lo es la realidad de las ciências natrurales”.251

247 WELZEL, 1993p. 196. 248 BRODT, 1996, p.59. 249 WELZEL, lop. cit. 250 WELZEL, loc.cit.; Também apresenta a referida distinção: MOTTA, 2009, p.53. 251 WELZEL, comentário al fallo del BGH, 28/10/52, n“JZ”, 52, p.120 y siguientes apud

BACIGALUPO, 2002, p.104.

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Por seu turno, o erro de proibição se distingue do antigo erro de direito, pois,

além de trazer novas situações, a exemplo da existência ou limites da legítima

defesa, abrange uma série de hipóteses antes consideradas como erro de direito.252

A teoria da culpabilidade normativa, de Welzel, ofereceu uma saída prática

para a problemática do erro de proibição existente na Alemanha após a Segunda

Guerra Mundial. Nesse período, parecia já insustentável manter o rumo tomado pela

jurisprudência do antigo Tribunal Supremo alemão (Reichsgericht – RG),

especialmente no que se refere à irrelevância do erro invencível de proibição, haja

vista a sua incompatibilidade com o princípio da culpabilidade.253

Percebendo a inconveniência da antiga doutrina do Tribunal Supremo alemão

do RG (sobre a absoluta irrelevância do erro acerca da significação antijurídica do

fato), a jurisprudência alemã efetuou uma radical mudança em seus

posicionamentos com a decisão do Tribunal Supremo Federal (Bundesgerichtshof-

BGH), de 18 de março de 1952, que tem sido um marco para as decisões

jurisprudenciais até a atualidade.

Nela se adotou a distinção entre erro de tipo e erro de proibição. A

consagração da referida modificação de postura se deu com a entrada em vigor da

nova Parte Geral do StGB (Código Penal alemão), em 1975, o qual dispôs sobre o

erro de proibição no §17: “Error de prohibición . Si, al cometer el hecho, le falta al

autor la comprensión de estar realizando um injusto, actúa sin culpabilidad si no

podía evitar ese error. Si el autor podía evitar el error, la pena puede atenuarse

conforme al § 49 párr.1”.254

Referida modificação de posicionamento sobre o erro também foi acolhida na

maior parte dos modernos estatutos penais; por exemplo, no Código Penal suíço

(art. 20); no austríaco de 1975 (arts. 9º, 34, 41); no português de 1982 (art. 17); no

Código penal peruano (art. 14); no novo Código penal colombiano de 2000 e, como

não poderia deixar de mencionar, na nova Parte Geral do Código Penal brasileiro de

1984 (art. 21).255

252 BITENCOURT, 2003, p.84. 253 FELIP I SABORIT, 2000, p.39. 254 Ibidem, p.45. 255 CEREZO MIR, 2007, p.976-977. O autor também menciona que, no art. 15 do Código

penal peruano, há regulação do erro de compreensão culturalmente condicionado, o que se explica pela diversidade cultural do Peru: “El que por su cultura o costumbres de su acto comete um hecho punible sin poder comprender el carácter delictuoso de su acto o

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Uma questão importante e bastante criticável sobre a decisão do tribunal

alemão BGH, de 18 de março de 1952, foi a posição adotada para o fundamento em

virtude do qual o erro vencível de proibição pode ser sancionado: a existência de

uma obrigação genérica de conhecer o direito, que constrange os cidadãos a

esforçarem sua consciência ou a procurarem informação com o fim de comprovar se

seu comportamento estaria de acordo, em todo o momento, com o ordenamento

jurídico. Trata-se do critério intermediário sobre o objeto da consciência da ilicitude,

atualmente o mais aceito na Alemanha, e que será exposto, com mais detalhes, no

capítulo IV deste trabalho.

Verificaremos, a seguir, que a distinção entre erro de tipo e erro de proibição

deve-se à adoção da teoria da culpabilidade (referente à posição sistemática da

consciência da antijuridicidade), a qual separa: consciência (e vontade) do fato; e

consciência da antijuridicidade do fato. A primeira constitui o dolo; a segunda é o

elemento da culpabilidade.

Assim, o erro de proibição é aquele incidente sobre a antijuridicidade do fato,

ou seja, sobre a natureza proibida da ação típica: o autor sabe o que faz, mas

erroneamente pensa que é permitido, quer seja por crença positiva na permissão do

fato, quer seja por falta de representação da valoração jurídica do fato.

2.6 A CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE PARA A CONCEPÇÃO NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE: TEORIAS DA CULPABILIDADE

Após a apresentação sobre o sistema finalista, apenas em seus aspectos

relevantes para os fins deste trabalho, conveniente se torna o estudo acerca das

teorias da culpabilidade para compreender a atual posição majoritária a favor da

teoria limitada da culpabilidade e vislumbrar suas possíveis falhas diante dos

inúmeros casos concretos.

2.6.1 Teoria extremada e teoria limitada da culpabilidade

A teoria extremada da culpabilidade adveio da concepção finalista de delito, a

qual considera o dolo como elemento integrante do tipo penal e a consciência da

determinarse de acuerdo a esa comprensión, será eximido de responsabilidad. Cuando por igual razón, esa posibilidad se halla disminuida, se atenuará la pena”.

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ilicitude como elemento autônomo da culpabilidade. Diante dessa alteração, há uma

modificação completa no tocante às hipóteses de erro e suas consequências.

Com a concepção em análise, ao se cuidar do dolo e do conhecimento do

injusto separadamente, entendendo-se que ambos possuem naturezas autônomas e

diversas, conclui-se que também podem ser tratados de modo distinto, não se

exigindo o mesmo grau de consciência. Requer-se não mais a atual consciência da

ilicitude, mas um potencial conhecimento, bastando que o indivíduo tenha tido a

possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato, posto que, no caso concreto, não

tenha alcançado referido conhecimento.256

A teoria estrita, extrema ou extremada da culpabilidade foi defendida por

Welzel, Maurach e outros.257 Com a adoção dessa concepção, afasta-se o

tratamento unitário do erro, como causa excludente do dolo (teorias do dolo), para

dividi-lo em duas modalidades: erro de tipo, que afasta o dolo, e erro de proibição,

que exclui ou atenua a culpabilidade conforme seja inevitável ou evitável,

respectivamente.

Note-se que, para essa teoria, todo erro sobre a antijuridicidade do fato

consubstancia-se em erro de proibição. Para a concepção extrema da culpabilidade,

então, há erro de proibição até nos casos de erro sobre as causas justificantes

(descriminantes putativas), com a consequência de excluir ou atenuar a

culpabilidade, sem afetar o dolo do tipo.258 Assim, o erro sobre a existência, os

limites ou os pressupostos fáticos de uma causa de justificação constitui erro de

proibição.

É justamente nesse ponto que a teoria limitada da culpabilidade se distancia

da teoria extremada. De acordo com a concepção limitada, atualmente dominante na

literatura e jurisprudência, na hipótese de erro sobre os pressupostos fáticos de uma

causa de justificação, em que o autor quer agir conforme o direito, mas não o faz por

desconhecer a realidade fática (imagina situação de fato que não existe, mas que,

acaso existisse, tornaria sua ação legítima), o agente do fato atua sem dolo e, dessa

forma, seu erro é equiparado ao erro de tipo.

Por essa razão, denomina-se o erro sobre os pressupostos fáticos de uma

causa de justificação de “erro de tipo permissivo”. Pode-se apontar como exemplos

256 MUÑOZ CONDE, 2003, p.34. 257 Ibidem, p.22. 258 GOMES, 2001, p.93.

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de pressupostos fáticos de uma causa de justificação: a agressão ilegítima, na

legítima defesa; situação de necessidade, no estado de necessidade.259 Assim, a

legítima defesa putativa, por exemplo, constitui erro sobre os pressupostos fáticos

de uma causa de justificação e exclui o dolo, para a teoria limitada da culpabilidade.

O conceito de erro de tipo permissivo tem suas raízes na teoria dos

elementos negativos do tipo, segundo a qual, a tipicidade ocasiona obrigatoriamente

a antijuridicidade. Todo fato típico já traz em si a ilicitude e, como consequência, a

incidência de uma causa de justificação afastaria sempre a tipicidade. Cuida-se da

ideia de um tipo total de injusto.260

Nessa linha de pensamento, afirma Cirino dos Santos:

A sugestiva teoria das características negativas do tipo – contra a qual, na verdade, não existe nenhum argumento sério -, resolve o problema do erro sobre a situação justificante de modo idêntico à teoria limitada da culpabilidade, mas com fundamentos diferentes: considera os componentes do tipo legal como elementos positivos e as justificações como elementos negativos do tipo de injusto e, por conseqüência, define o erro sobre a situação justificante como erro d e tipo – excludente do dolo – e, por extensão, do tipo -, se inevitável, admitindo imprudência, se evitável.261

Pode-se afirmar, então, que a teoria dos elementos negativos do tipo

influenciou a teoria limitada da culpabilidade no tratamento das hipóteses de erro

nas descriminantes putativas, mas elas possuem estruturas bastante distintas. De

fato, a Teoria Limitada da Culpabilidade pauta-se na concepção de tipo desenvolvida

por Ernest Mayer e adotada pelo sistema finalista, que entende serem tipicidade e

ilicitude conceitos totalmente separados e independentes. A configuração de um fato

típico nada mais é do que um indício da ilicitude da conduta.262

Assim, na hipótese de erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de

justificação ser inevitável, não há responsabilidade penal por ausência de tipicidade

da conduta e, em sendo o erro evitável, subsiste a punibilidade na modalidade

culposa, caso haja previsão do tipo culposo.

Por seu turno, o erro incidente sobre a existência ou sobre os limites de uma

causa de exclusão da ilicitude consubstancia-se em erro de proibição: se inevitável,

259 MUÑOZ CONDE, op. cit., p.41. 260 RODRIGUES, 2010, p.119. 261 SANTOS, 2000, p.231. 262 RODRIGUES, loc. cit.

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exclui a culpabilidade; mas quando evitável, pune-se por crime doloso, com

possibilidade de atenuação da pena.

A teoria limitada da culpabilidade apresenta, assim, o erro de proibição em

três categorias:

a) O erro de proibição direto, que tem por objeto a norma, considerada do ponto de vista da existência, da validade e da eficácia, exclui a reprovação de culpabilidade; b)o erro de tipo permissivo, que tem por objeto os pressupostos objetivos de justificação legal, existe como errônea representação da situação justificante – incide, portanto, sobre a verdade do fato - , e exclui o dolo (igual a um erro de tipo); c) o erro de permissão (ou erro de proibição indireto), que tem por objeto os limites jurídicos de causa de justificação legal, ou a existência de causa de justificação não prevista em lei, exclui a reprovação de culpabilidade, conforme as regras do erro de proibição direto.263

Muñoz Conde, com quem concordamos neste ponto, posiciona-se a favor do

tratamento dos pressupostos fáticos de uma causa de justificação como causa

excludente do dolo, haja vista que, nestes casos, o agente almejaria algo permitido

pela lei, sendo “fiel ao direito”, enquanto o autor que erra quanto aos limites ou

existência de uma causa de justificação deseja algo não permitido pela lei, ainda que

imagine estar permitido. Realmente, não se pode tratar da mesma forma, por

exemplo, um médico que realiza um aborto porque crê erroneamente que a

indicação econômico-social está admitida pelo ordenamento jurídico como causa de

exclusão da ilicitude e um médico que realiza um aborto porque crê que se dão os

pressupostos objetivos da indicação eugênica (graves defeitos físicos ou psíquicos

no feto).264

Para entender melhor esse exemplo apontado por Muñoz Conde, deve-se

considerar que, no Código Penal espanhol (diferentemente do que ocorre no Código

Penal brasileiro), no art. 417 bis, admite-se expressamente o aborto eugênico, desde

que estejam presentes os requisitos estritos. Já o aborto em razão da condição

econômico-social não é permitido pela legislação espanhola.

Preleciona Cirino dos Santos que o tratamento diferencial para os

pressupostos fáticos de uma causa de justificação se explica por critérios objetivos

de valoração do comportamento:

263 SANTOS, 2000, p.229-230. 264 MUÑOZ CONDE, 2003, p.41.

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a)Se o comportamento real é orientado por critérios iguais aos do legislador, os defeitos de representação do autor tem por objeto ou a situação típica (erro de tipo) ou a situação justificante (erro de tipo permissivo): ambas hipóteses excluem o dolo e admitem a possibilidade de punição por imprudência; b) se o comportamento real é orientado por critérios desiguais aos do legislador,os defeitos de representação do autor somente podem ter por objeto a valoração jurídica geral do fato (erro de proibição), com o efeito de exluir ou de reduzir a culpabilidade conforme a natureza inevitável ou evitável do erro.265

De todo o exposto relacionado às teorias do dolo e da culpabilidade, verifica-

se que elas apresentam diferenças sistemáticas profundas, mas todas consideram a

relevância do elemento da consciência da ilicitude, já que o exigem para o

aperfeiçoamento do delito.266

Na prática, entendemos que as teorias da culpabilidade respondem de melhor

forma a situações que podem resultar em lacunas de punibilidade, a exemplo dos

casos de erro de proibição evitável em que não haja previsão da figura típica

culposa, bem como não faz uso das categorias estigmatizantes, tal como “cegueira

jurídica”, de Edmund Mezger, na teoria limitada do dolo. Ademais, no tocante à

teoria extremada do dolo, vale lembrar que ela exige o conhecimento atual da

ilicitude, incorrendo no problema de os tribunais recorrerem a ficções para tornar

possível a aferição de tal requisito.

Pois bem, com a teoria da culpabilidade, o conhecimento da antijuridicidade

passa a converter-se em um conhecimento potencial e, com isso, num dado

psicologicamente diverso do autêntico conhecimento, pois uma potencial

consciência não é, em verdade, um conhecimento que possa ser comprovado como

qualquer outro dado psicológico. Cuida-se de um conceito normativo.267

Não obstante ser atualmente a concepção mais aceita, inclusive no Brasil,

bem como entendermos como a mais adequada, mormente do ponto de vista

265 SANTOS, 2000, p.230-231. 266 TOLEDO, 1977, p.26. Afirma Muñoz Conde que o conhecimento da antijuridicidade,

como elemento do delito e como pressuposto da pena, bem como a eficácia exculpante ou atenuante do erro sobre a pena, não é uma máxima que goze de aceitação universal e indiscutível, tanto em nível técnico, como prático. Sem embargo, parece um princípio cuja realização plena pode estimar-se como desejável, já que, entre outras coisas, supõe um avanço notável na linha evolutiva que tende a dar maior proteção aos direitos fundamentais do cidadão, também do cidadão delinquente, frente as excessivas intromissões do poder do Estado. (Tradução livre, MUÑOZ CONDE, 2003, p.24).

267 MUÑOZ CONDE, 2003, p.37.

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político-criminal, a teoria limitada da culpabilidade também apresenta falhas em sua

sistematização, das quais decorrem soluções injustas na prática.

Primeiramente, uma das objeções dirigidas às teorias da culpabilidade

(extremada e limitada) refere-se à impossibilidade sistemática da distinção entre

dolo e consciência da ilicitude, como também da diferença entre erro de tipo e erro

de proibição, principalmente no que concerne aos elementos normativos do tipo e às

normas penais em branco.268

Também afirmam que a teoria da culpabilidade nada mais é do que um meio

termo entre a tese tradicional de irrelevância plena do erro de proibição e a teoria do

dolo. No fundo, trata-se de uma hábil manobra para introduzir, na prática, a

exigência do conhecimento da ilicitude, mas, apenas em poucos casos, a

jurisprudência considera a existência do erro de proibição. É o que tem ocorrido na

jurisprudência alemã, que impõe exigências mais elevadas para a admissão da

evitabilidade do erro de proibição do que para a configuração do delito culposo. A

relevância prática da possível atenuação da pena, com o erro de proibição evitável,

é praticamente nula.269 Note-se que diferente não é o posicionamento da

jurisprudência brasileira, que dificilmente admite o erro de proibição evitável (e,

muito menos, o inevitável), conforme veremos mais adiante.

Um grande inconveniente da teoria limitada da culpabilidade, ao nosso ver,

diz respeito ao tratamento do erro de proibição incidente sobre normas penais

desconexas com as opções valorativas da sociedade. De fato, há infrações penais

que não correspondem com a noção de ilícito moral, social e ético, e que estão

presentes, sobretudo na legislação extravagante, a exemplo dos crimes ambientais,

econômicos e tributários. Os erros aparecem com maior frequência neste último

âmbito do que no direito penal nuclear, em que a regra para o erro de proibição

direto tem pouca aplicação prática.

Cabe citar exemplos brasileiros da previsão de “delitos especiais”, cuja tutela

se atribui à atuação do “moderno Direito Penal”, caracterizado pela proteção de

268 No tocante aos elementos normativos do tipo, aponta Muñoz Conde (2003, p.39) o

exemplo do erro sobre a existência ou a quantia da dívida tributária no delito fiscal, que pode ser tanto um erro de tipo quanto um erro de proibição, pois esse elemento do delito em questão é, ao mesmo tempo que elemento normativo do tipo, um elemento integrante da antijuridicidade.

269 MUÑOZ CONDE, 2003, p.38.

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novos bens, ante os riscos decorrentes do desenvolvimento técnico e científico,

conforme sintetiza Mariana Ortiz:270

Delitos societários (art. 177 do Código Penal, originário da Lei federal 6.404, de 15 de dezembro de 1976), a quase totalidade dos delitos contra o sistema financeiro nacional (Lei federal 7.492, de 16 de junho de 1986), o crime de concorrência desleal (art. 195 da Lei federal 9.279, de 14 de maio de 1996), bem como algumas figuras típicas da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (v.g., art. 168 da Lei federal 11.101, de 09 de fevereiro de 2005).

Vale notar que um setor da doutrina se afasta dos postulados da teoria

limitada da culpabilidade no que tange ao Direito Penal especial e administrativo. De

fato, alguns autores defendem a aplicação da teoria do dolo aos erros incidentes na

proibição que se produzem sobre normas pertencentes a esse âmbito de regulação.

O motivo para essa distinção baseia-se na falta, para grande parte das normas

desse âmbito de regulação, de uma correspondente norma moral que goze de

reconhecimento social. No entanto, ainda prevalece o conceito unificador do erro de

proibição para o tratamento do erro em todos os âmbitos do Direito Penal.

Cerezo Mir indaga se não seria mais conveniente adotar, tanto na regulação

dos delitos monetários como no âmbito do Direito Penal administrativo em geral, a

teoria do dolo, tal como tem proposto um setor da moderna Ciência de Direito penal

alemã. Todavia, o autor posiciona-se contra a adoção da teoria do dolo no Direito

penal administrativo, entendendo que basta a previsão da possibilidade de

atenuação considerável da pena para o erro de proibição vencível nesses casos; no

máximo, poder-se-ia prever uma regulação específica do erro de proibição no âmbito

dos delitos monetários e, em geral, no âmbito do Direito Penal administrativo.271

Assim, por exemplo, muitos doutrinadores consideram que, nas infrações

fiscais, somente se pode afirmar que houve atuação dolosa quando o autor conhecia

seu dever frente à Fazenda Pública. Também diversas decisões, na Alemanha, no

campo das infrações administrativas, seguem esta mesma linha, como, por exemplo,

270 ORTIZ, 2011, p.29. A autora apresenta o conceito de delitos especiais como “aqueles

cujos moldes típicos teriam sido desenhados pelo legislador a fim de limitar o círculo de sujeitos ativos a um grupo determinado de pessoas, conforme qualidades especiais descritas ou pressupostas na fórmula legal, como a condição de pai ou mãe, de funcionário ou agente público, de autoridade, advogado, médico, sócio, gestor de instituição financeira, entre outras”. (Ibidem, p.104).

271 CEREZO MIR, 2007, p.292.

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a consideração do erro sobre a obrigação de obter uma permissão ou autorização

para poder desempenhar certas atividades como erro de tipo.272

Outros autores suavizam os efeitos desta teoria, conferindo uma ampla

margem de atuação da inevitabilidade do erro de proibição, chegando alguns,

inclusive, ao extremo de considerar que esses erros seriam sempre inevitáveis.273

Entendemos que não é necessário um tratamento legal distinto para o erro de

proibição incidente no âmbito de regulação do Direito Penal especial, mas que se

deva levar em conta o grau maior de incidência da inevitabilidade do erro no que

tange a essas infrações penais.

Dessarte, pensamos que a norma jurídico-penal desconhecida e infringida

pelo autor tem fundamental importância para a determinação do erro de proibição.

Trata-se de um “grande personagem da história”, tal como enunciou Nieto Martín.274

Mas não apenas importam as normas que consagram valores e interesses distintos

272 PORTO, 1999, p.35-36. 273 Aponta Yamila, ainda, os autores que entendem que tais erros devem ser considerados

sempre invencíveis e os que se posicionam a favor de uma maior generosidade na apreciação da inevitabilidade dessa classe de erro, como também aqueles que propugnam por uma regulação específica, senão vejamos: “BAJO FERNÁNDEZ, en BAJO FERNÁNDEZ; SUÁREZ GONZÁLEZ; PÉREZ MANZANO (eds.), Manual de Derecho penal. Parte Especial. Delitos patrimoniales y económicos, 2ª ed., 1993, p. 586 (entre otras obras). Sin llegar al extremo de declarar el error de prohibición invencible en todo caso, propugnan una mayor generosidad en la apreciación de la invencibilidad de esta clase de error BAUMANN/WEBER/MITSCH, AT, 11ª ed., 2003, § 21, nm. 42; MAURACH/ZIPF, AT, t. I, 8ª ed., 1992, § 37, nm. 12; ROXIN, AT, t. I, 4ª ed., 2006, § 21, nm. 39 y ss.; el mismo, en DANNECKER et al. (eds.), FS–Tiedemann, 2008, p. 389. En España destaca la propuesta de lege ferenda de CEREZO MIR, «La regulación del error de prohibición en el Código penal español y su trascendencia en los delitos monetarios», en ADPCP, 1985, p. 284, con base en la cual se propone una regulación específica del error de prohibición en el ámbito del llamado Derecho penal administrativo que obligara a atenuar la pena en uno o dos grados cuando el error fuera vencible, o a eximir de responsabilidad cuando el error fuera difícilmente evitable (sin cursiva en el original). A un resultado similar llega NIETO MARTÍN, El conocimiento del Derecho. Un estudio sobre la vencibilidad del error de prohibición, 1999, quien insta a tener en cuenta la profesión del sujeto para determinar la vencibilidad del error en lo que este autor denomina «delitos artificiales», recibiendo la consideración de invencibles «los errores en los que incurren los profanos que actúan ocasionalmente en campos penales muy específicos», salvo en los supuestos de conocimiento de la antijuridicidad, en los que sí que habría necesidad de pena (pp. 185 y s.). DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, «El error de prohibición: pasado, presente y futuro», en CEREZO MIR et al. (eds.), El nuevo Código Penal: presupuestos y fundamentos. Libro Homenaje al Profesor Ángel Torío López, 1999, p. 359, se pronuncia igualmente a favor de la ampliación de los supuestos invencibilidad (cfr. asimismo pp. 364 y s., 368). También OLAIZOLA NOGALES, El error de prohibición. Especial atención a los criterios para su apreciación y para la determinanción de su vencibilidad e invencibilidad, 2007, pp. 138, 140.” (GÓMEZ, 2009, p. 12-13)

274 NIETO MARTÍN, 1999, p.160.

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dos considerados pela consciência social para a maior incidência do erro de

proibição, mas também outros critérios, a exemplo do grau de determinação da

norma e do seu tempo de vigência.

Nessa esteira de intelecção, Nieto Martín destaca o grau de determinação da

norma para se aferir a existência do erro de proibição e defende que o erro deve ser

o instituto a impedir a crescente indeterminação que caracteriza o Direito Penal

atual, para que não haja um peso que recaia sobre o cidadão. Também deve ser

levada em conta a ausência de publicação efetiva da norma por parte do legislador.

Finalmente, deve ser considerada a “idade” da norma. O erro será mais facilmente

invencível, segundo bem pontua Nieto Martín, nas normas “jovens”, já que, por seu

pouco tempo de vigência, ainda não foram assimiladas pela consciência social e,

mesmo nas normas “anciãs”, deve ser considerado o erro quando haja lacuna entre

a consciência social e os valores ou interesses tutelados.275

Note-se que, na Alemanha, o desenvolvimento do tema que se tem produzido

pela jurisprudência demonstra que a preferência por uma ou outra teoria, quanto à

posição da consciência da ilicitude na estrutura do delito, não oferece testemunho

claro acerca de qual delas seria a mais correta. O Tribunal Supremo Federal alemão

nunca rechaçou, de maneira fundada, a teoria do dolo em favor da teoria da

culpabilidade. A decisão tem dependido mais de qual das teorias conduz, no caso

concreto, a um resultado mais adequado.276

275 NIETO MARTÍN, 1999, p.161. 276 PORTO,1999, p.32.

No que concerne à polêmica do erro sobre as circunstâncias que servem de base a uma causa de justificação como um erro de tipo ou erro de proibição, a nova Parte Geral do Código alemão não resolveu expressamente o problema. Segundo Cerezo Mir, as decisões do Tribunal Supremo alemão incorreram, durante muito tempo em contradições, seguindo, em geral, a teoria da culpabilidade restrita, salvo no caso do erro sobre as circunstâncias que servem de base ao estado de necessidade como causa de justificação, em que se aplicava a teoria da culpabilidade pura. Mas, ultimamente, aplica-se, em caráter geral, a teoria da culpabilidade restrita. (CEREZO MIR, 2007, p.979). -se que, em muitos casos, a matéria de proibição não está descrita totalmente por meio de elementos objetivos. Segundo Roxin, nos delitos de comissão dolosos, nem todos os tipos são fechados. Nestes casos, deve-se investigar a antijuridicidade mediante a comprovação dos “elementos do dever jurídico”. Assim, nestas situações, Roxin defende um duplo caráter das circunstâncias abarcadoras da antijuridicidade, ou do elemento por ele definido de “contrariedade ao dever”. O erro sobre um elemento do dever jurídico é um erro de tipo na medida em que a falsa representação se refira ao elemento descritivo e determinante do injusto. Ao contrário, haverá um erro de proibição quando o autor, com completo conhecimento das circunstâncias decisivas para o injusto, erra sobre a proibição da ação. (Cf. ROXIN, 1979, p.209-220).

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Ante a constatação de que tanto as teorias do dolo, quanto as teorias da

culpabilidade apresentam falhas e que nenhuma das teorias tem condições de

oferecer resultados satisfatórios para todos os inúmeros casos concretos, devemos,

então, verificar qual é a solução que se coaduna, da melhor forma, a um Direito

Penal do Estado Democrático de Direito, no qual a dignidade da pessoa humana se

estabelece como ponto central.277

Sobre a possibilidade de conhecimento do caráter injusto do fato, posiciona-

se bem Cirino dos Santos no sentido de que ela não deve ser medida por critérios

rigorosos, incompatíveis com a vida social, mas sim de acordo com múltiplas

variáveis, tais como a posição social, a capacidade individual, as representações de

valor do autor, bem como por critérios normais de reflexão ou de informação.278 Para

o autor, a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitável:

A certeza ou, mesmo, a existência de fundamentos razoáveis sobre a permissibilidade do fato seriam argumentos suficientes, porque ninguém pode conhecer a infinidade das proibições da lei penal: se o dolo de tipo, em grande parte dos crimes dolosos do direito penal comum, e na maioria dos crimes dolosos do direito penal especial, aparece desacompanhado da consciência da antijuridicidade, então a maioria dos casos de erro de proibição deve ser considerada inevitável e, assim, perdoável.279

Pois bem, entendemos que não se pode estudar o tema da consciência da

ilicitude do fato sem se levar em consideração o grau de socialização do

indivíduo,280 bem como a importância social de sua conduta, sob pena de incorrer

em resultados injustos, sobretudo diante da “sociedade do risco”281 na qual vivemos

e das novas formas de criminalidade. Para superar a polêmica entre teoria final e

teoria causal, surgiu uma terceira concepção, que chama a atenção sobre a

relevância social do comportamento humano.

Ante o esposado, verifica-se a necessidade de expormos alguns aspectos da

nova concepção científico-penal, a saber, o denominado funcionalismo penal.

277 Afirma Teresa Manso Porto que um dos principais motivos por que em nenhum caso em

que se aplica a teoria do dolo ou da culpabilidade se chega a resultados satisfatórios, constitui na existência de uma regulação diferenciada para o erro de tipo e para o erro de proibição, em que não se pergunta pelas razões do erro, mas se determina a punibilidade atendendo apenas à existência de um fato psíquico. (PORTO, 1999, p.35-36).

278 SANTOS, 2000, p.237. 279 Ibidem, p. 238. 280 QUEIROZ, 2010, p.225. 281 Expressão lançada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck(1998) ao tratar da configuração

social da pós-modernidade.

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Ressalte-se que não se trata de uma construção teórica tão inédita quanto possa

parecer, pois que foi edificada no início dos anos 70, tendo como principais

precursores Claus Roxin e Günther Jakobs. Ocorre que a dogmática penal se

projeta frente a um novo processo metodológico. Em vez do modelo rígido e

individualizado, de natureza lógico-construtiva, passou a desenvolver-se sobre um

sistema de maior flexibilidade. Há uma real integração do Direito Penal com as

exigências do contexto social.282

2.7 O FUNCIONALISMO NO DIREITO PENAL

A evolução histórica da dogmática penal demonstra que o naturalismo e o

delineamento ontológico não proporcionaram uma fundamentação sólida para nossa

ciência, porquanto se pautam num paradigma rígido, distante da realidade social.283

A racionalidade individual como fonte principal de elaboração normativa não mais

atendia às necessidades de sistemas edificados por um Estado Democrático de

Direito.284

Nas últimas três décadas do século XX, surgiram as correntes funcionalistas

em matéria penal, por meio de uma aproximação às ciências sociais. Ressalte-se

que não existe um único funcionalismo, mas diversos.285 O funcionalismo penal se

desenvolveu com base em novas correntes filosóficas: o funcionalismo evidenciado

pelos pensadores Parsons e Luhman, adaptado ao sistema de Direito Penal por

Günther Jakobs; e a corrente doutrinária de política criminal de Roxin, que

demonstra a necessidade de comunicação entre as normas jurídico-penais com a

realidade social, por meio de referências teleológicas.

Essa nova concepção científico-penal encontra-se, atualmente, em discussão

e visa a modificar pontos da dogmática penal que possuíam uma orientação

inflexível, dificultando a operacionalidade do Direito Penal para questões concretas,

a exemplo das novas concepções de culpabilidade.

Os adeptos do funcionalismo, não obstante inúmeras divergências entre eles,

concordam em recusar as premissas sistemáticas do finalismo, partindo do

282 BREIER, 2010, p.579. 283 Cf. MIR PUIG, 1992 apud BREIER, 2010, p.578-579. 284 BREIER, op. cit., p.579. 285 GRECO, 2000, p.131.

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entendimento de que a construção sistemática jurídico-penal deve ser guiada por

finalidades jurídico-penais, e não por dados prévios ontológicos (ação, causalidade,

estruturas lógico-reais, etc).286

Nota-se a importância da teoria dos fins da pena para o sistema funcionalista.

Rechaça-se a pena retributiva, para a admissão de uma pena puramente preventiva,

tanto pela prevenção geral positiva ou de integração (possui o fim de reafirmar a

legitimidade do direito penal para aplicar sanções aos infratores.); quanto pela

prevenção especial, quer seja positiva (atua na pessoa do delinquente para

ressocializá-lo ou reeducá-lo), quer seja negativa (impedir que o indivíduo cometa

novos delitos, mantendo-o preso). Afasta-se também a prevenção geral negativa ou

de intimidação, no sentido de impedir que o indivíduo cometa novos delitos.

Os autores funcionalistas entendem que a principal finalidade legitimadora da

pena é a prevenção geral positiva, que gera efeitos sobre a população respeitadora

do direito, tanto para a confirmação da vigência fática das normas, quanto para a

reafirmação dos bens jurídicos protegidos.

Claus Roxin adota a teoria unificadora preventiva dialética, entendendo que

deve haver uma combinação das concepções preventivas da sanção, e não a

justaposição entre elas. Por seu turno, defende Jakobs a função preventiva geral

positiva da pena, de modo a manter a confiança geral nas normas, conforme

apresentaremos mais adiante.

Criticando o caráter retributivo da pena, afirma Roxin que uma execução da

pena somente pode alcançar êxito quando tenta corrigir as falhas sociais que

tenham levado o condenado a delinquir, ou seja, quando se apresenta como

execução ressocializadora de caráter preventivo especial. Para o autor, a missão do

Direito Penal não pode se basear na retribuição, mas apenas na ressocialização e

nas inevitáveis exigências de prevenção geral.287

Vale notar que o atual Código Penal pátrio, no art. 59, estatui que a sanção

penal deva ser estabelecida segundo os critérios da necessidade e suficiência para

a prevenção e reprovação do delito. Portanto, não se pode aduzir que há, na

legislação penal brasileira, a determinação da pena com caráter retributivo.

Malgrado a existência de inúmeros funcionalismos, destacaremos apenas

alguns aspectos dos funcionalismos de Roxin e de Jakobs. O funcionalismo

286 ROXIN, 2002, p.205. 287 ROXIN, 1981, p.44.

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estrutural de Roxin define o sistema social como um sistema fechado rígido,

regulamentado por normas orientadas por valores, cuja função é a estabilidade do

meio social. Os valores de convivência são considerados como aqueles que se

integram entre os indivíduos, podendo, com o transcorrer do tempo, ser modificados

de acordo com as exigências do próprio sistema.288

A característica marcante do sistema de Roxin é a sua tonalidade político-

criminal. Para Roxin, política criminal e direito penal devem interagir, trabalhar juntos

de maneira que o Direito Penal corresponda à forma por meio da qual as valorações

político-criminais podem ser transferidas para o modo de vivência jurídica. Segundo

ensina Luis Greco, o dogmático deve identificar a valoração político-criminal para

cada conceito da teoria do delito e funcionalizá-lo, ou seja, “construí-lo e desenvolvê-

lo de modo a que atenda essa função da melhor maneira possível”.289

Por seu turno, o funcionalismo sistêmico se fundamenta em expectativas de

relações, sendo que a norma exerce um fator de estabilização na relação sistema-

ambiente. Contrariamente ao funcionalismo estrutural, o estratégico não tem uma

natureza rígida, pois que a norma surge a partir de uma flexibilização em seu sentido

estrutural. O sistema não está fixado por orientação da consciência humana, mas

sim em sistemas expressos pelos fenômenos sociais.290

Ocorre que, diferentemente de Roxin, Jakobs funcionaliza não apenas os

conceitos, dentro do sistema jurídico-penal, mas também este, dentro de uma teoria

funcionalista-sistêmica da sociedade.291

Impende destacar a influência da teoria sistêmica de Niklas Luhmann para o

pensamento jurídico segundo o qual é necessária a interligação de diversos

sistemas sociais, sobretudo para o funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs.

Referida teoria visa a “inserir elementos de fora do direito para informar sua

atualização e configuração”.292

De acordo com a teoria sistêmica, o Direito, assim como a sociedade na qual

se insere, consubstancia-se em um sistema autorreferencial e autopoiético, que se

integra de expressões de sentido, de comunicações.

288 BREIER, 2010, p.580. 289 ROXIN, 1973 apud GRECO, 2000, p.135. 290 BREIER, op.cit., p.580-581. 291 GRECO, 2000, p.139. 292 Idem, 2011, p.27.

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Vale notar que o termo “autopoiese” se deve ao biólogo chileno Humberto

Maturana e a seu discípulo Francisco Varela. Designa, originariamente, o modo

operativo de autorreprodução dos sistemas vivos. Ditos sistemas se caracterizam

pela capacidade de produzir e reproduzir, por si mesmos, os elementos que os

integram, definindo sua própria unidade, organização e estrutura. Este modo de

autorreprodução é levado adiante por células, que são elementos integrantes dos

sistemas vivos, e que se realiza no interior do mesmo sistema.293

Disserta Niklas Luhmann que a comunicação, em razão da forma de

organização da pópria autopoiese, não pode perceber, nem produzir percepções. A

comunicação pode apenas comunicar sobre as percepções, a exemplo de quando

alguém diz: “eu vi que [...]”. Nas palavras do sociólogo:294

La comunicación, con sus propias recursiones, anticipa y retorna a más comunicación: únicamente de esta manera – es decir, em la urdimbre de lacomunicación autoproducida – puede producir los elementos del próprio sistema: las comunicaciones. De este modo se conforma um sistema autopoiético próprio, em sentido estricto – y no solo metafórico – del concepto. Precisamente, em razón de esta forma de organización de la propia autopoiesis, la comunicación no puede ni percebir ni producir percepciones. Es evidente que la comunicación puede comunicar sobre las percepciones, por ejemplo, cuando alguien dice “he visto que”[...].

Jakobs incorporou as ideias de Luhmann no sentido de que o Direito é um

sistema social caracterizado pela autopoiese e que adota a comunicação como

prestação dotada de sentido, que além de expressar algo na sociedade, contribui

para manter a estrutura social. Vejamos a explicação de Polaino-Orts sobre o

assunto:

O Direito como um sistema social significa que se caracteriza pelo modo operativo de autorreprodução, isto é, autopoiético, o qual adota a comunicação, a expressão de sentido. Por essa razão, para Jakobs, tanto a infração da norma, quanto a pena reafirmadora da vigência da norma são expressões de sentido, a saber: comunicações (prestações dotadas de sentido), que expressam algo na sociedade e contribuem para a manutenção da estrutura social. No caso da pena, ademais, tal prestação desempenha o papel de reafirmar a identidade da sociedade e, portanto, funcionalmente representa uma prestação para a manutenção do sistema jurídico.295

Ressalte-se que Luhmann não propugna pela necessidade de que o Direito

Penal tenha de receber influências externas, mas apenas atesta esse fato. Na seara

293 JAKOBS; POLAINO-ORTS, 2010, p.86. 294 LUHMANN, 2005, p.24-25. 295 LUHMANN, loc. cit.

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jurídica, sua teoria presta aos autores que defendem que o Direito deve ser um

sistema aberto, permeável às influências do meio no qual atua, respondendo aos

influxos sociais de modo mais direto e evidente.296

Com base em Luhmann, afirma Jakobs que o Direito Penal confirma a

identidade social. O delito não é tido como princípio de uma evolução nem tampouco

como evento que deva ser solucionado de modo cognitivo, mas como falha de

comunicação, sendo imputada essa falha ao autor como sua culpa. Para o penalista,

a sociedade mantém as normas e nega-se a conceber a si mesma de outro modo.

Assim, a pena constitui-se na própria manutenção da identidade social, e não

apenas um meio para mantê-la.297

Importa abordar, posto que de maneira sucinta, a questão da sociedade do

risco existente no mundo atual, para compreendermos melhor o desafio do

desenvolvimento de uma dogmática jurídico-penal que acompanhe as rápidas

mudanças do tempo da pós-modernidade.

Ocorre que o desenvolvimento da ciência e as inovações tecnológicas,

caracterizadores da sociedade pós-industrial, criaram uma série de novos riscos. No

século XX, os riscos eram majoritariamente decorrentes da natureza, tais como

doenças e acidentes naturais. Nos dias hodiernos, cuida-se de riscos decorrentes da

própria ação do homem e que, de forma contraditória, encontram-se fora de alcance

do próprio controle humano.298

Nesse particular, observa-se que a criminalidade da era da globalização não

mais envolve apenas uma relação individual, mas alcança a coletividade. Todavia, o

legislador e os operadores do Direito não apresentam soluções eficazes para o

aumento de práticas de novos crimes. Ao revés, há uma expansão simbólica de

normas criminalizadoras, ocasionando uma deslegitimidade do Direito Penal, bem

como uma sensação social de insegurança.299 Silva Sánchez anota que a sociedade

atual pode ser melhor definida como “a sociedade da „insegurança sentida‟ (ou como

296 GRECO; RASSI, 2011, p.27. 297 JAKOBS, 2003, p.04. 298 GRECO; RASSI, op. cit., p.28. Os autores apontam como exemplo de novo risco a

utilização de alimentos transgênicos. De fato, diante da insuficiência de alimentos para suprir a fome de todas as pessoas do mundo, a utilização dos transgênicos revela-se como uma necessidade, a despeito de ainda não haver estudos conclusivos sobre os malefícios que esses alimentos podem ocasionar. Mas entre a falta de comida e a existência de comida transgênica, assume-se o risco de produzir esta. (Ibidem, p.31).

299 CAMARGO, 2002, p.125-127. Nesse sentido: SOUZA, 2007, p.21.

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a sociedade do medo)”.300 O autor explica sobre a insegurança como uma forma

mais forte de viver os novos riscos:301

Tanto é assim que a própria diversidade e complexidade social, com sua enorme pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a falta de critérios para a decisão sobre o que é bom e o que é mau, sobre em que se pode e em que não se pode confiar, constitui uma fonte de dúvidas, incertezas, ansiedade e insegurança.

Desse modo, verifica-se como tentativa de resolver esses riscos, o acréscimo

do número de leis, a melhoria nos aparatos de segurança pública, a criação de

novas figuras delituosas e o aumento das penas das infrações já existentes.

Referidas mudanças no panorama mundial e, em especial, brasileiro, tornam o tema

do erro de proibição ainda mais relevante.

Ressalte-se que os defensores da teoria do risco, em sua maioria, não

propugnam que o Direito Penal se apresente como a solução para o controle de

riscos, nem que o direito deve servir como meio de controle para a produção desses

riscos. O que resolve tais problemas “é a criação de políticas públicas de

esclarecimento e prevenção de riscos, com vistas a minimizar os impactos da

modernidade.” No entanto, há casos em que não se podem controlar os riscos,

independentemente do que se faça, a exemplo de experimentos científicos

nucleares.302

Assim, percebe-se que, apesar de o Direito Penal não servir como meio de

controle dos riscos e da produção destes, deve considerar e adaptar-se à existência

dessas transformações ocorridas na realidade social contemporânea diante do

fenômeno da globalização econômica.

Apresentaremos, a seguir, a culpabilidade sob as visões de Jakobs e Roxin,

tendo em vista a relevância do assunto para o alcance de um melhor entendimento

da consciência da ilicitude sob a ótica funcionalista.

2.7.1 Culpabilidade e erro de proibição em CLAUS ROXIN

Primeiramente, cumpre notar a diferença feita por Roxin entre culpabilidade e

responsabilidade. Esta última consubstancia-se em uma nova categoria dentro da

300 SILVA SÁNCHEZ, 2011, p.40. 301 Ibidem, p.41. 302 GRECO; RASSI, 2011, p.30.

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estrutura da teoria do delito. No entender do autor, responsabilidade corresponde a

“uma outra valoração que se segue à ilicitude e, em regra, desencadeia a

punibilidade”.303

Roxin não pretende retirar a culpabilidade da estrutura do delito, nem

substituí-la pelo elemento da responsabilidade. Para ele, compõe-se a

responsabilidade de dois dados, a saber: a culpa do agente e a necessidade

preventiva de uma sanção penal.304 Percebe-se, portanto, que, por meio do conceito

de responsabilidade penal - que é mais amplo e abrange o de culpabilidade -, Roxin

aproxima a dogmática jurídico-penal à política criminal.

Essa responsabilidade baseia-se, portanto, na política criminal pela teoria dos

fins da pena. Note-se que o autor alemão não admite a culpabilidade como

fundamento da pena, mas apenas como limitação da aplicação penal, de modo a

proteger o indivíduo de que, por razões puramente preventivas, haja uma redução

de sua liberdade pessoal maior do que sua correspondente culpabilidade.305 Desse

modo, verifica-se a necessidade de se limitar a intervenção estatal a fim de se

prevenirem abusos.

Ressalte-se que as limitações da responsabilidade em razão das

necessidades preventivas da pena, posto que o comportamento seja culpável,

somente podem ser extraídas da lei (Código Penal ou Constituição), e não por

qualquer critério arbitrário do juiz, no caso concreto.306

Aduz Alessandra Greco que o direito penal, segundo a concepção de Roxin,

inspira-se pela política criminal e, assim, o sistema deve admitir brechas. Mas o

critério de política criminal defendido pelo autor alemão é o legal, e não o feito pelo

juiz.307

No que tange à culpabilidade, o autor entende que ela não deve ser entendida

como “reprovabilidade”, já que se trata de um conceito abrangente, mas vazio de

conteúdo, não se refere ao substrato material da reprovação (o que se está, afinal,

reprovando subjetivamente). A culpabilidade se define, ao expor de Roxin, como a

303 ROXIN, 1991, p.503. 304 ROXIN, op. cit., p.504 305 Idem, 1981, p.21. 306 Idem, 2006, p.91. 307 GRECO, 2004, p.78-79.

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“realização do injusto apesar da idoneidade para ser destinatário de normas e da

capacidade de autodeterminação que daí deve decorrer”.308

Ocorre que a concepção funcionalista de Roxin, diferentemente do finalismo,

independe da constatação do livre-arbítrio e do “poder agir de outro modo” do

indivíduo, impassíveis de comprovação. Afastando-se da polêmica questão da

existência ou não da liberdade, apresenta o doutrinador um elemento decisivo para

a afirmação da culpabilidade: a acessibilidade normativa.

O autor determina que somente a “capacidade para ser destinatário de

normas” é passível de verificação empírica e aduz que a aferição das condições de

compreender a ilicitude do agir do sujeito, bem como da redução ou prejudicialidade

da capacidade de autocontrole pode ser feita através de métodos psicológicos ou

psiquiátricos. Até mesmo o leigo, após uma intensa bebedeira, pode constatar a

redução de sua orientação intelectual e de sua capacidade de autodeterminação.309

Nessa perspectiva, a exclusão da culpabilidade se funda não apenas na

ausência ou redução da culpabilidade, como também em considerações preventivo-

gerais e especiais sobre a isenção de pena, ocasionando efeitos significativos na

prática, a exemplo da questão do erro de proibição. Verifica-se, destarte, que a

solução apresentada por Roxin, quanto à culpabilidade, a qual se assenta na falta de

uma necessidade preventiva geral ou preventiva especial atende de melhor forma ao

conceito de justiça, tendo em vista os casos práticos da sociedade atual.

Para Roxin, o “poder atuar de outro modo”, núcleo tradicional da

culpabilidade, não pode delimitar o critério da evitabilidade do erro. Invoca o autor

alemão o §17 do StGB (Código Penal alemão) , que dispõe sobre o erro de proibição

inevitável, para arguir que, à primeira vista, parece indicar que efetivamente tem-se

em conta o simples poder atuar de outro modo. Apenas quem não podia conhecer,

em absoluto, o ilícito de seu fazer, deve ser excluído da reprovação da pena do

delito doloso. Não há lugar para considerações político-criminais. Sob a influência

dessa rigorosa concepção da culpabilidade, a jurisprudência tem fortalecido tais

tendências ao exigir, para admitir a inevitabilidade do erro de proibição, mais do que

o exigido para a observância do dever de cuidado necessário no momento de excluir

a culpa.310

308 GRECO, op. cit., p.138. 309 ROXIN, 2006, p.146. 310 ROXIN, 1981, p.160.

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Em se levando a sério essa posição, segundo bem anota Roxin, seria

praticamente impossível aplicar essa causa de exculpação. Os erros de proibição

seriam sempre evitáveis se as pessoas tivessem que extremar sua consciência ou o

cuidado em seu dever de informar-se até o ponto que exige a jurisprudência.311 De

fato, o Tribunal Supremo Federal alemão tem sustentado um ponto de vista extremo.

Todas as circunstâncias de todos os fatos constituem razões para se pensar em sua

antijuridicidade. Assim, seguindo essa concepção, o simples atuar já constitui uma

razão para pensar na antijuridicidade. Bacigalupo conclui que, em se partindo de

uma exigência tão rígida, “a vida social se paralisaria”. 312

Para Roxin, uma proibição que não possa ser conhecida suficientemente

seria já ineficaz por razões jurídico-constitucionais; mas se a proibição pode ser

conhecida, seu desconhecimento não poderia ser objetivamente evitável.

Certamente existem pessoas que, subjetivamente, são menos avisadas (a exemplo

dos estrangeiros) que outras.313

No expor de Roxin, nenhum erro de proibição é absolutamente inevitável, em

se considerando os casos práticos, pois que, em teoria, sempre se poderá utilizar os

dados de mais um perito, até que as eventuais dúvidas sobre a licitude da conduta

venham à tona. A jurisprudência, por uma interpretação rigorosa, quase nunca

admite o erro de proibição inevitável. No entanto, segundo Roxin, com quem

concordamos, atende mais à razoabilidade, do ponto de vista político-criminal, a

defesa de uma concepção que atenue os rigores da teoria da culpabilidade, não

exigindo do agente mais do que a medida normal de fidelidade ao direito presente

numa pessoa integrada socialmente.314

Assim, deve-se considerar inevitável o erro quando o cidadão desconhece a

norma, apesar de ter cumprido as expectativas que decorrem de um grau normal de

fidelidade ao direito. Nestas situações, a ausência de sanção não provoca comoção

alguma na consciência jurídica do resto dos membros da sociedade, ou seja, não

existe necessidade preventivo-geral da pena. Nem tampouco o autor manifesta uma

posição contrária ao direito que justifique a pena atendendo a necessidades

311 ROXIN, 1981, p.161. 312 BACIGALUPO, 2002, p.130-131. 313 ROXIN, op. cit., p.161. 314 Idem, 2006, p.159.

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preventivo-especiais, já que atuou pensando que seu comportamento estava

permitido, em virtude de razões dignas de consideração.315

Concordamos com o autor ao afirmar que não se deve exigir um nível tão

elevado de evitabilidade como o que se deduz da formulação clássica do princípio

de culpabilidade. É desnecessária tamanha exigência, do ponto de vista preventivo,

em uma sociedade tão complexa como a atual, em que existem regulações

minuciosas de muitas facetas da atividade humana.

Dessarte, entendemos que a postura de Roxin, quanto ao erro de proibição,

atende de melhor forma à questão de se aferir a sua existência, bem como a

evitabilidade ou não, em relação à concepção finalista, já que ele considera a

atuação humana no contexto social, atendendo a aspectos preventivos gerais e

especiais da pena e, desse modo, procura ir ao encontro do sustentáculo do Estado

democrático de direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Assim, há uma

maior incidência da inevitabilidade do erro de proibição.

No entanto, o autor comete uma falha, ao nosso ver, quando exige um juízo

de valoração não sobre o erro ou o autor, mas sobre a natureza dos motivos. Para

Roxin, não é relevante o “estado mental” do autor, isto é, se tem ou não

efetivamente dúvidas, mas sim as razões que possam ser consideradas razoáveis

pela sociedade para provocar um estado de dúvida. Roxin não considera relevante a

capacidade intelectual ou cultural do autor.316

O autor alemão sistematiza em três grupos os motivos capazes de provocar

reflexão do agente sobre a antijuridicidade de seu comportamento, ou seja, que dão

origem ao erro de proibição evitável. O primeiro grupo refere-se aos casos em que

existem dúvidas. Em segundo lugar, um erro de proibição é evitável quando o autor

conhece que o setor no qual atua está regulado e não adota qualquer medida de

modo a alcançar os conhecimentos jurídicos necessários. Em terceiro e último lugar,

o erro é também evitável quando o autor é consciente de que seu comportamento

atinge outra pessoa ou a coletividade.317

Desse modo, entendemos que as dúvidas não devem ser consideradas

razoáveis apenas de acordo com o que entende a sociedade como um todo,

devendo-se considerar a capacidade intelectual e cultural do autor. Deve haver uma

315 PG, §21, marg. 38 y 39 apud NIETO MARTÍN, 1999, p. 138. 316 NIETO MARTÍN, 1999, p.139. 317 PG, §21, marg. 56 apud NIETO MARTÍN, op. cit., p.140-141.

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margem maior de incidência da inevitabilidade do erro de proibição, principalmente

em se considerando a irrelevância do comportamento social do indivíduo e a sua

integração à sociedade contemporânea. Nesse aspecto, cabe citar o exemplo dos

índios no Brasil. É comum, por exemplo, a prática sexual entre eles na mais tenra

idade. Diante disso, deve-se tomar em consideração se o indivíduo se encontra

integrado às normas da dita “cultura civilizada”, e não tomar em conta o padrão do

“homem médio”, para que haja a imputação do crime disposto no artigo 213 do

Código Penal (“estupro contra vulnerável”).

Com efeito, vivemos num país continental, com estatísticas assustadoras a

demonstrar o nosso fracasso no combate ao analfabetismo, sem contar os

chamados analfabetos funcionais, e este mesmo país exige de seus filhos, do

Oiapoque ao Chuí, que conheçam todas as suas leis, todas, devem ser conhecidas

e assimiladas por todos os cidadãos brasileiros, sob pena de serem culpados dos

mais diversos tipos penais, que necessariamente desconhecem por completa falta

de acesso à informação.

Suponha-se que um cidadão analfabeto e faminto, residente no interior da

Bahia, cace e mate um tatu para alimentar sua família. Seus avôs caçaram, seus

pais caçaram e ele, quando tem fome, mata um ou outro animal que encontra para

comer. Suponha, agora, que alguém o denuncie e ele é processado e vai, perante o

juiz, confessar sua suposta prática reiterada de crimes contra o meio ambiente,

afirmando que, até o momento em que foi chamado perante o Poder Judiciário, não

sabia que caçar para saciar a fome fosse crime. Fatalmente, será condenado, a se

admitir que não possa alegar o desconhecimento da lei em sua defesa.

Muitas decisões dos tribunais brasileiros não levam em consideração a

pessoa integral e seu núcleo de direitos fundamentais ao afirmar que o

desconhecimento da lei não é relevante. Ocorre que a dignidade da pessoa humana

não pode ser desprezada em qualquer situação, impondo-se aos intérpretes do

Direito o dever de tê-la como referência, norte, no momento em que se defronte com

uma demanda individual ou coletiva.

Vale citar algumas decisões que demonstram como a jurisprudência

brasileira, majoritariamente, não admite o erro de proibição sem uma análise mais

profunda da relevância da conduta no contexto social, nem da posição do

delinquente na sociedade. Aponta-se como fundamento da inexistência do erro,

muitas vezes, apenas a obrigatoriedade do conhecimento da lei:

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Ementa: Apelação Criminal - Exposição à venda, com finalidade lucrativa, de CDs e DVDs obtidos com violação de direito autoral.Materialidade delitiva comprovada por boletim de ocorrência, auto de apreensão, laudo pericial e prova oral.Autoria comprovada pela confissão do réu e pelo depoimento do policial que participou da apreensão dos bens falsificados.Erro de tipo e erro quanto à ilicitude do fato não reconhecidos- O réu conhecia a lei e a falsidade dos bens, vendendo-os mesmo assim.Impossibilidade de redução da pena porque as circunstâncias atenuantes e o erro evitável sobre a ilicitude do fato não ocorreram.Recurso desprovido. (APL 990101075989 SP. 6ª Câmara de Direito Criminal.Public. 29/11/2010).

Ementa: Penal. Processual Penal. Apropriação indébita praticada em razão de emprego. Materialidade e autoria incontestavelmente comprovadas. Presença de animus REM sibi habendi. Princípio da insignificância. Inaplicabilidade. Ausência de vetores. Erro de proibição não evidenciado. Potencial consciência da ilicitude do fato. Condenação mantida. Dosimetria. Circunstâncias judiciais totalmente favoráveis. Pena base no mínimo legal. Impossibilidade de fixação de pena abaixo do mínimo legal em razão de atenuantes. Causa de aumento de pena. Acréscimo na fração única estabelecida (1/3). Ausência de prejuízo. Regime aberto. Substituição por restritiva de direitos. Recurso desprovido. (APR 961047020098070001 DF 0096104-70.2009.807.0001. 2ª Turma Criminal. Julg. 02/02/2012). Penal. Porte de arma. Artigo 16, parágrafo único, inciso IX da Lei n. 10.826/2003. Erro evitável. Ilicitude do fato. Atipicidade da conduta. Substituição da pena por restritiva de direito. Possibilidade. 1. Desconhecimento da lei é inescusável. Assim, o erro

inescusável não justifica a redução de pena de porte ilegal de arma de fogo quando não resta evidenciado o fundamento do desconhecimento de legislação em comento [...] (APR 99872320078070009 DF 0009987-23.2007.807.0009.2ª Turma Criminal. 18/06/2010). (grifo nosso).

Há raras decisões admitindo a inevitabilidade do erro de proibição com base

na posição social do autor, podendo-se citar o seguinte exemplo que, apesar de

tratar da comercialização de CD pirata, conduta amplamente divulgada como

criminosa pelos diversos meios de comunicação, considera a existência do erro de

proibição no caso concreto, senão vejamos:

EMENTA: Violação de direitos autorais. CD pirata - O princípio constitucional da legalidade é a garantia de que todo cidadão só poderá ser condenado criminalmente se houver lei prévia que permita a ele saber - ainda que potencialmente - que a conduta é crime no ordenamento jurídico. A expressão "violar direitos autorais" é demasiadamente vaga e até mesmo especialistas em Direito Penal não poderiam precisar o seu âmbito de significação, quanto mais um vendedor ambulante sem educação jurídica. O desconhecimento da lei é escusável se

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esta não for suficientemente clara para permitir que qualquer um do povo possa compreender - ainda que potencialmente - o seu significado - Recurso provido. (TJMG- Apelação 1.0172.04.910501-5/001(1). Relator Des. Erony da Silva. Publicado em 11 de fevereiro de 2005). (grifo nosso).

Também cumpre citar a decisão de Vladimir Passos de Freitas admitindo o

erro de proibição inevitável tendo em vista a situação concreta:

PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. RECEBIMENTO INDEVIDO DE PENSÃO POR MORTE. EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE. ERRO DE PROIBIÇÃO. ART. 21 DO CÓDIGO PENAL. ABSOLVIÇÃO. - Incide a excludente de culpabilidade - erro de proibição, se a acusada não alcançou a consciência de ilicitude da sua conduta, supondo inexistir irregularidade na continuidade do recebimento de pensão após a sua maioridade e o falecimento do pai, mormente quando lhe foi renovada a senha do cartão magnético sem a exigência no cumprimento das condições legais para o recadastramento. (ACR 200104010299912, VLADIMIR PASSOS DE FREITAS, TRF4 - SÉTIMA TURMA, DJ 02/10/2002). (grifo nosso).

Diante do exposto, concluímos que a visão de Roxin, quanto ao erro de

proibição, é louvável em muitos aspectos, principalmente ao criticar a posição

tradicional e rigorosa da jurisprudência alemã, que exige ao extremo o dever de

informar-se do cidadão e inadmite, na grande maioria das vezes, o erro. Também

admitimos correta a existência de motivos para o alcance da ilicitude da conduta.

Todavia, o autor objetiva os motivos que levam à evitabilidade do erro de proibição,

ao aduzir que se deve considerar existente a dúvida de acordo com o que a

sociedade entende como razoável, o que é inconveniente na prática, pois cria

presunções de evitabilidade, contrariando o princípio da presunção de inocência.

2.7.2 Culpabilidade e erro de proibição em Günther Jakobs

Igualmente a Roxin, desenvolveu Jakobs sua teoria de culpabilidade de modo

a relacioná-la ao seu entendimento de fins da pena. Todavia, diferentemente de

Roxin, no entender de Jakobs, pune-se para manter a confiança geral na norma,

para exercitar o reconhecimento geral dela. Com arrimo neste fim da pena, o

conceito de culpabilidade não deve se orientar para o futuro, mas sim para o

presente, porquanto o Direito Penal contribui para a estabilidade do ordenamento.318

318JAKOBS, 1995, p.581.

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Assim, com intuito normatizador do conteúdo da culpabilidade e com base na teoria

sistêmica de Luhmann, defende Jakobs que a pena cumpre uma função preventiva

geral positiva.

Para o autor, não basta apenas partir da finalidade da pena para se derivar

alguma teoria da culpabilidade. O conteúdo da culpabilidade também é determinado

pela constituição social. No entanto, o fim da pena e a constituição social não podem

se combinar com outros conteúdos, mas sim acomodar-se um ao outro.319

Assim, para Jakobs, o conceito de culpabilidade tem de configurar-se

funcionalmente, ou seja, como conceito ligado a determinados princípios de

regulação (de acordo com os requisitos do fim da pena), para uma sociedade de

estrutura determinada. O fim da pena é, segunda sua concepção, de tipo preventivo-

geral. Trata-se de manter o reconhecimento geral da norma, e não de intimidação ou

de lição.320

Jakobs também critica o entendimento do livre arbítrio como pressuposto de

toda culpabilidade ou como pressuposto geral da culpabilidade, afirmando que este

conceito carece de dimensão social. No expor do penalista, ao se limitar a

culpabilidade à garantia da ordem social, não importa se o autor tinha realmente (e

não apenas de uma perspectiva normativa) uma alternativa de comportamento

realizável individualmente. O que importa é saber se havia, para a imputação do

autor, uma alternativa de organização social que seja, geralmente, preferível.321

Desse modo, com o embasamento de sua concepção de culpabilidade na

ordem social, para o autor alemão, o indivíduo só pode receber pena quando ela for

necessária para a manutenção da ordem e da paz social e nos limites exatos de sua

culpabilidade.

Cumpre aduzir que Jakobs tece uma diferenciação entre culpabilidade formal

e material. A culpabilidade formal é por ele denominada de prevenção geral positiva,

no sentido de que a pena serve para fortalecer a vigência da norma atacada. Já a

culpabilidade material é entendida como a infidelidade da pessoa a uma norma

jurídica legítima, sendo aquela que trata o delinquente como pessoa, havendo um

respeito à dignidade da pessoa humana.322

319 JAKOBS, 1995, p.567. 320 Ibidem, p.584. 321 Ibidem, p.585. 322 PACHECO, 2009, p.205-206.

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Apresenta, portanto, Jakobs um conceito funcional de culpabilidade como um

déficit de fidelidade ao direito (defeito volitivo), cujo juízo é realizado de forma

objetiva, não se considerando as questões individuais do agente. A principal crítica a

seu conceito de culpabilidade diz respeito à incompatibilidade com o princípio da

culpabilidade num Estado Democrático de Direito por atribuir relevância aos critérios

objetivos, principalmente à ordem jurídica, e não aos aspectos individuais do autor

da conduta. Nesse sentido se posiciona Tatiana Corrêa:

A principal objeção do conceito funcional de culpabilidade é a sua desconsideração ao homem como pessoa, negação que resulta nas mesmas consequências da Escola Positiva, que via no homem delinquente um ser diferente. Ao tomar a ordem jurídica como preponderante, como aquilo que deve ser preservado, em detrimento do homem, ocorre a sua instrumentalização, que deve ser combatida tendo em vista o princípio da dignidade humana, que coloca o homem como fundamento daquela.323

Após a excursão sobre a culpabilidade na visão de Jakobs, cumpre abordar o

seu entendimento acerca do erro de proibição. Em se considerando o erro sobre a

existência de uma norma, defende Jakobs que essa falsa representação não afeta

nem o “status quo”, nem o desenvolvimento da realidade, mas sim a norma que

requer do indivíduo um comportamento determinado.324

Jakobs assinala a distinção entre o erro de tipo e o erro de proibição visto

que, em ocorrendo este último, é possível que a própria autocompreensão do direito

se veja questionada, o que não ocorre com o primeiro tipo de erro.325

Assim como Roxin, Jakobs critica o posicionamento tradicional para o erro de

proibição que vem sendo adotado pela jurisprudência alemã desde 1952, o qual se

baseia numa concepção finalista. O Tribunal Supremo alemão aproveita-se do

princípio da culpabilidade como reprovabilidade para aplicá-lo à situação do

desconhecimento da norma da seguinte maneira: “para que o ser humano se decida

a favor do direito, no exercício de sua autodeterminação livre, responsável e moral,

deve conhecer aquilo que é conforme o direito e aquilo que é antijurídico”.326

No entanto, como é possível decidir-se pelo injusto sem conhecer ou, ao

menos, sem poder conhecer o direito? Ocorre que a presunção do conhecimento da

lei foi admitida numa época política e socialmente equilibrada da segunda metade do

323 CORRÊA, 2004, p.232-233. 324 JAKOBS, 1996, p.30. 325 Ibidem, p.31. 326 Ibidem, p.32-33.

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século XIX. Todos conheciam ou podiam conhecer o Direito Penal, que era claro

naquele tempo. 327 No entanto, Jakobs rechaça esse argumento para a solução do

problema do desconhecimento do direito, já que concorrem fatos psíquicos sobre a

presunção de conhecimento ou de possibilidade de conhecimento da norma. Como

se pode considerar que, àquela época, não havia erros inevitáveis se se

considerava, ao mesmo tempo, que o error iuris inevitável era irrelevante?328

Realmente, parece-nos contradição afirmar que não existiam erros de

proibição inevitáveis (ou o antigo erro de direito), já que todos conheciam as leis, e

dizer que esses erros eram irrelevantes. Ou admite-se que esses erros não existiam,

ou admite-se que, embora existissem, eram considerados irrelevantes juridicamente.

No entender de Jakobs, a fundamentação para a irrelevância da ignorância do

direito, na segunda metade do século XIX, devia ser a seguinte: a obrigação de cada

um de procurar, por si mesmo, o conhecimento do Direito era o preço que havia de

pagar pela liberdade de movimentos na sociedade burguesa nascente. Com o

abandonar das modalidades tradicionais de atividade econômica, surgiu uma

necessidade de segurança para manter contatos bastante anônimos entre as

pessoas, o risco de que elas errassem sobre suas obrigações jurídico-penais era

intolerável; por isso, quem errasse deveria suportar o risco.329

Note-se que Jakobs faz a diferença entre positividade (reconhecimento da

razão de vigência da ordem positiva) e o conhecimento de seu conteúdo atual.

Assim, segundo o autor, um fato cometido com desconhecimento inevitável da

norma jurídico-penal, mas com uma atenção suficiente ao direito positivo em seu

conjunto, contraria a norma em sua configuração atual, mas não fere o princípio que

dá legitimidade a todas as normas: a positividade.330

Para Jakobs, o juízo de evitabilidade do erro de proibição deve ser feito para

saber se o autor é ou não competente (responsável) quanto ao defeito de

conhecimento da antijuridicidade. Para a resposta à questão da evitabilidade ou não

do erro de proibição, há de se levar em conta dois tipos de normas: as fundamentais

e as normas de um âmbito “disponível”, ou seja, normas cujo conteúdo não é, em

uma sociedade determinada, “evidente”.331

327 KUHLEN, 1987 apud JAKOBS, 1996, p.33. 328 JAKOBS, 1996, p.34. 329 JAKOBS, loc. cit. 330 JAKOBS, op. cit., p.37. 331 JAKOBS, 1991 apud BACIGALUPO, 2002, p. 132-133.

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No campo das normas fundamentais, as razões para se cogitar a

antijuridicidade da conduta somente podem faltar quando se apresenta um déficit de

socialização (por exemplo, quando pertence a uma cultura diversa, em que tais

normas não são reconhecidas). Às normas fundamentais também pertencem

aquelas que regulam um âmbito vital em que o autor tenha atuado durante um

tempo considerável, a exemplo das que regulam o exercício da atividade

profissional.332

No âmbito das normas “disponíveis”, ao contrário, o agente não pode invocar

em sua defesa um déficit real de conhecimento jurídico, se a norma tivesse entrado

em sua consciência, no caso em que houvera tido uma suficiente disposição de

cumprir a norma. Jakobs entende que a pessoa deve responder por seu erro na

hipótese em que, de seu comportamento, surge um reconhecimento insuficiente do

Direito positivo e havia razões para ela pensar na antijuridicidade.333

Assim, em se tratando do erro de proibição e de sua vencibilidade, para

Jakobs, deve-se averiguar se o grau da ignorância do autor pode ser aceito por

parte do Estado e da sociedade, sem que se atinja a função da prevenção geral

positiva do Direito Penal. Por essa razão, a evitabilidade do erro de proibição é um

conceito, tal como o da própria culpabilidade, dependente dos fins da pena.

Pode-se apontar como críticas à concepção de erro de proibição de Jakobs e

de sua evitabilidade as mesmas dirigidas à sua posição da culpabilidade, tendo em

vista que as decisões ficarão mais sujeitas aos fins da pena, não se considerando a

pessoa do infrator em sua integralidade, dotada de particularidades e, sobretudo, de

dignidade.

Há a perda do valor do indivíduo em face da coletividade ou do grupo. Bem

anota Nieto Martín que, para Jakobs, o Direito Penal parece ignorar as

características concretas do autor (inteligência, cultura, formação [...], salvo nos

casos extremos como o da socialização exótica. Apenas interessa o papel que o

indivíduo desempenha na sociedade e que, dentro deste, que ele se mantenha

dentro do parâmetro de cidadão fiel ao direito. 334

Entendemos, portanto, que deve existir um juízo de imputação pessoal o mais

individualizado possível, além de se considerar o contexto social da conduta. Não

332 BACIGALUPO, 2002, p.133. 333 Ibidem, p133. 334 NIETO MARTÍN, 1999, p.150.

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basta tomar em consideração a coletividade. Todavia, é elogiável a posição de

Jakobs no sentido de criticar a evitabilidade nos modos rigorosos da jurisprudência

tradicional (que segue a concepção finalista), a qual admite a existência do erro de

proibição apenas em casos excepcionais, e de oferecer uma solução considerando

os elementos sociais.

2.8 A POSIÇÃO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NA TEORIA DO DELITO PARA O FUNCIONALISMO

Em se considerando a localização da consciência da ilicitude na teoria do

delito, há uma quase unanimidade entre os autores funcionalistas em afastar a teoria

estrita da culpabilidade. Esta teoria considera, conforme já vimos, todo erro sobre a

ilicitude do fato como erro de proibição. Assim, o erro sobre os pressupostos fáticos

de uma causa de justificação são tidos como erro de proibição, podendo excluir ou

atenuar a culpabilidade, sem atingir o dolo do tipo.

Ocorre que a maioria dos funcionalistas defende a teoria limitada da

culpabilidade, no sentido de se admitir o erro sobre a presença de uma situação

legitimante como excludente do dolo.335

No entanto, há defensores do funcionalismo que rechaçam a teoria da

culpabilidade em ambas as suas formas, admitindo-se a teoria do dolo. Otto é um

grande defensor da teoria modificada do dolo.336 Cuida-se de uma nova teoria

limitada do dolo, admitida por alguns penalistas europeus nos dias atuais. Segundo

esta teoria, a consciência da ilicitude integra o dolo. O erro de proibição inevitável,

então, exclui a consciência da ilicitude e, por conseguinte, o dolo; este faz parte da

culpabilidade e, assim, fica excluída também a culpabilidade e, como consequência,

a responsabilidade.337

Já no caso de erro de proibição evitável, para a teoria modificada do dolo, o

agente será punido com a pena do crime doloso, podendo ser atenuada. Neste

ponto, consiste a distinção entre a teoria modificada do dolo e a teoria limitada do

335 GRECO, 2000, p.120-160, p.148. 336 OTTO, 1996 apud GRECO, 2000, p.120-163; p.148. 337 GOMES, 2001, p.67.

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dolo, já que, para esta última, o erro evitável resulta na punição do autor por crime

na modalidade culposa.338

No Brasil, pode-se destacar como atual defensor do dolus malus Paulo

Queiroz, no sentido de que o conceito causalista de dolo, “entendido como

consciência e vontade de praticar um fato que se sabe proibido, readquire plena

atualidade, não bastando, por conseguinte, um conhecimento naturalístico

apenas”.339

Ante todo o exposto, entendemos que a teoria limitada da culpabilidade,

apesar suas falhas, ainda é a mais adequada, principalmente do ponto de vista

político-criminal, e se coaduna ao funcionalismo penal, bem como ao princípio da

culpabilidade.

O que deve ocorrer é uma melhor interpretação, nos casos concretos, para se

reconhecer a existência do erro de proibição, e não levar ao extremo de impor

exigências muito mais elevadas para a evitabilidade do erro de proibição do que

para a constatação dos crimes culposos. Assim, deve-se considerar a conduta no

contexto social para se aferir a existência do erro de proibição ou não,

principalmente em se admitindo as finalidades preventivas da pena.

Podem-se apontar, ademais, algumas das principais críticas às teorias do

dolo, dentre outras: a) dolo e consciência da ilicitude consubstanciam-se em

fenômenos psicológicos diversos, daí resulta a impossibilidade de reuni-los em um

mesmo conceito; b) a excepcionalidade das condutas culposas, da qual decorrem as

lacunas de impunidade nas teorias do dolo; c) as teorias do dolo tratam com

indiferença a distinção entre a ação cometida em erro culpável de proibição e a

comissão culposa da conduta.

Entendemos, em face do quanto expendido anteriormente, que a teoria

limitada da culpabilidade, apesar de suas falhas, ainda é a mais adequada,

principalmente do ponto de vista político-criminal, e se coaduna ao funcionalismo

penal, bem como ao princípio da culpabilidade.

Ante todo o exposto, o que deve ocorrer é uma melhor interpretação, nos

casos concretos, para se reconhecer a existência do erro de proibição, e não levar

ao extremo de impor exigências muito mais elevadas para a evitabilidade do erro de

proibição do que para a constatação dos crimes culposos. Assim, deve-se

338 GOMES, 2001, p.67. 339 QUEIROZ, 2010, p.227.

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considerar a conduta no contexto social para se aferir a existência do erro de

proibição ou não, principalmente em se admitindo as finalidades preventivas da

pena.

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CAPÍTULO III

A CULPABILIDADE E O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

3.1 O DIREITO PENAL INDÍGENA À ÉPOCA DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL

O Direito Penal Indígena, quando do descobrimento do Brasil, é objeto de

poucos estudos dentre os doutrinadores da área jurídica. Todavia, pode-se citar,

dentre algumas exceções dignas de registro, as obras de Assis Ribeiro e de João

Bernardino Gonzaga.

Referida escassez decorre das diversas dificuldades do tema, dentre as quais

se sobressai a ausência de uma documentação clara e objetiva sobre os costumes

indígenas. Anota Assis Ribeiro que, às vezes, as notícias apresentadas nos

documentos históricos são tão desencontradas que o autor fica numa situação de

insegurança ao afirmar ou contraditar certas questões respeitantes aos costumes

dos índios, sob o ponto de vista jurídico.340

Como consabido, a história é um dos instrumentos para aprisionar o tempo.

Além dela, outro bom instrumento para conhecer uma cultura é a literatura, dado

que, por meio desta, pode-se compreender melhor o que se pensava na época.

No entanto, os indígenas brasileiros não deixaram documentos reveladores

de seus pensamentos, de seus costumes e, sobretudo, de sua alma. O que há de

literatura desse período são, principalmente, as cartas e os documentos deixados

pelos europeus. Suas informações são abundantes, porém contraditórias. Sobre as

opiniões díspares contidas nos documentos históricos, vale transcrever a seguinte

lição:

As opiniões são desencontradas, mui principalmente porque alguns só viram nos índios elementos bárbaros, crueis, sempre voltados para as baixas inclinações e incapazes de praticarem algum gesto dignificador, ao passo que outros caíram no extremo oposto, fazendo de suas obras verdadeiros hinos de exaltação ao selvagem, só admitindo virtudes nos povos indígenas, sem considerar entre eles a existência de quaisquer vícios.341

340 RIBEIRO, op. cit., p.49. 341 Ibidem, p.51.

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A despeito da complexidade do tema, não se pode negar a existência de um

direito entre os índios. O que não havia na sociedade indígena brasileira era o direito

escrito, segundo ensina Rocha Pombo:

É admirável como alguns autores (o nosso Varnhagen, por exemplo), chegaram a sustentar que entre os indígenas do Brasil não havia sequer noção alguma jurídica. Conceito semelhante é forçoso reconhecer que é fruto mais de um conhecimento incompleto do verdadeiro estado social do selvagem do que talvez do procedimento que, contra este e sem favor dos privilégios da civilização, gerava, no ânimo de certos historiadores e filósofos, o propósito ilegítimo de tudo negar ao bárbaro. Seria bastante um exame apenas mais cuidadoso da sociedade indígena, para se lograr a certeza desta noção: o direito entre os índios, quer na tribo, quer na taba, quer na família, era um fenômeno tão real, pelo menos, como o é entre os povos mais cultos. Apenas não havia na sociedade rude das selvas o direito escrito.342

Conclui Assis Ribeiro que não apenas existia o fenômeno jurídico entre os

ditos selvagens, como também havia uma seleção de normas, que eram aplicadas

especificamente conforme a gravidade do delito. Assim, nos costumes, nos

privilégios e nas proibições encontram-se princípios penais, que comprovam a

existência de um Direito Penal entre os íncolas, bem como atestam a organização

de uma justiça no seio da sociedade deles.343

Propugnando a linha de pensamento de que o direito penal era encontrável

na sociedade indígena, assinala Pierangeli que “entre os indígenas brasileiros havia

uma série de crimes que eram punidos exemplarmente, e entre eles podemos

alinhar o homicídio, as lesões corporais, o furto, o rapto, o adultério da mulher, a

deserção”.344

Conforme já assentado no presente trabalho, a mentalidade primitiva é

totalmente diferente do pensamento do homem considerado civilizado. Quanto à

responsabilidade penal, afirma Assis Ribeiro que os índios “não consideravam os

seus membros como dotados igualmente de uma mesma responsabilidade”.345

Segundo Ribeiro, às mulheres os indígenas “tiravam uma grande parte da

responsabilidade no analisar os seus atos e aos anciãos se cometiam todas as

342 POMBO, 1956, p.169. 343 RIBEIRO, 1993, p.58. 344 PIERANGELI, 2004, p.42. 345 RIBEIRO, op. cit., p.66.

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responsabilidades possíveis, por considerá-los como conselheiros quase que

infalíveis nas suas recomendações”.346

Contrariando a posição de Assis Ribeiro, assinala João Bernardino Gonzaga

que os índios brasileiros, quando do descobrimento do Brasil, apenas dominaram os

aspectos objetivos, nivelando todas as hipóteses de responsabilidade.347 Escreve

Gonzaga que há apenas uma fonte, um exemplo que destoa de todos os outros

textos da época: o capítulo XVII do Pe. Ivo d‟Evreux, o qual retrata a misericórdia do

Governador francês diante do pedido de um índio ancião para salvar seu filho da

pena de morte, por ter o irmão deste se ferido (chegando a morrer) nas flechas que

ele trazia em sua cintura, em meio a uma desavença.

Gonzaga discorda do fato de que, em razão do pedido de misericórdia do

velho índio, os silvícolas tivessem o nosso mesmo senso de justiça. Para o autor, o

referido ancião, como já convivia com os brancos, ter-se-ia deixado influenciar por

suas ideias, ou as conhecia o suficiente para saber que, em casos parecidos, não se

justificaria, para os colonizadores, a pena de morte. Ademais, argumenta Gonzaga

que o pai possuía a firme crença de que seu filho seria castigado. Dessa forma, os

silvícolas ainda se achavam presos às antigas concepções objetivistas e

compensatórias.348

Nessa linha de pensamento, ensina Pierangeli que “o homicídio culposo

nunca foi considerado, porque, no geral, reclama um estádio de evolução de que

careciam os nossos silvícolas”.349

Outrossim, vale advertir que não havia qualquer noção de imputabilidade

entre os indígenas. Havia, inclusive, a vingança dos índios contra objetos, animais e

crianças da mais tenra idade. Assevera Gonzaga que as crianças podiam sofrer o

mesmo tratamento vindicativo dispensado aos adultos.350

Ante o depreendido, conclui-se que a responsabilidade dos silvíciolas era

meramente objetiva e que não há qualquer indício de que eles atendiam ao requisito

da culpabilidade, como também não consideraram a questão do erro de proibição.

346 RIBEIRO, 1993, p.64-65. 347 GONZAGA, [19--], p.105. 348 Ibidem, p.105-107. 349 PIERANGELI, 2004, p.43. 350 GONZAGA, op. cit., p.109.

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3.2 HISTÓRICO DA CULPABILIDADE E DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO

Após análise da responsabilidade objetiva entre os indígenas, quando do

descobrimento do Brasil, mister se faz o estudo sobre o desenvolvimento dos

institutos de acordo com a previsão dos diversos diplomas penais, desde as

Ordenações do Reino até o atual Código Penal de 1940, com a reforma da parte

geral de 1984.

3.2.1 A responsabilidade penal no Livro V as ordenações Filipinas

No Brasil, como Colônia de Portugal, as leis lusitanas deram início à história

jurídico-positiva do Direito Penal brasileiro. Dentre elas, destacam-se as Ordenações

Filipinas, cujo Livro V foi o primeiro estatuto que versou sobre a matéria penal e o

que vigorou por mais tempo no nosso país, alcançando mais de dois séculos, já que

entrou em vigor em 1603 e perdurou até o advento do Código Criminal de 1830.

O Livro V das Ordenações Filipinas possui cento e quarenta e três títulos. Não

há uma parte geral. No que tange à estrutura do referido diploma, cumpre trazer à

colação as palavras de José Frederico Marques:

De par com isto, os preceitos se aglutinavam em uma estrutura primária e rudimentar de indisfarçável empirismo. Falta ao Livro V uma parte geral; e, na parte especial, os delitos se enumeram casuisticamente, sem técnica apropriada, numa linguagem (muitas vezes pitoresca) em que falta o emprego de conceitos adequados do ponto de vista jurídico. As figuras delituosas se amontoam sem nexo, na ausência de espírito de sistema para catalogá-las racionalmente, formando muitas vezes verdadeiros pastiches, tal a confusa e difusa redação dos textos em que se condensam as condutas delituosas e respectivas sanções.351

Cabe mencionar que o referido Código Filipino também cuidou de alguns

assuntos processuais penais, a exemplo do Título CXXXI (“Dos que se livrão sobre

Fiança”).

Ressalte-se que tal diploma penal é bastante criticado pela doutrina e

apontado, muitas vezes, como o “famigerado”,352 monstruoso ou terrível Livro V. Não

obstante as inúmeras críticas dispensadas pelos penalistas, não se pode olvidar que

351 MARQUES, 1997, p. 116. 352 BRUNO, 2005, p. 100.

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essa legislação refletia a estrutura da sociedade da época. O Livro V das

Ordenações Filipinas não pode ser apenas objeto de censuras, uma vez que ele

trouxe assuntos capazes de sugerir equacionamento, senão idêntico, próximo ou

embrionário do que temos hoje na legislação penal pátria, a exemplo do excesso na

legítima defesa e da delação premiada.353

Saliente-se que há diversos tipos penais referentes às condutas atentatórias à

Igreja, ao Reino e à família, nesta ordem. As penas são bárbaras, atrozes e

desiguais, já que a qualidade ou condição da pessoa influía na sanção.

Não havia, sequer, princípios penais fundamentais, como o princípio da

legalidade e o princípio da culpabilidade, imperando a arbitrariedade na aplicação

das sanções.

Para embasar o posicionamento de que não havia a exigência da relação

subjetiva entre o fato e o seu autor, bastar observar, por exemplo, o disposto no

crime de “Lesa Magestade”, no título VI do Código Filipino, o qual fere o princípio da

pessoalidade, já que a punição alcança não apenas a pessoa do delinquente, mas

também os seus ascendentes e descendentes, senão vejamos:

9. [...] E sendo o commettedor convencido por cada hum delles, será condenado que morra de morte natural cruelmente, e todos os seus bens, que tiver ao tempo da condenação, serão confiscados para a Corôa do Reino, postoque tenha filhos ou outros alguns descendentes, ou ascendentes, havidos antes, ou depois de ter commettido, tal malefício. 13. E em qualquer destes casos acima declarados, onde os filhos são exclusos da herança do pai, se forem varões, ficarão infamados para sempre, de maneira que nunca possão haver honra de Cavalleria, nem de outra dignidade, nem Officio; nem poderão herdar a parente, nem a estranho abinstetado, nem per testamento, em que

353 A legítima defesa foi tratada, primeiramente, no Livro V das Ordenações Filipinas, em seu

Título XXXV, o qual dispunha que “se a morte for em sua necessária defensão, não haverá pena alguma, salvo se nella excedeo a temperança, que devêra, o poderá ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso”. Pela leitura do dispositivo citado, verifica-se que o Código Filipino não apenas versou acerca do instituto da legítima defesa, como também cuidou do seu excesso. No que tange à delação premiada, o referido diploma legal trouxe dois dispositivos referentes ao instituto sob apreço, ambos no Livro V. O primeiro, disposto no Título VI (“Do Crime de Lesa Magestade”), item 12, trata do perdão que deve ser atribuído ao participante e delator do crime de lesa majestade, desde que ele não tenha sido o principal organizador da empreitada criminosa. O segundo dispositivo que cuidou da delação premiada no Livro V das Ordenações Filipinas foi o Título CXVI (“Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros á prisão”), cuja redação trata do perdão das penas do delator que relatar a participação de outrem com quem se associou na empreitada para crimes especificados na norma. (Cf. PIERANGELI, 2004, p.100, 120, 181-182).

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fiquem herdeiros, nem poderão haver cousa alguma, que lhes seja dada, ou deixada, assi entre vivos, como em última vontade, salvo sendo primeiro restituídos à sua primeira fama e stado.354

Outro exemplo de infringência ao princípio da pessoalidade é o estatuído no

Título XIII (“Dos que commettem peccado de sodomia, e com alimárias”), pois que a

pena também atingia os descendentes do autor, conforme se depreende do trecho a

seguir:

Toda a pessoa, de qualquer qualidade que seja, que peccado de sodomia per qualquer maneira commeter, seja queimado, e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos seus bens sejam confiscados para a Côroa de nossos Reinos, postoque tenha descendentes; pelo mesmo caso seus filhos e netos ficarão inha-biles e infames, assi como os daquelles que commettem crime de Lesa Magestade.355

Ademais, vai de encontro ao princípio da culpabilidade o exposto no crime de

adultério, no Título XXV, item 10 :

E se algum homem accusasse mulher por lhe fazer adultério com alguma certa pessoa, e por não provar o adultério, ella fosse absoluta, e depois da morte do dito marido ella casar, ou dormir com aquella mesma pessoa per que o marido a accusara, serão ambos condenados, assi elle como ella, em morte natural, e que percão as fazendas para os herdeiros do primeiro marido que a assi accusou, se os accusar quizerem.356

Nota-se a presença de um Direito Penal do Autor no Livro V das Ordenações

Filipinas, já que se pune, por exemplo, os hereges, os apostatas e os feiticeiros.

Nestes casos, sanciona-se pelo que as pessoas são, não pelo que fizeram. Dessa

forma, percebe-se que sempre existiram “inimigos” na sociedade e que a

contemporânea teoria do “Direito Penal do Inimigo”, capitaneada por Günther

Jakobs, não possui fundamentos tão novos quanto possam parecer.

No Brasil, atualmente, pode-se apontar como exemplos de novos inimigos os

racistas e os grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o

Estado Democrático, haja vista que as ações destes agentes foram elencadas na

Constituição Federal como sendo crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Daí

exsurgem as indagações: por que esses crimes são imprescritíveis? Eles são os

mais graves? Não, trata-se de uma escolha do legislador constituinte para chamar a

atenção para estes delitos. Eles não são mais graves, ao nosso modo de pensar.

354 PIERANGELI, 2004, p.100. 355 Ibidem, p.106. 356 Ibidem, p.114.

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Pode-se citar como um crime mais grave que esses o genocídio. Então, cuida-se de

uma escolha totalmente subjetiva.

Retornando ao Código Filipino, verifica-se que, malgrado a inexistência do

princípio da culpabilidade, compete mencionar que há alguns tipos culposos, como

nos delitos de homicídio (Título XXXV) e de moeda falsa (Título XII, item 1).357

No que se refere à questão do erro e da ignorância, note-se que há textos

esparsos tratando desses assuntos, ainda que de maneira embrionária. Por

oportuno, cabe mencionar que o Livro V das Ordenações do Reino dispôs a respeito

da figura do erro de fato. O Título XIV do mencionado diploma do Reino

estabeleceu o crime “Do Infiel que dorme com alguma Christã, e do Christão, que

dorme com Infiel”. Tal dispositivo, como era de ordinário no Código Filipino,

descreveu a pena de morte para quem cometesse o delito. Entretanto, segundo a

norma, caso a pessoa não tivesse conhecimento da condição de infiel ou de cristã

da outra, estaria aquela isenta da pena. Senão vejamos:358

E isso mesmo o que tal peccado fizer por ignorância, não sabendo, nem tendo justa razão de saber como a outra pessoa era de outra Lei, não deve haver por elle pena de justiça. E sómente a pessoa, que da dita infidelidade for sabedor, ou tiver justa razão de o saber, será punida segundo a culpa, em que for achada.

Também há previsão do erro de fato no Título LIII do Livro V, que prevê o

crime “Dos que fazem Scripturas falsas, ou usão dellas”. No crime do uso de

documento falso, se a pessoa alegar e provar que não sabia da falsidade do

documento, as penas eram relevadas. Nos exatos termos do dispositivo do estatuto

filipino:359

[...] Porém, se a parte allegar e provar alguma razão, per que pareça ao Julgador, que do feito conhecer, que elle não fez a falsidade, nem deu a ella ajuda, conselho, nem favor, nem podia della ser sabedor, ser-lhe-há recebida; e provando tanto, per que deva ser relevado das ditas penas, não lhe serão dadas.

357 Cumpre citar os referidos delitos culposos, tal como disposto no Livro V. Primeiramente,

vale observar o homicídio na modalidade culposa: “E se a morte for por algum caso sem malícia, ou vontade de matar, será punido, ou revelado segundo sua culpa ou innocencia, que no caso tiver” . Já o crime culposo de moeda falsa encontra-se assim previsto : “E se a caza, ou qualquer outra propriedade, onde a moeda falsa for feita, não for culpado em o dito malefício será outrosi confiscada, se o senhor della ao tempo stiver tão perto della, e tiver com o culpado tanta conversação, que razoadamente se possa conjecturar, que devia ser sabedor do tal delicto [...]” (PIERANGELI, 2004, p. 120; 105.)

358 Ibidem, 2004, p.107; 109. 359 Ibidem, p.130-131.

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Por fim, quanto ao erro de fato, nota-se a sua disposição no Título LXVII, cujo

nomen juris é “Dos que arrancão marcos”. Vejamos a parte do referido artigo que

cuida do erro de fato: “E arrancando marco, não sabendo que o era, mas sómente

com tenção de furtar a pedra, ou a cousa posta por demarcação, haverá a pena de

furto, segundo a vallia della, pois que teve tenção de furtar, e furtou cousa alhêa.”360

Em se considerando o erro de direito, anota Alcides Munhoz Netto que a

presunção de conhecimento comportava exceções, a exemplo das próprias

Ordenações do Reino que, no Título CXXXV, permitia-se que a pena dos delitos

praticados por menores de 17 a 20 anos fosse diminuída, desde que pequena

houvesse sido a malícia da conduta. As outras exceções eram provenientes do

Direito Imperial e do Direito Canônico, aplicáveis, subsidiariamente, em caso de

omissão da lei, estilos ou costumes do Reino. Invocava-se, no Repertório das

Ordenações, as lições dos práticos sobre a escusabilidade da ignorantia iuris, em

relação às mulheres, aos rústicos, aos militares e às crianças, desde que não

incidisse sobre preceitos de direito natural e que houvesse sido impossível a

consulta a peritos.361

3.2.2 A Constituição do Império de 1824

A Constituição de 1824, primeira do Brasil, apesar de ter sido outorgada por

D. Pedro I, possuía tanto dispositivos conservadores, quanto liberais. De fato, a

Carta Magna, promulgada um ano e seis meses após a independência do Brasil,

refletia a contenda existente entre aqueles que queriam limitar os poderes do

imperador, representados, sobretudo, pelos proprietários de terras e os que

apoiavam a manutenção do império.

É preciso mencionar que o art. 179 da referida Constituição possui um caráter

marcadamente liberal e dispõe sobre diversos princípios, direitos e garantias aos

cidadãos, dentre os quais se destacam os princípios penais.

Para o estudo da responsabilidade penal, cumpre assinalar que a

Constituição de 1824 foi o primeiro diploma, no Brasil, que tratou dos princípios da

360 PIERANGELI, 2004, p.138. 361 MUNHOZ NETTO, 1978, p.50-51.

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culpabilidade e da pessoalidade, consoante se depreende da leitura dos incisos VIII

e XX do art. 179, abaixo expostos :

VIII. Ninguem poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos declarados na Lei; e nestes dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Villas, ou outras Povoações proximas aos logares da residencia do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoavel, que a Lei marcará, attenta a extensão do territorio, o Juiz por uma Nota, por elle assignada, fará constar ao Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testemunhas, havendo-as [...]. XX. Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja.”362

Ademais, o inciso XVIII, do art. 179, da Constituição do Império, exigiu a

elaboração de um Código Criminal, o qual adveio somente em 1830 e que será

abordado no próximo tópico.

3.2.3 Código Criminal de 1830

Proclamada a independência, alguns motivos contribuíram, de maneira

decisiva, para a substituição das Ordenações pelo Código Criminal brasileiro: por um

lado, a situação de vida política autônoma da nação, que exigia uma legislação

própria; por outro, as ideias liberais, as novas doutrinas jurídicas, bem como as

condições da sociedade dessa época, bem distintas daquelas que o Código Filipino

foi destinado a reger.363

Outrossim, não se pode olvidar que a elaboração de um diploma penal

brasileiro tornou-se uma exigência constitucional, conforme já demonstrado neste

trabalho, por meio do art. 179, nº18, da Carta Política do Império.

José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vasconcelos foram

encarregados de elaborarem os projetos, tendo sido dada preferência ao de

Vasconcelos. Foi aprovado o projeto em sessão de 20 de outubro de 1830, na

Câmara, sendo remetido ao Senado. Em 16 de dezembro, D. Pedro I sancionou-o.

Ressalte-se que o Código Criminal tem caráter liberal, o que não é surpresa,

tendo em vista o liberalismo da Constituição de 1824. Ademais, baseou-se no

362 BARRETO, 1971, p.42. 363 BRUNO, 2005, p.102.

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princípio da utilidade pública, de Bentham, como também recebeu a influência do

Código francês de 1810 e do Código napolitano de 1819.364 Aponta Basileu Garcia

também como influências do Código Criminal o Código da Baviera de 1813 e o

Código organizado por Livingstone para a Louisiana, região que foi integrada,

posteriormente, aos Estados Unidos.365

A despeito dos influxos estrangeiros, não se pode deixar de afirmar que o

Código do Império foi marcado pela originalidade. No dizer de Aníbal Bruno, cuida-

se de “obra legislativa realmente honrosa para a cultura jurídica nacional, como

expressão avançada do pensamento penalista no seu tempo.” O renome do estatuto

criminal é atestado pelo fato de que dois criminalistas europeus aprenderam o

idioma português para melhor interpretá-lo: o belga Haus e o alemão Mittermaier.

Como se não bastasse, o Código espanhol recebeu fortes influências do diploma

brasileiro e, mais tarde, foi substituído por um segundo e terceiro, ambos com base

no primitivo modelo.366

Como exemplos que fundamentam o avanço do Código Criminal, pode-se

citar o princípio da insignificância, estabelecido no art. 2º, item 2º, segunda parte; a

liberdade de imprensa e de crença, tal como elencado no art. 9º, itens 1º e 2º; a

autoria mediata, disposta no art. 4º, dentre tantos outros.367

Em se tratando da culpabilidade, tal como a entendemos nos dias atuais,

verifica-se que não há, no referido diploma de 1830, qualquer menção. E não é de

se esperar o contrário, haja vista que, nesse período, a culpabilidade ainda não tinha

sido alçada à categoria autônoma do delito. Sucede que, apenas nas últimas

décadas do século XIX ao início do século XX, conforme já consignado neste

trabalho, foi apresentada a primeira teoria da culpabilidade, considerando esta

364 BRUNO, 2005, p.103; NORONHA, 1970, p.56-57. 365 GARCIA, 2008, p.179. 366 BRUNO, loc. cit.; GARCIA, 2008, p.180. 367 O princípio da insignificância encontra-se assim estatuído no Código de 1830: “Art. 2º

Julgar-se-há crime ou delicto: 2º (...)Não será punida a tentativa de crime ao qual não esteja imposta maior pena que a de dous mezes de prisão simples, ou de desterro para fóra da comarca”. A liberdade de imprensa e de crença, segundo o art. 9º: “Não se julgarão criminosos: 1º Os que imprimirem e de qualquer modo fizerem circular as opiniões e os discursos enunciados pelos Senadores ou Deputados no exercício de suas funcções, com tanto que não sejão alterados essencialmente na substancia. 2º Os que fizerem analyses razoáveis dos princípios e usos religiosos”. Por fim, cabe citar a autoria mediata: “Art. 4º. São criminosos, como autores, os que commetterem, constrangerem ou mandarem alguém commetter crimes.” (PIERANGELI, 2004, p.237-238).

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separadamente do elemento da antijuridicidade, por meio da concepção psicológica

de culpabilidade.

Malgrado não dispor sobre a culpabilidade, o art. 3º do Código do Império

prevê a exigência do dolo ao estatuir que “não haverá criminoso ou delinquente sem

má-fé, isto é, sem conhecimento do mal e intenção de o praticar”.368 Pela simples

leitura do dispositivo, observa-se que a má-fé (ou seja, o dolo) era composta pelo

conhecimento do mal e intenção de praticar o delito. Assim, percebe-se que se

exigia o dolus malus, tendo em vista o elemento valorativo, que era o conhecimento

do mal.

Apesar de o art. 3º cuidar apenas do dolo, verifica-se que o Código Criminal

previu a culpa, em sentido estrito, ao longo de seu texto, conforme se pode

depreender do disposto no art.6º, item 1º, que enuncia a receptação culposa.

Além do artigo 3º, o artigo 18, item 1º, previu que a ausência do “pleno

conhecimento do mal” e a da “direta intenção de o praticar” servem como

circunstâncias atenuantes dos crimes. Assim, pelo Código de 1830, o

desconhecimento do mal exclui o crime e o parcial desconhecimento apenas atenua

a pena.369

Entretanto, ao ler os comentários dos doutrinadores da época, inclusive com

citação da jurisprudência, verifica-se que os dispositivos sob apreço não trataram da

consciência da ilicitude. Ocorre que, à época da vigência do Código Criminal,

prevalecia o pensamento de que o conhecimento das leis devia sempre ser

presumido. A jurisprudência posicionava-se no sentido de que a desculpa pela

ignorância de direito “não se conforma com os princípios do direito criminal, que

pressupõem todos conhecidos das leis da sociedade”.370

Thomaz Alves Júnior, escritor à época do Código Criminal do Império,

comentou que a vontade é a base do crime, mas não qualquer vontade, e sim a

vontade livre, porque somente esta oferece o caráter de moral à ação humana. O

homem é responsável por seus atos e é ele próprio quem o sujeita à penalidade.371

Observa-se, nesse aspecto, a influência da primeira estrutura de culpabilidade

como abrangente do dolo e da culpa, tal como foi traçada por Samuel Pufendorf,

para o pensamento do comentador do Código de 1830. Como vimos na parte

368 PIERANGELI, 2004,p.237. 369 Ibidem, p.240. 370 FILGUEIRA JÚNIOR apud MUNHOZ NETTO, 1978, p.53. 371 ALVES JÚNIOR, 1864, p.153.

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histórica do desenvolvimento da responsabilidade penal (item 1.6 deste trabalho),

Puffendorf apresentou o conceito de imputação como a ação livre que se considera

pertencente ao autor e, dessa maneira, fundamento de sua responsabilidade.

Outrossim, nota-se que o diploma imperial orientou-se segundo a Escola

Clássica, cujo precursor foi o italiano Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria.

Seus fundamentos foram desenvolvidos por Francesco Carrara, Carmignani e Rossi.

Com base na filosofia iluminista, compreendia essa escola do direito penal que todos

os homens são iguais e têm livre-arbítrio. O crime seria resultado da liberdade de

decisão do homem.

Prosseguindo sua exposição, anota Thomaz Alves que, sendo o crime a

violação, por ação ou omissão, das leis penais, entende-se que, quando o artigo diz

“conhecimento do mal”, quer dizer conhecimento da violação do direito. A despeito

de ter interpretado a expressão disposta no art. 3º do estatuto criminal de 1830 como

sendo a consciência de violação ao direito, o escritor entendeu, com arrimo no

princípio disposto no art. 12 do Código Penal de Portugal, que a ignorância da lei a

ninguém aproveita. Conclui o autor brasileiro que, em se achando o agente nas

condições normais de responsabilidade moral, há a presunção de que conhece o

mal, isto é, a violação do direito que praticou.372

Ao estudar os escritos de Tobias Barreto, notável comentador do Código de

1830, percebe-se que o art. 3º cuidava da imputabilidade e que o conhecimento do

direito era um dos requisitos para se considerar o indivíduo imputável. Na intelecção

de Tobias Barreto, a teoria da imputação apoia-se no fato empírico, indiscutível de

que o homem normal, chegando a uma certa idade, adquire a maturidade e

capacidade precisas para conhecer o valor jurídico de seus atos, bem como para

determinar-se livremente a praticá-los. Conclui o autor que são condições para uma

ação criminosa imputável: 1) o conhecimento da ilegalidade da ação querida

(“libertas judicii”); 2) o poder de o agente, por si mesmo, deliberar-se a praticá-la,

quer seja de forma comissiva, quer seja omissivamente.373

Ante todo o exposto, percebe-se que os doutrinadores, quando da vigência do

Código de 1830, não admitiam a alegação de desconhecimento da lei em qualquer

hipótese, bem como sequer comentavam sobre a falta de consciência da ilicitude.

Desse modo, o art. 3° e o art. 18 (item 1º) não cuidaram do dolo normativo, ou seja,

372 ALVES JÚNIOR, 1864, p.153. 373 MENEZES, 1884, p.36.

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da exigência da consciência da antijuridicidade para a formação do dolo (ou, tal

como denominado no estatuto brasileiro,“má fé”).

Ademais, constata-se que os doutrinadores da época entendiam que o art. 3º

e o art. 18, item 1º, do estatuto do Império dispunham sobre a imputabilidade e a

semi-imputabilidade, respectivamente.

3.2.4 Código Penal de 1890

No último ano do regime imperial, o Conselheiro João Batista Pereira foi

encarregado pelo Ministro da Justiça de elaborar um projeto de reforma do Código

Criminal de 1830, já que a abolição da escravatura demandava modificações legais.

A despeito de ter sido um Código à frente de sua época, já haviam se passado

sessenta anos da promulgação do estatuto de 1830. Logo, as leis deste diploma não

mais satisfaziam às necessidades da vida social.

Com a proclamação da República, em 1889, intensificaram-se os clamores

pela reforma da legislação criminal. Campos Salles, Ministro da Justiça do Governo

Provisório, não retirou de Batista Pereira a incumbência de elaborar um projeto de

Código Penal. Esse projeto foi convertido em lei pelo Decreto nº 847, de 11 de

outubro de 1890.374

Em razão da celeridade de sua elaboração, o Código Penal de 1890 estava

repleto de defeitos, tanto que se pode afirmar que “o primeiro Código Penal da

República foi menos feliz do que o seu antecessor”. Por muito tempo, as ideias de

reforma do diploma não tiveram êxito, e foram acrescentadas ao Código alterações

e aditamentos. Essas leis esparsas retificadoras ou complementares do Código

foram compiladas e sistematizadas em um só corpo por Vicente Piragibe, que as

denominou de “Consolidação das Leis Penais”, oficializada por meio do decreto n.

22.213, de 14 de dezembro de 1932.375

Saliente-se que não se trata de um novo Código, mas apenas de uma

compilação em um único documento, como meio de sistematizar e facilitar a leitura

das inúmeras leis novas.

374 BRUNO, 2005, p.104. 375 Ibidem.

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No que tange à culpabilidade, o Código Penal de 1890 filiou-se, assim como o

Código de 1830, à Escola Clássica. Assim, predominava a concepção do livre

arbítrio, de maneira que o homem age segundo sua própria vontade.

Nesse sentido, estatui o art. 7º do Código da República que “crime é a

violação imputável e culposa da lei penal”.376 Oscar de Macedo, escritor

contemporâneo à vigência do Código de 1890, ao analisar o dispositivo mencionado,

entende que não havia necessidade da inclusão da expressão culposa logo após o

termo “imputável”. No entender do autor, a culpabilidade compreende a

imputabilidade. No caso de envolver responsabilidade criminal, a imputabilidade

aparece como elemento constitutivo do crime e, então, os termos “imputabilidade” e

“responsabilidade” são equivalentes.377

No que tange ao erro, a Consolidação de 1932 reproduziu integralmente o

estatuído no Código de 1890. Note-se que o art. 26, “a”, do Código da República,

pela primeira vez na legislação penal brasileira, dispôs expressamente sobre a

ignorância da lei penal. Em seguida, na alínea “b”, o Código prevê o erro sobre a

pessoa ou a coisa e, por último, na alínea “c”, há a previsão do consentimento do

ofendido; in verbis verifica-se: “Não dirimem, nem excluem a intenção criminosa: a) a

ignorância da lei penal; b) o erro sobre a pessoa ou a cousa, a que se dirigir o crime;

c) o consentimento do offendido, menos nos casos em que a lei só a elle permitte

acção criminal.”378

No art. 42 , §1º, há uma repetição do que fora previsto no Código Criminal, já

que considera a circunstância atenuante de não ter havido no delinquente pleno

conhecimento do mal.

Assim, predominava o princípio da irrelevância da ignorância da lei e do erro

quanto à ilicitude do fato, com fundamento na presunção absoluta do conhecimento

da lei por parte de todos. Todavia, vozes isoladas se pronunciaram contra o antigo

aforisma de que a ignorância não escusa, dado que, na realidade, não existe

cidadão que conheça todas as leis.379

376 PIERANGELI, 2004, p.274 377 SOARES, 1907, p.26. 378 PIERANGELI, op. cit., p.275. 379 Pronunciou-se contra a presunção de conhecimento das leis João Vieira de Araújo apud

MUNHOZ NETTO, 1978, p.54.

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3.2.5 Projeto de Virgílio de Sá Pereira

Logo após a promulgação do Código Penal de 1890, já surgia a ideia de sua

reforma e foram elaborados diversos projetos para substituí-lo. Em 1893, apresentou

João Vieira de Araújo um projeto de Código Penal à Câmara dos Deputados, não

logrando êxito; em 1899, o penalista pernambucano apresentou outro esboço, que

também não vingou; em 1913, foi a vez de Galdino Siqueira, cujo projeto não foi

aprovado.

Por fim, o governo de Artur Bernardes incumbiu o desembargador Sá Pereira

da elaboração de novos projetos. Em 10 de novembro de 1927, foi publicada a Parte

Geral com uma exposição de motivos de Virgílio de Sá Pereira. Em 23 de dezembro

de 1928, houve a publicação do projeto completo, com a parte geral reelaborada.

Esse projeto, em 1930, foi submetido à apreciação de uma Comissão especial da

Câmara dos Deputados, não chegando a concluir seus trabalhos. Uma subcomissão

legislativa foi designada pelo governo provisório da Revolução, constituída por

Evaristo de Moraes, Mário Bulhões Pedreira e por Sá Pereira como presidente.

Prosseguiram os estudos, resultando no projeto revisto de 1935.380

No entanto, o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 interrompeu os

trabalhos em andamento. Note-se que o projeto já havia sido aprovado pela Câmara

dos Deputados e submetido pela Comissão de Justiça do Senado.

Malgrado o projeto em apreço não tenha tido êxito, deve-se destacar que ele

inovou em muitos aspectos, mormente no que tange ao tratamento da ignorância da

lei. Ressalte-se que, diferentemente dos Códigos de 1830 e de 1890, o projeto de

Sá Pereira sofreu, nitidamente, influência da Escola Positiva.

Sucede que, em meados do Século XIX, aumentou a preocupação com a luta

contra a criminalidade crescente. Em 1876, surgiu a Escola Positiva, também

denominada Positivismo Criminológico, podendo-se destacar os estudos de seus

três principais defensores: Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Rafael Garofalo.

Cada um desses autores desenvolveu a criminologia científica tendo como

base diferentes áreas do conhecimento. Assim, Lombroso partiu da antropologia,

Ferri empreendeu seus estudos com arrimo na sociologia e Garofalo com base na

psicologia. Para essa escola, o delito era considerado uma entidade meramente

380

BRUNO, 2005, p.105.

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jurídica. Negava-se o livre arbítrio, entendendo que o comportamento dos indivíduos

era marcado pelo determinismo. Assim, não é o homem quem deve conhecer a lei,

mas esta é que conhece o homem.

Elogia Aníbal Bruno o projeto de Sá Pereira, considerando-o como “obra de

estrutura geral avançada, de louvável harmonia técnica e oportuna orientação

científica segundo os princípios da moderna política criminal”. Todavia, não

podemos deixar de dizer que muitas objeções foram dirigidas a esse projeto.381

No tocante à questão do erro de direito, o projeto de Sá Pereira, no nosso

entender, revela-se primoroso, tendo em vista que considerou os problemas da falta

de consciência da ilicitude e da ignorância da lei conectados com a realidade social

e humana, e não de acordo com a ficção jurídica do princípio da obrigatoriedade do

conhecimento das leis.

Virgílio de Sá Pereira distinguiu as infrações penais pela própria natureza das

infrações convencionais, ou seja, ditadas pelas circunstâncias do momento. No

referido projeto, a ignorância, nas infrações meramente convencionais, era causa de

livre atenuação da pena no art. 40, em se tratando do indivíduo que “infringiu a lei

penal na persuasão sincera de ser lícito o acto praticado”. No caso de a ignorância

devida à força maior e impossibilidade manifesta; ou em razão de ser o infrator

analfabeto ou estrangeiro ainda não familiarizado com a língua do país e seus

costumes, o art. 39 estatuía que a própria responsabilidade seria excluída.382

No projeto revisto de 1935, manteve-se, no artigo 30, o disposto no art. 39,

que tratava da exclusão da responsabilidade. Mas a atenuação livre da pena quanto

ao erro sobre a ilicitude da conduta foi retirada.383

Note-se que o projeto original de Sá Pereira acompanhava a tendência da

doutrina estrangeira na direção de se atribuir maior relevo à consciência da

antijuridicidade.

Galdino Siqueira elogia o projeto de Sá Pereira, aduzindo que ele se orienta

mais de acordo com a realidade humana, sem prejuízo da defesa social. Segundo

Siqueira, a presunção absoluta de conhecimento das leis não mais vigora, sendo

suficiente notar o enorme número de leis e regulamentos. A presunção de

381

BRUNO, 2005, p.105. 382

Cf. MUNHOZ NETTO, 1978, p.56. 383

MUNHOZ NETTO, loc. cit.

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134

conhecimento consubstancia-se em uma ficção jurídica, alheia ao instituto da

prova.384

Na Exposição de Motivos de seu projeto, Virgílio de Sá Pereira comenta que o

princípio de que a ignorância da lei a ninguém aproveita constitui-se em um dos

alicerces da ordem jurídica, mas assenta-se na presunção de que todos a conhecem

ou, na melhor hipótese, de que todos podem conhecê-la.385

Todavia, a realidade mostra-nos que, em qualquer das hipóteses, a

presunção é falsa. A segunda hipótese, de acordo com o autor do projeto e com

quem concordamos, é ainda mais falsa. Resulta, pois, de uma falsidade lógica, dada

a impossibilidade de o analfabeto ler uma lei que só vigora depois de publicada; e

que é publicada para que seja conhecida pela leitura, a fim de os cidadãos poderem

obedecer às suas prescrições.386

Prossegue o autor que, no campo do Direito Civil, já se acentua a reação

contra a inflexibilidade do princípio da inescusabilidade do desconhecimento da lei,

mas é no Direito Penal que essa reação fala mais alto, haja vista que são as

injustiças resultantes de seu rigor que maior atenção despertam.387

Como sabemos, o Direito Penal deve ser sempre acionado em último caso

(última ratio), em virtude de a sua resposta ser mais gravosa ao cidadão. Há de se

atender, portanto, às exigências ético-sociais de garantia do respeito à dignidade

humana. Dessa forma, possui razão Virgílio Pereira em defender um tratamento do

princípio da inescusabilidade da ignorância da lei mais condizente com a realidade

social.

A despeito do avanço do projeto de Sá Pereira, o seu posicionamento sobre a

flexibilização do princípio da obrigatoriedade de conhecimento das leis não foi

adotado pelo Código Penal de 1940, conforme apresentaremos no tópico seguinte.

384

SIQUEIRA, 1950, p.490. 385

PEREIRA, 1930, p.87. 386

PEREIRA, loc. cit. 387

PEREIRA, loc. cit.

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3.2.6 Código Penal de 1940

Com a instituição da ordem política do “Estado Novo” no país, bem como em

razão das inúmeras críticas aos projetos anteriores, a exemplo do trabalho de Sá

Pereira, o Ministro da Justiça, Francisco Campos, incumbiu o professor da

Faculdade de São Paulo, Alcântara Machado, de elaborar a redação de um projeto.

Intrigante foi ter sido realizado o convite a Alcântara Machado para redigir o

anteprojeto do novo Código, uma vez que ele foi um importante político do partido de

oposição ao Governo autoritário.

No entanto, havia inúmeros fatores que o tornavam forte candidato para ser o

autor do projeto, tais como: sua capacidade jurídica inquestionável, destacado

professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tendo sido, inclusive,

diretor desta faculdade nos anos de 1931 a 1935, como também foi membro da

Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras.388

Em maio de 1938, Alcântara Machado entregou ao Governo o anteprojeto da

Parte Geral do Código Criminal e, em agosto do mesmo ano, foi entregue o projeto

completo, tendo sido o ponto de partida para o Código Penal vigente.389

Essa redação final do projeto de Alcântara Machado não foi, contudo, a

definitiva. O projeto submeteu-se a uma Comissão Revisora, integrada por Nélson

Hungria, Roberto Lyra, Narcélio de Queiróz, Vieira Braga e com a colaboração de

Costa e Silva. Atendendo às críticas de juristas e da Comissão Revisora, em 12 de

abril de 1940, entrega Alcântara Machado ao ministro Francisco Campos a nova

redação.390

Os estudos da comissão, entretanto, continuaram e o projeto foi concluído e

apresentado ao Governo em 4 de novembro de 1940, tendo sido sancionado como

Código Penal pelo decreto de 7 de dezembro de 1940. O Código entrou em vigor

apenas em 1º de janeiro de 1942.

O novo Código Penal foi muito bem recebido pelos doutrinadores pátrios e

continua em vigor até os dias atuais, apesar da grande reforma da parte geral que

lhe foi feita em 1984, conforme apresentaremos no próximo tópico. Em verdade,

388 Cf aulas ministradas pelo Prof. Dirceu de Melo na disciplina Evolução Histórica do Direito

Penal Positivo Brasileiro, 2º semestre, 2009, da pós-graduação da PUC-SP. 389 BRUNO, 2005, p.106. 390 BRUNO, op. cit.

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apesar de ser a base do Código, não se trata unicamente do trabalho de Alcântara

Machado, mas também das objeções e discussões desenvolvidas sobre o projeto de

Sá Pereira, bem como dos projetos e Códigos europeus.

Segundo afirma Noronha, o Código de 1940 é “eclético, como se falou e

declara a Exposição de Motivos. Acende uma vela a Carrara e outra a Ferri. É, aliás,

o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas (nº 27)”.391

Desse modo, verifica-se que o diploma penal de 1940 acolheu ideias positivas, mas

sofre, fundamentalmente, influência da Escola Clássica.

No que se refere à culpabilidade, nota-se que referido instituto foi tratado de

maneira mais pormenorizada e melhor elaborada do que nos diplomas anteriores.

Essa evolução do tratamento da culpabilidade deve-se à própria evolução

dogmático-jurídica penal.

No entanto, o Código Penal de 1940 não foi tão além quanto se poderia

esperar no tocante à culpabilidade. Recorde-se que, à época de sua entrada em

vigor, já fervilhavam as novas concepções normativas da culpabilidade, mormente

por meio dos estudos desenvolvidos por Reinhard Frank, James Goldschmidt,

Berthold Freudenthal e Edmund Mezger, conforme vimos no capítulo II deste

trabalho.

Sucede que o Código de 1940 cuidou da culpabilidade seguindo os termos da

concepção psicológica da culpabilidade, entendendo esta como a relação

psicológica entre o fato e o agente, ou seja, integram-na apenas elementos

psicológicos: o dolo e a culpa.

No que se refere à questão do erro de proibição, verifica-se que o Código de

1940 não evoluiu ou, melhor dizendo, retrocedeu, tendo em vista que não foram

adotadas as ideias de Virgílio de Sá Pereira em se admitir relevância, nas hipóteses

expressas em lei, ao desconhecimento da lei penal e à falta de consciência da

ilicitude. Ao revés, considerou que ambos não eximem de pena.

Na versão original do Código, não havia ainda a atual distinção entre erro de

tipo e erro de proibição, o que é natural, haja vista que referida dicotomia foi

admitida, pela primeira vez, apenas na célebre decisão do tribunal alemão, já

apontada neste trabalho, em 1952. A primeira legislação a adotar essa distinção foi

o próprio Código Penal alemão em 1975, como já vimos nesta dissertação.

391 NORONHA, 1959, p.62.

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Então, o Código Penal de 1940 trouxe a antiga dicotomia romana “erro de fato

– erro de direito”, atribuindo-se relevância ao primeiro e irrelevância a este último. O

art. 16, cujo nomen juris é “ignorância ou erro de direito” reza que “A ignorância ou a

errada compreensão da lei não eximem de pena”.392

Ante o exposto, percebe-se que o diploma penal em análise filiou-se à

concepção psicológica no tratamento da consciência da ilicitude, pois, como vimos

no segundo capítulo deste trabalho, a teoria psicológica considerou irrelevante o erro

de direito. Diferentemente, a teoria psicológico-normativa ou, simplesmente,

normativa da culpabilidade cuidou do tema entendendo que tanto o erro de direito

quanto o erro de fato são causas de exclusão do dolo. Assim, atribuiu-se relevância

ao erro de direito, por meio das teorias estrita e limitada do dolo.

Na Exposição de Motivos do Código, invoca-se o antigo princípio romano de

que o “error juris nocet”, ou seja, é irrelevante o erro de direito, e argumenta que se

trata de uma exigência político-criminal. Mas, ao mesmo tempo, reconhece que a lei

nem sempre “é um reflexo da consciência jurídica coletiva, representando apenas

conveniência política de momento.” Por fim, alega-se que, em tais caos, “atende o

projeto, na medida do possível, incluindo entre as „circunstâncias que sempre

atenuam a pena‟ o escusável erro de direito”.393

Verifica-se que, na própria exposição de motivos, há a consideração da

relevância do desconhecimento da lei, mas que, por razões de política criminal, o

tratamento adequado que se encontrou foi o de apenas se considerar a atenuante

do erro de direito.

Assim, o Código Penal de 1940, em sua versão primária, negou relevância

tanto ao desconhecimento da lei quanto ao erro sobre a ilicitude do fato, apenas se

admitindo as atenuantes da ignorância ou errada compreensão da lei penal, quando

escusáveis, segundo dispunha o art. 48, III.

Perfilhou o Código Penal brasileiro o entendimento estatuído no Código

italiano, segundo o qual ninguém pode invocar como escusa a ignorância da lei

penal. De forma diversa tratou o Código Penal suíço vigente àquela época, que

permitiu até o perdão judicial para a escusável ignorância da antijuridicidade.394

392 PIERANGELI, 2004, p.443. 393 Ibidem, p.412-413. 394 MUNHOZ NETTO, 1978, p.57.

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Importante é a invocação, nesse contexto, da Lei de Contravenções Penais,

publicada em 13 de setembro de 1941. Na Exposição de Motivos do Código Penal

de 1940, admite-se que não há distinção ontológica entre crime e contravenção,

sendo a diferença entre as duas espécies de infração penal apenas de grau ou

quantidade, ou seja, por critérios práticos.395

Nota-se que o artigo 8º da Lei de Contravenções, que, atualmente, ainda se

encontra em vigor, admite o perdão judicial do escusável para o erro de direito.

Assim, a referida lei considera relevantes o desconhecimento da lei e o erro sobre a

antijuridicidade, de maneira a nem se aplicar a pena.

Observa-se, outrossim, que na Exposição de Motivos do Código Penal de

1940, argumenta-se a distinção entre crime e contravenção pelo fato de que esta é

“dificilmente subordinável a um espírito de sistema e adstrita a critérios

oportunísticos ou meramente convencionais”.396

Diante dessa asserção, deve-se indagar: e as inúmeras leis penais especiais

que surgem por simples conveniência e que trazem, em seu bojo, crimes não

correspondentes ao espírito de repúdio da sociedade? Por que não se consideraria,

também, a escusabilidade da ignorância da lei e do erro sobre a ilicitude do fato?

A Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914, de 9 de dezembro

de 1941, conceitua crime e contravenção, estatuindo que aquele é a “infração penal

a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer

alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. Por seu turno, contravenção é

a “infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de

multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.397 Assim, percebe-se que a

definição para cada uma das espécies de infração penal baseia-se tão somente na

sanção.

À vigência da versão original da parte geral do Código de 1940, muitos

escritores manifestaram-se contra a regra disposta no art. 16. Criticando o

dispositivo, Galdino Siqueira ensina que ele teve como base o art. 5º do Código

Penal italiano, mas que este parte de um pressuposto diverso do quanto entendido

no Brasil. Segundo Siqueira, na Itália, não se diz que a ignorância não escusa

porque se presume que cada um conhece a lei, mas, no caso em que alguém a

395 PIERANGELI, 2004, p.406. 396 PIERANGELI, op. cit. 397 GOMES, 2010, p.229.

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ignore, esta ignorância não aproveita, pois que faltou ao próprio dever cívico de

conhecê-la.398

Assim, naquele país europeu, tratava-se de um dever cívico o conhecimento

das leis, imposto a todos os que se encontravam no território do Estado,

constituindo-se em um correlativo da tutela jurídica de que o mesmo Estado concede

a todos os habitantes de seu território e sem o qual não teria valor a obrigatoriedade

da lei. Entretanto, na legislação brasileira, quando da antiga parte geral do Código

Penal, predominou o princípio da irrelevância da ignorância ou erro de direito em

matéria penal, com o simples fundamento na presunção absoluta do conhecimento

da lei por parte de todos.399

Como veremos no último capítulo deste trabalho, de forma mais detalhada, a

jurisprudência da Itália considerou inconstitucional o princípio da inescusabilidade da

ignorância da lei penal, disposto no art. 5º do Código Penal, em 24 de março de

1988, com fundamento principal no princípio da culpabilidade. No entanto, no Brasil,

continua valendo este princípio sem qualquer discussão mais profunda quanto ao

seu fundamento.

Vale asseverar, por fim, que o Código de 1940 previu as descriminantes

putativas como uma das modalidades de erro de fato, segundo consta da segunda

parte do art 17, in verbis: “É isento de pena [...] quem, por erro plenamente

justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a

ação legítima”.400

3.2.7 Anteprojeto de Nélson Hungria e o Código Penal de 1969 como tentativas de substituição ao Código Penal de 1940

Igualmente ao que aconteceu com os Códigos anteriores, assim que o Código

Penal de 1940 entrou em vigor, logo expuseram, os doutrinadores da época, as

críticas, surgindo as primeiras leis retificadoras, a exemplo da Lei nº 2.505/55,

corrigindo a cominação da pena no art. 180.

O Governo de Jânio Quadros, em razão do clamor revisionista, bem como

das mudanças por que passava a sociedade, resolveu elaborar novo Código Penal

398 SIQUEIRA, 1950, p.489-490. 399 SIQUEIRA, loc. cit. 400 PIERANGELI, 2004, p.443.

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e, para isso, incumbiu Nélson Hungria da realização do texto básico, que apresentou

seu anteprojeto em 1963, o qual se submeteu a uma comissão revisora.

Estenderam-se os trabalhos por muito tempo, perpassando-se pela turbulência

política que culminou com a Revolução de 1964. Prosseguiu a revisão, realizada por

outra comissão até que, em 21 de outubro de 1969, foi editado o novo Código Penal,

por meio do decreto nº 1.004.401

Ressalte-se que o novo Código de 1969 nunca entrou em vigor. Em agosto de

1978, por meio de mensagem presidencial instruída com Exposição de Motivos do

então Ministro da Justiça, o Poder Executivo solicitou ao Congresso a conversão em

lei de um projeto que declarava revogado o Código Penal de 1969, estendida a

revogação às leis que lhe diziam respeito. Sendo assim, foi promulgada a Lei nº

6.578, em 11 de outubro de 1978, estabelecendo a revogação do Código Penal de

1969, e das Leis n. 6.016, de 31 de dezembro de 1973, e n. 6.063, de 27 de junho

de 1974.402

Verifica-se, desse modo, que o Código Penal de 1940 foi ab-rogado sem,

sequer, ter começado a vigorar, subsistindo, então, o Código Penal de 1940. Esse

fato retrata o maior tempo de vacatio legis da história do país, pois que, perdurou de

1969 a 1978, quando foi promulgada a Lei nº 6.578 que, em verdade, ab-rogou o

diploma penal.

Em se referindo à culpabilidade, nota-se a influência da concepção

normativista alemã. Dessa forma, ao contrário do Código de 1940, que se filiava

mais à concepção psicológica, o Código de 1969, em que pese não ter entrado em

vigor, trouxe as ideias normativas que já haviam sido bastante discutidas na Europa.

Todavia, observa-se que, em verdade, o Código de 69 não foi tão avançado quanto

possa, a princípio, parecer. Recorde-se que, nesse ano, já estavam em discussão e

com crescente aceitação as novas ideias do finalismo penal, principalmente

capitaneadas por Hans Welzel.

Na Exposição de Motivos do Código de 1969, alega-se expressamente, no

tocante ao tratamento do estado de necessidade, por exemplo, a filiação à teoria

normativa da culpabilidade, de acordo com o requisito da normalidade das

circunstâncias traçado por Reinhard Frank.403

401 BRUNO, 2005, p.107. 402 GARCIA, 2008, v.I, p.188. 403 Cf. PIERANGELI, 2004, p.514.

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No que tange ao erro de direito, note-se que o anteprojeto de Código Penal

de Nélson Hungria de 1963, retomou o critério do projeto de Virgílio de Sá Pereira,

permitindo até mesmo a exclusão da pena, em se tratando de suposição de licitude

do fato decorrente de escusável ignorância ou erro de interpretação da lei (art.

19).404

Entretanto, o Código Penal de 1969, afastando-se do critério de Sá Pereira,

apenas admitiu, na mesma hipótese, a atenuação da pena ou sua substituição por

outra menos grave, regra que foi mantida pela Lei nº 6.016, de 31 de dezembro de

1973. Assim, manteve-se a tradicional distinção entre erro de fato e erro de direito, a

despeito de se ter reconhecido, na própria Exposição de Motivos, que a divisão entre

erro de tipo e erro de proibição tem maior perfeição técnica.405

Desse modo, percebe-se que, no que se refere ao erro quanto à

antijuridicidade, não foi adotado o entendimento da concepção normativa da

culpabilidade, que defendiam as teorias estrita e limitada do dolo. No Código de

1969, o escusável erro de direito não excluía o dolo, mas apenas era capaz de

atenuar a pena ou de substituí-la por outra menos grave.

3.2.8 Reforma da parte geral de 1984

O atual Código Penal foi totalmente reformulado, em sua parte geral, por meio

da Lei n. 7209, de 11 de julho de 1984. Ocorre que, em 1980, o Ministro da Justiça

Ibrahim Abi-Ackel nomeou Francisco de Assis Toledo, Francisco de Assis Serrano

Neves, Ricardo Antunes Andreucci, Miguel Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério

Lauria Tucci e René Ariel Dotti para atuarem na primeira fase de reforma, ou seja,

para participarem da comissão de redação do anteprojeto da nova Parte Geral do

Código Penal.406

A segunda fase do andamento da reforma foi destinada à revisão dos textos e

análise das sugestões e críticas dirigidas pelo meio acadêmico, profissionais do

Direito (OAB, Escolas Nacional e Estadual da Magistratura, Escola do Ministério

Público), especialistas das ciências penais, imprensa e público em geral. A comissão

404 MUNHOZ NETTO, 1978, p.57. 405 Cf. PIERANGELI, 2004, p.514. 406 DOTTI, 2010, p.292.

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revisora foi composta por Francisco de Assis Toledo (coordenador), Dínio Santos

Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior.407

No que tange à culpabilidade, vale notar que a nova parte geral do Código

Penal adotou a teoria da culpabilidade do ato ou do fato, que se contrapõe à teoria

da culpabilidade do autor, também chamada de teoria da culpabilidade de

personalidade, de caráter ou de condução de vida.408

No Código Penal de 1940, reformado pela Lei n. 7209/84, censura-se o autor

em face do seu ato típico e antijurídico, e não em razão de sua personalidade. Assim

sendo, optou a reforma pela concepção normativa pura da culpabilidade, nos moldes

traçados pelo sistema finalista. A culpabilidade afigura-se, então, como a

reprovabilidade de uma conduta injusta a um autor, desde que este tenha atuado

com uma disposição anímica contrária à norma violada.

Segundo a Exposição de motivos da referida lei, é no tratamento do erro que

o princípio da culpabilidade “aflora com todo o vigor no direito legislado brasileiro”.

De fato, houve uma grande evolução no tratamento do erro de proibição em relação

ao que fora versado na versão original do Código Penal de 1940. Os artigos 20 e 21

da nova parte geral passaram a distinguir o erro sobre os elementos do tipo e o erro

sobre a ilicitude do fato, consoante a postura adotada pela legislação penal alemã

em 1975.

A evitabilidade do erro sobre a ilicitude do fato foi definida tendo como base a

consciência potencial da ilicitude, segundo consta do parágrafo único do art. 21,

senão vejamos: “Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a

consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou

atingir essa circunstância”.409 Pela leitura desse dispositivo, verifica-se a exigência

do “dever de informar-se” para se aferir a evitabilidade do erro de proibição, tal como

enunciado por Hans Welzel e conforme apresentaremos no próximo capítulo deste

trabalho.

O erro de tipo liga-se à tipicidade. Já o erro de proibição, de acordo com a

Reforma de 1984, relaciona-se à culpabilidade, recaindo sobre a ilicitude da

conduta. Segundo a própria Exposição de Motivos da lei de reforma de 1984, houve

a opção pela teoria limitada da culpabilidade. Separou-se o dolo da consciência da

407 DOTTI, 2010, p.293. 408 PIERANGELI, 1999, p.125. 409 GOMES, 2010, p.270.

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ilicitude. O dolo integra-se à tipicidade, enquanto a consciência da ilicitude revela-se

como elemento autônomo da culpabilidade. Ressalte-se, como já esclarecido, que

não se trata de um conhecimento real, bastando a potencialidade da consciência.

O erro de proibição elimina a consciência da ilicitude e, assim, exclui a

culpabilidade. O erro de proibição inevitável impede a condenação, pela exclusão da

culpabilidade, já o erro evitável atenua a pena de um sexto a um terço, conforme o

estatuído na segunda parte do art. 21, “caput”.

Conforme vimos, a Exposição de Motivos da Reforma Penal de 1984 filia-se,

expressamente, à teoria limitada da culpabilidade. Desse modo, entende que o erro

sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação consubstancia-se em

erro de tipo permissivo, que produz o mesmo efeito do erro de tipo: exclui o dolo.

No caso, entretanto, de o erro incidir sobre a existência ou os limites de uma

causa de justificação, configura-se o erro de proibição indireto ou erro de permissão.

Nestes casos, as consequências jurídicas são as mesmas do erro de proibição

direto: o inevitável exclui a culpabilidade, não o dolo; enquanto o evitável permite a

redução da pena do crime doloso de um sexto a um terço.

Alguns autores propugnam que o Código Penal, com a reforma da parte geral

de 1984, não se posicionou, expressamente, pela teoria limitada da culpabilidade no

tocante às descriminantes putativas, mas sim à teoria extremada.410 Assim,

defendem esses autores que todas as descriminantes putativas (incluídos os

pressupostos fáticos) constituem erro de proibição indireto, tal como faz a teoria

extremada da culpabilidade.

Parece-nos que esse posicionamento não se adequa ao disposto no Código

Penal brasileiro reformado. O art. 20, §1º, cuida do erro de alguém que, plenamente

justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, acaso existisse, tornaria

legítima a ação, ou seja, trata do erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa

de justificação. Segundo o referido dispositivo, não há isenção de pena quando esse

erro “deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”.411

Assim, entendemos que, o art. 20, §1º, segunda parte, estatui que o erro

sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação, quando vencível, exclui

410 Em defesa da teoria extremada, posicionam-se os seguintes autores, dentre outros,

segundo aduz Luiz Flávio Gomes: FRAGOSO, Lições de direito penal, p.191; Heitor COSTA JÚNIOR, Aspectos da Parte Geral do Anteprojeto de Código Penal, p.462-463; Luiz LUISI, O tipo penal, p.125 apud GOMES, 2001, p.96-97.

411 GOMES, 2010, p.270.

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o dolo e permite a punição a título culposo, caso haja a previsão culposa da conduta,

filiando-se, portanto, o nosso Código Penal, à teoria limitada da culpabilidade.

Importa mencionar que o art. 21, cujo título do artigo é “Erro sobre a ilicitude

do fato” trata não apenas da falta de consciência da ilicitude do fato, como também

do desconhecimento da lei penal, mas em sentidos totalmente diversos. Estabelece

o dispositivo que “O desconhecimento da lei é inescusável” e, logo em seguida,

afirma que “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável,

poderá diminuí-la de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço)”.412

Desse modo, como se trata de conceitos diferentes, consoante mostraremos

mais adiante, verifica-se que houve uma evolução no tratamento apenas do erro

sobre a ilicitude do fato e o desconhecimento da lei penal continua a ser preceituado

de acordo com a regra geral da obrigatoriedade de conhecimento da lei por todos,

tal como já se apregoava no antigo direito romano.

No entanto, de acordo com o que foi apresentado no percurso histórico da

responsabilidade penal e do erro, percebemos que o tratamento dado ao

desconhecimento da lei penal, no antigo direito romano, era menos severo do que o

atual. De fato, na Roma Antiga, havia decisões tanto pela relevância, quanto pela

irrelevância do antigo erro de direito (o qual abrangia o desconhecimento da lei

penal). O Direito Penal brasileiro adotou o princípio romano da inescusabilidade da

ignorância da lei, mas não trouxe as inúmeras exceções a ele, que consideravam a

natureza da lei ignorada, a natureza do ato contrário ao direito e as circunstâncias

pessoais, consoante já apontado neste trabalho. O Código Penal atual previu

apenas a ignorância da lei como circunstância atenuante, tal como reza o art. 65, II.

Destarte, percebe-se que, nos dias hodiernos, a jurisprudência brasileira, em

sua maioria, interpreta o art. 21, caput, primeira parte, como sendo um princípio

absoluto, sem considerar as circunstâncias concretas, tais como a cultura e a

educação, e nem tampouco leva em conta a reprovação social da conduta. Como se

não bastasse, apesar de alegar que o erro de proibição e o desconhecimento da lei

penal são conceitos distintos, ao aferir a existência ou não do erro de proibição, bem

como a sua evitabilidade ou inevitabilidade, afirma simplesmente que o erro de

proibição não se aplica dada a obrigatoriedade do conhecimento das leis.

412 GOMES, 2010, p.270

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Tendo em vista entendermos incongruente a postura acima citada,

apresentaremos, no próximo capítulo, o desenvolvimento da falta de consciência da

ilicitude do fato e do desconhecimento da lei penal, partindo da análise do objeto da

consciência da ilicitude até chegarmos à contraposição entre a regra absoluta da

inescusabilidade da ignorância da lei penal e o princípio da culpabilidade.

Diante disso, verifica-se a necessidade de se analisar criticamente o antigo

brocardo ignorantia legis non escusat, da inescusabilidade da ignorância da lei

penal, o qual foi acolhido pela legislação pátria, mas que vem perdendo força na

doutrina estrangeira, tais como na italiana e alemã, para admitir-se a relatividade

desse preceito, tendo em vista que o desconhecimento da lei penal, quando

inevitável, possa ser uma espécie do chamado erro de proibição direto, o que

justifica o interesse desta pesquisa, haja vista a sua atualidade e importância,

malgrado sempre se tenha cuidado da matéria desde as legislações mais antigas.

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CAPÍTULO IV

DESCONHECIMENTO DA ILICITUDE DO FATO E DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL

4.1 OBJETO DA CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

Como exposto no presente estudo, segundo a teoria normativa pura da

culpabilidade, o juízo de censura se faz em relação à imputabilidade, à potencial

consciência da ilicitude e à exigibilidade de conduta diversa. Cuida-se de um juízo

de reprovação pessoal, realizado sobre um autor de um fato típico e ilícito, que podia

se comportar conforme o direito, mas optou livremente por se comportar

contrariamente a este.

O problema da falta de consciência da ilicitude, consoante lição de Figueiredo

Dias, ganhou, há bastante tempo, direito de ser considerado “um dos mais

importantes e debatidos, mas simultaneamente um dos mais complexos e obscuros,

de todo o direito penal”.413 Conquanto a dificuldade do tema, deve-se destacar a sua

relevância na sociedade contemporânea, em que há um número cada vez maior de

leis penais criadoras das infrações não correspondentes à consciência social e que

suscitam, com maior frequência, a questão da consciência da ilicitude.

Torna-se imprescindível delimitar o que o autor precisa saber para ter o

conhecimento do ilícito do fato e, desse modo, estar sujeito à reprovação penal. É

suficiente que o indivíduo saiba que faz algo ilícito? Ele deve saber que infringe uma

norma penal ou basta entender que é proibido pela ordem jurídica? Não seria o

bastante o reconhecimento da imoralidade ou da antissocialidade de sua conduta?

Ressalte-se a quase ausência de discussão, no Brasil, sobre o conteúdo do

“substrato psíquico mínimo do conhecimento do injusto” para a configuração da

culpabilidade no Direito Penal,414 destacando-se a atenção dispensada ao assunto

por Francisco de Assis Toledo, Juarez Cirino dos Santos e Cláudio Brandão.415

Os posicionamentos elaborados pelos diversos penalistas que cuidaram da

conceituação do objeto da consciência da ilicitude foram agrupados em três critérios

413 DIAS, 2009, p.01. 414 SILVA, 2008, p.11. 415 TOLEDO, 1994, p.258; SANTOS, 2000, p.232-233; BRANDÃO, 2010, p.237-241.

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por Juan Córdoba Roda: formal, material e intermediário.416 Cirino dos Santos

dividiu-os também em três grupos, denominando-os de tradicional, moderno e

intermediário.417 Já Cláudio Brandão classificou-os em dois grandes grupos: o formal

e o material.418 Observe-se que, dentro de cada critério, existem posições diversas.

Apresentaremos, a seguir, a classificação exposta por Juan Córdoba Roda.

4.1.1 Critério formal

O primeiro grupo, qualificado como formal, tem como representantes Binding,

Beling e Franz von Liszt, conforme preleção de Córdoba Roda.419 Segundo esse

critério, o agente deve saber, ao cometer o delito, que infringe uma norma.

Karl Binding, em sua obra “La culpabilidad en Derecho Penal”,420 situa a

consciência da antijuridicidade no dolo. Binding conceitua o dolo como “la voluntad

de cometer por sí mesmo una acción delictiva a pesar de su contradicción

representada con el deber jurídico (norma) que la prevé”.421 O autor ainda enfatiza o

elemento da consciência da antijuridicidade no dolo:422

Pode-se dizer com exata equivalência: acompanhada da representação correta de todos os elementos do delito, e mais brevemente ainda: a vontade de uma concreta antijuridicidade acompanhada do conhecimento desta. Seus elementos são querer e saber (representar-se).

Sobre o objeto da consciência da ilicitude, entende Binding como o

conhecimento de que determinado ato viola uma norma positiva com certo conteúdo,

embora não haja necessidade do conhecimento profundo da própria lei transgredida,

416 Referido trabalho é apresentado em sua obra cujo título é “El conocimiento de la

antijuridicidade en la teoria del delito”. Nas palavras do autor: “En relación a la determinación del objeto de la indicada consciência se deberán dilucidar varios puntos, siendo fundamentalmente tres los critérios mantenidos para su solución” (Cf. CÓRDOBA RODA, 1962, p.89).

417 SANTOS, 2000, p.232-233. 418 BRANDÃO,2010, p.237. 419 CÓRDOBA RODA, 1962, p.89. 420 Título espanhol traduzido da obra original alemã “Die Schuld in Deutschen Strafrecht”. 421 BINDING, 2009, p.47. 422 Tradução livre da obra de Karl Binding (2009, p.47): “Se puede decir com exacta

equivalência: acompanhada de la representación correcta de todos los elementos del delito, y más brevemente aún: la voluntad de uma concreta antijuridicidad acompanhada do conocimiento de ésta. Sus elementos son querer y saber (representarse).”

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já que o leigo não precisa saber especificamente que o seu fato se enquadra em

determinado tipo legal. Disserta o autor:423

Neste caso, trata-se de uma subsunção de leigo com instrumentos de leigo, que apenas no caso de um delinquente com formação jurídica suporá a subsunção da ação ao tipo de uma lei penal, e com ainda menor freqüência, sua subsunção conceitual sob a proposição jurídica que fundamenta o dever, a norma. O autor não tem que saber nada de norma.O autor não tem que saber nada de norma e de lei penal, basta que sua intuição jurídica o diga acertadamente: não é permitido atuar tal qual como quero atuar.

Assim, informa Córdoba Roda que Binding, tomando por base sua concepção

de delito, considera que, para o conhecimento do injusto, exige-se a representação

de sua formal antijuridicidade: o conhecimento da norma lesionada.424

Por outro lado, Franz von Liszt, como principal articulador da teoria

psicológica da culpabilidade, entendeu que a consciência da antijuridicidade, ou tal

como ele denominou “la ciencia de la ilegalidad”, não é um elemento essencial do

conceito de dolo. Mais rigoroso que Binding, entende von Liszt que, para haver essa

consciência, é necessário que o agente saiba que o fato corresponde a um tipo

legal. Já o dolo exigiria apenas o conhecimento do autor de que seu ato foi dirigido

contra um interesse juridicamente protegido.425

Adere, ainda, à corrente formal, Beling. Conforme posicionamento do autor,

não há necessidade de que o agente conheça especificamente a norma que viola,

nem tampouco o tipo penal no qual se enquadra seu fato, apenas sendo necessária

a consciência de violar a ordem jurídica, até mesmo o direito não escrito. Dessa

forma, anota Córdoba Roda que Beling é partidário de uma posição mais moderada,

segundo a qual basta que o sujeito saiba que sua conduta infringe “qualquer”

norma.426 No entender de Beling:

423 Tradução livre: “En este caso, se trata de uma subsunción de lego com instrumentos de

lego, que sólo em el caso de um delicuente com formación jurídica supondrá la subsunción de la acción bajo el tipo de uma ley penal, y com aún menor frecuencia su subsunción conceptual bajo la proposición jurídica que fundamenta el deber, la norma. El autor no tiene que saber nada de norma y ley penal, basta com que su intuición jurídica le diga acertadamente: no puede estar permitido actuar tal y como quieres actuar.” (BINDING, 2009, p.54).

424 Tradução do original: “BINDING, tomando como base su concepción del delito, considera que para el conocimiento del injusto se exige la representación de su formal antijuridicidad: el conocimiento de la norma lesionada”.(CÓRDOBA RODA, 1962, p.89).

425 LISZT, 1999, p.424. 426 CÓRDOBA RODA, op. cit., p.89

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Algunas leyes penales que no destacan expressis verbis la antijuridicidad como requisito de la punibilidad (p. ej., C. P. 211, 223) parecen más bien suponer que las acciones en ellas descriptas son antijurídicas em general, sino siempre, de acuerdo com el orden jurídico. El conjunto de preceptos jurídicos sobre la antijuridicidade extraído del cuerpo de disposiciones penales (“indiciados” por éste) no da, como a veces se há dicho, uma „antijuridicidad penal específica‟. No se trata ni de una antijuridicidad “contra el Derecho Penal” ni de una antijuridicidad que lo sea tan sólo para el Derecho Penal y no para el ordenamento jurídico em general.427

Explica Córdoba Roda que o acolhimento de uma solução formalista se

encontra intimamente relacionado à finalidade a que se atribui ao Direito punitivo. No

caso de se destinar ao ordenamento penal um fim de prevenção geral (a coação

psicológica da pena deve evitar o cometimento do delito), dever-se-á exigir,

consequentemente, o conhecimento da punibilidade da conduta.428

A principal crítica direcionada à concepção formal do objeto da consciência da

ilicitude refere-se ao argumento de que somente os juristas ou, mais

especificamente, os técnicos em Direito Penal, poderiam cometer as infrações

penais. De fato, a presunção de conhecimento da lei não corresponde à realidade

dos fatos, cuida-se de pura ficção jurídica. Nem os próprios operadores do direito

conhecem todas as leis, muito menos poder-se-á dizer dos indivíduos não

pertencentes ao ambiente jurídico, e menos ainda, dos analfabetos e moradores

distantes dos grandes centros do país.

4.1.2 Critério material

O segundo critério para a determinação do objeto da consciência da

antijuridicidade é o material. Essa concepção se baseia no reconhecimento da

natureza material do injusto, exigindo, para a representação da antijuridicidade, o

conhecimento da antissocialidade da conduta, da contrariedade ao dever, da

imoralidade do comportamento ou da lesão de um interesse.429

427 BELING, 2002, p.44. 428 CÓRDOBA RODA, 1962, p.90. 429 CÓRDOBA RODA, loc. cit.

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Córdoba Roda aponta como principais defensores dessa concepção: Sauer,

Gallas, Hippel, C. Espósito, Mayer e Arthur Kaufmann. Convém, então, apresentar o

posicionamento de cada um desses autores.430

Segundo Sauer, a tendência socialmente danosa deve ser conhecida pelo

autor. Enquanto o conhecimento das leis, dos diversos caracteres do tipo, assim

como o conhecimento da subsunção dos fatos à lei não podem ser esperados do

autor, o conhecimento do injusto material concreto, ou seja, da “norma concreta de

configuração” pode ser exigido. Sauer sustenta sua posição com o fato de que as

representações ético-sociais concretas são as mesmas em todos os homens

imputáveis.431 Cumpre citar o ensinamento do autor, no sentido de que toda

aplicação do Direito deve ter como base a denominada “norma concreta de

configuração”, senão vejamos:

Na norma concreta de configuração, apóia-se toda aplicação do Direito, toda jurisprudência, toda “determinação objetiva” da sentença penal. Esta norma concreta, atuante de modo imediato na vida social, que informa o ordenamento jurídico, que se dirige aos cidadãos, que é compreensível pelos homens de tipo médio e que os afeta, pode e deve conhecê-la o autor; não necessita conhecer a norma abstrata, o preceito jurídico, o tipo legal, nem tampouco uma norma ética (abstrata), uma concepção moral viva no povo, um juízo ético-social desvalorativo.432

Consoante lição de Córdoba Roda, pronunciou-se Gallas em sentido parecido

ao de Sauer, ao exigir a consciência da “contrariedade ao valor social”.433 Doutra

banda, para von Hippel e C. Espósito, a submissão a uma infração penal exige do

autor o conhecimento da imoralidade da conduta, ainda que falte a consciência da

sua ilegalidade.434

Finalmente, dentro do critério material do conteúdo do injusto, há aqueles que

pugnam pela necessidade do conhecimento da violação de um interesse

430 CÓRDOBA RODA, 1962, p.90-91. 431 SAUER, 1956, p.258. 432 Tradução livre do texto: “En la norma concreta de configuración se apoya toda aplicación

del Derecho, toda jurisprudência, toda “determinación objetiva” de la sentencia penal. Esta norma concreta, actuante de modo imediato en la vida social, que informa el ordenamento jurídico, que se dirige a los ciudadanos, que es comprensible por los hombres de tipo médio y que les afecta, puede y debe conocerla el autor; no necessita conocer la norma abstracta, el precepto jurídico, el tipo legal pero tampoco una norma ética (abstracta), uma concepción moral viva en el pueblo, um juicio ético-social desvalorativo”. (SAUER, 1956, p.258).

433 GLESPASCH-FESTSCHRIFT, 1936 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.91. 434 VORSATZ, 1935 apud CÓRDOBA RODA, op. cit.

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socialmente tutelado.435 Nos anos pós-guerra, na Alemanha, por questões de

política criminal, uma interpretação material do conhecimento da antijuridicidade

alcançou lugar de destaque, dando nova vigência a uma postura jusnaturalista,

calcada nas “normas de cultura”, de Max Ernst Mayer.436 Segundo essa postura,

manifestada principalmente em Arthur Kaufmann, a culpabilidade jurídico-penal

exige o conhecimento da possibilidade de dano à sociedade. Atua culpavelmente o

sujeito que leva adiante o fato, sabendo que lesiona ou põe em perigo bens da

sociedade merecedores de proteção.437

Cabe esclarecer que Max Ernst Mayer entende que o sujeito sabe que

determinada conduta é ilícita, como também sabe que o Estado a castiga, mas, em

geral, não compreende o quão grave pode ser a pena. Para Mayer, as “normas de

cultura” não alcançam todas as consequências jurídicas do comportamento

antinormativo. É a tradição cultural que proporciona ao sujeito saber se determinada

ação é “contrária ao dever” e em que medida o injusto é determinante para o

julgamento moral. Nas palavras de Mayer:438

O indivíduo sabe, seguramente, que tal ou qual conduta é ilícita, acaso saiba também que o Estado a castiga, mas, em geral, não sabe quão grave pode resultar a pena. As normas de cultura não se estendem sobre as consequências jurídicas que terá o comportamento antinormativo – com o qual, é claro, não se quer dizer que reina total ignorância sobre as ameaças penais; alguns sabem muito delas; outros, pouco - . A tradição cultural proporciona ao sujeito uma informação exata unicamente sobre se a ação é contrária ao dever e sobre a medida em que o injusto é determinante para a acusação moral [...]

435 Nesse diapasão, prescreve Córdoba Roda os autores que assim se posicionam: “GALLO,

Il dolo, Oggetto ed accertamento, Milán, 1953, p. 160; Arthur Kaufmann, Das Unrechtsbewusstsein in der Schuldlehre des Strafrechts, Maguncia, 1949, p.183[...]” (CÓRDOBA RODA, 1962, p.91).

436 MAYER, 1915 apud CÓRDOBA RODA, op. cit., p.91-92. 437 KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 438 Tradução livre do texto: “El individuo sabe, seguramente, que tal o cual conducta es

ilícita, acaso sepa también que el Estado la castiga, pero, por lo general, no sabe cuán grave puede resultar la pena. Las normas de cultura no se extienden sobre las consecuencias jurídicas que tendrá el comportamento antinormativo – com lo cual, es claro, no se quiere decir que reine total ignorância sobre las amenazas penales; algunos saben mucho de ellas, otros, poco - . La tradición cultural le proporciona al sujeto una información exacta unicamente sobre si la acción es contraria al deber y sobre la medida em que el injusto es determinante para el enjuiciamiento moral. Que la exactitud de esta estimación moral no puede ser equivalente a la decisión de la alternativa “justo o injusto”, y que la última, tratándose de conflitos Morales, puede llegar a ser imposible, es algo que se entende más.”(MAYER, 2000, p.66-67).

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Ocorre que, segundo Mayer, a obrigatoriedade da lei não reside no seu

conhecimento, mas na circunstância de que as normas jurídicas coincidem com as

normas de cultura, cuja obrigatoriedade é conhecida pelo sujeito. A ignorância da lei

não exime da imposição de uma pena, já que apenas escusa o erro relativo às

obrigações do sujeito, as quais resultam das normas de cultura.439

No entender de Arthur Kaufmann, com arrimo na lição de Ernst Mayer, para

que haja a culpabilidade, é suficiente que o autor tenha valorado o seu

comportamento na mesma direção da lei. Essa direção corresponde à essência

material do injusto.440

Também se posicionam a favor do critério material Jescheck e Weigend. Para

os autores, o objeto da consciência da ilicitude não é o conhecimento da proposição

jurídica infringida ou da punibilidade do fato. É suficiente que o agente saiba que seu

comportamento contradiz as exigências da ordem comunitária e que, por isso, está

juridicamente proibido.441

Ensina Cirino dos Santos que essa é a teoria tradicional, que se

consubstancia “no conhecimento da contradição entre comportamento e ordem

comunitária, que permite ao leigo saber que o comportamento lesiona uma norma

jurídica penal civil ou pública e, portanto, é juridicamente proibido”, não importando o

conhecimento da específica “norma jurídica lesionada ou a punibilidade do fato”.442

Dessarte, para a concepção material do objeto da consciência do injusto, o

delito representa ação antissocial. O autor de um delito será castigado por ter

praticado o ato, apesar do caráter lesivo para a sociedade. Desse modo, atuará

culpavelmente o sujeito que realiza a conduta sabendo que lesiona ou põe em

perigo de lesão bens da vida em comum merecedores de proteção. Segundo

Córdoba Roda, para essa corrente, a culpabilidade exige o “conocimiento de la

dañosidad social”.443 É com base nesse parâmetro que o legislador deve proibir um

comportamento e determinar uma pena.

A grande crítica a essa concepção reside no fato de que muitas pessoas

podem infringir a ordem jurídica crendo, no entanto, que sua conduta está justificada

por motivos de ordem moral, política, social ou mesmo pedagógicas, como se pode

439 Cf. CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 440 KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.92. 441 JESCHECK; WEIGEND, 2002, p.487. 442 SANTOS, 2000, p.232. 443 CÓRDOBA RODA, 1962, p.93.

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aferir nos exemplos a seguir. De fato, muitas vezes, não coincidem os conceitos da

ilicitude material com o que se encontra disposto na legislação penal. No que tange

a essas proibições, as infrações penais são autênticas mala prohibita, e não mala in

se, sendo assim, inacessíveis ao leigo, a exemplo de certos delitos de sonegação

fiscal, crimes falimentares, etc.444

Importa contextualizar o tema no universo nacional, destacando as

sucessivas legislações que podem ser notadas na atualidade. Segundo

levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, desde a

promulgação da Constituição de 1988, que já sofreu 68 (sessenta e oito) Emendas,

foram sancionadas 4.200.000 (quatro milhões e duzentas mil) leis e normas federais,

estaduais e municipais, exteriorizando-se um exagero, visto que se tenta impingir à

população brasileira leis e projetos que contêm verdadeiros absurdos, tais como o

Projeto de Lei nº 7672/2010, do Congresso Nacional (sob a análise da Comissão

Especial da Câmara, e “que proíbe impor aos filhos castigos físicos, inclusive

palmadinhas, recurso que muitos pais consideram apropriado sob o ponto de vista

pedagógico”).445

Não se pode olvidar que, além da discussão acerca da ilicitude da conduta,

resta claramente violado o princípio da não intervenção ou da liberdade na família,

que goza da proteção estatal por mandamento constitucional (arts. 226, § 3º e §7º),

significando, sem dúvida, uma interferência desmedida do Estado na vida das

famílias.

Na hipótese acima descrita, há de se perquirir se seria justo punir-se o pai

que viesse a aplicar palmadinhas em seu filho, como sempre o fez, após alguma

atitude reprovável da criança e, sem saber que tal conduta passou a ser tipificada

como crime, poderá ser preso, denunciado, responder à ação criminal, passível de

condenação, já que o seu desconhecimento da lei apenas lhe acudiria como causa

de diminuição de pena.

Vale citar algumas hipóteses de leis que não são culturalmente reprovadas:

“a) propiciar (fornecer) bebida alcoólica para índios não integrados (Lei 6001/73); b)

produzir açúcar em fábrica não legalizada (por exemplo, no fundo de seu quintal)

444 Nessa linha de pensamento, ver: TOLEDO, 1994, p.259. 445Notícia disponível em:: http://www.senado.gov.br/noticias/senadonamidia/noticia.asp?n= 612010&t=1. Acesso em 20 out. 2011, às 14:00 hs.

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(Decreto-lei 16/66)”.446 Acrescente-se a elas o disposto no art. 46, parágrafo único

da Lei 9605 de 1998, segundo o qual incorre nas penas de seis meses a um ano

aquele que transporta, tem em depósito ou guarda madeira, lenha, carvão e outros

produtos de origem vegetal, sem licença de autoridade competente, conforme

abaixo transcrito:

Art. 46. Receber ou adquirir, para fins comerciais ou industriais, madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem exigir a exibição de licença do vendedor, outorgada pela autoridade competente, e sem munir-se da via que deverá acompanhar o produto até final beneficiamento: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, tem em depósito, transporta ou guarda madeira, lenha, carvão e outros produtos de origem vegetal, sem licença válida para todo o tempo da viagem ou do armazenamento, outorgada pela autoridade competente.447 (grifo nosso)

Diante de apenas esses exemplos, percebemos o quanto é atual e relevante

o tema do erro de proibição no Brasil e a questão de se saber qual é o conteúdo da

consciência da antijuridicidade. Na verdade, observa-se ser trabalho hercúleo e

praticamente impossível conhecer-se o ordenamento jurídico, haja vista não cuidar o

princípio da inescusabilidade do desconhecimento da lei simplesmente, mas do

ordenamento jurídico como um sistema.

Por outro lado, muitos atos que ferem o sentimento geral da sociedade não

estão previstos em lei. Como bem elucida Rubens Galvão, “a tipificação de

condutas, especialmente no Brasil, surge, muitas vezes, de motivações oportunistas

e desvinculadas de interesses de proteção ético-sociais efetivos”.448

Constata-se, efetivamente, que casos criminais são eleitos, muitas vezes em

razão da classe social da vítima, e explorados à exaustão pelos meios de

comunicação, e acabam provocando imediatas alterações na lei penal. Dessa forma,

a legislação penal brasileira acompanha a proliferação de leis do ordenamento

jurídico pátrio.

São exemplos os sequestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina,

que impulsionaram a aprovação da Lei dos Crimes Hediondos; o caso de Daniella

446 Exemplos citados na obra de Gomes (2001, p.27). 447 BRASIL, 2011. 448 SILVA, 2008, p.184-197.

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Perez, que tornou o homicídio qualificado em crime hediondo; a Chacina de

Diadema, que transformou a tortura em crime.

Afirma Hans Kelsen que a norma significa que “algo deve ser”. A norma existe

como “fenômeno específico na esfera do dever ser”, diferentemente das coisas que

existem na esfera do “ser”.449

Para Kelsen, o indivíduo que tenha agido de forma antijurídica não significa

que ele tenha violado ou infringido o direito, já que “na antijuridicidade confirma-se a

existência do direito, que consiste em sua validade: no “dever ser” do ato coercitivo,

como consequência da antijuridicidade”.450Assim, verifica-se que é a sanção que

confirma a existência do direito, constituindo-se em papel primordial na

caracterização do preceito normativo.

O filósofo aduz que a intenção dos legisladores não importa para determinar o

conceito puro de antijuridicidade, senão vejamos:

Se se considerar do ponto de vista imanente, que aceita a Teoria Pura do Direito, o conceito de antijuridicidade chega a uma mudança substancial de sentido. Não é intenção dos legisladores, nem das circunstâncias, que um fato não desejado pela autoridade que estabelece as normas seja – como se expressa incorretamente – socialmente prejudicial (embora só se possa dizer que é assim considerado pelo legislador) e determinante para o conceito de antijuridicidade; contudo, a posição do fato questionado na proposição é única e exclusiva: é a condição para a reação específica do direito, para o ato coercitivo (que é a ação do Estado).451

Como bem elucida Juarez Tavares, a norma não é um ente meramente

abstrato e neutro, tal como pensava Kelsen, ou a única forma de imposição de

deveres, mas sim o sucesso da conjunção dos interesses existentes no processo de

sua elaboração. Desconsiderar esse aspecto material da formação da norma

significa condenar a formulação jurídica a um jogo de mero exercício lógico, sem

qualquer validade para as necessidades sociais de seus reais destinatários. Nesse

sentido, ganha relevância a questão dos critérios usados ou acolhidos pelo

legislador para a formulação das normas incriminadoras. A análise desses critérios,

a imposição de seus limites, a determinação de suas bases materiais e a crítica de

449 KELSEN, 2001, p.29. 450 Ibidem, p.71. 451 Ibidem, p.70.

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sua utilização se afiguram como condição e exigência dos princípios constitucionais

de defesa das liberdades individuais e do regime democrático.452

Entretanto, conforme constata Tavares, a partir de um estudo histórico, bem

como da própria previsão típica das ações proibidas ou mandadas, o que ocorre é

que, na maioria das vezes, não há critérios para a elaboração das normas

incriminadoras. A norma deixaria de exprimir o tão propalado interesse geral, cuja

simbolização aparece como justificativa do princípio representativo, para significar,

muitas vezes, “simples manifestação de interesses partidários, sem qualquer vínculo

com a real necessidade da nação”.453

Importa mencionar que a solução material do problema do conhecimento da

antijuridicidade adveio, sobretudo, por razões de necessidade de punição em

relação aos chamados “delitos contra a humanidade”, no pós-guerra. De fato, nas

decisões relativas aos “assassinatos” dos “seres sem valor nem utilidade para o

Estado”, em cumprimento da carta secreta dirigida por Hitler, em 1º de setembro de

1939, aos diretores de estabelecimentos médicos, os Tribunais reconheceram o fato

de que os processados acreditavam na força legal da ordem do então “supremo

legislador” do Reich e que seus comportamentos estavam em consonância com as

diretrizes do Estado. Todavia, o sujeito, nesses casos, segundo o critério que

passou a ser adotado pelos Tribunais alemães, conhece a infração dos mandatos do

Direito natural, apesar de acreditar que sua conduta se enquadra nos postulados

legais. O indivíduo teve consciência da natureza reprovável de seu comportamento e

a crença na legalidade do ato não pode retirar o conhecimento do agir reprovável, a

representação do injusto.454

452 TAVARES, 1992, p.75-87; p.75. Sobre a crítica da crescente legislação penal, ver:

TAVARES, 1997, p.43-57. 453 TAVARES, 1992, p.75-87; p.75 454 Na versão original: “La solución material del problema del conocimiento de la

antijuridicidad viene motivada principalmente por razones de necesidad de punición em relación a los llamos „delitos contra la humanidad‟. En las sentencias dictadas sobre los asesinatos de seres „sin valor ni utilidad para el Estado‟ em cumplimiento de la carta secreta dirigida por Hitler em 1 de septiembre de 1939 a los directores de establecimentos médicos, los procesados creían em la fuerza legal de la orden del entonces „supremo legislador‟ del Reich y em la conformidad de su comportamiento com las directrices del Estado. Ante este supuesto se revelo como defectuoso tanto el critério próprio de la jurisprudência del Reichsgeiricht que niega relevancia al error sobre la antijuridicidad, como el sustentado por um amplio sector de la doctrina de que al dolo pertence el conocimiento del actuar em contra del ordenamiento establecido por el Estado. Em primer lugar, es evidente que no cabe concebir a la culpabilidad sin el conocimiento del injusto. Em segundo lugar, si el critério de la doctrina fuera correcto no

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Ressalte-se que, em verdade, foi praticada a eutanásia. Os médicos, nessa

época, tiveram de selecionar os indivíduos aptos à prática desse ato, por

determinação do programa “Akition” T4. As principais vítimas dessa política foram os

doentes físicos, mentais e os anciãos.

Insta indagar se a lei é sempre válida e justa. O Direito é sinônimo de Justiça?

Sabe-se a dificuldade de definir um conceito pronto e acabado de Justiça, tema que

tem dominado as atenções da doutrina desde muito tempo. Nesse sentido, torna-se

necessário cogitar de que modo seria possível compreender aquele que tem sido

visto como o objetivo primordial do Direito, ideia inspiradora capaz de fomentar a

atuação jurídica e servir-lhe de inspiração cotidiana, o que tem ocorrido desde a

Antiguidade, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr:455

O problema que se enfrenta é de saber se existe alguma forma de razão, totalizadora e unificadora, que seja para o direito uma espécie de código doador de sentido, um sentido não adaptativo ao próprio direito e que nos permita estimá-lo como legítimo ou ilegítimo. Em suma, se a legitimidade repousa puramente num sentimento, subjetivo e irracional, ou se existe uma estrutura universal e racional que legitime o direito ou nos faça reconhecê-lo como ilegítimo. Enquanto se pode postular como certo que as normas jurídicas são regras que de alguma forma se adaptam às mudanças sociais posto que podem deixar de valer ao serem revogadas, conforme o interesse da decidibilidade dos conflitos, o que se procura é uma espécie de estrutura de resistência à mudança, que assegure à experiência jurídica um sentido persistente. Desde a Antiguidade, foi na ideia de justiça que se buscou essa estrutura”.

Dentre as mais diversas perspectivas de enfrentamento da relação do Direito

com a Justiça, assume destaque especial uma corrente de pensamento famosa, que

diz respeito ao positivismo jurídico, termo abrangente e capaz de compreender

quantidade considerável de correntes em seu interior. Sem dúvida, o autor mais

associado como representante do positivismo jurídico normativo é Hans Kelsen, em

sua Teoria Pura do Direito. Cumpre destacar algumas palavras do filósofo alemão

sobre justiça:

Como categoria moral, direito significa o mesmo que justiça. Essa é a expressão para a verdadeira ordem social, ordem essa que alcança

cabría fundar la punibilidad de la conducta de los procesados. El sujeto, em estos casos, según el critério de los Tribunales alemanes, há conocido, pese a creer que su conducta se adapta a los postulados de la ley, la infracción de los mandatos del Derecho natural. Há sido consciente de la naturaleza reprobable de su comportamiento sin que la creencia em la legalidad del hecho pueda desplazar, em ningún caso, el conocimiento del obrar reprobable, la representación del injusto”. (CÓRDOBA RODA, 1962, p.93-94).

455 FERRAZ JÚNIOR, 2003, p. 351-352.

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plenamente seu objetivo ao satisfazer a todos. A aspiração da justiça é – encarada psicologicamente – a eterna aspiração da felicidade, que o homem não pode encontrar sozinho e, para tanto, procura-a na sociedade. A felicidade social é denominada “justiça”.456

Entretanto, pode-se dizer que existem diversos autores e abordagens que

integram o positivismo, nos termos salientados por Norberto Bobbio: 457

Ora, sustentamos que para poder fazer um balanço do positivismo jurídico, para poder estabelecer aquilo que dele deve ser conservado e o que deve ser abandonado ou, como se diz habitualmente quanto às doutrinas, verificar o que está vivo e o que está morto, é necessário não considerar esse movimento como um bloco monolítico, mas distinguir nele alguns aspectos fundamentalmente diferentes. Como já indicamos (ver §32), os sete pontos pelos quais se pode explicar o pensamento juspositivista não estão todos no mesmo plano, mas se distribuem em três planos diversos. Enquanto os pontos tratados nos capítulos II a VI da Parte II dizem respeito à teoria do direito, os pontos tratados nos capítulos I e VII não dizem respeito à teoria, mas o último ponto à ideologia do direito e o primeiro ponto ao modo de estudar o direito (como fato, não como valor). Podemos, portanto, distinguir três aspectos do positivismo jurídico, conforme se configura: a) como método para o estudo do direito; b) como teoria do direito; c) como ideologia do direito.

Para os fins da presente dissertação, não será realizada abordagem

exauriente do positivismo jurídico, nem se pretende examinar todos os aspectos

conectados à sua configuração. O objetivo específico que se busca contemplar na

presente pesquisa diz respeito à necessidade de perceber que nem toda positivação

normativa conduz ao resultado justiça, ou seja, de que, não necessariamente, a lei

pode ser associada ao conceito do justo. Impõe-se, no caso, uma revisão do

brocardo dura lex, sed lex, na medida em que as leis, malgrado tenham sido criação

originária de autoridade competente, podem, por vezes, não atingir, concretamente,

a Justiça desejada.

Assim, verifica-se que a solução material para se conferir o objeto da

consciência do injusto surgiu com o louvável escopo de combater as injustiças

decorrentes de uma aplicação pura e simples da lei. Entretanto, entendemos que

nem todo ato imoral, antissocial ou antiético é proibido penalmente e que nem toda

proibição penal é imoral, antissocial ou antiética. De fato, nos atuais Estados plurais

456 KELSEN, 2001, p.60. 457 BOBBIO, 1995, p. 233-234.

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e multiculturais, há separação evidente entre direito e moral, pois que não se pode

exigir, de todas as pessoas, uma mesma moral.

Além disso, ao se conceber a consciência da antijuridicidade como

conhecimento da capacidade de se produzir dano à sociedade (“dañosidad social”),

não se poderá falar em tal conhecimento no delito culposo, uma vez que o perigo de

dano social refere-se tão apenas ao caráter lesivo do resultado.458

4.1.3 Critério intermediário: “Valoração Paralela na Esfera do Profano”

Retomando a questão da consciência da ilicitude, cumpre mencionar,

preliminarmente, que o critério intermediário foi adotado na célebre decisão do

Supremo Tribunal Federal alemão, de 18 de março de 1952. Impende citar um

trecho da sentença:

Para o conhecimento da antijuridicidade, não importa o conhecimento da punibilidade do comportamento, nem a disposição legal que contém a proibição. Não basta, no entanto, que o sujeito seja consciente que seu agir é moralmente reprovável...O sujeito, embora não deva realizar uma valoração de ordem técnico-jurídico, deve conhecer ou poder conhecer, com o esforço devido de sua consciência, em um julgamento geral, correspondente a sua esfera de pensamento, o caráter injusto do seu ato.459

Note-se que esse é o critério de maior aceitação nas doutrinas alemã e

espanhola, refletindo a superação do debate doutrinário no tocante à natureza

formal ou material da ilicitude. No caso do Brasil, alguns autores posicionaram-se a

favor da corrente intermediária, a exemplo de Munhoz Netto, Francisco de Assis

Toledo e Cláudio Brandão.460

Afirma Cirino dos Santos que a literatura brasileira dominante não faz

qualquer menção à controvérsia acerca do objeto da consciência do injusto,

limitando-se à difusão exclusiva da teoria tradicional, no sentido da consciência do

injusto como conhecimento da contradição entre conduta e ordem comunitária, que

permite ao leigo saber que o comportamento é juridicamente proibido. É

458 O autor ainda acrescenta que prova do acerto dessa objeção é o fato de que Kaufmann

se viu obrigado a conceber a culpa como dolo de perigo (KAUFMANN, 1949 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.97).

459 Entscheidungen des B.G.H., tomo 2, p.194, Juristenzeitung, p.337 apud CÓRDOBA RODA, 1962, p.98.

460 MUNHOZ NETO, 1978, p.21; TOLEDO, 1977, p.74. BRANDÃO, 2010, p.241.

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independente o conhecimento da norma jurídica lesionada ou a punibilidade do

fato.461

Para a corrente intermediária, não basta o posicionamento material, de

conhecer apenas a danosidade social; nem o formal, que exige um conhecimento

específico e técnico da norma penal violada. É suficiente um juízo geral sobre o

caráter ilícito do fato, como também a possibilidade de se atingir esse juízo, por meio

de um simples e exigível esforço da consciência. Dessa forma, basta o esforço

normal da inteligência do sujeito para a aferição da potencial consciência da ilicitude.

O conhecimento da antijuridicidade, para a solução intermediária,

consubstancia-se na representação de que a ação se opõe à norma ou à ordem

jurídica. Relevante é a invocação de Mezger, para quem a consciência da ilicitude se

encontra no dolo, no sentido de que este conhecimento deve ser entendido como

uma “valoração paralela do autor na esfera do profano”.462 Mezger explica referida

valoração como uma apreciação da ação no círculo de pensamentos do indivíduo e

no ambiente deste, orientada no mesmo sentido que a valoração legal da ação.

Deve ser caracterizada dita ação como antijurídica.463

Adán Nieto Martín informa que Arthur Kaufmann tentou relacionar esta

fórmula com os distintos níveis de linguagem existentes na sociedade. O

conhecimento do profano seria aquele que, expressado em linguagem coloquial,

traduz de uma forma equivalente o significado técnico da norma. O juiz, como

mediador entre ambas as esferas, é quem deve decidir se há, efetivamente,

equivalência entre o nível coloquial e o técnico.464

Córdoba Roda posiciona-se a favor da corrente intermediária, afirmando que

não constitui elemento necessário a antijuridicidade material, exigindo-se apenas o

conhecimento de que a conduta lesiona o interesse jurídico protegido. Para o autor,

essa direção de pensamento demonstra as vantagens de manter um critério que

busca a solução do problema do objeto da consciência do injusto dentro da esfera

da ordem jurídica.465

461 SANTOS, 2000, p.232-233. Alguns autores brasileiros que adotam a concepção

tradicional, segundo aponta Cirino dos Santos: JESUS, Direito Penal I, 1999, p.56; MIRABETE, Manual de direito penal, 2000, p.202.

462 MEZGER, 1949, p.143. 463 Ibidem, p.143. 464 NIETO MARTÍN, 1999, p.71. 465 CÓRDOBA RODA, 1962, p.99.

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Extrai Córdoba Roda dessa solução intermediária o entendimento de que há

uma ratificação do texto do artigo 2º do Código Civil, segundo o qual a ignorância

das leis não escusa de seu cumprimento. Segundo o autor, a ignorância das leis

constitui um erro extraordinariamente inferior ao que recai sobre o antijurídico.466

No entanto, o próprio autor admite exceções em que se deve abrandar a

interpretação do referido dispositivo do diploma civil espanhol: a existência, a título

excepcional, de uma série de disposições, em especial com respeito à ordenação

jurídico-fiscal, que reconhecem o princípio da necessidade de conhecimento da lei

ao atribuir eficácia escusante ao erro não reprovável; e a opinião geral que exime de

responsabilidade a conduta, viciada de erro, lesiva de uma disposição

regulamentar.467

Roxin defende a posição intermediária nos seguintes termos:468

Conciencia de la antijuridicidad significa: el sujeto sabe que lo que hace no está juridicamente permitido, sino prohibido” (BGHSt 2, 196). Según eso, para la conciencia de la antijuridicidad no basta la conciencia de la dañosidad social o de la contrariedad a la moral de la propria conducta; pero, por outro lado, tampoco es necesaria según la op. dom. la conciencia de la punibilidad.

Em se tratando da distinção entre direito e moral, argui acertadamente Roxin

ao proferir que os valores sociais e morais são tão alteráveis numa sociedade

pluralista que não se pode exigir, do indivíduo, uma orientação incondicional a

eles.469

Cirino dos Santos expõe sobre a concepção intermediária como teoria

dominante na Alemanha nos seguintes termos:470

A teoria dominante, representada por ROXIN, argumenta que conhecer a danosidade social ou a imoralidade do comportamento, segundo a teoria tradicional, seria insuficiente, mas conhecer a punibilidade do fato, conforme a teoria moderna, seria desnecessário: assim, objeto da consciência do injusto seria a chamada antijuridicidade concreta, como conhecimento da específica lesão do bem jurídico compreendido no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta no tipo legal respectivo, ou seja, o conhecimento da proibição concreta do tipo de injusto.

466 CÓRDOBA RODA, 1962, p.101. 467 Ibidem, p.102. 468 ROXIN, 1997, p. 866. 469 ROXIN, loc.cit. 470 SANTOS, 2011, p.165.

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Maurach e Zipf seguem essa linha de intelecção, alegando que a consciência

do ilícito deve ser referida ao tipo. O agente deve estar em situação de reconhecer

como ilícita a específica violação ao bem jurídico protegido pelo correspondente tipo

penal. É suficiente o conhecimento do imperativo da norma, e não que o indivíduo

conheça as fontes nem a forma de sua aparição. Ademais, é insuficiente o simples

conhecimento da antissocialidade ou imoralidade do ato.471

Para Jakobs, também não é necessário o conhecimento da punibilidade, bem

como o conhecimento de que a infração contraria os princípios ético-sociais, os bons

costumes, ou a decência para fundamentar a consciência do injusto, e nem sequer

um descumprimento contratual. Conhecimento do injusto, para o penalista, é

conhecimento da perturbação social da conduta. Este conhecimento do injusto não

fica excluído, evidentemente, porque o autor - sobretudo por íntima convicção

discrepante – acredita que, em uma ordem social tal como ele considera ideal, não

se dá perturbação social alguma.472

No entender de Jakobs, basta que o indivíduo conheça a importância da

norma em questão para o ordenamento ao qual pertence, ainda quando considere

equivocado tal ordenamento. O autor apresenta o exemplo dos testemunhas de

Jeová que, após se recusarem a realizar o serviço militar, negam-se a cumprir a

prestação civil em substituição àquele. Elas conhecem a perturbação social que

ocasiona sua negativa e, por isso, têm conhecimento do injusto. O conhecimento do

autor será, em geral, o conhecimento próprio do leigo, servindo, pois, a

considerações feitas no dolo em relação com a valoração paralela.473

A objeção feita ao critério intermediário refere-se ao fato de que, em certos

tipos penais e a certas pessoas, não se pode fazer a exigência desse esforço de

consciência. Nessa esteira, argumenta Assis Toledo sobre a dificuldade de, por

exemplo, um simples camponês, ao estabelecer-se com empório de secos e

molhados, conhecer, por meio de um simples esforço de consciência, o

entendimento de que certos atos possam configurar o complexo crime de sonegação

fiscal.474

Certeira é a lição de Roxin no sentido que a simples ideia do esforço de

consciência pode levar a quem atua, quanto muito, ao conhecimento da imoralidade

471 MAURACH; ZIPF, 1994, p.869. 472 JAKOBS, 1995, p.667-668. 473 JAKOBS, loc.cit. 474 TOLEDO, 1977, p.73.

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da sua conduta, que não é o objeto da consciência da antijuridicidade. O autor

conclui que a maioria dos erros de proibição são de tal índole que a consciência não

pode contribuir em nada para a sua evitabilidade.475

De fato, a consciência, em si mesma, é incapaz de descobrir o conteúdo do

ilícito das infrações penais. No máximo, o que poderá ocorrer é captar o conteúdo da

antijuridicidade daqueles delitos correspondentes às violações éticas e morais já

assimiladas pela sociedade.

4.2 RELAÇÃO ENTRE OS TRÊS CRITÉRIOS E A INSUFICIÊNCIA DE CADA UM DELES

Note-se que, a princípio, os critérios esposados por Córdoba Roda são

bastante diversos. No entanto, com uma análise mais cuidadosa, percebe-se que as

três concepções se entrelaçam. Segundo lição de Assis Toledo, há “íntimo

parentesco entre todos esses critérios”.476

De fato, o critério intermediário pressupõe a consciência do caráter material

do injusto, ou seja, do critério material. Conforme ensina Toledo, para se atingir,

mediante algum esforço da consciência, o aspecto injusto de uma ação, “é

necessário que a matéria desse injusto já tenha penetrado anteriormente na

consciência, o que só seria possível por meio das normas de cultura, únicas

acessíveis ao leigo”.477

No que se refere ao conceito formal, que exige a consciência de que a

conduta contraria a norma jurídica, infere-se o conhecimento de sua reprovação

social. Assim, não se pode separar o conceito material do formal. Nesse sentido,

preceitua Assis Toledo que “o primeiro critério (conhecimento da norma), que se

quer formal, também depende, em certa medida, da validade do segundo”.478

Note-se que adquirimos o conhecimento de que determinada conduta é

proibida legalmente por diversos meios, tais como televisão, jornais, revistas, livros,

conversas etc. A maioria dos crimes noticiados por esses meios de comunicação

reflete o que é vedado pelo consenso geral. No entanto, como já vimos, há infrações

475 ROXIN, 1997, p.882. 476 TOLEDO, 1994, p. 258. 477 Ibidem, p. 258-259. 478 Ibidem, p. 259.

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penais, dentre as quais se destacam certas contravenções, delitos falimentares,

ambientais e econômicos, que não traduzem um conteúdo moral.

Ainda no que tange aos critérios sobre o objeto da consciência da ilicitude,

verifica-se que o aspecto material do injusto está relacionado tanto ao critério formal

quanto ao intermediário, importando, então, concluir pela insuficiência das três

posições, haja vista a existência de algumas normas penais que não coincidem com

os conceitos de moralidade e de antissocialidade.

4.3 O “DEVER DE INFORMAR-SE” DE HANS WELZEL

Tentando solucionar tais incongruências, Hans Welzel reelaborou o conceito

de “consciência da ilicitude”, inserindo-lhe um novo elemento, qual seja, “o dever de

informar-se”. O penalista reconheceu a existência de tipos penais coincidentes com

as infrações contra a ordem social e a moral, que, para o conhecimento da ilicitude

deles, basta que cada um reflita os valores éticos e sociais do seu meio, ou seja,

que façam um “esforço da consciência profana”.479 Nos dizeres do autor:

Na medida em que a lei penal declara punível uma conduta que já é merecedora de pena segundo a ordem moral, consiste a reprovabilidade de falta de conhecimento do injusto em uma falta de “esforço de consciência”, porque os conteúdos da consciência se formam essencialmente com convicções da cultura vivida. Pode-se reprovar o erro do autor sobre a antijuridicidade, quando podia ele verificar-se da antijuridicidade de sua conduta mediante a própria reflexão dos valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu meio.480

Todavia, segundo o autor alemão, há os tipos penais não coincidentes com a

ordem moral e, nesses casos, a falta de consciência da ilicitude baseia-se em uma

ausência ou deficiência de informação, quando as circunstâncias concretas

indicarem ao agente um motivo para o qual se deva informar. Portanto, Welzel adota

o critério intermediário, acrescentando-lhe o elemento do “dever de informar-se”.481

A despeito da relevância teórica dessa construção, percebe-se que, na

prática, há grandes dificuldades para saber em quais casos se deve exigir das

pessoas um especial dever de se informarem.

479 WELZEL, 1993, p.202-203. 480 Tradução Livre, WELZEL, 1997, p.203. 481 WELZEL, 1997, p.204.

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Critica Nieto Martín a exigência do dever de buscar informação, por não estar

claro, na concepção de Welzel, em que consistem os motivos que devem levar o

autor a informar-se sobre a antijuridicidade do seu comportamento. Parece ser

suficiente como motivo o fato de o autor estar consciente de que atua em um âmbito

regulado pelo direito. Nieto Martín conclui que, na prática, esta concepção ampla de

motivos traria resultados iguais aos da obrigação genérica de conhecer o direito.

Além disso, não fica claro se é suficiente que exista, objetivamente, uma razão para

informar-se ou que se determine que o autor deva ter reconhecido o motivo concreto

para se informar e, no entanto, não se tenha informado.482

Ademais, não se pode deixar de mencionar o preceito constitucional de que

“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de

lei”483, o qual dificulta a aplicação do “dever de informar-se” trazido por Hans Welzel.

Posiciona-se Assis Toledo no sentido de que a solução consiste em adicionar-

se, nos casos em que não coincidem a previsão legal e a ordem moral, ao critério

intermediário o “dever de informar-se” para a prática apenas de certas atividades,

notoriamente fiscalizadas e regulamentadas. “A violação desse dever, exigível de

todos que se arrojem a esse tipo de atividade, exclui a possibilidade de erro

escusável”. 484

Para Toledo, nas atividades fiscalizadas e regulamentadas, há regras e

condições específicas, podendo-se exigir o dever de se informar:

Confinado, assim, o “dever de informar-se” no círculo hoje bastante amplo das atividades regulamentadas – profissões liberais, técnicas, comércio habitual etc. – teremos: onde houver um conjunto de normas jurídicas (legais, regulamentares, costumeiras ou estatutárias) estabelecendo condições e regras para o exercício de certas atividades que não fazem parte, necessariamente, da vida de todos e de cada um, aí existirá um especial dever jurídico de informar-se, pois o Estado e a sociedade, omnium consensu, permitem ao indivíduo o desfrute dos benefícios decorrentes da prática dessas atividades, que fogem ao padrão normal de conduta, mas, ao mesmo tempo, regulam a condição do seu exercício. Fora disso, o dever de informar-se será de exigibilidade muito discutível.485

482 NIETO MARTÍN, 1999, p.118. Note-se que Nieto Martín defende uma tese psicológica da

compreensão da ilicitude do fato. É necessário, como condição prévia, que o indivíduo houvera duvidado sobre a antijuridicidade de seu comportamento. Se o sujeito não havia tido dúvidas e atuou contrariamente ao direito, não se poderá afirmar que tenha tomado uma decisão responsável contrária ao dever (Cf. NIETO MARTÍN, 1999, p. 159-213).

483 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, inciso II. 484 TOLEDO, 1977, p.74. 485 Ibidem, p. 261.

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Verifica-se que a exigibilidade do dever de informar-se, nos termos de Assis

Toledo, vai ao encontro do estatuído pela norma constitucional, já que se restringe

aos casos em que há ligação com atividades profissionais regulamentadas e

fiscalizadas. Mesmo nessas hipóteses, entendemos ser injusta, em alguns casos, a

exigência de conhecer regulamentos, decretos, leis específicas etc, daqueles que

não têm acesso a uma educação digna e que se encontram distantes dos grandes

centros, alheios a muitos acontecimentos do país, especialmente ao conhecimento

de fiscalização da sua atividade. Importa verificar, no caso em concreto, se o erro de

proibição ou o desconhecimento da lei era evitável ou inevitável, principalmente

levando em consideração a facilidade, ou não, do acesso à informação pelo

indivíduo.

Por fim, vale notar que o critério do “esforço de consciência” exige um

raciocínio relativo ao momento da perpetração do ato ilícito, já o requisito do “dever

de informar-se”, em regra, alcança momentos anteriores ao próprio cometimento da

conduta, o que é difícil de se aferir em cada caso concreto, se não se tomar em

conta a educação e a cultura do indivíduo.

Em se cuidando das normas penais em branco, parece-nos que a busca de

informação revela-se de fundamental relevância para que o indivíduo não sofra uma

condenação penal, destacando-se, no Brasil, a Lei dos Crimes Ambientais que, em

razão das características dos delitos nela dispostos, com certa frequência se vale da

remissão a disposições externas, a normas e a conceitos técnicos. Ensina Gilberto

Passos de Freitas que a doutrina vem se posicionando no sentido da

imprescindibilidade do emprego da norma penal em branco, para que haja uma

efetiva proteção penal do meio ambiente.486

O meio ambiente constitui bem jurídico fundamental, intimamente relacionado

à proteção da vida humana. Segundo Gilberto Passos de Freitas, há autonomia do

meio ambiente como um bem jurídico valioso em si mesmo. 487

No entanto, em se tratando das normas penais em branco, situações existem

em que o indivíduo não tem possibilidade de acessar a consciência da ilicitude da

conduta, nem de se informar a respeito dela, merecendo, por conseguinte, um

julgamento fidedigno aos postulados dos direitos humanos. Há que se avaliar o grau

cultural do agente e a reprovação social do ato contrário ao direito. Um exemplo que

486 FREITAS, 2003, p.112. 487 Ibidem, p.105.

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bem demonstra a violação à dignidade da pessoa humana é o do homem que foi

preso em flagrante por retirar casca de árvore com o intuito de fazer chá para sua

mulher portadora da doença de Chagas, fato tipificado no art. 40 da Lei 9.605 de

1998. Segundo consta da notícia eletrônica da Folha de São Paulo, o lavrador, em

entrevista, afirmou constrangido: “Eu não sei ler, nem escrever. Cá na minha

ignorância, eu não sabia que era crime tirar raspa de árvore, que foi Deus que fez,

para dar chá para minha mulher”. Esse caso gerou indignação social, tendo,

inclusive, alguns ambientalistas protestado a favor do lavrador.488

4.4 MEIOS DE ACESSO À CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE

O simples “esforço de consciência” parece-nos insuficiente para o

conhecimento do injusto do fato, tendo em vista que pode permitir o conhecimento

de violações morais, mas não é adequado para alcançar a consciência da ilicitude

do fato.489

Ocorre que a maior parte dos erros de proibição não pode ser evitada por

meio da simples consciência. “A consciência nada diz sobre as questões jurídicas

difíceis; do contrário, seria supérfluo o estudo do Direito”.490

Como já exposto, Welzel acrescentou o requisito do “dever de informar-se”

para completar o critério da “valoração paralela da esfera do profano” nas infrações

penais não correspondentes às violações morais, éticas e sociais. Ou seja, nestes

casos, não basta o simples esforço de consciência, o autor deve buscar se informar

sobre o caráter antijurídico de seu projeto de ação. No entanto, Welzel não

apresentou sobre o que consiste o dever de buscar informação. Como e a quem se

deve procurar a informação correta?

Segundo Bacigalupo, os meios adequados para afastar as dúvidas sobre a

antijuridicidade e, desse modo, evitar os erros de proibição são a reflexão e a

informação com base em uma fonte jurídica confiável. A autorreflexão caracteriza-se

por um esforço de consciência para compreender a significação jurídica da conduta.

488 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u3083.shtml. Último acesso em 16 fev 2012, às 22:03 hs. 489 Nesse sentido foi a decisão do tribunal alemão: BGHSt 2, 201 apud ROXIN, 1997, p.882.

Nesse sentido: SANTOS, 2000, p.238. 490 Baumann/Weber, AT, §27 II 3 apud ROXIN, 1997, p.882.

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Cuida-se, entretanto, de um meio totalmente condicionado pelos conteúdos de

consciência que são produto do processo de socialização e que somente pode

alcançar seu objetivo quando se trata de normas ético-sociais geralmente

reconhecidas.491

A informação, ao revés, oferece melhores possibilidades, sempre e quando

provenha de uma fonte confiável. Normalmente, esta será um advogado, como

também os notários, procuradores e os funcionários competentes no âmbito em que

se deve desenvolver o projeto de ação.492

Também se admite como importante fonte de informação a jurisprudência.

Quando o autor projeta sua ação com base nas decisões judiciais, seu erro será, em

regra, inevitável. O problema surge quando a jurisprudência é contraditória. Neste

caso, se o autor se comportou em um dos sentidos admitidos pela jurisprudência,

seu erro deve ser declarado inevitável.493

A busca de conhecimentos jurídicos imprescindíveis para o desenvolvimento

de uma atividade social (conduzir um veículo automotor, o exercício de uma

profissão, o desenvolvimento de uma atividade econômica) não implica um recurso à

culpabilidade pela conduta de vida. No marco da culpabilidade do fato, para

determinar se uma ação ou omissão típica e antijurídica era reprovável ou, em que

medida era reprovável ao sujeito, há de se ter em conta não apenas os elementos

objetivos ou subjetivos da conduta realizada, mas também todas as circunstâncias

em que se levou adiante o fato e as que concorriam no delinquente.494

Ressalte-se que, no caso em concreto, a nosso ver, deve-se verificar se o

autor tinha reais condições de ter acesso a essas fontes de informação, já que

muitas pessoas não têm facilidade em socorrer-se desses meios, em razão da

própria falta de conhecimento quanto aos seus direitos e deveres.

4.5 TEORIA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO DESCONHECIMENTO DA LEI PENAL

Conforme já consignado nesta dissertação, a doutrina brasileira, em sua

maioria, não discute sobre o objeto da consciência da ilicitude, limitando-se à

491 BACIGALUPO ZAPATER, 1996, p.37. Nesse sentido: ROXIN, 1993, p.882 492 BACIGALUPO ZAPATER, op. cit., p.38. 493 BACIGALUPO ZAPATER, loc. cit. 494 CEREZO MIR, 2007, p.983.

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propagação da teoria tradicional,495 representada por Jescheck, que entende a

consciência do injusto como contrariedade entre o comportamento e a ordem

comunitária.496

A literatura, no Brasil, não apresenta a teoria dominante na Alemanha:

conhecimento da “lesão específica do bem jurídico compreendida no tipo legal”; e

ignora a teoria moderna do “conhecimento da punibilidade do comportamento

através da norma legal penal positiva”, ou seja, do “conhecimento de infringir uma

prescrição penal”. Este último conceito, segundo preleção de Cirino dos Santos, “é o

mais compatível com o princípio da culpabilidade do Estado Democrático de

Direito”.497

Ocorre que a teoria moderna, representada por Harro Otto, entende que o

objeto do conhecimento do injusto é a punibilidade do fato, ou seja, significa

“conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma legal penal

positiva”, de modo que “não é necessário o conhecimento preciso dos parágrafos da

lei, mas o conhecimento de infringir uma prescrição penal”.498

Ensina Cirino dos Santos que, com arrimo na concepção tradicional de objeto

da consciência da ilicitude, os doutrinadores pátrios afirmam que o desconhecimento

da lei não constitui modalidade de erro de proibição direto.499 Ou seja, extraem da

posição de Jescheck a incongruência lógica de que a ignorância da lei não se

consubstancia no objeto da falta de consciência do injusto e, desse modo, não pode

se apresentar como espécie do erro de proibição direto.

No entender de Jescheck, o erro de proibição direto pode se basear no fato

de que a “norma de proibição não é conhecida pelo autor, ou que, na verdade, o

autor a conhece, mas a considera inválida, ou a interpreta erroneamente e, por essa

razão, considere-a inaplicável”.500 Desse modo, verifica-se que Cirino dos Santos

tem razão ao arguir que o pensamento do jurista alemão não pode servir como base

para a tese de que a inevitável ignorância da lei penal é inescusável, servindo

apenas de circunstância atenuante. De fato, Jescheck entende que também constitui

erro de proibição direto o desconhecimento da norma proibitiva.

495 Cf. SANTOS, 2011, p.165. 496 JESCHECK, 1993, p.410. 497 SANTOS, 2000, p.232-233. 498 OTTO, 1996, apud SANTOS, 2011, p.165. 499 “não pode escusar-se o agente com a simples alegação formal de que não sabia haver

lei estabelecendo punição para o fato” (MIRABETE, 2000) apud SANTOS, 2011, p.171. 500 JESCHECK, op. cit., p.412.

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Entendemos que a ignorância da lei penal e a falta de consciência da ilicitude

são realmente conceitos distintos, tal como profere a doutrina brasileira. Nessa

medida, preleciona Assis Toledo:501

Parece-nos elementar, contudo, que, sendo a „lei‟ uma coisa e a „ilicitude‟ de um fato outra bem diferente, só mesmo por meio de uma imperdoável confusão a respeito do verdadeiro sentido desses dois conceitos se poderá chegar à falsa conclusão de que a ignorância da lei é igual a ignorância da ilicitude de um fato da vida.

Ademais, estabelece Alcides Munhoz sobre a diferença que existe entre a

ignorância da antijuridicidade e a ignorância da lei, no sentido de que esta “é o

desconhecimento dos dispositivos legislados, ao passo que ignorância da

antijuridicidade é o desconhecimento de que a ação é contrária ao direito”.502

Assis Toledo assinala que “a ilicitude de um fato não está no fato em si, nem

nas leis vigentes, mas entre ambos, isto é, na relação de contrariedade que se

estabelece entre o fato e o ordenamento jurídico”.503

Ilicitude, portanto, é a relação de contrariedade entre o fato humano voluntário

do agente e o ordenamento jurídico. A ilicitude vem sempre acompanhada de um

diploma legal impondo ou proibindo determinada conduta. Já a ignorância da lei é o

desconhecimento dos dispositivos legais do ordenamento jurídico.

Em que pese se tratar de conceitos distintos, entendemos que eles podem se

entrelaçar. Posiciona-se de forma acertada Cirino dos Santos ao afirmar que se

deve admitir o desconhecimento do injusto por ignorância da lei. Há situações que,

de fato, o conhecimento do injusto depende do conhecimento da lei, próprias do

Direito Penal especial, em que ocorre a falta de coincidência entre tipos legais e

direitos humanos fundamentais. Admitir esse pressuposto constitui uma exigência do

princípio da culpabilidade.504

Assinalam Robson da Silva e Rodrigo Sánchez Rios que, no Direito Penal

Econômico, a exemplo dos crimes de licitação e o crime de descaminho, além do

tipo penal, faz-se necessário conhecer diversas outras leis e normas administrativas,

para se alcançar a consciência do que é permitido ou proibido, sob pena de sanção

penal. Concluem os autores que a consciência do injusto, nesse âmbito de

regulação, normalmente depende do conhecimento exato da lei por parte do autor

501 TOLEDO, 1994, p.262. 502 MUNHOZ NETTO, 1978, p.20. 503 TOLEDO, op. cit., p.66. 504 SANTOS, 2011, p.171.

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da infração. Todavia, os tribunais no Brasil, de forma quase uníssona, têm adotado a

posição de que o desconhecimento da lei é inescusável, para não reconhecer o erro

de proibição, diferentemente da Espanha, por exemplo, onde se adota o

posicionamento de que o erro de proibição, nos delitos econômicos, é normalmente

vencível.505

Apesar de a doutrina brasileira entender que o desconhecimento da lei e o

erro sobre a ilicitude são conceitos totalmente diversos, verifica-se que a

jurisprudência, de forma contraditória, vem se posicionando no sentido de não se

admitir o erro de proibição (evitável ou inevitável), com fundamento apenas na

obrigatoriedade do conhecimento da lei penal. Vale citar as seguintes decisões dos

tribunais pátrios, dentre tantas outras no mesmo sentido:

Apelação criminal. Crime contra a fauna. Art. 29,§ 1º, inciso III, da Lei 9.605/98. Erro de proibição afastado. Perdão judicial. Inaplicabilidade. Sentença condenatória mantida. Pena readequada. 1- Devidamente demonstrado que o réu mantinha em cativeiro espécimes da fauna silvestre, sem a devida autorização da autoridade competente, a condenação é a conseqüência necessária. 2- Afastada a tese de erro de proibição porque o desconhecimento da lei não afasta a responsabilidade criminal, mormente em decorrendo de erro inescusável, haja vista que amplamente divulgada a necessidade... (RC 71003476256 RS. Turma Recursal Criminal. Diário da Justiça do dia 28/02/2012). (Grifo nosso). Nulidade. Cerceamento de defesa. Requerida e indeferida diligencia no prazo do art. 499, processual, preclui a alegacao de nulidade se nao arguida nas razoes finais mas somente no recurso. Venda de agrotoxico sem as recomendacoes legais. Erro de proibicao. Se a lei veda a comercialização de agrotoxicos em determinadas condições, nao há, por parte de quem não a respeita, erro de proibição ao dizer que a desconhecia, o que é inescusável (CP, art. 21). Acusado, porém, reiterante na conduta e que, por conseguinte, tinha consciencia da ilicutude da conduta. (APL 1302 RJ 1993.050.01302. Quarta Câmara Criminal. Publ. 11/02/1994). (grifo nosso).

No entanto, há decisões excepcionais em que não se aplica o erro de

proibição em virtude do desconhecimento da lei penal. Na decisão abaixo exposta,

reconheceu-se o erro de proibição no caso do uso de aparelho telefônico sem fio de

longo alcance, alegando, inclusive, o objeto da consciência da ilicitude:

505http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/salvador/robson_antonio_galvao_da_silv

a.pdf . Último acesso em 02 fev. 2012, às 20:03 hs.

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Penal. Processo Penal. Uso de telefone sem fio de longo alcance. Atividade clandestina de telecomunicação. Crime. Art. 183, caput, da Lei nº 9.742. Crime formal. Princípio da Insignificância. Inaplicabilidade. Materialidade e autoria comprovadas. Erro de proibição inevitável. Ocorrência. Sentença reformada. Apelação provida. 1. A conduta atribuída à ora apelante configura o tipo penal descrito no art. 183, da Lei n. 9.472/97, tendo em vista que o "Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação", sem a devida autorização do órgão competente, consubstancia crime formal, que independe de resultado danoso para configuração do delito(...) 5. Na hipótese dos autos, é de se reconhecer a ocorrência in casu de erro de proibição quanto ao uso do aparelho telefônico sem fio de longo alcance. Com efeito, o art. 21 do Código Penal prescreve que o desconhecimento da lei é inescusável. Todavia, não se pode confundir o desconhecimento da lei, que é inescusável, com o erro de proibição que se encontra previsto na segunda parte do art. 21, do Código Penal, que não necessariamente decorre do desconhecimento da lei. 6. O erro de proibição incide sobre a consciência da ilicitude, que pode ser entendido como um juízo emitido de acordo com a opinião comum dominante no meio social, fazendo com que o agente suponha ser a sua conduta permitida pelo ordenamento jurídico. Assim, quando o agente não tem consciência sobre ser proibida a sua conduta, acreditando que se encontra agindo de boa-fé, dentro da normalidade, é de se reconhecer a ocorrência do erro de proibição. 7. Na hipótese, data venia de eventual entendimento em contrário, verifica-se que o contexto dos fatos está a demonstrar que a ré não tinha ciência da necessidade de autorização da ANATEL para colocar em funcionamento o equipamento de telefone sem fio de longo alcance. 8. Desconhecendo a ora apelante a necessidade de autorização estatal para funcionamento do equipamento por ela adquirido, é de se reconhecer o erro de proibição, pois é de se entender como presente, no caso em comento, a sua falsa convicção da licitude da conduta por ela praticada. Assim, havendo ocorrido in casu o erro de proibição inevitável, tem aplicação à hipótese o disposto no art. 21, caput, do Código Penal, segundo o qual o erro de proibição inevitável isenta o agente de pena. 9. Sentença reformada. 10. Apelação provida. (grifo nosso).

A obrigatoriedade da lei penal não pode fundamentar o erro de proibição

direto. Como cediço, a lei penal é geral e obrigatória em qualquer ordenamento

jurídico, e isso não impede que países, como a Alemanha e a Itália, considerem que

a inevitável ignorância da lei penal possa ser uma espécie de erro de proibição

plenamente escusável. Conclui-se, então, que os brocardos do tipo “ignorantia legis

neminem excusat” perderam o prestígio em face do princípio da culpabilidade.506

506 Nesse sentido: SANTOS, 2011, p. 170.

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A existência de uma obrigação de conhecer o direito como fundamento da

evitabilidade do erro de proibição tem recebido muitas críticas por parte da doutrina

estrangeira.

Um grande crítico a essa formulação é Armin Kaufmann, ao desenvolver o

estudo da teoria das normas. A principal objeção do autor é a de que, se o

fundamento do castigo do erro evitável é ter infringido a obrigação de conhecer o

direito, em verdade, o autor está formulando um juízo de reprovação não pelo injusto

que tenha cometido, mas sim por outro, qual seja, a violação da obrigação de

informar-se, para conhecer a conformidade do seu comportamento com o direito.507

Segundo Kaufmann, a violação de um dever é sempre um problema de

antijuridicidade e, nesse âmbito, existem duas obrigações diferentes, a saber: a de

conhecer o direito, bem como a de conhecer a norma que o autor tenha infringido.

Além disso, observa-se que a teoria da obrigação geral de conhecer o direito acaba

gerando um regresso ao infinito: quando se alega o desconhecimento da obrigação

de informar-se, tem-se de fundamentar o castigo em outra obrigação, qual seja, a de

conhecer a obrigação do dever de informar-se e, se esta for desconhecida, o

fundamento dar-se-ia em uma obrigação anterior [...] e, assim, sucessivamente.508

No plano político criminal, a regra da obrigação geral de conhecer o direito

contraria o espírito pro libertate que informa o Estado de Direito, já que os cidadãos

têm de possuir o máximo de liberdade possível e a imposição de uma conduta deve

constituir a exceção, não a regra. Outra objeção, de índole dogmática, que se

formula contra essa obrigação é o perigo de que se objetive o critério de

evitabilidade do erro, por meio da adoção de critérios tal como o do homem

médio.509

Como é consabido, quem julga possui uma formação de alto nível e, muitas

vezes, toma a si mesmo como parâmetro de homem médio, não correspondendo à

realidade. Outrossim, pode ser que o autor se informe e, no entanto, não chegue a

obter o conhecimento da antijuridicidade, já que, no momento em que buscou se

informar, por exemplo, a jurisprudência declarava como atípico o comportamento

que veio a empreender. Neste caso, ao autor seria imposta uma sanção, apesar de

507 KAUFMANN, 1988 apud NIETO MARTÍN, 1999, p.111. 508 NIETO MARTÍN, loc. cit. 509 Ibidem, p.111-112.

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ter buscado informação e não ter sido possível motivar-se de acordo com a norma.

O fundamento do castigo seria, tão-só, uma atitude desobediente ao direito.

Na Itália, o Tribunal Constitucional, na decisão de 24 de março de 1988, n.

364, declarou inconstitucional o artigo 5º do Código Penal italiano, o qual

preceituava que a ninguém é dado escusar a ignorância da lei penal. Segundo a

decisão, a causa fundamental de invalidez do referido dispositivo do diploma penal

italiano refere-se ao princípio da culpabilidade, segundo o qual a responsabilidade

penal é pessoal.510

Cumpre recordar, tal como apontamos no capítulo III deste trabalho, que o art.

5º do Código Penal italiano serviu como base para a redação da regra da

inescusabilidade da ignorância da lei penal na legislação brasileira. No entanto,

naquele país foi declarada a inconstitucionalidade do dispositivo, enquanto no Brasil

continua valendo a regra como um preceito absoluto.

De acordo com a Corte Constitucional italiana, o princípio de culpabilidade

como garantia do cidadão frente ao Estado está destinado a assegurar a liberdade

de atuação do indivíduo e a não exigir a instrumentalização da pessoa, haja vista a

noção de dignidade humana. Com esse escopo, reclama o princípio de culpabilidade

de que se responda penalmente somente por “ações controláveis” pelo próprio

agente.

Entendeu o tribunal da Itália que há necessidade de que estejam presentes

“requisitos subjetivos mínimos” sem os quais não é legítimo castigar. Tais requisitos

não estão absolutamente predeterminados na Constituição, nem tampouco ficam à

mercê do legislador ordinário. Segundo a decisão, o princípio de culpabilidade exige

que deva haver, ao menos, culpa em relação aos elementos mais significativos da

situação de fato. Assim, sancionar em virtude da lesão de um interesse tutelado,

relegando a atitude do sujeito frente à norma penal, sem ter sequer em conta a

existência de possibilidades de conhecer o dever jurídico, supõe uma redução ao

mínimo dos requisitos subjetivos que vinculam o sujeito a seu fato e uma

instrumentalização da pessoa humana a serviço da prevenção.511

O Tribunal Constitucional italiano define a inevitabilidade do erro de proibição

ou da ignorância da lei penal com base no princípio da culpabilidade. Conforme

observa Felip i Saborit, o encontro entre a lei e o indivíduo, ou seja, o conhecimento

510 Fj 8 y 13-14 (RIDPP, 1988, pp. 699-700 y 709-712) apud FELIP I SABORIT, 2000, p.64. 511 FELIP I SABORIT, loc.cit.

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concreto, não se produz com a simples existência da norma, mas sim com a precisa

aproximação entre ambos. Para o autor, são corresponsáveis o Estado e o indivíduo

para o conhecimento do direito, pois que deve haver uma lógica contratualista:

somente quem cumpriu com sua parte pode exigir responsabilidade penal ou evitar a

sanção, respectivamente.512

Saliente-se que não pretendemos retornar à época passada em que se

identificava a irrelevância do erro de direito com a irrelevância do desconhecimento

da lei penal. Ao revés, entendemos que se deve considerar a relevância de ambos:

do erro sobre a ilicitude do fato e da ignorância da lei em certos casos, admitindo-se,

portanto, que o princípio da inescusabilidade da ignorância da lei penal é relativo.

Ocorre que a irrelevância do erro de direito, conforme apresentamos na

evolução histórica da culpabilidade, deixou de prevalecer desde o século passado.

No entanto, a irrelevância do desconhecimento da lei continua sendo apregoada

como princípio absoluto em razão apenas de questões processuais, de validade da

lei e de segurança jurídica.

Ensina Figueiredo Dias que o primeiro passo para fundamentar o princípio da

absoluta irrelevância do desconhecimento da lei é “quase sempre no sentido de uma

irrefragável presunção de conhecimento”, à qual se atribui mero caráter processual,

relacionando-a ao instituto da prova. Todavia, segundo o autor, tal entendimento

contraria os mais elementares requisitos dentro dos quais se admite a “legitimidade

de presunções probatórias”.513

O autor, de forma acertada, critica a afirmação de que é absolutamente

normal o conhecimento da lei e que a tese de presunção absoluta resulta em pura

ficção decorrente de uma visão positivista, a qual entende a lei como “produto de

uma vontade arbitrária”, senão vejamos:514

O pluralismo legislativo por um lado; o acentuado caráter técnico da lei, por outro; os intrincadíssimos problemas (mesmo para especialistas) suscitados pela interpretação e aplicação – tudo torna absolutamente impossível, nos nossos dias, a afirmação de que é normal o conhecimento da lei. Pelo que a tese da presunção absoluta, a fundamentar-se só em si e por si mesma, viria afinal a desembocar em uma pura ficção – “die lächerlichste aller Fiktione”, como lhe chamou Anton Menger -, que só poderia ser conexionada com o problema da responsabilidade do homem pelo seu

512 FELIP I SABORIT, 2000, p.65. 513 DIAS, 2009, p.55. 514 Ibidem, p.56-57.

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comportamento dentro de uma mundividência crassamente positivista que concebe a lei como produto de uma vontade arbitrária.

De todo o exposto, percebe-se que o princípio da inescusabilidade da

ignorância da lei penal não pode mais ser afirmado de forma absoluta apenas com

base em razões intrínsecas. Como vimos na parte histórica da responsabilidade

penal, Aristóteles assinalou que a obrigatoriedade das leis deveria prevalecer em

virtude da facilidade de conhecê-las.

Todavia, atualmente, sabemos o quanto é difícil e, até mesmo, impossível

conhecer todas as leis, não apenas as penais, mas de todo o ordenamento jurídico.

Cuida-se de uma realidade social totalmente distinta da tratada por Aristóteles, no

antigo direito grego, tendo em vista que, nos dias atuais, há diversos novos riscos

decorrentes da globalização econômica e do avanço tecnológico e, como

consequência, uma proliferação de leis na tentativa (muitas vezes fracassada) de

acompanhá-los.

Faz-se necessário, tal como exige Figueiredo Dias, uma razão que

materialmente fundamente o princípio da irrelevância do desconhecimento da lei

penal. Assim, deve-se admitir a presunção relativa do conhecimento da lei,

principalmente em face do princípio da culpabilidade.

Torna-se imperioso verificar, diante do caso concreto, a possibilidade de o

agente cumprir a obrigação estabelecida em lei. Sobre a aferição da evitabilidade do

erro de proibição diante da hipótese concreta, nota acertamente Pierangeli que esse

juízo “fica entregue ao prudente arbítrio judicial no sentido de estabebelecer o

esforço que o agente deve realizar para compreender a antijuridicidade, observando

o grau cultural do agente e as regras de valoração social”.515

Além disso, os tribunais pátrios devem analisar a possibilidade de estabelecer

critérios condizentes com a dignidade da pessoa humana no que tange à

evitabilidade do erro de proibição, e não apenas propagar a afirmação, sem qualquer

fundamento material, de que o desconhecimento da lei é inescusável.

515 PIERANGELI, 1999, p.130.

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4.6 O PRINCÍPIO DA INESCUSABILIDADE DA IGNORÂNCIA DA LEI PENAL VERSUS O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

No particular, importa considerar a necessidade de prestigiar tanto as regras

quanto os princípios como fontes normativas, assumindo grande destaque a teoria

de Robert Alexy. Nesse sentido, vale traçar breves comentários a respeito da

abordagem do tema, a fim de que haja a real apreensão do seu conteúdo.

Segundo Alexy, em seu livro “Teoria dos Direitos Fundamentais”, regras e

princípios são deveres estruturalmente distintos, sendo que as primeiras assumem a

natureza jurídica de deveres definitivos, sujeitos à lógica do “tudo ou nada”. No caso,

a incidência de uma regra exige a aplicação da lógica da subsunção, reunindo-se a

premissa maior e a premissa menor com o intuito de alcançar o resultado esperado.

Sinteticamente, então, pode-se dizer ser mais facilmente compreensível a aplicação

de uma regra, importando basicamente a sua conexão com o caso concreto.516

Já no que diz respeito aos princípios, Alexy emprega o conceito de

mandamentos de otimização, compreendendo-os como deveres de natureza “prima

facie”. Ou seja, os princípios impõem que algo seja realizado na maior medida do

possível, tendo em vista as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto,

servindo, para tanto, o recurso à ponderação de bens e interesses.517

Sendo assim, segundo Alexy, a lógica apropriada para aplicação dos

princípios reside no recurso à técnica da ponderação, trazendo campo mais flexível

na aplicação do Direito.518

No Brasil, pode-se destacar a opinião de Eros Grau a respeito do tema,

demonstrando o significado que se confere, atualmente, aos princípios como fontes

de interpretação:519

Os princípios, todos eles – os explícitos e os implícitos –, constituem norma jurídica. Também os princípios gerais de direito – e não será demasiada a insistência, aqui, em que se trata de princípios de um determinado direito – constituem, estruturalmente, normas jurídicas. Norma jurídica é gênero que alberga, como espécies, regras e princípios – entre estes últimos incluídos tanto os princípios explícitos quanto os princípios gerais de direito.

516 Cf. ALEXY, 2008, p. 103-108. 517 ALEXY, 2008, p.90. 518 Cf. ALEXY, 2008, p.92-103. 519 GRAU, 2003, p. 45.

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Compara Roque Carraza, tomadas as cautelas que as comparações impõem,

os princípios jurídicos aos alicerces de um edifício, dado que de nada valerão as

portas, janelas, luminárias, paredes, em seus devidos lugares, se do prédio

subtrairmos as “vigas mestras”; fatalmente ele cairá. O autor bem constata que não

importa se o princípio é implícito ou explícito, mas se existe ou não.520

Com arrimo na lição de Condillac, ensina Carraza sobre a tarefa de

interpretação do jurista nos seguintes termos:

O jurista, ao examinar o Direito, deve considerar as ideias que mais se aproximam da universalidade dos princípios maiores; com isto, formará proposições e terá verdades menos gerais. Em seguida, tomará as ideias que mais se aproximem, por sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer, concebendo novas proposições e continuando, desta maneira, sempre sem deixar de aplicar os primeiros princípios a cada proposição que descobrir. Descerá, então, pouco a pouco, dos princípios gerais às normas jurídicas mais particulares, caminhando, na medida do possível, do conhecido para o desconhecido.521

Tais observações mostram uma intensa valorização dos princípios no âmbito

de aplicação do Direito, movidos pelo intuito de alcançar resultado mais aproximado

da ideia de Justiça. Ora, tais tendências perceptíveis no campo do Direito brasileiro

atual servem para chamar a atenção dos estudiosos para a imprescindibilidade de

maior cuidado com a tarefa de aplicação do Direito, tão permeada de incertezas e

especificidades.

Portanto, ante as observações anteriores, pode-se extrair a conclusão de que

o alcance da Justiça acaba por ser muito mais prestigiado no momento em que

ocorre maior grau de flexibilidade na aplicação do Direito, sendo exemplo o tema

escolhido, e que exige cuidado especial no que diz respeito à sua mudança de

compreensão. Defender a modificação da natureza da regra da inescusabilidade do

desconhecimento da lei no Direito Penal para considerá-la relativa serve, então, para

prestigiar a flexibilidade dos princípios jurídicos incidentes no caso em epígrafe,

salientando, pois, ser esta a força motriz que alimenta a própria atuação cotidiana do

jurista. Assim, deve-se considerar o princípio da culpabilidade com o caráter

inviolável da dignidade da pessoa humana a ele inerente nos casos de ignorância da

lei penal.

520 CARRAZA, 2006, p.38; 40. 521 Ibidem, p.40.

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Nessa perspectiva, o desconhecimento da lei não pode servir apenas como

causa de diminuição de pena, mas sim levar, em alguns casos, a resultado jurídico-

penal menos rigoroso e mais consentâneo com as peculiaridades das sociedades

complexas, marcadas por imensa gama legislativa que, por vezes, nem sequer é

conhecida pelos próprios aplicadores do Direito.

Percebe-se, dessarte, a necessidade de se repensar o regime jurídico

relativo ao desconhecimento da lei no Direito Penal brasileiro, contextualizando-o às

mudanças interpretativas necessárias para que se chegue a resultado mais

consentâneo com os imperativos de Justiça. Um caso paradigmático pode ser citado

para ilustrar a situação narrada, contemplando o lavrador que desmatou parte de um

terreno com a finalidade de plantar para sua própria subsistência, e que veio a ser

acusado da prática de infração penal.

Seria, no mínimo, absurdo defender a aplicação automatizada do Direito em

tal caso, recorrendo aos termos estritos da legislação penal como incidentes em

uma realidade completamente inapropriada, em sede da qual não restou evidente o

intuito de prejudicar o meio ambiente ou desrespeitá-lo em sua integridade. As

notícias, a propósito do caso, demonstram que o lavrador não tinha, de fato, o

conhecimento de que se tratava de conduta contrária à norma penal

incriminadora.522 Mas seria realmente justo acionar os aparelhos estatais para

processá-lo e julgá-lo como autor de fato típico, antijurídico e culpável, concedendo

tão somente o benefício da redução da pena?

Acredita-se não ser este o real objetivo da normatividade penal, marcada,

hodiernamente, pelo incremento no recurso às regras e princípios.

Vale aduzir, por oportuno, que a regra da inescusabilidade da ignorância da

lei penal, entendida de forma absoluta, contribui para o caráter seletivo,

discriminatório e estigmatizante do sistema penal. Afinal de contas, é o pobre quem

possui, geralmente, pouco acesso à informação, sobretudo em virtude de sua baixa

e má qualidade de escolarização.

Verifica-se, portanto, que o desconhecimento da lei penal como inescusável,

de forma absoluta, impede que o Direito seja um instrumento de controle social para

o alcance da igualdade, por meio da inclusão social, mas, ao contrário, aumenta a

segregação daqueles menos favorecidos financeiramente.

522 http://www.conjur.com.br/2010-mai-08/revertida-condenacao-lavrador-desmatou-90-mata-

atlantica. Acesso em 07 jan. 2012, às 14:05 hs.

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Ocorre que o Direito Penal do Estado Democrático de Direito preocupa-se

com o ser humano. Sobre o assunto, impende destacar o princípio da culpabilidade,

que se traduz na responsabilidade penal do indivíduo, ou seja, toma em

consideração o homem. Referido princípio “condiciona o método do Direito Penal

porque é um dos mecanismos para o sopesamento do caso no processo da decisão

e da argumentação jurídica, possibilitando a própria realização da tópica, que para

garantir o respeito à dignidade humana pode superar o silogismo”.523

O princípio da culpabilidade deve ser entendido com base na dignidade da

pessoa humana. É fato irrecusável que, no âmbito do Direito Penal, as violações aos

direitos humanos, especialmente no que concerne à dignidade da pessoa humana,

são assustadoras quer seja em relação à pessoa do criminoso, quer seja em relação

às vítimas. Estas são amparadas se seus dramas chamam a atenção da mídia e,

por algum tempo, têm suas vidas e suas dores expostas, mas, logo isso passa.

Quanto aos autores de ilícitos penais, é regra que policiais, jornalistas e a sociedade

em geral partem do pressuposto de que são culpados, apesar de a Constituição

Federal lhes assegurar a presunção de inocência.

Tal postura cultural envolve violação aos direitos fundamentais do cidadão e,

por isto mesmo, sobre eles não se pode transigir. Qualquer forma de violação à

dignidade da pessoa humana deve ser reprimida pelo sistema, por seus intérpretes,

sob pena de se admitir enorme retrocesso no lento, mas progressivo caminho

percorrido pelo Direito Penal.

Para o professor Luiz Antonio Rizzatto Nunes, dignidade é “um conceito que

foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta

de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica”.524 Nesse

passo, a dignidade da pessoa humana se identifica como um valor quase absoluto,

não admitindo quaisquer questionamentos quanto ao seu conteúdo e extensão.

A Constituição Federal de 1988 consagra a dignidade da pessoa humana

como um dos fundamentos da República, a teor do seu artigo 1.º:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana;

523 BRANDÃO, 2011, p.200. 524 NUNES, 2002, p.46.

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IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. [...] (grifo nosso).

Consagrado como sustentáculo do Estado Democrático de Direito, dito

princípio ganha mais importância se considerada a nossa história de violações a

direitos que tem seu ponto culminante na Ditadura Militar. Daí porque se entende

que a dignidade da pessoa não pode ser desprezada em qualquer situação,

impondo-se aos operadores do Direito o dever de tê-la como norte, no momento em

que se esteja diante de um caso concreto, quer seja individual ou coletivo.

Na hipótese de imputação de culpa daquele que desconhece o caráter

criminoso da conduta, modestamente, entendemos que há violação ao princípio da

dignidade da pessoa humana.

Segundo a tradicional exegese do art. 21 do Código Penal, alegar o

desconhecimento da lei não escusa o agente da responsabilidade criminal. Tal

postura interpretativa é contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana

porque afasta toda a teoria da culpa genérica fundada na vontade de praticar o mal.

Nos julgados que envolvem os crimes ambientais e econômicos, por exemplo,

encontram-se inúmeras decisões rechaçando a possibilidade de absolvição com

base na alegação de desconhecimento da lei, afirmando os julgadores que a

imprensa divulga diuturnamente o conteúdo da lei e, por isso, não se deve

considerar seu desconhecimento como motivo relevante.

Entendemos, em face do expendido, que se deva considerar a

inescusabilidade da ignorância da lei penal como um princípio relativo,

principalmente em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa

humana.

Provada a ignorância ou o erro sobre a antijuridicidade, deve o operador do

direito realizar o juízo da existência da evitabilidade do erro de proibição de acordo

com os três critérios expostos por Claus Roxin, e não apenas alegar que o

desconhecimento da lei é inescusável: a) um erro de proibição é evitável quando

houver dúvidas; b) quando o agente conhece que o setor no qual atua está regulado

e não adota qualquer medida de modo a alcançar os conhecimentos jurídicos

necessários; c) quando o autor é consciente de que seu comportamento atinge outra

pessoa ou a coletividade.

No entanto, a consideração da existência ou não de dúvida deve ser feita não

pelo que entende a sociedade como razoável, mas sim pelas condições concretas

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de o autor da infração chegar a indagar-se sobre a licitude de sua conduta. Em se

detectando razões para pensar na antijuridicidade, há de se avaliar se o autor teve

possibilidade de certificar-se sobre o significado jurídico de seu ato, podendo afastar

o erro mediante a autorreflexão e a informação.

Consigne-se a importância, no âmbito penal, do tratamento a ser utilizado na

jurisprudência (a depender dos elementos presentes na casuística), não só da

dogmática que orienta a espécie, mas dos princípios que regem o ordenamento

jurídico brasileiro. Deve-se ter sempre em consideração a dignidade da pessoa

humana, inerente ao princípio da culpabilidade, ponderada, indispensavelmente,

com a finalidade da pena, que deve, no nosso entender, coincidir com os

fundamentos do funcionalismo traçados por Claus Roxin, atendendo-se a fins

preventivos (geral e especial), considerando a conduta no contexto social, bem

como a posição social e cultural do autor.

Possível encontrar fundamento para este tratamento também na forma

diferenciada com que foi positivada a ignorância da lei na contravenção e no crime,

como já referido neste trabalho, isentando de pena na primeira e atenuando-a no

segundo. Insta indagar-se se há diferença da culpabilidade nesses casos que

autorize tratamentos desiguais. Pode-se afirmar ter a contravenção juízo de

reprovabilidade menor que o crime, repercutindo positivamente no que almeja

demonstrar esta pesquisa: há casos em que se deve reconhecer a relevância do

desconhecimento da lei penal, principalmente quando dizem respeito a infrações

penais não correspondentes às violações éticas, morais e sociais.

Confirma-se, pois, a máxima ensinada por Savigny “cada caso deve ser

tomado como se fosse o ponto de partida de toda a ciência, a qual deveria ser

forjada a partir dele”.525 Acrescente-se a esta análise seletiva, a necessidade de

estabelecer acertados critérios para a evitabilidade do erro de proibição, para que se

ponha a salvo a indispensável segurança jurídica e paz social.

525 SAVIGNY, 1914 apud DIAS, 1999, p. 40.

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CONCLUSÕES

Apresenta-se a guisa de conclusões:

1 O percurso histórico da responsabilidade penal demonstra que o tratamento

atualmente dispensado à ignorância da lei neste ramo do direito é mais rigoroso do

que aquele conferido pelos antigos romanos, que, apesar de terem introduzido a

regra da inescusabilidade do erro de direito, admitiam inúmeras exceções em sua

aplicação, a exemplo da natureza da lei ignorada e da qualidade das pessoas. Além

disso, um dos fundamentos para a regra da irrelevância do erro de direito era o de

que o ordenamento jurídico daquela época constituía-se de normas expressas e

bem definidas, sendo fácil o conhecimento das leis, o que não ocorre nos dias

hodiernos, diante da complexidade do direito e da sociedade multicultural. Verifica-

se que houve avanço apenas no tocante à regulação da falta de consciência da

ilicitude, e um retrocesso quanto ao desconhecimento da lei penal.

2 No que se refere às concepções sobre a posição da consciência da ilicitude na

teoria do delito, percebe-se que tanto as teorias do dolo quanto as da culpabilidade

são insuficientes para resolverem as inúmeras situações concretas, mas a teoria

limitada da culpabilidade revela-se mais adequada do ponto de vista político-

criminal. Ademais, nota-se que ela se coaduna com a concepção funcionalista do

Direito Penal, que traz soluções mais condizentes com a realidade social, mormente

em se considerando os novos riscos a que todos estão submetidos diariamente,

decorrentes da globalização econômica e do desenvolvimento tecnológico.

3 Quanto ao tratamento da culpabilidade, o funcionalismo estrutural apresenta-se

mais acertado do que a teoria finalista, pois esta se baseia no entendimento da

liberdade de o homem agir de outro modo, sem qualquer demonstração empírica.

Por seu turno, a referida corrente funcionalista considera, para a exclusão da

culpabilidade, necessidades preventivas sobre a isenção de pena, ocasionando

relevantes efeitos na prática, a exemplo da questão do erro de proibição.

4 Com efeito, não se deve exigir mais do que a medida normal de fidelidade ao

direito presente numa pessoa integrada socialmente, preservando-se sempre a

dignidade da pessoa humana. Deve-se considerar a possibilidade de maior

incidência da inevitabilidade do erro de proibição diante da análise mais cuidadosa

dos casos em concreto, bem como de se estabelecerem critérios para que se

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entenda o erro quanto à ilicitude evitável. Mas estes critérios não podem ser vistos,

apenas, de modo objetivo, a exemplo de se considerar a dúvida sobre a

antijuridicidade como razoável de acordo com o que pensa a sociedade, senão há o

risco de se criarem previsões absolutas de evitabilidade e violar o princípio da

presunção de inocência. Há, dessarte, que se levar em conta não apenas a

reprovação social, como também a capacidade intelectual e cultural do indivíduo,

atendendo-se, da melhor maneira possível, aos postulados dos direitos humanos.

5 No estudo histórico da culpabilidade e do erro de proibição no direito penal positivo

do Brasil, destaca-se o Projeto de Virgílio de Sá Pereira, de 1927, haja vista que o

autor se preocupou com o tema da ignorância da lei penal de acordo com a

realidade social. Distinguiu as infrações penais pela própria natureza das

convencionais, ou seja, ditadas pelas circunstâncias do momento. Diferentemente

desse entendimento, o Código Penal em vigor apenas reconhece a circunstância

atenuante da ignorância da lei e declara a regra da inescusabilidade desse

desconhecimento, o que tem gerado muitas interpretações equivocadas no sentido

da natureza absoluta desse preceito.

6 Com arrimo no posicionamento tradicional do objeto da consciência da ilicitude

como sendo o comportamento contrário à ordem comunitária, preceitua

majoritariamente a doutrina brasileira que o desconhecimento da lei é sempre

inescusável, não constituindo modalidade do erro de proibição direto. A falta de

consciência da ilicitude e a ignorância da lei penal são, realmente, conceitos

distintos, mas isso não impede que se reconheçam casos em que o conhecimento

do injusto dependa do conhecimento da lei, sobretudo em se tratando da legislação

penal especial em que não coincidam os tipos delituosos e a ilicitude moral, social e

ética.

7 A despeito de a doutrina posicionar-se no sentido de que a falta de consciência da

ilicitude e o desconhecimento da lei são conceitos distintos, verifica-se que, de forma

contraditória, os tribunais brasileiros não admitem o erro de proibição apenas com

fundamento na obrigatoriedade do conhecimento das leis. Em verdade, não há uma

fundamentação material da natureza absoluta do princípio da inescusabilidade do

desconhecimento da lei, mas apenas justificações processuais, de validade da lei e

de segurança jurídica. Assim, conclui-se pela necessidade de se considerar a

inescusabilidade da ignorância da lei penal como um princípio relativo,

principalmente em face do princípio da culpabilidade e da dignidade da pessoa

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humana a ele intrínseco. Até porque a segurança jurídica não pode se traduzir em

ineficácia de princípios constitucionais estruturantes do Estado Democrático de

Direito. A garantia da liberdade e do devido processo legal não podem ser

derrogados em nome da validade da lei ordinária, uma vez que esta encontra sua

própria fundamentação na Constituição Federal e desta deriva.

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