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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA A LÍNGUA PORTUGUESA NO BARROCO: CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL DO HIPERENUNCIADOR EM AS CARTAS ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS CHAGAS MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA RICARDO CELESTINO SÃO PAULO - SP 2014

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA - sapientia.pucsp.br · cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador em Cartas Espirituais, de modo a verificar como o interdiscurso, o gênero

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

A LÍNGUA PORTUGUESA NO BARROCO: CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL

DO HIPERENUNCIADOR EM AS CARTAS ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS

CHAGAS

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

RICARDO CELESTINO

SÃO PAULO - SP

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

A LÍNGUA PORTUGUESA NO BARROCO: CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL

DO HIPERENUNCIADOR EM AS CARTAS ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS

CHAGAS

Dissertação apresentada ao Programa

de Estudos Pós-graduados em Língua

Portuguesa da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo – PUCSP,

como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em Língua

Portuguesa, sob a orientação do

Professor Doutor Jarbas Vargas

Nascimento.

RICARDO CELESTINO

SÃO PAULO - SP

2014

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________

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DEDICATÓRIA

A meus pais, Pedro Celestino e Sonia de Oliveira Celestino, pelos anos de

criação e formação do ser humano que sou hoje.

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AGRADECIMENTOS

À vida e à oportunidade de vivenciar experiências ímpares como essa.

A todos os funcionários ligados ao Programa de Estudos Pós-graduados de

Língua Portuguesa da PUCSP.

À Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

por ter acreditado no êxito deste trabalho e pelo apoio financeiro.

Ao professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento, meu orientador e amigo, pela

presença, paciência, comprometimento, conduta, liderança, exemplo e apoio,

desde os primeiros passos de minha formação acadêmica.

Aos professores Doutores Márcio Rogério Oliveira Cano e João Hilton Sayeg

de Siqueira, pelas expressivas sugestões dadas à minha pesquisa e pela

humildade,competência e disponibilidade em sempre se colocaremà disposição

para meu enriquecimento cultural.

Ao Professor Doutor Carlos Eduardo Mendes de Moraes, da UNESP-Assis,

pela gentileza em me receber e orientar leituras que enriqueceram a pesquisa.

Aos membros dos Grupos de Pesquisa Memória e Cultura da Língua

Portuguesa Escrita no Brasil, da PUCSP, e A Escrita no Brasil Colonial e suas

relações, da UNESP-Assis, pelas contribuições que engradecem meu

repertório acadêmico.

À minha noiva, Dandara Nunes Martins, por me incentivar e estar ao meu lado

nos momentos fáceis e difíceis de elaboração desse trabalho.

Aos meus irmãos, Flávio Celestino e Fernanda Celestino, por participaremda

minha vida como exemplos positivos de perseverança.

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Ao amigo, Ramon Silva Chaves, pelo exemplo de conduta como pesquisador e

pelas conversas acadêmicas, que enriqueceram muito nosso trabalho.

E, acima de tudo, à minha família e amigos que sempre estiveram ao meu lado.

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RESUMO

Esta Dissertação tem como tema o estudo das cenas da enunciação e do papel

do hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, escritas

no Barroco português. Integrado à linha de pesquisa de Texto e Discurso nas

modalidades oral e escrita, trata-se de um estudo enunciativo-discursivo de

práticas sociais do século XVII, fundamentada pela Análise do Discurso de

linha Francesa, principalmente pelas abordagens de Maingueneau(2005, 2006,

2007, 2008a, 2008b, 2011). Temos como objetivo examinar a construção das

cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador em Cartas Espirituais, de

modo a verificar como o interdiscurso, o gênero do discurso e as cenas da

enunciação dialogam no funcionamento discursivo para o surgimento do

hiperenunciador. A mobilidade do hiperenunciador é identificada por meio dos

aspectos que fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo

enunciador,reconhecida a partir das formações discursivas impressas nas

cartas espirituais, que constituímos com amostra de análise e que fornecem

marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII.Assim, tomamos

as cartas espirituais em análise como atividade humana institucionalizada do

discurso religioso. As cartas são gêneros de discurso que objetivam orientar e

doutrinar o posicionamento de fiéis e religiosos aos paradigmas da Igreja

Católica e da espiritualidade cristã seiscentista. O enunciador, inserido em um

lugar social, interage enunciativamente com um co-enunciador, que também

possui especificidades socioculturais, com a finalidade de convencê-lo de que a

orientação espiritual detém direcionamentos, que solucionam as inquietações

da vida cotidiana. Osenunciados das cartas selecionadasrevelam

posicionamentos, que nos permitem a consolidação de um espaço discursivo

do dizer e do não-dizer. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador se

deparam com a polêmica sacroprofana das reformas religiosas, da valorização

do cientificismo e da decadência da espiritualidade e buscam posicionar-se de

forma a não estabelecer equilíbrio entre um posicionamento e outro, mas

institucionalizar-se e defender uma verdade absoluta. Dessa maneira, o

enunciador assume um posicionamento de forma a invalidar todos os demais,

utilizando da retórica gongórica do cultismo e do conceptismo, também

frequentes na arte Barroca, para convencer o co-enunciador, que se encontra

com a fé e a devoção institucional abaladas frente às contradições do mundo

seiscentista.

Palavras-chave: Análise do Discurso, hiperenunciador, espiritualidade,

Barroco, Frei Antonio das Chagas.

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ABSTRACT

This dissertation has as its theme the study of scenes of enunciation and the

function of hiperenunciator in CartasEspirituais of Frei Antonio das Chagas,

written in Portuguese Baroque. Integrated in the line of research text and

discourse in oral and written, it is an enunciative-discursive study of social

practices of the seventeenth century , grounded by Discourse Analysis of

French line, especially the approaches Maingueneau ( 2005, 2006, 2007,

2008a, 2008b, 2011) . We aim to examine the construction of the scenes of

enunciation and the function of hiperenunciator in CartasEspirituais, so check

how interdiscourse, gender discourse and scenes of enunciation dialogue in

discursive function for the emergence of hiperenunciator. The mobility of

hiperenunciator is identified by means of the aspects that underlie the different

views expressed by the enunciator, recognized from the printed discursive

formations in spiritual letters, which constitute a sample for analysis and

providing brand of baroque aesthetics and spirituality of the century XVII. Thus,

we take the spiritual letters as an institutionalized human activity analysis of

religious discourse. The letters are genres of discourse that aim to guide and

edify the faithful and religious position of the paradigms of the Catholic Church

and of seventeenth-century Christian spirituality. The enunciator, inserted into a

social place, enunciatively interacts with a co-enunciator, which also has socio-

cultural specificities, in order to convince him that the spiritual guidance has

directions, that address the concerns of everyday life. The set of selected letters

reveal placements that allow us to consolidate a discursive space of the mean

and non- mean. Both the enunciator as co-enunciator faced with sacroprofana

controversial religious reforms, enhancement of scientism and decadence of

spirituality and seek to position themselves so as not to strike a balance

between a position and the other, but to institutionalize itself and defend an

absolute truth. Thus, the enunciator assumes a placement in order to invalidate

all others, using the rhetoric of gongoric cultism and conceptism also common

in Baroque art, to convince the co-enunciator, who meets with faith and

devotion institutional shattered front the contradictions of the seventeenth-

century world.

Key-words:Discourse Analysis, hiperenunciator, spirituality, Baroque, Frei

Antonio das Chagas.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 1

CAPÍTULO I

CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE CARTAS

ESPIRITUAIS

1.1. Antonio da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas ........................................................... 8

1.2. As condições sócio-político-culturais do século XVII .............................................................. 14

1.3. A religiosidade no século XVII .................................................................................................... 22

1.4. O Barroco português .................................................................................................................... 31

CAPÍTULO II

ANÁLISE DO DISCURSO: FRONTEIRAS E CONCEITOS

2.1. As formações discursivas e o primado do interdiscurso ........................................................ 40

2.2. Tipos e gêneros do discurso ....................................................................................................... 47

2.3. As cenas da enunciação ............................................................................................................. 54

2.4. A noção do hiperenunciador ....................................................................................................... 57

CAPÍTULO III

CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL DO HIPERENUNCIADOR EM

CARTAS ESPIRITUAIS

3.1. Procedimentos de análise ........................................................................................................... 68

3.2. O gênero carta: uma orientação doutrinária institucional e espiritual .................................. 69

3.3. As cenas da enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador como

formas de adesão do posicionamento do co-enunciador .............................................................. 77

3.3.1. A epígrafe ............................................................................................................................... 80

3.3.2. A amostra ............................................................................................................................... 82

3.3.2.1.Carta I ........................................................................................................................................... 82

3.3.2.2.Carta IV ......................................................................................................................................... 95

3.3.2.3.Carta V ........................................................................................................................................ 105

3.3.2.4.Carta XX ..................................................................................................................................... 115

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CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 129

ANEXOS .................................................................................................................................................. 132

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como tema o estudo das cenas da enunciação e do papel do

hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, escritas no Barroco

português. Pertencente à linha de pesquisa de Texto e Discurso nas modalidades oral

e escrita, trata-se de um estudo enunciativo-discursivo de práticas sociais do século

XVII. Obra de valor documental, Cartas Espirituais foi editada postumamente em dois

volumes, o primeiro em 1684, com 100 cartas, e o segundo em 1687, com 266. Estudá-

las na perspectiva enunciativo-discursiva nos possibilita compreende-las como

documento histórico que revela episódios da vida cotidiana de uma sociedade, cuja

formação social, espiritual, religiosa, política e cultural agregam referências dos

pensamentos medieval e renascentista, que constituem a estética e o pensamento do

Barroco português.

Como amostra de nossa pesquisa, examinaremos as cartas espirituais do

primeiro volume que apresentam epígrafe, corpo de texto, saudação, assinatura e das

quais emerge o hiperenunciador em seu aparelho enunciativo. A escolha foi

impulsionada pela necessidade de compreendermos o funcionamento estrutural,

estilístico e temático da amostra selecionada e, ainda, como o discurso é encenado na

enunciação, sendo uma das condições para entendermos a esfera de atividade

religiosa que possuem os discursos selecionados. A emergência do hiperenunciador no

aparelho enunciativo é condição para observarmos como um discurso institucionalizado

religioso possui atravessamentos do campo literário do Barroco português, a partir dos

jogos de ideias e conceitos, muito comuns na estética gongórica seiscentista.

Selecionamos, então, as cartas I, IV, V, VI, VII, VIII e XX.

O pensamento e a cultura pós-renascentista, bases para a moral e os costumes

da sociedade portuguesa do século XVII, têm como influências o Renascimento e a

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Contrarreforma. A dualidade nesse período é marcada por tendências racionalistas e

renascentistas de pensamento e pelos valores morais pautados na cultura medieval e

promovidos pelas instituições religiosas. Nesse contexto insere-se Frei Antonio das

Chagas, nome religioso que assumiu Antonio da Fonseca Soares (1631–1682), homem

que viveu expressivamente a dualidade barroca. Foi soldado da Guerra da

Restauração, contra o exército espanhol, e poeta de destaque, explorando, dentre

outros temas, suas experiências amorosas e os excessos cometidos em sua vida

secular.

Em 1662, Soares renunciou à vida militar e dedicou-se aos votos monásticos na

Ordem de São Francisco, em Évora. A partir de então passou a ser conhecido por Frei

Antonio das Chagas, tendo direcionado sua vida ao evangelho e aos atos de fé.

Percorreu as terras do Alentejo e Algarve em andanças missionárias, momento em que

compôs Cartas Espirituais, considerada sua obra-prima e que o coloca entre os

grandes cultores do Barroco português.

Cartas Espirituais são produções avulsas compostas por Chagas ao longo de

suas peregrinações e missões religiosas. Serviram tanto como veículo de contato entre

fiéis e religiosos como meio de doutrinação espiritual da fé cristã. Nelas podemos

perceber aspectos da língua, da estética, da espiritualidade e do pensamento da

época, já que são, em sua maioria, cartas-resposta de outras produções enunciadas

por fiéis e religiosos que viam o frei não apenas como um religioso em ofício, mas

também como um confidente íntimo.

A compreensão de Cartas Espirituais está diretamente relacionada ao

entendimento de suas condições sócio-históricas de produção e de circulação. A

Análise do Discurso de orientação francesa, doravante AD, é o referencial teórico-

metodológico que nos possibilita compreender o discurso indissociável de seu quadro

social. Os estudos realizados na AD ultrapassam a reflexão intradiscursiva, pois

contemplam os aspectos sociais, históricos, culturais e institucionais da produção

discursiva. Assim, selecionamos os estudos de Maingueneau (2005, 2006, 2007,

2008a, 2008b, 2011) como referencial teórico-metodológico.

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A noção de discurso utilizada na AD foi, inicialmente, contemplada pela Filosofia.

Em Foucault (1987, 2012) e Deleuze (2005), o discurso é estudado como um lugar

possível entre o pensamento e a palavra. Os autores afirmam que o pensamento é

revestido de signos linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e

tempo, que se tornam visíveis por meio do texto. O discurso carrega valores de

verdade de um determinado grupo ou instituição social, o que constituem as formações

discursivas.

Maingueneau (2008b) reconsidera a noção de formação discursiva, propondo

estudá-la na linguística, refletindo sobre o primado do interdiscurso. O interdiscurso é

uma categoria que afeta a discursividade para além da relação direta entre língua e

história. A interação enunciativa é constituída pela forma que um enunciador conduz

diversos olhares de Outros discursos na constituição de seu próprio discurso. O autor

propõe um quadro metodológico para o domínio do interdiscurso, a partir de uma tríade

composta por: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Observar a

categoria interdiscurso, em Cartas Espirituais, é essencial, pois significa valorizar os

aspectos sócio-histórico-culturais que permitem a construção dos efeitos de sentido da

amostra selecionada.

Não é apenas a categoria de interdiscurso que é basilar para o estudo

enunciativo-discursivo de Cartas Espirituais. A categoria de gêneros do discurso,

proposta inicialmente por Bakhtin (1992) e posteriormente por Maingueneau (2008a,

2011) também é condição fundamental para a compreensão do discurso em relação

com a prática social seiscentista. Estudar gêneros na AD é compreendê-lo como

unidade de linguagem que estabelece os papeis exercidos pelo enunciador e pelo co-

enunciador na interação enunciativa. O papel que cada um exerce na enunciação são

as representações que cada sujeito possui na prática social que, encenado na

enunciação, estão suscetíveis a um sistema de coerções determinado, que opera nos

planos do discurso e na rede institucional de um grupo. O gênero, a partir das três

dimensões que o compõem - tema, estrutura e estilo - está vinculado a um tipo de

discurso que o legitima como pertencente a uma determinada instituição social.

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Estudar o gênero como uma prática enunciativo-discursiva cooperativa e regida

por normas e certo número de regras conhecidas e sancionadas pela comunidade que

faz uso deste mesmo gênero é compreendê-lo como um ritual em que a prática é

encenada na enunciação. Maingueneau (2011, p. 85) afirma que um texto não é um

conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é

encenada, ou seja, por meio da enunciação, há emergência de uma categoria que

encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores e o contrato estabelecidos

por eles e pelo gênero no espaço enunciativo, definido como as cenas da enunciação.

O estudo das cenas da enunciação justifica-se, pois, a partir dela, há a

emergência da instância do hiperenunciador em Cartas Espirituais de Frei Antonio das

Chagas. São nas cenas da enunciação, e, mais especificamente, na cenografia, que as

estratégias enunciativo-discursivas de oferta de adesão de um ponto de vista do

enunciador ao co-enunciador são identificadas, uma vez que é por meio das cenas da

enunciação que são verificadas a legitimidade e a garantia de veracidade aos

enunciados construídos no discurso epistolar de Cartas Espirituais.

Maingueneau (2005, 2008b) afirma que a mobilidade da instância do

hiperenunciador emerge na cenografia por meio de um sistema de citações presentes

no discurso. Analisa os usos do discurso citado, com o intuito de refletir acerca de

citações presentes no enunciado, mas explícitas no discurso, e não no texto. Denomina

esse conjunto de citações como particitação. A relevância em tratar da noção de

hiperenunciador em Cartas Espirituais é compreender que nelas o hiperenunciador tem

como função, por meio do enunciado particitado, tornar inútil a presença de quaisquer

outras marcas de pontos de vista dos enunciados , que não as almejadas pelo

enunciador. O hiperenunciador é uma instância que valida um olhar e

consequentemente busca garantir a impossibilidade de outros pontos de vista do co-

enunciador sobre um determinado enunciado.

Assim, com base no que antecede, temos como objetivos:

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Examinar a construção das cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador em

Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas.

Verificar o modo como o interdiscurso, o gênero do discurso e as cenas da

enunciação dialogam no funcionamento discursivo para o surgimento do

hiperenunciador.

Identificar a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que

fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador.

Reconhecer, pelas formações discursivas impressas nas cartas espirituais

selecionadas, marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII que

reforçam a mobilidade do hiperenunciador.

Assim, nossa pesquisa está organizada da seguinte forma:

O Capítulo I fornece as condições de produção de Cartas Espirituais, justificando

a escolha por Frei Antonio das Chagas no que concerne à sua importância no século

XVII. Também apresentamos um panorama acerca das condições sócio-histórico-

culturais de Portugal e os movimentos de reformas político-religiosas conhecidos como

a Reforma Protestante e a Contrarreforma, fundamentais como formações discursivas

para nossa amostra de pesquisa.

O Capítulo II trata dos princípios da Análise do Discurso na atualidade, com

ênfase no referencial teórico-metodológico apresentado por Maingueneau, a partir das

categorias de interdiscurso, gênero de discurso, cenas da enunciação e

hiperenunciador.

O Capítulo III apresenta a análise da amostra selecionada, o qual analisamos o

gênero carta como uma orientação doutrinária institucional e espiritual, e as cenas da

enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador como formas de adesão

do posicionamento do co-enunciador.

A esses capítulos seguem as Considerações Finais, as Referências

Bibliográficas e os Anexos.

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CAPÍTULO I

CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE PRODUÇÃO DE CARTAS ESPIRITUAIS

Este capítulo apresenta as circunstâncias sociais, históricas, políticas e culturais

de produção de Cartas Espirituais, objeto de nossa pesquisa. Dividimo-lo em Antonio

da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas; as condições sócio-político-culturais do

século XVII; a religiosidade no século XVII; e o Barroco português.

A vida secular de Antonio da Fonseca Soares, nascido em 1631, na vila da

Vidigueira, em Portugal, é destacada pela sua participação na Guerra da Restauração

e pela dedicação às produções poéticas. Devido a seu bom desempenho como militar

e poeta, em vida ficou conhecido como Capitão Boninas.

Soares viveu o período de duas dinastias portuguesas: a dinastia Filipina e a

dinastia de Bragança. Com a consolidação de Portugal enquanto nação na Época

Moderna, correspondente à Dinastia de Avis (1385 - 1580), marcou-se a consolidação

das fronteiras territoriais e das alianças políticas entre Portugal e as demais nações da

Europa. Nesse período, há o estabelecimento da burguesia na nação portuguesa, a

prática mercantilista de acúmulo de capitais e a necessidade da expansão territorial

com as grandes navegações. Em 1580, em virtude do único herdeiro ao trono

português ser Filipe II, rei da Espanha, a nação portuguesa passou a ser governada

pela nação espanhola, evento que marcou o inícido da Dinastia Filipina.

A perda do referencial da realeza por parte do povo português, devido à

ausência de um rei legítimo, culminou na falta de uma figura que representasse, e

consequentemente oferecesse identidade divina e política à nação portuguesa. A

nobreza, a burguesia e os militares portugueses organizaram-se com a finalidade de

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retomar a independência do Estado. Os conflitos entre Espanha e Portugal deram

origem às guerras da restauração e Soares foi atuante como militar nesses eventos.

Em 1640 há o sucesso da retomada da independência de Portugal e inicia-se a

Dinastia de Bragança, que restabelece pouco a pouco o funcionamento institucional do

reino português e sua participação nas relações políticas internacionais.

Os motivos que despertaram Soares aos primeiros contatos com a vida religiosa

e, futuramente, adotar o hábito religioso e assumir a identidade de Frei Antonio das

Chagas foram as experiências da vida militar de pecados e a vida secular de excessos.

O contato com a obra de Frei Luiz de Granada, em viagem realizada no Brasil, foi

determinante para alterar o paradigma de vida de Soares, até adotar a identidade de

Chagas. A obra de Granada alterou sua concepção de mundo, já que passou a

observar a vida religiosa como o único caminho para a salvação e a purificação dos

pecados que cometera em vida secular.

A juventude seiscentista era tomada pelo sentimento de efemeridade da vida

mundana. O medo do julgamento no juízo final, os pecados que cometiam, os hábitos

que levavam eram tomados por um conflito sacro-profano, da valorização de uma vida

secular efêmera ou de uma vida dedicada à religiosidade, que tinha como fim a

salvação da alma. O número de jovens de vida secular, voltados aos excessos e aos

certames poéticos, que eram tomados, em alguma fase da vida, a dedicarem-se à

espiritualidade era muito grande. Essa dualidade é uma das características do Barroco

português.

Soares voltou-se para os estudos religiosos e em 1662 renunciou à vida militar,

tomou o hábito religioso e assumiu a identidade de Frei Antonio das Chagas. Tornou-se

um religioso dedicado às missões institucionais da Igreja Católica e foi responsável

pela orientação e formação espiritual e religiosa de muitos fiéis do século XVII. Seu

trabalho de orientação religiosa e espiritual também se detinha a uma doutrinação

social, que buscava enquadrar os fiéis aos modelos preestabelecidos pela sociedade

influenciada política, econômica e culturalmente pela religião católica. Tanto espiritual,

quanto religioso e institucional, as orientações de Chagas eram requisitadas por, dentre

outros fiéis, inúmeras freiras e religiosas do século XVII.

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Soares dedica-se ao caminho da espiritualidade e da religiosidade cristã em

1662. Sua vida institucional, a relação profissional e pessoal com as freiras e demais

religiosos e as rotinas pelas quais convivia são temas frequentes em Cartas Espirituais,

escrita ao longo de sua vida institucional. Enquanto orientador espiritual e religioso,

Chagas destaca-se como um grande cultor da época, adotando em suas cartas

espirituais um estilo cultista e conceptista possíveis de enquadrá-lo na estética Barroca.

1.1. Antonio da Fonseca Soares / Frei Antonio das Chagas

Em uma sociedade escravocrata, com valores morais e sociais sob a influência

do cientificismo renascentista e do teocentrismo medieval, diante da rotina de fidalgos e

nobres em celebrar certames poéticos sobre o amor às donzelas portuguesas e as

grandes realizações das guerras da Restauração contra os vizinhos hispânicos,

encontra-se Frei Antonio das Chagas, em vida mundana, Antonio da Fonseca Soares.

Homens que viveram expressivamente a dualidade barroca do século XVII, sob a

sombra do temor da efemeridade da vida e do desengano social, institucional e moral,

Chagas e Soares expressam, em suas obras, o dia-a-dia de uma sociedade cuja

formação social, espiritual, política e cultural agregam referências dos pensamentos

medieval e renascentista, essencial para a constituição da estética e do pensamento do

Barroco português.

Frei Antonio das Chagas, em vida secular Antonio da Fonseca Soares, nasceu

na vila da Vidigueira, no dia 25 de junho de 1631. Sua mãe, Helena Elvira de Zuniga,

de origem castelhana e natural da Irlanda, viveu em Portugal em virtude das lutas entre

católicos da Irlanda e protestantes da Inglaterra, no reinado de Carlos I. Por seus pais

permanecerem em território irlandês, Helena viveu sob a tutela da condessa da

Vidigueira, D. Leonor Coutinho, que a casou com o doutor Antonio Soares de

Figueiroa, um dos principais nobres de Vidigueira. Sete semanas após o nascimento de

Soares, Figueiroa é promovido na judicatura da Vila-Nova de Portimão, região do

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Algarve. Lá, Soares foi alfabetizado e, atingindo a maioridade, foi enviado a Évora,

onde cursou aulas de latim e filosofia.

Em sua juventude na província de Évora, Soares sentiu-se mais atraído pela

vida militar do que pelos compêndios escolares. Contudo, já escrevia seus primeiros

versos a partir de 1649. Depois da morte de Figueiroa, Soares e sua família tiveram de

mudar-se para Vidigueira, uma pequena vila de província portuguesa. Em Vidigueira,

ressaltaram suas experiências amorosas e um homicídio do qual ele teria participado

na concorrência de uma das damas da região. Em virtude desse acontecimento, muda-

se para Moura, onde se alista como soldado português e inicia suas produções

poéticas em simultâneo às práticas militares. O prestígio da farda engrandecia a

coragem dos combatentes da época.

Soares desempenhou tão bem o domínio das letras quanto da espada. Soldado

das guerras da restauração em Portugal, fazia sua pena cantar versos chocarreiros,

quando não obscenos e mabaratados de talento e valor (Belchior Pontes, 1953, p.27).

Era visto como uma caricatura de Camões, um valdevinos apaixonado, poeta e

soldado, que chegou a ter fama de grande poeta vulgar.

Nas produções poéticas de Soares, destacavam-se romances dedicados e

encaminhados ao ciclo social que frequentava, formado por nobres, militares e

mulheres portuguesas. Belchior Pontes (1953) afirma que o poema Fílis e Demofonte

foi dedicado ao príncipe D. Teodósio, no instante em que corriam alvoroços sobre os

preparativos das guerras de restauração, e o príncipe dirigia-se para o Alentejo com o

objetivo de encorajar os exércitos que se formavam. Em outra ocasião, na morte do

Padre João de Almeida, compõe um soneto em tons de elegia ao finado padre, que é

publicado anos mais tarde na antologia de poetas barrocos, Fénix Renascida.

Após três anos de serviços militares, Soares embarcou para o Brasil na

companhia de um parente desembargador. Há rumores, expressos em Godinho (1728),

principal biógrafo de Soares / Chagas, de que a viagem se deu em virtude das justiças

de Vidigueira iniciar o processo de condenação do homicídio que Soares praticara há

anos.

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Foi no Brasil que Soares tivera os primeiros contatos com a vida religiosa que

viria a assumir anos mais tarde. Envolvido na vida de prazeres do corpo e do espírito,

tentaram arranjar-lhe um casamento de conveniências na Bahia e, em casa de um

amigo, tomara conhecimento das obras espirituais de Frei Luiz de Granada, que o

levaria a profundas meditações sobre o cansaço da vida mundana. A obra de Granada

manifestou em Fonseca o desejo intenso em reformar seus costumes. A

impossibilidade de se livrar das penalidades do inferno, despertou Soares para uma

vida nova de arrependimentos e dor dos atos cometidos em vida mundana.

Para Godinho (1728), o capítulo do juízo final, em que Granada descreve a visão

de um inferno de penitências do juízo universal, foi o que mais chamou atenção de

Soares para reconsiderar suas práticas. Dentre as indagações presentes na obra,

destaca-se:

Que sera de las palavras deshonestas, de los

pensamentos sucios, de las manos sangrentas

y de los ojos adúlteros y finalmente de todo el

tempo de la vida expendido em malas obras?

(GRANADA, 2008, p.29)

A obra de Granada reflete que o homem prestará contas de suas ações no dia

do juízo final, e que a justiça de Deus é implacável e espantosa. Deus é justo e sua

justiça deve ser temida pelo homem, segundo a concepção de religiosidade do autor.

Em seguida, descreve as penalidades do inferno e torna os sofrimentos infernais

trágicos e terríveis em sua narrativa e descrição, como podemos observar em:

alli estarán comiendo sus carnes a bocados,

rompendo sus entrañas com sospiros,

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quebrando sus dientes a tenazadas y

despedazando rabiosamente sus carnes com

sus uñas.´´ (GRANADA, 2008, p.29)

As descrições serviram para ilustrar a vida de pecados de Soares e lhe ofertar

um novo caminho. Por muito tempo, foi autor de versos polêmicos que exaltavam a

luxúria e os abusos da vida mundana e desempenhou de forma invejável a função

militar enquanto soldado da restauração, o que fez dele, no conceito de Granada, um

gastador da vida em crimes e frivolidades.

A influência de Granada refletiu diretamente na maneira que Chagas conduzia

seus sermões e orientava seus fiéis à necessidade de respeitar as doutrinas da Igreja

Católica em Cartas Espirituais. A obra também foi fundamental para Soares

compreender que a vida mundana é efêmera e que só o apego à fé e aos caminhos

trilhados por Jesus Cristo e a doutrina católica o levariam à salvação do juízo final.

Com a reflexão de seus erros e com a possibilidade de reabilitação que lhe daria a vida

religiosa, motiva-se aos estudos religiosos. No século XVII, a figura cristã e a vida

religiosa eram ofertas em moda à época. Era muito comum que aqueles que, ao se

fatigar pelos abusos da vida secular, detivessem um tempo de suas vidas nas

atividades do convento.

Todavia, não foi apenas a obra de Granada o principal motivador da conversão

de Soares para a vida religiosa. Além dele, outro impulsionador dos motivos que

levaram Soares a tomar o hábito cristão foi a efemeridade das coisas do mundo, a

partir de suas experiências militares. Atuar enquanto soldado o levou a estar em

constante meditação acerca da morte e do sentimento de caducidade da vida. O valor

que ele passa a dar ao tempo da vida e ao tempo destinado ao nada, aos prazeres do

corpo, às frivolidades do mundo, acarretaram-lhe o sentimento de culpa e a

necessidade de gastar seu tempo de vida com a salvação de seu espírito. O tempo e a

vida mundana encarados como efêmeros são especificidades do homem barroco do

século XVII e estiveram presentes na cronologia de Soarea / Chagas.

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Belchior Pontes (1953, p.6) acredita que o sentido do tempo foi o primeiro sinal

de angústia. Gastar o tempo da salvação em nadas (...) parecer-lhe-ia agora absurdo e

condenável. A efemeridade das coisas e da vida trouxe a Soares a noção de que as

coisas do mundo eram perecíveis e, portanto, ilusórias, e esta determinação é que o

encaminhará para Deus e para o descobrimento do caminho para a salvação. Foi o

desgosto das delegações breves que o obrigou a procurar consolações perenes.

A obsessão pela efemeridade das coisas, da vida e das virtudes do mundo

impulsionou Soares na escrita da alegoria poética Desengano do Mundo pelo mais

enganado delle, composta em 1662, pouco antes de assumir o hábito religioso. A obra

é seu último registro literário e é considerada por Belchior Pontes (1953) o primeiro

ensaio missionário de Chagas. A desilusão, o tédio, o desengano de todos os sucessos

de sua vida o influenciaram no estilo gongórico da obra, no que diz respeito ao culto de

imagens ousadas sobre a decadência do mundo e das coisas. Destacam-se em sua

obra passagens como não há vida tão privilegiada que não termine em tumba e, ainda,

nada no mundo tem entidade que prevaleça. Para Soares, desde a beleza das coisas

até os grandes feitos do homem são:

um pequeno barro com mais viva cor unido,

um feio cadáver com mais poderosa atenção

incarnado, um pouco de pó com mais uniforme

geometria composto. (SOARES, 1743, p.144)

A obra de Soares possui a estilística amadurecida do Barroco português, uma

vez que suas lamentações incluem antíteses que se encadeiam ritmicamente, e em

sua temática, faz uso dos conhecimentos mitológicos para categorizar e definir os

sentimentos, como, por exemplo, o amor que é um sagitário com venda e com asas, e

a vontade de amar é incêndio de Tróia, para a memória labirinto de Creta, para o

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entendimento naufrágio de Scila. A obra possui uma riqueza de estilo que, mais tarde,

será recuperado em Cartas Espirituais.

Em maio de 1662, com 31 anos de idade, Fonseca renuncia à vida militar e, ao

realizar os votos monásticos na Ordem de São Francisco em Évora, adota o nome de

Frei Antonio das Chagas. Caracterizado como pregador de ardor e paixão, tornou-se

exagerado em seu ofício. Percorre as terras do Alentejo e de Algarve em andanças

missionárias. Seu estatuto de homem mundano convertido à palavra de Deus fez dele

ícone à sua época. De atitude penitente, atraía multidões por onde quer que passasse,

e a forma irreverente de pregar, fazendo uso de dramaturgias e exageros em seu

discurso, foi alvo de inúmeras críticas de seus contemporâneos Padre Antonio Vieira e

D. Francisco Manuel de Melo.

O percurso religioso de Chagas foi marcado pela máxima de que a vida é breve

e o homem cortal de bichos e pó (Belchior Pontes, 1953, p. 182). A efemeridade da

vida e a paixão de Cristo foram os referenciais de Chagas em seu trabalho missionário.

Durante o ano em que se preparou religioso, no noviciado de São Francisco, manteve

sempre boas relações com todos os religiosos com quem convivera. Acabado o

noviciado, partiu para Setúbal, onde retomou os estudos filosóficos.

Em Setúbal, Chagas realizou sua primeira pregação e compôs suas três

primeiras obras religiosas: Faíscas do amor divino vertidas de um pedernal humano, a

Oração do Padre Nosso comentada e a Semana Espiritual, todas em 1662. As obras

tinham por função sensibilizar e doutrinar fiéis e religiosos e estavam condimentadas

de exclamações abundantes e frases próprias para comover, o que refletia o espírito

enérgico de um recém-convertido à fé cristã. As obras compostas não lhe exigiram um

conhecimento muito profundo da doutrina cristã, mas sim o cumprimento de esquemas,

sugestões e cartilhas fornecidas pela formação de noviciado.

Os anos que Chagas passara em Beja e Coimbra, aprimorando seus estudos

filosóficos, proporcionaram-lhe uma formação mediana da doutrina cristã. Não explorou

muito a intelectualidade de seus tutores, era um homem de poucos livros e se voltava

mais para a ação do dia-a-dia da pregação. Contudo, os estudos que realizara e

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também seu passado enquanto poeta lhe garantiram uma admirável capacidade de

argumentação e improvisação, louvados por seus contemporâneos e discípulos.

Em 1680, com a recomendação do Breve Apostólico Inocêncio XI, Chagas funda

o Seminário de Varatojo, com a finalidade de orientar os estudos de sacerdotes,

diocesanos e religiosos com vocação missionária. Com o prestígio e o sucesso do

seminário, funda, em 1682, o Convento de Nossa senhora dos Anjos de Brancanes, em

Setúbal, com a mesma finalidade.

Em 20 de outubro de 1682, Chagas falece em Varatojo. Durante todo o período

de andanças, missões e vida religiosa, escreveu as Cartas Espirituais, que serviam de

orientações, confissões e ensinamentos a seus religiosos. Foram publicadas

postumamente em dois volumes, totalizando 366 cartas espirituais..

1.2. As condições sócio-político-culturais do século XVII

Soares / Chagas viveu intensamente o período das Guerras da Restauração

portuguesas. Como todo jovem português engajado, Soares tinha os valores culturais e

a identidade pátria abalados pelo domínio espanhol. A crise política, social e cultural

que enfrentava Portugal também refletia indiretamente no discurso doutrinário de

Chagas, em Cartas Espirituais. Tanto na obra de um, quanto de outro, as condições

sócio-político-culturais foram os impulsionadores de sua existência. Os eventos

históricos que definem a realidade sócio-político-cultural do século XVII são: a

consolidação de Portugal enquanto nação na Época Moderna, correspondente à

Dinastia de Avis (1385 - 1580); a perda de independência para a nação espanhola, que

culminou na Dinastia Filipina (1581 - 1640); e o processo de retomada da

independência portuguesa, conhecido como Dinastia de Bragança.

A Dinastia de Avis (1385 – 1580) foi a segunda dinastia portuguesa, marcada

pelas consolidações das fronteiras territoriais e das alianças políticas entre Portugal e

as demais nações da Europa. Em 1383, D. João, mestre de Avis, foi nomeado rei de

Portugal após uma luta militar contra o rei de Castela, denominada Revolução de Avis.

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Chartier (1991) compreende que o sucesso da revolução deu-se devido ao grande

apoio da burguesia portuguesa, marcando também a vitória desta classe social sobre a

sociedade agrária e feudal, predominantes na Europa. O apoio da burguesia permitiu a

centralização do poder a D. João e a expansão marítimo-comercial portuguesa, o que

fez de Portugal a primeira nação absolutista e mercantilista.

O estabelecimento da burguesia na nação portuguesa deu-se devido à prática

mercantilista de economia e foi fundamental na influência da estrutura social de

Portugal. O mercantilismo consistia em um conjunto de medidas econômicas que

tinham como pressuposto uma centralização do Estado na economia e a unificação do

mercado interno. Em um momento que a Europa encontrava-se escassa de ouro e

prata, com grandes dificuldades em suprir sua demanda de comércio, as políticas

mercantilistas pressupunham que a riqueza resumia-se no acúmulo de metais

preciosos e que a melhor maneira de adquiri-los era através de exportações do Estado

unificado e da restrição de importações. Assim, o Estado passou a intervir diretamente

na economia criando direitos alfandegários para importações, promovendo melhoras na

infraestrutura de classes sociais que moviam a economia e incentivando a colonização

de novos territórios em busca de matérias-primas e mão de obra para o trabalho.

Portugal foi o primeiro Estado a adotar tal prática na Europa, uma vez que foi o primeiro

a passar pelo processo de unificação territorial.

A posição geográfica de Portugal também influenciou para sua precoce

constituição enquanto nação. Por ser um território portuário situado na zona ocidental

da Península Ibérica, possuía vantagem frente às demais nações europeias para a

exploração marítima na África e nas Índias. A incrível ascensão marítima portuguesa

frente às outras nações da Europa marca o fim do período medieval e início do período

moderno português, já que o evento garantiu a inserção da nação como modelo de

organização econômica para países que ainda definiam suas fronteiras na Europa, o

que contribuiu para uma relação global de Portugal com o mundo europeu.

A nação portuguesa foi a primeira a financiar o mapeamento de rotas marítimas

pelo globo. Dentre tantas expedições financiadas por Portugal, destacou-se a

expedição de Vasco da Gama às Índias, em 1498. Conhecida como a mais longa

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viagem oceânica do período, a expedição tornou mais dinâmico, para a época, o

comércio de especiarias nas Índias e o acesso à costa leste africana para a exploração

de madeiras e o tráfico de escravos.

Também foram eventos marcantes no início do período moderno as explorações

coloniais nos territórios africano e americano, assim como o povoamento das Ilhas do

Atlântico. Com o sucesso da viagem de Vasco da Gama, e o conhecimento das Terras

de Vera Cruz em 1500, Portugal se estabelece como principal nação de posses

coloniais da Europa. Desencadeia-se, nesse início de período colonial, a evangelização

indígena no Brasil pela Companhia de Jesus, o incentivou o aumento de colégios

missionários em Portugal, e a empreitada das missões no Brasil recém-descoberto.

Além da luta armada e do apoio da burguesia para a expansão marítima, foi

determinante para a hegemonia portuguesa na Dinastia de Avis a consolidação de

alianças políticas com as demais nações europeias. Os acordos entre nações se

davam, dentre outras formas, por meio de pactos familiares, que concediam direitos e

privilégios entre as nações europeias com Portugal e vice-versa. A sucessão de uniões

amorosas que juntavam famílias reais de nações distintas veio a influenciar a

consolidação do poder político português e sua inserção como Estado moderno, bem

como a delimitação de suas fronteiras.

A formação social da monarquia portuguesa na dinastia de Avis tinha como

principal influência a cultura cristã e se valeu da noção de que o Estado deveria

funcionar como um corpo místico. A expressão corpo místico, no original latino Corpus

Mysticum, foi utilizada pela primeira vez nas Escrituras Sagradas, por São Paulo, em I

Coríntios 12:12-14, com o intuito de comparar a Igreja como corpo de Jesus Cristo, em

que Cristo simbolizava a cabeça e seus apóstolos e fiéis as demais partes do corpo. No

caso do Império português, o rei simbolizava a cabeça do corpo místico do Estado, e

tinha que garantir a harmonia entre as partes-súditos que compunham a sociedade. O

rei tinha como pressuposto legislar com o intuito de manter ordem e harmonia social, e

sua função era ser o intermediário entre Deus e o mundo.

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Os dogmas e as doutrinas da Igreja Católica eram validados como leis naturais a

todo Império cristão. Eram leis que normatizavam e orientavam o comportamento das

instituições sociais e da vida comunitária. A lei humana era realizada sob a luz das leis

naturais cristãs baseadas no texto bíblico. A união entre as leis naturais da fé e as

organizações e ordens sociais do Estado eram pautadas em reflexões de teóricos

religiosos da filosofia, o qual destacamos São Tomás de Aquino, que forneceu:

(...) princípios básicos para construção dos

eixos do pensamento político medieval com as

ideias de unidade do cosmo, da humanidade

como corpo místico, da concordância entre

civitas e Igreja. (PAES, 2006, p.44)

A filosofia tomista possibilitou a Portugal e outros Estados europeus a

construção de uma organização do poder monárquico. Contudo, este poder foi abalado

no reino português devido a questões hereditárias de sucessão do trono, já que o

último rei da Dinastia de Avis, D. Sebastião (1554 – 1578), não possuía herdeiros que

pudessem ser nomeados reis. Foi em 1581, com a sucessão ao trono por Filipe II da

Espanha, único nobre que tinha direitos hereditários ao trono, que Portugal perdeu,

além de suas fronteiras terrestres e marítimas, sua independência para os espanhóis.

Tal episódio inicia o período histórico da Dinastia Filipina (1581 - 1640). A partir dessa

data, a nação espanhola passou a ser responsável pelas expansões ultramarinas e

pelas regras de exportação e importação portuguesas frente à Europa. A perda de

independência portuguesa também gerou uma crise nas camadas sociais, intelectuais

e religiosas de Portugal, marcada pela falta de um líder que os identificasse.

Com a perda da independência de Portugal, vem também a não

representatividade da monarquia portuguesa frente às questões políticas e econômicas

da época. Nesse período, Portugal perde parte de suas principais alianças

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estabelecidas entre as nações europeias, e todas as suas possessões coloniais

passam a ser administradas pelos espanhóis. A Dinastia Filipina imperou durante 60

anos em Portugal e foi marcada por grandes revoluções portuguesas contra os

espanhóis, já que as famílias da nobreza portuguesa buscavam retomar a liberdade e o

poder perdidos. A hegemonia espanhola e a perda de forças da nação portuguesa

também fez reflexo nas relações sociais populares. A opinião pública portuguesa era

de aversão ao domínio espanhol e D. Sebastião, último rei legítimo de Portugal, morto

na batalha de Alcácer-Quibir, tornou-se símbolo de esperança da nação portuguesa,

que idealizava que o seu retorno conquistaria a antiga posição de prestígio frente à

Europa e ao mundo. Ainda, o sebastianismo reforçou o sentimento nacionalista de

identificação com a pátria, que fora perdida com o domínio espanhol. A não aceitação

popular do comando espanhol, junto dos interesses da nobreza e da burguesia

portuguesa em retomar o poder, deu origem a inúmeras revoltas armadas contra a

nação espanhola.

A ausência de um rei português legítimo também gerou a falta de uma figura que

representasse e consequentemente oferecesse identidade divina e política à nação

portuguesa. Os homens que eram nomeados reis de Portugal, na dinastia filipina, eram

considerados mortais pecadores que não simbolizavam o absoluto da Pessoa Real.

Portugal carecia de uma representação política e divina, de um reconhecimento

enquanto nação cristã, e tal condição afetou todas as esferas da sociedade

portuguesa, incluindo a concepção de vida dos religiosos, soldados e artistas, em que

se encaixa Soares / Chagas.

Como destaque deste reflexo político na literatura e na religião seiscentistas,

temos a prosa de Vieira, observada por Hansen (1994, p.16), como a dramatização dos

fins últimos do Estado português. Vieira é contrário aos pensamentos de Lutero, que

defendia o direito divino dos reis como controle da desordem do reino, e contrário a

Maquiavel, que compreendia o Estado sob a metáfora de que o príncipe era metade

leão, metade raposa, sendo o primeiro, símbolo da força e o segundo, da astúcia,

referindo-se que a política não tinha relações com a religião e a moral, mas sim com os

instrumentos de poder e manutenção do Estado. Vieira propõe refletir acerca de uma

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integração harmoniosa de todas as camadas da sociedade do reino português,

pregando a caridade entre uma camada social e outra. É em face desta concepção de

caridade e conscientização de harmonia entre o próximo que se dará o trabalho de

outros religiosos em Portugal, em que destacamos Chagas em Cartas Espirituais. Os

religiosos e intelectuais da época passam a espelhar-se nas releituras e nos modelos

de seus cânones e contemporâneos para dar sentido a seu tempo presente. Foi assim

que fez, por exemplo, Vieira ao repensar a filosofia de Lutero e criticar seu

contemporâneo Maquiavel, propondo um novo valor de nação e sociedade para um

Estado português sem as representações e a legitimidade tradicionais. Os trabalhos

artísticos e religiosos do século XVII acabam por esbarrar e se mesclar nos

questionamentos e anseios sociais e políticos da nação portuguesa, como

referenciação direta, em Vieira, ou constitutiva, como podemos observar no discurso de

orientação epistolar de Chagas.

O reinado monarca é marcado, no pensamento barroco seiscentista, sob uma

perspectiva finita e infinita. A finitude da vida de um rei não abala a infinitude de um

reino e suas funções devem ser preenchidas por um novo nomeado que irá governar o

povo. Hansen (1994, p.17) acredita que não só em Vieira, como nos religiosos e

demais pensadores seiscentistas, domina-se o conceito de Ordem da Razão Divina,

que irá refletir nos discursos institucionalizados da religião católica portuguesa em

ordens retórica, ética, política e teológica, capturando vulgaridades e

inverossimilhanças, desvios e ilegalismos, pecados do corpo que afetam o espírito,

dentre outros. O eterno idealizado é que dará sentido para a vida social, e esta

encontra-se desestruturada.

Os eventos políticos que ocorrem em Portugal no século XVII revelam uma

realidade finita que direciona a nação para um futuro de infinitude e eternidade que

figuram uma sacramentação do corpo para a salvação da alma. A sociedade

seiscentista era acometida por reflexões, tanto na esfera religiosa quanto artística,

sobre a antítese do ser e do desejar ser. Hansen (2004) afirma que a comoção do

corpo político com o corpo místico do Estado se dava nessa relação dual de modo

imperativo, indicativo e optativo. A tríade culmina em recursos retóricos da adesão do

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outro a um determinado ponto de vista doutrinário. Imperava nos seiscentos a noção de

que o Estado era um corpo místico de vontades subordinadas ao Um, e que cada

estamento social, cada súdito à hierarquia natural de sua ordem, era submisso ao Rei

Esperado, à virtude católica e ao bem comum do Estado. O trabalho religioso era, além

de doutrinário, político-social, pois contribuía para o funcionamento da nação

portuguesa, tendo como fim seu progresso.

A hierarquia institucional do rei e seus súditos é observada no período

seiscentista como estamentos de divindade, recuperando o pensamento de

organização social medieval. O Estado é a Razão do Verbo Eterno. Ele sacraliza o rei

como pessoa divina, e a autonomia de seus súditos é observada como vaidade e

sonho na Luz do Verbo Eterno. A autonomia dos súditos é compreendida como

vaidade, pois no período seiscentista se tinha a concepção de que há uma missão

predestinada já no nascimento das pessoas. Esse pensamento é retomado em Cartas

Espirituais, cuja temática gira em torno de advertências e aconselhamentos a freiras e

fiéis que não cumprem as funções sociais e institucionais às quais são pressupostas.

Toda referência ao Estado é constitutiva ao discurso de Chagas, pois este viveu

expressivamente a dualidade infinito/finito em sua vida, como destacamos a

efemeridade da vida.

Os seiscentistas portugueses manifestam, em seus trabalhos intelectuais da

religião, a metáfora da Metáfora bíblica. Para o religioso, os ensinamentos bíblicos

propõem o ensinamento do saber viver a partir da prudência bíblica metaforizada no

antigo e no novo testamento. O pensamento diacrônico acerca do sucesso

contemporâneo das instituições sociais, sacralizado pela presença do divino, é

exemplificada por Hansen (1994) pelas grandes navegações sacralizadas com a

majestade soberana da razão do Estado. Os seiscentistas propõem uma dicotomia

entre o racionalismo e o sacro teocêntrico: a razão humana, para os religiosos de

seiscentos, se explica pelo divino místico da hierarquia e dos papéis sociais delimitados

e imutáveis.

A finalidade da religião nos seiscentos é investir em metáforas que justificam as

causas da escuridão em que se encontra a monarquia portuguesa, que reflete em toda

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organização social do Estado e traça um panorama racional para sua decifração,

mesmo refletido sobre fé e crença. O trabalho religioso justifica-se social, uma vez que

denuncia a falta de visão das classes, pautados na presença universal do Bem e do

Mal como critério de julgamento até mesmo de ações cotidianas, como em Cartas

Espirituais. Tem-se um modelo de conduta pré-definido pelas instituições, que se

orientam pelos dogmas católicos. O trabalho religioso preocupa-se em orientar o

desvirtuado ao caminho da virtude padronizada institucionalmente.

A visão seiscentista é rearticulatória dos motivos neoplatônicos e agostinianos,

que se pautam na incompreensão da grandeza do divino. A ética e os juízos de valor

são fundamentados em virtude da onipresença da unidade divina. O religioso enuncia

sempre em referência À palavra divina, do absoluto, que possui natureza profética e

que direciona o comportamento ideal das instituições. As ações religiosas somente são

possíveis se edificadas sob a ótica da harmonia de classes ou estamentos sociais, da

união da parte para formar o todo que é o corpo místico do Estado. Ao mesmo tempo,

o trabalho religioso sustenta a retórica de espelhar casos importantes da Escritura e de

eventos da pátria, para a recondução de uma sociedade em declínio.

Em 1640, D. João IV, em aliança com a nação inglesa, recupera a

independência portuguesa e inicia-se a Dinastia de Bragança. A restauração da

Independência de Portugal restabelece, pouco a pouco, o funcionamento institucional

do reino português de forma independente e retoma a participação de Portugal nas

relações políticas internacionais. Contudo, suas alianças políticas com os demais

territórios europeus ficaram limitadas à nação inglesa, a nova potência da Europa, que

ditava as regras e os acordos para a exploração marítima e as leis comerciais em todo

continente europeu. A independência portuguesa da nação espanhola também tardou

em surtir efeito no comportamento das instituições sociais.

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1.3. A religiosidade no século XVII

Frei Antonio das Chagas ficou conhecido em seu tempo pela forma inovadora de

profetizar a palavra cristã. Em seus sermões e cartas, Chagas revelava um jeito

irreverente para sua época em compreender a fé cristã, o que muitas vezes era visto

como fora do padrão estabelecido pela Igreja Católica seiscentista. A aproximação que

tinha com os fiéis e religiosos proporcionava-lhe orientá-los tanto aos caminhos

espirituais, quanto aos institucionais não só como um religioso em seu ofício, mas

como um amigo íntimo que preocupava-se com seu orientado. A Reforma Protestante

e a Contrarreforma foram eventos que determinaram, não só para Chagas como para

os demais religiosos, novos paradigmas de execução das missões institucionais, ainda

que a espiritualidade se conservava aos modelos propostos pela Filosofia medieval.

Compreender ambos os eventos possibilita-nos um maior entendimento de Cartas

Espirituais.

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna incidiu em inúmeras

transformações não só na política, economia e cultura, como também no papel do clero

na sociedade. Um marco da passagem do feudalismo para o capitalismo foram as

Reformas Protestantes e a Contrarreforma. O avanço das ciências em virtude das

navegações coloniais, a descrença na Igreja Católica e os abusos que corrompiam a

disciplina e os costumes sociais na Europa impulsionaram a necessidade de mudanças

na estrutura religiosa da Igreja Católica.

A sociedade europeia era organizada em três estamentos: o clero, a nobreza e o

Terceiro Estado – este formado pela burguesia, pelos camponeses e pelos artesãos.

Durante o período da Idade Média, a Igreja detinha grande número de terras, concedia

grande influência sobre as questões políticas, sociais, artísticas, filosóficas e

econômicas das monarquias, e considerava de natureza pecaminosa as atividades

vinculadas à burguesia – em que se destacavam a cobrança de juros devido ao

empréstimo de moedas. O Papa representava não só uma liderança religiosa como

também política nos Estados europeus cristãos.

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Paes (2006) compreende que o paradigma teológico do período medieval

fundamentou-se, dentre outros pensadores, na filosofia teológica de Santo Agostinho.

No período medieval, a concepção de mundo era a de que o universo se constituía

como um todo organizado e orgânico. Agostinho compreende o universo como uma

criação de Deus e pressupõe a existência de um universo teológico e um universo

histórico, utilizando a simbologia dos deuses clássicos como arquétipos de um Deus

único e criador. A origem da criação do mundo, da vida e do destino dos homens eram

por determinação e vontade divina.

Predomina-se na Filosofia medieval a especulação acerca da natureza e da

criação divinas, no lugar da busca pela sabedoria, como na Filosofia clássica. A razão

passa a ser a iluminação divina e a compreensão da luz verdadeira que era Deus. O

conhecimento se dava pela investigação do inconsciente da alma humana e de sua

comunicação com Deus. O sentimento de culpa, os pecados do corpo, as práticas

pecaminosas do cotidiano da vida mundana, eram fruto do pecado original. Agostinho

propõe que o pecado original é a prisão da alma e o homem de conhecimento é aquele

que supera os desejos do corpo e busca plenitude na verdade divina, que é de alma e

preenche a infinitude do desejo humano. O livre-arbítrio serve para a recusa do pecado

e o homem que cede ao pecado deve recorrer ao socorro divino para direcionar-se à

liberdade da alma e do vínculo ao corpo pecador.

A concepção agostiniana de sociedade era de que as leis dos homens deveriam

ser baseadas pelas leis divinas. Paes (2006) acredita que o homem, na ótica de

Agostinho, perdera o contato com as leis divinas a partir do pecado original. As leis

temporais do mundo e que organizam a rotina das instituições sociais das cidades

deveriam ser inspiradas nas leis divinas, pois caso contrário seriam leis imperfeitas na

justiça. As leis e a política, no período medieval, não remetem à moralidade humana,

como nos Gregos e Romanos, mas refletiam a moralidade cristã da fé e da

espiritualidade. Agostinho propõe, no período medieval, a reflexão sobre a existência

de duas cidades: a terrestre e a de Deus. A cidade terrestre organizava a sociedade

buscando o bem comum dos homens, a justiça e a harmonia de todos, como um corpo

orgânico cuja cabeça era o rei ou o suserano legitimado pela Igreja Católica. A cidade

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de Deus era o Congregatio Fidelium, regido pela lei divina, a qual pressupunha que

todos eram iguais e suas diferenças resumiam-se nas funções que cada um exercia na

sociedade dos homens para a manutenção da justiça e do bem comum. Tanto a cidade

terrestre como a cidade de Deus complementavam-se, pois a terrestre estava

subordinada à lei divina para construir a cidade de Deus e garantir a salvação espiritual

de todos os homens pecadores. A sociedade proposta por Agostinho e que influenciou

a religiosidade seiscentista, era pautada na hierarquização espiritual. O rei, ou

suserano, era um encarregado de Deus para guiar o corpo místico do Estado.

Outro filósofo do período medieval que influenciou a concepção de religiosidade

dos protestantes e da Igreja Católica no século XVII foi São Tomás de Aquino. Muito

influenciado pelo pensamento aristotélico, Paes (2006) afirma que Aquino estabeleceu

uma distinção entre fé e razão diferente do que era proposto por Agostinho. Para

Aquino, fé e razão eram autônomas, mas necessitavam de uma concordância, pois se

complementavam. Observa que a criação do universo é um ato livre de Deus que, ao

criá-lo, dedicou parte de sua perfeição a cada criatura que o habitasse. O corpo físico

era o caminho que a alma encontrava para atingir o estado de plenitude e a vontade de

liberdade era o apego ao bem, que só era possível pelo auxílio da razão.

O conceito de cidade é ressignificado por Aquino. O homem, animal social e

político, necessitava da cooperação de outros homens. A sociedade era construída a

partir da necessidade humana e era realizada pela razão e vontade de constituir-se

como comunidade perfeita. Tal concepção de cidade contrapunha o que afirmava

Agostinho acerca da dualidade cidade terrestre e cidade de Deus, já que, Aquino

acreditava que os homens não eram pecadores em sua essência, mas o pecado

estava na forma com que cada um conduzia o livre-arbítrio. Contudo, compreendia

assim como Agostinho que a cidade funcionava como um corpo místico, cuja cabeça

era a autoridade do rei que tinha como função manter o controle e a harmonia das

demais partes do corpo do Estado. Ainda preservando a necessidade de hierarquias e

funções fixas a cada membro da sociedade, Aquino pressupunha que legislar era a

responsabilidade em manter a ordem e a harmonia social e o rei representava o poder

intermediário entre Deus e o mundo, sendo, em outras palavras, um intermediador.

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Aquino propunha que as leis do mundo eram formadas por comunidades

hierárquicas e governadas por uma lei proporcional às suas naturezas. Havia a lei

divina dos desígnios de Deus, a lei natural, que era a impressão do homem às leis

divinas, e a lei humana, elaborada pela razão dos homens. A lei natural, baseada e

normatizada pelas leis divinas, era inalterável e determinava o comportamento

institucional da sociedade no que diz respeito aos valores morais, éticos e políticos. A

comunicação tomista foi uma forma de unir à fé as ordens do mundo físico,

influenciando o pensamento político medieval da humanidade como corpo místico, a

concordância entre civitas e a Igreja, e até mesmo a construção da racionalidade e

organização do poder monárquico de Portugal, em decadência no século XVII.

Com a eclosão da Idade Moderna, a burguesia passou a deter maior poder

econômico frente à nobreza, o que os motivou a participar também das decisões

políticas do Estado. Embora o Estado permanecesse absolutista, uma vez que tal

estrutura convinha às necessidades da burguesia, o clero passou por uma grande crise

de valores e princípios. Influenciado pelos conceitos e valores burgueses, o Clero

passa a ser vítima de desconfiança de seus fiéis, que questionam o comércio de

relíquias sagradas, a venda de títulos eclesiásticos e indulgências e, ainda, inúmeras

denúncias sobre a quebra do celibato, a existência de prostíbulos para clérigos, dentre

outros.

As críticas ao clero se manifestavam por meio de movimentos religiosos que

tinham como objetivo promover a renascença da religiosidade baseada nas Escrituras

Sagradas, sem a influência da Igreja Católica. Para isso, tinham como missão dar luz

às palavras dos Evangelhos e a partir delas retirar os ensinamentos religiosos e as

lições de Jesus. Surgem, na metade do século XVI, filósofos que encabeçam os

movimentos religiosos, destacando-se Lutero, Calvino, Erasmo, Melanchton, dentre

outros. As reformas foram efetivas na Europa Central e nos países baixos e os

movimentos ficaram conhecidos na história como a Reforma Protestante.

Um dos fatos que desencadeou a Reforma Protestante foi que, na Idade Média,

a cultura religiosa influenciava diretamente as atividades sociais e políticas do Estado.

Com a unificação e modernização dos principais Estados europeus, e, ainda, com a

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ascensão da burguesia, o espaço de influências da Igreja Católica em atividades que

diziam respeito ao social, ao econômico e ao político passou a se tornar cada vez mais

polêmico e conflituoso com a burguesia em ascensão.

Com o intuito de atacar as bases católicas, o protestantismo apontava o homem

como um ser humano corrompido devido à sua malignidade. Lutero e Calvino

defendiam que o homem era marcado pelo pecado em toda sua existência e não

possuía, por si só, competência para compreender os desígnios divinos e nem deles

criar a autonomia para atingir sua redenção e salvação. Com isso, critica a

interpretação dada à vontade divina pela Igreja Católica. Lutero afirmava que Deus era

inacessível à razão humana e às instituições sociais, principalmente em um Estado

cujas leis sociais são pautadas nas leis divinas instituídas pela Igreja Católica,

inspiradas nas Escrituras Sagradas.

Lutero e Calvino acreditam que a razão da Teologia gira em torno da verdade

hermenêutica do Livro Sagrado. O acesso à palavra divina não está na razão dos

homens, nem na leitura tradicional da Igreja Católica, mas nas Escrituras Sagradas.

Com isso, desmoronam as bases institucionais da Igreja Católica, ao afirmarem que o

homem era incapaz de redimir-se a Deus apenas pelas obras de caridade e pelos

dízimos cobrados pela instituição religiosa. Deus é uma instância divina onisciente e

onipresente, e a redenção é possível através da doutrina, instituída por Lutero,

denominada solo fidei - de que a redenção humana somente é possível pelas

Escrituras Sagradas. A Igreja proposta por Lutero define-se como um Congretio

Fidelium, em que se nega a hierarquia eclesiástica e a destinação de que sacerdotes

são maiores do que os leigos, uma vez que todos possuem as mesmas condições e

capacidades para a fé. A Igreja deixa de ser o corpo místico em que cada homem

encontra sua hierarquia e passa a ser um local de comunhão de fiéis.

A reformulação do conceito de que Deus é causa primeira, criadora dos mundos

e da história, e de que a Igreja Católica não é sua representação no mundo dos

homens, adequando esse papel ao monarca, enfraquece o clero cristão tradicional.

Busca-se na Europa, especialmente nas monarquias da Espanha, França e Inglaterra,

uma disputa do poder religioso com o Papa, almejando converter a autoridade divina

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da instituição religiosa tradicional para a autoridade do rei como figura política e

religiosa. Com isso, surgem obras como O Príncipe, de Maquiavel, Da Razão de

Estado, de Botero, classificados como espelhos de príncipes, que Hansen (2006)

define como educandários que tem por finalidade a doutrinação moral de reis e filhos

de reis e, indiretamente, a reformulação do comportamento social da comunidade

europeia. Por outro lado, a Igreja Católica inicia o trabalho de evangelização e

catequização marcado pelos religiosos da Companhia de Jesus, que educavam e

doutrinavam posicionamentos de seus fiéis por cartas, sermões, seminários, dentre

outros.

A produção intelectual que surgiu em função da Reforma Protestante abala o

paradigma religioso do século XVI. Para os maquiavélicos, que ignoravam a presença

divina no Estado, o poder era fruto da força e da astúcia; para os católicos que

preservavam a ligação com o Papa, o poder era um pacto místico com Deus, mediado

pela Igreja Católica; para os protestantes que desprezavam a ligação com a instituição

Igreja Católica, o poder era vontade imediata de Deus, mediado pelas Escrituras

Sagradas. O conceito de Estado monarca se polemiza diante de tantas visões

possíveis acerca do poder real. Questionava-se, por exemplo, se a figura do rei não

estaria acima das leis naturais em um Estado protestante ou maquiavélico; se as leis

naturais, que advêm das leis divinas, possuíam forças em um Estado mediado pela

Igreja Católica, uma vez que as leis divinas da instituição religiosa eram leis criadas por

homens pecadores; e se a crença dos protestantes de que tudo era subordinado à

vontade de um rei eximia a liberdade e os direitos dos súditos de um reino.

Diante desse palco de incertezas que constituíam o pensamento político e

religioso dos reinos europeus, e do enfraquecimento paulatino da Igreja Católica

enquanto instituição que direciona os dogmas morais, políticos e culturais de um

Estado, houve a necessidade de uma reforma institucional católica. Para inviabilizar o

avanço protestante, reafirmar os dogmas, cultos e bases disciplinares da instituição, o

Papa João III impulsiona o que ficou conhecido como a Contrarreforma Católica. O pilar

da contrarreforma foi o Concílio de Trento (1545 – 1563), que culminou na criação da

Companhia da Jesus e na volta da Inquisição.

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A finalidade do Concílio de Trento era redefinir os pontos atacados pelos

protestantes e instituir normas e direcionamentos para o trabalho religioso, com a

finalidade de recuperar o poder abalado da instituição religiosa. Propõe-se um olhar

interpretativo das Escrituras Sagradas que contraponha o olhar luterano e calvinista.

Preocupa-se mais em promover as alterações na organização institucional e na

reformulação de cultos do que em propor um novo paradigma filosófico. Com relação à

oposição aos protestantes, a Igreja Católica promoveu, nos Estados em que ainda

mantinha domínio, a rejeição de quaisquer formas de individualismo protestante e

valorizou a necessidade de mediação do templo católico em valores morais e éticos da

sociedade. A instituição católica passa a ser o organismo jurídico do Estado.

Dentre as reformas propostas, o Concílio de Trento legitima que a tradição e,

consequentemente, os dogmas da Igreja Católica são fontes de fé tanto quanto a

Sagrada Escritura, e determina uma lista de livros inspirados nos textos bíblicos e

produzidos por filósofos da teologia medieval como referências da fé cristã. Propõe um

olhar interpretativo para as obras da Igreja Católica que se diferenciam do olhar dos

protestantes. Compreende que o pecado original apaga-se no batismo com a Igreja

Católica e permanece a tendência ao mal e ao desvirtuamento da moral em cada ser

humano, em virtude do livre-arbítrio. Ainda, para os contrarreformistas, apenas a fé não

garante a passagem de pecador a um homem justo, sendo necessário o trabalho de

redenção sob a influência institucional da Igreja Católica. Por fim, a colaboração da

vontade humana com a graça divina dá possibilidades, ao homem, de adquirir méritos

ao invés dele apenas justificar-se enquanto pecador, o que incide em uma crítica direta

aos protestantes. Em 1563, instaura-se o decreto que reorganiza a fundação de

seminários e institui a obrigação da residência e seleção dos candidatos à vida

religiosa. Criou-se também a instituição para educação do clero.

O Concílio de Trento também foi marcado pela iniciativa de retomar a inquisição.

Os contrarreformistas instauram o Tribunal do Santo Ofício, que teria como objetivo

vigiar, prender e punir todos aqueles que não estivessem de acordo com a doutrina

católica. Outra medida de repressão à oposição com a instituição religiosa foi a criação

do Índice de Livros Proibidos – Index Librorium Proibitorium – que divulga a relação de

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livros que se opunham aos dogmas e ideais defendidos pela Igreja Católica. Todas as

obras apreendidas eram queimadas e os autores e leitores eram perseguidos e

punidos severamente. Inúmeros escritores e artistas desse período foram presos e

condenados em virtude de suas produções tituladas pecaminosas pela Igreja Católica.

Tal medida barrou o avanço de inúmeras doutrinas religiosas e controlou as produções

culturais da época.

Outra iniciativa de promoção da Igreja Católica foi a criação da Companhia de

Jesus, fundada por Inácio de Loyola, ex-soldado do exército espanhol, e composta por

jesuítas. Consistiu em uma ordem religiosa dedicada à evangelização e salvação das

almas. Foi introduzida em Portugal em 1538, em uma iniciativa de D. João III de

ampliar a fé cristã no território português e evangelizar as colônias. A Companhia

pregava que na formação de seu clero dever-se-ia privilegiar valores como a pobreza,

a caridade, a meditação, a pregação, o ensino, a assistência e a evangelização dos

povos. Em Portugal, a Companhia de Jesus teve função predominantemente

pedagógica, e, ao fim do século XVIII, foram consolidadas 30 escolas tradicionais de

ensino que serviam aos nobres e burgueses da época.

Paes (2006) defende que as reformas protestantes e a contrarreforma

representaram não um surgimento de novas visões sobre a espiritualidade, mas um

registro de causa e efeito já marcado pelas alternâncias expressas no pensamento

medieval. A proximidade filosófica entre os protestantes e a Igreja Católica é ofuscada

pela institucionalização do discurso de um e de outro, pois tanto os reformistas quanto

a contrarreforma têm como base a influência de Agostinho, Tomás de Aquino e outros

filósofos medievais. As sociedades ibéricas reafirmam a tradição tomista, enquanto

Lutero e Calvino voltam-se para o modelo de Agostinho, ao pressuporem que o homem

é incapaz de compreender os desígnios divinos e não tem autonomia para buscar

salvação e redenção. Contudo, podemos perceber que tanto um posicionamento

quanto outro são presentes em Cartas Espirituais, de forma constitutiva ao pensamento

religioso da época. Ambas as filosofias preocupam-se em defender a sociedade como

um corpo místico hierarquizado. Os discursos de Agostinho e Aquino refletem a

religiosidade tanto das manifestações protestantes quanto da Contrarreforma, que

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possuem um conflito que não é marcado pela espiritualidade, mas por questões

político-sociais.

Por outro lado, a contrarreforma se apropria da oposição justiça/tirania dos

maquiavélicos, sendo critério para a formação e doutrinação social, ética e política da

memória, da vontade e da inteligência humana. Hansen (2006) propõe a tríade

memória, vontade e inteligência como os fundamentos das faculdades endofóricas –

saber/querer – e exofóricas – poder – das instituições sociais. As três faculdades

pressupõem o autocontrole do indivíduo para o bom funcionamento do corpo político e

místico do Estado, já que são guiados pela premissa do bem comum que justificam

atos de repressão e controle como os do Santo Ofício da Inquisição, a escravidão dos

índios na América e dos negros da África, os castigos e punições com fins exemplares,

dentre outros.

A Igreja Católica e o rei instituem pela memória, vontade e inteligência que são

responsáveis por manter a unidade e a segurança do reino contra inimigos internos e

externos. Para os protestantes, o rebelde que se opõe às leis naturais rebela-se contra

as leis de Deus, uma vez que no luteranismo e no calvinismo, o rei que legitima as leis

é um enviado de Deus que tem a finalidade de cuidar da ordem dos homens que

carregam o pecado original. Assim:

Quem se rebela contra as leis positivas

rebela-se contra a sacralidade do pacto

de sujeição, afirma-se na Espanha e em

Portugal, pois o poder real nasce não

imediatamente de Deus, mas de um

pacto entre o rei e a população, que se

alienou da soberania na sua pessoa

fictícia ou mística imortal como um

único corpo místico de vontades

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unificadas na alienação. (HANSEN,

2006, p.140)

Hansen (2006) afirma que a hierarquia social é uma pirâmide cujo topo é a

cabeça real que, para os protestantes, é o rei, e para os contrarreformistas, o rei em

alienação com a Igreja Católica, e desce até os pés e membros que simbolizam os

escravos. A liberdade de cada homem é subordinada ao papel social e divino que ela

desempenha. Assim, podemos compreender que a contrarreforma se apoia nas

filosofias tomista e agostiniana ao afirmar que o reino se assemelha a um corpo místico

e que a perfeição do corpo resulta da integração harmoniosa de seus membros. A

ordem baseia-se na integração harmoniosa de todas as partes do corpo místico. A

ausência do rei em Portugal, no período seiscentista, transfere a necessidade de

direcionamento racional da sociedade para a instituição Igreja Católica e aos religiosos

portugueses. Os religiosos, por sua vez, têm por fim garantir a harmonia e a ordem

social do corpo místico do Estado. Cada instituição social que representa uma parte

desse corpo deve integrar-se hierarquicamente, como obediência, visando não ao

interesse particular, mas ao bem comum do todo. (Hansen, 2006, p.141)

1.4. O Barroco português

Durante a Contrarreforma, a instituição Igreja Católica foi tema da Arte Barroca

em Portugal. Em contrapartida, os discursos religiosos também utilizaram da estética

da Arte Barroca como base para a construção enunciativo-discursiva de seus gêneros.

A linguagem e a temática utilizada em sermões, cartas espirituais, poemas, romances,

atraía ou retraía crentes, levando-os a aceitar ou rejeitar as diretrizes da Igreja Católica.

O cultismo e o conceptismo presentes no discurso literário também são encontrados

em Cartas Espirituais como forma de legitimar um ponto de vista enunciado e garantir a

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adesão do co-enunciador aconselhado. As características do pensamento e da

literatura do Barroco português são essenciais para o estudo de Cartas Espirituais.

O estilo barroco em Portugal nasceu de uma forte depressão política, econômica

e cultural, em virtude do grande período de dependência à Espanha. Eclodiu a partir

da crise dos valores renascentistas em função das lutas religiosas e pela falência do

comércio com o Oriente. O Renascimento, acompanhado pelo período das Grandes

Navegações portuguesas, pelas colonizações da África e da América, e pelas

expansões marítimas, alimentou um absolutismo existencial no homem português do

século XVI. Detentor dos conhecimentos científicos, dos domínios da arte, dos

domínios da razão, o homem desse século tudo podia frente ao mundo. Todavia, no

final do século XVI e início do século XVII, com os eventos históricos que culminaram

na perda da independência de Portugal, há a ressurreição de valores abandonados

desde o período medieval, junto do que era proposto pelos renascentistas.

O dualismo conceitual frente ao mundo, o estilo artístico e literário caracterizado

como pós-renascentista, que mistura elementos característicos do renascimento, do

paganismo e do sensualismo com as estruturas medievais de traços arcaizantes

promovidos pela Contrarreforma e que demonstram forte religiosidade, no aual faz

lembrar o teocentrismo medieval, é caracterizado como o Barroco. Estende-se não só à

literatura como também à pintura, escultura, arquitetura e música produzidas no século

XVII, e ainda, gêneros institucionalizados como o discurso religioso seiscentista, que

abrange dos anos 1600 ao início dos anos 1700.

A palavra barroco tem sua origem na Península Ibérica, termo advindo do

castelhano barrueco, que significa pérola de superfície irregular. Heinrich Wöfflin,

estudioso suíço das artes e da arquitetura, foi quem a utilizou para batizar o movimento

artístico seiscentista, ao afirmar trata-se de um silogismo hipotético medieval, que

denota um sentido confuso e falso. Wöfflin caracteriza o Barroco como um conjunto de

obras artísticas que possuem o exagero da forma, a sobrecarga das figuras de

linguagem nas produções textuais, reflexo de um estado de tensão e desequilíbrio do

homem do século XVII, que se encontra em conflito entre o terreno e o celestial, o

homem antropocêntrico e o homem de Deus, o pecado e o perdão, a religiosidade e o

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paganismo. Sua classificação foi uma forma de contrapor a definição de Jacob

Buckhardt, realizada em 1855, que considerava todas as obras seiscentistas que se

opunham à linearidade clássica como um dialeto selvagem da linguagem renascentista.

A contribuição de Wölfflin foi propor uma categorização mais crítica dessas obras,

classificando inúmeros estilos que, por meio de um acúmulo de formas e cores que

exigiam atenção redobrada do co-enunciador do século XIX e XX para a compreensão

de um ponto de vista enunciado, contrapunham a clareza e a linearidade das obras

clássicas.

A classificação de barroco como pedra irregular, um silogismo escolástico, ou,

ainda, um estilo de arte e literatura que subverte o renascimento clássico do século XVI

e torna-se uma estética artística confusa, para Hansen (2008) reduzem a importância

histórico-cultural do que de fato foi o Barroco português. O termo barroco não existiu

em seu tempo histórico de produção intelectual, mas foi uma classificação dada por

Wölfflin, sob a luz do formalismo, para marcar movimentos artísticos isolados do século

XVII que se opunham à estética clássica.

Barros (2011) acredita que o discurso de Wölfflin é marcado pelo paradigma de

uma época que assistia aos primeiros passos de uma Arte Moderna e não tinha a

preocupação de examinar a produção artística relacionando-a com os reflexos

sociopolíticos seiscentistas ou pelas biografias dos artistas criadores. Wölfflin realiza

suas análises artísticas, selecionando a arquitetura e a pintura do Renascimento e do

Barroco, a partir de um processo comparativo entre os dois estilos. Fundamenta sua

análise a partir da constituição de pares opostos entre um e outro, como por exemplo, o

linear renascentista e o pictórico barroco, o planar e o recessional, a forma fechada e a

forma aberta, a multiplicidade e a unidade. Propõe, então, a constituição da arte

barroca a partir de um esquema dividido em cinco categorias, sendo elas a pictórica, a

visão em profundidade, a forma aberta, a unificação das partes em um todo e a clareza

relativa.

As definições propostas por Wölfflin reduzem a produção barroca a uma

estilística restrita à elocução psicologicamente subjetivada (Hansen, 2008, p.171). Por

serem definições muito generalizantes, os critéros que serviram de base para

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caracterizar o Barroco possibilitou que teóricos de outras áreas do conhecimento, como

a história, a filosofia, a sociologia, à luz das teorias formalistas, classificassem as

mentalidades, a sociedade, a política, a cultura e religiosidade barrocas. As

apropriações do pensamento de Wölfflin constituíram o barroco como fato e essência

da época, levando quaisquer tipos de trabalhos que refletissem acerca do século XVII a

se questionar se tal autor, monumento, quadro, livro ou sermão fossem barrocos.

Hansen (2008) compreende que as categorizações realizadas pelos formalistas

e, especialmente, por Wölfflin, são reducionistas, quando associa-se as manifestações

artísticas com a prática social da época. As obras classificadas como barrocas são

diferentes, dependendo do lugar de produção, sendo difícil defini-las como um estilo

único. Somente em Portugal e Espanha, há duas estéticas de linguagem seiscentista

de predominância nas produções literárias, divergentes uma da outra, mas que na ótica

de Wölfflin são classificadas como integrantes de um único movimento literário: o

gongorismo e o conceptismo.

O gongorismo foi caracterizado como a retórica do jogo de palavras, o uso

abusivo de figuras de linguagens, a escolha lexical rebuscada, culta e extravagante; o

conceptismo ficou marcado pelo jogo de ideais e de conceitos, ao que segue um

raciocínio lógico e racionalista, marcado também pelos falsos silogismos lógicos, em

produções que visavam ironias. Ambas as estéticas comprometem a fluidez das

compreensões de determinadas obras produzidas, por se distanciarem dos padrões

clássicos, mas são profundamente distintas entre si.

As classificações de Wölfflin seguem o princípio de analogia e dedução

particularizadas, sendo muito subjetiva a definição de uma estética artística a partir de

características que primam pela informalidade, pelo irracionalismo, pelo contraste, pela

deformação, pelo acúmulo, excesso e exuberância. As definições propostas por

Wölfflin são reféns de uma pré-definição institucional do que é arte, mas que não

possui fundamentação empírica das obras.

Por outro lado, Hansen (2008) não despreza a classificação de Wölfflin, mas

propõe uma ampliação do conceito de barroco. O termo pode ser utilizado para

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classificar e identificar uma obra, porém trata-se de uma classificação primeira que

necessita ser ampliada. A oposição entre classicismo e barroco é um importante ponto

de partida para a compreensão do homem e da sociedade barroca.

Clássico, para Wölfflin, é considerado formal. Por analogia, o barroco é

considerado informal, na medida em que contrapõe o clássico, sua clareza e sua

objetividade. Já para Hansen (2008), informalidade barroca pressupõe uma forma

aberta e dinâmica de produção artística, e o irracionalismo e a clareza relativa são

esclarecidos, uma vez que a prática particular do discurso prescreve racionalmente os

processos e procedimentos da sua invenção, publicação e consumo. A irracionalidade

e a clareza relativa são esclarecidas quando se tem à luz as condições sócio-histórico-

culturais do século XVII, definidas como a mentalidade barroca e a subjetividade

psicológica do homem barroco, que em seu tempo vivia sob a influência do

cientificismo antropocêntrico e da fé cristã teocêntrica. O esquema evolucionista da

história, marcada por atrasos e progressos, que justifica a angústia do homem barroco

que busca conciliar, inutilmente, o teocentrismo da Idade Média e o antropocentrismo

do Renascimento.

Em relação ao estilo de clareza relativa, Hansen (2008) afirma que os efeitos

contrastivos, a intensidade dramática dos versos e prosas, eram de básica fruição para

os autores e público do século XVII. A recombinação inesperada de versos e até de

sermões e cartas era um artifício retórico de rebuscamento e domínio da arte escrita.

Consideram-se as imagens produzidas pelos discursos do século XVII como

entimemas ou silogismos retóricos, compreendendo que são esquemas figurativos da

linguagem que pressupõem um dialogismo por definição, contradefinição e

argumentação. A falta de clareza defendida por Wölfflin corresponde a inúmeros

processos de argumentação que possuem padrões retóricos coletivizados de alguma

maneira, na prática social de gêneros específicos como as cartas espirituais, os

sermões, os poemas, os romances, dentre outros do século XVII, que se modernizaram

e modificaram em períodos posteriores.

Considerar as antíteses, hipérboles, alegorias dentre outros recursos figurativos

da linguagem barroca em decorrência de um irracionalismo, dilaceramento e angústia

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do enunciador do século XVII, limita a produção artística de uma época. Hansen (2008)

defende que é discutível que as artes do século XVII, em especial as de influência

gongórica, sejam simplesmente a expressão de angústia dos artistas que as

produziram. Os autores representam suas angústias, paixões e anseios em um estilo

de texto estruturado segundo preceitos técnicos objetivamente partilhados. As artes

consideradas barrocas, informais, irracionais do século XVII possuem embasamento

estilístico das versões neoescolásticas do Livro III da Retórica, que compreende novas

conceituações da dialética e da retórica aplicadas no século XVII. Os tratados retórico-

poéticos eram organizados, em Portugal, principalmente pela Companhia de Jesus,

destacando o Artificio y Arte de Ingenio, de Baltazar Gracián (1644), Il Cannochiale

Aristotelico, de Emanuele Tesauro (1654), Nova Arte de Conceitos, de Francisco Leitão

Ferreira (1718), que seguiam as bases do Organon e De anima, propondo categorias e

esquemas de definição, ordenação e organização de argumentos e representações. Os

tratados neoescolásticos do século XVII recuperam a doutrina aristotélica da metáfora,

presente no Livro III da Retórica, e as leituras de Cícero e Quintiliano, com a finalidade

de definir estratégias de aplicação dialética dos temas e argumentos discursivos e suas

representações. Tal prática não foi exclusiva apenas em Portugal, mas também na

Espanha e em Roma, onde se estudavam tratados retóricos de autores gregos,

transmitidos em versões bizantinas, como o de Longino, sobre o sublime, e os de

Demétrio Falereo, Dionísio de Halicarnaso e Hermógenes, sobre a elocução.

Foi destaque no período barroco a produção de inúmeros gêneros religiosos. Os

sermões de Padre Antonio Vieira tinham como objetivo emancipar as virtudes da fé

cristã que encontrava-se em decadência, muitas vezes até para o próprio clero – como

por exemplo o Sermão da Sexagésima, que reflete sobre a arte de pregar; a prosa

doutrinária de D. Francisco Manuel de Melo e Padre Manuel Bernardes apresentam

tanto o laico como o religioso, com a intenção de a primeira expor a realidade do

mundo social, e, por sua vez, a segunda, com o intuito de edificar e pragmatizar

doutrinas cristãs, e tinha como essência estruturas pedagógicas e catequéticas; e as

Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas, amostra de nossa pesquisa, tinham

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como objetivo, a partir de uma comunicação por carta, orientar os dogmas e os valores

da vida cristã a seus religiosos.

Podemos observar, ao término desse capítulo, que, para examinarmos Cartas

Espirituais como discurso que propõe uma orientação espiritual doutrinária, é

necessário relacionarmos as cartas selecionadas com a prática social seiscentista.

Devemos levar em conta que o discurso Cartas Espirituais sofre influências da política,

da organização social, da literatura, da espiritualidade e das instituições religiosas do

século XVII. Assim, selecionamos, no capítulo seguinte, uma reflexão sobre o

referencial teórico-metodológico selecionado, a Análise do Discurso de linha francesa,

com o intuito de observar como o discurso é constituído em meio ao interdiscurso,

como ele se estabelece na sociedade desempenhando uma certa atividade humana e

como propõe, no nosso caso, um diálogo entre um enunciador e um co-enunciador, em

uma cena enunciativa que se utiliza uma instância que valida o ponto de vista

enunciado, denominada de hiperenunciador.

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CAPÍTULO II

ANÁLISE DO DISCURSO: FRONTEIRAS E CONCEITOS

Este capítulo apresenta as categorias da Análise do Discurso de linha francesa,

doravante AD, propostas por Dominique Maingueneau, que propiciam examinar, em

nossa pesquisa, a construção das cenas da enunciação e o papel do hiperenunciador

em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas. Organizamo-lo em as formações

discursivas e o primado do interdiscurso; tipos e gêneros de discurso; as cenas da

enunciação; e a noção do hiperenunciador.

O conceito de discurso em Foucault (1987, 2012) e Deleuze (2005) é de um

lugar possível entre o pensamento e a palavra. O pensamento é revestido de signos

linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e tempo, que se tornam

visíveis por meio do texto. O discurso, para ambos os autores, carrega valores de

verdade de um determinado grupo ou instituição social, o que constituem as formações

discursivas.

Maingueneau (2008a) apropria-se do conceito de formação discursiva e propõe

a categoria do interdiscurso, que afeta a discursividade para além da relação direta

entre língua e história. Os enunciados de um discurso estabelecem uma relação

dialógica com enunciados anteriores, e é esse diálogo que permite a valorização dos

aspectos sócio-histórico-culturais para a construção dos efeitos de sentido de um

discurso, em nosso caso, de Cartas Espirituais.

Buscamos em Bakhtin (1992) a noção de gênero do discurso, que o compreende

como uma unidade da linguagem que dialoga com a prática social e discursiva. O

gênero é analisado em três dimensões: o tema, a estrutura composicional e o estilo.

Maingueneau (2008a, 2011) retoma Bakhtin (1992) e observa que os gêneros do

discurso estão suscetíveis a um sistema de coerções determinado, que opera nos

planos do discurso e na rede institucional de um grupo. Pressupõe um quadro

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institucional ao gênero, denominado tipos de discurso, que o legitima como petencente

a uma determinada instituição.

O estudo de gêneros, para a AD, é compreendido enquanto práticas enunciativo-

discursivas cooperativas e regidas por normas e certo número de regras conhecidas e

sancionadas pela comunidade que faz uso deles. Na enunciação, há emergência de

uma categoria que encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores e o

contrato estabelecido por eles e pelo gênero no espaço enunciativo. Maingueneau

(2008b, 2011) propõe, assim, a categoria cenas da enunciação, que amplia as

possibilidades de trabalho com o gênero e são classificadas por cena englobante, cena

genérica e cenografia.

Na cenografia, identifica-se as estratégias enunciativo-discursivas de oferta de

adesão de um ponto de vista do enunciador ao co-enunciador, a legitimidade e a

garantia de veracidade dos enunciados como pertencentes a um lugar institucional de

autoridade, o que possibilita a criação de efeitos de sentido no discurso epistolar de

Cartas Espirituais. Há, ainda, a possibilidade de mobilizar o aparelho enunciativo, a fim

de emergir uma instância que valida o ponto de vista do enunciador como

inquestionável. Maingueneau (2008a) denomina essa instância de hiperenunciador e

afirma que ela emerge nos usos do discurso citado, explícito no discurso e não no

texto. O hiperenunciador tem como função tornar inútil a presença de quaisquer outras

marcas de pontos de vista dos enunciados, que não as almejadas pelo enunciador.

Trata-se de uma instância que valida um olhar e consequentemente garante a

impossibilidade de outros olhares sobre um determinado enunciado. É fundamental

para compreendermos os efeitos de sentido possíveis de Cartas Espirituais enquanto

discurso de orientação doutrinária religiosa da Igreja Católica.

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2.1. As formações discursivas e o primado do interdiscurso

A linguagem é uma atividade exercida pelo homem, que irá estabelecer, por

meio de enunciados, a ação entre um enunciador e um co-enunciador. Trata-se de

práticas interacionais, fruto de conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, já que

não basta apenas o conhecimento gramatical para interagir com o outro, mas também

um conhecimento das condições sócio-históricas de produção, do papel assumido

entre os envolvidos na enunciação, do espaço, do tempo e do lugar em que

determinado processo enunciativo esteja inserido. Toda produção enunciativa detém

uma produção discursiva, que definimos como a construção de sentidos fruto da

interação entre os enunciadores, situada em um espaço histórico, social e cultural.

Brandão (2013, p.02) define discurso como toda atividade comunicativa entre

enunciadores. Toda prática enunciativa pertencente a um grupo ou comunidade, com

crenças, valores e posicionamentos culturais, políticos e sociais, é uma atividade

discursiva. Trata-se de discurso toda interação enunciativa que dispõe de uma

estruturação complexa não embasada em uma simples sequenciação de frases que

dão origem a textos, mas influenciada por elementos linguísticos e extralinguísticos

inseridos na história.

A AD é uma disciplina da linguística que estuda os efeitos de sentido dos

enunciados quando submetidos à prática social. A construção de efeitos de sentido

exige o contato com outras áreas do saber, promovendo uma reflexão que extrapola as

fronteiras linguísticas. Maingueneau (2007) postula a AD como uma disciplina

heterogênea que se situa na linguística e na intersecção de diversas áreas de estudo

do pensamento humano, fazendo fronteiras, em nosso caso, com a psicanálise

lacaniana e o materialismo histórico de Marx, reinterpretado por Althusser. O discurso

está em relação com o interdiscurso, ou seja, com um conjunto de Outros discursos

anteriores que estabelecem diálogo com o discurso analisado, sendo este o principal

objeto de investigação do analista do discurso. Para definir interdiscurso, o autor

recupera a definição de discurso e formação discursiva propostos por Foucault (1987,

2012) e Deleuze (2005).

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Na Filosofia, define-se discurso como um lugar possível entre o pensamento e a

palavra. Trata-se de um aporte entre o pensar e o falar, já que o pensamento é

revestido de signos linguísticos e representações sociais influenciadas pelo lugar e

tempo, que se tornam visíveis por meio do texto. Foucault (2012, p. 43) compreende

discurso como as estruturas mesmas da língua postas em jogo e produzindo um efeito

de sentido.

O discurso, na perspectiva filosófica, é a reverberação de uma verdade que nos

brota aos olhos, já que tudo pode ser dito e tudo que é dito pressupõe através do dito o

discurso. Isso ocorre pois todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu

sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si (Foucault, 2012,

p.46). Nesse sentido, o discurso é constituído na prática social e no inconsciente de

cada ser empírico, e pode ser considerado um jogo de escritura, leitura e troca por

meio do signo. Na enunciação, o discurso coloca-se na ordem do significante para

alcançar as condições de produção de um significado. Os efeitos de sentido de um

discurso só são possíveis de serem estudados na prática enunciativa, já que é nela que

manifesta-se o material do que é dito.

Deleuze (2005) compreende o discurso como a defesa de um valor de verdade

dos enunciados. A partir de uma releitura de Foucault (1987), o autor afirma que em um

enunciado revela-se a realidade de razão e desrazão defendida na enunciação. A partir

dessa pressuposição, tem-se a emergência em refletir acerca do estudo de uma

metafísica da realidade de enunciados de uma determinada época, com o intuito de

conjecturar acerca do valor de razão de enunciados produzidos em um período

selecionado.

Enunciado, para Deleuze (2005), opõe-se à proposição e à frase. Trata-se de

proposição o que pode ser concebido em uma língua, o enunciado verbal que é

suscetível de verdade, uma máxima ou asserção sobre determinado tema, um juízo

que está intimamente relacionado com o sentido. A frase, por sua vez, é a

materialidade do sentido, a porta de entrada material que permite as proposições de

sentido. Já o enunciado é um conjunto de frases utilizadas em um lugar e tempo

determinados.

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A relação entre frase e proposição vai do dizível ao dito, ou ainda, do que é dito

àquilo que está implicado no que é dito. Deleuze (2005) afirma ser esta uma relação

ontológica, já que de um lado há o possível, com as proposições que direcionam um

determinado efeito de sentido dos enunciados, e, de outro, o que é materializado de

fato pela frase. As proposições estão no âmbito do possível, pois lida com a

pressuposição de que uma frase enunciada está marcada pelo que ela diz e pelo que

ela não diz. O não dito constitui material para proposições do dito, ou seja, uma

espécie de conteúdo virtual que possibilita efeitos de sentido distintos para a frase. São

esses efeitos de sentido que tomamos, nesta pesquisa, como discurso.

Todas as proposições realizadas em uma frase possibilitam uma infinidade de

efeitos de sentido. Contudo, as frases enunciadas garantem o acesso a um mundo

virtual em que o sentido é produzido em regime de latência. Os efeitos de sentido são

possíveis somente quando em proposição, dentro de um determinado sistema possível

de proposições.

Foucault (1987) realiza uma análise histórica a partir de proposições do não dito

de uma época. Observa que só é possível atingir proposições, observando frases ditas

no período em análise, que pressupõem um universo de não dizeres. Nesse sentido,

propõe o conceito de formação discursiva, com o intuito de organizar as proposições de

efeitos de sentido possíveis de enunciados de uma determinada época. O enunciado

reflete um real unívoco da frase que detém uma verdade defendida, um ponto de vista

carregado de valores que se coadunam com os costumes específicos de uma cultura e

sociedade. Tudo que é expresso em um determinado enunciado possui valor de

verdade de um determinado grupo ou instituição social. Assim, os enunciados são

influenciados por uma formação discursiva que advém de uma formação histórica.

Ao levarmos em consideração que os enunciados são influenciados por uma

formação discursiva inscrita na prática social, compreendemos que não existe

sociedade que, na prática enunciativa, não estabeleça relações discursivas com outras

práticas discursivas anteriores. Para Foucault (2012, p.21), há conjuntos ritualizados de

discursos que se narram, conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma

vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou

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uma riqueza. Observamos que muitos discursos situam-se na origem de certas práticas

enunciativas, e estas os retomam, os transformam ou falam deles implicitamente.

Trata-se de discursos que são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer

(Foucault, 2012, p.21) em nossa sociedade, já que a retomada do dito com nova

corporalidade no processo enunciativo é a garantia dessa manutenção do dizer.

Com a intenção de ampliar a relação prática enunciativa e prática social e, ainda,

a noção de formação discursiva e formação histórica, Maingueneau (2008b) postula o

primado do interdiscurso. Trata-se de interdiscurso uma categoria que precede o

discurso, já que é impossível conhecer a prática social constante em uma prática

enunciativa sem conhecer outros discursos que dialogam com aquele em análise. O

diálogo entre um discurso e outro na prática enunciativa deve ser observado levando

em consideração um sistema de restrições e coerções globais, uma vez que é por meio

da interdiscursividade que encontramos um espaço de embate de diversas formações

discursivas, que, para o analista, serve de unidade central para o estudo do discurso.

Pressupõe-se o estabelecimento um processo dialógico, de relação nem sempre

explícita, entre um enunciado com outros enunciados provenientes de discursos

anteriores.

Maingueneau (2008b) compreende, a partir de Authier-Revuz (2004), que toda

prática enunciativa pressupõe uma heterogeneidade enunciativa, composta por duas

formas de presença do Outro em um discurso: a heterogeneidade mostrada e a

heterogeneidade constitutiva. A primeira, segundo o autor, é apreendida pelos

aparelhos linguísticos por meio do discurso citado, autocorreções, palavras entre

aspas, elementos que evidenciam a presença do Outro em um discurso. A segunda

não detém marcas textuais visíveis, mas marca a presença do Outro de forma a

incorporar-se no discurso enunciado. A hipótese do autor é de que o primado do

interdiscurso se inscreve de forma constitutiva nos discursos enunciados.

Analisar o discurso pela sua relação interdiscursiva pressupõe a investigação

dos dispositivos que conduzem a relação de um determinado discurso com outro, ou,

ainda, com um determinado universo de discursos. A relação com o Outro é o

fundamento da discursividade, partindo do pressuposto de que uma interação

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discursiva se constitui a partir do diálogo existente com outros discursos - base do

princípio dialógico e polifônico de Bakhtin (1992). A interação enunciativa é constituída

pela forma com que um enunciador conduz diversos olhares de Outros discursos na

constituição de seu próprio discurso. A partir dessas reflexões, Maingueneau (2008b)

propõe um quadro metodológico que categoriza o interdiscurso, a partir de uma tríade

composta por: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

Por universo discursivo, entende-se um conjunto de formações discursivas de

todos os tipos que interagem numa conjuntura dada (Maingueneau, 2008b, p.33).

Define-se conjuntura dada como espaços histórico-sociais delimitados que servem de

condições de produção para diversos discursos. O universo discursivo é de pouca

utilidade ao analista, pois representa um todo vasto e impossível de ser apreendido em

sua totalidade. O analista tem como finalidade observar os efeitos de sentido possíveis

de um processo enunciativo, dentro de posicionamentos e formações discursivas mais

delimitadas. Contudo, o universo discursivo é útil, pois possibilita uma abertura para

delimitar os campos discursivos.

Maingueneau (2008b, p.34) define campo discursivo como um conjunto de

formações discursivas que se encontram em concorrência. Compreende-se

concorrência como um confronto de posicionamentos, ou a aliança destes, nos

discursos que possuem uma mesma função social e divergem a forma com que deve

compreender sua prática. Contudo, o recorte por campo não estabelece as fronteiras

que definem as condições de produção de um discurso. Trata-se de lugares abstratos

que apenas possibilitam a consolidação de redes de trocas de formações discursivas,

sem, ainda, delimitá-las. A noção de campo discursivo só permite que notemos a

existência de dois campos distintos que possuem uma mesma formação discursiva de

base. Tais fronteiras incidem no posicionamento discursivo dos enunciados, bem como

nas formas de desenvolvimento da prática social desempenhada pelo discurso.

A influência das formações discursivas impõe ritos e contratos de filiação de

como devem ser organizados determinados gêneros, a partir de determinadas

fronteiras pré-estabelecidas. Isto pressupõe que os campos discursivos fornecem

fronteiras de constituição para o discurso, mas não que todo discurso seja igual aos

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demais inseridos no mesmo campo. O discurso é heterogêneo e influenciado por mais

de um campo discursivo, uma vez que há existência de uma hierarquia instável que

opõe discursos dominantes e dominados (Maingueneau, 2008b, p.34). Com isso,

pressupomos que em um mesmo campo discursivo há discursos que sejam mais

representativos e legítimos que outros, o que possibilita afirmarmos que ele seja

predominantemente marcado pelos posicionamentos de um campo discursivo

específico. Maingueneau (2008b, p.35) compreende que não conseguimos determinar

as relações entre as diversas formações discursivas de um campo senão por um

isolamento, dentro do próprio campo discursivo, de espaços discursivos.

Para completar a tríade, Maingueneau (op.cit.p.35) propõe, também, o espaço

discursivo, delimitado pelo analista, que consiste em subconjuntos de formações

discursivas. Mais delimitado que o campo discursivo, trata-se de um recorte de

discursos, realizado pelo analista, que antecedem o discurso a ser analisado e que

influenciam na constituição dos enunciados do discurso em análise. Embora não

represente a totalidade de formações discursivas que compõem seu interdiscurso, faz

parte de todo o território de influências interdiscursivas que o analista construiu para o

desenvolvimento de sua pesquisa. É a partir do espaço discursivo que se definem

como territórios da AD os espaços de trocas entre os discursos, que vêm a constituir

inúmeras formações discursivas, que possibilitam espaço de trabalho para o analista.

A inserção de um discurso em um campo é fruto de uma competência

discursiva. O discurso está submetido a um sistema de coerções semânticas, que

funciona como uma espécie de filtro que determina quais posicionamentos ele detém.

Estes sistemas de restrições pressupõem a interincompreensão dos enunciados por

uma comunidade de enunciadores e co-enunciadores e a prática discursiva que

caracterizam os discursos, filtrando-os como detentores de uma formação discursiva e

não de outra.

Por competência discursiva, Maingueneau (2008b) compreende tratar-se de um

sistema de coerções que define o discurso que deve ser tratado como processo

histórico, o que exige, daqueles que estão envolvidos na enunciação, reconhecer as

diversas formações discursivas que venham a filiar um posicionamento. Ser enunciador

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de um discurso é ter a capacidade de produzir enunciados que pertençam a uma

determinada formação discursiva em que ele esteja filiado.

A condição de competência discursiva deve ser ampliada para competência

(inter)discursiva, já que supõe duas possibilidades: a capacidade do enunciador em

reconhecer a incompatibilidade semântica de enunciados das formações do espaço

discursivo que constituem seu Outro; e a capacidade de interpretar e traduzir esses

enunciados nas categorias de seu próprio sistema de coerções.

Há, nessa divisão, a promoção do embate entre os diversos posicionamentos de

um enunciado, pertencente a uma dada formação discursiva, e outro, pertencente a

uma formação discursiva diferente. Tal embate configura-se numa relação polêmica em

que cada um entende os enunciados a partir de uma espécie de tradução que não está

na troca de um idioma a outro, mas de uma variação de posicionamentos.

Maingueneau (2008b, p.100) afirma que cada um entende os enunciados do Outro na

sua própria língua, embora no interior do mesmo idioma.

Ao supor que cada enunciador traduz o enunciado do Outro a partir de suas

formações discursivas, Maingueneau (2008b) explica o fenômeno de

interincompreensão. Tal fenômeno permite observarmos que uma formação discursiva

não define apenas o universo em que ela se encontra, mas, também, o modo de

coexistência com os outros discursos. Em outras palavras, podemos notar que as

formações discursivas interagem em um espaço discursivo que proporciona uma rede

de interações semânticas, as quais possibilitam diversas posições enunciativas.

A diversidade de posições enunciativas faz do discurso um lugar de embate.

Souza-e-Silva (2011, p. 106) compreende que a diversidade confere um conjunto de

traços que abrangem todos os planos discursivos, sendo eles: a intertextualidade, o

vocabulário, os temas, o estatuto do enunciador e do coenunciador, a dêixis

enunciativa, o modo de enunciação e o modo de coesão. O trabalho do analista

consiste em estabelecer relações com o interdiscurso e os planos discursivos,

pressupondo um gênero que se constitui a partir de uma prática enunciativa encenada.

Como nossa pesquisa tem a finalidade de estudar o gênero carta, e, ainda, como

certificamo-nos da permanência de uma instância superior e validatória do que é dito

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pelo enunciador, incluímos como parte constitutiva deste gênero a instância do

hiperenunciador, que emerge na cena enunciativa. Assim, faz-se necessário ampliar, a

seguir, as categorias de gêneros de discurso, cenas da enunciação e a instância do

hiperenunciador.

2.2. Tipos e gêneros do discurso

O estudo dos gêneros de discurso é ponto de partida para uma reflexão

enunciativo-discursiva da linguagem. Entendemos como gênero forças reguladoras

presentes e atuantes no discurso que estabilizam uma produção discursiva e ligam o

enunciado a um determinado lugar social.

Em Bakhtin (1992, p.279), os gêneros do discurso são classificados como tipos

relativamente estáveis de enunciados, sendo uma unidade da linguagem que dialoga

com a prática social e discursiva. Muitos teóricos não concebem um estudo discursivo

sem uma definição precisa da categoria de gênero, bem como sua relação entre o

linguístico e o social, haja vista que trata-se de uma categoria que oferece as bases

para o desenvolvimento de um estudo dialógico entre os enunciados e a prática social.

O trabalho com a categoria de gênero de discurso amplia os horizontes e as fronteiras

de compreensão para o uso da linguagem e, com isso, viabiliza diferentes abordagens

que buscam a melhor maneira de explicar o uso da linguagem em termos de contextos

e práticas sociais específicos. Atualmente, são inúmeras as abordagens de estudo dos

gêneros de discurso, uns optando por um olhar mais específico nas sequências

textuais, outros na natureza da linguagem, enquanto outros, na relação enunciativo-

discursiva do uso da linguagem.

Bakhtin (1992) classifica os gêneros a partir de três dimensões que se fundem

indissoluvelmente no todo do enunciado: o tema, a estrutura composicional e o estilo.

As três dimensões que compõem o gênero devem ser consideradas mutuamente, haja

vista que uma complementará a outra no instante da análise.

O tema é o tratamento dado ao assunto do qual o enunciado irá tratar.

Maingueneau (2008b, p.82) também contribui com reflexões sobre o plano do tema ao

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afirmar que em seu tratamento semântico há uma relação intrínseca com o plano da

intertextualidade, na medida em que nenhum tema é realmente original, dado que ele

se reencontra em muitos outros discursos. O tema não é uma unidade que seja

específica para o trabalho do analista, já que um discurso não se define por seus

temas, mas por sua formação discursiva. Os discursos, embora não partilhem temas

semelhantes, possuem inúmeros pressupostos que os definem em um mesmo

universo, campo e espaço discursivos.

Em um estudo enunciativo-discursivo, o interesse não é a reflexão acerca dos

temas que percorrem uma obra, uma frase, um parágrafo, ou ainda, na reflexão da

noção de tema por si mesma, mas sim na relação do tema com o sistema de coerções

da formação discursiva que selecionamos para a análise. Devemos observar os temas

em Cartas Espirituais, com a finalidade de averiguar a constituição de seu sentido e de

sua relevância em uma formação discursiva específica. O tema só é observável na AD

quando relacionado com um espaço discursivo específico.

Um mesmo tema pode estar presente em discursos que não coadunam com os

mesmos posicionamentos em um determinado campo discursivo. O tema é ponto de

partida para um olhar acerca dos sistemas de coerções que direcionam os

posicionamentos que se opõem. Sendo assim, é impossível, na AD, observarmos o

tema sem estabelecer relações com o interdiscurso. Podemos resumir a relação tema e

interdiscurso da seguinte maneira:

(...) Um discurso dado integra semanticamente

todos os seus temas; ou seja, eles estão todos

de acordo com seu sistema de restrições.

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 83 - 84)

Os temas se dividem em dois subconjuntos: temas impostos e temas

específicos. Os temas impostos podem ser compatíveis ou incompatíveis com os

sistemas de restrições de um campo discursivo. Se compatíveis, convergem com as

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formações discursivas daquele campo; se incompatíveis, são integrados às formações

discursivas. Em nosso caso, observamos que inúmeros temas de Cartas Espirituais

estabelecem ora uma relação de compatibilidade com o campo discursivo religioso, ora

de incompatibilidade, e passam a ser integrados e adaptados ao sistema de coerções

daquele campo. Assim:

Não é fácil, mesmo quando existe um dogma

oficial, determinar exatamente os limites do

conjunto de temas impostos, porque eles são

justamente o que está em jogo num debate

permanente no interior do campo, cada

discurso procurando ser ortodoxo. Certamente,

existe um núcleo doutrinal muito estável no

catolicismo, sobretudo no século XVII, mas

zonas instáveis subsistem, há contínuos

deslocamentos (...). (MAINGUENEAU, 2008b,

p.84)

Como um discurso é constituído a partir de influências de outros discursos

pertencentes nem sempre a um único campo discursivo, é impossível decretarmos que

determinados temas sejam impostos pelas rotinas de uma única instituição social.

Devemos levar em conta outras formações discursivas que influenciam como

verdadeiros dogmas para o que é dito. Ao levarmos em conta que determinados temas

são impostos por outros campos discursivos, não devemos desprezar que tal

imposição é adequada aos sistemas de coerções daquele campo.

Por estrutura composicional, Bakhtin (1992) refere-se aos elementos textuais,

discursivos e semióticos que podem compor um enunciado. Reflete se é predominante

em determinado gênero o ato de informar, interagir, doutrinar entre outros, e, ainda,

qual a estrutura linguística e enunciativa desse gênero e como essa estrutura irá

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influenciar no efeito de sentido que o enunciado promove socialmente. A estrutura

composicional, quando relacionada a uma formação discursiva e a um sistema de

coerções, contribui para definir o estatuto do enunciador e do co-enunciador.

Por estatuto do enunciador e do co-enunciador, Maingueneau (2008b) afirma

tratar-se dos papéis do enunciador e do co-enunciador que são legitimados no

interdiscurso. A partir de uma competência interdiscursiva, validam-se papéis

institucionais a serem seguidos tanto pelo enunciador quanto pelo co-enunciador. A

dimensão institucional que oferece um papel ao enunciador determina certa relação de

saber com o co-enunciador. Ao defini-los, observamos que, por meio da estrutura

composicional de um gênero, tem-se condições de analisar de quem parte e a quem se

dirige a enunciação, dentro de uma delimitação de papéis, contrato e jogo

estabelecidos pelo gênero.

Ao pressupor um estatuto para o enunciador e o co-enunciador, estabelecemos

contato com uma dêixis enunciativa espaçotemporal que determina um conjunto de

localizações no espaço e no tempo que um ato de enunciação apresenta-se, não de

forma a delimitar uma data e um local de acontecimento empíricos, mas do local da

instituição que representam e das suas condições históricas naquele instante de

enunciação. (Souza-e-Silva, 2011, p. 109)

Um gênero é cooperativo e regido por normas, oferecidas pelo sistema de

coerções de um determinado campo discursivo. Como prática e interação social, o

gênero proporciona a representação de papéis na prática enunciativa. A interação entre

o contrato e os papéis representados tem o funcionamento de um jogo com regras

implicadas e preestabelecidas que, se não cumpridas, implicam comprometimento da

prática social do gênero.

O estilo marca a coletividade do enunciado produzido, a partir de um campo

discursivo, de um instante sócio-histórico em que o discurso se insere e dos envolvidos

na enunciação. Bakhtin (1992) compreende que o vínculo entre estilo e gênero pode

determinar a padronização de uma manifestação discursiva, por exemplo, em cartas, já

que nos possibilita extrair, a partir do estilo de um gênero, uma dada esfera da

atividade e da comunicação humana. O estilo de um gênero do discurso está

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associado ao modo de enunciação do discurso com outros de um mesmo campo

discursivo.

Quando ao modo de enunciar, Maingueneau (2008a) afirma que um discurso

não está associado apenas à dêixis e ao estatuto do co-enunciador e do enunciador,

mas também a uma maneira de dizer. O enunciador e o co-enunciador são integrados

em uma mesma sociabilidade ideal na enunciação. Entendemos por sociabilidade a

qualidade, ou o ato, de tornar-se sociável a partir de uma prática discursiva, o que quer

dizer que o enunciador e o co-enunciador, no instante da enunciação, são projetados a

uma prática social ideal. O texto é o processo de comunicação entre os envolvidos na

enunciação, e está submetido a moderações, ritmos e plasticidades influenciados por

uma instituição social específica. Em nosso caso, o gênero da amostra selecionada

tem a remetência de uma carta, mas por estar ligada diretamente a uma instituição

específica, tem seu estilo, e, consequentemente, seu modo de enunciação,

direcionados às especificidades da instituição social por qual se filia. Assim, a carta

passa a ser tomada como gênero epístola doutrinária da Igreja Católica do século XVII,

marcada pelas influências do estilo Barroco português.

O discurso possui também uma maneira de dizer, ou, ainda, um modo de

enunciação, que incide em um tom, um caráter e uma corporalidade daquele que

enuncia o discurso. Maingueneau (2011) defende que o tom de um enunciado

pressupõe um conjunto de características psicológicas e sociais que constituem um

caráter daquele que enuncia, e, ainda, confere-lhe uma corporalidade, o que, em outras

palavras, significa uma maneira de movimentar-se no espaço social. É essa maneira de

dizer que torna Cartas Espirituais uma produção que identifica, de certa maneira, o

enunciador como detentor de um estilo que o individualiza diante de outros

orientadores espirituais que se dedicam na produção epistolar.

Maingueneau (2011) amplia a noção de gênero de discurso apresentada por

Bakhtin (1992), ao considerar que os gêneros estão suscetíveis a um sistema de

coerções determinado, que irá operar nos planos do discurso e na rede institucional de

um grupo. O discurso pressupõe um quadro institucional ao qual está vinculado, ao

passo que este quadro também o legitima como pertencente a uma determinada

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instituição. O gênero se organiza pelas normas de funcionamento dos grupos

institucionais em que se insere, ao mesmo tempo em que pode alterar o funcionamento

de uma instituição. Isto é possível, pois parte-se da reflexão de que os discursos

enunciados não estão sujeitos à influência de uma única instituição, mas de inúmeros

grupos e a tudo que eles implicam, tanto no âmbito da organização material do

discurso quanto nos valores que tais grupos carregam. Os gêneros cerceiam as

práticas enunciativas e delimitam o papel, o contrato e o jogo estabelecidos para o

acontecimento da cena enunciativa. A categoria de gênero de discurso é refletida a

partir de sua relação com os tipos de discurso, que juntos constituem um quadro cênico

que tem a finalidade de regularizar as diversas práticas discursivas em sociedade,

tornando-as repetitivas e sempre variáveis historicamente.

Por tipo de discurso, Maingueneau (2008a, p. 16) afirma se tratar de espaços já

pré-delineados pelas práticas verbais. São os espaços enunciativos que se relacionam

com os múltiplos setores da atividade humana, sendo estes o discurso administrativo, o

discurso literário, o discurso político e, em nossa pesquisa, o discurso religioso. Os

tipos de discurso englobam uma diversidade limitada de gêneros, que constituem as

práticas enunciativas e institucionais dessas atividades humanas. Observar os gêneros

pertencentes a diversos tipos de discurso é fundamental, na medida em que estes

fornecem um lugar e um espaço de enunciação, enquanto aqueles realizam a ação

institucional da enunciação. A possibilidade em atribuir ao gênero uma situacionalidade

em um tipo de discurso pressupõe a inserção de um lugar institucional ao gênero. Por

isso, o gênero carta é analisado como pertencente não só ao tipo de discurso religioso,

mas a uma instituição religiosa específica: a Igreja Católica.

Os gêneros de discurso são dispositivos de comunicação que só podem

aparecer quando certas condições sócio-históricas são presentes (Maingueneau, 2011,

p.61). A reflexão sobre gêneros pressupõe uma ação social efetiva, o que, para

Furlanetto (2010, p.266), significa que para cada texto está implicada uma atividade

enunciativa ligada a um gênero do discurso. Isto nos leva à reflexão de que, ao

analisar um discurso, devemos observar, a priori, que ele está inserido em uma

regularidade de enunciação ritualizada, repetida na prática social e concebida na

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memória discursiva das diversas instituições sociais. A ritualização do gênero permite a

filiação do enunciador a uma prática enunciativa, na medida em que conserva, na

memória discursiva, os modelos daquilo que já foi dito. Além disso, o gênero é

responsável pela memorização de modelos ritualizados de enunciação que ele mesmo

institui, ao passo que os reemprega e os renova com o uso cotidiano. O gênero é

inserido em um lugar social e fornece um quadro enunciativo que desmascara, de certa

forma, a exterioridade simplista entre texto e contexto.

Maingueneau (2011) ressalta a necessidade de ater-se aos papéis que devem

assumir o enunciador e o co-enunciador na enunciação. Estes são determinados pelo

gênero e sua relação com o tipo de discurso, bem como a organização textual e o

suporte material. Compreendemos que:

Dominar um gênero de discurso é ter

consciência mais ou menos clara dos

modos de encadeamento de seus

constituintes em diferentes níveis: de

frase a frase, mas também em suas

partes maiores. (MAINGUENEAU,

2011, p.68).

O gênero de discurso é cooperativo e regido por normas e um certo número de

regras conhecidas e sancionadas pela comunidade que faz uso deste mesmo gênero.

Maingueneau (2011, p.69) afirma tratar-se o gênero de discurso de um contrato, que

pressupõe estrutura e papéis a serem seguidos, o que significa que um gênero implica

os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas

determinações possíveis.

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Nessa perspectiva, interessa-nos refletir o gênero também como um ritual social

dos envolvidos na enunciação. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador assumem

um papel no jogo dialógico dos gêneros, ao passo que esta relação define:

os gestos, os comportamentos,

as circunstâncias, e todo o

conjunto de signos que deve

acompanhar o discurso; fixa,

enfim, a eficácia suposta ou

imposta das palavras, seu efeito

de sentido sobre aqueles aos

quais se dirigem, os limites de

seu valor de coerção.

(FOUCAULT, 2012, p.37)

Notamos, com isso, que o gênero de discurso só é possível se encenado na

enunciação.

2.3. As cenas da enunciação

Os gêneros são manifestações enunciativas encenadas, que possuem cada qual

suas especificidades quanto aos papéis e contratos a serem desempenhados tanto por

quem enuncia quanto por quem co-enuncia o discurso. Maingueneau (2011,p.85)

afirma que um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um

discurso em que a fala é encenada, já que por meio da enunciação há a emergência de

uma categoria que encena o que é dito e define os papéis dos enunciadores, bem

como o contrato estabelecido por eles e pelo gênero no espaço enunciativo.

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A categoria que encena o que é dito e define a enunciação é denominada, em

Maingueneau (2008a, 2011), cenas da enunciação. O autor postula as cenas de

enunciação a partir de uma tríade composta pelos dispositivos que definem um lugar –

a cena englobante e a cena genérica – e uma forma de enunciar, a partir de um lugar

definido – a cenografia –, ambos responsáveis pela consolidação de uma espécie de

palco para o acontecimento da enunciação.

As cenas englobante e genérica, que têm a responsabilidade em consolidar e

definir o lugar da enunciação, compõem o quadro cênico. A cena englobante é

responsável por situar a enunciação em um determinado tipo de discurso e defini-la a

um quadro espaço-temporal, já que não há possibilidade de afirmar um único tipo de

discurso que seja padronizado a todas as épocas. Contudo, para a formação do quadro

cênico, também dependemos da cena imposta pelos gêneros de discurso. Neste caso,

o gênero é encenado por uma cena genérica, em que emergem a existência de papéis

a serem seguidos pelo enunciador e pelo co-enunciador na enunciação, que são

definidos pelo próprio gênero. É na cena genérica que temos condições, em Cartas

Espirituais, de observar que o discurso se trata da orientação da palavra de Deus de

um frei a seus fiéis e que esta orientação é um cumprimento do dever institucional do

discurso religioso católico.

Com a formação do quadro cênico consolida-se uma espécie de palco que

fornece os papéis e o lugar de acontecimento da enunciação, com a finalidade de dar

condições de materialização àquilo que é dito. Este palco é denominado cenografia. É

por meio da cenografia que identificamos marcas estilísticas, composicionais e

temáticas, que determinam as formas de enunciar o discurso. A cenografia garante o

dizer mostrado, o estilo e a estrutura dos enunciados e podem, ou não, serem lineares

ao que prevê o quadro cênico, já que a cenografia se dá em virtude das necessidades

enunciativas criadas pelos envolvidos na enunciação. Contudo, a cenografia jamais é

contrária ao quadro cênico. Ela é responsável por fazer com que a enunciação

aconteça, dentro de limites impostos pelas cenas genérica e englobante.

Maingueneau (2011) compreende que alguns gêneros parecem subverter o

quadro cênico, criando uma cenografia divergente do esperado em um discurso. Em

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Cartas Espirituais, por exemplo, o código linguageiro nos leva a destacar traços de

intimidade entre o enunciador e o co-enunciador, que projeta um clima de cumplicidade

entre ambos. Porém, esta cenografia atende às expectativas institucionais do quadro

cênico: o tipo de discurso é religioso, da Igreja Católica do século XVII e o gênero tem

como finalidade a orientação doutrinária por meio da carta.

A cenografia é classificada como os parâmetros de situação de enunciação (...)

construídos pelo próprio arquivo (Furlanetto, 2010, p.270). Entende-se por arquivo as

formações discursivas que direcionam a prática enunciativa, advindas de campos

discursivos que influenciam na constituição dos enunciados. Por meio das formações

discursivas, a cenografia se consolida, já que se trata de uma categoria que relaciona

os componentes instituídos em sociedade, fruto do posicionamento sócio-histórico de

determinadas comunidades, que os seleciona e os inscreve na enunciação.

Por se tratar de uma cena que se consolida por meio das diversas formações

discursivas, a cengorafia mantém relação direta com a dêixis discursiva, fundamentada

por Maingueneau (1997, p.41) como aquela que define as coordenadas temporais

implicadas em um ato de enunciação. A dêixis discursiva responsabiliza-se em situar a

enunciação em uma tríade estabelecida pela relação abaixo descrita:

ENUNCIADOR ↔ COENUNCIADOR – CRONOGRAFIA – TOPOGRAFIA

De acordo com Maingueneau (2011, p.41), a dêixis discursiva é manifestada

pelo universo de sentido que uma formação discursiva constrói através de sua

enunciação. Por meio de uma tríade composta pelo enunciador e co-enunciador, a

cronografia e a topografia, compreendemos que a cenografia é constituída a partir da

relação entre os envolvidos na enunciação, inscritos em um tempo e em um lugar, o

que determina, dentre outras coisas, o uso vocabular e as marcas textuais escolhidas

na enunciação. Em Cartas Espirituais, notamos o uso abusivo de figuras de linguagem,

que identificam a inserção do discurso de Chagas no quadro espaço-temporal do

Barroco português do século XVII. A tríade acima apresentada é responsável por

atribuir à enunciação uma cena, que se inscreve o tempo todo no discurso,

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desencadeada por elementos textuais da cenografia. No entanto, não é concebida a

prática discursiva como uma ação que parte, primeiramente, de um sujeito, em

segundo lugar, de um espaço, e, em seguida, de um tempo específico, mas sim da

interação entre estes três componentes, que legitimam uma cenografia para a

enunciação.

Por a dêixis discursiva situar-se em relação com as formações discursivas de

um determinado espaço discursivo, ela só pode ser instituída e legitimada se possuir

relação com uma dêixis fundadora situada no mesmo espaço discursivo. Por dêixis

fundadora, Maingueneau (1997) compreende as situações de enunciação anteriores

que garantem o acontecimento da enunciação atual. O discurso só é enunciado por

legitimar-se em uma interação entre enunciador e co-enunciador, de uma cronografia e

de uma topografia fundadoras. Em nossa pesquisa, as dêixis fundadoras, que

contribuem para a construção da cenografia do discurso Cartas Espirituais são as

extraídas de discursos que o constituem, dentre outros as Epístolas de São Paulo, e,

ainda, de discursos religiosos que regulamentam a mesma prática discursiva – outras

cartas espirituais da época.

A contribuição de Maingueneau (2008a,2008b,2011) ao propor a categoria de

cenas da enunciação é ampliar ainda mais o estudo dos gêneros do discurso. Ao nos

mostrar que o gênero é uma prática enunciativa encenada, compreendemos que as

marcas de estrutura, tema e estilo são perceptíveis inicialmente na cenografia. Ainda,

podemos afirmar que, em se tratando do gênero carta, a cenografia que é enunciada

nos faz refletir acerca da noção do hiperenunciador como uma das marcas de estilo na

prática enunciativa em discursos religiosos do século XVII.

2.4. A noção do hiperenunciador

Pela cenografia e, mais especificamente, pela dêixis discursiva, Maingueneau

(2008a) observa a mobilidade da instância do hiperenunciador. Esta instância emerge

por meio de um sistema de citações presentes no discurso. Ao analisar os usos do

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discurso citado, o autor classifica-os, inicialmente, a partir de dois planos: dos

procedimentos e dos lugares.

O plano dos procedimentos consiste no uso do discurso citado como um

processo, categorizando-os à base de critérios diversos como: enunciativos - ao afirmar

que as citações estão presentes nos enunciados; tipográficos - elas possuem marcas

impressas e aparentes no texto; prosódicos - no que diz respeito à forma com que as

citações são enunciadas, por exemplo, por meio do discurso direto, indireto, direto livre,

etc.

O plano dos lugares constituem as citações selecionadas em função dos

gêneros, dos tipos de discurso e dos posicionamentos. Dependendo do gênero com

que estamos lidando, temos regras instituídas de como realizar determinada citação. O

gênero notícia jornalística necessita da explicitação da fonte e de seu enunciador;

Cartas Espirituais trazem o discurso citado como parte constitutiva dos demais

enunciados. O mesmo acontece com relação aos tipos de discurso, que são

responsáveis por conferir a institucionalidade do gênero, o que também determina um

tipo de uso do discurso citado. O discurso jornalístico tem quase que um compromisso

jurídico com o que é citado explicitamente em seus gêneros; o discurso religioso

constitui suas citações marcadas nos enunciados por um enunciador que assume o

papel de um porta-voz de um SUJEITO UNIVERSAL, hiperenunciado, fruto do discurso

teológico. Na enunciação, também podemos encontrar citações que carregam ou

legitimam determinados posicionamentos, como o político, o partidário, religioso, dentre

outros.

Contudo, Maingueneau (2008a) propõe a reflexão de um outro sistema de

citações: um sistema que funda participação e citação, que esteja presente na

enunciação, mas não esteja explícito no texto, mas sim no discurso. Ele denomina esse

conjunto de citações como particitação. Trata-se de um sistema de citações que

atravessa vários gêneros do discurso, sem conter marcas de registro textual.

Para ampliar tal definição, recuperamos Benveniste (1989), no que diz respeito

aos sistemas enunciativos, destacando a relação entre enunciado e situação de

enunciação. O autor afirma que a língua possui um caráter essencialmente social, a

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partir de um consenso coletivo. A origem da linguagem está intimamente relacionada

com a origem das sociedades já que:

Somente a língua torna possível a

sociedade. A língua constitui o que

mantém juntos os homens, o

fundamento de todas as relações que

por seu turno fundamentam a

sociedade. (BENVENISTE, 1989, p.23)

Por meio da função social humana, o homem se apropria, estabelece

encadeamentos e adaptações de diferentes signos linguísticos, com o intuito de

ressignificá-los e significá-los em sociedade. O homem é capaz de refazer a língua,

concebendo novos conceitos, a partir de um processo dinâmico de interação língua-

meio.

Benveniste (1989) acredita que o conceito de signo linguístico é reformulado no

que diz respeito à forma de significar. O signo possui duas modalidades de sentido: o

semiótico, que condiz com o signo linguístico saussureano, ao pressupor um sistema

de significantes que possuem sentidos significados, e o semântico, definido como o

sentido, ou significado, que só é possível e constituído em função do encadeamento

com a circunstância na qual o signo é empregado. O sentido semântico do signo só é

possível na língua em uso.

A noção de signo linguístico teorizada por Saussure é ampliada por Benveniste

(1989). O signo possui função de sistema formal, mas também uma função semântica,

possível no enunciado, a partir do uso efetivo da linguagem por um enunciador. A

linguagem é refletida em relação a seu funcionamento, é simbólica e tem poder de

significação e ressignificação. O significante saussureano passa a ser considerado

simbólico, quase que icônico, e tem como significado uma representação que advém

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do seio de uma sociedade e de uma cultura. Nenhuma língua separa-se de sua função

social.

Benveniste (1989) retoma, então, uma questão central sobre a língua: o

esclarecimento de que o signo possui uma nova dimensão de significância, que passa

a denominar por discurso. Reflete, assim, a função da língua como produtora de

mensagens, já que esta não se reduz a uma sequência de sentidos, mas sim a um

conjunto de signos que possuem sentido entre si. O sentido é intencionado por um

enunciador e concebido na interação com o co-enunciador, a partir de um lugar e de

um tempo. A língua:

1º se manifesta pela enunciação, que

contém referência a uma situação dada;

falar é sempre falar-de;

2º ela consiste formalmente de

unidades distintas, sendo que cada uma

é um signo;

3º ela é produzida e recebida nos

mesmos valores de referência por todos

os membros de uma comunidade;

4º ela é a única atualização da

comunicação intersubjetiva.

(BENVENISTE, 1989, p.63)

A língua passa a ser um sistema produtor de sentidos, por meio de enunciados

que refletem uma prática social. Os sistemas de particitação agregam-se ao enunciado,

tomam valor distinto de seu lugar de origem, de seu discurso original, e produzem um

novo discurso, ao serem inseridos em um novo sistema de enunciação e sentido.

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Os sistemas de particitação não são tipos, nem gêneros e nem marcadores

linguísticos. Maingueneau (2008a) compreende que as citações por particitação

associam-se nos gêneros do discurso com o intuito de mobilizar o aparelho

enunciativo. A particitação não é, portanto, uma citação tradicional marcada por um

corte de um fragmento textual e por uma explicitação de fonte, mas é classificada de

forma distinta.

Na particitação o enunciado citado é um enunciado autônomo, ou porque ele já é

utilizado na prática social, ou porque ganhou essa autonomia na prática enunciativa. O

enunciado particitado deve ser reconhecido e conhecido pelo enunciador e pelo co-

enunciador, sem que se evidencie a fonte ou deixe marcas textuais de que o discurso

foi citado. A citação é reconhecida por marcar um deslocamento enunciativo que pode

ser de natureza gráfica, uma vez que há uma mudança no uso da linguagem, quer seja

de vocabulário, quer seja de estrutura sintática, que incide na tonalidade e na alteração

na voz de quem enuncia o discurso. No instante do enunciado citado, que se define

como uma espécie de alteração de voz, ou sons linguísticos, daquele que enuncia, há

uma alternância paralinguística que revela uma alteração, também, no estado

psicológico do enunciador.

O enunciado citado apresenta-se, no sistema de particitação, em uma lógica do

discurso direto, pois tratar-se da voz do outro expressa por si mesma na enunciação.

Contudo, não consiste em simular o que o outro diz, mas de permiti-lo na enunciação,

restituindo aquilo que disse. Em outras palavras, o significante é restituído em uma

nova enunciação, o que, consequentemente, garante-lhe uma nova significação.

O enunciador que cita mostra adesão ao enunciado citado. Este, por sua vez,

pertence a um Thesaurus de enunciados de uma comunidade que os faz circular e os

compartilha. O enunciador que o cita pressupõe também a adesão de seu co-

enunciador ao enunciado citado. Maingueneau (2005) afirma que o enunciador cita

aquilo que o co-enunciador deveria pensar e refletir acerca do que é enunciado,

criando, assim, uma validação do ponto de vista daquilo que é dito.

Por se tratar de um enunciado extraído de um Thesaurus de enunciados

validados na prática social e enunciativa de uma comunidade, Maingueneau (2008a)

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observa que sua enunciação recorre a uma instância que valida sua autoridade. Tal

instância é denominada de hiperenunciador e garante menos a verdade do enunciado -

uma vez que ele adéqua o enunciado citado ao conjunto de outros enunciados,

contemplando um sistema de enunciação diferente do seu lugar original. A instância do

hiperenunciador valida os demais enunciados, bem como os valores neles contidos,

aos fundamentos de uma coletividade.

Com relação à instância do hiperenunciador, Maingueneau (2008a) recupera

Rabatel (2012), refletindo que o sistema de particitação é uma forma particular de co-

enunciação, uma vez que há um acordo em torno do Ponto de Vista (PDV).

Para Rabatel (2012), a noção de valores determina o PDV de quem enuncia

como uma única e indivisível consciência literária. Como exemplo, reflete acerca de

como o descobrimento das Américas é enunciado em livros de História, observando

que estes assumem como única consciência literária possível o ato de descobrimento

americano como feito dos europeus, compreendendo que os nativos que já habitavam

as terras americanas não eram seus reais nativos. Assim, troca-se o valor semântico

de conquista e exploração por descoberta. A construção enunciativa leva em conta o

fato de que o co-enunciador desconhece o tema que é enunciado, e toma

conhecimento deste naquele momento, o que permite tornar válido o PDV expresso na

enunciação.

O que torna evidente a naturalização de um PDV é o efeito de anulação ou

apagamento enunciativos. Os PDVs manifestos em um enunciado são naturalizados a

partir do diálogo existente entre o enunciador e o co-enunciador no momento da

enunciação. Tal diálogo se dá a partir de escolhas de referenciação e predicação.

Rabatel (2012) e Maingueneau (2008b) compreendem que a referenciação é o

ato de situar o co-enunciador em um determinado campo discursivo, por meio de um

gênero de discurso específico, e por predicação, a mobilização do aparelho enunciativo

em fazer-se predicar, doutrinar e convencer o outro por meio de um PDV. São os

enunciados predicados que são, muitas vezes, naturalizados na enunciação, ou

validados por um discurso particitado, que possibilitará uma instância hiperenunciada.

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O interesse em observar os enunciados referenciados por um PDV está na

análise das razões pelas quais os enunciadores compartilham seu PDV e,

consequentemente, rejeitam outros no instante em que validam o seu. Notamos que se

estabelece, no instante de defesa de um PDV, a defesa de valores sociais e a negação

de outros. Compreendemos que a defesa de um PDV em uma enunciação gera, em

contrapartida, a negação de outros PDVs, o que impossibilita, de certa forma, a

neutralidade de um discurso.

Contudo, antes dos valores manifestarem-se no discurso, eles existem na língua

enquanto sistema. O valor está relacionado com o sentido, ou com um efeito de

sentido, ligado a uma categoria linguística e a uma unidade lexical ou de expressão de

enunciado. Porém, o valor não é a significação em si, mas o pedestal sobre o qual ele

se constrói. No que diz respeito à significação, compreendemos que:

(...) nenhum signo é, portanto, limitado

no total de ideias positivas que ele é, ao

mesmo tempo, chamado a concentrar

em si mesmo; ele só é limitado

negativamente, pela presença

simultânea de outros signos; é,

portanto, inútil procurar qual é o total de

significações de uma palavra.

(SAUSSURE, 1989, p.78)

Saussure (1989) postula que a dimensão diferencial de um valor pauta-se em

diferenças de ordem paradigmática, que afetam sua significação na ordem

sintagmática. Tal jogo permite:

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(...) evoluções do sistema linguístico,

com inovações que compreendem

verdadeiramente sentidos no

interdiscurso que se abstrai do contexto,

ou seja, entrando em um sistema de

diferenças abstratas na ordem

paradigmática. (RABATEL, 2012, p.12)

A evolução do sistema linguístico, que compreende diferentes valores de

sentido, depende da língua em uso e de sua relação com os variados campos

discursivos em que tal prática enunciativa esteja inserida. Os valores não são

absolutos, mas sim restritivos em função do lugar em que se fala e dos sistemas de

coerções que determinam as possibilidades de dizer nesse lugar. Maingueneau (2005)

afirma que o sistema de particitação é uma forma particular de co-enunciação, já que

estabelece um acordo em torno do PDV. Tal acordo, por sua vez, possui uma forma

particular de co-enunciação, já que torna inútil a possibilidade de outros valores de

significação para aquilo que é enunciado. O autor compara o sistema de particitação

como uma espécie de discurso direto livre, que compreendemos como a fala do outro

reproduzida indiretamente pela fala do enunciador.

Contudo, a relação entre discurso direto livre e o sistema de particitação são

apenas relacionáveis como critério de exemplificação. Tanto no discurso direto livre

como na particitação, há o apagamento da fonte do enunciado citado. Porém, no

discurso direto livre evidencia-se, por meio de um clichê, ou uma doxa, o

reconhecimento de segmentos atribuídos a uma pessoa qualquer (Maingueneau, 2005,

p.78). Por outro lado, a particitação cria um desnivelamento entre a voz do enunciador

e a voz do hiperenunciador em lógica de co-enunciação. No discurso direto livre, o

enunciador coloca-se em posição dominante no discurso citado.

O sistema de particitação está em contato estreito com as situações sócio-

históricas. Torna-se difícil observar o sistema de particitação sem distingui-lo segundo

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a recorrência do enunciado citado. Para tanto, Maingueneau (2008b) define diversos

agrupamentos de particitação, selecionados em função da situação de uso do

enunciado citado. O primeiro agrupamento são as particitações sentenciosas. Elas

consistem em particitações cujo apagamento enunciativo é mais evidente. Para

exemplificá-las, o autor reflete acerca da enunciação proverbial.

A enunciação proverbial tem como característica o deslocamento daquele que

profere o provérbio àquele que garante sua verdade. O deslocamento de voz do

enunciador para um hiperenunciador garante o que é dito como verdadeiro e admite a

existência de duas instâncias de fala: o enunciador e o SUJEITO UNIVERSAL,

hiperenunciado. No caso da particitação de provérbios, o sujeito que enuncia é

garantido por um SUJEITO UNIVERSAL validante do que é dito, já que seu dizer faz

parte de um conjunto de valores de uma comunidade cultural e linguística em que

circulam esses discursos.

O hiperenunciador em provérbios é designado como a "sabedoria das nações", a

"sabedoria popular", sendo a instância de garantia de verdade do Thesaurus de

enunciados daquela comunidade específica. Por isso, justifica-se sua denominação por

SUJEITO UNIVERSAL, uma vez que é aquele quem impossibilita outras verdades além

do que é dito. O mesmo acontece com relação ao adágio jurídico. Entendemos por

adágio um dito popular, um provérbio ou um aforismo que detenha um pensamento

moral marcado institucionalmente. Constituídos como Thesaurus em uma comunidade,

eles reforçam o sentimento de pertencimento daqueles que o usam em uma prática

enunciativa. A importância em se distinguir o adágio jurídico do provérbio está ligado na

relação que o primeiro tem com a sabedoria instaurada nas nações, enquanto o

segundo liga-se, exclusivamente, a uma sabedoria característica de uma instituição

social. Por exemplo, o SUJEITO UNIVERSAL que é invocado pertence a uma

comunidade de ordem profissional, religiosa, científica etc.

Também faz parte do sistema de particitações as citações conhecidas. Para

Maingueneau (2008b), circulam em sociedade enunciados curtos, de fácil memorização

e com significados e significantes que garantem livre circulação em uma comunidade.

Tais enunciados são marcados e reconhecidos pela prosódia das palavras enunciadas,

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pelas rimas internas, pelos tropos, que, de certa forma, trata-se de recursos de

expressão que têm como pressuposto a garantia de valor de sentido em um grupo.

Tais citações circulam em uma comunidade ampla. Podemos exemplificar algumas

citações conhecidas como "aqui se faz, aqui se paga", "olho por olho, dente por dente",

"aquilo que é bem elaborado é claramente enunciado" etc. O reconhecimento e a

autonomização desses enunciados de citações conhecidas se dão em função de uma

estrutura rítmica e quase poética de enunciação.

O conjunto de enunciados citados dos discursos bíblico e religioso é outro

sistema possível de particitação. O sistema de particitação implica uma instância

impositiva, sinônimo de fonte de valores. No caso das religiões escritas, tal imposição

se dá por ordem doutrinal. No cristianismo e em outras religiões, o Thesaurus que

possibilita a particitação é um único livro, considerado o Livro Sagrado. O

hiperenunciador que funda, por exemplo, o discurso católico, é o próprio Deus. O

enunciador tem como função estabelecer o encadeamento do discurso hiperenunciado.

A consequência disto é que nos discursos religiosos há o desaparecimento de marcas

do discurso citado e cabe ao co-enunciador reconhecê-lo. Ainda, compreendemos que,

por a enunciação perceber a um tipo de discurso que tem como institucionalização a

religião, tudo que é enunciado naquele discurso possui seu valor de hiperenunciador

divino.

No entanto, os enunciados citados pertencentes a um Thesaurus do discurso

teológico, por exemplo o Bíblico, não se constituem de falas e enunciados de Deus,

mas de autores anônimos, situados em lugares e épocas distintos. Porém, os co-

enunciadores do discurso religioso compreendem que os enunciadores desses

discursos são porta-vozes de um hiperenunciador divino. A instância hiperenunciada do

discurso teológico é compreendida como aquela que inspira e garante a produção

enunciativo-discursiva daquele conjunto de saberes e doutrinas. A inexistência dessa

crença invalida a hermenêutica religiosa, por isso o hiperenunciador é condição

fundamental para a existência de discursos de fé.

Em resumo, Maingueneau (2005) acredita que o hiperenunciador tem como

função, através do enunciado particitado, tornar inútil a presença de outras marcas de

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PDV, que não as almejadas pelo enunciador. O hiperenunciador é uma instância que

valida um olhar e consequentemente garante a impossibilidade de outros olhares sobre

um determinado PDV, a partir de enunciados citados que pertençam a um Thesaurus

de enunciados de uma determinada prática e instituição social. O particitador tem uma

função quase que teatral na enunciação. Ele se apaga diante de um hiperenunciador e

as práticas enunciativas de seu discurso são ligadas a um ethos discursivo que causa

desnivelamento na enunciação: o enunciador, ao mostrar-se porta-voz de uma

instância reconhecida como validante por ele e pelo co-enunciador, valida, também,

sua enunciação.

A validação de um discurso por meio de um hiperenunciador funciona como uma

crença, ou uma hermenêutica divina. Assim, compreendemos que a instância do

hiperenunciador é necessária, em nossa amostra de pesquisa, para a composição do

gênero do discurso carta. Para analisarmos a seguir a instância de hiperenunciador e

compreendermos sua mobilidade no discurso Cartas Espirituais, de Chagas, devemos

associá-la às categorias de gênero e de cenas da enunciação. Estas categorias -

gênero do discurso, cenas de enunciação e hiperenunciador – selecionadas para essa

pesquisa, garantem veracidade e validam o discurso em seu espaço histórico-social,

possibilitando que observemos Cartas Espirituais como tesouro do discurso teológico e

linguístico-literário do século XVII, em Portugal, como examinaremos no capítulo a

seguir.

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CAPÍTULO III

CENAS DA ENUNCIAÇÃO E O PAPEL DO HIPERENUNCIADOR EM CARTAS

ESPIRITUAIS

3.1. Procedimentos de análise

Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas foi compilada e publicada

postumamente em dois volumes: o primeiro em 1684, com 100 cartas, e o segundo em

1697, com 166. Inseridas nos campos discursivos espiritual e religioso, tem o objetivo

de orientar e doutrinar fiéis missionários do século XVII aos caminhos da fé cristã e aos

dogmas da Igreja Católica. Escritas durante o período de vida missionária de Frei

Antonio das Chagas, entre os anos de 1662 a 1682, refletem o pensamento da época,

marcadas pela dualidade entre o sagrado e o profano, o teológico e o institucional,

característica do campo discursivo da arte barroca do século XVII. Como forma de

fazer perdurar no tempo as doutrinas institucionais e os entendimentos dos valores de

espiritualidade seiscentistas, Cartas Espirituais retrata sócio-historicamente

particularidades do século XVII. Trata-se de um meio de comunicação por escrito, entre

o enunciador e o co-enunciador, que não implica apenas uma intenção noticiosa, mas

colocar em comunhão um sentimento, um fato e uma doutrina.

Com a finalidade de examinar a amostra selecionada como discurso que

desempenha uma função social de orientação e doutrina espiritual e religiosa, e que

pela construção das cenas da enunciação evidencia-se o papel do hiperenunciador no

gênero carta, selecionamos as cartas espirituais I, IV, V, VI, VII, VIII e XX, com o

objetivo de verificar o modo como o interdiscurso e o gênero do discurso são

constituintes para o surgimento do hiperenunciador; identificar, no discurso encenado,

a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que fundamentam os

diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador; e reconhecer, pelas formações

discursivas impressas nas cartas espirituais selecionadas, marcas da estética barroca

e da espiritualidade do século XVII que reforçam a mobilidade do hiperenunciador.

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3.2. O gênero carta: uma orientação doutrinária institucional e espiritual

As cartas espirituais selecionadas em nossa pesquisa são tomadas como

gênero do discurso carta, que tem como finalidade social orientar e doutrinar os fiéis

espiritual e institucionalmente. Considera-se o gênero como uma unidade da linguagem

que dialoga com a prática social e discursiva, conforme observamos no Capítulo II

desta pesquisa. Assim, a função social que desempenham os discursos selecionados é

de orientar o fiel pessoal e individualmente, tal qual em uma orientação confessionária

da rotina institucional da Igreja Católica, como se observa no recorte abaixo:

Recorte 1

Elle vos guarde, e guarde a todos os que lerem este papel, que foi vontade sua,

que este indigno, e miserável, inutil, falso, e mentiroso a Deos, de sua vontade o

escrevesse para sua Gloria, honra, e bem de todas as Almas de todos aquelles, que o

guardarem á risca. Guardai ao menos este papel, que algum dia póde ser que me

aproveite do que elle diz.

No Recorte 1, extraído da Carta I, no fim do corpo do texto, após desenvolver

todos os argumentos de sua orientação, o enunciador justifica os motivos que escreve

a para o co-enunciador. Ao enunciar e guarde a todos os que lerem este papel, que foi

vontade sua, o enunciador revela que a epístola fora encomendada pelo co-

enunciador, por meio de um contato anterior. Trata-se de uma carta que responde a um

incômodo do co-enunciador, que pede os aconselhamentos do enunciador, observando

nele seu porto-seguro. O enunciador assume o papel de orientador e o co-enunciador,

de orientado, o que nos possibilita afirmar que se trata de uma orientação doutrinária

que tem, como ponto de partida, uma confissão anterior.

Além de tratar-se de uma orientação doutrinária, a concebemos como uma

orientação pessoal, espiritual e institucional. A escrita da epístola, como identificada no

enunciado que este indigno, e miserável, inutil, falso, e mentiroso a Deos, de sua

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vontade o escrevesse, foi obra de livre e espontânea vontade do enunciador que se

dedica à Gloria, honra e bem de todas as Almas. A orientação se faz pessoal, uma vez

que o enunciador se propõe a orientar o co-enunciador de livre e espontânea vontade,

em seu particular, na escrita de uma epístola que se supõe personalizada, que pode

servir somente a seu destinatário. Encontramos, no decorrer do Recorte 1, enunciados

como Guardai ao menos este papel, que algum dia póde ser que me aproveite do que

elle diz., que revelam proximidade e afetividade do enunciador com o co-enunciador, o

que torna o discurso pessoal.

Os enunciados constituem-se a partir da influência das formações discursivas da

instituição religiosa da qual o enunciador faz parte e representa. O enunciador afirma-

se institucional na medida em que enuncia ser seu papel, enquanto frei e religioso,

cuidar da Gloria, honra, e bem de todas as Almas, e que a epístola dirigida ao co-

enunciador pode servir de orientação a outros fiéis. Faz parte do trabalho missionário

do religioso seiscentista semear as doutrinas religiosas e espirituais, com o intuito de

livrar todas as Almas dos atos pecaminosos que serão julgados no dia do juízo final. A

missão de doutrinar o fiel, além de adequá-lo à instituição Igreja Católica, também tem

por finalidade reforçar sua espiritualidade, uma vez que o enunciador assume a função

de mediador entre o divino e o fiel. Trata-se de um porta-voz que auxilia o co-

enunciador a compreender melhor sua fé e sua ligação com Deos.

As cartas selecionadas são desenvolvidas a partir de um contato anterior do

enunciador com co-enunciador, ou seja, possuem uma temática pré-ordenada pelo co-

enunciador, que tem o desejo de ser orientado pelo enunciador. Contudo, mais do que

uma orientação doutrinária pessoal, as cartas espirituais selecionadas são cartas-

resposta que se assemelham, muitas vezes, com as epístolas doutrinárias de São

Paulo, no discurso bíblico, já que busca orientar seu fiel espiritualmente, evidenciando

a necessidade de que só é possível alcançar a espiritualidade plena se adequar-se às

doutrinas institucionais religiosas, como observa-se no recorte abaixo:

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Recorte 2

Senhora: as arvores podem estar cheyas de fructos, e juntamente estar verdes,

e com alguma flor: nas do espírito requere-se, que se acabe a flor, e que se acabe a

verdura, para chegar à transformaçaõ de Christo crucificado, que he o que eu prego,

sem ser S.Paulo: e assim deve estar crucificado tudo na árvore da mortificaçaõ, que eu

estimo mais que a Oraçaõ. Necessario he que se seque a flor da discriçaõ,e se seque

a verdura de nossas paixoes e inclinaçoes naturaes, e que se ponha todo o cuidado em

sazonar os fructos das obras virtuosas, sem que concorra a arvore para a folha, e para

a flor com a substancia, que tira os fructos.

O recorte 2, retirado da carta VI, evidencia que a finalidade da carta é doutrinar o

co-enunciador ao posicionamento institucional e espiritual defendido como ideal pelo

enunciador. Para isso, o enunciador faz uso de um processo metafórico que busca

referências de outros campos discursivos, no caso o da botânica, ao enunciar o

amadurecimento dos frutos e o nascimento de flores em uma árvore, para alcançar, no

co-enunciador, a compreensão da fé cristã e adesão ao posicionamento do campo

discursivo religioso. A partir de uma analogia entre a natureza e a espiritualidade, o

enunciador constrói seu discurso doutrinário.

No enunciado as árvores podem estar cheyas de fructos, e juntamente estar

verdes, e com alguma flor, as árvores cheias de frutos são aquelas muito produtivas,

que alimentam o homem e, portanto, são boas. Contudo, uma árvore com frutos verdes

é aquela que ainda não está preparada para alimentar o homem, deve esperar o tempo

de seu amadurecimento para exercer seu papel de fruto bom para o alimento humano.

Ao propor tal analogia, o enunciador possibilita o efeito de sentido de que o espírito

deve ter seu tempo de amadurecimento, independente dos frutos que possui. A

analogia tem por função, na enunciação, aderir o co-enunciador ao posicionamento do

enunciador.

Em assim deve estar crucificado tudo na árvore da mortificaçaõ, que eu estimo

mais que a Oraçaõ, o enunciador pressupõe que o caminho ideal para o

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enriquecimento espiritual é, mais que a oração de contemplação, a compreensão dos

sacrifícios mundanos a que o missionário religioso deve se sujeitar. Uma árvore com

frutos não está preparada para alimentar o homem, pois os frutos não estão maduros;

porém, uma árvore sem frutos é aquela que já alimentou os homens, já exerceu sua

função missionária, ou seja, os frutos já amadureceram e já serviram de alimento ao

outro. O enunciador associa uma árvore sem frutos com Christo crucificado e defende

o ponto de vista de que o missionário deve fazer germinar frutos bons, inspirados na

vida de Cristo, em seu trabalho religioso. Para atingir a condição de Christo crucificado,

é necessário esgotar os frutos a ponto de deixá-los amadurecer até que não se

sustentem mais na árvore.

O amadurecimento dos frutos, para o enunciador, pressupõe a renúncia da vida

mundana e seguir os caminhos institucionais propostos pela Igreja Católica. Cultivar

bons frutos e semeá-los significa executar boas missões, dar bons alimentos espirituais

e doutrinários aos homens e, no fim da vida mundana do missionário, ser uma árvore

sem frutos, mas ter cumprido com sua missão institucional que é alimentar o próximo

espiritualmente, através da doutrina cristã. O enunciador eleva o posicionamento

institucional da Igreja Católica e a espiritualidade cristã à idealização perfeita de uma

vida. O bom viver não significa desfrutar dos prazeres mundanos, das práticas que

exaltam o material, o corpo e o efêmero. O bom viver, observado e legitimado pelo

enunciador como o melhor a ser adotado, significa cumprir a missão institucional à qual

se é encarregado, com apego espiritual ao divino, sem privilegiar os atos pecaminosos

e efêmeros do mundo.

A antítese criada e a legitimação de um posicionamento sob uma de suas teses

é o que caracteriza o radicalismo do barroco seiscentista, observado no Cap. I de

nossa pesquisa. Em enunciados como Necessario he que se seque a flor da discriçaõ,

e se seque a verdura de nossas paixoes e inclinaçoes naturaes, o enunciador propõe

um distanciamento entre o missionário religioso e seu trabalho com a discrição, as

paixões e as inclinações naturais, características típicas dos homens mundanos que

não optam pela vida religiosa, ou estão distantes dela. Mesmo que não se trate de uma

antítese evidenciada em texto, ela emerge em discurso, nas formações discursivas que

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legitimam cartas espirituais como discurso religioso. No século XVII, os homens que

possuíam inclinações às paixões e aos sentimentos naturais do corpo eram

considerados pecadores perante a Igreja Católica, imorais em suas atitudes. Por se

tratar de um discurso doutrinário, o enunciador propõe orientar o co-enunciador de que

as inclinações à vida mundana são ruins, pois são caminhos opostos para se alcançar

o cume da perfeição espiritual. É o caminho proposto pela religião que tem como

função estabelecer o elo do homem ao divino, que direciona o fiel à perfeição. O

enunciador orienta que são pelas inclinações aos estudos bíblicos que há o

enriquecimento do espírito do fiel.

O uso do verbo sazonar, no enunciado e que se ponha todo o cuidado em

sazonar os fructos das obras virtuosas, sem que concorra a arvore para a folha, e para

a flor com a substancia, que tira os fructos., possibilita efeitos de sentido como o ato de

tornar madura as obras virtuosas, assim como dar bom sabor, temperar ou

condimentá-las. No trabalho missionário desempenhado pelo enunciador e pelo co-

enunciador, é necessário tornar maduro a compreensão das obras sagradas e, ainda,

ter a capacidade de aplicar suas doutrinas, adequando-as às condições socioculturais

seiscentistas. O trabalho missionário do religioso consiste em tornar clara a mensagem

do texto bíblico, segundo as coerções institucionais que influenciam na constituição da

espiritualidade seiscentista. O enunciador afirma, ainda, que se deve sazonar sem que

as partes da árvore concorram entre si, o que pressupõe que o fiel deve executar suas

funções levando em consideração as hierarquias impostas no trabalho missionário,

respeitando-as, haja vista que a hierarquia é, além de institucional, espiritual, já que a

Igreja e o Estado consistem na representação do corpo místico divino na Terra.

O enunciador preocupa-se em afirmar, no enunciado que he o que eu prego,

sem ser S.Paulo, que prega e semeia a vida de Christo crucificado, sem ser São Paulo.

A negação de sua semelhança com São Paulo não consiste em deslegitimar os passos

do santo, mas de admirá-lo a ponto de ser humilde perante a ele, ou seja, não ser tanto

quanto foi São Paulo em suas orientações epistolares. O papel assumido pelo

enunciador é semelhante ao papel social assumido por São Paulo quando compõe

suas epístolas para as comunidades que visitava em suas peregrinações. São Paulo

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ensinava as máximas cristãs e compôs parte representativa do Novo Testamento

bíblico a partir do discurso epistolar. A epístola de Paulo aos romanos, sexto livro do

Novo Testamento, por exemplo, trata da salvação do homem que é oferecida por meio

do Evangelho de Jesus Cristo. Considerada como a epístola mais importante do legado

teológico cristão, nela, Paulo pressupõe que todo e qualquer tipo de prática social deve

realizar-se à luz da vida e das palavras de Cristo crucificado. O enunciador realiza

trabalho semelhante, mas não pode se igualar a Paulo devido à grandeza deste.

Enunciativamente, ao referir-se inferior a Paulo, pretende provocar no co-enunciador a

associação de um discurso a outro. Esta associação tem por finalidade validar o

discurso da carta em semelhança, mesmo que em nível menor, às cartas paulíneas e,

consequentemente, ao discurso bíblico do Novo Testamento.

Assim, o desenvolvimento temático é marcado por pontos de vista que revelam o

posicionamento institucional do enunciador no aconselhamento que se compromete

pessoal e espiritual. Ao mesmo tempo que o enunciador assume um papel de amigo

pessoal e orientador missionário do co-enunciador, há a doutrina de um

posicionamento religioso e espiritual que norteará a maneira de ver e de ser na prática

social. O papel assumido pelo enunciador na enunciação é polêmica, pois no decorrer

do desenvolvimento temático de Cartas Espirituais, pretende provocar, como podemos

observar no recorte abaixo, a adesão do co-enunciador quer pelos dogmas

institucionais, quer pelas palavras de um conselheiro próximo que lhe quer o bem,

exercendo a função oras de um amigo, oras de um religioso missionário:

Recorte 3

Em meus pobres Sacrifícios, quanto posso, desejo merecer a V.S. a lembrança,

que tem de mim diante de Deos, e que vá a diante a concordia, que em todas as

cousas de V.S., e de sua casa, filhos, netos, e sobrinhos, se continuem, e augmentem

as felicidades d'Alma, e da vida, que lhe desejo. Mas em bons desejos se me vay tudo.

Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada. As melhores caldas do mundo,

saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e conformidade com Deos, caridade e paciência

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nas contrariedades, que desejamos. Se nestas se metter a Senhora Condessa, terá

quanto quizer de Deos, e saberá pacificar-se, naõ querendo de Deos nada, senaõ o

que elle quer, que sempre he melhor.

No recorte 3, pertencente ao corpo do texto da carta VII, o enunciador orienta

um co-enunciador fiel que não possui uma vida voltada à missão religiosa a apegar-se

a Deos em todos os momentos, inclusive os de contrariedade. O enunciador tem como

pressuposto legitimar o ponto de vista de que por mais adversa que é uma situação, ao

possuir a fé em Deos e compreendê-lo como onisciente e onipresente a tudo, tem-se a

tranquilidade ao encarar os problemas mundanos. Os papéis assumidos pelo

enunciador e pelo coenunciador são diferentes dos recortes 1 e 2, uma vez que nestes

tratam-se de co-enunciadores missionários, que assumiram o hábito e os votos da vida

religiosa, enquanto naquele, trata-se de um co-enunciador que não tem por hábito a

vida missionária, mas é um religioso que encontra no enunciador a segurança em

confessar-se e esperar uma resposta que acalme seu espírito incomodado.

O enunciador busca legitimar seu ponto de vista nos enunciados Mas em bons

desejos se me vay tudo. Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada., uma

vez que introduz a antítese vida mundana e devoção espiritual na enunciação do

recorte 3. Para o enunciador, todas as ações da vida mundana devem ser coordenadas

com a devoção espiritual e espontâneas do co-enunciador. O enunciador afirma-se

disposto a ajudar o co-enunciador, a orar por ele e pelos seus, mas afirma que nada

adianta se o co-enunciador não reproduzir em atos e obras a Deos as orações que

realiza e que lhe dedicam.

Os enunciados revelam a função social do enunciador ao buscar legitimar o

ponto de vista e doutrinar o comportamento espiritual do co-enunciador, nos

enunciados As melhores caldas do mundo, saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e

conformidade com Deos, caridade e paciência nas contrariedades, que desejamos. Ao

propor que o coenunciador deve apegar-se a Deus acima de tudo, compreendê-lo

onisciente, onipotente e onipresente de todas as ações mundanas, o enunciador afirma

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a necessidade do compromisso espiritual do fiel orientado. Identificamos que Graça de

Deos é posto em simetria com santa Oraçaõ, o que pressupõe o apego a Deos uma

busca pela adequação espiritual do co-enunciador e a oração, uma legitimação

institucional, já que as orações católicas distinguem das orações protestantes, mesmo

ambas pautando-se no mesmo discurso bíblico. Assim, o enunciador possui, no

discurso da carta VII, a função de orientador doutrinário espiritual e institucional.

Nos três recortes analisados, a organização temática dos enunciados possibilita

compreender as cartas espirituais selecionadas como discurso passível de ser situado

no campo discursivo da literatura barroca seiscentista. O enunciador desenvolve e

organiza os enunciados de seu discurso de forma a estabelecer um jogo de ideais e

conceitos típicos do cultismo e do conceptismo barrocos. A opção por um estilo cultista

e conceptista tem como pressuposto a busca de adesão do posicionamento do co-

enunciador e a construção de enunciados que revelem respostas para os anseios da

sociedade seiscentista, hiperenunciados por um SUJEITO-UNIVERSAL.

A relação das cartas espirituais selecionadas com a realidade literária do barroco

português não deve ser ignorada, pois a presença do sagrado e do profano, o

predomínio de antíteses, são abundantes, colocando Chagas como um grande cultor

da época. Assim como em um poema barroco, na amostra selecionada, há

emancipação do espírito e o desapego do corpo, pois este é compreendido pelo

enunciador como uma passagem, é efêmero e vai embora. O discurso religioso da

época lida com a concepção de que se deve viver para evitar os pecados e limpar a

alma pecadora, como se a vida mundana fosse apenas uma passagem para o caminho

espiritual. Tal característica é reproduzida não só nas cartas em análise como também

em obras representativas do barroco português.

Já acerca da espiritualidade do século XVII, os temas das cartas espirituais em

análise resumem um conjunto de formas de orar, que difundem a oração metódica. No

século XVII, o que entusiasmava os devotos eram as visões e revelações de milagre

exploradas em sermões e cartas eclesiásticas, o que é desmotivado por Chagas no

desenvolvimento do tema, ao passo que frisa aos destinatários sua condição não de

profeta, mas sim de servo indigno tal qual seus orientandos. Assim, a orientação busca

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conseguir, através da doutrina cristã e espiritual, um resultado prático nos deveres

mundanos. Para isso, Chagas utilizará como base os valores de espiritualidade da

época, a fim de transmitir saberes doutrinários. O discurso religioso retrata que o

caminho da espiritualidade é a adequação ao mundo social, e, na condição de

sociedade teocêntrica do século XVII, só é possível conceber harmonia entre o mundo

das coisas e o mundo espiritual, se prevalecer a qualidade de fiel missionário que

detém uma função divina no mundo terreno, o que é extremamente marcante no

desenvolvimento temático das cartas em análise.

Cartas espirituais possuem uma regularidade estilística e estrutural

relativamente estáveis, já que Chagas constituiu um padrão de escrita que foi base

para muitas outras orientações epistolares no decorrer do século XVII e XVIII. Ficou

famoso em Portugal pela prática adotada, e pelos bons resultados que elas

desencadeavam dentro do convívio religioso. Analisamos, assim, a estrutura e o estilo

das cartas que selecionamos como amostra de nossa pesquisa como registros que

consolidam a cenografia e o hiperenunciador na prática enunciativa.

3.3. As cenas da enunciação e a legitimidade da instância do hiperenunciador

como formas de adesão do posicionamento do co-enunciador

Os dispositivos que definem o lugar e uma forma de enunciar preestabelecida

são a cena englobante e cena genérica. Em Cartas Espirituais, tratam-se,

respectivamente, do discurso religioso e da orientação espiritual.

A cena englobante pressupõe os tipos de discursos a que pertencem os

enunciados. O tipo de discurso que constitui nossa amostra de pesquisa é o religioso,

com um atravessamento dos discursos da espiritualidade e da literatura seiscentista.

Para que um discurso seja legitimado como religioso na sociedade portuguesa do

século XVII, é imprescindível o contato com as formações discursivas da teologia

medieval. Pensadores como Santo Agostinho, Tomás de Aquino, dentre outros,

constituem a base de compreensão dos textos bíblicos para o enunciador e o co-

enunciador de nossa amostra. As condições sócio-históricas de Portugal, as reformas

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religiosas e científicas e o pensamento barroco influenciam na maneira com que o

enunciador exerce sua função de orientador espiritual e definem um quadro espaço-

temporal na enunciação peculiar dos seiscentistas religiosos, como identificamos no

recorte abaixo:

Recorte 4

Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora. Senhora, bem fora de tudo.

Isto he o que eu aconselho. E naõ cuide V.S. que em ter grande paciencia no que lhe

digo, tem grande merecimento. Naõ basta huma virtude, saõ necessárias todas. Naõ

basta que, V.S. de tudo a Deos, senaõ que se dê a si despida até de si mesma: que

isto he o que este Senhor quer de nós mais que tudo.

No recorte 4, extraído da carta V, o enunciador orienta o co-enunciador à

necessidade de apegar-se a Deos acima de tudo. O enunciado Costumaõ dizer alguns:

ou bem dentro, ou bem fora introduz uma antítese entre fora e dentro, que possibilita a

escolha do co-enunciador por dois caminhos: ou estar dentro das experiências

mundanas, influenciado por elas, ou fora, ligado a Deos espiritualmente. A opção

constitui uma referência ao discurso bíblico que pressupõe o livre-arbítrio dos homens.

Contudo, no enunciado Senhora, bem fora de tudo., o enunciador orienta, segundo as

coerções da instituição de onde enuncia, qual o lugar ideal de dedicação espiritual para

o co-enunciador. Buscar respostas fora das experiências mundanas compreende-se

fazer uso do livre-arbítrio segundo São Tomás de Aquino, que afirmava que o homem

nasce predestinado a uma missão e o livre-arbítrio consiste em como ele irá

desempenhar essa missão na Terra sem se desvirtuar para outros caminhos.

Os caminhos da luxúria, do cientificismo, das práticas pagãs, das releituras

protestantes dos textos bíblicos, opõem-se à instituição a qual o enunciador representa

e, consequentemente, ao que ele observa como a doutrina ideal para seu orientado. O

enunciador legitima que a instituição a qual ele faz parte detém o caminho pelo qual se

atinge a salvação espiritual proposta nos textos bíblicos. A partir de um jogo de ideais e

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conceitos, como no enunciado Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora.

Senhora, bem fora de tudo., em que fora pressupõe dentro de Deos e dentro do

caminho da salvação espiritual e dentro o caminho da perdição da alma, há a

legitimidade do PDV do enunciador e a busca pela doutrina do co-enunciador.

A cena genérica, no recorte 4, define a funcionalidade do gênero quanto aos

papéis que serão exercidos pelo enunciador e pelo co-enunciador na enunciação,

levando em consideração os sistemas de coerções do lugar e do tempo do discurso

analisado. No recorte 4, a função do enunciador é cativar e orientar o co-enunciador,

legitimando um PDV enunciado como o ideal para se adequar às formações

discursivas da Igreja Católica seiscentista. Marca-se, no discurso enunciado, a

legitimidade da Igreja Católica como paradigma de conhecimento, conduta de vida,

manifestação da fé e vivência cotidiana do enunciador e do co-enunciador.

A cena englobante e a cena genérica constituem um quadro cênico na

enunciação. A formação do quadro cênico determina a cenografia do discurso

enunciado, que garante o dizer mostrado, o estilo, a estrutura dos enunciados emo

surgimento da instância do hiperenunciador. Esta instância assume a responsabilidade

de um SUJEITO-UNIVERSAL que mobiliza o aparelho enunciativo para legitimar o

PDV do enunciador e convencer o co-enunciador a aderir um posicionamento. A

orientação é essencial para a prática social do discurso religioso doutrinário e a

instância do hiperenunciador, que emerge, discursivamente, no decorrer do corpo do

texto de todas as cartas que constituem nossa amostra de pesquisa, é responsável por

validar os enunciados de orientação religiosa e institucional como verdades espirituais,

indiscutíveis e únicas na enunciação.

A seguir, analisamos a epígrafe e o corpo do texto de cada uma das cartas em

análise, sequencialmente, para identificarmos a instância do hiperenunciador. Temos

como objetivo identificar a mobilidade do hiperenunciador por meio dos aspectos que

fundamentam os diferentes pontos de vista expressos pelo enunciador e, ainda,

reconhecer, pelas formações discursivas impressas nas cartas espirituais

selecionadas, marcas da estética barroca e da espiritualidade do século XVII que

reforçam a mobilidade dessa instância.

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3.3.1. A epígrafe

As cartas que constituem a amostra de nossa pesquisa apresentam as

seguintes epígrafes:

O amor de Deos arda, e ferva em nossas almas – Carta I

O Amor de Deos more, e arda em vosso coração – Carta IV

O Amor de Deos more na Alma de V.M. – Carta V

O Amor de Deos arda, e ferva na Alma de V.S. – Carta VI

O Amor de Deos more na Alma de V.S. – Carta VII

O Amor de Deos more na Alma de V.S. – Carta VIII

O Amor de Deos more na Alma de V.M. – Carta XX

A epígrafe tem como função situar o co-enunciador ao lugar institucional do

discurso. Tudo que será enunciado após a epígrafe é conduzido e direcionado por um

sistema de coerções que determina o discurso como pertencente ao campo religioso. A

epígrafe pressupõe efeitos de sentido submetidos a uma espécie de filtro que propõe

um lugar de pertencimento reconhecido pelo co-enunciador.

Por se tratar de um discurso institucionalizado como religioso, há, na epígrafe, a

validação do estatuto do enunciador e do co-enunciador. O enunciador assume o papel

daquele que detém o poder de mediação entre a instância divina, no caso Deos, e o

co-enunciador. Os enunciados de epígrafe buscam mobilizar o aparelho enunciativo

elevando o enunciador ao status de um porta-voz de uma entidade maior, ou seja, de

um SUJEITO-UNIVERSAL divino. O co-enunciador, por sua vez, é projetado na

enunciação como um receptor passivo na mediação, crente e consciente de sua

passividade e dependente da mediação do enunciador. Essa relação, se não for

realizada, implica o comprometimento da prática social do gênero.

O estatuto do enunciador é constituído pelo lugar institucional que ele ocupa.

Como Frei, o enunciador está autorizado na prática social a exercer o papel de

mediador entre Deos e o co-enunciador fiel. O papel assumido pelo enunciador garante

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legitimidade ao enunciado de epígrafe, que só pode ser outorgado pelo enunciador

autorizado institucionalmente.

As palavras Amor e Deos se repetem em todos os enunciados do Recorte 5. A

expressão Amor de Deos, utilizada como sujeito simples em todos os enunciados,

possibilita-nos compreender que se trata de um sentimento que realiza ação sob

alguém, identificado na enunciação como nossas ou vossos - o qual o enunciador se

inclui na enunciação - e V.S. - da qual se exclui. O fato de incluir-se na enunciação de

epígrafe revela que o enunciador coloca-se em igualdade com o co-enunciador. Ao

excluir-se, o enunciador não se refere ao co-enunciador como um tu, mas utiliza um

pronome de tratamento que acentua sua importância social, ora com V.S., ora com

V.M.

A inversão de um sentimento realizando a ação sob alguém e não alguém

sentindo o Amor de Deos é uma marca do estilo cultista do barroco seiscentista, que

subverte o que é regular na prática social para destacar um posicionamento

determinado. O fato de Amor de Deos ser sujeito da ação nos possibilita refletir que

Deos é quem age pelo fiel, que o fiel é meio pelo qual Deos se manifesta, é parte de

um todo, o que recupera o paradigma teológico da época: o indivíduo é desde o

nascimento predestinado por Deos. O livre-arbítrio consiste em cumprir as missões

pelas quais Deos determinou o indivíduo, e cumpri-las bem em sociedade. O indivíduo

é dependente da graça, do julgamento e do Amor de Deos. Já de início, o enunciador

marca essa necessidade do homem com Deos e não de Deos com o homem.

A locução Amor de Deos compreende o Amor que Deos sente pelas coisas e

pelos seres. Deos, na perspectiva do indivíduo seiscentista, é onisciente e onipresente,

pois tudo passa por sua ciência e julgamento. Deos, para os fiéis, ao abençoar e punir,

não é mal nem parcial, pois realiza todas suas ações sob o sentimento de Amor e

justiça divinas. As punições pelas quais o fiel é submetido são boas para Deos e,

consequentemente, boas em sua essência, mesmo que o fiel não as compreenda

dessa maneira. O ser mundano tem, para os religiosos, uma visão limitada sob o

julgamento e o amor de Deos.

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Quando o enunciador afirma a necessidade do Amor de Deos como essência

para o co-enunciador, compreende a condição de fé e amor que o fiel religioso deve ter

com o julgamento divino. O enunciador reforça a noção de que os julgamentos e as

bênçãos realizadas pela instituição Igreja Católica devem ser compreendidos para o

julgado em semelhança com o julgamento divino, se tais ações são realizadas sob a

luz do Amor de Deos.

Os verbos arda e ferva nos possibilita a compreensão de que o Amor de Deos,

em sentido metafórico, deve ser a chama que aquece o corpo do enunciador e do co-

enunciador. Tanto arder como ferver nos remete ao sentido de estado de ebulição ou

desconforto que deva ser sanado. O Amor é um estado de desconforto positivo, que

incide na exteriorização de boas ações, de dedicação afetuosa com o outro, de

devoção e compreensão. O Amor é uma forma de ebulição da Alma e,

metaforicamente, do coração. No paradigma teológico seiscentista, a Alma é o que

determina e paga pelas ações do corpo. O corpo é efêmero, a Alma é eterna. A Alma

carrega as chagas e as virtudes das ações cometidas pelo corpo e é pela Alma que o

fiel aproxima-se e devota-se a Deos. Assim, o enunciador compreende que os

trabalhos e funções pelos quais os indivíduos são destinados devem ser realizados sob

a ebulição do amor divino.

3.3.2. Corpo do texto

3.3.2.1. Corpo do texto da Carta I

Recorte 5

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Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ,

ou morrer nos suspiros da devoçaõ. Seguir a Christo he o mais alto cume. O seguir a

Christo não consiste em cuidar altas cousas de sua Divindade, senaõ em seguir os

passos de sua vida, e crucifficada Humanidade. Oh quem fizera isto! Imitar, e seguir a

Christo he fazer o que elle fez, exercitar as virtudes, que elle exercitou; convém a

saber: louvar a seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e ser esta a tenção de

todas as nossas obras: ter misericórdia do proximo, ou seja maô, ou seja bom; se he

bom, amá-lo, pois Deos o ama, e se he mao, soffrê-lo, pois Deos o sofre.

A cenografia do Recorte 5 é a de uma orientação confessionária. O enunciador

refere-se ao co-enunciador como Irmaã, o que pressupõe relações de intimidade, ao

considerá-la pertencente à sua vida, e institucional, pois todos os fiéis são filhos de

Deos e irmãos de fé e espírito.

O ato de aconselhar pressupõe os papéis dos envolvidos na enunciação. O

enunciador é quem fala de um determinado lugar institucional e assume a autoridade

de mediador entre o divino e o fiel. O co-enunciador é quem pode assumir a adesão ao

ponto de vista dos enunciados do discurso e, ao ser identificado de forma

institucionalizada, buscar legitimar a função do enunciador, pois é quem pede o

aconselhamento e valida o discurso como verdadeiro. Sem essa relação, o discurso

religioso é insustentável.

A relação dos enunciados com a dêixis fundadora, que configura o arcabouço

coercivo do co-enunciador e do enunciador, nos enunciados Irmaã, ou morrer na

empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ ou morrer nos

suspiros da devoçaõ, marca o lugar institucional no qual o discurso é enunciado e o

respectivo tempo histórico. Os enunciados destacados refletem escolhas do co-

enunciador marcadas por oposições que determinam o que é ideal e o que não é ideal

para o fiel religioso. Ao enunciar ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, o

enunciador cria uma relação de antítese entre empresa e Victoria, morrer e alcançar.

Empresa pode remeter ao sentido de empregar-se dos ritos e cerimônias

convencionalizados pela instituição, mas que não refletem os passos de Christo, como

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identificado nos enunciados O seguir a Christo não consiste em cuidar altas cousas de

sua divindade, senaõ em seguir os passos de sua vida, e crucifficada Humanidade.

Também cria oposição entre divindade e humanidade, em sentido metaforizado,

alertando que o trabalho do fiel não é tornar-se divino, mas ser humano tal qual Jesus.

A oposição divindade e humanidade revela características do tempo histórico da

enunciação, durante o qual a Igreja Católica passa por reformas de suas bases

doutrinárias, em virtude, dentre outros motivos, da falta de compromisso missionário

dos religiosos com o trabalho de fé. O enunciador acentua a importância do ofício

religioso em aproximar-se dos passos de Jesus em sua humanidade, para que o

religioso não se confunda divino tal qual Jesus. O enunciador também chama atenção

para a função pré-determinada do religioso em doutrinar social e culturalmente o corpo

místico do Estado, que não tem um representante legítimo e enxerga na Igreja Católica

seu sucessor, mas que o religioso não ostente os luxos da nobreza, e sim sinta-se

munido da responsabilidade do rei do Estado, que é o nomeado divino que organiza o

corpo místico, representado como a cabeça do corpo do Estado.

Outra oposição significativa é morrer e alcançar, pois a morte é enunciada como

o fim de uma vida, ou de um ciclo, e alcançar a Victoria é a concretude desse ciclo,

com resultados positivos e a continuidade do trabalho missionário mesmo depois da

despedida do religioso do mundo terrestre. Para o enunciador, a morte é a pregação

sem frutos, o trabalho missionário sem resultados, o que justifica a antítese empresa e

Victoria. O jogo de conceitos é uma estratégia retórica do conceptismo barroco que

busca levar o co-enunciador à adesão do ponto de vista criado pelo enunciador, pois a

base que edifica o discurso cristão é a vida de Jesus, seu percurso terrestre até sua

divindade, e ignorar os passos de vida de Jesus é ir contra os fundamentos do

Cristianismo. A adesão do co-enunciador a uma resposta, se este é cristão, supõe-se

definitiva e inquestionável à antítese criada pelo enunciador.

Os enunciados Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar

ao monte da perfeiçaõ ou morrer nos suspiros da devoçaõ, são particitados da voz do

enunciador, que utiliza de um Sujeito-universal hiperenunciado para expandir seu ponto

de vista, como identificamos em O seguir a Christo não consiste em cuidar altas cousas

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de sua divindade, senaõ em seguir os passos de sua vida, e crucifficada Humanidade.

Oh quem fizera isto!. O hiperenunciador legitima os pontos de vista criados no discurso

como verdadeiros e serve de referência para a orientação do enunciador, o que

também ocorre no enunciado louvar o seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e

ser esta a tençaõ de todas as nossas obras, em que se tem o posicionamento do

enunciador às antíteses particitadas.

Ao afirmar que as glórias e honras das obras religiosas são do Eterno Pay,

silogismo de Deos, o enunciador pressupõe que o religioso é missionário em função, e

não detém bens materiais, luxos, riquezas ou quaisquer benefícios que sirvam para

desviá-lo de suas obrigações institucionais. Todas e quaisquer honrarias em virtude

dos trabalhos de fé devem ser ofertadas ao Eterno Pay, pois o religioso é mediador de

Deos e do fiel. O pronome nossas inclui o enunciador no papel de servo inutil, de Irmaõ

sem proveito, tal qual o enunciador assina e identifica-se no final da epístola, o que

eleva ainda mais as possibilidades de adesão e doutrinação do ponto de vista do co-

enunciador. Ser inutil e sem proveito, para o enunciador, significa ser apenas meio pelo

qual Deos se manifesta ao fiel. Deos é tudo, a alma e o apego a Deos é o caminho

ideal para a salvação, a ostentação das glórias e a centralização das palavras divinas à

figura humana do religioso é o caminho oposto que morre e fecha o ciclo de

ostentações materiais e não orientam espiritualmente o fiel.

Os enunciados do Recorte 5 servem como ponto de partida para o

aconselhamento ao fiel, pois a temática predominante de apego ao exemplo dos

passos de Christo será retomada nos enunciados seguintes. Não se trata de um

recurso particular do enunciador, mas sim a maneira com que os cultores religiosos da

época organizam seus discursos doutrinários, visando à criação de uma definição, uma

contradefinição e a defesa final de um argumento.

O cuidado estético em iniciar o discurso com enunciados particitados que, ao

criarem a antítese, inferem um argumento de predominância que faz parte de um

cânone, é tomado como um ponto de partida possivelmente aceito na memória

discursiva do co-enunciador que assume uma função na instituição religiosa, como

observamos no enunciado seguir a Christo he o mais alto cume. A contradefinição

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reforça a definição hiperenunciada e valoriza o argumento presente no discurso

religioso, o que é um recurso recorrente no barroco. As antíteses empresa, Victoria,

monte da perfeiçaõ e suspiros da devoçaõ, referem-se à morte durante o trabalho

missionário, que foi uma característica de Christo. No entanto, Ele transcendeu a

simples morte, o fim do ciclo, deixando na história seus ensinamentos e seu exemplo.

O mesmo podemos observar na sua busca pela perfeição espiritual, que só é

alcançada em sua crucificação e pelos atos praticados, em equilíbrio com a devoção,

ou seja, sua dedicação e veneração a Deos. As antíteses fazem parte do próprio

percurso de vida de Christo, determinando, ao estabelecer oposições, a preferência de

um trabalho coletivo de práticas institucionais e doutrinárias com a sociedade e a

cultura local, e um trabalho mais introspectivo, centrado no engrandecimento espiritual,

ou a reprodução de conceitos católicos na prática missionária exigida pela instituição.

Os enunciados que finalizam o recorte 5, ter misericórdia do proximo, ou seja

maô, ou seja bom; se he bom, amá-lo, pois Deos o ama, e se he mao, soffre-lo, pois

Deos o soffre, serve de ponto de partida para os temas dos enunciados seguintes. O

enunciador propõe que o trabalho missionário deve contemplar todos os tipos de

homens, sejam bons ou maus. O julgamento de bom e mau tem como referencial as

coerções do campo discursivo religioso da Igreja Católica. É, assim, institucional e

arbitrário. A necessidade do trabalho missionário é integrar os homens aos sistemas de

coerções do campo discursivo religioso que determina o funcionamento político e social

de Portugal no século XVII. Novamente, ao retomar Santo Agostinho, lembramos que,

no século XVII, as leis do Estado eram inspiradas pelas leis divinas interpretadas, no

caso dos países católicos, pela instituição Igreja Católica. O trabalho missionário no

século XVII faz-se, então, político, social, cultural, espiritual e religioso.

Recorte 6

Haveis de desejar a salvaçaõ de cada hum, como a vossa mesma. Tanta pena

vos ha de dar vêr que se perde qualquer Alma, como se fôra a vossa propria: se nao

fazeis isto pefeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente. Vede vós, que

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poucos a guardaõ! Chorai isto muito. Porque Deos, que tenha piedade dos maos, sem

vos escandalizar de nenhum. Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo

fôra Santo!

Nos enunciados Haveis de desejar a salvação de cada hum, como a vossa

mesma. Tanta pena vos ha de dar vêr que se perde qualquer Alma, como se fôra a

vossa propria, há presença de uma instância hiperenunciada que desloca a voz do

enunciador para um sujeito-universal que particita a concepção de vida missionária de

Jesus. Os enunciados do recorte 6 possuem relações de ampliação do tema que

predomina nos enunciados do recorte 5, servindo de argumento para validar a

definição do pregador de vida ativa e menos contemplativa: o fiel deve espelhar-se na

vida e nos passos de Christo para realizar o trabalho missionário dentro do que

pressupõe a Igreja Católica.

O enunciador utiliza de uma instância hiperenunciada para definir a importância

do trabalho missionário, a salvaçaõ de cada hum, bem como a forma com que deve ser

compreendida como a vossa mesma. Pressupor que a salvação do outro deve ser

encarada como a própria salvação do religioso é compreender que os homens

constituem uma unidade mística, como uma espécie de corpo que representa um todo.

Se as partes vão mal, o todo vai mal. Ao observar o papel político que a instituição

Igreja Católica detém no século XVII, e, ainda, os religiosos e seus discursos, cujo

intuito é orientar, dentro de Portugal, as pessoas a se adequarem aos valores éticos,

culturais e sociais, suprir uma ausência de representatividade com a coroa espanhola e

a ausência da cabeça racional do corpo místico do Estado, que é o símbolo de controle

institucional do Estado português, o enunciado se naõ fazeis isto perfeitamente, naõ

guardais a Ley de Deos perfeitamente revela qual o papel institucional e pré-

determinado do religioso no século XVII.

Os enunciados revelam referência ao pensamento medieval da sociedade

organizada por estamentos com papéis pré-definidos por suas funções: se os escravos

são os membros do corpo místico do Estado, o clero passa a assumir a função de

cabeça, orientando os homens para a salvação do espírito. Essa é uma missão divina,

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como observamos nos enunciados particitados, que se pragmatiza pelo trabalho

missionário institucional da Igreja Católica.

Compreender que o trabalho de doutrina espiritual oferta a salvaçaõ do homem

dos pecados mundanos é uma característica do pensamento seiscentista, que

delimitava forte dualidade entre o carpediem do corpo e o carpediem do espírito,

opondo-se, de certa forma, ao pensamento renascentista. Ainda, por se tratar de um

discurso marcado pelas influências institucionais, a salvaçaõ do não fiel da Igreja

Católica significa mais adeptos à própria instituição que busca renovar-se, passa por

crises de legitimidade e possui forte concorrência com a hegemonia dos protestantes.

Se a salvaçaõ do outro é espiritual, também é religiosa, no sentido de que é uma

salvaçaõ de influência institucional, posto que o discurso particitado institucionaliza os

aconselhamentos enunciados.

Ainda nos enunciados particitados, o enunciador valida seu ponto de vista,

introduzindo o argumento por uma instância hiperenunciada. Muito comum em

discursos religiosos da época, dentre os cultores que mais utilizavam essa estratégia

estava Pe. Antônio Vieira, com seus Sermões, que ao iniciar uma prosa doutrinária, o

primeiro argumento ou era um enunciado diretamente citado do Thesaurus bíblico ou

uma particitação que desloca a voz do enunciador para segundo plano, e quem lhe

toma o lugar é uma instância que tem por fim tornar verdade única o ponto de vista

defendido nos enunciados seguintes. No recorte 6, identifica-se claramente o

deslocamento enunciativo de um hiperenunciador para um enunciador no uso do

aposto se não fazeis isto perfeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente, em

que o enunciador conclui os enunciados particitados, como se os tivesse explicando ao

co-enunciador, alertando-o de que o não cumprimento deles não é uma negação ao

que o enunciador afirma, mas às Leys de Deos, que tal qual compreende Santo

Agostinho, são base para as Leis Naturais dos homens e as Leis do Estado.

Nos enunciados por que Deos, que tenha piedade dos maos, sem vos

escandalizar de nenhum e Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo fôra

Santo!, o enunciador conclui o ponto de vista proposto pelos enunciados particitados,

ao afirmar que o religioso missionário deve ter piedade daqueles que desvirtuam as

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Leys de Deos, pois Deos tem piedade deles. Contudo, a piedade expressa é sem

escândalos, no sentido de comover-se e encobrir passivamente aquelas ações que se

opõem à doutrina. Nas mudanças que ocorreram na organização institucional da Igreja

Católica no século XVII, com o Concílio de Trento, uma das propostas foi o Tribunal do

Santo Ofício, que tinha por finalidade julgar e condenar as práticas dos fiéis e dos

homens dos Estados católicos que se diziam pecaminosos e ameaçavam a salvação

cristã. Muitas obras e muitos artistas que compactuam do pensamento renascentista,

antropocêntrico e cientificista, que se opunham às estruturas culturais da Igreja

Católica, foram julgados e condenados pela inquisição. Assim, ao enunciar que deve-

se ter piedade dos maos, sem vos escandalizar, a missão institucional é garantir a

salvação dos homens, mesmo que para isto os homens tenham que passar pelo

julgamento do corpo, dos achaques da carne para lhe purificar o espírito. O enunciador

atribui a prática à doutrina do Ceo, isentando o julgamento institucional, e que é Santo

aquele que a pratica com esmero. Não é a Igreja Católica quem julga e condena de

forma arbitrária, mas a Igreja Católica seguindo as doutrinas do Ceo, racionalizadas

pela onisciência e onipresença de Deos.

Recorte 7

Melhor he, Irmaã, obrar bem, que conhecer o bem. Por isso a santidade naõ

consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar. Mais val hum dia, em que andais

fazendo obras de charidade, ou de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que

estar hum mez em contemplaçaõ, extasis, e em raptos. Por que isto he comer a iguaria

sem a merecer, e aquillo é merecê-la, ainda que não a chegueis a comer. Finalmente,

naõ tenho tempo, ainda que a maré he boa. Lembraivos do que aqui vos digo. Entendei

que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem.

O enunciador orienta o co-enunciador sobre o trabalho missionário religioso, e

vale-se dos argumentos contidos e analisados nos recortes V e VI para posicionar-se

acerca de um ponto de vista específico: obrar bem (...) que conhecer o bem.

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Novamente, há uma antítese presente e criada pelo enunciador, ao enunciar obrar e

conhecer. No recorte 6, o enunciador valoriza o trabalho prático do religioso, sua

atuação missionária e institucional, em detrimento de sua contemplação espiritual e o

estudo dos conhecimentos teológicos contidos nos passos e na vida dos cânones

cristãos. O mesmo acontece no recorte 7.

No enunciado mais val hum dia, em que andais fazendo obras de charidade, ou

de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que estar hum mez em

contemplaçaõ, extasis, e em raptos, o enunciador deixa claro o ponto de vista

defendido na enunciação, o que no recorte 5, nos enunciados introdutórios ou morrer

na empresa, ou alcançar a victoria, ou chegar ao monte da perfeiçaõ, ou morrer nos

suspiros da devoçaõ, fica implícita sua adesão a um dos pontos de vista criados, já que

ele oferece ao co-enunciador a possibilidade de escolha. No recorte 7, a escolha

independe do co-enunciador, haja vista o uso dos termos melhor he, naõ consiste e

mais val.

O destaque que o enunciador concede às obras de charidade, paciencia,

obediencia e humildade revelam a razão de seu aconselhamento. Ao enunciar o que

mais val e listar trabalhos religiosos que implicam o bom comportamento, na aceitação

do outro, podemos pressupor a prática contrária do co-enunciador no trabalho religioso.

Por tratar-se esta de uma orientação religiosa, tudo que é enunciado como ideal e

necessário para o trabalho missionário é refletido como contrário na prática social do

co-enunciador até o momento da orientação.

A seleção das palavras revelam o tipo de personalidade que um religioso cristão

deve ter em seu trabalho missionário, e o conhecimento da necessidade de ser

caridoso, humilde, paciente e obediente são adquiridos pela contemplação das

doutrinas católicas e pelo estudo da vida e dos atos dos Santos. A contemplação só faz

sentido se refletida na prática do dia-a-dia do religioso. Podemos conceber que o co-

enunciador é mais contemplativo do que participativo no dia-a-dia institucional. Porém,

sua missão, ou função religiosa, consiste em realizar obras e não em contemplar o

espírito em extasis e raptos.

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No enunciado Mais val hum dia, em que andais fazendo obras de charidade, ou

de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, o repertório semântico das palavras

que configuram o bom obrar do religioso aconselhado carrega inferências tanto do

discurso teológico do Thesaurus bíblico quanto do discurso institucional da Igreja

Católica. A palavra charidade pode ser compreendida como a ação que beneficia o

próximo sem que aquele que realiza a ação almeje quaisquer recompensas ou

retornos. A prática de caridade está relacionada a atos voluntários de bondade, amor

ao próximo, compaixão, assim como ao cumprimento de um dever sem a cobiça da

recompensa. No cristianismo, a caridade refere-se à forma de compreender e pregar as

doutrinas e os ensinamentos divinos com amor. O amor que não é do religioso que

prega, mas de Deos refletido no pregador.

A caridade é o alimento da alma cristã que apaga os pecados do corpo e

estabelece um contato maior do religioso com Deos. Consiste também em reatar a

relação do fiel com o corpo místico divino, uma vez que a caridade pode ser

compreendida, a partir do (1 cor. 6-27), como: se um membro sofre, todos os membros

compartilham seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros

compartilham sua alegria. Ora vós sois o Corpo de Cristo e sois seus membros, cada

um por sua parte, refletindo que a caridade é uma forma de conceber o trabalho

religioso como um ato de comunhão ao benefício de todos os religiosos. A caridade,

assim, é fim para todas as ações cristãs, levando em consideração que suscita a

reciprocidade e o amor, ampliando o elo entre aquele que realiza a ação com Deos e o

próximo que a recebe. O trabalho missionário só é realizado com amor e caridade se o

religioso compreende os passos de Cristo e a importância teológica e espiritual de suas

ações.

A oração contemplativa é importante para o entendimento do papel que o

missionário deve cumprir institucionalmente, pois eleva o espírito do fiel ao contato de

Deos e oferece condições para o trabalho missionário. Contudo, o enunciador subverte

a condição de caridade, afirmando que ela se dá, principalmente e de forma mais

efetiva, no dia-a-dia institucional da Igreja Católica. Ao enunciar por isso a santidade

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naõ consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar, o enunciador determina o

valor da contemplação em detrimento do ato de obrar.

A oração, para o enunciador, é segundo plano, posto que o que vem primeiro

são as ações realizadas como atos de fé em semelhança com os Santos e Jesus

Cristo. O jogo de ideias utilizado pelo enunciador é uma característica comum no

conceptismo barroco. Na enunciação, ele eleva a importância do ato em detrimento da

contemplação, mesmo estando em desacordo com o discurso teológico que não

propõe níveis de prioridade entre obrar e orar. No entanto, os enunciados não

subvertem o campo discursivo religioso, mas instaura a polêmica em conformidade

com a dêixis fundadora presentes nos dogmas institucionais. O discurso é enunciado

sob as bases edificatórias das práticas sociais anteriores que servem de arcabouço

para as coerções do enunciador e do co-enunciador.

Na prática social do século XVII, a instituição Igreja Católica necessita de

religiosos que conquistem fiéis. O foco da orientação enunciada é garantir o

funcionamento institucional da Igreja Católica. A humildade significa a ausência do

orgulho, o rebaixamento voluntário, a modéstia e a submissão. No cristianismo, a

humildade consiste no sentimento de que todas as conquistas dos fiéis são conquistas

de Deos. A compreensão do cristão está na revelação das palavras de Deos, ou seja, a

compreensão da verdade e dos caminhos corretos a serem seguidos não é fruto da

inteligência do religioso, mas depende da graça divina. O conceito cristão de humildade

isenta quaisquer arbitrariedades dos discursos religiosos institucionalizados. Tudo que

é dito pressupõe a homologação de uma graça divina superior, que não é a

organização institucional nem o enunciador, sendo eles apenas meio pelo qual se

manifestam as doutrinas cristãs.

Da humildade, pressupõe-se a obediência como princípio de vivência cristã.

Obedecer é o dever de todo cristão que ouve a voz de Deos, sendo a finalidade da vida

o caminho da obediência para o atendimento das missões que lhe são determinadas.

Na cultura cristã, a desobediência de Adão causou a condenação dos homens, e a

obediência de Cristo, a justificação. Aqueles que servem a Deos devem obedecer aos

mandamentos do Senhor e cumprir com suas missões, assumindo os compromissos

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de alma e corpo. A responsabilidade missionária não é uma obrigação do religioso,

mas uma aliança de amor com seu dever, o que é retomado posteriormente pelo

enunciador, ao observar as falhas do co-enunciador no desenvolvimento dos trabalhos

missionários. A obediência constitui-se das atitudes sinceras no trabalho missionário,

posto que Deos é onipresente, onipotente e onisciente.

A paciência cristã consiste no estado de fé do fiel em conceber que Deos sabe

qual o melhor tempo para tudo, por ser onipresente e amoroso. O conceito cristão para

paciência está ligado ao significado de tolerância, em que o fiel aguenta todas as

dificuldades necessárias e persevera, com a esperança do Céu. Trata-se de uma

síntese da fé cristã em atingir o Reino dos Céus. Na enunciação, quando o enunciador

propõe uma antítese entre as obras de caridade, humildade e obediência e a

contemplação de raptos e êxtases, ele faz uso das características que edificam a

essência do religioso cristão para opor ao ato contemplativo e legitimar seu ponto de

vista. Pressupõe-se que o co-enunciador, se cristão, não tem outra escolha senão

aderir aos posicionamentos do enunciador.

No enunciado Por que isto he comer a iguaria sem a merecer, e aquillo é

merecê-la, ainda que não a chegueis a comer., há um discurso particitado que se

destaca perante os demais, hiperenunciado por uma instância que torna universal os

aconselhamentos do enunciador, a partir de uma ressignificação dos argumentos

anteriormente expostos, ancorando-os em um juízo de valor social, presente na

memória discursiva dos envolvidos da enunciação.

O discurso particitado retoma as antíteses criadas anteriormente pelo

enunciador em obrar e conhecer o bem, legitimando um ponto de vista e um

determinado valor no sentido da antítese. Obrar bem é merecer comer iguarias, sem vir

a comê-las. Conhecer o bem é comer a iguaria sem merecê-la. A comparação

hiperenunciada poder ser compreendida como o ato de louvar e repetir os dogmas e

ensinamentos de Cristo, sem os colocar em prática na vida missionária. O religioso que

adota esta prática, para o enunciador, é aquele que carrega o título e recebe as

honrarias do trabalho missionário e institucional sem realizar suas obrigações da

maneira que deveria. Comer iguarias é ter o reconhecimento material do trabalho

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missionário, que se opõe ao trabalho de caridade do religioso que, mesmo o

merecendo, não vem a comê-la. Para legitimar o ponto de vista defendido, o

enunciador faz uso do discurso particitado que homologa a enunciação em argumentos

universais, quase que teológicos, mesmo pressupondo um compromisso institucional:

orientar o co-enunciador a realizar as missões que lhe são passadas.

A orientação missionária do recorte 7 é argumento para a advertência que o

enunciador aplica à religiosa orientada. Em resumo, o discurso particitado legitima os

argumentos defendidos pelo enunciador, torna válido seu ponto de vista sobre a vida

missionária e atribui valor ao ato de contemplação doutrinária sem a praticidade

institucional da mensagem contemplada.

O enunciador afirma que a maré he boa para o trabalho missionário, o que

sugere uma referência às condições sócio-históricas da religião católica do século XVII.

Portugal vive sob a fragilidade de não ter um rei que os represente. A coroa espanhola

usa das possessões portuguesas e de suas riquezas para legitimar-se. A instituição

Igreja Católica assume função política e de organização do Estado português, sendo o

referencial de doutrinação moral e ética, no lugar do rei. As leis do Estado devem ser

recuperadas e lembradas pelo trabalho missionário dos religiosos, pelo discurso da boa

moral e dos bons costumes, que se opõem às práticas pecaminosas e aos excessos

renascentistas. A Igreja Católica tem papel fundamental na adequação social do

português seiscentista. Ainda, a maré he boa, pois a instituição passou por uma

Contrarreforma que reestruturou o trabalho missionário, focando-o como uma prática

religiosa que incentivava, dentro e fora de Portugal, uma atuação mais vigilante e

incorporativa dos religiosos com os fiéis, em detrimento das práticas contemplativas

individuais.

Nos enunciados finalmente, naõ tenho tempo e Lembrai-vos do que aqui vos

digo. Entendei que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem, o

enunciador coloca-se em posição de fragilidade perante o co-enunciador, reforçando a

importância deste no trabalho missionário. O enunciador não tem tempo, ou por estar

ao fim de sua vida missionária, ou por ocupar-se de outros trabalhos, cabendo ao co-

enunciador cumprir o papel institucional de sua missão. Afirmar que a maré he boa

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pressupõe que o cumprimento missionário só depende da vontade e dos esforços do

co-enunciador.

Ao fim do recorte 7, o enunciador chama atenção para que o co-enunciador se

lembre sempre de seus conselhos, pois as palavras enunciadas não são deles, mas

ditas pelo Espírito Santo. O enunciador é porta-voz do divino, o que torna os limites do

discurso religioso e teológico muito tênues para o co-enunciador. Se quem aconselha é

o Espírito Santo a partir do enunciador, as obrigações a serem cumpridas pelo co-

enunciador não são institucionais, mas divinas. O Espírito Santo representa, para a

Igreja Católica, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, completada por Deos pai e

Deos filho. Trata-se do Deos onipotente, que foi enviado pelo Deos Triuno, para

santificar e dar vida à Igreja e dividir e tornar prósperas as palavras do Filho Jesus.

Ainda, pode-se compreender o Espírito Santo como o Espírito da verdade, o qual Jesus

promete, durante a Santa Ceia, enviar e que surge como as línguas de fogo dos

discípulos e apóstolos de Cristo durante a Pentecostes, que inicia a Igreja de Jesus na

Terra, e o início dos trabalhos missionários dos discípulos e apóstolos. A relação

Espírito Santo, trabalho missionário e instituição Igreja Católica reforçam os

argumentos do enunciador ao posicionar-se a favor daquele que mais obra do que o

que mais contempla, sendo, para ele, o único caminho possível para a santidade,

transcendendo seus aconselhamentos ao divino, e não apenas ao trabalho

institucional.

3.3.2.2. Corpo do texto da Carta IV

Recorte 8

Vois sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra esteril, e cheya de espinhos,

e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e

mantimento de bichos. E nada tendes de vosso, mais que peccary, e naõ saber

agradecer a Deos os favores, que vos faz. Tudo que em vós sentis do amor de Deos,

saõ obras de seu amor. E Deos o que está fazendo em vós, pode faze rem qualquer

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creatura, que melhor lho agradecerá. Por seus altissimos juizos mostra que vos quer

bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na redondeza do Mundo deixou

outros muito melhores que vós, e de melhores inclinações. E neste conhecimento

haveis de ir sempre, para que naõ percais a Humildade, que he o alicerce de todas as

virtudes. E quanto mais esta se mette por baixo da terra, conhecendo a sua vileza, e a

sua ingratidaõ, tanto mais sabe crecer, e entra pelo Ceo o amor de Deos, que mora nos

humildes de coraçaõ, mais que em todos. E para saber isto como he, tende sentido

bem no que vos digo.

A carta IV tem como objetivo orientar, espiritual e institucionalmente, um co-

enunciador que almeja iniciar a vida religiosa missionária. O discurso é constituído, já

no início do Recorte 8, pelos enunciados particitados Vos sois um pouco de pó, e cinza,

huma pouca de terra esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que

pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e mantimentos de bichos. E nada tende de

vosso, mais que peccar, e naõ saber agradecer a Deos, os favores que vos faz. Os

enunciados marcam o valor da vida do homem e sua representatividade enquanto

sujeito individual, autônomo e antropocêntrico. Refere-se ao corpo do homem e não à

sua alma. Ao constituí-los, o enunciador tem como pressuposto diminuir o valor da vida

mundana do fiel e reforçar a necessidade do co-enunciador em unir-se ao divino

espiritual e institucionalmente. Tomamos os enunciados como particitados, pois

identificamos certa mobilização do aparelho enunciativo, alterando a voz do enunciador

em relação aos enunciados seguintes.

Com o intuito de definir o homem mundano, o enunciador utiliza uma voz

institucional e universal que transcende os lugares ocupados por ele mesmo e pelo co-

enunciador. Os pontos de vista dos enunciados particitados são aceitos por ambos

como incontestáveis, pois são legitimados na enunciação e na prática social como

Thesaurus hiperenunciados por um sujeito universal pertencente ao campo discursivo

religioso. No enunciado Vois sois um pouco de pó, e cinza, o enunciador propõe a

relação entre a existência física do co-enunciador e sua inexistência mundana ao final

de sua vida carnal. Associar a existência humana às palavras pó, cinza, utilizadas pelo

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enunciador como predicativo que adjetiva uma característica do homem seiscentista,

marcam a efemeridade da vida, a passagem do nascimento à morte.

O enunciador compara, também, a existência do homem com a terra esteril,

cheya de espinhos, e sacco de podridaõ, associando-o como um ser humano que não

gera frutos – estéril – cujos atos está contido o pecado – espinhos, podridão. A

associação é pertinente à época se levarmos em consideração a concepção de vida

mundana e vida espiritual presente no pensamento barroco seiscentista. O homem

encontra-se dividido entre os prazeres do corpo e os prazeres do espírito, entre o

cientificismo e o pensamento renascentista e a cultura medieval, o teocentrismo e as

Leis do Estado em semelhança com as Leis Divinas propostas pela religião. Os

costumes, as práticas sociais, a concepção de vida, são regulados sob a base de tais

coerções conflitantes à época, que geram a antítese do homem barroco. Por estar o

enunciador inserido em um lugar institucional, assumindo o papel de representante da

doutrina cristã, há um posicionamento definido na enunciação em relação ao bem e o

mal. Considera-se pecado quaisquer tipos de práticas que não coadunem com o

proposto pelas doutrinas religiosas.

Nos pensamentos teológicos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, os

quais consideram o homem meio pelo qual manifesta-se Deos, aquele que não tem

ligação de alma com Deos não cumpre sua missão, usa mal seu livre-arbítrio. O

enunciador recupera tal concepção e afirma que o homem, mesmo sob a missão de

Deos, é dispensável e pecador. Trata-se de um jogo de conceitos e ideais, identificados

no enunciado hoje que pareceis melhor, já que pressupõe-se que o co-enunciador

pretende iniciar a vida missionária e utilizar seu livre-arbítrio de forma adequada à

instituição Igreja Católica. No conceito divino, o co-enunciador também é pecador e é a

humildade, que pressupõe também a obediência institucional do co-enunciador à Igreja

Católica, que o guiará ao caminho divino.

No século XVII, considera-se pecador o homem que realiza quaisquer tipos

de práticas, sejam elas culturais, políticas, econômicas, sociais ou religiosas que não

coadunem com o proposto pelas doutrinas religiosas. É pecado o pensamento e as

práticas de influência renascentistas, os exageros artísticos e intelectuais, assim como

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a louvação de outras doutrinas religiosas de mesma base teológica. Contudo, o

enunciador pressupõe a antítese do bem e do mal dentro da instituição o qual ele

representa. Inicia o recorte 9 com os pronomes vois, vosso e vos, da 2ª pessoa do

plural, o qual pode estar presente um tu, referente ao co-enunciador, um eles, que se

refere a todos os homens, e um eu, que retoma o próprio enunciador e seu percurso de

vida do nascimento ao tempo da enunciação.

Os registros da vida de Chagas enquanto Soares podem servir para legitimar o

argumento enunciado. Soares foi capitão das boninas, famoso em seu ciclo social,

polêmico devido à sua poética e seus atos pecaminosos, nas coerções da Igreja

Católica. Mas obteve a redenção e tornou-se um fiel exemplar. O ato de assumir o

hábito religioso e tornar-se Chagas pode estar presente na memória discursiva do co-

enunciador e reforçar sua adesão aos enunciados particitados. Ainda, ao enunciar na

2ª pessoa do plural, o discurso passa a orientar o co-enunciador e servir de

autorreflexão para o enunciador.

Os enunciados Vos sois um pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra

esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor.

podem ser compreendidos como uma orientação e um desabafo, simultaneamente.

Trata-se o enunciador também de um pecador, e, ao enunciar E nada tendes de vosso,

mais que peccar, e não saber agradecer a Deos os favores que vos faz, reforça a ideia

de que o homem, enquanto antropocêntrico, renascentista, centralizador de seus atos,

é um pecador que não sabe agradecer os favores de Deos. Já o homem teocêntrico,

missionário, que cumpre com os deveres de seu lugar social, que compreende sua

condição, também é pecador, mas pareceis melhor, está em vantagem ao outro, pois

permite a ação de Deos em seus atos, relembrando que se o fiel religioso cumpre com

seu dever, é Deos quem age por ele, sendo o fiel meio pelo qual as ações de Deos se

materializam. Ao enunciar e nada tendes de vosso, o enunciador recupera a noção de

corpo místico e afirma a função social do co-enunciador, que é filiar-se às doutrinas

religiosas que são o único caminho para elevar-se espiritualmente.

Nos enunciados posteriores ao particitado, o enunciador amplia os argumentos

analisados, direcionando-os à temática de como o co-enunciador deve compreender e

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realizar o trabalho missionário. No recorte 8, o enunciador reflete como Deos atua no

fiel e como o fiel deve compreender a ação de Deos em seus atos. Reafirma a

necessidade do co-enunciador em valorizar o trabalho de Deos em suas ações, e não

se vangloriar daquilo que faz parte de uma missão maior, identificado nos enunciados

tudo que em vós sentir do amor de Deos, são obras de seu amor. E Deos o que está

fazendo em vós, pode faze rem qualquer creatura, que melhor lho agradecerá. O

enunciador busca retirar do co-enunciador a concepção de sujeito individual, e lhe

concede a identidade de um sujeito comunitário. Deos, para o enunciador, atende por

todos, pois todos são iguais.

Nas práticas sociais do século XVII, a emancipação do sujeito comunitário em

detrimento do sujeito individual é papel institucional da Igreja Católica e de outras

instituições religiosas, posto que o poder político e de organização social é de

responsabilidade do trabalho destas instituições. Principalmente em Portugal, a ordem

social e o cumprimento das leis são de responsabilidade da Igreja Católica, devido à

falta de referência do povo português com a liderança política espanhola. O enunciador

reforça a necessidade do pensamento de que o fiel deve compreender o trabalho

missionário como uma ação coletiva, ao enunciar Por seus altissimos juizos mostra que

vos quer bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na redondeza do Mundo

deixou outros muito melhores que vós, e de melhores inclinações., já que o co-

enunciador não é único e nem está sozinho no trabalho missionário. Os enunciados

destacados também servem para orientar que o missionário deve possuir humildade

em seu trabalho, acima de tudo. Ao enunciar que há outros muito melhores que vós, e

de melhores inclinações, o enunciador recupera a necessidade de humildade e da

valorização coletiva no trabalho e convívio missionário e orienta o co-enunciador a

sentir-se privilegiado por ser agraciado por Deus, mas não se ostentar disso, e sim

cumprir com seu dever missionário.

O enunciador finaliza o Recorte 8 enaltecendo a necessidade de humildade no

trabalho missionário e chamando atenção para o fato de o religioso ter como alicerce

de todas suas práticas a humildade, o que fará com que ele cresça e entre no Ceo.

Para o enunciador, a humildade, que consiste na valorização do trabalho coletivo e a

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noção de que o missionário assume uma função institucional que complementa o corpo

místico do Estado, sem privilegiar-se, encarando como parte de Deos, é sinônimo do

amor de Deos compreendido. Ao realizar tal analogia, o enunciador busca esgotar a

possibilidade de contra-argumentação do co-enunciador, já que legitima seu ponto de

vista como universal, a partir de um jogo de conceitos e ideias. Ser humilde tal qual

defende o enunciador pressupõe a realização de quaisquer trabalhos missionários sem

a contestação do co-enunciador à organização institucional. Se é o homem

desvalorizado em sua individualidade, a instituição Igreja Católica é meio pelo qual o

sujeito se coletiviza e se aproxima do Ceo e o confronto institucional é um confronto

divino. Ao enunciar humildade, pressupõe-se também a obediência institucional do

coenunciador à Igreja Católica, ou ao convento no qual atua.

Recorte 9

A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de Deos, que todo he

Amor, assim como nós somos Corpo, e Alma. E daqui vem, que quem vive em graça, e

em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que obra nelle. E porque como

entaõ a creatura participa da Divina Natureza, assim como a vide, que vive unida á

cepa, della recebe o succo, e o humor, de que vive, e de que dá fructo: assim a

creatura unida com seu Creador, cresce cada vez mais, e dá fructo de boas obras. E

como a Graça, e Amor de Deos, he infino; logo que a creatura tem alguma cousa della,

ferve, e deseja ardentemente sahir de si toda, e chegar-se áquelle infinito Senhor,

como a panella, que tem grande fogo, este sahe em cachões fora da panella, e se

deseja ir, e sahe.

No recorte 9, o enunciador associa a Graça Divina e o Amor de Deos à natureza

e exemplifica, a partir dessa associação, como deve ser compreendida a fé do co-

enunciador com Deos e sua necessidade de torná-la exterior no trabalho missionário.

Nos enunciados A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de

Deos, que todo he Amor, assim como nós somos Corpo e Alma., o enunciador cria um

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conceito para Graça, Amor, Corpo e Alma, associando-os à natureza. Graça remete ao

dom de Deos que eleva o homem ao estado sobrenatural de santidade, ou o aproxima

desse estado. Também pode pressupõe à ideia de prática do bem, das palavras e dos

atos de Deos por parte do fiel. Amor refere ao sentimento predisposto de desejar o bem

do próximo, com afeto, apego e dedicação. O Amor de Deos pode ser compreendido

como um sentimento de atração, paixão e inclinação pelo divino. O Amor e a Graça de

Deos estão relacionados com o sentimento de adoração, veneração e devoção a Deos,

e quando associados à natureza por comparação, em A Graça de Deos e o Amor de

Deos, he a natureza, identificamos que as condições necessárias para o trabalho

missionário e o enriquecimento espiritual do co-enunciador – a Graça e o Amor de

Deos – são naturais, no sentido de que são regulados por fenômenos universais e

inquestionáveis, inatos e inerentes a si mesmos, que independem da vontade e da

atuação humana.

Trata-se o natural como algo genuíno, puro, o originário e oriundo de todas as

coisas, a antítese de artificial. Por natureza, entende-se como aquilo que é exterior ao

homem, que possui um Sistema de leis e um funcionamento autônomo e que explicam

o mundo como um todo. A natureza possui uma organização, uma lógica indiscutível e

exata, uma essência que, mesmo não conhecida pelo homem, existe e funciona. A

natureza é o berço de nascimento de todos os seres e o estado primitivo do homem,

antes de fazer parte da civilização. Associar a Graça Divina e o Amor de Deos à

natureza é reforçar o pensamento teocêntrico de que tudo está suscetível e

centralizado em Deos. A associação permite, também, uma oposição ao cientificismo

do século XVII, que busca distanciar e dissociar o divino dos fenômenos naturais e

sociais, compreendendo o meio e a sociedade de forma mais racional do que

metafísica. Muitos cientistas do século XVII eram rotulados de pecadores imorais por

negarem, em suas pesquisas, a associação de um fenômeno natural ou de uma lei

institucional com o divino. Destacam-se pensadores como Maquiavel, Descartes,

Spinoza, Leibniz, que polemizaram esta relação entre o natural e o divino, muito

presente na edificação do pensamento teocêntrico.

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O enunciador associa a Graça e o Amor de Deos à constituição do ser de Deos,

comparando-o aos homens – assim como nós – constituídos por Corpo e Alma. Em

São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, no que se refere à relação Corpo e Alma, o

Corpo é necessário e fundamental para o cumprimento da missão e do papel o qual o

indivíduo está pré-determinado na sociedade estamental e que carrega em sua Alma.

O Corpo é sagrado, pois é ele quem executará as funções preestabelecidas pelo divino

materializado nas instituições Estado e Igreja Católica. O fiel é parte do Corpo do

Estado, sendo o Estado a simetria perfeita do Corpo Místico de Deus. A Igreja Católica

tem a função de estabelecer o elo entre o Corpo do fiel com Deos, e esta ligação só é

possível pela Alma do fiel. A Alma é o que transcende o Corpo e continua após a morte

do fiel. O Corpo é efêmero, morre, vira pó e cinzas; a Alma é o que permanece e será

julgada pelas Leis Divinas no dia do juízo final. A simetria perfeita de Corpo e Alma

para o enunciador, e segundo o paradigma cristão seiscentista, é o cumprimento

missionário do fiel em suas funções institucionais, com a Alma preenchida de Graça e

Amor de Deos. Ao definir Graça e Amor, pressupõe-se uma ação missionária e uma

contemplação espiritual em harmonia. Retomando o recorte 8, compreende-se que a

antítese criada entre o homem antropocêntrico e autônomo e o sujeito comunitário está

implicada nos enunciados que reforçam a necessidade de harmonia entre Corpo e

Alma pela Graça e Amor de Deos, já que se constrói, anteriormente, a concepção de

que o indivíduo é parte de um todo que constitui um corpo unificado.

Como forma de legitimar os posicionamentos contidos nos enunciados

destacados, o enunciador mobiliza o aparelho enunciativo com o enunciado particitado

que quem vive em graça, e em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que

obra nelle. Compreendê-lo como uma particitação é pertinente, pois o enunciado tem

caráter definitivo do que foi dito anteriormente. Ainda, é posterior ao enunciado E daqui

vem e recorre a uma voz de outro dentro da própria voz enunciada. O hiperenunciador

desta particitação não é identificável pelos envolvidos na enunciação, mas é aceito e

tomado como valor de verdade por contemplar os campos discursivos que constituem

as coerções do discurso religioso do século XVII.

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A relação expressa entre vive nelle e obra nelle constitui o ponto máximo pelo

qual o enunciador busca a adesão do co-enunciador ao discurso enunciado. Desde o

recorte 8, o enunciador constrói o ponto de vista de que o ser-humano sem a presença

de Deos é pó e cinza. Ainda, quando o ser-humano realiza ações doutrinárias e

missionárias de Deos, ele não é o agente da ação, mas meio pelo qual manifesta-se o

divino. O ser-humano se reafirma, para o enunciador, pó e cinza mesmo no

cumprimento de sua missão religiosa, o que reafirma a necessidade da humildade do

fiel. O enunciado particitado reforça a noção de que o fiel constitui parte do corpo

místico e divino, o que é aceito pelo co-enunciador que almeja iniciar-se no trabalho

missionário e na vida religiosa, posto que o cumprimento missionário como parte

constitutivo do corpo místico divino e do Estado é condição sine qua non para a vida

religiosa do século XVII. O enunciado particitado, recuperando tudo que já foi

argumentado e defendido em enunciados anteriores, reforça o ponto de vista criado

pelo enunciador e busca adesão do co-enunciador para fornecer base para o

desenvolvimento dos enunciados posteriores.

Nos enunciados E porque como entaõ a creatura participa da Divina Natureza,

assim como a vide, que vive unida à cepa, della recebe o succo, e o humor, de que

vive, e de que dá fructo, o enunciador estabelece uma relação de comparação entre

Deos e natureza, com a finalidade de defender o ponto de vista criado de que Deos é

natureza, no sentido de que ele age nos fenômenos internos da Alma para valorizar o

Corpo. Assim como a natureza é responsável pela união de vide, que é o braço ou a

vara da videira, ou se recorrermos à etimologia latina, vitis.is, que significa cordão

umbilical, com a cepa, que é o tronco da videira, se ampliarmos para um efeito de

sentido possível no campo religioso, a parte principal da árvore, o organismo materno,

ou que permite a vida da vide, é responsável pela alimentação vital da videira, assim

como a criatura, segundo o enunciador, é pela Divina Natureza.

O enunciado anteriormente destacado acentua a noção de corpo místico e a

responsabilidade da missão do religioso, a partir de um jogo de ideias que

institucionaliza seu discurso. Ao afirmar que a criatura é responsável pela Divina

Natureza, pressupõe-se que a criatura que estiver unida a Deos está plantada em um

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solo fértil e dará bons frutos. Por sua vez, aquele que não serve a Deos, está em solo

ruim e prejudicará os frutos. Trata-se de uma institucionalização do discurso, ao passo

que o enunciador propõe uma relação de bem e mal com aquele que está ligado a

Deos e àquele que tem outra postura religiosa ou de espiritualidade, que é identificado

nos enunciados assim a creatura unida com seu Creador, cresce cada vez mais, e dá

fructo de boas obras. O enunciado serve também de alternativa para o destino traçado

no início do recorte 8. O uso das palavras creatura e Creador pressupõe a

institucionalização de seu discurso às coerções cristãs.

Com a finalidade de reforçar a adesão do co-enunciador aos enunciados

analisados, o enunciador utiliza, novamente, um enunciado particitado: e como a Graça

e Amor de Deos, he infinito. Afirmar que a Graça e o Amor são infinitos pressupõe que

Deos é eterno e contrapõe com a efemeridade da vida apresentada no início da Carta

IV, a qual destacamos no Recorte 8. Pressupõe-se afirmar que Deos é superior ao fiel,

mas por ser bom e constitutivo a ele, é o único caminho para livrar a Alma da

efemeridade do Corpo. Reforça, ainda, a condição de Graça e Amor, a bondade e o

trabalho missionário, que para o fiel são finitos mas para Deos não. Reforça, então, a

noção de sujeito coletivo, em detrimento do sujeito individual, sem Deos. A repetição de

Graça e Amor busca reforçar a adesão do co-enunciador e a legitimidade do ponto de

vista criado pelo enunciador.

Nos enunciados seguintes, o enunciador amplia a definição particitada e conclui

os argumentos contidos em todo o recorte 9. Para ele, o Amor e a Graça de Deos é a

essência das ações do missionário. São infinitos não pela vida terrestre, mas pelo que

o fiel missionário semeia e deixa para a posteridade. Para explicar a definição de Graça

e Amor infinitos, compara ambos os sentimentos com a ação da panela sob grande

chama. A conclusão do recorte, bem como a comparação do Corpo com a panela e a

Alma com o fogo, recuperam a noção de que todos os fenômenos são naturais e

devem ser compreendidos, aceitos e inquestionáveis pelo co-enunciador, já que estão

no âmbito da espiritualidade, ao propor a sintonia Corpo e Alma, justificando a

existência de cada um. Também se propõe institucional ao passo que a panela ao fogo

serve para cozer o alimento, assim como o Corpo e a Alma servem para garantir um

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produto maior ao outro, que é o cumprimento missionário do fiel com Graça e Amor. A

espiritualidade do co-enunciador, o apego à Graça e ao Amor de Deos, servem para a

realização de um bom trabalho missionário e para a compreensão da necessidade

deste e sua prática com Graça e Amor. A comparação entre panela e Corpo, fogo e

Alma traduzem a necessidade do equilíbrio espiritual para o bom trabalho institucional.

3.3.2.3. Corpo do texto da Carta V

Recorte 10

Todas as de V. Reverencia me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até

hoje li huma, que me escreveo ha hum anno, em que me fallava em N., a quem todos

devemos muito recommender a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em

maiores ruinas. E livremos Deos das mesmas, que nos mesmos males podemos cahir,

se Deos nos desamparar. Naõ he possível responder a tudo pelo miudo, nem ainda

pelo grosso: faremos o que pudermos.

O recorte 10 introduz a carta V e a orientação espiritual confessionária realizada

pelo enunciador. Tem a cenografia de uma orientação religiosa confessionária, uma

vez que instituem-se os papéis de cada um dos envolvidos na enunciação, situando-os

a um espaço e uma rotina específicos: trata-se o enunciador de um orientador que se

depara com um co-enunciador que solicita seus aconselhamentos espirituais e

doutrinais.

No recorte 10, há a descrição de como se dá a mediação do orientador com o

orientado. O enunciador relata que recebeu uma carta do co-enunciador e responde a

carta com uma epístola doutrinária, como observa-se nos enunciados: Todas as de V.

Reverencia me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até hoje li huma, que

me escreveo ha um anno. O enunciador revela-se, ainda, detentor de inúmeras cartas

do co-enunciador, mas não temos condições de precisar se todas foram ou não

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respondidas. Contudo, é eleita uma, escrita há um ano pelo co-enunciador, como ponto

de partida para a orientação religiosa e elaboração da carta-resposta.

As marcas enunciativas que institucionalizam o discurso como pertencente ao

religioso, contidas na epígrafe e na identificação do enunciador, contribuem para a

construção da cenografia de uma orientação confessionária. Compreende-se que quer

o enunciador responda às cartas do co-enunciador com frequência, quer não, ele

assume um papel de orientador espiritual confessionário, pois tem, para o co-

enunciador, a confiança de receber frequentemente as cartas e ser um ouvinte dos

problemas e anseios pelos quais passam seu orientado. Ambas as situações de

resposta às cartas do co-enunciador são importantes no discurso enunciado, pois

constituem o ponto inicial para o processo enunciativo. A carta V só existe, porque na

prática social ela foi necessária e requisitada, outrora, pelo co-enunciador.

Nos enunciados em que me fallava em N., a quem todos devemos muito

encomendar a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em maiores ruinas, é

possível compreender os motivos que levaram o co-enunciador a escrever para o

enunciador e qual o ponto de partida para a orientação espiritual. O co-enunciador

escreve sobre N., que, para o enunciador, deve ser encomendado a Deos. O verbo

encomendar possui efeitos de sentido que possibilitam reflexões no campo discursivo

religioso. O ato de encomendar alguém pode ser compreendido como ordená-lo a uma

determinada função, ou ainda, entregá-lo à proteção de alguém, pois necessita do

cuidado, dos aconselhamentos, do amparo e do auxílio divinos. Aquele que necessita

do auxílio de Deos, tem-no distante em um momento presente, o que revela a condição

de N. no instante da enunciação e necessita ser confiado aos cuidados de Deos.

O ato de encomendar a Deos também pode remeter a ideia do pedido insistente

dos fiéis para que se adéque a determinados padrões ou valores os quais não se

encaixava. O fato de não estar sob proteção de Deos, não tê-lo próximo e refletido em

suas ações, faz de N. alguém que possui problemas doutrinais e espirituais. Todos

necessitam reforçar a ligação com Deos, para que se afastem do pecado, ou da

trajetória inadequada que vêm trilhando. No paradigma teológico seiscentista, o ser-

humano nasce com o pecado original de Adão e Eva e possui o livre-arbítrio para

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decidir se trilhará o caminho dos pecados ou se se adequará ao que recomenda a

Igreja Católica, como porta-voz institucional de Deos na Terra. O fato de o homem

decidir-se pelo caminho da fé não o faz bom, já que ele ainda vive contido pelo pecado

original. As ações realizadas por ele e que são julgadas boas não são realizações

humanas, mas práticas de Deos mediadas pelo homem. As boas ações são de Deos e

o homem é apenas meio pelo qual ele se manifesta. Ressalta-se aqui a noção de

homem como sujeito coletivo e, portanto, se alguém deve ser encomendado a Deos é

para ter seu livre-arbítrio direcionado ao caminho correto.

No enunciado para que das presentes quedas não pare em maiores ruinas,

identifica-se a confirmação do que representa o ato de encomendar a Deos e depara-

se com o enunciado particitado das presentes quedas naõ pare em maiores ruinas.

Para que o enunciador justifique o argumento contido no enunciado o qual ele

recomenda N. a Deos, com o intuito de que este repense suas ações, o enunciador faz

uso de um enunciado que confirma as indagações do enunciado anterior, mas não é

dito por ele, mas por uma voz hiperenunciada que se sobressai na enunciação.

O enunciador apenas recupera o enunciado para comprovar seu raciocínio e

torná-lo soberano nas coerções do discurso religioso. Todos, o tempo todo, segundo os

paradigmas medievais da Igreja Católica, devem ser encomendados a Deos. Contudo,

o enunciador afirma que se deve muito encomendar N. a Deos, maximizando essa

necessidade que, no enunciado particitado, justifica essa diferença de N. para os

outros. Quer o co-enunciador concorde com o enunciador, quer não, ao se deparar

com o enunciado particitado que coloca em relação de causa e efeito quedas e ruínas,

pressupõe-se que ele não se depara com um julgamento subjetivo e individual, mas

sim objetivo e coletivizado, sob os valores da Igreja Católica e do paradigma teológico

medieval, já que é constituído por uma voz que sobrepõe ambos os enunciados da

enunciação. Não é, ainda, um julgamento que serve somente a N., mas algo já

ritualizado e concebido na prática social: aqueles que se comportam assim entram no

fluxo causal da ruína, por isso, deve-se encomendar quem tem tais comportamentos a

Deos, pois Ele é a salvação do indivíduo que ruma à ruína.

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Sob o olhar cristão, a palavra queda refere-se ao fato de que todos os homens

estão suscetíveis e caem em tentação à ruína, pois são reféns do corpo pecador. Nas

práticas sociais do século XVII, uma das questões que levam o homem a rever seus

conceitos sociais e muitas vezes assumir o hábito religioso é o medo da ruína eterna, o

temor pelo sofrimento espiritual da Alma. Acredita-se que nem todos estão fadados à

ruína, pois tem a chance de se ligarem a Deos por meio da religião, que é o grande

escapismo da Alma do homem seiscentista, opondo-se aos escapismos do Corpo

influenciados pelo pensamento e cultura renascentistas. A função do missionário

religioso é reforçar essa ligação para que as pessoas não sucumbam à ruína, para que

caiam menos em tentações.

Assim, o enunciado justifica-se particitado, pois homologa o ponto de vista do

enunciador como inquestionável: se é cristão, deve concordar que as quedas do corpo

levam à ruína, e que todos devem se apegar a Deos cada vez mais. Além do

enunciado particitado, há outras garantias de que o co-enunciador está propenso a

aderir ao posicionamento do enunciador, já que solicita o aconselhamento, conhece o

enunciador empiricamente e citou N. em carta originária.

Nos enunciados E livremos Deos das mesmas, que nos mesmos males

podemos cahir, se Deos nos desamparar, o enunciador reflete que, como religiosos

missionários, devem livrar Deos das mesmas, que refere-se anaforicamente tanto a

quedas quanto a ruínas. Tanto uma como outra são tomadas como causa e

consequência e, portanto, possíveis de serem agrupadas. O enunciador aconselha que

não determine as ruínas e as quedas a Deos, no sentido de que se é este onisciente e

onipresente, seria ele culpado pelas falhas do homem. Reafirma o livre-arbítrio de que

o homem tem poder de escolha do seu destino ao enunciar nos mesmos males

podemos cahir, incluindo-se na possibilidade de pecado se não estiver o tempo todo

atento às ações de queda e ruína. O homem cai em ruína se Deos o desampara, por

isso a necessidade de ser novamente encomendado a Ele, como enunciado na

particitação anterior.

No recorte 10 tem-se a conclusão dos argumentos construídos, o que

pressupõe uma estratégia característica dos conceptistas do século XVII. Primeiro, o

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enunciador oferece uma definição de homem pecador. Em seguida, uma

contradefinição particitada e hiperenunciada das consequências do homem pecador,

para, por fim, construir o argumento que edificará a carta V, de que o homem que sede

à ruína é aquele que não está de acordo com as doutrinas de Deos e, portanto, está

desamparado Deste e deve ser encomendado a Ele, independente de ser religioso

missionário ou não.

Recorte 11

Primeiro que tudo: até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me

dizia; pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninharia, que era necessario tirar-

lha: agora vejo que V.M. naõ tem nenhum desapego; nem resignação; pois por lhe

dizerem que eu estava enfermo, chorou. Que sentimentos são estes? Quem serve a

Deos não sente nada, louva a Deos em tudo, e por tudo lhe dá graças. Cuidava eu que

tinha feito a V.M. alguma cousa. Cuidava que se lhe chegassem novas que eu era

morto, se alegrasse muito em Deos, e dissesse: Ou este frade era bom, ou mao, ou foi

ao Inferno, ou ao Ceo. Se ao Ceo, naõ ha que sentir. Se ao Inferno, convem conformar

com Deos, e louvá-lo.

No recorte 11, o espaço construído pela cena, no qual o enunciador reflete

acerca da maneira com que o co-enunciador deve compreender a morte, compreende

a espiritualidade seiscentista e características da instituição da qual o enunciador e o

co-enunciador fazem parte. Constituído pela estrutura retórica concepstista de

definição, contradefinição e argumentação, os enunciados buscam legitimar o ponto de

vista enunciado por uma contradefinição particitada.

Nos enunciados até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me

dizia, e pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninharia, que era necessario tirar-

lha, há a institucionalização da orientação no uso da palavra mortifiquei, que carrega o

sentido do castigo que enfraquece a vitalidade do corpo, o reprime e o atormenta,

devido a uma conduta inadequada do co-enunciador.

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Os motivos pelo qual houve a mortificação foram baseados no fato de o co-

enunciador não ter cumprido uma promessa feita para o enunciador: em quanto naõ

fizesse o que me dizia. O enunciador estabelece, na cena enunciativa, uma relação de

poder com o co-enunciador que se prolonga na prática social. Este poder pode ser

institucional, de um Frei para seu religioso missionário, ou pessoal, de um amigo que

tem uma promessa não cumprida com outro amigo.

No enunciado seguinte, o enunciador afirma que o co-enunciador apega-se

por uma ninharia, por um nada, o qual deixa para definir e contradefinir no decorrer da

enunciação. O fato de julgar os sentimentos do outro como nada ou ninharia carrega

juízos de valor subjetivos do enunciador, submetidos a um sistema de coerções que o

faz concluir que tal coisa é supérflua. O Recorte 11 oferece uma base de argumento

para o desenvolvimento de toda a orientação, já que as coerções que determinam e

julgam os valores contidos já são postas, quando o enunciador cita, na introdução da

Carta V, as condições de N. e as consequências de seus atos ao estar afastado de

Deos.

O enunciador, ao utilizar nada e ninharia, modaliza o suposto pecado do co-

enunciador, em comparação com os pecados de N., expressos no Recorte 10. São

falhas julgadas pelo enunciador e fáceis de resolver. O fato da ninharia ser revelada no

decorrer da enunciação nos leva a um efeito de sentido de que o enunciador inicia o

aconselhamento do Recorte 10 com a argumentação, antes de defini-lo e contradefini-

lo. O jogo de conceitos provoca o efeito de sentido de uma advertência, levando o co-

enunciador a construir, paulatinamente, o sentido de ninharia e nadas em sua prática

social e intensificando, no co-enunciador, sentimentos como ansiedade e culpa do que

está por vir. A inversão é uma estratégia do cultismo barroco e tem como pressuposto

acentuar as possibilidades de adesão do co-enunciador ao discurso doutrinário.

A institucionalização contida no enunciado que era necessario tirar-lha consiste

no fato de que o enunciador assume o papel de responsável pela doutrinação do co-

enunciador. Ele busca transparecer a sabedoria de como o co-enunciador deve agir e o

que deve sentir, dentro das coerções nas quais ambos se institucionalizam, e o

enunciador responsabiliza-se em adequar o co-enunciador se este não estiver em

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conformidade com o exigido pela instituição à qual pertencem. Ao enunciar era

necessario, questionamos quem ordenou essa necessidade ao enunciador, se um

outro religioso, que percebera as falhas do co-enunciador, ou se o próprio enunciador,

que tirara as conclusões a partir da observação da conduta do co-enunciador.

Quando o enunciador afirma ser necessário tirar as ninharias do co-enunciador,

ele se coloca no cumprimento de seu papel de orientador missionário, de doutrinador

religioso e até mesmo amigo íntimo do co-enunciador, e este pode atribuir parcialidade

ou não aos atos realizados pelo enunciador. Parcial, se este fez sob os laços de

amizade que ligam um e o outro; imparcial, se fez com o compromisso de cumprir com

uma orientação institucional. Quaisquer que sejam os efeitos de sentido criados pelo

co-enunciador, eles tendem a legitimar a imagem do enunciador como alguém que

deseja o bem do co-enunciador, ou seja, servem de mais um recurso que configure o

discurso como doutrinário de um ponto de vista.

Nos enunciados agora vejo que V.M. naõ tem nenhum desapego, ou resignaçaõ,

pois por lhe dizerem que eu estava enfermo, chorou, há a explicitação dos motivos que

justificam as palavras ninharia e nada. O enunciador, por meio de uma enunciação que

estabelece relação de causa e consequência, afirma que os motivos pelos quais

castiga o co-enunciador são em virtude de sua falta de apego e resignação,

consequência do ato de chorar por saber que o enunciador encontrava-se enfermo.

As palavras desapego e resignação são postas como que equiparadas ao

mesmo sentido. Resignar-se, a partir das coerções já impostas nos enunciados

anteriores, significa o ato de ceder-se voluntariamente, ou em missão, a um cargo, a

alguma atividade ou a outrem. Trata-se de abdicar com conformidade de seu papel

institucional, de sua função missionária como religioso. Para o enunciador, o co-

enunciador encontra-se sem resignação com o trabalho missionário, isto é,

desapegado de suas funções institucionais, o que acarreta o desapego espiritual do fiel

com Deos, refletido no Recorte 11 e retomado no enunciado implicitamente.

O enunciador não adverte o co-enunciador pelo fato deste lamentar a

enfermidade de seu orientador espiritual, mas pelo fato de que o sofrimento pela

enfermidade do enunciador revela que o co-enunciador encontrava-se desapegado das

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coerções que determinam, na prática social da Igreja Católica e da espiritualidade

cristã, a vida mundana efêmera. A morte para o cristão deve ser compreendida como

uma passagem necessária para a purificação da Alma, para o dia do juízo final. O

lamento do co-enunciador revela sua fraqueza de fé e de compromisso com a

instituição a qual ele representa. A orientação é uma advertência institucional, com a

possibilidade de construção de efeitos de sentido particularizados, como a intimidade

que possuem o co-enunciador e o enunciador, o que justifica a reação do orientado ao

receber a notícia da enfermidade de seu amigo.

A institucionalização do discurso enunciado se dá pelo fato de que o

missionário seiscentista serve a Deos em primeiro lugar, e que o co-enunciador

permitiu que as emoções e os sentimentos do Corpo, como a saudade, o medo, a dó,

dentre outros, prevalecesse sobre os sentimentos da Alma, que são o apego e a

resignação a Deos. Tal sentimento afeta no trabalho missionário do religioso.

Nos enunciados Quem serve a Deos não sente nada, louva a Deos em tudo, e

por tudo lhe dá graças, o enunciador faz uso de um enunciado particitado para legitimar

os pontos de vista dos enunciados anteriores. O enunciado destaca-se da enunciação,

pois consiste em uma reflexão que universaliza um pensamento institucional da Igreja

Católica, espiritual da cultura cristã, e do fiel missionário: Deos serve, louva e dá graças

a todos. Dentro das coerções que determinam a prática social do cristão, todos

legitimam o enunciado em destaque como verdadeiro e inquestionável, já que ele

sintetiza a essência da fé cristã.

Independente das enfermidades do enunciador, na perspectiva teológica

seiscentista, Deos sabe os motivos pelos quais ele passa pela situação em que se

encontra e as consequências desse estado de enfermidade, pois Ele é onipresente e

onisciente, conforme ressaltado no Recorte 11. O enunciado particitado reflete, então,

uma condição fundamental de espiritualidade cristã, que irá influenciar na maneira com

que o co-enunciador observa o funcionamento das instituições e o destino dos homens.

Todos são suscetíveis à ciência, à presença e ao julgamento de Deos. O enunciado

particitado legitima os enunciados anteriores por sua voz hiperenunciada que não é

nem do enunciador nem do co-enunciador, mas de um SUJEITO-UNIVERSAL

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constituído pela razão e crença de todos os fiéis religiosos. O enunciado, ainda, serve

de contradefinição para o ato de o co-enunciador comover-se com a enfermidade do

enunciador e buscar adesão ao posicionamento do enunciador, devido à pressuposição

de que quaisquer religiosos do século XVII estão predispostos a crer no que define o

enunciado particitado. A maneira como a cenografia é criada, onde o enunciador

realiza um jogo de conceitos e ideais, busca influenciar a adesão do co-enunciador ao

ponto de vista do enunciador, o que legitima o discurso como uma orientação

doutrinária religiosa e espiritual. O enunciador prepara toda a cena enunciativa para

isso, mostrando-se próximo, amigo, conservador dos bons costumes e da fé cristã.

Nos enunciados Cuidava eu que tinha feito a V.M. alguma cousa. Cuidava que

se lhe chegassem novas que eu era morto se alegrasse muito em Deos, o enunciador

completa a contradefinição da ação do co-enunciador – sofrer pela enfermidade de seu

orientador – e amplia a contradefinição do enunciado particitado, reforçando sua

importância universal.

Ao enunciar cuidava eu e cuidava que, o enunciador centraliza-se como

responsável por doutrinar o co-enunciador aos atos corretos, segundo as formações

discursivas que constituem a instituição Igreja Católica. O verbo cuidar pode ser

compreendido no sentido de responsabilizar-se com a proximidade do apego, da

intimidade, da subjetividade de quem se responsabiliza. Cuidar que algo aconteça é

acompanhar com proximidade todos os passos daquilo que foi planejado acontecer e,

ainda, admitir-se responsável por tudo que tenha sido feito.

Compreende-se o sentido de cuidar como a maneira com que o enunciador

supõe ou julga o controle das emoções do co-enunciador e sua compreensão do que é

a morte no paradigma cristão seiscentista: a morte do Corpo é o caminho para a

plenitude da Alma. O fato de o enunciador afirmar que cuidava que o co-enunciador

recebesse a notícia de sua enfermidade e com ela compreendesse o valor da morte

reforça o enunciado particitado, tomado como universal, no sentido de que o

enunciador implica em sua enunciação a afirmação de que cumpre com seus deveres

espirituais e institucionais de apegar-se ao divino acima de tudo, e ao trabalho

missionário deste. A ação de cuidar que tal fato acontecesse foi cumprimento de um

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dever institucional e um exemplo de que o enunciador tem clareza no que tange à sua

espiritualidade: o apego a Deos acima de tudo.

Nos enunciados Ou este frade era bom, ou mao, ou foi ao Inferno, ou ao Ceo.

Se ao Ceo, naõ ha que sentir. Se ao Inferno, convêm conformar com Deos e louvá-lo.,

o enunciador exemplifica qual deveria ser o julgamento do co-enunciador, segundo os

paradigmas espirituais e institucionais, respectivamente, do cristianismo e do

catolicismo. Ainda, o enunciador, para legitimar os enunciados que exemplificam a

maneira como lidar com a morte, toma como base o tema principal presente no

enunciado particitado por tudo dar graças a Deos.

O enunciador cria uma antítese entre Ceo e Inferno, entre nada sentir e

conformar-se, compreendendo que diante do julgamento divino, o fiel religioso é

passivo, se conforma com o veredicto ou nada sente. Deos é onisciente e onipresente

e o homem tem posição passiva diante dele, o que recupera as características de como

as instituições Igreja Católica e Estado compreendem o próprio ser humano

seiscentista: é necessário que seja teocêntrico, que tenha em sua essência o poder de

Deos como determinante de todas as suas escolhas. A orientação opõe-se à cultura do

antropocentrismo, e, na enunciação, podemos supor que leva em consideração que o

apego à morte do Corpo, a lamentação do fim da vida terrestre, não só é um desapego

à palavra divina, como também uma propensão à valorização da vida.

Os enunciados legitimam o enunciado particitado, pois reforçam a noção de

que o homem perante Deos é inexpressivo e não tem condições de compreender as

razões da onisciência e da onipresença divina. Sem essa capacidade, todos os

julgamentos que elevam a emoção particular do co-enunciador não podem ser tomados

como bons ou corretos. Para o enunciador, o fiel deve se apegar com fé aos

julgamentos e decisões de Deos, sem questioná-los. O enunciado particitado é, então,

legitimado e reforçado nos enunciados seguintes, pois servem de base para construir a

contradefinição do enunciador, com o intuito de convencer o co-enunciador a um novo

entendimento sobre a morte e a necessidade espiritual e institucional deste.

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3.3.2.4. Corpo do texto da Carta XX

Recorte 12

Dei agora em rebelde, e até contra meus achaques me quero levantar a maiores. Estes

dias andei de corpo similhante ao espírito, que não he pouco mal: porem Nosso Senhor

sempre me trata bem. Se me não curár prégando, estivera morrendo. Porque me cahio

muita agoa na cabeça nos Sermões do Campo, em Braga, e em Barcellos, Ponte de

Lima, e nesta Terra; até que cahi, e tenho por experiencia, que o remedio he ir prégar

em a Igreja, aonde fue, e saya para fóra o mal, que entrou para dentro. Assim o fiz, e

assim melhorei. Mas ainda a cabeça anda como minha: porém tudo he meyo, e motivo

de louvar a Deos, que põem esses despertadores, para que não durma a Alma; antes

véle em sua presença. Seja Deos bendito.

No início do corpo do texto, o enunciador relata um pouco de sua experiência

religiosa e de seu estado de espírito. A cenografia presente nos enunciados do primeiro

recorte é a de uma orientação confessionária acerca da rotina missionária do

enunciador, refletindo como ela faz bem à fé e ao espírito, mas excesso de trabalho lhe

é prejudicial ao Corpo, uma vez que o enunciador revela-se enfermo.

O fato de utilizar o Corpo em seu limite para o trabalho espiritual o enunciador

revela para o co-enunciador que executa as missões que lhe são desempenhadas,

institucional e espiritualmente, de forma exemplar. Também revela as influências do

paradigma teológico da época, que pressupunha a sociedade como um corpo místico

em que cada membro desempenha uma função social e divinamente preestabelecida.

O enunciador desempenha essa função transcendendo os limites do corpo.

O enunciador, como já identificado anteriormente, ocupa o papel de frei

missionário em um lugar institucionalizado, a Igreja Católica do século XVII. Nos

enunciados Estes dias andei de corpo similhante ao espírito e porem Nosso Senhor

sempre me trata bem além de reflexões acerca de sua enfermidade, marca-se de um

posicionamento teológico do enunciador acerca da compreensão de Deos, o mundo e

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a fé. Como vimos no capítulo I dessa pesquisa, o paradigma teológico do século XVII

baseava-se, entre outras coisas, nos pensamentos de Santo Agostinho. Para

Agostinho, o homem deveria viver sob a missão de atingir a iluminação divina. Esta só

era possível a partir da investigação do inconsciente da alma humana e de sua

comunicação com Deos. Os pecados do corpo, as práticas pecaminosas do cotidiano,

eram fruto do pecado original. Assim, quando o enunciador afirma que o corpo andou

em semelhanças com o espírito, compreendemos que o discurso de Santo Agostinho é

uma das formações discursivas que constituem o discurso enunciado, já que não há

um equilíbrio entre corpo e espírito, mas a sobreposição do espírito ao corpo, a

valorização da Alma e a desvalorização do Corpo. O enunciador mostra-se mais

próximo da cidade de Deos e mais distante do mundo pecaminoso presente na cidade

dos homens.

No enunciado porem Nosso Senhor sempre me trata bem, com uso da

conjunção adversativa porem, o enunciador concede a Deos todas as virtudes de sua

conquista. Não foi o enunciador sozinho quem atingiu o estado de iluminação espiritual,

mas sim o fez sob a luz e a boa vontade de Deos. É a Deos atribuída a glória do

sucesso espiritual do enunciador.

É importante considerar que os enunciados analisados encontram-se no início

do corpo do texto e parecem não estabelecer uma unidade semântica com os demais

recortes. Contudo, tal impressão é desprezada ao observar que o papel exercido pelo

enunciador no discurso é o de um frei-missionário e orientador espiritual. O fato de o

enunciador encontrar-se espiritualmente equilibrado, tendo o corpo tal qual o espírito e

não o espírito tal qual o corpo, legitima sua função social no discurso. O enunciador

constrói um espaço de autoridade discursiva no recorte 12.

No enunciado e tenho por experiencia, que o remedio he ir pregar em a Igreja,

aonde fue, e saya fóra o mal, que entrou para dentro, a instituição Igreja é o caminho

apontado pelo enunciador para a purificação do espírito. O discurso possui, assim, um

lugar institucional claro e, consequentemente, é mais uma das formações discursivas

que influenciam os enunciados.

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Em seguida, no enunciado mas ainda a cabeça anda como minha, mesmo o

enunciador encontrando-se com o corpo semelhante ao espírito, ainda possui as

influências da vida mundana, já que seu trabalho espiritual não está completo. Ao

enunciar que ainda tem muito a percorrer e crescer em sua vida espiritual, valida-se

enquanto frei-missionário e orientador espiritual, mas ainda humano, à semelhança de

seu orientado, suscetível ao pecado do corpo. Afirma, ainda, que é o apego e louvação

a Deos que garantem esses despertadores para que a Alma não sucumba ao corpo.

O acesso a Deos dá-se por meio da Igreja, o que revela uma postura

institucional do enunciador, já que no século XVII existia de um lado a Igreja Católica

com a Contrarreforma, propondo a ligação do fiel e do Estado às estruturas

institucionais, e, do outro, os movimentos protestantes que questionavam o papel da

Igreja Católica, dentre outros motivos, pela falta de legitimidade desta enquanto

representante da cidade de Deos e as excessivas intervenções político-econômico-

culturais. O enunciador revela claramente sua filiação institucional e mostra-se, no

recorte 12, como um missionário católico e orientador espiritual.

No recorte 12, a composição dos enunciados é atravessada pelo campo

discursivo do Barroco português. Nos enunciados dei agora em rebelde, até contra

meus achaques me quero levantar a maiores. e porém Nosso Senhor sempre me trata

bem, temos uma construção enunciativa marcada pela definição de um estado do

corpo – o enunciador encontra-se debilitado, doente – e uma contradição que

pressupõe, no primeiro enunciado, o fato do enunciador ir contra seus achaques e

pregar, e, no segundo enunciado, ser essa uma exigência divina, pois se não está

pregando, acaba morrendo.

A definição primeira de encontrar-se debilitado seguido da contradefinição de

que o corpo doente não afeta a paz de espírito e o trabalho missionário do enunciador

propõe uma relação de antítese, ou desequilíbrio, entre Corpo e Alma, e ainda, o

resultado de um ponto de vista final, defendido pelo enunciador e compactuado na

enunciação, de que o trabalho de fé fortalece o espírito e com o fortalecimento tem-se

a cura dos achaques do Corpo. A fé deve ser trabalhada sob a luz, vigília e contato do

fiel com Deos e a instituição Igreja Católica. Corpo e Alma compreendidos como uma

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relação de antítese é uma das características do Barroco português, assim como o

recurso retórico de definição e contradefinição, que serve para validar um ponto de

vista específico e conflituoso na prática social.

Recorte 13

Vamos responder. Não quero já que V.M. se ponha taõ ruins titulos, nem que saya taõ

cedo por fóra o que está solpado dentro. Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e com

ella a viraçaõ do Ceo. Já escrevi a V.M., que Trás dos Montes não he possivel ir.

Porque em cada terra ha muito que fazer. Deixaremos a Provincia para esta segunda

jornada, se Deos dér por isso vida.

No recorte 13, o enunciador inicia o aconselhamento ao co-enunciador. Revela

que se trata de uma carta-resposta, ao utilizar o enunciado Vamos a responder. O

enunciado possibilita a criação da cenografia de uma orientação confessionária, prática

comum no século XVII.

Os enunciados a seguir, inseridos no campo discursivo religioso, carregam uma

visão institucional do discurso teológico bíblico e tem a finalidade de doutrinar o

posicionamento do co-enunciador, adequando-o às regras institucionais da Igreja

Católica. Os enunciados revelam a rotina de seleção de religiosos para participar de

missões, e a negação ou aceitação do pedido, realizado pelos fiéis, que sentem

vontade de atuar em lugares distintos daqueles em que vêm atuando.

O fato de ser uma carta-resposta possibilita identificar que o co-enunciador e o

enunciador possuem um contato anterior, em que o co-enunciador solicita

aconselhamento ao enunciador. Também nos possibilita identificar que o co-enunciador

e o enunciador possuem uma identidade consolidada anterior à enunciação, que é

legitimada no decorrer do discurso enunciado. Os papéis, os lugares, a função

institucional de um e de outro já são constituídos antes do ato enunciativo acontecer. O

simples recebimento da carta, com a identificação de seu enunciador, atribui papéis e

valores à enunciação e aos pontos de vista construídos no discurso.

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Nos enunciados Não quero que V.M. se ponha taõ ruins titulos, nem que saya

taõ cedo por fóra o que está solpado dentro. Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e

com ella a viraçaõ do Ceo., o enunciador responde negativamente a um pedido de seu

co-enunciador, construindo justificativas para que a negação seja aderida pelo co-

enunciador.

Ao enunciar a negação institucional, o enunciador vale-se dos argumentos

construídos anteriormente, no recorte 11, de que o apego institucional e a paciência

são a única maneira de se aproximar de Deos e salvar o espírito, para buscar a adesão

do co-enunciador e coloca as decisões institucionais em semelhança com as decisões

divinas. No recorte 12, referente à introdução da Carta XX, o enunciador constrói um

conceito de que a ligação da Alma com os trabalhos institucionais do Corpo, levam o

fiel a uma ligação maior com Deos. Esse pressuposto será recuperado

semanticamente durante toda a carta, sendo o fio condutor coercivo para as temáticas

desenvolvidas.

O jogo de ideias e conceitos contidos no recorte 12 é recuperado no recorte 13

nos enunciados Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e com ella a viração do Ceo e

Deixaremos a Provincia para esta segunda jornada, se Deos dér por isso vida,

recuperando a noção de que Deos é soberano nas escolhas do destino do fiel, e que o

fato de não ser destinado a outras missões é um despertador divino de que o momento

ainda não chegou. Este tipo de enunciado é muito utilizado pelos cultistas barrocos. O

enunciador vale-se da afirmativa de que com o apego a Deos, ou ao divino, tem-se

inclusive, a cura dos achaques do Corpo, e de que até mesmo ele não está preparado

para todos os trabalhos que pretende realizar, para conformar o co-enunciador de sua

necessidade de obediência e o cumprimento do papel a ela atribuído pela Igreja

Católica.

O fato de o co-enunciador ser impedido, institucionalmente, de ir para Trás dos

Montes é justificado como um alerta divino de que se algo não aconteceu, é porque

ainda não era o momento do fiel. No enunciado Tudo tem seu tempo, sua maré virá, e

com ella a viração do Ceo, o enunciador utiliza um discurso particitado de sua

enunciação. Nesse momento, há um deslocamento de voz enunciativa do enunciador

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para um hiperenunciador divino que valida os argumentos anteriormente enunciados e

reforça a necessidade de adesão do fiel com a palavra e a vontade de Deos

hiperenunciado.

A voz divina hiperenunciada invalida qualquer opinião contrária do co-

enunciador e atribui uma única possibilidade coerciva para o entendimento enunciativo

e, consequentemente, para a prática social. O enunciado mobiliza o aparelho

enunciativo atribuindo valor de verdade universal àquilo que é enunciado

posteriormente. O enunciado, se destacado dos demais enunciados da Carta XX,

possui autonomia de sentido, como se fosse, de fato, uma citação divina

hiperenunciada. O sentido contido no enunciado compactua um valor comum no

paradigma cristão e na fé religiosa, de que a paciência e a calma são virtudes para um

bom religioso, que aguarda o momento certo chegar. Há, inclusive, um deslocamento

enunciativo que força o co-enunciador a perceber a ênfase que o enunciador busca dar

a seu discurso particitado.

O sentido contido no enunciado particitado serve de base coerciva para a

construção dos demais enunciados, que não refletem uma generalidade, mas uma

rotina institucional. O enunciado particitado é abstrato em seu aconselhamento, pois

serve para quaisquer práticas sociais. O enunciador adéqua o conceito à sua realidade,

como se retirasse o enunciado particitado de um conjunto de Thesaurus Bíblicos, ou

sagrados, e realizasse a mediação interpretativa para o co-enunciador, facilitando-lhe a

compreensão, justificando o posicionamento institucional da Igreja Católica e

reforçando a busca pela adesão do co-enunciador ao ponto de vista dos enunciados.

Recorte 14

Em todas as tentações tenho experiência, que não ha melhor defensivo, que a

memoria, e presença de Deos; examinando nella, e olhando para a Alma, se repartio,

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ou diminuio o Amor de Deos; esforçando nessa presença o proposto de não o offender.

E tudo isto com huma suavidade pacífica, sem tumultos, nem violencias dos sentidos,

nem grande eficacia de palavras: que a força quebra a cabeça, e não desaffoga a

Alma, até ter perfeita saúde. Faça V.M. quanto puder por ella, e louve o Nosso Senhor,

que lhe quer mostrar, que até nas cousas do corpo he bem obedecer. Seja Deos

louvado pelos repiques: que em dia das memorias da morte, melhor parecem outros

signaes. Quererá Nosso Senhor, que tudo seja para sua gloria, e honra: que não será

pequena, que os vivos se pareção com os mortos; pois he certo, que os estrondos das

maiores estatuas párao em cinzas. V.M. obedeça aos medicos, como aos Prelados,

que S. Francisco Xavier assim o fazia. E em quanto tiver impedimento na vista, ou nos

olhos doi, não me escreva muito, senão o menos que puder ser. A voz, com que V.M.

ha de servir a Deos, he quando for ao Côro rezar mais alto que puder; como não seja

modo extraordinario, que possa perturbar: que S. Vicente Ferrer assim o aconselha,

que levantemos a voz ao louvor de Deos, ou quando se canta, ou quando se reza.

Nos enunciados Em todas as tentações tenho experiência que não ha melhor

defensivo, que a memoria, e presença de Deos o enunciador apresenta-se como um

religioso que também sofre com as tentações do mundo, mas tem Deos em presença,

o que o conforta e o fortalece para não sucumbir às tentações do Corpo. Alerta, ainda,

que o apego à memória pode repartir ou diminuir o Amor de Deos, refletindo que, ao

longo da vida, sucumbimos às tentações diminuindo a presença de Deos em nossa

Alma, mas que tal reflexão não deve ser realizada com pesares, pois é típico do

percurso do homem cair em tentação e o importante é estar com Deos no tempo

presente.

A reflexão revela o conflito presente no pensamento barroco, também

encontrado em poemas de Gregório de Matos, que refletem o comportamento humano

diante dos julgamentos de certo e errado pressupostos pela instituição Igreja Católica,

que denuncia quaisquer práticas mundanas como o pecado da carne que sucumbe o

espírito e afasta o fiel de Deos. O pecado, no século XVII, não se resumia apenas no

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desrespeito de dogmas da fé, mas infringir também as leis que regiam a sociedade.

Cair em tentações da carne, como expressa o enunciador, era corromper o elo entre o

espírito do fiel e Deos, desrespeitar as leis divinas e as leis naturais, sucumbir o livre-

arbítrio e ir contra o papel social predestinado que cada um possuía na sociedade. Cair

em tentação significava corromper-se, e corromper-se era a mesma coisa que

corromper parte do corpo místico do Estado.

O enunciador busca, com isso, fortalecer o sentimento de fé do co-enunciador,

que se encontra fragilizado. Ainda, não são as palavras, nem a violência de sentidos,

ou seja, as revelações, que irão acalmar o espírito do co-enunciador, mas a suavidade

pacífica de sua ligação com o divino. O enunciador tem o intuito de adequar o co-

enunciador às suas funções institucionais e equilibrá-lo no trabalho de fé. As

revelações lidam com o subjetivo humano e podem ser expressas por quaisquer dos

cinco sentidos, a partir da percepção que o revelado tem de seu cotidiano e de sua fé.

Orientar revelações de alma, epifanias divinas, é um trabalho que não cabe ao

enunciador e está além de suas funções no discurso. O papel por ele assumido é de

um orientador institucional e espiritual. Compreende ser um mediador entre o fiel, a

instituição e a espiritualidade.

O enunciador mostra-se ao co-enunciador como crente de que o espírito e o

corpo apegados à fé e aos trabalhos missionários institucionalizados preparam-nos

para a compreensão das revelações divinas, que só surgem quando Deos acha por

bem que elas devem surgir. Ao recuperar Santo Agostinho, observa-se que, para a

sociedade medieval, o destino do homem já era predefinido antes de seu nascimento,

no plano divino, e que o livre-arbítrio era a compreensão do papel que ele deveria

exercer, e o bom desempenho deste, para preparar-se para o dia do juízo final. Cabia

ao religioso o papel de orientador dos dogmas, e também era responsável por alertar

os fiéis e todas as camadas sociais no cumprimento de suas funções na sociedade e

no respeito às morais divinas. Tanto o enunciador quanto o co-enunciador possuem

este papel e esta função, que devem ser realizados independente de quaisquer

revelações divinas, pois a fé religiosa não precisa ser comprovada fisicamente, mas

sentida pelos fiéis no plano metafísico, pela crença de sua realidade.

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Com o intuito de reforçar esse posicionamento e buscar a adesão do co-

enunciador, há novamente um deslocamento do aparelho enunciativo para uma voz

que transcende a voz do enunciador, no enunciado particitado que a força quebra a

cabeça, e não desaffoga a Alma, até ter perfeita saúde. Nesta particitação, o

enunciador chama atenção para o fato de que o corpo deve servir ao trabalho de fé e

estar saudável para isso, e que a força não desafoga a Alma, não ajuda no

engrandecimento do espírito. O discurso particitado eleva a orientação realizada pelo

enunciador a um status que transcende o plano puramente institucional. O enunciador

assume a função de mediador espiritual, orientando o co-enunciador a cuidar do

espírito e do corpo com paz e paciência. Na filosofia teológica de Agostinho e Aquino, o

corpo é canal para o engrandecimento do espírito, ou seja, não serve a si mesmo e

nem o espírito serve a ele, mas é o corpo que deve manter-se bem para engrandecer o

espírito e a ligação deste com o divino. É somente pelo apego ao divino, e a Deos, que

se tem a redenção dos pecados, que se está livre do status de pecador. O enunciador

reforça essa reflexão ao colocar-se como exemplo, sendo conhecedor das tentações,

mas controlado por ter a presença do Amor de Deos em sua memória.

No enunciado particitado, há a validação do ponto de vista do enunciador de que

as revelações não são os principais objetivos do trabalho de fé. Ao enunciar que a

força quebra a cabeça e não desaffoga a Alma, o enunciador orienta o co-enunciador

quanto à busca incessante de revelações e respostas para os achaques do corpo, pois

esta leva à loucura e não ao que é esperado pelo trabalho de fé, que é acalmar a Alma.

A particitação é imprescindível para validar toda a orientação do enunciador,

uma vez que o co-enunciador encontra-se com a saúde comprometida, como podemos

identificar nos enunciados V.M. obedeça aos Medicos, como aos prelados e Em quanto

tiver impedimento na vista, ou nos olhos dôr, o que, ao ser elevado com uma voz

hiperenunciada, busca forçar a adesão do co-enunciador e transcender aquele

aconselhamento ao plano universal, mas de uma globalidade. O jogo de ideias e

conceitos, típico dos conceptistas barrocos, faz uso de um enunciado particitado que

traz a voz e imagem de um hiperenunciador, para legitimar todas as analogias criadas

no discurso: a relação corpo e alma, instituição e espiritualidade, missão e fé.

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Outro enunciado particitado presente no Recorte 14 é que em dia das memorias

da morte, melhor parecem outros signaes. O enunciador reforça a ideia primeira,

presente no recorte 13, de valorização da Alma e desvalorização do Corpo. Ao

enunciar que a lembrança da morte, sua reflexão e sua aproximação revelam sinais, o

enunciador faz referência à liberdade da Alma do corpo, sendo esta a fonte dos

pecados. A morte, para a sociedade medieval, simboliza o momento do juízo final e o

fim das possibilidades de pecado. É o momento de redenção com o divino, e

compreendê-la dessa forma fortalece o espírito e as convicções do co-enunciador.

A relação do enunciado particitado com as experiências do enunciador relatadas

no recorte 13 e os enunciados a seguir reforçam o jogo de conceitos que tem, por

finalidade, buscar maior adesão do co-enunciador ao posicionamento contido no

discurso. Ainda, ao se tratar de um co-enunciador identificado na enunciação como

detentor de uma saúde debilitada, o aconselhamento de que o corpo é meio pelo qual

se manifesta o espírito e este se apega ao divino é reconfortante.

O co-enunciador, por ser identificado Madre, parte das mesmas coerções que o

enunciador com relação à crença no plano divino. A ideia de que o corpo é passagem e

há uma Cidade de Deos que aguarda o fiel após a morte do corpo é reconfortante para

o co-enunciador suportar os achaques e as doenças que lhe acometem o corpo e

manter-se equilibrado espiritual e institucionalmente em seu trabalho missionário.

Ainda, nos enunciados A voz, com que V.M. ha de servir a Deos, he quando for ao

Côro rezar mais alto que puder são aconselhamentos que tem por finalidade abrandar

o trabalho institucional do co-enunciador e reforçar sua ligação com Deos, sua

espiritualidade, utilizando as resistências que ainda existem no corpo para a ligação

com o divino. Os enunciados destacados também estabelecem um jogo de conceitos

com o enunciado particitado e o recorte 13, que, como afirmamos anteriormente,

oferece base para a construção de todos os pontos de vista expostos no discurso Carta

XX.

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125

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por nossa pesquisa fundamentar-se nos estudos enunciativo-discursivos da

linguagem, examinamos o funcionamento social das cartas espirituais em análise,

tomando-as como atividade humana institucionalizada do discurso religioso. As cartas

espirituais são gêneros que tem como pressuposto orientar e doutrinar o

posicionamento de fiéis e religiosos aos paradigmas da Igreja Católica e da

espiritualidade cristã seiscentistas. O enunciador, inserido em um lugar social, interage

enunciativamente com um co-enunciador que também possui especificidades

socioculturais, com a finalidade de convencê-lo de que a orientação epistolar detém

direcionamentos que solucionam as inquietações da vida cotidiana do homem

seiscentista.

Tanto o enunciador como o co-enunciador são instâncias que influenciam e são

influenciadas pela instituição a qual representam. O gênero carta institui um padrão de

orientação epistolar que, além de cumprir com o dever missionário de um frei ao

orientar seus fiéis, pode substituir, na prática social, a orientação confessionária

pessoal. O enunciador, distante de seu orientado, através da epístola mostra-se

próximo, íntimo e amigo de um co-enunciador que pede por suas orientações,

necessita de suas palavras para resolver tanto questões do espírito quanto incômodos

sociais e pessoais. Exercendo o papel social que lhe é instituído, o enunciador é

missionário na busca de adesão do ponto de vista de seu orientado e acredita que o

papel que desempenha é fundamental na condução do homem ao progresso espiritual

e social. O enunciador assume, na enunciação, a função racional da cabeça do co-

enunciador, desempenhando o papel do clero no Estado português seiscentista, que é

substituir a racionalidade de um Rei ausente na dinastia filipina e doutrinar a sociedade

seiscentista, direcionando o que é certo e o que é errado, segundo as formações

discursivas da instituição Igreja Católica e da espiritualidade cristã.

Os enunciados constituídos revelam posicionamentos e formações discursivas

que nos permitem a consolidação de um espaço discursivo que determina o que pode

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e o que não pode ser dito. Ao examinar as condições sócio-histórico-culturais de

produção dos enunciados analisados, identificamos que tanto o enunciador quanto o

co-enunciador se deparam com a polêmica do sacroprofano, das reformas religiosas,

da valorização do cientificismo e da decadência da espiritualidade, e buscam

posicionar-se de forma a não estabelecer um equilíbrio entre um posicionamento e

outro, mas institucionalizar-se e defender uma verdade absoluta. Assim, o enunciador

mostra-se adepto a um posicionamento de forma a invalidar todos os demais, utilizando

da retórica gongórica do cultismo e do conceptismo, também frequentes na arte

Barroca, para convencer o co-enunciador, que possui sensação de fragilidade de sua

fé e de sua devoção institucional frente às antíteses do mundo seiscentista, quanto a

qual posicionamento deve aderir.

Nesse sentido, o hiperenunciador assume função dentro do discurso encenado

como aquele que legitima e garante os enunciados do enunciador, assim como o ponto

de vista expresso no discurso epistolar. Diante de inúmeros pontos de vista possíveis

que marcam temas do século XVII, o hiperenunciador auxilia na adesão do co-

enunciador a um ponto de vista ideal, uma vez que tanto o enunciador quanto o co-

enunciador integram uma comunidade que reconhece os enunciados particitados que

emanam da autoridade de um SUJEITO-UNIVERSAL hiperenunciado. O uso de uma

instância hiperenunciada, na amostra selecionada, é uma estratégia enunciativa do

enunciador, que tem como finalidade valorizar a instituição a qual representa e a

mensagem espiritual a qual permite transmitir. A utilização de tal instância pauta-se em

um jogo de ideias, conceitos e palavras, que inserem o discurso como estético do

Barroco português, da mesma forma que autores institucionalizados do discurso

religioso como cultores da Literatura Barroca, dos quais destacamos Padre Antonio

Vieira, Padre Manuel Bernardes, dentre outros.

Portanto, notamos que Chagas é tomado como grande cultor da palavra cristã e

um estudioso humilde dos cânones religiosos. Sua estratégia era fortalecer os laços

dos fiéis com a instituição Igreja Católica e a espiritualidade cristã, como que tornando-

se íntimo e amigo de cada orientado, o que influenciava na busca pela adesão do

ponto de vista do outro, a seu discurso. Tal prática reflete na enunciação das cartas

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espirituais selecionadas, ao passo que notamos confissões que, se tomadas no

universo institucional o qual ambos os envolvidos da enunciação vivenciam,

implicariam severas punições, levando em consideração o ambiente rígido e tradicional

que era o universo formal dos conventos e seminários. O fato de o enunciador mostrar-

se cúmplice e caridoso ao co-enunciador fortalece a adesão deste ao discurso

enunciado, somando isso ainda às demais estratégias que encenam cartas espirituais

como discurso de doutrina espiritual e institucional.

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http://pt.scribd.com/doc/51314989/Analisando-o-discurso-helena-brandao-UERN - dia

06.05.13

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ANEXOS

CARTA I

O Amor de Deos arda, e ferva em nossas almas

Irmaã, ou morrer na empresa, ou alcançar a Victoria, ou chegar ao monte da

perfeiçaõ, ou morrer nos suspiros da devoçaõ. Seguir a Christo he o mais alto cume. O

seguir a Christo naõ consiste em cuidar altas cousas de sua Divindade, senaõ em

seguir os passos de sua vida, e crucificada Humanidade. Oh quem fizera isto! Imitar, e

seguir a Christo he fazer o que elle fez, exercitar as virtudes, que elle exercitou;

convem a saber: louvar a seu Eterno Pay, dar-lhe toda a Gloria, e honra, e ser esta a

tençaõ de todas as nossas obras: ter misericordia do proximo, ou seja máo, ou seja

bom; se he bom, amá-lo, pois Deos o ama; e se he máo, soffrê-lo, pois Deos o sofre.

Haveis de desejar a salvaçaõ de cada hum, como a vossa mesma. Tanta pena

vos ha de dar ver que se perde qualquer Alma, como se fora a vossa propria: se naõ

fazeis isto perfeitamente, naõ guardais a Ley de Deos perfeitamente. Vede vós, que

poucos a guardaõ! Chorai isto muito. Porque isto he o que faz chorar aos bons,

encommendar muito a Deos, que tenha piedade dos máos, sem vos escandalizar de

nenhum. Oh doutrina do Ceo, quem te guardára á risca, que logo fora Santo!

Melhor he, Irmaã, obrar bem, que conhecer o bem. Por isso a santidade naõ

consiste em muito contemplar, senaõ em muito obrar. Mais val hum dia, em que andais

fazendo obras de charidade, ou de humildade, ou de obediencia, ou de paciencia, que

estar hum meze m contemplaçaõ, extasis, e em raptos. Porque isto he comer a iguaria

sem a merecer, e aquillo he merecê-la, ainda que a naõ chegueis a comer. Finalmente,

naõ tenho tempo, ainda que a mare he boa. Lembrai-vos do que aqui vos digo.

Entendei que vo-lo manda dizer o Espirito Santo, e a todos os que o lerem.

Começar: começa quem bem deseja, aproveita quem se resolve, chega á

perfeiçaõ quem poem por obra tudo. O alicerse desta casa he a humildade. A virtude

da humildade consiste em vos ter por peyor que todos quantos ha no Mundo, ainda que

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sejaõ más mulheres, e homens perdidos; entendendo, que se Deos lhes déra o que

vos deo a vós, que elles foraõ melhores que vós. Desta humildade nasce o

conhecimento de nossa grande vileza, deste conhecimento nasce o odio, que temos a

nós mesmos, tratando mal o corpo; mas isto com prudencia: que o demasiado fogo á

panella a faz rebentar. Deste odio nasce a mortificaçaõ de nós mesmos, desta

mortificaçaõ o amor de Deos, deste amor de Deos o aborrecimento de tudo o mais, e

desprezo do Mundo. Deste aborrecimento nasce o exercicio da penitencia, contra a

qual se levanta o Mundo, o Diabo, e Carne com grande perseguiçaõ, tentaçaõ, e

tribulaçaõ, que servem como de fornalhas para provar o espirito: se o espirito he falio,

como palha vaã, e inutil, se abraza na fornalha; e se o espirito he verdadeiro, como o

ouro se apura nas levaredas, sahe mais lustroso nestas tribulações, que ou vem de

Deos para nossa próva, ou do proximo pela murmuraçaõ, ou de nós por nossa natural

fraqueza. Exercita-se a paciencia, da paciencia nasce a mansidaõ, da qual Deos muito

se enamora. Desta mansidaõ nasce a devoçaõ, que he hum desejo ardente de Deos,

deste ardente desejo de Deos nasce a pura intençaõ, que he amar a Deos, naõ por nos

salvar, nem por nos dar gosto, nem por interesse algum, senaõ por sua immense e

sobre infinita, e alem de amavel bondade, benignidade, e formosura. Desta pureza

nasce o tratarmos de ajuntar a nossa com a sua vontade. E aqui está o ponto de tudo.

Desta vontade, que temos de naõ ter vontade, nasce a resignaçaõ. A resignaçaõ he

huma entrega, que fazemos a Deos da vontade propria.

Esta resignaçaõ se exercita de dous modos: hum em conformidade com Deos,

dando-lhe graças por tudo quanto nos succeder, ou seja bem, ou mal, como naõ seja

peccado: ou por indifferença, que leva indeterminaçaõ, com que nos pomos a esperar

de Deos igualmente as consolações, com tençaõ de entender a vontade de Deos, pelo

que nos succeed, como naõ seja culpa. Desta indeterminaçaõ, que he altissima virtude,

nasce a uniaõ com Deos; desta uniaõ huma paixaõ doce na Alma, que bem se sente

na Alma, que nos abraça Deos. Desta paz nasce a liberdade do espirito. Liberadde do

espirito he estar a Alma livre de todos os desejos da terra, e de seus vicios, ou sejaõ

por memoria, ou por desejo de voar a Christo, de despir as prizões da carne, e de

morrer, e gozar a Deos claramente na Celestial Patria, tudo he suspirar ao Ceo, e

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chorar pelos bens da Gloria. E como vemos que naõ quer Deos soltar-nos taõ depressa

do carcere deste corpo, viremos a padecer solidaõ, isto he andar fugindo da gente, e

communicaçaõ, buscar lugares tristes, e solitaries, solilloquios interiores com Christo.

Estes se apertaõ mais com a sagrada Communhaõ, com a qual se une o Senhor muito

á Alma. Desta conversaçaõ com Deos nasce desejo da Cruz para acabar crucificados

com Christo, e para que mais cedo subamos ao Ceo por essa Cruz. E desta, tomada

por Gloria, nasce a esperança certa, e infallivel, de que Deos ha de salvar-nos. E aqui

acaba o pégo, ou para melhor dizer, se chega ao cume do monte da perfeiçaõ, quanto

ao nosso conhecimento, ainda que muito ha de perfeiçaõ daqui para diante. Mas quem

chegar aqui, bem póde dizer com S. Paulo: eu ja naõ vivo em mim; porque vive em

mim Jesu Christo. Elle vos guarde, e guarde a todos os que lerem este papel, que foi

vontade sua, que este indigno, e miseravel, inutil, falso e mentiroso a Deos, de sua

vontade o escrevesse para sua Gloria, honra, e bem de todas as Almas de todos

aquelles, que o guardarem a risca. Guardai ao menos este papel, que algum dia póde

ser que me aproveite do que elle diz. E Deos vos faça Santa.

Irmaõ inutil, e sem proveito.

Frei Antonio das Chagas

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CARTA IV

O Amor de Deos more, e arda em nosso coraçaõ.

Minha Irmaã, e Senhora. Vós sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de

terra esteril, e cheya de espinhos, e hum sacco de podridaõ, hoje que pareceis melhor.

E daqui a pouco, esterco, e mantimento de bichos. E nada tendes de vosso, mais que

peccary, e naõ saber agradecer a Deos os favores, que vos faz. Tudo que em vós

sentis do amor de Deos, saõ obras de seu amor. E Deos o que está fazendo em vós,

póde faze rem qualquer creatura, que melhor lho agradecerá. Por seus altissimos

juizos mostra que vos quer bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na

redenodeza do Mundo deixou outros muito melhores que vós, e de melhores

inclinações. E neste conhecimento haveis de ir sempre, para que naõ percais a

Humildade, que he o alicerse de todas as virtudes. E quanto mais esta se mette por

baixo da terra, conhecendo a sua vileza, e a sua ingratidaõ, tanto mais sabe crescer, e

entra pelo Ceo o amor de Deos, que mora nos humildades de coraçaõ, mais que em

todos. E para saber isto como he, tende sentido bem no que vos digo.

A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de Deos, que todo

he Amor, assim como nós somos Corpo, e Alma. E daqui vem, que quem vive em

graça, e em amor, vive em Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que obra nelle. E

porque como entaõ a creatura participa da Divina Natureza, assim como a vide, que

vive unida á cepa, della recebe o succo, e o humor, de que ive, e de que dá fructo;

assim a creatura unida com seu Creador, vive, e respire os alentos da Graça Divina,

que com ella cresce cada vez mais, e dá fructo de boas obras. E como a Graça, e

Amor de Deos, he infinito Senhor, como a panella, que tem grande fogo, este sobe em

cachões fora da panella, e se deseja ir, e sahe. Porque aquelle calor de fogo, que

entrou na agoa, deseja unir-se com o fogo, que está fora, que he o seu centro; e deseja

tambem deitar for a toda a goa, que lho impede: que isto he a nossa vida, e a panella

nosso corpo, e a quentura o Amor de Deos, de que as fervuras nascem. He necessario

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saber isto, para que quando huma Alma se sente cheya de amor, que he o melhor que

póde ter neste mundo, saiba que aquelle amor, ou aquella fervura, naõ nasceo da

agoa, que bem fria he por natureza, nem do barro do nosso corpo, que bem grosseiro

he tambem; mas que só nasceo do amor de Deos, que em nós se ferve de fazer

maravilhas para sua Gloria; e para que nos favores espirituaes perca esta carne mortal

as suas friezas, e se purgue das immundicias, que tem antes de cozer-se, e depois se

temper com as virtudes. E ultimamente quando parece que arrefece, se componha com

a vontade de Deos, que ja quer gostar della. Desorte, que o nosso ponto ate aqui naõ

he mais que conhecermos bem, e verdadeiramente que Deos he o que obra, quando

obramos bem, e naõ nós: e que naõ cuidemos que he humildade dizer, que Deus obra

em nós, senaõ conhecimento certo, que entaõ he só certo, quando nos conhecemos. E

conhecer isto, naõ he humildade, senaõ verdade certa, e conhecimento verdadeiro de

nossa vileza.

Segue-se agora tratarmos de como huma pessoa, que pela Graça de Deos se

sente já fora do Mundo, sentindo-se sem outros desejo que os desejos do Amor de

Deos, como se alongará mais do Mundo. Porque muitos deixaõ o Mundo. E para isto,

basta fugir de suas vaidades. Mas naõ se alongaõ muito, porque naõ chegaõ á solidaõ:

isto he, solidaõ de espirito. E solidaõ de espirito nenhuma outra cousa he mais, que

viver só com Deos. Porque assim como a solidaõ he huma cousa taõ só, que nella naõ

vive ninguem: assim a solidaõ do espirito he taõ solitaria, e só, que naõ acha nella mais

que Deos, e fica a Alma feita hum deserto, os sentidos hum ermo, onde Deos, como

acha sozinha a sua creatura, vem logo fallar-lhe ao coraçaõ, e em ardentes suspiros, e

abrasados desejos de se unir com Deos, que he o seu principio, donde sahio, a fonte

donde nasceo, a origem donde manou, e o centro, onde finalmente aquieta, quando

nelle se recolhe, e se mette, e se entra de todo, para, depois de estar mettida nelle, se

estender pela immensidade daquele ser infinito, para se alargar naquelle pégo de

amor, para arder naquelle mar de luz, para se derramar, e transformer de todo naquelle

summo bem, sobre infinito, sobre admiravel, e sobre eterno. Para isto he necessario

que vivamos sem creaturas na Memoria, sem discursos no Entendmineto, sem outro

amor na Vontade, mais que o Amor de Deos; e que juntamente andem sempre os

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sentidos como pasmados nas maravilhas de Deos, em tudo o que se puzer diante do

sentido em oraçaõ continua. Na oraçaõ particular he necessario que agora entremos.

De dous modos vemos a Deos, e de dous modos he a visaõ de Deos: huma he

visaõ clara, e esta só a tem os Bem-aventurados no Ceo: outra se chama visaõ

obscura, e esta a tem os que no Mundo chegaõ a fazer actos de Fé. Este acto de Fé

naõ he mais que dizer huma creatura com todo seu coraçaõ: Meu Deos, eu creyo de

todo meu coraçaõ, que vós estais aqui dentro de mim, for a de mim, sobre mim, e ao

redor de mim. E logo crer isto sem duvida nenhuma, e naõ pôr a cuidar como elle alli

está; que isto entaõ se cuida, e menos se considera, entaõ se crê melhor. Porque em

vós crendo que Deos está em vós, e comvosco, sem saber como, e que vos está como

espreitando, logo vos ascendeis em amor, que he o maior bem de todos, melhor que

ter visões, e extasis, e revelações, que isto tudo se póde ter em peccado mortal. Só o

amor de Deos se naõ póde ter, senaõ em Graça. Antes importa muito ás pessoas

espirituaes, que totalmente irem de si o desejo de visões, e consolações. Porque he

golozina espiritual. E em quanto a creatura naõ chega á uniaõ de Deos, ainda que se

déra caso, que vos apparecêra hum Christo crucificado, tinheis obrigaçaõ de duvidar se

o era, e de lhe dizer: senhor, naõ he isto o que eu quero, nem desejo: o que quero he,

que se faça em mim a vossa vontade: e tratar de vos pôs na solidaõ; isto he, dizendo:

Deos na minha Memoria, Deos na minha Vontade, Deos no meu Entendimento; e nada

mais. E como a solidaõ do espirito he nada, he necessario pôr-vos nesse nada deste

modo> nada quero, nada desejo, nada tenho, nada mereço, nada procure mais que o

amor de meu Senhor Jesu Christo. E isto vos encommendo muito. Porque neste nada,

e na solidaõ, com que se diz: Deos na minha vontade, e nada mais, etc. está quase

toda a chave do jogo. E a razão he: porque Christo naõ está sempre comvosco, quanto

á Humanidade, e por isto se vai: está sempre quanto á Divindade. E quanto esta he

melhor que a Humanidade, tanto a deveis querer mais. Porem sempre convêm que

comeceis pela vida de Christo. E sabei, que agora estais no Cabo da Boa Esperança>

que isto saõ as sequidões, froxidões, e mais impedimentos do espirito. Se passares

adiante, vivereis em altissimos favores de Deos, e vivereis nelle, e andareis por cima

dos Ceos. Se vos deixares vencer das froxidoes, desgostando, e apartando-vos da

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Oraçaõ, perdereis a Deos, e predereis tudo. por isso, aindaque naõ seja mais que

offerecer a Deos o tempo, convêm que lhe offereçais sempre as horas, que costumais

ter de Oraçaõ. Sobre aquillo do Convento, cedo nos veremos, e entaõ fallaremos. Bem

me parece isto. Porque he final de Matrimonio espiritual, que he o mais alto estado, a

que se chega no Mundo. He sinal; porque assim como huma pessoa, que se casa,

deixa pay, e mãy, como dizia Christo, pelo seu Esposo: assim quem casa com Deos,

que deixa por elle tudo, dá mostras de que Deos a quer furtar, e casar-se com ella. Mas

sobre isto fallaremos. E o que importa he fazer agora esses exercicios todos os dias,

começando sempre por Christo, até que nos vejamos. Sobre a resa, me parece bem

que rezeis as vossas obrigações, e que vos naõ canceis em ter o sentido na resa,

senaõ em Deos. E melhor resareis assim, e naõ vos fará nenhum impedimento deste

modo. Por isso resai em todo caso, cuidando só em Deos, e passando-o pela resa.

Antes que entreis na Oraçaõ, fazei muito por dizer estas palavras com devoçaõ: Meu

Deos, e meu Senhor, se pudéra vir aqui com pureza da Virgem Santissima, Senhora

Nossa, ella for a a minha alegria. Se pudéra vir com o amor de todos os Serafins, e

com a reverencia, e louvor de todos os Anjos do Ceo, essa for a a minha Bem-

aventurança. Se aqui trouxera o mesmo amor, com que vós vos amais, essa for a a

minha Gloria. Se de todos os corações do mundo pudera fazer hum só coraçaõ, eu vo-

lo déra, meu Deos, e só para vós o quizera. Se de cada areya do mar, de cada Estrella

do Ceo, de cada argueiro da terra, de cada hervinha do campo, de cada folha das

arvores, de cada letra dos livros pudéra fazer mil Mundos de Almas, mil Reynos de

vidas, mil mares de corações, mil Ceos de espiritos, todos, meu Deos, e meu Amor,

foraõ poucos, e me parecêraõ limitados para entregar-vos, e render-vos. Se for a Deos,

como vós fois, vos adorára por meu Deos, e andára fazendo sempre creaturas, que vos

adoráraõ, Córos de Anjos, que vos louváraõ, Templos, em que vos serviraõ, e Almas,

que vos amáraõ. Se fora o mesmo, que vós sois, deixara de ser Deos, porque vós o

fosseis, e me contentára, pondo-me aos vossos pés, com que huma vez

amorosamente puzesseis em mim os vossos olhos, e me naõ quizesseis mal. Meu

Deos, e meu Senhor, se me derais licença que nesse Ceo furtasse alguma cousa, nem

a Gloria furtaria, nem a Bemaventurança: só huma cousa furtará, e esta he o vosso

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Amor, a todos os Anjos, e Serafins, a todos esses Espiritos Bemaventurados deixaria

eu Bemaventurados, mas o amor, que vos tem, havia de furtar-lho. Nem a Virgem

vossa Mãy escaparia, de que eu para vos amar andentissimamente lhe furtasse

tambem o amor. Dai-me vosso amor, meu Deos Pay, dai-me huma migalha de amor a

esta pobrezinha, que vo-lo pede de esmola por amor de meu Senhor Jesu Christo. Dai-

me vosso amor, meu Deos Filho. Dai-me vosso amor, meu Deos Espirito Santo. Amen.

Deos vos guarde. Coimbra, 2 de janeiro de 1664.

Irmaõ, e Amigo d´Alma.

Frei Antonio das Chagas.

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CARTA V

O Amor de Deos more na Alma de V.S.

Muito reverenda Madre Soror N., e Senhora minha. Todas as de V.Reverencia

me tem chegado, e todas me parece que tenho lido, e até hoje li huma, que me

escreveo ha hum anno, em que me fallava em N., a quem todos devemos muito

encommendar a Deos, para que das presentes quedas naõ pare em maiores ruínas. E

livre-nos Deos das mesmas, que nos mesmos males podemos cahir, se Deos nos

desemparar. Naõ he possivel responder a tudo pelo miudo, nem ainda pelo grosso;

faremos o que pudermos.

Primeiro que tudo: até agora mortifiquei a V.M., em quanto naõ fizesse o que me

dizia; pois sendo isto nada, a vi taõ pegada a esta ninheria, que era necessario tirar-

lha: agora vejo que V.M. não tem nenhum desapego, nem resignaçaõ; pois por lhe

dizerem que eu estava enfermo, chorou. Que sentimentos saõ estes? Quem serve a

Deos, naõ sente nada, louva a Deos em tudo, e por tudo lhe dá graças. Cuidava eu que

tinha feito em V.M. alguma cousa. Cuidava que se lhe chegassem novas que eu era

mroto, se alegrasse muito em Deos, e dissesse: ou este Frade era bom, ou máo, ou foi

ao Inferno, ou ao Ceo. Se ao Ceo, naõ ha que sentir; se ao Inferno, convêm conformar

com Deos, e louvá-lo. Porque, levando-o taõ cedo, lhe escusou o cometter mais

peccados, a que se seguem maiores tormentos. Santa Maria Ogniaca, apparecendo-

lhe sua mãy depois da morte, e dizendo-lhe que estava condenada, louvou a Nosso

Senhor, e alegrou-se na justiça de Deos, aborrecendo aquella, a quem Deos aborrecia.

He possivel que se poem V.M. a chorar por Fr. Antonio! Estive arriscado a naõ lhe

escrever mais. Aposto eu que naõ chora V.M. tanto por seus peccados. Miseravel de

mim, que sou peyor, pois lhe custo maior sentimento. Depois de me passer a paixaõ,

estive para lhe mandar por obediencia, que me considerasse morto, e até naõ folgar

muito com isto, naõ me escrevesse; mas compadeço-me d miseravel espirito de V.M.

cheyo dessas sensibilidades. Que ha de dizer quem isso vir? Oh Padre, Christo chorou

na morte de Lazaro, e Santo Agostinho, e S. Bernardo na morte de sua mãy, e seu

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irmaõ. Oh como sabemos canonizar os delictos, fazendo das culpas merecimento, e

vestindo o erro de desculpas. Faça-se V.M. de marmore, que até naõ perder o

sentiment de tudo, naõ farei grande caso do seu espirito. Naõ me dirá, que he o que

tem aproveitado em tantos annos? Ainda está por saber este ABC do Amor de Deos,

quem nos ensina como Doutora as regras do espírito? Considere-se, abata-se,

humilhe-se, e já que lhe parece que chegou a indeifferença; veja se se alegra com isto,

se dá graças a Deos de descobrir esta mina de sua fraqueza, engano, e vaidade.

Ora já lá vai a atrovoada. Necessario he que a luz appareça, e que tenha algum

allivio, quem soffreo a minha pena. Até que eu ordene outra cousa, em quanto V.M.

tiver saude, tomará cada semana tres disciplinas, que entraraõ em numero com as da

Communidade, se nesse tempo as houver. Jejuará cada semana, tendo perfeita saude,

os Sabbados, ou Sextas feiras a paõ, e agoa diante da Communidade. O jejum se

entende a semana, que não for Cozinheira, ou tiver grande trabalho. E trará por

exercicio o mais do tempo, além da Santa Oraçaõ, as palavras, que disse Nosso

Senhor a Santa Catharina de Sena, huma semana: eu sou o que sou, tu es o que nao

es. E faça por remoê-las bem, como agora; Eu sou o que sou santo. Eou sou o que sou

puro. Tu es a que naõ es, nem pura, nem santa. Outra semana terá por exercicio o

amis do tempo: tem tu cuidado de mim, que eu terei cuidado de ti. E cuidando em

Deos, faça por se descuidar de si. Outra semana aquellas palavras, que lhe disse:

Escolhe as cousas amargosas por doces, e tem as doces por amargosas. Estima como

refrigeiro as Cruzes, que na verade para a Alma saõ refrigerio. E naõ dirá V.M. que lhe

naõ dou algum, pois lhe inculco estes allivios.

Com a resoluçaõ de N. me alegrei. E naõ lhe está mal padecer para se

aproveitar, que Deos cura humas feridas com outras. Alegro-me tambem, de que V.M.

se houvesse com indifferença. E o que importa he, naõ esperdiçar isto com alguma

palavra, ou sentiment voluntario: que os naturaes, ainda que mostraõ as paixões pouco

mortificadas, saõ fructa da natureza. Ame V.M. quem amis lhe dér que merecer, que

essas saõ as verdadeiras amigas no mundo que os que nos gabaõ, e adullaõ, inimigos

saõ. A lanceta, que nos tira o sangue, mais amiga he nossa que o comer gostoso, com

que adoecemos. A Christo tentou o Demonio. Todo o que naõ he tentado, tenho quase

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por vencido. Porque ninguem poem demanda á sua fazenda: e assim nem o Demonio.

O que importa he, em elles vindo, dar graças a Deos, sem fazer grandes aballos pela

resistenca: que a maior consiste em pôr em Deos a memoria, e a vontade. Estimei

muito o que o Padre N. assistisse a N., porque poderá ser que importasse naõ menos

que a sua salvaçaõ esta assistencia. Tenha Deos misericordia de todos, e conserve a

muitos servos seus para salvaçaõ das Almas.

Eu me levo muito boa vida, e me acho muito bem disposto. Tudo isto se pode

acabar em huma hora. E cumprio-se a profecia de Viseu. Mas pelo que vou vendo de

presente, até para a saude foi boa esta vinda, para o espirito no recolhimento; para a

saude nas medicinas, onde temos confiança. Seja Deos bandito! Naõ era necessario,

que houvesse la petições ao Padre Provincial, para naõ haver penitencias, que aqui

naõ temos outra, que disciplina todos os dias, o paõ, e agoa. Cadêas já naõ as trago.

Todos me mandaõ comer, e nenhum jejuar, nem affligir. Faça-se a vontade de Deos,

que com isto folgo muito. Assim folgue eu no que for próva, e tormento. Os quarenta

dias, que tinha determinado, por causas efficazes, que o haõ impedido, se convertêraõ

nos nove, que V.M. me diz. E darei conta, naõ dos resplandores, que trago do monte,

se naõ das sombras, que descobri neste vale. Queira Deos que seja de lagrimas, para

que, sendo diluvio, se affoguem culpas, e se desaffogue a consciencia. Estimo muito a

medida, e quererá Nosso Senhor que com ella, onde a puz, se melhore taõ má cabeça,

que já para o corpo fica bõa. Ao Padre Fr. N. consulte V.M. em tudo o que for

necessario, como a mim mesmo. E faça mais caso do seu parecer, que do meu: e

assim lho mando, até que depois do Capítulo vá assistir a V.M. de mais perto, se cá

vier o Géral; que se naõ vier, fico-me por cá outro anno. Porque naõ fique sem Missão

Trás os Montes. Aindaque já encommendei esta Provincia a Jeronymo Ribeiro, que

andou pregando por aquellas partes, e fez nellas practices. Seja Deos bem ditto! As

cartas de Santa Thereza, com as Notas de Palafoz, tive depois de Frade. Naõ li muito

dellas; porque sempre me falta tempo para mim. As memorias de meus annos

agradeço a V.M. e bem haõ mister os meus esquecimentos as suas memorias. E

quererá Deos Nosso Senhor, que em a emenda de alguns dias, se repárem as ruinas

de tantos annos agradeço a V.M. e bem haõ mister os meus esquecimentos as suas

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memorias. E quererá Deos Nosso Senhor, que em a emenda de alguns dias, se

reparem as ruinas de tantos annos, que só se contaõ para o pranto, naõ tendo que

descontar para o merecimento. Naõ entendo bem esta pergunta de V.M. declare-se

V.M., ou faça tudo o que entender naõ he peccado, e póde ser causa de impedi-lo sem

damno nenhum. Já pode V.M. chamar-se filha, e seja-o diante de Deos, para que por

meyo de V.M. me perdoa Deos minhas culpas, e me conceda suas misericordias.

Agora naõ posso amis, quando puder será melhor. Entretanto recommende-me ás

amigas, e a todos peça roguem por mim a Sua Divina Magestade, que guarde a V.M.

quanto lhe peço, e desejo.

Viseu, 16 de julho de 1678.

De V.M. servo muito obrigado.

Frei Antonio das Chagas

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CARTA VI

O Amor de Deos arda, e ferva na Alma de V.S.

Minha Senhora. Estre grilhaõ, que me deitaraõ meus males, ou meus bens, ha tanto

tempo, tem sido a causa de eu naõ escrever a V.S. como desejava; mas se tenho para mim

que morreo todo o desejo do espirito, que muito he que adecesse o primor. Dê-me V.S., se

assim for servida, muito boas novas suas, porque de todas farei a devida estimaçaõ.

Eu fico melhorado, seja Deos bandito, mas com grande fraqueza: e esta me tem maõ,

par que naõ esteja mais longe. Mas espero em Sua Divina Magestade, que algum dia possa de

mais perto dizer a V.S. o que entendo no particular, em que V.S. me falla no seu ultimo papel.

Senhora: as arvores podem estar cheyas de fructose, e juntamente estar verdes, e com alguma

flor; nas do espirito requere-se, que se acabe a flor, e que se acabe a verdure, para chegar á

transformaçaõ de Christo crucificado, que he o que eu prégo, sem se S.Paulo: e assim deve

estar crucificado tudo na arvore da mortificaçaõ, que eu estimo mais que a Oraçaõ. Necessario

he que se seque a flor da discriçaõ, e se seque a verdure de nossas paixões, e inclinações

naturaes, e que se ponha todo o cuidado em sazonar os fructose das obras virtuosas, sem que

concorra a arvore para a folha, e para a flor com a substancia, que tira aos fructose. V.S. tem

hum juizo muito malfazejo para si, porque lhe sahe muitas vezes pela porta fora. Necessario he

fechar a porta, e fechar-se V.S. dentro de Christo, se trata de ser santa, e naõ dizer, nem fazer,

nem cuidar o que naõ cuidará, fizera, ou dissera este Senhor. E com sua licença, e por sua

Gloria, e honra, fazer entaõ o que elle ao coraçaõ lhe fallar. Prouvera a Deos, que todas as

Senhoras foraõ como V.S. Naõ tenha vaidade. Porque V.S. he huma creatura vil, e miseravel,

como as outras. Mas eu naõ me content, já que V.S. tomou esse caminho, senaõ com que

emprenda as virtudes heroicas sem Imperfeiçaõ, e saya dos desalentos de mulher para a

grandeza de animo, com que deve ser senhora de suas paixões. V.S. ainda está cheya de

vaidades, presumpçaõ, cuidado do seculo, e satisfaçaõ com o mundo. Isto naõ ha de ser

assim. Costumaõ dizer alguns: ou bem dentro, ou bem fora. Senhora, bem fora de tudo. isto he

o que eu aconselho. E naõ cuide V.S. que em ter grande paciencia no que lhe digo, tem grande

merecimento. Naõ basta huma virtude, saõ necessarias todas. Naõ basta que, V.S. dê tudo a

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Deos, senaô que se dê a si despida até de si mesma: que isto he o que este Senhor quer de

nós mais que tudo.

Ainda assim peço perdaõ a V.S. de quanto lhe tenho ditto. Porque poderá ser que a

curta vista de meu juizo se engansse em tomar a altura ao espirito de V.S., como quem

entende taõ pouco de espíritos, como eu. Mas aproveite-se V.S. desta vibora, pois ainda que

nella haja a maior peçonha, dizem os Naturaes, que tambem da sua cabeça se faza melhor

triage. Seja Deos muito bandito! E em castigo desta minha ousadia, mande-me V.S. este

Christo aqui a Monte-mór, para que elle me reprehenda, posto em huma Cruz, e desta Cadeira

me ensine, o que sem escrupulo de minha grande soberba direi entaõ a V.S. e por amor deste

Senhor naõ se esqueça de encommendar-lhe esta taõ pobre Alma, pois sabe V.S. o que

merece a charidade, o que trata bem aos peyores. Eu, tal qual sou, em meus pobres sacrificios

encommendo, e peço a Sua Divina Magestade, que guarde a V.S., e lhe dê todas as

felicidades de espirito, em cuja comparaçaõ todas as do mundo saõ engano, e vaidade. Monte-

mor.

De V.S. servo, e Capellaõ inutil.

Frei Antonio das Chagas.

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CARTA VII

O Amor de Deos more na Alma de V.S.

Minha Senhora. Todos se queixaõ das minhas faltas, e todos tem razaõ, se de

mim se queixaõ e V.S. muito mais. Mas hum homem taõ deitado a longe, que pode

fazer que bom seja! Quando he maior a minha tibieza, e negligencia com Deos, e com

os proximos, tanto maior espero que seja a caridade de V.S. em rogar por mim a Deos.

Em meus pobres sacrificios, quanto posso, desejo merecer a V.S. a lembrança.

Que tem de mim diante de Deos, e que vá adiante a Concordia, que em todas as

cousas de V.S., e de sua casa, filhos, netos, e sobrinhos, se continuem, e augmentem

as felicidades d´Alma, e da vida, que lhe desejo. Mas em bons desejos se me vay tudo.

Nada he o que obro, porque o mais que faço he nada. As melhores Caldas do mundo,

saõ a Graça de Deos, a santa Oraçaõ, e conformidade com Deos, caridade, e

paciencia nas contrariedades, que desejamos. Se nestas se metter a Senhora

Condessa, terá quanto quizer de Deos, e saberá pacificar-se, naõ querendo de Deos

nada, senaõ o que elle quer, que sempre he o melhor.

Eu vou continuando esta peregrinaçaõ por esta banda, já vay para o fim, e

desejara começar de novo para Mirranda. Naõ sei se terei tempo, vida, e espirito. Faça-

se a Divina vontade. Os Companheiros andaõ bons. O padre Fr. Luiz entendo escreve

a V.S. Agora fica com huma grande ciatica. Isto tambem he bom para os servos de

Deos. Encommende-nos V.S. a sua Divina Magestade, que guarde a V.S. quanto lhe

peço, e desejo.

Barcellos, 18 de fevereiro de 1678.

De V.S. servo inutil, e muito obrigado.

Frei Antonio das Chagas

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CARTA VIII

O amor de Deos more na Alma de V.S.

Minha Senhora. Naõ perco eu com V.S. o tempo, antes o dou por muito bem

empregado; mas falta o tempo, e cresceo o labirintho. E quem anda taõ perdido como

eu, naõ he muito que perca o fio para as suas importancias; que por taes avalio as

tarefas, em que me faço lembrado a V.S. Ajude-me V.S. com as suas Orações, e

Concordia, que eu no que posso ajudar, ainda que taõ pouco valho, naõ me descuido.

Naõ se podem dizer verdades de taõ longe. Deos nos chegará a tempo, que tenha V.S.

o merecimento de ouvir-me, assim como já agora o de soffrer-me. Encommendo muito

a V.S. a presença, e memoria de Deos. Porque este Espelho diante dos olhos d´Alma

basta para exercicio, pois alli nos vemos, e vemos, como he possivel, a Deos, e a sua

vontade. E quem traz os olhos no Sol, naõ anda em trevas.

Tambem dou a V.S. as graças por esta penitencia. Já fez seu papel em publico.

Queira Deos, que a consideraçaõ desta pena seja meyo, paraque algumas Almas

busquem o caminho da Graça. A V.S. peço que cada vez mais me encommende a

Deos, e sua Divina Magestade guarde a V.S. muitos annos.

Vianna, 28 de março de 1678.

De V.S. servo inutil.

Frei Antonio das Chagas

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CARTA XX

O Amor de Deos more na Alma de V.M.

Madre N., e Senhora minha. Senhora, ainadque naõ queira, pois he Esposa de

meu Senhor. Dei agora em rebelled, e até contra meus achaques me quero levanter a

maiores. Estes dias andei de corpo similhante ao espirito, que naõ he pouco mal:

porém Nosso Senhor sempre me trata bem. Se me naõ curára prégando, estivera

morrendo. Porque me cahio muita agoa na cabeça nos Sermões do Campo, em Braga,

e em Barcellos, Ponte de Lima, e nesta Terra; até que cahi, e tenho por experiencia,

que o remedio he ir pregar em a Igreja, aonde fue, e saya para for a o mal, que entrou

para dentro. Assim o fim, e assim melhorei. Mas ainda a cabeça anda como minha:

porém tudo he meyo, e motive de louvar a Deos, que poem estes despertadores, para

que naõ durma a Alma, antes véle em sua presença. Seja Deos bandito.

Vamos a responder. Naõ quero já que V.M. se ponha taõ ruins títulos, nem que

saya taõ cedo por fora o que está solapado dentro. Tudo tem seu tempo, sua mare virá,

e com ella a viraçaõ do Ceo. Já escrevi a V.M., que a Trás dos Montes naõ he possivel

ir. Porque em cada terra ha muito que fazer. Deixaremos a Provincia para esta

segunda jornada, se Deos de para isso vida. Naõ cayo no que V.M. me diz das

Communhões espirtuaes. Se he pedir lecença para faze-las, parece-me mui bem. Lá

foi huma medida, que mandei este Correio passado, que trazia commigo havia muito

tempo, de Nossa Senhora. Em V.M. fica melhor quando eu lá for. Basta-me o Sangue

de Christo Senhor nosso, que trago commigo. Das culpas commetidas, ou que V.M.

commetter até a segunda ordem, naõ faça V.M. mais penitencias, que conhcer que naõ

he capaz de nenhuma, nem a fez nunca, como a devia fazer. E cuide sempre, que he

peior do que cuida: que se naõ achará nisso muito enganda. E eu crerei a V.M. sem

virem a balha os Santos Evangelhos para prova de sua grande humildade. Ora seja

Deos bandito, e queira Deos que assim seja.

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Em todas as tentações tenho experiencia, que naõ ha melhor defensive, que a

memoria, e presença de Deos: examinando nela, e olhando para a Alma, se repartio,

ou diminuio o amor de Deos, esforçando nesta presença o proposito de o naõ offender.

E tud isto com huma suavidade pacifica, sem tumultos, nem violencias dos sentidos,

nem grande efficacia de palavras: que a força quebra a cabeça, e naõ desaffoga a

Alma, até ter perfeita saude. Faça V.M. quanto puder por ella, e louve a Nosso Senhor,

que lhe quer mostrar, que até nas cousas do corpo he bem obedecer. Seja Deos

louvado pelos repiques: que em dias das memorias da morte, melhor parecem outros

signaes. Quererá Nosso Senhor, que tudo seja para sua Gloria, e honra: que naõ será

pequena, que os vivos se pareçaõ com os mortos; pois he certo, que os estrondos das

maiores estatuas páraõ em cinzas. V.M. obedeça aos Medicos, como aos Prelados,

que S. Francisco Xavier assim o fazia. E em quanto tiver impedimento na vista, ou nos

olhos dôr, naõ me escreva muito, senaõ o menos que puder ser. A voz, com que V.M.

ha de servir a Deos, he quando for ao Côro rezar mais alto que puder; como naõ seja

modo extraordinario, que possa perturubar: que S. Vicente Ferrer assim o aconselha,

que levantemos a voz ao louvor de Deos, ou quando se canta, ou quando se reza.

Eu bem folgára de ter onde parar, e recolher-me algum tempo no meyo destas

Missões. Mas somos muitos, e naõ ha onde fora de Viseu, ou da Provincia. Apenas

começamos huma terra, já nos chamaõ para outra: e assim lidando com varias fadigas,

he preciso descansar, trabalhando nellas.

Lea V.M., quando puder, essas quintas essencias do Padre Puente> aindaque

me parece, que quem lhe resumio a substancia, naõ terá o mesmo espirito. Ainda que

naõ tive tempo de ler a Infancia de Christo, tenho o seu Author por Varaõ perfeito. Ler

tudo, sempre he bom; mas nem a todos he concedido ir pelo caminho, que se lê em

todos. Comforme o espirito de cada hum deve ser o exercicio, e o emprego. No ler naõ

ha engano. Do Senhor Bispo de Lamego espero grandes fructose, pelo fervor que vejo

em seu espirito, e no pastoral cuidado, com que se desvela pelo bem das Almas: tudo

he necessario nestes miseraveis tempos. Porque os peccados saõ os maiores, que

houve nunca no mundo. O Senhor Bispo do Porto he hum grande Prelado: e eu lhe

devo viver sempre muito aggradecido, pela mercê que me tem feito. Estimo que a

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Madre Soror N. ande taõ alentada, que chegue a ser Cozinheira. Entre os tições póde

arder o coraçaõ: e ente o fogo da terra soprar-se o do Ceo. Peço-lhe V.M., que nessas

fadigas se lembre de quem merece o do Inferno. V.M. festeje o Senhor S. Joseph,

quanto puder, que eu folgara de fazer o mesmo: mas cá, como posso, faço o meu

officio. Na Enfermaria naõ ha regra de mortificações. Amor de Deos, compunçaõ

comsigo, caridade com o proximo, seja o commum exercicio, e presença de Deos, que

guarde a V.M. quato lhe peço.

Viana, 28 de Março.

Servo inutil, e mais obrigado a V.M.

Frei Antonio das Chagas