mestrado livro - 02

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livro para o mestrado em educação USP

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  • AZANHAJOS MRIO PIRES

    JOSE MARIO AZANHA.pmd 21/10/2010, 08:181

  • Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio TeixeiraAparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho

    Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy RibeiroDurmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan FernandesFrota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos

    Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires AzanhaJulio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim

    Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo FreireRoquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

    Alfred Binet | Andrs BelloAnton Makarenko | Antonio Gramsci

    Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin FreinetDomingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim

    Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich HegelGeorg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich

    Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques RousseauJean-Ovide Decroly | Johann Herbart

    Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev VygotskyMaria Montessori | Ortega y Gasset

    Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

    Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco

    Coordenao executivaCarlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari

    Comisso tcnicaCarlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)

    Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle,Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas,

    Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero

    Reviso de contedoCarlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto,Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia

    Secretaria executivaAna Elizabete Negreiros Barroso

    Conceio Silva

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  • Jos Srgio Fonseca Carvalho

    AZANHAJOS MRIO PIRES

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca)

    Carvalho, Jos Srgio Fonseca Jos Mrio Azanha / Jos Srgio Fonseca Carvalho. Recife:Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 176 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-518-01. Azanha, Jos Mrio, 1931-2004. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo.

    CDU 37(81)

    ISBN 978-85-7019-518-0 2010 Coleo Educadores

    MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana

    Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbitodo Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo acontribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de

    melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formale no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos

    contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no sonecessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao.

    As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicaono implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCOa respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio

    ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

    A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia,estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98.

    Editora MassanganaAvenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540

    www.fundaj.gov.br

    Coleo EducadoresEdio-geralSidney Rocha

    Coordenao editorialSelma Corra

    Assessoria editorialAntonio Laurentino

    Patrcia LimaReviso

    Sygma ComunicaoIlustraes

    Miguel Falco

    Foi feito depsito legalImpresso no Brasil

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  • SUMRIO

    Apresentao, por Fernando Haddad, 7

    Ensaio, por Jos Srgio Fonseca Carvalho, 11Introduo: fragmentos de uma vida voltada educao pblica, 11

    Docncia como vocao, 11Poltica como vocao, 16

    Democratizao da educao: conquista polticaou estratgia pedaggica?, 20

    Uma poca de luta pela expansodo atendimento escolar, 20As reformas da gesto Ulha Cintra, 22O embate entre a afirmao de um direito polticoe as expectativas pedaggicas, 26Democratizao do ensino: um conceito varivel eprogramtico, 29Desafios de uma educao comprometidacom a democracia, 34

    Autonomia da escola, 37A experincia poltica como gnese do conceito, 37Uma trajetria histrica da noode autonomia nos discursos educacionais, 44A autonomia como desafio ao pensamentoe convite ao julgamento, 49

    Formao de professores, 53

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  • 6ANTONIO GRAMSCI

    O mundo escolar como ncleo tericoda formao de professores, 53A crtica abordagem didtico-metodolgicacomo base da formao de professores, 61A cultura das instituies escolarese o ponto de vista pedaggico, 69

    Uma filosofia da pesquisa em educao, 75O carter seminal do Centro Regional de PesquisasEducacionais, 75Uma crtica ao cientificismo tecnolgiconas pesquisas em educao, 81Um caminho para a superaodo abstracionismo dos estudos pedaggicos, 87

    A produo bibliogrfica, 95Os enigmas do destino de um clssico da educao, 95

    Textos selecionados, 105Democratizao do ensino:vicissitudes da ideia no ensino paulista, 105Proposta pedaggica e autonomia da escola, 124

    Notas preliminares, 124A questo da autonomia na nova LDB, 127O projeto pedaggico na escola pblica, 128Consideraes finais, 136

    Uma reflexo sobre a formao do professorda escola bsica, 137

    A questo dos fundamentosda formao docente, 137A natureza da relao pedaggica, 141O novo quadro legal da formao docente, 146Deliberao CEE n 08/2000, 154

    Cultura escolar brasileira, 157Um programa de pesquisa, 157

    Cronologia, 169Bibliografia, 173

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  • 7COLEO EDUCADORES

    O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educa-dores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colo-car disposio dos professores e dirigentes da educao de todoo pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeramalguns dos principais expoentes da histria educacional, nos pla-nos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentosnessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importantepara o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas aoobjetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e daprtica pedaggica em nosso pas.

    Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao insti-tuiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes doMEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unescoque, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros etrinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimentohistrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avanoda educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-leo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau ofEducation (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos mai-ores pensadores da educao de todos os tempos e culturas.

    Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projetoeditorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto PauloFreire e de diversas universidades, em condies de cumprir osobjetivos previstos pelo projeto.

    APRESENTAO

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  • 8ANTONIO GRAMSCI

    Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC,em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favo-rece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, comotambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a pr-tica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transiopara cenrios mais promissores.

    importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coinci-de com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao esugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, emnovembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de espe-ranas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas quese operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulga-o do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Uni-versidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tobem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.

    Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e doEstado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosado movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passa-do, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-bilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas edu-cacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprova-o, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases nocomeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas easpiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetiza-das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido porFernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidasem 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

    * A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste

    volume.

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  • 9COLEO EDUCADORES

    Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio daeducao brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com otempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, doPlano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanis-mo de estado para a implementao do Plano Nacional da Edu-cao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educa-cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no serdemais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cujareedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifestode 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos pro-blemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao daeducao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideiase de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer daeducao uma prioridade de estado.

    Fernando HaddadMinistro de Estado da Educao

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    COLEO EDUCADORES

    JOS MRIO PIRES AZANHA(1931-2004)

    Jos Srgio Fonseca Carvalho

    Introduo: fragmentos de uma vida voltada educao pblica

    H homens que lutam um dia, e so bons;H outros que lutam um ano, e so melhores;

    H aqueles que lutam muitos anos, e so muito bons;Porm h os que lutam toda a vida. Estes so os imprescindveis.

    Bertold Brecht

    Docncia como vocao

    Em novembro de 2002, a Faculdade de Educao da Univer-sidade de So Paulo concedeu a Jos Mrio Pires Azanha sua maisalta distino acadmica: o ttulo de professor emrito. Fiel ao seuestilo conciso, fez um discurso breve, embora tocante. Nas poucaspalavras que proferiu aps os agradecimentos, Jos Mrio relem-brou que o termo emeritus fazia referncia a uma prtica militar daRoma Antiga. Era um ttulo empregado para designar um soldadoque se retira do exrcito, e que, no obstante, permanece como soldado.

    Sculos depois, a partir de uma tradio iniciada nas universi-dades anglo-saxnicas, passou-se a atribuir o ttulo de emrito a umprofessor aposentado, como reconhecimento pblico da relevnciade uma carreira. Mas tambm, acrescenta Jos Mrio, como di-zendo a ele que aquela dedicao de uma vida toda ao ensino per-manece e confere a ele o direito de continuar a ser professor1.

    1 Cadernos de histria e filosofia da educao. Faculdade de Educao da USP. v. 5, n.

    7, 2002. Homenagem a Jos Mrio Pires Azanha.

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    Escolhi essa passagem de sua vida para abrir esta pequena notabiogrfica por acreditar que nela se revelam algumas de suas ca-ractersticas mais marcantes. Mesmo numa ocasio solene, seu dis-curso direto, conciso e rigoroso. Como prova de seu gosto pelodiscurso claro e preciso, Jos Mrio afixara em sua sala, por ocasioda poca em que ocupou a chefia do Departamento de Filosofia daEducao da FFE/USP, a frase de Paulo de Tarso que asseveravaque se a trombeta der um som confuso ningum se prepara para abatalha.

    Paradoxalmente, esse esforo pela clareza e conciso brota deum compromisso apaixonado pela escola pblica e pela atividadedocente. Por isso, aos 72 anos, o professor Jos Mrio almejava conti-nuar a ser professor, profisso na qual se iniciou aos 17 anos, antes mes-mo de concluir o curso normal do Instituto de Educao Anhanguera,em 1950. At sua aposentadoria compulsria, aos 70, foram mais de52 anos de dedicao educao pblica, no s como professor epesquisador, mas como intelectual e homem de ao.

    Sua carreira tem incio precocemente, como professor substi-tuto do Grupo Escolar Paulo Setbal, em So Paulo. Em 1953,tendo concludo o curso normal, ingressou como professor efe-tivo no magistrio primrio, por meio de concurso pblico. Asexperincias como professor da escola primria, inclusive de clas-ses multisseriadas, refletiam-se em suas aulas e escritos que jamaisperderam de vista a conexo viva com a complexa realidade doque chamava de mundo escolar.

    Em 1955, abre-se uma nova etapa em sua carreira docente.Jos Mrio, tendo concludo sua graduao em pedagogia, prestanovo concurso e torna-se professor no magistrio secundrio doestado de So Paulo, aprovado nas cadeiras de educao e filoso-fia. Tem incio nessa poca, como decorrncia de sua preparaopara o concurso de filosofia, sua profunda dedicao aos estudosda lgica. Tais estudos, ao lado das leituras em filosofia analtica,

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    marcaram seus cursos de graduao e ps-graduao, bem comosua produo terica.

    Ainda no incio da dcada de 1960 presta novo concurso pbli-co, desta feita para diretor do ensino secundrio do estado de SoPaulo. novamente aprovado e assume a direo do Colgio Esta-dual e Escola Normal Professor Jcomo Stvale, uma escola tradi-cional na regio norte da cidade de So Paulo. Trata-se de mais umaexperincia que parece ter deixado marcas indelveis em sua forma-o. Muitas de suas observaes sobre a necessidade de conferir sescolas a possibilidade de identificar seus problemas concretos, gerirseus recursos e propor solues locais notadamente presentes nasrie de artigos sobre autonomia das escolas parecem resultar desuas reflexes acerca dessa experincia de gesto.

    Jos Mrio costumava contar orgulhoso algumas iniciativasque tomara frente dessa escola. Dentre elas a de reformar osbanheiros que se encontravam em estado lastimvel e cuidar paraque sempre estivessem limpos, tendo, inclusive, absorventes higi-nicos disponveis para as jovens que l estudavam. E sempre arre-matava a histria com um comentrio jocoso, mas que expressavasua viso de que princpios polticos se expressam na concretudedas aes: Cidadania, meus caros, ter banheiro limpo.

    Paralelamente sua carreira na rede pblica de ensino, JosMrio Pires Azanha inicia sua trajetria na pesquisa educacional eno ensino superior. Em maro de 1957 contratado como pes-quisador do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de SoPaulo, o CRPE/SP, e no mesmo ano passa a lecionar estatsticaeducacional e psicologia na Faculdade de Filosofia SedesSapientiae, ligada Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    Vale ressaltar que seu envolvimento com a formao docenteno Centro Regional foi bastante intenso. Desde seu ingresso noCRPE/SP foi professor no Curso de Especialistas em Educaopara a Amrica Latina, uma promoo conjunta da Unesco e do

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    Ministrio da Educao, com vistas formao de quadros deeducadores para todos os pases do continente.

    Em 1963 o professor Jos Mrio Pires Azanha assumiu a orga-nizao e a coordenao do Programa de Assistncia Tcnica aosEstados (Pate). Tratava-se de um programa que previa o encami-nhamento de equipes de professores paulistas para atuarem junto ssecretarias de educao dos estados e territrios do Norte e doNordeste do pas. Como destaca Celso Beisiegel em seu discurso deposse na Academia Paulista de Educao,

    Jos Mrio deu ao programa uma dimenso maior do que a original-mente prevista por seus idealizadores. Constituiu um pequeno ecompetente grupo de apoio, selecionou os candidatos, organizou osestgios de treinamento dos aprovados, formou as equipes e orien-tou suas atividades de modo a torn-las, ao mesmo tempo, poten-cialmente eficazes e aceitveis sob a perspectiva das secretarias de edu-cao envolvidas. (2009:88)

    Na contramo das tendncias ento dominantes, Jos Mrioj insistia no sentido de que o trabalho com as diferentes equipesfosse orientado para o desenvolvimento de projetos prprios, sin-tonizados com as necessidades e anseios das comunidades locaiscomo tambm com as possibilidades das secretarias com as quaiso convnio havia sido firmado. Os professores paulistas repre-sentariam, assim, um acrscimo aos recursos humanos da admi-nistrao local. Mas, a coordenao central, no CRPE, por suavez, orientava as equipes auxiliando-as na realizao das ativida-des, como destaca Beisiegel.

    Seu desempenho no Centro de Pesquisas Educacionais levouLaerte Ramos de Carvalho, que substitui Fernando de Azevedoem sua direo, a convid-lo para lecionar na Seo de Histria eFilosofia da Educao do Departamento de Educao da Facul-dade de Filosofia, Cincias e Letras da USP. O professor doutorLaerte Ramos de Carvalho acumulara a chefia de Departamentocom a Direo do CRPE, o que levou as duas instituies a se

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    aproximarem. A ps-graduao ainda no estava consolidada poca e pertencer a uma instituio de pesquisa como o CentroRegional significava participar de uma grande escola de formaode pesquisadores e intelectuais. L, jovens como Jos Mrio, PerseuAbramo, Celso Beisiegel e Luiz Pereira tinham o privilgio de con-viver com educadores experientes e j renomados, como Fernandode Azevedo, Florestan Fernandes e Antonio Candido.

    Assim, sua carreira de professor universitrio sempre se de-senvolveu em dilogo com a pesquisa educacional, incluindo aprtica e o estudo. Dessas experincias iniciais redao de suaobra de maior densidade Uma ideia de pesquisa educacional forammais de trinta anos de familiaridade com o tema. Participou deconcursos de doutorado (1972), de livre-docncia (1990) e de pro-fessor titular (1991) no Departamento de Filosofia da Educao eCincias da Educao da Faculdade de Educao, institudo comounidade autnoma em 1970. Foi, at sua aposentadoria, professorde filosofia da educao, havendo concentrado cada vez mais suaatuao no campo da filosofia da pesquisa educacional.

    Quando suas condies de sade j no lhe permitiam daraulas na graduao, cujas turmas costumavam ter mais de sessen-ta alunos em salas amplas demais para sua debilitada voz, JosMrio passou a dar cursos na ps-graduao e a coordenar umgrupo semanal de estudos. Nele se reunia com orientandos e ex-alunos a fim de ler e debater textos de filosofia. Sua atuaocomo professor foi sempre notvel. Vestia-se, invariavelmente,com grande elegncia, chegava pontualmente e exigia dos alunospresena e dedicao. Como alunos, a sensao que sempre t-nhamos era a de que a aula era um acontecimento. E o era. Asagacidade de uma observao, a ironia de um comentrio, aerudio despojada de qualquer empfia, o rigor da linguagemfaziam de cada um daqueles encontros semanais um aconteci-mento singular em nosso percurso formativo.

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    Poltica como vocao

    Jos Mrio havia assumido temporariamente o cargo de dire-tor substituto do Centro Regional de Pesquisas Educacionais quan-do, em maro de 1969, foi convidado pelo professor doutor An-tonio Barros de Ulha Cintra para assumir a direo do Departa-mento de Educao da Secretaria de Educao do Estado de SoPaulo. O professor Ulha Cintra, da Faculdade de Medicina, haviasido Reitor da Universidade de So Paulo e fora o idealizador daFundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).Ele no conhecia pessoalmente Jos Mrio, mas ouviu-o defen-der, em encontro pblico sobre educao, a necessidade deuniversalizao do acesso aos ginsios pblicos de uma forma queo impressionou. Convidou-o, ento, para integrar sua equipe. Doisanos depois, aos 37 anos, Jos Mrio foi convidado para um novocargo: o de coordenador do ensino bsico e normal da SecretariaEstadual de Educao.

    Foi no exerccio dessa funo que Jos Mrio concebeu e execu-tou um corajoso programa de expanso das oportunidades escolarese de melhoria da qualidade do ensino pblico no estado. Destacare-mos algumas das estratgias que foram necessrias implementaodessa medida. Jos Mrio sabia que a sbita abertura de uma escolaque, at ento, era privilgio de uma diminuta elite, no se faria semresistncias. Props, ento, ao Conselho Estadual, que os exames deadmisso aos ginsios, at ento sob a responsabilidade de cada esco-la, passassem a ser unificados e sob a responsabilidade da Secretaria.A alegao fora a racionalizao do procedimento, j que havia alu-nos que se inscreviam em vrios exames. Mas seu plano era bemclaro: organizar um exame no qual, virtualmente, todos os egressosdo ento ensino primrio pudessem ser aprovados. E assim foi feito.

    Jos Mrio esperava que houvesse resistncias por parte desetores conservadores, notadamente da mdia e de alguns segmen-tos da educao privada. Mas no esperava que o professorado,

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    COLEO EDUCADORES

    que sempre discursou a favor da universalizao do acesso edu-cao, reagisse negativamente s consequncias imediatas de umademocratizao do acesso ao ginsio pblico. Acostumados a li-dar com um pblico altamente selecionado, os professores se vi-ram obrigados a adaptar-se a um novo contingente de alunos, emgeral oriundos de setores economicamente desfavorecidos. Mui-tos deles representavam a primeira gerao familiar a ter acesso cultura letrada. Era um desafio imenso a enfrentar.

    Muitos foram os que defenderam que a democratizao de-veria ser um processo mais lento, necessariamente precedido deuma preparao dos docentes. Jos Mrio, ao contrrio, acredita-va que era preciso criar o fato poltico da conquista do acesso paradepois desenvolver estratgias pedaggicas para com ele lidar. Tra-tava-se, pois, de uma deciso poltica cujo xito demandaria esfor-os tcnico-pedaggicos e no o contrrio. No seria o zelo pe-daggico que daria o ritmo da conquista poltica.

    Ao relembrar essa histria costumava fazer um paralelo inte-ressante. Recordava que no Parlamento Britnico a reao pro-posta de extenso do direito de voto mulher tinha recorrido auma estratgia anloga. Sua implantao exigiria, para os conser-vadores, a prvia preparao deste segmento da populao, deforma que a participao das mulheres no viesse perturbar aestabilidade da democracia. No eram, os conservadores, con-tra a medida, mas contra a forma que tomava e contra o aoda-mento de sua implantao. Mas, argumentava Jos Mrio, comoseria possvel preparar a mulher para tomar parte no exerccio dopoder poltico confinando-a esfera da vida privada? Como seriapossvel preparar uma escola democrtica em seu acesso, manten-do um vasto contingente de alunos longe dela?

    Mas o fato que a reao de uma parte significativa do corpodocente foi forte. Como veremos, a reprovao na primeira sriedo ensino ginasial atingiu patamares assustadores, ultrapassando

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    80% dos novos alunos. A reao da Secretaria foi igualmente for-te: institui-se um teto de 20% para as reprovaes, nmero quehoje seria considerado bastante alto. Mas a medida foi tomadacomo afronta autonomia dos professores em suas decises peda-ggicas. A agitao que sucedeu as medidas democratizantes doacesso ao ensino ginasial levou exonerao de Jos Mrio e ainstalao de um Inqurito Policial Militar para apurar as suspeitasde suas intenes subversivas.

    Jos Mrio foi inocentado e voltou a seu cargo de diretor naEscola Estadual Jcomo Stvele, funo que exercia concomitante-mente docncia na Universidade de So Paulo. Os anos que seseguiram a esses episdios foram bastante difceis para ele. A dita-dura militar recrudescera a represso e o medo se alastrava na so-ciedade. Para muitos, ser visto ao lado de algum que tivera sidoobjeto de um Inqurito Policial Militar era um risco. Jos Mriocontou com a fidelidade de alguns amigos, mas se recordava dessapoca como um perodo de isolamento e solido.

    Sua volta cena poltica iria acontecer somente na dcada de80. Com as mobilizaes por eleies diretas para governador,Azanha se envolve na redao da Proposta Montoro, um pro-grama de governo do ento senador que se candidataria e vence-ria as eleies pelo PMDB. Nela encontrou espao para a pro-posio de medidas que lhe eram bastante caras: a autonomia daescola e a descentralizao das decises pedaggicas e de gesto.Passa a integrar a equipe do secretrio Paulo de Tarso na qualida-de de chefe de gabinete. Mas permanece pouco tempo no car-go. Rapidamente Jos Mrio se deu conta de que perderia oembate poltico com os setores tecnocrticos que dominavam asfinanas do governo estadual.

    Na dcada de 90 ele, enfim, encontrar um lugar duradouropara sua atuao poltica para alm da universidade: O ConselhoEstadual de Educao, onde permaneceria at sua morte em 2004.

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    Por ser um rgo consultivo e plural, Jos Mrio nele poderiamanter a independncia de suas posies e exercitar a radicalidadede seu pensamento. Ali se envolveu em lutas viscerais, como nafrustrada reivindicao da transferncia para o Conselho Estadualda responsabilidade pelo credenciamento das instituies superio-res de ensino do estado; na luta pela garantia da gratuidade doensino pblico superior; na proposio de um inovador projetode formao de professores pelo poder pblico.

    Max Weber, ao final de seu ensaio sobre a poltica como voca-o, faz observaes acerca das exigncias de uma vida dedicada aesse tipo de atividade. Elas podem, pelo menos em alguma medida,ser extensivas docncia como vocao. Diz o pensador alemoque a poltica a nosso ver, tal como a docncia,

    um esforo tenaz e enrgico para atravessar grossas vigas de madei-ra. Tal esforo exige, a um tempo, paixo e senso de propores. perfeitamente exato dizer e toda experincia histrica o confirma que no se teria jamais atingido o possvel, se no se houvesse tenta-do o impossvel.

    Por isso, prossegue Weber, os homens que a ela se entregamdevem armar-se da fora de alma que lhes permita vencer o naufrgiode todas suas esperanas. Importa, entretanto, que se armem desdeo presente momento, pois de outra forma no viro alcanar nemmesmo o que hoje possvel. Aquele que esteja convencido de queno se abater nem mesmo que o mundo, julgado de seu ponto devista, se revele demasiado estpido ou demasiado mesquinho paramerecer o que ele pretende oferecer-lhe, aquele que permanea capazde dizer a despeito de tudo, aquele e s aquele, tem a vocao dapoltica. (1996:124).

    Como homem poltico Jos Mrio era dotado dessa fora dealma a que se refere Weber para propor o aparentemente impos-svel e enfrentar com coragem as inevitveis adversidades decor-rentes da firmeza de suas convices. Como professor era dotadoda generosidade necessria para compartilh-la com seus alunos e,com esse gesto, neles cultiv-la.

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    Democratizao da educao: conquista poltica

    ou estratgia pedaggica?

    Uma poca de luta pela expanso do atendimento escolar

    Jos Mrio Pires Azanha integrou uma gerao de intelectuais ehomens pblicos que tiveram na luta pela expanso e universalizaodas oportunidades escolares uma de suas principais reivindicaespolticas. Ao fim da dcada de 50, o Brasil, a exemplo da maiorparte das naes ocidentais, era palco de intensa campanha pela am-pliao da oferta de escolarizao pblica. No caso do estado deSo Paulo, os quatro anos iniciais da educao bsica pocachamado de ensino primrio tornaram-se acessveis maior par-te da populao urbana ainda na primeira metade do sculo XX.Mesmo assim, em 1956 estimavam-se em 30.000 as matrculas noatendidas no ensino primrio. Mas o quadro mais dramtico era odo acesso ao ginsio (que correspondia aos quatro anos seguintes)para o qual a oferta pblica era nfima. No mesmo ano 1956 havia somente trinta ginsios pblicos no estado de So Paulo; e aofim da dcada eles no somavam sequer uma centena2. Em facedessa escassez de vagas instituiu-se uma temvel prova vestibular: osexames de admisso aos ginsios.

    No h estatsticas confiveis acerca do nmero de alunos queterminava o ensino primrio e no conseguia vaga nos relativa-mente poucos ginsios pblicos de ento. Mas estima-se que so-mente cerca de 15% dos alunos que o concluam prosseguiam emseus estudos. Parte dessa massa de excludos do sistema formal deeducao sequer almejava a continuidade dos estudos e j se ini-ciava na vida profissional, mesmo que informalmente. Outra par-te no lograva a aprovao no exame de admisso. Aos alunosoriundos da classe mdia nele reprovados restava a opo de sematricular em ginsios privados, cuja qualidade, em geral, era tida

    2 Veja a esse respeito: Spsito, M. O povo vai escola. So Paulo, Loyola, 1984.

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    como inferior dos pblicos. imensa maioria da populaonada restava a no ser interromper seus estudos.

    Os ginsios paulistas tinham, at 1969, autonomia para criar eaplicar seus exames de admisso, de acordo com a tradio e asexpectativas de cada instituio escolar. Assim, os ginsios maisrenomados e centrais recebiam no s um nmero maior de candi-datos, como exames mais difceis. Havia escolas com oitenta vagase 1.300 candidatos, o que transformava alguns desses exames deadmisso numa disputa mais feroz do que muitos dos mais compe-titivos exames vestibulares de hoje. Da a imagem de escolas de altonvel de que gozavam algumas instituies como o Ferno Dias, oRoosevelt e outras tantas escolas pblicas. Trabalhando com umpblico bastante selecionado e homogneo do ponto de vista dospr-requisitos escolares, de fato, o desempenho acadmico de seusegressos era notvel. essa imagem de excelncia de um ginsiopblico bastante elitizado, na verdade que muitas vezes aindapermanece como modelo ideal e que gera a sensao de uma perdasubstancial de qualidade da escola pblica contempornea.

    Embora entre os aprovados houvesse alunos de todos os seg-mentos sociais, os oriundos das classes econmica e culturalmenteprivilegiadas eram maioria nesses estabelecimentos. Por outro lado,o acesso escolarizao mdia era pr-requisito para empregosno setor de servios ou, claro, para a continuidade dos estudosque dariam acesso ao quadro de profisses liberais que formava aelite do pas. Da que o acesso aos ginsios era visto, pela massa dapopulao urbana, como o mais legtimo e almejado mecanismode ascenso social e econmica e se transformou, desde a dcadade 50, numa das principais reivindicaes polticas dos setores or-ganizados da sociedade civil.

    No fim da dcada de 60 o mdico, professor e ex-reitor daUniversidade de So Paulo, Antonio Ulha Cintra assumiu a Se-cretaria de Educao do Estado de So Paulo e convidou o pro-

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    fessor Jos Mrio Pires Azanha para a Direo da Instruo Pbli-ca. Ambos, sintonizados com a tendncia mundial de democrati-zao do acesso escolarizao, e politicamente mobilizados a seufavor, promoveram mudanas substanciais na estrutura do siste-ma escolar estadual.

    As reformas da gesto Ulha Cintra

    Embora a centralizao e a facilitao dos exames de admissotenham sido a mais ousada e polmica medida adotada pocaem que Jos Mrio Pires Azanha estava frente da Instruo Pbli-ca, houve modificaes substantivas nos trs segmentos que entocompunham o que hoje denominamos educao bsica: o prim-rio, o ginsio e o ciclo colegial (ensino secundrio e normal, esteltimo responsvel pela formao de professores primrios nombito do que hoje seria o ensino mdio). Como veremos, aindaque relacionadas s especificidades de cada segmento, as medidasadotadas podem ser identificadas como derivadas de um conjuntode princpios polticos que marcaram toda sua trajetria intelectual,seja no mbito acadmico ou no das funes pblicas executivas econsultivas que exerceu. So eles: a democratizao do acesso comopoltica pblica; a autonomia da escola na busca por estratgias eprocedimentos pedaggicos de melhoria do ensino; a concepode educao escolar como oportunidade de formao integradoradas variadas experincias dos alunos e o ideal de uma escola com-prometida com os princpios republicanos e democrticos.

    Desde 1965 sabia-se, como decorrncia da publicao de da-dos do Inep, que 50% das matrculas no ensino primrio concentra-vam-se na primeira de suas quatro sries e que a variao da faixaetria que a compunha era extremamente dilatada: os alunos tinhamentre 6 a 14 anos de idade. Esses dados indicavam, portanto, que aoinvs de ser uma ampla porta de entrada para a variedade de crian-as que chegavam escola, a primeira srie constituia-se, na expe-

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    rincia brasileira, como uma espcie de grande peneira a reter alunoscujo desempenho era considerado inferior s expectativas. Ao co-mentar, num texto escrito em 1969, o carter deletrio dessa prticacristalizada na cultura das instituies escolares, Azanha, ressaltou que:

    O problema da repetncia na primeira srie, assim como o da evasodecorrente dessa repetncia est, normalmente, ligado a certos fatoresexternos escola. No a criana bem nutrida, classe mdia, amparadae acompanhada pelos pais que fracassa na primeira srie. Quase sem-pre, a criana que j traz para a escola problemas que no conseguesuperar, para os quais a escola no oferece soluo. Ento, a grandemassa dos que fracassam na primeira srie de crianas que deveriamter um tratamento diferenciado, no para resolver aqueles problemasde origem extraescolar, mas pelo menos para tentar atenuar seus efei-tos, em vez de agrav-los, como costuma ocorrer. (1987:108)

    Para enfrentar esse quadro preocupante a primeira medida porele implantada, pioneira poca e retomada seguidas vezes noutrasgestes, foi romper com a seriao anual e propor para o ensinoprimrio uma estrutura de ciclos de dois anos. importante frisarque no se tratava de uma proposta de renovao pedaggica, masde um procedimento administrativo fundado num princpio polti-co. A eliminao da reprovao sumria na primeira srie possibili-tava tempo maior para aprendizagens consideradas decisivas para acontinuidade dos estudos, como a iniciao no letramento.

    A partir de sua prpria avaliao das realizaes da gesto UlhaCintra, possvel afirmar que Azanha tinha clareza de que tal medi-da, em si, no resultaria necessariamente na melhoria do ensino, maspoderia ter impacto relevante na permanncia dos alunos. Por outrolado, tinha firme convico que as transformaes pedaggicas nasprticas escolares no poderiam resultar de decretos ou delibera-es dos rgos centrais, mas deveriam ser objeto de acompanha-mento e discusso local. Nesse sentido, complementarmente ado-o dos ciclos, a Secretaria props um novo currculo bsico, sim-ples e objetivo; diminuiu o grau de controle que as Delegacias deEnsino que correspondem s coordenadorias e diretorias regio-

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    nais na atual estrutura das secretarias exerciam sobre as escolas edeu aos professores a autonomia para a elaborao e aplicao deavaliaes. Tais medidas visavam, segundo Azanha, devolver aoprofessor e escola a autntica responsabilidade da tarefa educativade que, at certo ponto, estavam, dispensados quando transforma-dos em meros executores de instrues (Azanha, 1987: 83).

    Talvez resida nessa experincia administrativa a raiz de suaspreocupaes posteriores em relao centralidade da escola eno do professor isoladamente considerado em qualquer esfor-o de formao continuada de professores e de melhoria do ensi-no. Essa uma tese que lhe ser cara na dcada de 90, ocasio emque ressaltar o carter tecnocrtico dos cursos de formao querenem professores de uma mesma disciplina para lhes oferecertcnicas e procedimentos que supostamente sanariam as deficin-cias de seu ensino. Para Azanha esses professores, de fato, notm muita coisa em comum, a no ser o ttulo de professores dematemtica, por exemplo. O ensino de matemtica da escola A diferente do ensino de matemtica da escola B, da escola C, D.Da sua sugesto, to simples quanto inovadora, de que os esfor-os visando melhoria do ensino deveriam ter como objeto aprpria escola; buscando cooperar com professores, diretores e de-mais agentes institucionais de modo a auxili-los a se debruaremsobre as tarefas que tm, as propostas comuns e problemas queenfrentam e de se organizarem para resolv-los. Qualquer planode melhoria tem de ser um plano da prpria escola. (1995: 25).Da a iniciativa, em 1968, da criao dos servios de orientaopedaggica s escolas, cuja funo no deveria ser a de fiscaliza-o nem a de propagao de uma pedagogia oficial, mas a deapoio s escolas em suas tentativas de implementar suas propostaspedaggicas.

    No mbito do ensino secundrio do ciclo colegial, as mudanastambm foram bastante significativas. At o fim da dcada de 60,

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    esse nvel da educao bsica que equivale ao ensino mdio hoje era subdividido em trs segmentos: o clssico, o cientfico e o nor-mal; os dois primeiros concebidos como preparatrios para os exa-mes vestibulares (respectivamente para as reas de cincias humanas,biomdicas e exatas), enquanto o ltimo era visto como opo deprofissionalizao no magistrio. Em agosto de 1968 foi instituda aunificao dos dois primeiros anos do ensino secundrio e do cursonormal, de forma que somente no terceiro ano desse nvel o alunooptaria por uma rea ou profisso. Era uma medida que visava, porum lado, imprimir a esse segmento da educao o carter de umaetapa da formao geral do jovem, procurando suplantar a visobastante corrente de que ele se justificava por ser preparatrio aosestudos superiores. Por outro lado, evitava a precocidade das deci-ses profissionais e de rea de estudos, que at ento deveriam sertomadas ao final do oitavo ano de escolaridade, frequentementepor jovens de cerca de 15 anos de idade.

    A ideia, cara ao professor Azanha, de um ensino colegial uni-ficado em torno de uma formao geral do jovem, independentede sua opo profissional posterior, no pde sequer ser avaliada.A lei 5.692, de 1971, tinha como um de seus objetivos expandirmaciamente a possibilidade de profissionalizao j no ensinomdio. Alegava-se uma urgente necessidade de mo de obra tcnicanesse nvel. Embora os resultados dessa reforma tenham sidoinexpressivo em relao a seus objetivos de preparao tcnica,eles foram profundos e danosos no que concerne precoce frus-trao da experincia a qual ento se tentava levar a cabo, acaban-do por prevalecer a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-o Nacional de 1996, que prev uma formao geral e comumanterior formao tcnica em nvel mdio.

    Apesar da inegvel importncia dessas duas iniciativas, a medidade maior impacto poltico e a que mais polmica gerou nessaprimeira passagem de Jos Mrio Azanha pela Secretaria de Educa-

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    o, foi a centralizao e facilitao dos exames de admisso. Con-trariando a tradio de alta seletividade at ento vigente, o examede admisso unificado aprovou mais de 90% dos alunos, tornandoos ginsios pblicos, at ento bastante elitizados, em escolas acess-veis quase totalidade dos alunos inscritos. O nmero de alunosmatriculados ultrapassou os 200.000 (enquanto na regio do antigoDistrito Federal no Rio de Janeiro a Guanabara no passava de16.000!); diversas escolas chegaram a abrir quatro turnos dirios paraacolher todos os aprovados e foi necessrio recrutar um contingen-te significativo de novos professores. Em sntese, a eliminao dabarreira do exame de admisso transformou radicalmente a feiodos ginsios pblicos no estado de So Paulo. Eles passaram a abri-gar virtualmente a totalidade dos egressos do ensino primrio, o queinclua uma parcela da populao com caractersticas socioculturaise desempenho escolar at ento desconhecidos desse segmento daescolarizao. Os ginsios j no eram mais uma escola de elite, fos-se ela econmica, cultural ou escolar. Eram pblicos no sentido maissimples e amplo do conceito: comum a todos.

    O embate entre a afirmao de um direito poltico

    e as expectativas pedaggicas.

    As reaes s mudanas ocorridas no tardaram e vieram dasmais diferentes fontes e tendncias: de jornais conservadores apensadores alegadamente vinculados a setores progressistas. Emeditorial publicado em dezembro de 1968, o jornal O Estado de S.Paulo afirmava que, no obstante o reconhecimento da obrigatorie-dade escolar ser um preceito constitucional, a medida da secreta-ria, ao franquear o acesso aos ginsios a praticamente todos os queconcluram o ensino primrio, no deveria ser tomada como pro-va de autntica fidelidade democracia e aos ideais inerentes tarefa educativa, pois se tratava da mera garantia de matrculas emescolas que pouco podem ensinar. Por outro lado, setores de

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    oposio alegavam que se tratava de uma democratizao quanti-tativa, j que seu custo seria a queda na qualidade do ensino. Emambos os casos, a alegao de uma queda na qualidade era oargumento da oposio medida da secretaria que, ao centralizaro exame de admisso, facultava a todos os egressos do ensinoprimrio a matrcula no ginasial.

    Essa percepo de uma queda na qualidade da educao coe-tnea ao final do exame de admisso persiste mesmo aps dca-das de sua implantao. Sua base parece bvia: os egressos docurso ginasial de outrora tinham um desempenho escolar muitoacima da mdia dos jovens que desde ento o concluem. O pro-blema desse raciocnio supondo que a comparao fosse poss-vel e vlida que a qualidade da educao tratada de formaabstrata, ou seja, sem considerar a totalidade da populao em ida-de escolar e sem considerar as caractersticas de quem desde entoa frequenta. Em outras palavras, para os cerca de 15% de alunosprivilegiados que tinham acesso ao ginsio, de fato, o nvel mdiode aproveitamento deve ter sofrido uma queda. Mas para a maio-ria das crianas que sequer tinha acesso a um ginsio cerca de85% de crianas que estavam privadas de qualquer experincia es-colar a partir de 10 ou 11 anos de idade! no se pode falar emqueda na qualidade do ensino; pelo simples fato de que para elasno havia escola.

    O fato que no faz sentido comparar duas instituies cujospapis sociais so bastante distintos: um ginsio voltado para aformao intelectual de uma elite e uma escola fundamental volta-da para a formao comum e aberta totalidade da populao. evidente que a escola fundamental e comum pode e deve serbem melhor do que . Mas o que no fazia sentido para os queidealizaram e implantaram a reforma era esperar as condies ideaispara, somente ento, tomar as medidas polticas visando asseguraroito anos de escolarizao para todos. Foi nesse sentido a manifes-

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    tao de Ulha Cintra ao reagir s crticas ento endereadas equipe da Secretaria:

    ...alguns, movendo-se num plano, abstrado da realidade, dizemque apoiam a ideia de democratizao e apenas combatem e lamen-tam a forma pela qual ela est sendo implantada, pelos problemasque traz. No vejo, contudo, validade na posio desses que defen-dendo a democratizao do ensino advogam sua realizao gradativae na estrita medida e proporo das facilidades materiais para faz-laNo se trata de simples questo de estratgia, mas, basicamente, deatitude filosfica e de concepo da educao e do carter do seurelacionamento com os demais processos sociais. J no mais his-toricamente possvel esperar que a democratizao do ensino decor-ra, como simples processo residual, de um desenvolvimento econ-mico [...] eticamente indefensvel o argumento de que, para fica-rem mantidas num certo nvel para alguns, as oportunidadeseducativas possam ser sonegadas a uma grande maioria, com osmesmos direitos. (apud: Azanha, 1985: 84).

    Mas a polmica no se limitou aos rgos de imprensa e academia. Entre os professores a reao s medidas no foi me-nos intensa. O fato que as transformaes decorrentes da maciaexpanso das matrculas acabou por inviabilizar um certo padrode ensino cujas prticas, expectativas e exigncias, tinham origemno ideal de formao de uma elite intelectual. Assim, embora osprofessores fossem, em tese, favorveis democratizao do acessoaos ginsios, eles no pareciam aceitar as inevitveis consequnciasdessa abertura da escola pblica massa da populao. Vale lem-brar que, poca, a escolaridade mdia da populao brasileirano chegava a trs anos, de forma que uma parcela considerveldos alunos que ento ascendiam ao ginsio era oriunda de famliaspara as quais a cultura das instituies escolares seus hbitos,prticas e valores era completamente estranha.

    Nesse sentido, o ingresso irrestrito de crianas que haviam ter-minado o ensino primrio deveria ter como consequncia umareadequao substancial da escola em face de seus novos desafios.

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    No foi essa, contudo, a reao imediata. Ao contrrio, a insistn-cia em relao s prticas e exigncias do modelo seletivo anteriorteve como resultado um alarmante ndice de reprovao na pri-meira srie do ginsio: 85% dos alunos ficaram retidos! Esse dadoilustra a enorme tenso entre o ideal poltico de universalizao daeducao escolar bsica e a rejeio s suas consequncias prticas.A reprovao macia muito frequentemente seguida de evaso acabava por substituir a seletividade do exame de admisso pelaseletividade dos critrios de aprovao. Nesse sentido, a manuten-o abstrata porque no se relacionava ao contexto dos novosalunos do ginsio de um padro pedaggico estava a servio, mes-mo que essa no fosse sua inteno, da negao do direito poltico educao escolar de oito anos.

    Esse ambiente de tenso entre parcelas da opinio pblica, pro-fessores da rede e equipe da Secretaria acabou resultando no afasta-mento de Jos Mrio Azanha, que poca sofreu um inqurito po-licial militar (um expediente do regime militar para investigar supos-tas atividades subversivas). Paradoxalmente, em 1971, a Lei de Di-retrizes e Bases da Educao criou a escola obrigatria e nica deoito anos. Em 1978, em reunio da Sociedade Brasileira para o Pro-gresso da Cincia, Azanha apresentou seu texto Democratizaodo ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista. Embora suarazo de ser inicial fosse responder s crticas feitas abertura doginsio dez anos antes, a forma pela qual o problema nele aborda-do transformou o texto numa referncia histrica em filosofia daeducao. Sua anlise crtica aguda desvela que sob a aparente unani-midade discursiva subjazem profundas divergncias programticas.

    Democratizao do ensino: um conceito varivel e programtico

    Passados cerca de quarenta anos, as medidas que visaram a pro-mover o acesso universal ao ensino fundamental de oito anos repre-sentam pouca ou nenhuma polmica. A noo de que o ingresso

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    nesse segmento da educao escolar um direito pblico cuja fruiono pode ser impedida por qualquer tipo de exame seletivo j estbastante consolidada. No obstante, se o tema ao qual o artigo De-mocratizao do ensino se refere pode soar datado, a capacidadeelucidativa de sua abordagem continua atual e viva. Nele Azanhanos alerta para um fenmeno bastante comum no campo dos dis-cursos educacionais, que fato de que a concordncia retrica emtorno de certos princpios ou palavras de ordem tende a obscu-recer as divergncias prticas e conceituais que cercam os propsitosde sua enunciao. Noutras palavras, todos parecem concordar coma necessidade de uma educao de qualidade ou com o objetivo deformao de um aluno crtico, desde que no seja preciso elucidaro sentido das expresses utilizadas nem os meios pelos quais taisobjetivos se realizam nas prticas educativas.

    Basta um breve exame das aes identificadas como poten-cialmente realizadoras dos princpios enunciados para vislumbrarque a aparente unanimidade presente na superfcie retrica desses discur-sos esconde divergncias profundas acerca do significado3 conceitual e pr-tico das expresses s quais recorrem. Foi assim no que diz respei-to concordncia em relao ao reconhecimento unnime da ne-cessidade de democratizao do ensino nas dcadas de 70 e 80;assim hoje quanto busca por uma educao de qualidade oupela formao de um aluno crtico, por exemplo.

    O carter vago ou ambguo do uso dessas expresses recor-rentes tem, inclusive, impedido o afloramento de uma discussoelucidativa sobre a variabilidade de concepes alternativas a elassubjacentes. Essas diferenas no so, na anlise de Azanha, sim-ples aspectos variados de um mesmo ncleo essencial, como sefossem, por exemplo, aspectos complementares da noo de qua-lidade da educao. Espelham, antes, disputas e controvrsias

    3 Os trechos em itlico que se seguem so excertos extrados do texto Democratizao

    do ensino: vicissitudes da ideia no ensino paulista (Azanha, 1985).

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    tericas e prticas, j que sua enunciao e veiculao no tm ca-rter exclusivo ou preponderantemente elucidativo, mas tambmpropsitos persuasivos.

    O que Azanha procura demonstrar em suas reflexes que, aorecorrermos a conceitos programticos ou persuasivos como os dedemocratizao ou qualidade da educao o que se almeja no a mera elucidao do modo corrente de utilizao de um conceito,a exemplo de quando explicamos a algum o uso do termo vrus.O que se busca propor uma acepo que, mesmo no violentan-do abertamente seu uso corrente, sugira um significado fundamen-tal impregnado de valores, em geral comprometido com a trans-formao ou com a justificao de prticas sociais, da seu carterprogramtico ou persuasivo. E por essa razo que prioritariamente pelacomparao entre as aes propostas ou implementadas que asdivergncias se desvelam e os conflitos vm tona.

    Pense-se, por exemplo, na disputa, marcante ao longo da se-gunda metade do sculo XX, envolvendo o conceito de demo-cracia. Por um lado, buscava-se associ-la de forma imediata eessencial ao liberalismo poltico e ao pluripartidarismo; por outro, igualdade de acesso a direitos sociais e elevao das condiesde vida da classe trabalhadora. A luta entre concepes alternativasno tinha como alvo somente uma elucidao terica, mas almeja-va precisamente justificar ou transformar prticas sociais a partir daveiculao ou do uso de um conceito, que ganhava, assim, umcarter programtico ou persuasivo. Assim, embora os partidrios deambas as correntes se identificassem com o ideal democrtico,cada grupo o identificava como um conjunto distinto e alternativode medidas e aes concretas capazes de realizar esse ideal.

    A veiculao, no mbito dos discursos educacionais, do idealde uma formao para a cidadania parece ser, hoje, um dos ca-sos mais emblemticos dessa luta pela aceitao e legitimidade deum dentre vrios conceitos alternativos que tm no s um inte-

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    resse terico, mas um propsito prtico. Sob uma mesma frmu-la verbal a educao para a cidadania possvel identificardesde a veiculao de propostas de doutrinao para a conformi-dade legal at a proposio de uma radical crtica social, de proje-tos ecolgicos caridade ou ao trabalho voluntrio.

    Assim, o esforo reflexivo de Azanha, em seu texto sobre a demo-cratizao do ensino, visava identificar, distinguir e comparar duas ten-dncias ou correntes alternativas no que diz respeito concepode uma escola democrtica. Uma que a identificava fundamental-mente com uma poltica pblica de ampliao das oportunidadesescolares e outra que a concebia como uma prtica pedaggica fun-dada no exerccio da liberdade dos educandos. E para faz-lo Azanharecorre a diferentes experincia histricas que ilustram no s a diver-gncia terico-conceitual entre elas, mas o fato de que, historicamen-te, constituram-se como vises alternativas e no complementares.

    Por um lado, temos iniciativas como a de Sampaio Dria, queno incio do sculo XX universaliza o acesso escola primria e deoutro a abertura do ginsio, nos anos sessenta. Ambas identificama democratizao com uma poltica pblica de expanso e univer-salizao do atendimento e no com a proposio de um novotipo de relao pedaggica. Por outro lado, h teorias educacio-nais e iniciativas prticas que concebem a democratizao como arenovao do tipo de relaes pedaggicas que se estabelece entreeducadores e educandos, historicamente marcadas por uma hie-rarquia vista por autoritria. Esse o caso, na experincia histricapaulista, dos Ginsios Vocacionais, que inspirados em teorias derenovao pedaggica, concebiam a escola democrtica como umespao de autonomia e liberdade do educando. Embora partamde premissas e princpios conflitantes, ambas as posies profes-sam um compromisso para uma educao democrtica. Da aafirmao de Azanha no sentido de que no a profisso de f democr-tica que divide os educadores brasileiros, mas os programas de ao por

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    eles veiculados; por isso, e somente nos esforos de realizao histricadesse ideal que as razes das posies e das divergncias se revelam.

    Enquanto a primeira vincula a democratizao a uma decisopoltica, a segunda a concebe como fruto de uma prtica pedag-gica. Aparentemente, so posies que, por se referirem a mbitosdistintos, podem coexistir. No entanto, as reflexes de Azanha nosalertam para a complexidade terica dessa compatibilizao e parao desencontro histrico entre os que defendem uma ou outra con-cepo. Ele recorre, como exemplo, aos Ginsios Vocacionais deSo Paulo, que alegavam promover internamente prticas peda-ggicas libertadoras e comprometidas com uma sociedade de-mocrtica, mas que, ao se recusarem a participar da unificao dosexames de admisso, mantinham uma poltica de estrita seletividade.A seu exemplo poderamos acrescentar o incmodo fato de que amaior parte das escolas que hoje se atm s prticas pedaggicasdemocrticas so escolas privadas, muitas das quais cobram men-salidades altssimas. Assim, a democracia intramuros da escolaconvive com a excluso da maioria.

    No plano conceitual, suas crticas bem mais complexas apon-tam para o fato de que na viso dessas correntes, que poderamosagrupar sob o nome de pedagogias da autonomia, a sociedade de-mocrtica parece ser produzida pela simples reunio de indivduosdemocrticos. E estes, por sua vez, desenvolveriam esse espritodemocrtico como fruto de experincias pedaggicas de fomento autonomia individual. Ao assim fazerem, para Azanha, as pedago-gias da autonomia simplificam problemas extremamente comple-xos. Confundem, por exemplo, liberdade como fenmeno polti-co com liberdade como autonomia do indivduo. Nesta ltimaacepo que o verdadeiro objetivo dessas prticas o termoliberdade despoja-se de seu necessrio elemento poltico para ater-se ao livre-arbtrio da escolha individual; da sua identificao com aliberdade da vontade. Trata-se, neste sentido, da autonomia de um indi-

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    vduo e no da liberdade como desgnio poltico da democracia.Ao contrrio da primeira, nesta ltima acepo a liberdade diz res-peito a uma qualidade especfica do mundo pblico, do espao queacolhe e gere a pluralidade de perspectivas e interesses dos homens.Ora a complexidade e os conflitos e lutas desse mundo no soreprodutveis no ambiente escolar. Por isso Azanha se refere, deforma irnica, a esses procedimentos que simulam os ritos da de-mocracia no ambiente escolar como um faz de conta pedaggico, mesmoquando politicamente motivado.

    Em sua viso, a democratizao da educao irrealizvel intramu-ros, na cidadela pedaggica; ela um processo exterior escola, que toma aeducao como varivel social e no como simples varivel pedaggica. No sepode chamar uma escola de democrtica sejam quais forem suasprticas pedaggicas se o acesso a ela no for um direito pblicoigualmente facultado a todos. Da que a desqualificao de um pro-cesso de democratizao do acesso escola por argumentos alega-damente pedaggicos como ocorreu nas duas ocasies examina-das por Azanha no faz sentido. A universalizao do acesso educao bsica no pode ser postergada tendo como justificativaum alegado zelo pedaggico que a vincularia existncia prvia de con-dies de oferta de um ensino de qualidade. A deciso poltica dedemocratizar o acesso no pode submeter-se s demandas pedag-gicas de qualquer sorte; ao contrrio, a uma poltica educacional dedemocratizao do acesso escola devem corresponder esforospedaggicos no sentido de viabilizar a todos as condies para oaproveitamento mximo da experincia escolar.

    Desafios de uma educao comprometida com a democracia

    evidente que as duas concepes contrapostas por Azanhano encerram a ampla variedade de problemas ligados s pers-pectivas tericas e s iniciativas prticas no sentido de se democra-tizar a educao. E, se elas no so logicamente incompatveis,

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    tampouco devem ser simplificadamente consideradas como doisaspectos distintos e complementares do mesmo processo. Ao con-trrio, tornar patentes os conflitos resultantes das diferenasconceituais e das divergncias histricas entre essas vises podetrazer tona alguns dos mais significativos dilemas que temos en-frentado ao pensar as conexes entre a formao escolar e a cons-tituio de uma sociedade democrtica.

    Como, por exemplo, podemos pleitear relaes escolares noautoritrias sem pr em xeque a autoridade legtima e caractersti-ca da natureza das relaes entre professores e alunos que, comodestaca Azanha, no so anlogas s que regem as relaes entrecidados na esfera pblica? Como superar a noo, corrente nopensamento pedaggico, de que a promoo da democracia de-corre antes do desenvolvimento de certos traos de personalidadeno indivduo do que de uma luta institucional no campo poltico?Na verdade, essa identificao da democracia com a cordialidadee a proximidade nas relaes pessoais no se origina no pensa-mento pedaggico, mas deita razes nas prprias narrativas quetecemos sobre a constituio do Brasil como nao. Basta lem-brarmos a concepo largamente difundida de uma suposta de-mocracia racial brasileira, alegadamente baseada nos laos afetivosentre os indivduos de diferentes origens tnicas.

    O que obscurece tal viso o fato de que, independentementedas relaes pessoais, no plano social e poltico, brancos e negros,por exemplo, tm poder e direitos desiguais; que a excluso sistem-tica a que estes tm sido submetidos impede nossa sociedade de serdemocrtica nesse aspecto. nesse sentido que devemos entender ademocratizao da escola no como uma reforma pedaggica quevisa alterar as relaes pessoais internas instituio, mas uma polti-ca pblica que visa ampliar o direito escolarizao. Por essa razo,no pode haver democratizao do ensino sem esforos sistemti-cos para o acesso e a permanncia de todos nas escolas.

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    Mas claro que o direito cuja universalizao se reivindica no simplesmente o da matrcula num estabelecimento escolar, mas odo acesso aos bens culturais pblicos que nela se deveriam difundir:conhecimentos, linguagens, expresses artsticas, prticas sociais emorais, enfim, o direito a um legado de realizaes histricas squais conferimos valor e das quais esperamos que as novas geraesse apoderem. Neste sentido, a poltica de democratizao da educa-o prope desafios pedaggicos, ainda que sua dimenso seja emi-nentemente social, mais do que simplesmente escolar.

    Alm disso, o acesso universal escola e mesmo a relativa equidadena distribuio dos bens culturais, que com ela identificamos, nogarantem um compromisso da escola com a cultura da democra-cia. Basta lembrar, por exemplo, escolas de pases como a antigaRepblica Democrtica Alem, que, apesar de terem logrado auniversalizao do acesso e dos bens culturais, parecem no ter con-seguido na cultura dos valores democrticos um de seus objetivos.

    Deste modo, um dos grandes desafios que a democratizaodo acesso escola nos lega o de buscar meios pelos quais aeducao escolar, atravs do ensino das disciplinas intelectuais quelhe so prprias, da iniciao em determinadas prticas sociais,possa cultivar valores como a igualdade, a tolerncia, a no violn-cia, a solidariedade; enfim, que ela possa apresentar e cultivar ummodo de vida que tenha na democracia social e poltica o maiorde seus compromissos.

    A incorporao desse tipo de compromisso tico-poltico noresultar da simples exposio dos alunos a uma retrica queenaltea esses valores, nem tampouco da simulao de rituais queimitam pedagogicamente a liberdade almejada para a esferapblica. O xito de seu cultivo parece antes depender da convi-vncia com professores e demais profissionais da educao quepromovam essa forma de vida e que, no curso de suas aulas, nocontedo de seus ensinamentos e em suas prticas escolares coti-

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    dianas a ele deem vida. Somente um professor que cultive co-tidianamente essas virtudes pode transmiti-las a seus alunos.

    A democratizao do ensino muito deve s aes do professorJos Mrio Pires Azanha, no apenas por seus escritos, mas por sualuta por uma escola aberta totalidade da populao. Mas democra-cia no um ponto a que se chega, antes um processo que se vive.Por isso, Renato Janine Ribeiro sugere que talvez o melhor seja usarno o verbo ser, mas fazer para a democracia; talvez mais importantedo que algo ser democrtico seja algo produzir, gerar democracia(2001:66). Assim, uma escola em que o acesso, a gesto e os compro-missos educacionais sejam fundados nos ideais da democracia polticae social exige de todos os envolvidos um constante esforo terico decompreenso dessas diferentes dimenses e um esforo prtico reite-rado a fim de que sua ao fomente a igualdade de direitos e umacultura de promoo dos valores democrticos.

    Autonomia da escola

    A experincia poltica como gnese do conceito

    Se a primeira passagem do professor Jos Mrio P. Azanhapela Secretaria Estadual da Educao foi marcada por grandepolmica em torno das medidas que tomou visando democrati-zao do acesso educao fundamental de oito anos, a segunda,que veio a ocorrer no incio da dcada de 80, teve como marcosua luta pela autonomia da escola. Tratava-se, para o autor, deuma dimenso nova e complementar do processo de democrati-zao da escola pblica que se iniciara dcadas atrs. Em sua visoa luta pela democratizao e pela autonomia no se confundiacom a proposio de modelos pedaggicos como os professa-dos pelas pedagogias no diretivas, bastante em moda na retricapedaggica da poca. Em consonncia com escritos anteriores,mas ao mesmo tempo superando suas posies da dcada de 70,Azanha ir argumentar que, consolidada a noo de que o ensino

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    fundamental um direito de todos, o processo de democratiza-o deveria progressivamente deslocar-se da universalizao doacesso para a democratizao da prpria escola, instituindo umpadro de ensino que d substncia aos anseios de participao domagistrio nas decises educacionais. (1987:137)

    Era um momento de profundas mudanas no pas, no qual asbandeiras da democratizao e da participao ganhavam espaoem diversos segmentos sociais, notadamente entre os profissionaisda educao. Elas se inseriam numa luta maior pelo retorno dasliberdades polticas banidas da esfera pblica pelo regime militarque havia se instalado no poder em 1964. As eleies de 1982podem ser consideradas, simultaneamente, como um dos resulta-dos dessa mobilizao e como um marco na luta pelo fim daditadura. A vitria expressiva dos candidatos a governador pelaoposio nos estados do Rio de Janeiro (PDT), So Paulo, Minas,Paran, Esprito Santo, Mato Grosso do Sul, Gois, Par, Amazo-nas e Acre (PMDB) redesenharam o equilbrio poltico do pas,depois de vinte anos de eleies indiretas, controladas pelo podercentral. Em So Paulo, o ento senador Franco Montoro foi eleitogovernador com um plano que dava grande nfase s ideias dedemocratizao, participao e descentralizao de todos os m-bitos da administrao pblica. Montoro escolheu como secret-rio de educao o Dr. Paulo de Tarso Santos, ex-ministro do go-verno Joo Goulart, que convidou Jos Mrio P. Azanha para achefia de seu gabinete. Ambos permaneceram pouco tempo emseu cargo: Azanha exonerou-se ainda em 1983 e Paulo de Tarsoacabou sendo substitudo por Paulo Renato no ano de 1984; mu-danas que representaram uma transformao substancial nas po-lticas pblicas de educao apresentadas pela Proposta Montoro einspiradas nos lemas da participao e da democratizao.

    Embora tenha sido bastante rpida sua passagem pela admi-nistrao, algumas das iniciativas de Jos Mrio na gesto de Paulo

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    de Tarso ficaram gravadas como marcos desse momento inicialde redemocratizao, impregnado de entusiasmo e esperana. ODocumento preliminar nmero 1, por ele redigido e entregue a todas asescolas da rede estadual, representa, tanto em seu contedo comona forma pela qual foi divulgado e discutido, um exemplo dessaorientao geral que se procurou inicialmente imprimir nas polti-cas pblicas de educao, mas que acabou por ser enfraquecida eeliminada por seus sucessores. Retomava-se, em novas bases, aideia de que a criao de uma escola comprometida com a demo-cracia deveria repousar em dois pilares complementares: univer-salizao do acesso e a autonomia pedaggica e administrativa,por meio da qual caberia a cada escola traar objetivos e procedi-mentos educativos prprios em face da peculiaridade de seus de-safios locais.

    Era um documento relativamente conciso, cujo propsito nofoi apresentar um modelo pedaggico nem mesmo propor umaorientao prtica fixa e determinada, e buscava, antes, convocaros integrantes do magistrio a promover reunies visando ao exa-me sistemtico de seis pontos fundamentais da proposta educaci-onal do governo eleito: qualidade de ensino, plano de melhoriado ensino, situao do magistrio, ensino de primeiro grau,ensino de segundo grau e autonomia da escola (Cf. 1987: 120-131). Como por ocasio das posses do governador e do secret-rio o ano letivo j tivesse se iniciado, as escolas pblicas foramconvocadas a parar por um dia para a realizao da apresentaoe primeira discusso do documento. O propsito de Jos Mrio,que acabou por nunca se concretizar, era de que os relatos dasescolas acerca do documento fossem examinados pela secretaria egerassem um novo documento, abrindo um canal contnuo dealimentao da discusso.

    Em que pesem a j enorme extenso e complexidade da redepblica paulista poca, o Documento preliminar professava uma clara

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    e ousada perspectiva poltica: a de implantar o dilogo como a nica fontelegtima para gerar mudanas na situao educacional paulista (idem). Note-se que, na viso de Jos Mrio, a renovao do iderio educacional emesmo das prticas pedaggicas cotidianas no decorreria da difu-so de teorias alegadamente fundadas em investigaes cientficasnem da proposio de suas aplicaes metodolgicas ou didticas,a exemplo do construtivismo que poca j aparecia como alter-nativa s chamadas pedagogias tradicionais. As transformaes nasprticas escolares e nas concepes acerca da cultura das instituiesescolares como as avaliaes e os programas de curso deveriamemergir de uma reflexo sistemtica da prpria escola sobre seusproblemas e desafios. Em oposio a uma viso tecnocrtica, JosMrio sugeria uma proposta de discusso poltica sobre o sentidosocial da educao pblica e a natureza de problemas nela implica-dos. Em lugar das prescries didticas e dos manuais tcnicos, pro-punha o exame dos desafios locais luz da cultura do trabalhodocente e de seus compromissos educativos.

    A recepo ao documento nas escolas parece ter sido muitovariada. Por um lado, no havia uma tradio consolidada dessetipo de discusso na rede pblica. Por outro, havia um compreens-vel anseio por mudanas radicais e imediatas, o que tendia a atrope-lar a necessidade do exame sistemtico dos temas priorizados. Ain-da assim houve muitas escolas nas quais o debate foi intenso, geran-do a esperada mobilizao em torno das grandes questes que odocumento indicava no como ideias prontas e irreformveis, mas comoum balizamento com o objetivo de indicar prioridades, sugerir direes e impedirque o esforo de participao se espraie infecundamente numa multiplicidade cati-ca de direes (idem). Tal como no caso de suas reflexes sobre oconceito de democratizao do ensino, as ideias de Jos Mrioacerca da noo de autonomia da escola aparecero em diversosde seus textos, sempre refletindo simultaneamente sua experinciadocente e seus esforos polticos no mbito da gesto educacional.

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    Nesta formulao preliminar, bastante breve dada a natureza dodocumento, j emergem duas de suas teses centrais que sero reto-madas e aprofundadas em escritos posteriores. A primeira diz res-peito ao sentido formativo e tico-poltico da luta pela autonomiada escola: a tarefa educativa tem como pressuposto tico a autonomia de quemeduca. Sonegada esta condio, a escola perde a sua autntica feio educativa etransforma-se em instrumento de doutrinao (idem). Note-se que j nessaproposio, a despeito de seu carter de documento programticode um rgo central, a autonomia pensada como condio polticade liberdade da instituio escolar e de responsabilidade educacionalpor suas decises. No se trata, como na maior parte da literaturasobre o assunto, de prticas pedaggicas voltadas para o exercciode escolha individual do educando, concebidas como fomento a suaautonomia. Trata-se de um exerccio poltico no mbito das relaesinternas da instituio escolar, guiado por propsitos formativos epor compromissos com princpios vinculados a uma viso socialrepublicana e democrtica. Ela pressupe a autonomia regimentaldas escolas, mas a esta no se restringe: a autonomia do educador hoje,num momento histrico de busca democrtica, um comprometimento total com oideal democrtico de educao. (1987:130 grifos do autor).

    A segunda caracterstica que, a exemplo da primeira, recebernovas formulaes ao longo dos anos, diz respeito autonomiacomo estratgia poltico-pedaggica de melhoria do ensino. preciso salientar, contudo, que a melhoria nele aludida inclui, masultrapassa largamente a mera eficincia na aprendizagem dos con-tedos da cultura letrada, tradicionalmente vinculados ao processode escolarizao. Fossem a qualidade da educao e a melhoriado ensino assuntos do mbito estritamente tcnico-pedaggico nos quais o xito pudesse ser inequivocamente mensurado poravaliaes do rendimento escolar no faria sentido vincul-las autonomia da escola. Uma escola pode atingir bons resultadosnesse domnio mesmo presa a regulamentos e procedimentos r-

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    gidos e impostos a seus educadores, desde que sejam eficazes emrelao aos fins estabelecidos. No entanto, qualidade e melhoriada escola no se separam, para Jos Mrio, de seu sentido pblicoe formativo, na acepo mais ampla dessas expresses:

    o fundamental que a autonomia de nossas escolas pblicas estejaimpregnada de um ideal pedaggico que constitua a base de umatarefa educativa, cuja excelncia h de ser medida pela sua capacidadede instalar uma autntica convivncia democrtica e, por isso mesmo,de formar homens crticos e livres at mesmo a partir de condiessociais, polticas e econmicas adversas. (idem)

    Trata-se, pois, de uma melhoria que vincula a qualidade da edu-cao no somente a seu impacto privado na vida escolar e econ-mica de um indivduo como a eventual ascenso social decorrentede suas oportunidades profissionais ulteriores mas tambm aocompromisso pblico das escolas com as comunidades em que seencontram e com a formao de instituies sociais democrticas.Por isso,

    a questo da melhoria do ensino no uma questo poltico-partid-ria, nem administrativa: uma questo pedaggica e pblica. Portan-to, a questo da melhoria do ensino diz respeito ao mbito da escola,mas tambm ao espao pblico em que ela se encontra (Azanha1995: 23).

    Nessa perspectiva, o que deveria competir administrao cen-tral, como as secretarias de educao e seus rgos assessores, asimples fixao de diretrizes gerais e o provimento de condies, apoioe facilidades para que as prprias escolas busquem uma melhoria doensino a partir da identificao dos problemas locais e concretos, bemcomo da proposio de formas de elimin-los ou atenu-los. Poroutro lado, a convivncia numa instituio democratizada em seusprocessos e procedimentos educativos teria, em si, um papel de inici-ao e formao em um modo de vida democrtico.

    A ideia de autonomia proposta era, portanto, simples e sin-gela: administrao pblica cabe um papel eminentemente pol-tico e no a fixao de uma orientao pedaggica centralizada ou

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    a criao de rgidos mecanismos administrativos que ignorem adiversidade dos problemas que as escolas enfrentam. Mas era tam-bm uma ideia potente e impregnada de consequncias imediataspara os escales mais altos da administrao, que perderiam poderpara os rgos locais, como as delegacias de ensino e as prpriasescolas. Ela teria, portanto, de enfrentar a inrcia da burocracialigada aos rgos de gesto do poder executivo e os interessesconflitantes dentro da prpria equipe de governo.

    Apenas seis meses aps a posse, Jos Mrio descreve, em relatoenviado Assembleia Legislativa, a natureza dos problemas que tevede enfrentar. Ressalta que a implantao de uma poltica que propi-ciasse as condies para a autonomia das escolas deveria repousarno levantamento objetivo das condies reais que existem para que a prtica dacpula administrativa flua no sentido de liberar as iniciativas das escolas e no deimpor solues muitas vezes inviveis, de orientar a busca da prpria melhoria eno de ordenar. Por enquanto essas condies no existem [... pois ...] a estrutu-ra bsica da Secretaria de Estado da Educao, instituda pelo Decreto 7510/76, foi concebida por tecnocratas a servio do regime de fora em que se estavaento. A permanncia dessa estrutura obstculo intransponvel a um autnticoesforo democratizante. H uma contradio entre a ao possvel a partir daestrutura existente e a verdadeira autonomia da escola (1987:138).

    Essa contradio se acirrou e, aliada a setores da tecnocraciaeconomicista que passaram a ter um poder cada vez mais centraliza-do na administrao estadual, tornou invivel a presena de JosMrio na chefia de gabinete de Paulo de Tarso; que tambm viria aser substitudo por Paulo Renato de Souza pouco tempo depois.Gradativamente, o ideal de autonomia da escola reduz-se a umamera estratgia de gesto administrativa, perdendo sua substnciapoltica e formativa. Inaugura-se, ento, uma poltica que aos pou-cos se estabelecer com grande fora no Brasil e cuja marca ser,paradoxalmente, apresentar-se como apoltica: ora aceitandoparmetros internacionais de vis economicista como os nicos prin-cpios norteadores possveis da ao educativa; ora elegendo uma

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    corrente pedaggica especfica como modelo didtico geral por suasuposta base cientfica. Nos dois casos, o ideal de autonomia comoliberdade institucional e como responsabilidade educativa por suasescolhas deixa de fazer sentido, pois esse ideal pressupe o debate, aescolha e a pluralidade. Jos Mrio passaria a lutar noutras frentes.

    Uma trajetria histrica da noo de autonomia nos discursos

    educacionais

    Afastado de suas atribuies polticas na Secretaria da Educa-o, Jos Mrio voltou ao tema da autonomia pedaggica emdiversos artigos escritos nas dcadas de 80 e 90 e em pareceres queemitiu como membro do Conselho Estadual de Educao,notadamente por ocasio do exame da proposta de um regimen-to comum para as escolas municipais de So Paulo, no ano de1991. Neles as teses centrais do Documento preliminar reaparecem,mas de forma cada vez mais detalhada e rigorosa e, progressiva-mente, passam a articular-se com outros temas recorrentes em suaobra, como a formao de professores e a especificidade da cul-tura das instituies escolares.

    No incio da dcada de 90, o ideal de autonomia da escola jno mais soava como uma novidade. Embora as polticas pblicasento implantadas o tivessem reduzido a um mero procedimentoadministrativo, destitudo de seus princpios ticos e formativos, aretrica educacional no cessou de a ele fazer referncia. O tema,pouco a pouco, acabou por adentrar os debates acadmicos e aagenda poltica; a autonomia da escola deixou de ser um tpico deespecialistas e profissionais da educao para tornar-se um assuntopblico. Tanto assim que, como veremos, a expresso foi incor-porada na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996.

    Se por um lado, a difuso da preocupao com a autonomiada escola e com a participao dos professores nos rumos dainstituio representou um potencial ganho poltico; por outro, o

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    recurso constante a essa expresso, muitas vezes de forma vaga ouambgua, teve como resultado a banalizao de seu significado. medida que se transformava num importante slogan poltico, a ex-presso autonomia da escola perdia sua densidade conceitual, afora de seu significado programtico e sua capacidade potencialde indicar solues para os problemas cotidianos da escola pbli-ca. Para utilizar expresses caras a Jos Mrio, era como se elapassasse a padecer de uma anemia semntica exatamente por ha-ver se tornado uma palavra sagrada. Por essa razo seus textospassam a rastrear a trajetria das variaes em seus significadosnos discursos educacionais brasileiros no sculo XX.

    Essa reconstruo histrica do recurso expresso autonomiano campo da educao ir remontar ao incio da dcada de 30, porocasio da publicao do Manifesto dos Pioneiros da EducaoNova, redigido por Fernando de Azevedo e assinado por diversosintelectuais renomados, como Ansio Teixeira, Loureno Filho, Ce-clia Meirelles, Sampaio Dria, dentre outros. Trata-se de um marcona mobilizao poltica por uma escola pblica laica e democrtica,que j em sua abertura chama a ateno para a ideia, que permane-cer forte por dcadas, de que na hierarquia dos problemas nacio-nais, nenhum sobreleva em importncia e gravidade ao da educa-o. Nele, o tema da autonomia aparece vinculado funo socialda educao e sua garantia visa evitar a indevida interferncia nodomnio da formao educacional dos interesses transitrios, ca-prichos pessoais ou apetites de partidos, o que, segundo seus signa-trios, tornaria impossvel ao estado realizar a imensa tarefa que seprope da formao integral das novas geraes. H um pargra-fo especfico em que se clama pela

    necessidade de uma ampla autonomia tcnica, administrativa e eco-nmica, com que os tcnicos e educadores, que tm a responsabili-dade e devem ter, por isto, a direo e administrao da funoeducacional, tenham assegurados os meios materiais para pode-rem realiz-la.

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    Por dcadas esse documento manteve ainda mantm granderepercusso nas discusses acadmicas e polticas e foi, segura-mente, uma leitura que influenciou Jos Mrio Azanha em sua di-menso poltica, embora no necessariamente no que concerne sua proximidade com os ideais pedaggicos do escolanovismo.Talvez nele possamos encontrar a inspirao de Jos Mrio nosentido de vincular a autonomia da escola ao significado tico daformao educacional. No obstante, preciso ressaltar que a n-fase maior do Manifesto no sentido de afirmar a autonomiacomo forma de alar os interesses da educao acima das polticase interesses transitrios de um governo. Nele nada h que vincule oideal de autonomia liberdade da unidade escolar na deteco deseus problemas e no encaminhamento de proposio para seuenfrentamento. Trata-se, pois, mais da autonomia dos sistemaseducacionais do que das instituies escolares especficas. At mes-mo porque, naquele momento, a tarefa poltica prioritria era aexpanso do atendimento escolar ainda muito restrito, e a consti-tuio de um sistema educacional em mbito nacional.

    No ano seguinte publicao do Manifesto, Fernando de Aze-vedo, que havia sido nomeado Diretor-geral da Instruo Pblica,redigiu o Cdigo da Educao do Estado de So Paulo, visandoreorganizar todo seu sistema de ensino. O termo autonomia neleaparece mais uma vez; porm desta feita em sentido ainda maisrestrito. Seu artigo 239 afirma que o professor deve ter autonomiadidtica dentro das normas tcnicas gerais indicadas pela pedagogiacontempornea. A autonomia , pois, concebida como um atribu-to do professor e no da instituio escolar; como garantia de pro-teo de uma liberdade individual, no como faculdade de um gru-po de profissionais de uma instituio pblica autnoma.

    No plano dos discursos legais somente na ltima Lei deDiretrizes e Bases da Educao, em 1996, que a noo de auto-nomia da escola na elaborao de sua proposta de trabalho

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    educativo ir surgir, j que as duas leis anteriores, respectivamen-te 4.024 de 1961 e 5.692 de 1971, tratam somente do dever dasescolas de organizar-se por meio de um regimento prprio.Claro que este tambm um aspecto da autonomia da escola,mas no plano estritamente regimental e no no do planejamentoe da ao educativa, como propunha Jos Mrio em seu Docu-mento preliminar e como estabelecer a Lei n 9.394 de 1996. Esta,tambm influenciada pelos ideais de participao e democratiza-o evocados a partir das mobilizaes dos anos oitenta, deugrande nfase autonomia das escolas, no s no que diz respei-to sua gesto democrtica como no que concerne elaboraode seu projeto pedaggico, que deve envolver docentes e demaisprofissionais da educao.

    O tema abordado, direta e indiretamente, nos artigos 12 a 15que focalizam especificamente os papis das unidades escolares.Transcreveremos algumas passagens que nos interessam na medi-da em que suscitaram uma importante interpretao de Jos M-rio no texto Proposta pedaggica e autonomia da escola:

    Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas co-muns e as do seu sistema de ensino, tero a incumbncia de:

    I - elaborar e executar sua proposta pedaggica;

    [...]

    VI - articular-se com as famlias e a comunidade, criando processosde integrao da sociedade com a escola;

    Art. 13. Os docentes incumbir-se-o de:

    I - participar da elaborao da proposta pedaggica do estabeleci-mento de ensino;

    II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta peda-ggica do estabelecimento de ensino;

    [...]

    VI - colaborar com as atividades de articulao da escola com asfamlias e a comunidade.

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    Art. 14. Os sistemas de ensino definiro as normas da gesto demo-crtica do ensino pblico na educao bsica, de acordo com as suaspeculiaridades e conforme os seguintes princpios:

    I - participao dos profissionais da educao na elaborao do pro-jeto pedaggico da escola;

    II - participao das comunidades escolar e local em conselhos esco-lares ou equivalentes.

    Art. 15. Os sistemas de ensino asseguraro s unidades escolarespblicas de educao bsica que os integram progressivos graus deautonomia pedaggica e administrativa e de gesto financeira, obser-vadas as normas gerais de direito financeiro pblico.

    Ora, notvel a nfase que o diploma legal concede elabora-o conjunta da proposta pedaggica, concebida como um exerc-cio de autonomia coletiva dos profissionais da educao e demaismembros da instituio, a ser realizado, portanto, como empreendi-mento conjunto. No mais se trata, como nas LDB anteriores, deum expediente administrativo, embora o inclua. A vinculao entre aproposta pedaggica, mencionada no Artigo 12, e os princpios deautonomia, participao e gesto democrtica nos seguintes pareceapontar para a complementaridade e interdependncia entre essesprincpios da norma legal. Trata-se, evidentemente, de princpiosprogramticos e no de uma regulamentao detalhada. Da a im-portncia de exerccios interpretativos, como o texto Proposta pedag-gica e autonomia da escola, cujo propsito sugerir um significadooperativo para os princpios gerais estabelecidos na lei. Nesse senti-do, possvel afirmar que Jos Mrio vislumbrou na vinculaolegal entre projeto pedaggico e a autonomia da escola uma tra-duo de suas aspiraes polticas consubstanciadas na redao, nadivulgao e no debate do Documento preliminar.

    Em seu entender, a atribuio da responsabilidade escola e aseus profissionais pela elaborao de uma proposta de trabalhono deveria ser tomada como uma omisso do poder pblico,mas como oportunidade de romper com prticas por meio das

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    quais professores e escolas se transformaram em meros presta-dores de servio de ensino, de quem se pode exigir e obter eficin-cia, mas que no respondem eticamente pelos resultados de suasatividades (2006:94). Ao acenar com essa potencial liberdadeinstitucional e com a responsabilidade dela decorrente a LDBN,na leitura que dela faz Jos Mrio, abre a possibilidade de umanova compreenso do papel dos educadores nos rumos da edu-cao escolar. No entanto, era-lhe igualmente claro que autonomiano se decreta, nem se implanta. Na melhor das hipteses, criam-se as condies legais e materiais que possibilitam ou otimizam aluta por sua institucionalizao como prtica cotidiana.

    A autonomia como desafio ao pensamento e convite ao julgamento

    Em seu ltimo texto sobre o tema, Jos Mrio alerta para umgrave risco que se corre ao buscar formas capazes de transformaro preceito legal da autonomia da escola em prtica escolar efetiva.Desacompanhado da compreenso de seu significado poltico eformativo, o dispositivo legal que prev a elaborao de um pro-jeto ou proposta pedaggica pode, ao invs de estimular a detecodos problemas locais e o encaminhamento de solues prprias unidade escolar, transformar-se numa tarefa burocrtica e padro-nizada. Esse foi o destino do planejamento escolar anual, pensadona dcada de 60 como uma forma de organizar e compartilhar asescolhas de contedos e procedimentos didticos entre professo-res, mas que acabou por se transformar em mera cpia de ndicede livros didticos.

    Esse poderia ser e em grande medida parece ter sido odestino da exigncia legal de elaborao de uma proposta ou deum projeto pedaggico da escola como forma de dar substnciaao ideal de autonomia. Na ausncia de compreenso dos prop-sitos educativos da medida legal, frustram-se os resultados espe-rados. Trata-se de uma peculiaridade, embora no exclusiva, do

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    ANTONIO GRAMSCI

    campo da educao. Nas aes educativas, a prpria represen-tao, conceito ou imagem que temos de uma tarefa ou de seuobjetivo e de cada um de seus elementos constitutivos altera osentido, os procedimentos e resultados dessa prtica.

    Em certos tipos de trabalho sobretudo naqueles sujeitos auma produo industrial, como a montagem de um automvel o produto final almejado no se altera em funo da variabilidadede imagens e concepes que trabalhadores que o produzem tma seu respeito. A eventual variao em suas imagens e concepesdo que ou mesmo do que deve ser - um automvel poucoou nada altera o produto final, desde que se observem os proce-dimentos recomendados ou impostos ao trabalhador. Da porqueas qualidades e caractersticas desses produtos variam pouco ounada com a eventual substituio de um trabalhador numa linhade montagem. evidente que o mesmo no verdadeiro para ocaso da educao e do professor. Essa distino em parte resultado carter artesanal do trabalho formativo. Mas h outros fato-res em jogo. Tanto assim que mesmo em tentativas de padroni-zao semi-industrial do trabalho docente, como no caso de cur-sos apostilados, a singularidade do professor no desaparece. Noato educativo, os