«mestre finezas» integral manuel da fonseca

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  • 8/7/2019 mestre finezas integral manuel da fonseca

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    Mestre Finezas

    Agora entro, sento-me de perna cruzada, puxo um cigarro, e pergunta de sempre respondo soprando o fumo:

    S a barba.Ora de h pouco este meu -vontade diante do Mestre Ildio

    Finezas .Lembro-me muito bem de como tudo se passava. Minha me tinha

    de fingir-se zangada. Eu saa de casa, rente parede, sentindo queaquilo era pior que ir para a escola.

    Mestre Finezas puxava um banquinho para o meio da loja eenrolava-me numa enorme toalha. S me ficava a cabea de fora.

    Como o tempo corria devagar!A tesoura tinia e cortava junto das minhas orelhas. Eu no podia

    mexer-me, no podia bocejar sequer. Est quieto, menino repetiaMestre Finezas segurando-me a cabea entre as pontas duras dos dedos:

    Assim, quieto! Os pedacitos de cabelo espalhados pelo pescoo, pelacara, faziam comicho e no me era permitido coar. Por entre asmadeixas cadas para os olhos via-lhe, no espelho, as pernas esguias, ocaro severo de magro, o corpo alto, curvado . Via-lhe os braoscompridos , arqueados como duas garras sobre a minha cabea.Lembrava uma aranha .

    E eu sumido na toalha, tolhido numa posio to incmoda quetodo o corpo me doa era para ali uma pobre criatura indefesa nasmos de Mestre Ildio Finezas.

    Nesse tempo tinha-lhe medo. Medo e admirao . O medo resultava

    do que acabo de contar. A admirao vinha das rcitas dos amadoresdramticos da vila .Era pelo Inverno . Jantvamos pressa e nessas noites minha me

    penteava-me com cuidado. Calava uns sapatos rebrilhantes e umaspegas de seda que me enregelavam os ps. Saamos. E, no negrume danoite que afogava as ruas da vila, eu conhecia pela voz famlias quecaminhavam na nossa frente e outras que vinham para trs. Depois, aoentrar no teatro , sentia-me perplexo no meio de tanta luz e gentesilenciosa. Mas todos pareciam corados de satisfao.

    Da a pouco, entrava num mundo diferente. Que coisas estranhasaconteciam! Ningum ali falava como eu ouvia c fora. E mesmo quandocalados tinham outro aspecto; constantemente a mexerem os braos.Mestre Finezas era o que mais se destacava . E nunca. Que me recorde, opano desceu, no ltimo acto, com Mestre Finezas ainda vivo . Quasesempre morna quando a cortina principiava a descer e, na plateia, assenhoras soluavam alto.

    Aquelas desgraas aconteciam-lhe porque era justo e tomava, degosto, o partido dos fracos. E, para que os fracos vencessem, MestreFinezas no tinha medo de nada nem de ningum. Heroicamente, depeito aberto, e com grandes falas, ia ao encontro da morte.

    Eu arrepiava-me todo. Uma noite Mestre Finezas morreu logo noprimeiro acto. Foi um desapontamento. Todos criticaram pelo corredor,no intervalo. O melhor artista morreu mal entra em cena!... No est

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    certo ! Agora vamos gramar quatro actos s com canastres ! dizia odoutor delegado a meu pai.

    Mas a cena tinha sido to viva e a sua morte to notada durante oresto do espectculo que, no outro dia, me surpreendi ao v-locaminhando em direco loja.

    Ora havia tambm um outro motivo para a minha admirao . Era oviolino. Mestre Finezas, quando no tinha fregueses, o que era frequentedurante a maior parte do dia, tocava violino . E, muita vez, aconteceu euabandonar os companheiros e os jogos e quedar-me, suspenso, a ouvi-lo,de longe.

    Era bem bonito. Uma melodia suave saa da loja e enchia a vila detristeza.

    Passaram anos. Um dia, parti para os estudos. Voltei homem.Mestre Finezas ainda a mesma figura alta e seca . Somente tem oscabelos todos brancos .

    Olha bem para mim pede-me s vezes olha bem e diz l se

    este o mesmo homem que tu conheceste? ...Finjo-me admirado de uma tal pergunta. Procuro convenc-lo deque sim, de que ainda . Compreende as minhas mentiras e abanadocemente a cabea:

    Estou um velho, Carlinhos !...Vou l de vez em quando. A loja est sempre deserta . As mos

    muito trmulas de Mestre Finezas mal seguram agora a navalha. Tambm abriram, na vila, outras barbearias cheias de espelhos evidrinhos, e letreiros sobre as portas a substiturem aquela bola com umpenacho que Mestre Finezas ainda hoje tem entrada da loja.

    Mestre Finezas passa necessidades . Vive abandonado da famlia,com a mulher entrevada, num casebre prximo do castelo. Eu sou o seunico confidente e um dos raros fregueses.

    Algo de comum nos aproximou . Ildio Finezas sonhou ser um grandeartista, ir para a capital , e quem sabe se pelo mundo fora. Eu falhei umcurso e arrasto, por aqui, uma vida de marasmo e ociosidade. H entremim e esta gente da vila uma indiferena que no consigo vencer. Omeu desejo partir breve . Mas no vejo como. E, quando o presente feio e o futuro incerto , o pass ado vem-nos sempre ideia como o tempoem que fomos felizes . Da eu ser o confidente de Mestre Finezas.

    Ele ajuda as minhas recordaes contando-me dos dias a quechama da sua glria. Estamos sozinhos na loja. De navalha em punho,Mestre Finezas declama cenas inteiras dos melhores dramas que j seescreveram . E h nele uma saudade to grande das noites em que faziasoluar de amor e mgoa as senhoras da vila que, amide, esquece tudoo que o cerca e fica, longo tempo, parado. Os seus olhos ganham umbrilho metlico . Fixos, olham-me mas no me vem. Esto a ver para lde mim , atravs do tempo.

    Lentamente, aflora-lhe aos lbios, premidos e brancos, um sorrisodoloroso.

    Eu fui o maior artista destas redondezas !... murmura.Na cadeira, com a cara ensaboada, eu revivo a infncia e sonho o

    futuro. Mestre Finezas j nem sonha; recorda s.

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    De novo, a mo treme-lhe junto da minha cara. No espelho, vejo-lhe o busto mirrado, os cabelos escorridos e brancos. Oio-lhe a vozdesencantada:

    A navalha magoa-te?Uma onda de ternura por aquele velho amolece-me. D-me

    vontade de lhe dizer que no, que a navalha no magoa, que nemsequer a sinto. O que magoa ver a presena da morte alastrando pelasparedes escuras da loja , escorrendo dos papis cados do tecto,envolvendo-o cada vez mais, dobrando-lhe o corpo para o cho

    Mas Mestre Finezas parece nada disto sentir. Salta de um assuntopara outro com facilidade. Preciso de tomar ateno para lhe seguir osfios do pensamento. Agora faz-me queixas da vila. E termina comosempre:

    Esta gente no pensa noutra coisa que no seja o negcio , alavoura. Para eles, a nica razo da vida

    Volto a cabea e olho-o. Sei o que vai dizer-me. Vai falar-me do

    abandono a que o votaram. Vai falar-me do teatro, da msica, da poesia .Vai repetir-me que a arte a coisa mais bela da vida. Mas no. J nosentendemos s pelo olhar. Mestre Finezas salta por cima de tudo isto eergue a navalha num lance teatral:

    Que sabem eles da arte? Tu que estudaste, tu sabes o que aarte. Eles ho-de morrer sem nunca terem gozado os mais belosmomentos que a vida pode dar.

    Atravessou a loja, abriu um armrio cavado na parede, e tirou oviolino.

    Eu no te disse nada, Carlinhos mas, olha, tenho vendido tudo

    para no morrer de fome... Tudo. Mas isto !...Estendeu o violino na minha direco e continuou, reprimindo umsoluo:

    Isto nem que eu morra!... a minha ltima recordao...Calou-se por longo tempo de olhos no cho. Depois, de boca muito

    descerrada, disse-me como quem pede uma esmola: Tu queres ouvir uma msica que eu tocava muito, Carlinhos?... Quero!... respondi, forando um sorriso de agrado.Nem me ouviu. Estava, ao meio da loja, entre mim e a porta e

    prendia o violino no queixo.O arco roou pelas cordas e um murmrio lento comeou, nosilncio que vinha das ruas da vila e enchia a casa.Lentamente, o fio de msica ia engrossando. Era agora mais forte

    agudo, desamparado como um choro aflito. E demorava, ondeava porlonge, vinha e penetrava-me de uma sensao dolorosa.

    Levantei-me de toalha cada no peito, cara ensaboada, preso nosei de que vagos desgostosos pensamentos. Talvez pensasse em fugir,pedir-lhe que no tocasse mais aquela msica desarmada e triste .

    Mas, na minha frente, Mestre Finezas, alheio a tudo , fazia gemer oseu violino , as suas recordaes. O sol da meia tarde entrava pela portae aureolava-o de uma luz trmula. E erguia o corpo como levado natoada que os seus dedos desfiavam; ficava nos bicos dos ps, todo

    jogado para o tecto.

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    De sbito, uma revoada de notas soltaram-se, desencontradas,raivosas. Encheram a loja, e ficaram vibrando

    Os braos caram-lhe para os lados do corpo. Numa das mossegurava o arco, na outra o violino. E, muito esguio, macilento, MestreFinezas curvou a cabea branca , devagar, como a agradecer os aplausosde um pblico invisvel .

    Mestre Finezas in Aldeia Nova de Manuel da Fonseca

    QUESTIONRIO:

    1. Classifique o narrador quanto presena. (participante)2. Classifique o narrador quanto subjectividade.

    3. Classifique os personagens: protagonista (mestre Finezas);personagens secundrias e figurantes.

    4. A aco decorre em 2s tempos: um passado e um presente deum modo paralelo. Identifique esses tempos.

    5. Transcreva exemplos comprovativos. (Agora entro, sento-me deperna cruzada; Lembro-me muito bem de como tudo sepassava; Passaram anos. Um dia parti para os estudos. Volteihomem.)

    6. Refira os espaos correspondentes a cada um desses tempos.7. Aponte diferenas a nvel social entre o tempo passado e o tempo

    presente.

    8. Que caractersticas aproximam esses 2s personagens?8.1. Caracterize o personagem principal no passado e no presente.

    9. Identifique as seguintes figuras de estilo: Como o tempo corria devagar!

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    Via-lhe os braos compridos, arqueados como duas garrassobre a minha cabea. Lembrava uma aranha.

    Uma onda de ternura por aquele velho amolece-me. Mestre Finezas, alheio a tudo, fazia gemer o seu violino, as

    suas recordaes.10. Transcreva exemplos de:

    Narrao Descrio Dilogo