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    UNIVERSIDADE DEBRASLIA INSTITUTO DECINCIASSOCIAIS

    DEPARTAMENTO DEA NTROPOLOGIA PROGRAMA DEPS-GRADUAO EMA NTROPOLOGIASOCIAL

    Sobre mestres e encantados:a jurema como expresso sentimental

    PEDROSTOECKLIPIRES

    Braslia2010

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    II

    Sobre mestres e encantados:a jurema como expresso sentimental

    PEDROSTOECKLIPIRES ORIENTADOR: PROF. JOS JORGE DECARVALHO

    Dissertao apresentada aoPrograma de Ps-Graduao em

    Antropologia Social daUniversidade de Braslia (DAn-

    UnB) como um dos requisitos paraa obteno do ttulo de mestre.

    BANCAEXAMINADORA :

    Prof. Jos Jorge de Carvalho (Presidente) DAn / UnBProf. Carlos Emanuel Sautchuk - DAn / UnBProf. Sandro Guimares de Salles - Ncleo de Etnomusicologia/UFPE - CPM

    SUPLENTE:

    Prof. Guilherme Jos da Silva e S - DAn / UnB

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    minha famlia, meu ntegro pai Ftimo, minha querida me Mnicae minha doce irm Marina.

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    IV

    Difcil fotografar o silncio.Entretanto tentei.

    (Manoel de Barros, Ensaios Fotogrficos )

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    PRLOGO EA GRADECIMENTOS

    Comecei a escrever o texto que compe esse trabalho numa tarde chuvosa dedezembro em Belo Horizonte, minha cidade natal. Natal, alis, era o clima quepairava no ar, perodo que alguns amam e outros odeiam, mas que para todosrepresenta uma poca que separa o ano velho do novo, o que passou e o que ainda incerto. Esse perodo quase que inevitavelmente nos leva a fazer um balano doque vivemos.

    Cheguei a Olinda no dia 18 de Agosto de 2010, uma quarta-feira, ainda semsaber como se daria essa pesquisa, incerteza que parece ser o clich do trabalho decampo antropolgico. Depois de rodar um dia inteiro procurando onde ficar emOlinda, quis o destino que eu encontrasse a casa de Dona Solange, onde alugariaum quarto no segundo andar com uma linda vista para o mar. Mais importanteainda era a vista lateral da casa, que dava para a casa de Dona Maria Jos, que eudescobriria mais tarde ser uma das principais referncias vivas da jurema deOlinda, possuidora de uma cincia muito profunda e bondosa. Dona Maria Jos vista como uma pessoa incansvel em seus trabalhos de cura e consolao edurante as vrias semanas que vivi ao lado de seu terreiro eu ouvia muitas reunies

    e via longas filas em sua porta aguardando atendimento.Logo em meu segundo dia eu j encontraria Alexandre LOmi Lod, com

    quem eu havia estabelecido contato meses antes e combinado auxlio durante apesquisa. LOmi lidera juntamente com Joo Monteiro e outros oQuilombo Cultural Malunguinho, organizao que visa difundir e aprimorar o conhecimento histrico ereligioso da cultura negra e indgena de Pernambuco. Durante minha estadia emOlinda passei muitas horas ao lado de LOmi, fosse em terreiros, festas ou mesmo

    na mesa de um bar. Nossas conversas giravam em torno da religiosidade e deassuntos pessoais, sempre instigantes, sempre esclarecedoras. Ao final da pesquisaeu via LOmi como algum mais do que um pesquisador e interlocutor; o viacomo um amigo verdadeiro. Espero que ainda tenhamos vrios reencontrospessoais e profissionais em nossas trajetrias.

    Gostaria de agradecer, primeiramente, ao povo de terreiro de Recife eOlinda, em especial a Joo Monteiro, Me Dora, Pai Messias, Ricardo dOxum eSandro de Juc.

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    VII

    Agradeo ao professor Carlos Sautchuk e ao pesquisador Sandro Guimaresde Salles por aceitarem compor a banca e Guilherme S por aceitar a vaga desuplente.

    Aos professores Antondia Borges, Ellen Woortmann, Kelly Cristiane, LusRoberto, Rita Segato e Roberto Motta.

    A Rosa, Adriana, Cris e Fernando.A Eduardo Vargas e Francilins Castilho, pelo estmulo de pensar culturas

    atravs das imagens.Aos amigos de Recife e Olinda, Greyce, Juliana, Luciano, Michelle, Milene,

    e Thoms.Aos amigos de UnB, Patrcia, Sandro, Gustavo, Martina, Tati, Fernando,

    Antnio, Marina, Walisson, Diogo, Carol, Jlia Otero, Fabola Gomes, Simone,Michel, Gleides, Fabiano, Denise, Joo Guilherme, Carlos Alexandre, Anderson eMariana Lima.

    Amigos de Belo Horizonte. Samuel, Yan, Dbora, Srgio, Daniel, Frederico,Felipe, Rafael e Marina.

    Aos amigos de Braslia, Claudinha, Fabola Cardoso, Paulinha, CarlosHenrique, Renata Maciel, Renata Oliveira, Chico, Jnior Hlcio, Maria e Glau.

    Agradeo especialmente aos amigos Pedro MacDowell e Tiago de Arago,melhores companheiros de Braslia que me acolheram e me mostraram o bom davida na capital. Durante a escrita desta dissertao eles se dispuseram a ler ediscutir o texto comigo, trazendo importantes contribuies s ideias contidas aqui.De igual maneira, sou imensamente grato amiga Luciana pela companhia ecorreo gramatical do texto.

    Por ltimo, agradeo a Veri pelo apoio, companhia e carinho nos momentos

    em que mais precisei.

    Acho importante deixar bem claro que sem trs pessoas em especfico essapesquisa no teria sido bem sucedida. A primeira delas o professor e orientador Jos Jorge de Carvalho, que me ajudou a definir o objeto de pesquisa e meinfluenciou academicamente. Durante meu tempo em Pernambuco, seu nomeabria vrias portas, resultado da boa relao que ele cultivou com o povo de

    terreiro ao longo dos anos. A segunda Alexandre LOmi LOd, que me acolheulogo de incio e me acompanhou durante toda a pesquisa, me guiando pelos

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    VIII

    terreiros de Recife e Olinda. E a terceira Rafael Barros, amigo dos tempos deUFMG que coordenou a pesquisa de mapeamento de terreiros na regio de Recife eOlinda. Tive a oportunidade de acompanh-lo em vrias entrevistas que virarammaterial importante para esta pesquisa.

    Gostaria tambm de agradecer, sobretudo, a Alexandre LOmi LOd, MeNice e Pai Messias pela proteo espiritual que me garantiram durante todo operodo da pesquisa e posteriormente. Em diferentes momentos os trsenfatizaram que transitar entre terreiros e quartos de jurema nos deixa fsica eespiritualmente suscetveis a energias e influncias negativas. Agradeo aos trssacerdotes o empenho e a dedicao em me auxiliar em planos de que poucocompreendo e em que sou incapaz de agir.

    Ao longo de meu mestrado contei com a bolsa de auxlio do Conselho Nacional deDesenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e com o apoio do Programa dePs-graduao em Antropologia Social da UnB.

    * * *

    Durante essa pesquisa estabeleci laos pessoais e espirituais com diferentes juremeiros que abriram suas casas e quartos religiosos para mim em um ato de boaf e confiana. Compreendo que ter acesso ao ntimo de sua religiosidade criavnculos que demandam tcita ou mesmo explicitamente que eu trate do assuntocom carinho e respeito. Modestamente, espero que ao longo desse texto eu tenhasido capaz de entrar no tema com a deferncia que o povo da jurema merece.

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    RESUMO

    O presente estudo aborda a religiosidade da jurema nas cidades de Olinda e

    Recife. A jurema ( Acacia Nigra ) uma planta e culto presente em diversas variaesreligiosas, tais como o catimb e a umbanda. Entre suas principais caractersticasest a tomada do corpo por entidades espirituais como mestres e caboclos. Suatradio vem de origens indgenas e sua difuso se deu juntamente com oestabelecimento de outras prticas e religies, como a umbanda. Das razes ecascas da planta produzida uma bebida, o vinho da jurema, que consumidoritualmente durante o culto. A etnografia enfoca o culto da jurema dentro de

    alguns terreiros na regio urbana recifense e seus principais elementos, como ocachimbo, a bebida e a fumaa. De modo similar, descrevo a relao da juremacom outras religies de terreiro, a umbanda e o candombl. Com inspiraes dafenomenologia de Merleau-Ponty e a abordagem terica de outros autores, buscoressaltar o aspecto corporificado da cultura e sua dimenso esttica e afetiva, areligiosidade como uma experincia sentimental. Para tal, utilizo do suporte visuale das narrativas das pessoas sobre sua relao com a religio e seus encantados demodo a focar como a jurema vivenciada por seus adeptos.

    PALAVRAS-CHAVE: Jurema, religies de terreiro, fenomenologia.

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    A BSTRACT

    The present study explores the religion of jurema in the cities of Olinda and

    Recife. Jurema ( Acacia Nigra ) is a plant and a cult existing in many religiousvariations, such as catimb and umbanda. Among its main characteristics we canpoint out the incorporation of spiritual entities called mestres and caboclos. Itstradition dates back to indigenous cultures and its dissemination occurred togetherwith the establishment of other religions, such as umbanda. A drink known as jurema wine is produced from the root and the outer layer of the plant and isritually consumed during the cult sessions. This ethnography concentrates on the

    jurema cult as practiced inside some terreiros (religious sites) in the urban region ofRecife, and on its main elements, such as the jurema wine, the smoking pipe andthe smoke itself. Likewise, I aim to describe the relation of jurema with two otherreligions of terreiros, umbanda and candombl. Following some insights ofMerleau-Pontys phenomenology and the theoretical approach of other authors, Iendeavour to draw attention to the bodily aspect of the cult and its aesthetical andaffective dimension, seeing religion as a sentimental experience. Thus, I relylargely on visual material and on the narrative of different people about theirrelation with the religion and its enchanted entities, as means of presenting howthe adepts experience jurema.

    KEY WORDS: Jurema, religions of terreiros, phenomenology.

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    SUMRIO

    INTRODUO

    CAPTULO1 ALGUNS ELEMENTOS INICIAIS 1.1 O CATIMB, A JUREMA E A FUMAA

    1.2 BREVE COMENTRIO SOBRE O PROCESSO FLMICO E FOTOGRFICO 1.3 CORPO, PERCEPO E INCORPORAO

    1.4 CANTANDO E DANANDO A JUREMA

    CAPTULO2 A JUREMA EMRECIFE EOLINDA

    2.1 CANDOMBL, UMBANDA E A JUREMA 2.2 A JUREMA E A ESQUERDA ESPIRITUAL

    2.3 UM TOQUE PARA EXU 2.4 NOTA SOBRE A AO RITUAL

    2.5 V KIPUPA MALUNGUINHO DA JUREMA SAGRADA

    CAPTULO3 TRS NARRATIVAS DENTRO DA JUREMA

    3.1 PAIMESSIAS 3.2 SLVIOBOTELHO ERICARDODOXUM

    3.3 MARIA DELOURDES 3.4 TRABALHOS MAIS PESADOS

    3.5 CAMINHANDO NA CINCIA DA JUREMA

    CONSIDERAESFINAIS A NTROPOLOGIA E RACIONALIDADE

    A JUREMA COMO EXPRESSO SENTIMENTAL

    EPLOGO BIBLIOGRAFIA

    A NEXOI

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    INTRODUO

    Em meio s inmeras casas que formam o aglomerado urbano de Recife, em sua

    grande maioria pequenas e de estruturas simples, perdura a tradio do culto aosmestres e caboclos. Dentro de construes modestas ou grandes sales, ouvem-sebatuques, cnticos, clamores das entidades incorporadas e preces dos angustiados. Noar, o suor das danas mistura-se fumaa dos cachimbos que carrega a esperana e orecado espiritual. Todos cantam, todos danam, todos bebem e fumam, pois essa uma festa de jurema e seus encantados se fazem presentes.

    Outrora amplamente perseguida pelas foras policiais e de sade pblica, oculto aos mestres sobrevive dentro dos terreiros de candombl, nas umbandas emesmo em sua forma individual e menos visvel nos altares e mesas constitudas empequenos quartos dedicados aos encantados. Tipicamente nordestina, a jurema , semdvida, uma das religiosidades mais difundidas em Olinda e Recife.

    No presente estudo, procuro relatar o encontro que tive com a jurema na regiometropolitana recifense no ano de 2010, alm de alinhar o debate com o que foiproduzido sobre o tema at ento. Ao longo desse texto, optei por me referir juremacomo umareligiosidade em predileo palavrareligio. Uma primeira justificativa se dao considerar que alguns adeptos do culto utilizam tal termo, o que por si s j otorna vlido. Similarmente, ao refletir sobre as duas palavras e consultar umdicionrio, vemos que um dos significados possveis do segundo vocbulo envolve umsistema de doutrinas, crenas e prticas rituais prprias de um grupo social (Houaisse Villar, 2009). Por sua vez, o termo religiosidade apresenta o significado dequalidade do que religioso; tendncia para os sentimentos religiosos, para as coisassagradas (ibid .).

    O que pretendo destacar aqui que enquanto religio tem muitas vezes aideia inerente de formao de doutrina, o que por sua vez formaliza e encerraalgumas prticas e crenas, religiosidade aponta para uma atitude ou disposiomais ampla e menos fechada em relao ao mundo espiritual. Isso, como veremos, uma caracterstica bem tpica do culto da jurema, que praticado de diversasmaneiras e variaes, sem necessariamente compor um corpo doutrinrio bemdelimitado, como o caso do kardecismo e do candombl, por exemplo. De maneira

    semelhante, comum o uso do termoespiritualidade, e no espritos, fazendoreferncia a um campo maior e mais fludo de seres desencarnados, o que pode

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    abranger de orixs do candombl a mestres da jurema, deeguns1 a caboclos e exus.Esse termo amplamente usado por Lmi Ld em sua fala e seus textos e meinspiro e tomo emprestado esse uso.

    Outro termo que utilizo ao longo dos captulos incorporao, palavra quedescreve o processo em que o mdium (ou matria, como os juremeiros o chamam)recebe o esprito ou entidade da jurema e modifica sua conscincia e seu esquemacorporal, aliando-os ao conjunto de ideias e emoes que circundam a espiritualidadepresente. Na literatura antropolgica termos como possesso e transe so maiscomuns. Contudo, a noo de possesso soa desrespeitosa no contexto em que fiz meutrabalho de campo, em muito devido ao seu significado em outras religies, como asneopentecostais. A palavra incorporao igualmente um uso nativo e no deve serconfundida com o conceito antropolgico que perpassa o debate sobre o corpo,normalmente ligado noo deembodimentutilizada por autores como ThomasCsordas.

    Optei por grafar os nomes das religies com letras minsculas, maneira maisconvencional na literatura antropolgica. Essa tambm a maneira como nosreferimos a outras religies, como o catolicismo, por exemplo. No caso de entidadesespirituais, utilizo termos como caboclos e orixs em letras minsculas, grafando-

    o em maiscula quando este se referir a uma entidade especfica, como em oCaboclo Sete-Flechas. J o termo mestre um caso distinto, uma vez que apalavra remete tanto a algum mestre juremeiro, como so conhecidos em vida,quanto a algum desencarnado que atingiu nveis mais altos no panteo da jurema.2 Tratar os termos dessa maneira tambm uma tentativa de desmistific-los, no nosentido religioso, mas no acadmico, de torn-los menos exticos e estranhos.

    No primeiro captulo dessa dissertao, apresento alguns elementos essenciais

    dentro do culto da jurema, tal como sua origem no catimb nordestino, a bebida feita

    1 Egum o nome dado s almas dos defuntos, mais especificamente aquelas dos filhos de santo eantepassados, que so em geral cultuados em quartos especficos, o Igbale. Carvalho e Segato notamque esse o quarto mais inacessvel dentro de um terreiro e tambm estritamente interdito smulheres: el mundo de los eguns es el rea del culto que llega al mximo de los secretos (Carvalho eSegato, 1978: 24).2 Uma entidade mestre na jurema tida como um esprito evoludo ou em processo de evoluo, massempre em um estgio mais avanado, o estgio da cincia (Assuno, 2006: 243).

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    da planta e a presena do cachimbo e da fumaa. A partir disso, descrevo uma festade jurema em um terreiro e discuto o uso do suporte audiovisual e suas implicaesdentro da pesquisa. Em seguida, apresento algumas teorias que tratam da dimensocorporificada da cultura e, com inspiraes da fenomenologia de Merleau-Ponty eapontamentos tericos de outros autores, amplio o debate para abordar essa questodentro do culto da jurema.

    Seguindo essa linha, no segundo captulo, viso a debater a relao da juremacom outras religies de terreiro, a umbanda e o candombl. Esse paralelo se d nosomente no nvel prtico e cotidiano, mas tambm no que tange ao campo mstico ereligioso, o mundo espiritual. Nessa parte, debato tambm a noo da religiosidade deesquerda que frequentemente trazida tona na jurema. Dessa forma, descrevo umafesta em terreiro em homenagem a uma entidade considerada perigosa, um exu. Emseguida, utilizo da teoria de alguns autores para pensar o comportamento ritual e faoum comentrio e apresento um ensaio fotogrfico do Kipupa Malunguinho, encontroanual de juremeiros na mata.

    De modo semelhante, abordo as concepes que diferentes juremeiros queconheci tm sobre as entidades da jurema e sua relao pessoal com a religiosidade.3 Para tal, descrevo no terceiro captulo trs conversas que tive com cinco pessoas

    ligadas ao culto aos mestres. Nessa parte, busco dar valor experincia individual demodo a focar a religiosidade vivida e como os smbolos religiosos so tratados pelosindivduos. Ao final do texto, fao consideraes sobre o pensamento religioso e arazo predominante ocidental para debater a posio que a anlise antropolgicaocupa nessa interseo. Por ltimo, aponto para a direo de tentar compreender a jurema em sua dimenso esttica e afetiva, a religiosidade como uma experinciasentimental.

    Descrevo aqui a jurema tal como a conheci em sua prtica urbana no segundosemestre de 2010. Meu estudo se restringe a um curto perodo de tempo, de 18 deAgosto a 9 de Outubro. Assim, levanto menos os aspectos das razes histricas do queas concepes atuais que os juremeiros com quem tive contato tm sobre sua religio.

    3 Mantive os nome originais das pessoas com quem conversei. Sempre que possvel, eu indagava se elaspreferiam que eu usasse pseudnimos, ao que normalmente respondiam que no era necessrio. Poroutro lado, considero que o registro etnogrfico tem tambm importncia histrica, sendo igualmenteuma homenagem s pessoas que marcaram esse estudo.

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    Se o leitor quiser conhecer outros aspectos do culto, recomendo Grnewald (2006) esua descrio acerca das prticas indgenas da jurema. Para um aprofundamento emsuas formas mais antigas e origens, ler Cascudo (1978 [1951]), Bastide (2004 [1945]) eFernandes (1938). Para consultar estudos recentes que analisam sua associao com aumbanda, ver Assuno (2006) e Salles (2010).

    Diz Gilberto Freyre em um maravilhoso livro sobre as lendas de assombraesde Recife: que o Rio recorre ao sobrenatural principalmente para ver o futuro;enquanto no Recife o sobrenatural sobretudo uma perseguio do presente pelopassado.4 nesse esprito que eu gostaria de comear esse texto.

    4 Freyre, 1970: XXVIII/XXIX.

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    CAPTULO1 ALGUNS ELEMENTOS INICIAIS

    1.1 O CATIMB, A JUREMA E A FUMAA

    Parece consenso na literatura e entre os juremeiros que as origens da juremacontempornea so indissociveis do catimb, prtica mgica curativa do nordeste enorte.5 Para Gonalves Fernandes (1938: 9), catimb tanto o prprio feitio quantoo ato mgico, o ofcio e a casa do catimbozeiro. Nos termos do autor, o catimb seapresenta ao observador externo como uma fonte mgica de cura e enfeitiamento:o catimbozeiro causaria ocultamente, se o desejasse, a morte do indivduo, comooutra face da sua personalidade mgica, ou o submeteria ao poder da sua vontade,domnio e amor (1938: 175-6).

    Em seu clebre livro sobre o catimb nordestino, Meleagro, Lus da CmaraCascudo empreende um estudo ensastico sobre algumas das prticas dos feiticeiros doserto e litoral correlacionando-as com a antiga magia europeia. Ao longo da obra, oautor descreve inmeros ritos e crendices, tanto aqueles ligados ao catimb quanto osque vem de tradies populares msticas europeias. Desse modo, Cmara Cascudoafirma que outras religiosidades brasileiras, como a pajelana e o tor, no so todecisivos ao catimb como o so as tradies msticas europeias.6 Em seus termos, oCatimb bruxaria sem recorrer ao diabolismo medieval (1978: 21). E o catimbque descreve Cascudo , sem dvida, fonte de formao da jurema que existeatualmente em meios urbanos.

    Em geral, o catimb tido por Cascudo como um processo mstico individualsem formar culto ou protocolo sagrado, um consultrio tendendo, cada vez mais,para a simplificao ritual (1978: 87), um empenho em dominar os misteriosos

    poderes disciplinados disposio da vontade pessoal (1978: 27). J poca de seu Meleagro, Cascudo aponta para a influncia das conceituaes kardecistas acerca domundo dos espritos na prtica do catimb. No entanto, isso ocorreu sem que este

    5 importante notar que Bastide (2004: 148) descreve o catimb posterior festa da jurema e no ocontrrio.

    6 Carvalho (1998: 5) chama a ateno ao fato de que, mesmo sendo um avano no tema, ao ressaltar a

    importncia da tradio indoeuropeia, Cascudo negligencia a possibilidade de extrair conhecimento daprpria tradio dos mestres.

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    tenha absorvido a carga moralista e crist do espiritismo de Kardec (1978: 27). Noobstante, a umbanda apontada por diferentes autores (Assuno, 2006; Salles, 2010)como influncia mais decisiva na formao do moderno culto da jurema.

    poca de Cmara Cascudo, o transe no catimb parecia ser mais distante doque visto na jurema de hoje, possivelmente mais contido e menos performtico. Domesmo modo, Cascudo afirma que no catimb no se encontravam batuques comoeram vistos no candombl. Portanto, a jurema dos dias de hoje claramente engloboude outras religiosidades sua forma de culto em grupo. Segundo Sandro Guimares deSalles (2010: 80-1), o catimb de Alhandra (cidade paraibana referncia da jurema)era constitudo principalmente de elementos catlicos e indgenas, mas tambm deelementos advindos da magia europeia e, posteriormente, do espiritismo kardecista.Desse modo, o autor reconhece esse sentido que foi tratado na literatura folclorista eantropolgica, sublinhando que atualmente a palavra tem seu uso mais associado feitiaria e magia negra. Como veremos em outra parte deste texto, os trabalhosvistos como de linha da esquerda so outra caracterstica essencial da jurema.

    De sua forma individual mais conhecida como catimb, herdou o modernoculto da jurema quase todos seus elementos: a bebida da jurema, o culto aos mestrese, principalmente, o uso do cachimbo, elemento tido como essencial por qualquer

    juremeiro. A fumaa tambm descrita por Bastide (2004) como um dos primeiroselementos do catimb. Uma das possveis razes para isso que o meio urbano deRecife e Olinda no possibilita a relao intensa e ntima que alguns juremeiros tmcom seus ps de jurema, como descrito por Salles na cidade de Alhandra.

    Deste modo, importante enfatizar que, na simbologia da jurema, a fumaacontm em si enorme poder, j que os trabalhos e os recados so feitos e enviadosatravs dela. Em contraponto com a tradio do conhecimento iluminista europeu,

    que tudo desvenda e esclarece, na cincia da jurema a fumaa mostra uma realidadenebulosa e difusa. Dona Nice, de quem falarei mais adiante, diz que a fumaa ondeos trabalhos acontecem. Segundo ela, a fumaa a coisa mais melindrosa dentro da jurema: A fumaa ela cura, ela derruba, a fumaa ela recupera. Desse modo, Nicerelata que um bom juremeiro tem que saber ler e interpretar sua fumaa, sabernavegar e andar nela. Na jurema, preciso conhecer a fumaa, preparar o fumo certopara cada trabalho especfico.

    De fato, a fora e a centralidade da fumaa foi um trao constante nas falas eprticas do juremeiros durante toda a pesquisa. Pai Messias comenta que os mestres

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    da jurema incorporam bebendo cachaa, cerveja ou a prpria jurema, dependendoda preferncia de cada um. J as mestras preferem os espumantes, como ochampanhe e a sidra. Mas todas essas entidades sempre vm trabalhando comcharutos, cachimbos ou cigarros; vm trabalhando com a fumaa. Como explica o paide terreiro:

    A importncia da fumaa para que seja tirado todas aquelas quizilas, que sejatirado todos os atrapalho da vida da pessoa e que seja distribudo no mundo, queseja afastado, para que o tempo leve. Para que o tempo leve aquele malefcio,aquela escurido, aquela negatividade das pessoas. Atravs de qu? S a fumaa queleva, n? (Pai Messias)

    Fernandes (1938: 104) descreve o que ele considera uma tcnica homicida e quelhe foi narrada por uma catimbozeira: um trabalho em meio a velas acesas em que afumaa do cachimbo soprada no rumo provvel da pessoa indicada para vtima domalefcio. De modo geral, desde as primeiras descries etnogrficas sobre o catimba fumaa aparece como o princpio da fora dos trabalhos espirituais e o meio peloqual eles se propagam para atingir sua finalidade.

    Por outro lado, a associao do culto da jurema com a espcie botnica um

    aspecto j bem descrito por alguns autores. O nome jurema normalmente associadoao termo TupiYu-r-ema(Mota e Barros, 2006: 21; Assuno, 2006). Tais autoresreconhecem pelo menos sete tipos de rvores e arbustos que podem levar o nomepopular de jurema, dentre as quais h variaes como Jurema Mansa, JuremaBranca, Jurema de Caboclo, Jurema de Espinho, Jurema Preta e Jureminha.7 Nessesentido, Mota e Barros descrevem o uso da jurema entre os Cariri-Xoc de Alagoas,que afirmam ser os herdeiros legtimos da tradio da jurema. Entre tal grupo h aideia de que a funo da jurema a de proporcionar vises de sonhos de outromundo, mas sem deixar a pessoa fora de seu estado normal de conscincia, ou seja,doido (2006: 22).

    O que chamado de vinho da jurema, ou simplesmente jurema, uma infusopreparada de materiais variados. Assuno (2006: 202) descreve sua composio comgengibre, casca da Jurema Preta e cachaa curtida por trs dias e mel. Alguns autores

    7 As classificaes cientficas so em menor nmero: Jurema Preta Mimosa hostilis Benth., reclassificada

    posteriormente como Mimosa tenuiflora(willd.) Poir.; Jurema Mansa Mimosa verrucosa Benth.; JuremaBranca (usada entre os Cariri-Xoc) Vitex agnus-castus, uma Verbenaceae (Mota & Barros, 2006: 21).

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    se referem jurema como um entegeno ao invs de alucingeno, o que se refeririaao estado de transe quando inspirado ou possudo por uma divindade, normalmenteem um contexto ritual (Reesing, 2006: 66). Devido crescente fama e expanso douso da ayahuasca, por vezes a analogia entre ambas as plantas se faz inevitvel. Sobreessa comparao, o mesmo autor afirma que ambos possuem princpio ativosemelhante, mas, no caso da jurema, existem dvidas sobre a eficcia de seu compostoqumico e a maneira como este reage no organismo.

    Como afirma Grnewald, se efeitos alucingenos (e/ou excitantes) e curativosso registrados, parece haver uma carncia de material cientfico dedicado a umaexplicao ou comprovao dos mesmos (2006: 99). O autor relata que vriaspessoas que tomaram a jurema entre os Atikum no sentiram seus efeitosalucingenos. No entanto, autores como Assuno (2006: 20) veem a ingesto dabebida feita da jurema como o catalisador do clmax do ritual, ou seja, o transe. Naverdade, se este princpio qumico existe ou no, este no essencial para o contatocom o mundo dos encantados. Nesse sentido, importante saber que a jurema tempotencial alucingeno ou entegeno, mas focar somente esse aspecto deixar de ladoboa parte do que ela significa para os juremeiros.

    Dessa forma, ressalto que essencial se voltar ao aspecto ritual do uso da

    jurema para melhor compreender sua ao. Como nos ensina Pai Messias, a pessoatoma [a jurema] para que o mestre tenha a fora espiritual, para que o esprito venhae a pessoa esteja bem concentrada, a matria bem firmada para a incorporao.Nesse sentido, a bebida e suas pequenas doses ingeridas ritualmente so vistas comoum estimulante ou dinamizador do processo de sintonia com a espiritualidade. Assim,o simples ato de ingerir a bebida da jurema no suficiente para estabelecer contatocom os encantados. Este deve ser conjugado com outros aspectos rituais.

    Contudo, um fato essencial da bebida sua potencialidade de cura, em que aspessoas tomam pra fazer virem aqueles pensamento de sade, de muitas coisas boas.No s de sade, mas em todos os sentidos (Pai Messias). De maneira geral, essepotencial homeoptico da bebida da jurema pode ser comparado ao de outrasbebidas espirituais, como a gua fluidificada no kardecismo. Assim, a bebida da jurema tem poder de cura para os fiis e de fora espiritual para o mdium, criandouma ligao entre o aparelho carnal e o mundo espiritual.

    Alm do vinho da jurema, outra caracterstica que remete ao catimb e tambm tradio indgena o domnio de ervas e plantas para o processo teraputico. Como

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    enfatiza Salles (2010: 147), os mestres juremeiros so profundos conhecedores defolhas, ervas e razes medicinais, as quais so por eles cultivadas. interessante notarque os Cariri se veem como herdeiros legtimos da tradio da jurema e afirmamtambm que os nicos seres humanos, no mundo inteiro, capazes de compreender aviso do mundo indgena, e de compartilhar da mesma, so negros e ciganos (Mota eBarros, 2006: 38). De modo geral, os adeptos do culto jurema enfatizam que quempertence jurema tem sangue indgena ou algum ascendente indgena. Da mesmaforma, em alguns terreiros esto presentes entidades ciganas, o que corroboraria esintetizaria a trade mstica dos herdeiros da cincia da jurema, os negros, os indgenase os ciganos.

    Indgena, negra, europeia, brasileira... a jurema religiosidade que engloba emsi diversas tradies e a palavra pode ser vista como verdadeiramente polissmica.Ora pode estar se referindo a uma das vrias espcies da planta, dentre as quais amais comum no uso em Recife e Olinda a Jurema Preta, ora pode ser o nome dado bebida ou infuso, o vinho da jurema. Por outro lado, tambm comum o uso emfrases como venha conhecer a minha jurema, o que em geral significa um convitepara ver a mesa ou altar onde se localizam as vrias imagens e objetos associados aoculto, constituindo um sentido de espao ou local sagrado. Por ltimo, tambm

    usual se referir jurema de algum, no sentido tanto de sua mesa sagrada quanto deuma reunio ou festa. Enfim, planta, festa, bebida, local sagrado, panteo deentidades, a jurema s pode ser compreendida na relao entre seus vrios elementose significados.

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    1.2 BREVE COMENTRIO SOBRE O PROCESSO FLMICO E FOTOGRFICO

    Tomar conscincia visual de uma coisa uma forma de sentir-se visto por ela, uma modificao queocorre no corpo do sujeito por devoluo do objeto do olhar que lhe foi enviado

    (Artur Omar, 1998).

    Alm do presente texto, compe tambm esta pesquisa o registro audiovisual emfotografia e vdeo. A proposta de uso da fotografia e do filme durante a pesquisacertamente no nova e remete origens da antropologia.8 De modo geral, apresena das cmeras foi marcante em meu trabalho de campo e nesta parte pretendofazer uma reflexo sobre o papel que esse instrumento teve para a anlise. CarlosSautchuk (2007) chama a ateno para a produo de imagens como parteimportante do discurso etnogrfico, argumentando que a presena do equipamentode registro de imagens em campo estabelece relaes diferenciadas entre opesquisador e as pessoas. Assim, o instrumento era um produtor de imagens mastambm de questes (Sautchuk, 2007: 23), sejam elas de mtodo ou de vivncia emcampo. Em meu caso, fui requisitado em diferentes momentos a fotografar e filmaralguma atividade ou situao especfica que era considerada essencial pelos prprios juremeiros, momento no qual os prprios adeptos da religio me guiavam em seusaspectos essenciais.

    Rogrio Campos, pesquisador e amigo, apresenta uma boa reflexo sobre aexpresso da realidade atravs da fotografia, que melhor sintetizada nas seguintespalavras:

    Como em outras linguagens, a fotogrfica comunica uma experincia do mundo,mas no a totaliza. oriunda de uma vontade de se expressar sobre um assuntoselecionado por seu interlocutor, porm dentro das restries comunicativas de suasubjetividade, apreendida por sua vivncia (Campos, 2009: 47).

    Isso remete a outra perspectiva importante na utilizao de imagens como parteda pesquisa etnogrfica. A jurema, assim como outras religies de terreiro, tem comotrao central a incorporao de entidades, cada uma com caractersticas distintas.

    8 Dentre os primeiros antroplogos que enfatizaram a importncia da imagem no fazer etnogrfico

    podemos destacar Gregory Bateson, que props que se procurassem formas de registros de aspectosno lingusticos e corporais, tal como pode ser visto em seu Naven (2008) e no famoso Balinese Character .

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    Uma das maneiras que possibilita identificarmos qual entidade est presente a danae posturas tpicas que compem um esquema corporal prprio de cada ser espiritual.Portanto, descrever a dana de um mestre da jurema como Malunguinho, porexemplo, com seu caracterstico movimento horizontal de brao e postura e facesseveras, poderia ocupar pginas inteiras e no ter tanta acurcia quanto uma imagemou cena de vdeo podem proporcionar (ver pgina 61).

    Ao comentar sobre o filme como suporte narrativo etnogrfico, Stoller afirmaque tal meio pode recriar a fluidez da performance cultural de maneiras que soimpossveis prosa (1997: 27). Contudo, o uso dessa linguagem traz a necessidade detomar certos cuidados diferentes dos que se tem na descrio textual. Nesse sentido,em sua crtica ao Le matres fousde Jean Rouch, Stoller afirma que o mestre do filmeetnogrfico falha por gerar no pblico uma experincia muito forte, devido ao poderdas imagens impactantes, sem, contudo, prover muita informao e contextualizaoetnogrfica (1997: 53).

    Artur Omar, ao opor os conceitos de cinema e fotografia, prope um desapego sucesso cronolgica das invenes das tcnicas de ambas as artes e descreve asegunda como posterior primeira. Isso porque o cinema tem parentesco com omovimento do mundo, e de alguma forma o decalca. A fotografia tem uma outra

    originalidade. Um toque de violncia, que estrangula esse movimento (...) supe umaviso fracionada, uma construo (Omar, 1998: 37). Desse modo, sigo a concepode Omar de que congelar o movimento em imagens fotogrficas tem em si algo deestrangulador, de construdo, enfim, de violento ao dinamismo da realidade.

    Sobre esse aspecto ficcional do filme etnogrfico, mostra-se muito interessante ocomentrio do aclamado cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, que explicita em seudiscurso a relao entre o documentarista e o documentado, posicionamento que

    pode ser visto ao longo de sua produo flmica:

    ... nenhum filme filma a verdade. Se voc fizer um filme etnogrfico, a cmeraficar parada ali trs horas no quintal e depois quatro horas em uma mulher socandopilo, uma iluso que o cineasta est conhecendo o real. Ele t documentando umencontro entre o cineasta e o mundo,sempre (Coutinho, 2008: 110).

    Dessa forma, tanto no filme etnogrfico quanto na aventura antropolgica, essencial o reconhecimento de que estamos lidando com um encontro especfico entreo pesquisador e o outro, e no uma captura neutra da realidade. No caso dos meios

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    audiovisuais, o evento do encontro se faz atravs de instrumentos que tambm omodificam.

    Em um livro muito interessante que mistura investigao jornalstica cominspirao antropolgica, Fernando de Tacca busca reconstituir um episdiomarcante para a histria do candombl da Bahia, ocorrido na dcada de 1950. Emseu Imagens do Sagrado entreParis MatcheO Cruzeiro, o autor apresenta uma anlisede duas polmicas reportagens fotogrficas sobre a iniciao em terreiros de Salvador,uma publicada em francs e outra veiculada pela revista de maior circulao nacionalda poca. No caso, ambas apresentavam cunho extremamente sensacionalista, comttulos como As Noivas dos Deuses Sanguinrios (RevistaO Cruzeiro, 15 de setembro de1951).

    Na poca, o candombl, que vinha estabelecendo legitimidade e respeitoperante o pblico geral a passos lentos, viu-se nas primeiras pginas de jornais erevista de todo o pas, expondo de seu mago o mais sagrado e sublime. Ao refletirsobre a fora da imagem fotogrfica, Tacca diz:

    ao trazer ao olhar leigo o campo elegido da magia ou do contato primordial comas divindades, o campo marginal da imagem fotogrfica assume e superpe sualiminaridade ao campo religioso, uma nova magia estabelece-se, alterando ocontedo original do sagrado (Tacca, 2009: 161).

    De maneira geral, o estudo de Tacca um bom exemplo de como ao congelarem imagens momentos sublimes da religiosidade das pessoas, desloca-se todo umcontexto divino, histrico e cultural para outro plano, imagtico e carregado designificados prprios e passvel de inmeras apropriaes.

    Tomo certo espao para narrar um episdio que ilustra bem a produo deimagens em meu trabalho de campo. Na data de 19 de agosto, meu segundo dia emOlinda e efetivamente o primeiro relacionado minha vivncia de campo,acompanhei Alexandre LOmi Lod em seu trabalho de mapeamento estatstico dosterreiros. O projeto, ligado ao Governo Federal e UNESCO, visou realizar umlevantamento da quantidade de terreiros nas regies metropolitanas de quatrograndes cidades brasileiras, dentre as quais est a conurbao Olinda/Recife. Parteda pesquisa consistiu em um questionrio de perguntas fechadas que pretendiaconhecer aspectos alimentares e de limpeza dos terreiros, alm dos levantamentossocioeconmicos mais tradicionais.

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    O terreiro a ser visitado no dia era o de Pai Messias, que segundo LOmi referncia na tradio da jurema em Olinda e Recife e de quem ele j havia ouvidofalar muito bem. Fomos recebidos no prprio terreiro,Tenda de Umbanda Pai Francisco,onde aguardamos a chegada de Pai Messias. Logo que este chegou, fomos convidadosa entrar em uma sala separada, espcie de escritrio de Pai Messias onde tambm se jogam os bzios. LOmi explicou a natureza de sua pesquisa e eu me apresentei comopesquisador independente daquele projeto, mas profundamente interessado natradio religiosa da umbanda e da jurema. Pai Messias mostrou grande abertura edisposio, deixou-nos tambm fotograf-lo vontade e conduziu-nos pelos diferentesespaos de seu terreiro, inclusive ao quarto da jurema, acessvel a poucos,principalmente a quem no da casa.

    Ao final da entrevista e de uma rpida retrospectiva de vida que Pai Messias seprontificou a fazer, fomos convidados a comparecer ao centro no mesmo dia pelanoite, ocasio em que ocorreria uma gira da pomba-gira da ex-esposa de Pai Messias.Alexandre LOmi ficou muito empolgado com o convite, assim como eu, que logo emmeu primeiro dia teria a oportunidade de assistir a uma cerimnia importante. LOmifalou a Pai Messias sobre minha vontade de filmar e fotografar aspectos ligados jurema. Ele gostou da ideia e nos permitiu fazer as filmagens.

    Chegamos apenas cinco minutos atrasados, s oito e cinco, mas a cerimnia jhavia comeado, em uma notria pontualidade. Os primeiros toques eram dedicadosa Exu, o mensageiro que abre os trabalhos. Quando os portes se abriramnovamente, Pai Messias nos conduziu parte de dentro do terreiro, onde acontecemas giras. Achei a disposio do terreiro bem diferente do que eu havia visto pelamanh, agora separado em dois ambientes por uma grade. Do lado de dentro ficamos filhos de santo e baianas do terreiro, aqueles iniciados e que dominam o repertrio

    de toques e procedimentos da casa. Do lado de fora, os fiis e os visitantes ocasionais,a quem a cerimnia se limitava a ser assistida. E entre o dentro e o fora, oantroplogo. Fui levado para a parte interior e Pai Messias me instruiu a ficar em umcanto e filmar vontade.

    Assim fiz, filmando e fotografando as vrias etapas da cerimnia. Aps a girainicial para Exu, todos se abaixam em um grande crculo em volta de duas cuias como vinho da jurema. Em meio a cantos, a bebida servida e os presentes tomam um

    por vez uma pequena quantidade da jurema sagrada. Em seguida comea a gira daCigana a quem a festa era dedicada. A mdium havia entrado no quarto da jurema

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    para se preparar para receber a entidade, com roupas vermelhas e pretas e visual decigana. O momento que antecede a sada da entidade do quarto de jurema semprecarregado de expectativa e certa tenso. Osogs param de tocar seusils, as pessoascessam a cantoria e as palmas. Aos poucos, ouvimos os primeiros gritos e risadas dapomba-gira.

    A sada do quarto da jurema o incio do momento pice da festa. A cigana saicarregando flores e seu espumante, avanando lentamente pelo terreiro enquantorealiza sua dana. Passa pelo pblico e vai at a entrada do terreiro, onde se vira decostas e despeja seu espumante para fora. De volta ao centro do espao, a Ciganadana e roda sua imponente saia vermelha e preta. Todos assistem ao belo espetculo.Enquanto isso, o mesmo se passa com Messias, que, ao sentir a presena da entidade, auxiliado e entra no quarto da jurema. Ouvimos os gritos e risadas iniciais queindicam o processo da incorporao. Quando Seu Man da Pinga sai vestindo suaroupa tpica, canta eu vou salvar minha jurema! eu vou salvar meu jurem!, ao quetodos respondem, jurema! jurema!. Da em diante o mestre puxa os pontos de jurema enquanto a pomba-gira dana no centro do terreiro. Os dois encenamdilogos e trocas de olhares desafiadores que remetem a um embate espiritual. Tudoocorre como se o objetivo da festa fosse satisfazer e agradar pomba-gira Cigana.

    Aps as danas, Seu Man da Pinga d seus recados, incluindo mensagens sobreo funcionamento prtico do terreiro e entra no quarto da jurema. Aps algunsinstantes, Pai Messias sai do quarto da jurema j sem a incorporao da entidade. Emseguida, os filhos de santo do terreiro trazem trs grandes panelas e comeam adistribuir comida e espumantes, notadamente para os que esto na parte de dentro doterreiro. Pai Messias se dirige aos que esto de fora e lhes diz que aqueles quequiserem podem ir para no serem pegos pela chuva ou para no perderem o ltimo

    nibus, em uma mistura de jocosidade com um tom que reafirma as diferenas esuperioridades entre os presentes.

    Fui servido pelo prprio Pai Messias, que insistiu que eu ficasse at mais tardepara tomarmos cerveja. Ele reiterou que queria uma cpia doDVD das filmagens, sobo risco de colocar meu nome na boca de um sapo caso eu no a entregasse. Disse issoem tom de brincadeira e sorrindo, mas nunca se sabe...

    Uma cmera na mo muda tudo, por bem ou por mal. Nesse dia, tive a

    oportunidade de produzir um material importante e bonito e quando levei algumasdas fotos reveladas para o pai de santo ele e alguns filhos da casa ficaram muito

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    agradecidos. Acredito que isso gerou uma certa situao de troca e ddiva que crioumais abertura para minha insero no terreiro. Desse dia em diante, me tornei umaespcie de fotgrafo dos eventos, o que se repetiria em outras ocasies. Alguns diasmais tarde, fui advertido pelo amigo e coordenador da pesquisa de mapeamento,Rafael Barros, a tomar cuidado com as fotos e as filmagens que eu estava fazendo,pois podem gerar muitos problemas tanto a mim quanto ao povo de santo.

    Considerando o avano e complexificao das disputas e ataques entre osneopentecostais e os adeptos de religies de matriz africana, um vdeo com boasintenes que aborde um ritual bonito de adorao aos orixs e aos mestres da juremase transforma facilmente em uma demonstrao da presena do demnio na vida daspessoas. Almeida (2009) descreve essa situao como uma belicosa intolerncia,como o caso de religies neopentecostais como a IGREJAUNIVERSAL.9 Alm disso,para o povo de santo, o nome e a imagem tm contidos em si poder e perigo, uma vezque um feiticeiro que queira causar mal a um pai de terreiro inimigo pode utilizardesse material para atingi-lo.

    Por outro lado, a relao das pessoas com a imagem passou por um processo dedesmistificao e tomada de conscincia de suas implicaes, inclusive de seusaspectos legais. Desse modo, busquei coletar, sempre que possvel, a autorizao

    escrita da pessoa fotografada e filmada (ver Anexo I). Obviamente, em uma festa ouevento maior, essa autorizao se limitava liderana religiosa do terreiro. De modogeral, a permisso de produzir imagens demandava sempre sua contraparte, aretribuio posterior de fotos e cpias das filmagens. Alguns dos terreiros que filmeinunca haviam sido registrados. No ressalto aqui alguma forma de exclusivismo, massim que, mesmo com sua crescente popularizao, a cmera ainda um equipamentocaro.

    Um aspecto importante a ser notado que ao vermos o mundo atravs doenquadramento da cmera nossa percepo e interao com o espao se modificam,pois no processo de produo de imagens limitamos ou sintonizamos nosso olhar aoque a cmera possibilita. Ter conscincia disso essencial, pois com uma cmera namo deixamos de lado outros sentidos. Argumento que a experincia ritualstica de

    9 Para a Igreja Universal no existe meio-termo: o mundo est dividido entre pessoas libertas e no-

    libertas, sendo que nestas h a constante atuao do diabo. ele o causador de todos os males(Almeida, 2009: 81).

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    uma religiosidade como a jurema envolve no s a viso, mas tambm umengajamento corporal complexo, que se perde em parte quando nos restringimos aovisor da cmera fotogrfica ou de vdeo. Por outro lado, ao aparelharmos o olhar coma cmera trazemos tambm enfoques diferentes do que teramos com a atenodifusa. Esse processo apresenta, ento, um aspecto limitador e outro potencializadordo olhar.

    Por ltimo, vlido dizer que as fotografias de pessoas incorporando entidadestm certa dose de anonimato. Isso porque as tpicas mudanas corporais e nosemblante aliadas aos rpidos movimentos da dana contribuem para imagens queem certa medida fogem do controle do fotgrafo. Devido ao desfoque tpico develocidades mais baixas do obturador, algumas fotos sugerem imageticamente o que descrito pelos juremeiros como irradiar a espiritualidade dos mestres e caboclos,uma situao de troca de energias que remete a contextos englobantes entre entidadee mdium. Assim, ao sofrer influncia de mltiplas agncias, a imagem congelada noprocesso final formada no s pela cmera e o fotgrafo, mas tambm por outroselementos do espao, alguns menos objetivos, qui msticos.

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    Sequncia de imagens que demonstra a abertura de uma festade jurema na casa de Pai Messias. Na foto de cima vemos a jurema no centro do salo e as pessoas ouvindo os primeirosrecados de Messias. Estes normalmente envolvem questescotidianas e de organizao da casa, tais como os prximoseventos. Na segunda e terceira fotos vemos o consumo ritualda jurema antes da gira comear.

    Pgina 19

    Essas duas fotos mostram a sada e a dana da Pomba-GiraCigana a quem a festa do dia era dedicada. No fundo dasegunda fotos podemos ver detalhes do quarto da jurema, talcomo imagens e flores.

    Pgina 20

    Duas imagens feitas durante a dana da pomba-gira. Aprimeira retrata sua longa saia vermelha girando, movimentocaracterstico da dana. A segunda demonstra seus gestosexpressivos que lembram danas como o flamenco.

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    1.3 CORPO, PERCEPO E INCORPORAO

    We copy the world to comprehend it through our bodies(Stoller, 1997).

    Em Fenomenologia da Percepo, Maurice Merleau-Ponty desenvolve uma teoria quecritica o dualismo cartesiano ao qual as concepes do corpo normalmente estosujeitas, ideias estas que comumente o objetificam. Segundo o autor, a noo deobjeto envolve aquilo que pode distanciar-se de ns, sua presena s existindo emfuno de sua potencial ausncia. O corpo, por outro lado, tem uma existnciadiferente do objeto. ele o que nos acompanha constantemente, aquilo que existe

    conosco. Nesse sentido, ao invs de tratar o corpo como um algo separado da mente eda percepo, Merleau-Ponty afirma que este o veculo do ser no mundo,10 umacondio pr-objetiva (antes de todo pensamento determinante) de nossa existncia(Merleau-Ponty, 1999: 119; 122).11

    Nas palavras do autor, a unio entre a alma e o corpo no selada por umdecreto arbitrrio entre dois termos exteriores, um objeto e um sujeito; ela se realiza acada instante no movimento da existncia (1999: 131). Isso dizer que o corpo o

    meio pelo qual vivenciamos o mundo, o horizonte latente de nossa experincia, eno mais um elemento externo nossa mente. Assim, o autor no aceitaposicionamentos tericos extremos tais como o cartesianismo e o fisiologismo. Aoinvs disso, o indivduo deve ser pensado a partir da experincia e da percepo.Desse modo, Merleau-Ponty privilegia no lugar da noo de ser como umaconscincia a expressoser uma experincia, envolvendo o mundo objetivo, o prpriocorpo e os outros seres em um processo nico de vivncia (ibid.: 142).

    Do mesmo modo, Merleau-Ponty trata o corpo como um passado especficoque envolve esquemas corporais que so uma tomada de conscincia global deminha postura no mundo intersensorial (ibid .: 145). Portanto, a noo de esquema

    10 Em outra passagem, o autor afirma que meu corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo semprecisar passar por representaes, sem subordinar-se a uma funo simblica ou objetivante(Merleau-Ponty, 1999: 195).11 Segundo Lambek e Strathern, o pr-objetivo envolve a experincia antes que esta se torne totalmente

    apreciada pela cultura e ele tem importncia analtica pois est inserido na gnese da ao (Lambek eStrathern, 1998: 15).

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    corporal usada pelo autor se mostra bastante frtil, pois considera a percepo de umcorpo inserido no mundo, um panorama mental em estado dinmico e mutvel quese reconfigura de acordo com a situao. Em um exerccio do conceito de figura efundo daGestaltpsychologie, Merleau-Ponty toma o exemplo de um sequncia de aes edeslocamentos em seu escritrio que esto inseridos dentro do que ele chama deespacialidade de situao, um estado no qual a relao entre partes de seu corpo e objetoscomo a escrivaninha e o cachimbo criam uma forma de compreender e apreender asituao do corpo em face a suas tarefas:

    Em ltima anlise, se meu corpo pode ser uma forma e se pode haverdiante dele figuras privilegiadas sobre fundos indiferentes, enquanto ele est

    polarizado por suas tarefas, enquantoexiste em direo a elas, enquanto seencolhe sobre si para atingir sua meta, e o esquema corporal finalmenteuma maneira de exprimir que meu corpo est no mundo (1999: 146-7).

    Na fenomenologia de Merleau-Ponty o corpo no somente age, mas tambmo locus de uma forma de conhecimento.12 A relao entre espao corporal e espaoexterior forma o que o autor chama de esquema prtico da ao. No processo deaprendizado pelo corpo, integramos um ambiente especfico ao nosso espao fsico

    dando uma nova extenso nossa percepo. Se tomarmos um exemplo cotidianocomo o processo de aprender a dirigir, podemos facilmente perceber comogradativamente vrios elementos so adquiridos em nosso esquema corporal, como oespao fsico que ocupa um carro, o desenvolvimento de seu motor, o campo de visoproporcionado pelos retrovisores etc., criando assim um panorama mental que nospossibilita agir nessas condies determinadas.

    O corpo encerra, ento, a potncia de um certo mundo. Ou de certos mundos,pois o esquema corporal envolve no somente posies atuais, mas uma infinidade deposies possveis. Assim, a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty possveltentar diluir a separao conceitual entre corpo e ser e considerar o corpo comoconhecimento, posicionamento que se mostra bastante estimulante. Se possvel reteralgo da teoria de Merleau-Ponty que o corpo no deve cair em concepes que o

    12 O exemplo dos instrumentistas mostra melhor ainda como o hbito no reside nem no pensamentonem no corpo objetivo, mas no corpo como mediador de um mundo (op. cit .: 201).

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    tornam um dado, uma coisa em si, mas sim ser tratado como uma questo, umuniverso mltiplo de significaes a ser explorado.

    Desenvolvendo pontos semelhantes aos de Merleau-Ponty, o profcuo tericoGregory Bateson apresenta na coletnea de ensaiosSteps to an Ecology of Mind umateoria que perpassa vrias reas e busca uma nova abordagem da compreenso que ohomem tem de si mesmo. Em dilogo com disciplinas como a antropologia, abiologia, a psicanlise e o ambientalismo, o autor afirma em seu prefcio que

    The central Idea of this book is that we create the world that we perceive, notbecause there is no reality outside our heads (...) but because we select and editthe reality we see to conform to our beliefs about what sort of world we live in(Bateson, 1978: vii).

    Segundo o autor, comumente se fala de um mundo exterior e fsico como algoseparado e diferente do mundo mental interior, herana ideolgica de uma longatradio ocidental que aparta o sujeito do objeto. Contudo, Bateson afirma que omundo mental e seu processamento de informaes e sensaes no limitado pelapele (1978: 454), um postulado simples que pode trazer resultados poderosos pesquisa que v o sujeito inserido em um meio. De tal maneira, o objetivo terico

    manifesto de Bateson expandir o conceito de mente para fora do indivduo assimcomo a psicanlise de Freud o expandiu para dentro dele. Desse modo, a noo demente em Bateson transcende conceitos como o deself e o de indivduo sociolgico.Afinal, teorias que promovem uma separao e criam cismas entre corpo e mente, ointelecto e o sentimento e em ltima instncia a mente externa da interna so, naopinio do autor, monstruosas (1978: 464).

    Em How Societies Remember,Paul Connerton (1989) fala de dois processos queenvolvem o que ele chama de memria cultural, ainscrioe a incorporao.13 Enquantoo primeiro se refere ao armazenamento da cultura em textos, fotografias, udio evdeo, o segundo remete s posturas corporais, gestos, danas, modo de caminhar, sesentar etc. Segundo o autor, as prticas de inscrio sempre tiveram mais destaque,enquanto as prticas de incorporao entraram para uma certa histria negligenciada(1989: 100-1). Connerton chama a ateno para que atividades regulares como nadar,datilografar ou danar exigem uma cadeia bem sucedida de atos interconectados que

    13 Inscription e incorporation no original.

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    so aprendidos atravs da eliminao de alternativas erradas. Dessa forma,movimentos e atividades do corpo so acompanhados de sensaes que comumentes so trazidas nossa ateno quando algo no est correto (1989: 102).

    Essa preocupao de Connerton certamente no nova. Em um ensaio queinspirou vrias abordagens da problemtica do corpo, Marcel Mauss (2003) comentasobre o que ele chama de diferentestcnicas do corpo. Para o autor, tais tcnicas seriamas maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma formatradicional, sabem servir-se de seu corpo (2003: 401). Em seu texto Mauss perpassavrias atividades como a marcha, a corrida e a dana, alm de outras como o sono e orepouso, demonstrando curiosidade terica em relao s diferenas de estilo emnaes e geraes.

    interessante observar que Mauss na poca de seu ensaio sobre as tcnicas docorpo j apontava para a relao entre os objetos que utilizamos e nosso corpo, que moldado e age de acordo com estes: no que se refere a ns, o fato de andarmoscalados transforma a posio de nossos ps; sentimos isso bem ao andarmosdescalos (2003: 406). No entanto, o autor ressalta que considerar como tcnicosomente aquilo que envolve ferramentas e utenslios um estreitamento terico queexclui boa parte do que compe nosso aparato corporal:

    O corpo o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, maisexatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto tcnico, eao mesmo tempo meio tcnico, do homem, seu corpo (...) Antes das tcnicas deinstrumentos, h o conjunto das tcnicas do corpo (2003: 407).

    De modo geral, podemos afirmar que um dos principais mritos de Mauss foi acapacidade de demonstrar um estranhamento frente a essas tcnicas do corpo aoconsiderar que no existe uma maneira natural de fazer as coisas. Isso significoutransformar as tcnicas e o corpo de uma dimenso dada e existente em uma questo,um rico campo a ser compreendido e estudado.

    Em seu instiganteSensuous Scholarship, Paul Stoller prope ao pesquisador emcampo um maior empenho de captar a dimenso do sensvel da cultura corporificada.O termosensuous a que remete o autor envolve memrias de contedo existencial,tais como a dor, a raiva, a fome, o prazer etc. (1997: 47). Assim, Stoller pretendechamar a ateno para a fuso entre o sensvel e o inteligvel e como esta pode serrepresentada na anlise. Entretanto, o autor salienta que a abordagem majoritria

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    sobre o fenmeno religioso (assim como em outros campos da cultura) se valepredominantemente de metforas e descries por meios visuais. Como o prprioStoller diz,

    throughout the history of anthropology, ethnographers have been participantobservers who reflect on theirvisualexperiences and then writetexts that represent theOthers pattern of kinship, exchange, or religion (Stoller, 1997: 55).

    Desse modo, em boa parte da literatura, o corpo idealizado como um texto aser lido e reescrito na teoria. Enfatizando que a possesso espiritual um fenmenofundamentalmente corporificado, Stoller segue o pensamento de Connerton e Taussigao tratar do que ele chama dememria cultural , o passado do grupo sedimentado no

    corpo. Ao descrever como os feiticeirosSonhayda Nigria aprendem a magia atravsde uma dimenso corporificada, Stoller exemplifica seu argumento. Mais do que isso,em determinado momento da pesquisa, o corpo do prprio autor se torna umaprendizado sobre a feitiaria.14 Portanto, o autor busca trazer a questo do corpoque sente e capta, adicionando anlise o poder poltico que a incorporao podegerar. Assim, mais do que um puro recipiente da esfera social, o corpo locus dememria e conscincia.

    Nos ltimos anos, alguns autores tm apontado novas possibilidades de anliseda relao entre corporeidade e o transe ou xtase religioso. Um deles a ser destacado a antroploga Miriam Rabelo. Em dois de seus artigos (Rabelo, 2005; 2008) aautora tenta alinhar seus dados de pesquisa sobre religies urbanas com alguns pontostericos da tradio da fenomenologia de Merleau-Ponty. Segundo Rabelo, issorepresenta uma tentativa de se afastar de modelos explicativos e funcionalistas dosfenmenos religiosos em direo a abordagens contextualizadas que pretendem

    compreender a possesso em termos da experincia vivida.15

    Tal anlise tende a focara construo da possesso de forma contextual e as implicaes e relaes que a

    14 No caso, Stoller narra extensivamente como fracassos subsequentes em realizar uma determinadaetapa de campo e a contrao de uma variao de Malria mais resistente aos remdios conhecidoseram interpretados como ataques de feiticeiros. A narrativa de tais episdios uma tendncia naantropologia; reconhecer e compartilhar oser afetadode que fala Favret-Saada (2005).15 A autora ressalta que uma dificuldade metodolgica inerente a esse tipo de estudo o fato de que a

    possesso envolve em algum grau a perda da conscincia, tornando difcil coletar relatos e dados maissubjetivos daqueles que participam do processo (Rabelo, 2005: 12).

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    engendram, abordando a questo a partir de uma dimenso corporificada inserida emum espao.

    Em seu artigo de inspirao fenomenolgica declarada, Rabelo (2008) discutetrs pontos que defende como fundamentais compreenso da possesso, a saber, aagncia, o corpo e a temporalidade. Segundo a autora, quando considerado em umambiente especfico, o transe cria uma experincia de multiplicidade compartilhadaentre o mdium, a entidade e as pessoas que observam. Para pensar talmultiplicidade, necessrio romper com uma noo linear de tempo por uma queenfatize uma elaborao entre passado e futuro na dinmica da experincia. Nostermos da autora, se o passado prefigura ou motiva a ecloso do futuro, cabe aofuturo confirmar e fazer valer o passado em sua retomada (2008: 94). Nesse sentido,a experincia religiosa pretende fornecer uma explicao de vida que abarque atotalidade do indivduo e suas relaes.

    No contraste entre os modos de engajamento corporal de duas tradiesreligiosas analisadas, o candombl e o pentecostalismo, a autora d maior ateno sformas como os sujeitos esto inseridos nos locais e sua relao com a experinciasensvel das pessoas (Rabelo, 2005). Assim, qualidades sensveis como cores, sons,texturas e cheiros compem uma dinmica englobante e essencial da experincia

    religiosa que devem ser levados em conta na pesquisa.Nas narrativas sobre o transe as pessoas descrevem um apagamento da

    conscincia. Segato (2005: 98) considera que mais correto do que falar de uma faltade conscincia seria considerar uma perda da autoconscincia, o corpo tornando-seo veculo, sem mediaes, da prpria experincia. A tomada do corpo do fiel relatada com caractersticas como tontura, desconforto e agonia, alm dos tpicosformigamentos, que aumentam gradativamente medida que a entidade a entidade

    se apropria do mdium, transformando a percepo que ele tem do lugar. Talexperincia descrita como um movimento ritmado do corpo. Dessa forma, amsica e outros sons so essenciais ao processo:

    As experincias de ritmo indistinto caractersticas dos primeiros eventos depossesso transformam-se cada vez mais em movimentos ritmados especficos que,em sintonia com a msica, desenham (e marcam no cho) o lugar do orix(Rabelo, 2005: 16).

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    No caso de cultos afro-brasileiros como o candombl e a jurema, a construoda identidade de um fiel passa por um processo de multiplicao de eus16 queenvolve fenmenos subjetivos e esquemas corporais prprios a cada entidade. Atravsdo aprendizado dentro da religio, ocorre uma transformao sutil do eu,conectando a pessoa ao orix ou encantado. Nesse processo, o mdium aprendetambm a distinguir a entidade a quem ligado, j que medida que o praticante setorna mais experiente e estreita suas relaes com o mundo espiritual, aprende aadministrar sua distncia da entidade, tornando as possesses mais restritas aoambiente do terreiro, espao constitudo de elementos que constituem o sistema daincorporao do esprito.

    1.4 CANTANDO E DANANDO A JUREMA O CORPO COMO SUPORTE RITUALSTICO

    Uma das principais caractersticas da religiosidade de terreiros ter no canto e nasdanas sua articulao com o mundo mstico. Para Carvalho e Segato (1987: 39) otoque simboliza a identidade compartilhada entre as pessoas e as entidades espirituais. uma expresso musical da comunidade sobrenatural. Como afirma Segato, porsua natureza evocativa, a msica e a dana trazem os modelos ideais presena fsica,

    transformando-os em experincia e permitindo sua percepo (Segato, 2005: 51).Nesse sentido, o repertrio musical e a dana das entidades trazem s pessoas doterreiro a possibilidade de acesso ao conhecimento mstico e a comunicao com osencantados. Nesse processo, cada entidade espiritual possui um acervo de cantos edanas que so praticadas durante a incorporao. No acervo de pontos de jurema comum ouvir os termos jurema, jurem e jurem,que normalmente faz referncia tanto aopanteo da jurema quanto ao lugar do culto e aos reinos e cidades da jurema.

    Juntamente com as vestimentas e indumentrias, o conjunto de esquemascorporais fundamental para identificar que falange espiritual se faz presente. Apossesso ou transe em cada culto se d atravs de processos diferentes, cada umpossuindo suas caractersticas e sinais corporais. Podemos tomar como exemplo agrande diferena que h na fala e na postura das distintas entidades umbandistas.Ortiz (2005: 73) narra a humildade caracterstica dos pretos-velhos, espritos dosantigos escravos que faz com que o corpo do mdium possudo se retora como um

    16 PrandiapudRabelo (2008).

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    velho esmagado pelo peso dos anos. Alm da postura curva, a voz assume um tomrouco e suave que transmite uma sensao de familiaridade e afeio s pessoas queos consultam. O autor ressalta que frente vasta gama de entidades encontradas nocandombl, os esquemas corporais da umbanda so mais genricos pois dizemrespeito a poucas categorias de entidades. Nestes, fcil notar traos genricos, taiscomo a humildade do preto-velho, a inocncia da crianare etc.

    No obstante, o que separa a incorporao de entidades como pombas-girasciganas e paulinas, por exemplo, uma linha muito tnue, uma vez que os prpriosfrequentadores da casa podem no ter certeza da exata identidade do encantado ouencantada que realiza a dana. Isso se justifica se pensarmos que a incorporao nose restringe a uma simples repetio de um conjunto prescrito de movimentos, massim realizao das ideias e emoes que envolvem determinada entidade (Carvalhoe Segato, 1987: 49) e promovem atualizaes da religiosidade vivida. Bastide (2004:155) considera que o transe na jurema e no catimb um trunfo da improvisao eescapa regulamentao. Os movimentos corporais so sempre relaes. Nessesentido, o sentido dos gestos e a relao que esses mantm entre si se fazem maisessenciais que a prpria descrio dos mesmos.

    Por outro lado, um trao central na jurema que as entidades falam e cantam

    seus pontos, diferentemente dos orixs no candombl, que se expressam quase queunicamente por meio da dana e nos orculosif. Mais do que cantar, os encantadosda jurema do recados, tanto individuais quanto coletivos, alguns severos, outrosconfortantes. Nos relatos e comentrios sobre o que ocorre com outros mdiuns, aquesto da veracidade era sempre muito trazida tona, tanto da incorporao quantoda fala ou dos recados. Um filho de santo, ao expor a diferena entre mestres e orixs,afirma que orix no d consulta, enquanto entidades da jurema sim. Para ele, se

    um orix fala muito tempo, pode saber que no orix. mentira.Os mdiuns na jurema so comumente referidos como amatria em que baixa o

    esprito do mestre ou caboclo e normalmente se diz que quando uma pessoa nessacondio estmanifestada. Durante o processo que antecede essa situao, o termoradiadaou irradiar traz a noo de que algum est em processo de ceder seu corpo influncia da espiritualidade. Segundo Salles (2010: 101), aradiao o primeiromomento da incorporao e acontece tambm quando mais de uma pessoa

    incorporada pela mesma entidade, que estaria exercendo sua influncia naqueles

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    presentes. Essa , segundo o autor, uma das justificativas usadas para explicar como possvel que mais de uma pessoa receba a mesma entidade ou falange de entidades.

    Quando a entidade se aproxima o mdium normalmente fecha os olhos ecomea a expressar feies que podem passar por sofrimento, apresentandodescontrole de partes do corpo, principalmente das pernas. Esse processo pode serdemorado e interrompido vrias vezes at se concretizar, podendo tambm ser umatomada sbita e irremedivel. Em alguns terreiros de jurema e principalmente emfestas, ao apontar os primeiros traos da incorporao a pessoa auxiliada pelosdemais e pode ser levada ao quarto da jurema para se indumentar de acordo com afalange da entidade. Nesse processo, normalmente so removidos joias, brincos eoutros ornamentos. Quando a matria um homem possivelmente a camiseta e ossapatos tambm so retirados. Os incorporados entram, so auxiliados a se vestir esaem j trajando as vestimentas da entidade, danando e cantando seu ponto.

    importante notar que alm do prestgio inerente a algumas entidades, comoMalunguinho, por exemplo, a posio de autoridade que o mdium ocupa dentro doterreiro afeta na importncia que o esprito incorporado possui. Assim, mesmo quevrias pessoas incorporem mestres em uma cerimnia, possivelmente o encantado demaior destaque ser aquele que baixar no pai de terreiro, seguido daquele que baixa

    no pai pequeno e assim por diante. Quando a entidade da jurema incorpora, omdium, ento chamado de matria, v sua individualidade mesclada com a doencantado. As pessoas presentes se dirigem entidade, sempre com respeito e zelo.Similarmente, a entidade incorporada no somente uma entidade genrica, possuitambm certa conexo com a pessoa que a recebe. Dessa forma, podemos ouvirreferncia ao Seu Vira-Mundo de tal pessoa em especfico, por exemplo.

    Como diz Assuno (2006: 81), cada mestre possui fisionomia prpria, gestos,

    voz, manias, predilees. Cada um narra suas aventuras, conta seu nome e sua vida.Assim, cada mdium passa pelo processo de aprender a sintonizar com a entidadeatravs de seus cantos, da dana e de seus movimentos. De igual maneira, oaprendizado dosogs, instrumentistas que tocam os tambores, se d atravs da gradualincorporao de elementos rtmicos e performticos dos rituais. Comumente osogs so pessoas que frequentam o terreiro desde criana e desenvolvem sua habilidade aolongo dos anos. Imitam a performance deogs mais experientes e so corrigidos por esses

    e o pai de santo durante o processo (Salles, 2010: 146). Mais do que simplesmenteinstrumentistas, osogs por vezes apresentam comportamento que remete

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    incorporao ou irradiao espiritual, como pude ver em algumas ocasies. Quandoquestionei sobre isso, LOmi LOd, que tambm tocador deilus, me explicou queosogs esto tambm sobre a influncia da espiritualidade presente.

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    A sada de Seu Man da Pinga do quarto da jurema. Aentidade sai cantando seus pontos de jurema e danando,bebendo e fumando. (Terreiro de Pai Messias)

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    Em uma festa em dia diferente, Seu Man da Pinga saido quarto da jurema seguido por vrias pombas-giras. Aosair, ele canta seus pontos e se dirige aos presentes dandorecados. Na segunda foto vemos ele irradiando suaenergia em uma mdium que ainda no haviaincorporado sua entidade. Na terceira imagem vemos otom ameaador do mestre ao dar seu recado. (Terreiro dePai Messias)

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    A possesso religiosa dentro de um contexto.Seu Man da Pinga irradia sua energia em uma mulher,ela incorpora uma pomba-gira, auxiliada pelas demais esai rodando sua saia. (Terreiro de Pai Messias)

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    A chegada dos mestres da jurema. A primeira foto de Ricardo DOxum incorporando o mestre SeuMan Quebra-Pedra. Na segunda, vemos um mestre jogar a fumaa de seu charuto para o alto. A fotomaior embaixo mostra o momento em que os mestresincorporados saem do quarto da jurema realizandosua dana em direo rua. Nessa foto o desfoquesugere a ideia do que descrito como a irradiao daenergia dos encantados. (Terreiro de Pai Messias)

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    dois

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    CAPTULO2 A JUREMA EMRECIFE EOLINDA

    O Catimb, no Nordeste do Brasil, permanece inalterado na confiana popular, espalhando receitasvegetais, fazendo despachos, tecendo amor, provocando a morte

    (Cmara Cascudo, 1978).

    2.1 CANDOMBL, UMBANDA E A JUREMA

    Em seu Meleagro, Cmara Cascudo trata os praticantes do catimb como mestres,pois diz-los Catimbozeiros era agresso (1978: 16). Isso em boa parte pelaperseguio constante por parte das foras oficiais, to bem retratada nos casos

    policiais descritos pelo autor. Por outro lado, Cmara Cascudo afirma que o catimbsofria certo ostracismo por parte de outras religies minoritrias, como o prpriocandombl: Tambm um Pai-de-Terreiro que se preze no d a um mestre deCatimb o tratamento de colega, nem mesmo a simples tolerncia de quem exerceatividade paralela (1978: 21).

    Portanto, historicamente o catimb foi tratado e visto como uma espcie deprimo pobre das religies minoritrias, perseguido pelas foras pblicas e ignorado

    pelas outras expresses religiosas. J poca o autor afirma que o catimb eraofuscado pelo candombl e pela macumba, algo que pode em certa medida serreafirmado nos tempos de hoje. Em uma conferncia proferida em 1977, RobertoMotta afirma que aps trs anos de trabalho de campo em Recife e Olinda, concluiuque "apenas 15% dos terreiros de Pernambuco pertencem exclusivamente ouprincipalmente ao Xang tradicional; 60% dedicam-se sobretudo Jurema; 20%enquadram-se no chamado Xang urbanizado enquanto a Umbanda Branca noreuniria mais de cinco por cento das casas ou dos grupos de espiritismo popular(Motta, 1987: 104).

    Na descrio que fazem do Xang tal como o conheceram na dcada de 1970, Jos Jorge de Carvalho e Rita Segato afirmam que esse coexistia com cultos aosespritos que levavam o nome de macumba, jurema, tor e catimb. No entanto, osautores notam que nas casas onde se praticam cultos aos Orixs juntamente com essasoutras variaes o terreiro leva o nome predominante de Xang (Carvalho e Segato,1987: 12). Desse modo, frente importncia e presena histrica que ocupa, o cultoda Jurema tem pouca representatividade nos estudos acadmicos e no imaginrio de

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    pessoas no iniciadas ou de fora da religio. Isso foi definido por alguns juremeiroscomo certo "nagocentrismo" por parte de pessoas de fora do terreiro, tanto osrepresentantes de polticas pblicas quanto os estudiosos.17

    Ao descrever inmeras variaes do que era considerado candombl, EdisonCarneiro inclui em seu livroCandombls da Bahia (1986) os Caboclos e os encantadoscomo divindades variantes das africanas tradicionais. A concepo de candombl doautor bastante ampla, este o que incorpora, funde e resume as vrias religies do negroafricano e sobrevivncias religiosas dos indgenas brasileiros, com muita coisa do catolicismo do espiritismo (1986: 37). Para Carneiro, entidades como os encantados caboclos so osmesmos deuses nags e jejes transformados pela influncia dos negros de Angola e doCongo e especialmente pela influncia esprita (ibid .: 73). Nesse sentido, caboclos,boiadeiros e entidades como Martim-Pescador se misturam aos Orixs eeguns paraformar um vasto complexo espiritual que Carneiro rene sob a sigla do candombl. Oautor menciona tambm a existncia de uma divindade chamada Juremeiro, umaentidade paralela aos Orixs que mora na jurema (1986: 24)18 e que em algumassesses os encantados bebem uma escura combinao de cachaa com ervas domato, chamadamalafa ou jurema, esta ltima quando preparada com o fruto da jurema (1986: 86).

    Em um estudo bastante completo sobre a origem e a presena das entidades detipo caboclo na Bahia, Joclio Santos (1995) apresenta o papel histrico e simblicoque tais seres espirituais desempenham nos terreiros de candombl. A partir decomentrios das obras de autores como Edison Carneiro, Roger Bastide, NinaRodrigues, Pierre Verger e Ruth Landes, alm de seu prprio levantamentoetnogrfico, Santos demonstra que a presena dos caboclos em Salvador remonta atempos anteriores ao de sua associao com a umbanda, datando da segunda metade

    do sculo XIX (Santos, 1995: 10). Um indcio apontado pelo autor dessa longevidadedo culto ao Caboclo sua associao festa de dois de julho, comemorao daindependncia da Bahia e conhecida como Festa do Caboclo. Historicamente nessadata o povo de terreiro trajava ornamentos que remetem a uma noo do indgena.

    17Carvalho (1998) trata de cultos menos afrocntricos, considerados mais sincrticos, como a jurema, ocatimb, a pajelana, o candombl de caboclo etc.

    18 Carneiro menciona tambm uma divindade de tipo semelhante chamada Lko, que mora nagameleira branca e na cajazeira, no caso do Maranho (Carneiro, 1986: 24).

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    Ao descrever o que popularmente chamado de candombl de caboclo, o autorargumenta que a entidade caboclo, nesse contexto, no deve ser vista como um meroresultado do contato entre as culturas do ndio com as demais, mas sim como umarepresentao que v o ndio como o legtimo dono da terra. Nesse sentido, Santosenfatiza que o caboclo uma representao simblica do que seria a culturaindgena para esses terreiros (1995: 12). Por vezes, os membros de terreiros decandombl que aceitam mais abertamente a presena dos caboclos os definem comoeguns, nome dado aos espritos ancestrais no candombl e que refora o carterafricano da tradio. O prprio autor aponta que algumas caractersticas do transeligariam a entidade caboclo a uma tradio africana, no caso, Bantu.19

    Contudo, a maneira como o Caboclo visto em alguns terreiros notvel.Segundo Santos, tal entidade muitas vezes interpretada como um obstculo legitimidade africana do candombl. Santos chama essa tendncia de etnocentrismonag ou pureza nag, uma tentativa de excluir ou pelo menos mascarar a presenade entidades que no so africanas. Essa disputa simblica entre as diversas religiesde matriz africana na Bahia influenciou tambm a forma como os estudiososenxergavam a situao e fez com que o Caboclo fosse alijado da anlise doscandombls, e privilegiado nas anlises da umbanda, pois essa foi, desde os

    primrdios, mais permissiva a influncias externas (1995: 10). Desse modo, aliteratura sobre o assunto resultado de pesquisas que focaram majoritariamente aumbanda. Assim, nos termos de Santos,

    O problema do Caboclo no candombl no pode ser reduzido a puros aspectosideolgicos, ou a uma simples articulao cultura africana/cultura amerndiaconsiderada fora de um contexto simblico mais amplo. Nem fuso perfeita afro-amerndia, nem variante impura do modelo dominante africano (nag), nem

    fenmeno perifrico ou exgeno (transferncia da umbanda, refgio dehomossexuais, recuperao ideolgica da imagem do bom selvagem), a presena do

    19 Dentre as influncias destacadas por Santos esto o samba de roda que acontece nos finais das festas,que se remete s danas de roda de Angola, os movimentos que lembram a capoeira e a forma de falardo Caboclo, que apresenta alteraes fonticas que as lnguas bantus produzem no portugus. Outroselementos bantus sobressaem. A forma do caboclo fumar o charuto, com a ponta acesa dentro da boca,

    comum entre as mulheres do Zaire, lembrada por descendentes dos povos bantus em vrios estadosbrasileiros, como MG, SP e RJ (Santos, 1995: 89).

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    Caboclo no candombl pode ser analisada a partir de outras abordagens ehipteses (Santos, 1995: 26).

    interessante notar que Santos descreve em diferentes momentos de sua obra a

    associao do culto aos caboclos na Bahia com o uso ritual da jurema, bebida feitade seiva da rvore do mesmo nome, com mel de abelha e vinho branco, segundo suaprpria descrio (1995: 51). Em outra passagem, o autor descreve um tpicoassentamento de caboclo e os elementos que o compe, destacando a presena da jurema, provavelmente um pedao do tronco da rvore (ibid .: 65).

    Dentro da cosmologia da jurema o reino dos encantados dividido em cidadese aldeias. Cada autor que tratou do tema parece descrever a hierarquia das cidades e

    aldeias de uma maneira distinta. Cascudo fala de sete reinos com doze aldeias cada,totalizando trinta e seis mestres. Mas o autor afirma que tambm comum ouvir queo nmero de reinos na verdade cinco (Cascudo, 1978: 54). Apesar de que osprprios juremeiros citam a existncia de cidades, isso feito sem muita preocupaode apresentar um conhecimento de forma homognea ou sistemtica.

    Assim, uma caracterstica que se mostra marcante na jurema so as inmerasvariaes de entidade espirituais que sua cosmologia pode conter. Cada autor empocas distintas parece ter descrito diferentes tipos de espritos que compem opanteo da jurema. Para Assuno (2006), compem a jurema os caboclos, os ndios eos mestres. J Salles (2010) descreve caboclos, mestres, reis, exus e pombas-giras. Ouvialguns juremeiros mencionarem outros tipos de entidades, como paulinas, Salomo,ciganos, tronqueiros e outros. Desse modo, acredito que a quantidade de entidadesapresenta enorme resistncia a ser tipificada ou encerrada em algumas variaes, taiscomo as apresentadas acima. Nos discursos dos juremeiros com quem conversei, oraapareciam tronqueiros, ora os mesmos eram chamados de exus e em outrosmomentos se dizia que estes no so verdadeiramente da jurema e o mesmo ocorrecom as pombas-giras e paulinas. De modo geral, a presena dos senhores mestres seapresenta como trao unnime da jurema.

    Terreiros que praticam diferentes variaes religiosas so descritos comotraados (Salles, 2010: 101), termo que tambm usado em referncia a uma pessoa que tenhafeito a cabea no candombl, v a toques de umbanda e tenha seu assentamento de jurema, por exemplo. De modo geral, em Recife e Olinda a maioria das pessoas que

    estabelece relao com alguma dessas religies o faz com outras, so, portanto,

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    traadas. Como Salles enfatiza, a adeso jurema no implica em oposio ouexcluso de outras religiosidades (ibid .: 103). Isso se mostra notrio na fala de PaiMessias, por exemplo, Babalorix de candombl e mestre juremeiro umbandista,mas se declarou primeiramente catlico no questionrio do mapeamento de terreiros.

    Quando questionado sobre a relao entre a jurema e a umbanda, o pai desanto explica que umbanda o nome da religio, da seita. Agora jurema o que temdentro da umbanda, o que se faz dentro da umbanda. Nesse sentido, comum emalguns terreiros ou centros de Recife e Olinda variaes que veem a jurema comoessencial formao da umbanda, mas como parte interior dela, que tambmabrangeria outras religiosidades.

    Sobre a relao entre a jurema e a umbanda, dois trabalhos recentes merecemdestaque. O primeiro deles o livroO Reino dos Mestresde Luiz Assuno (2006), queversa sobre a jurema do serto nordestino.20 Nesse estudo, o autor considera aumbanda como um processo de reelaborao de elementos simblicos de vriasreligies que assumem novo significado (2006: 103). Mais do que uma atitudeunilateral, a umbanda tanto absorve os cultos regionais quanto assimilada pordiferentes religiosidades (ibid .: 107). Segundo sua pesquisa, a umbanda se expandepara o serto nordestino na dcada de 1960 e encontra l o terreno de uma forte

    religiosidade mstica. Assim, ao se mesclar com a prtica do catimb sertanejo aumbanda ofereceu uma explicao doutrinria e cosmolgica acompanhada de certapadronizao nos ritos e transes medinicos.

    Em um excelente estudo sobre a jurema e suas razes histricas na cidade deAlhandra e a fazenda do Acais, considerada pelos juremeiros como origem do culto,Sandro Guimares de Salles narra as vicissitudes que transformaram as mesas decatimb no atual culto da jurema, profundamente umbandizado. Segundo o autor, o

    culto aos mestres passou por um processo de reinterpretao mitolgica e ritual (2010:15) que se deu com a expanso das racionalizaes da umbanda no nordeste, comotambm foi sublinhado por Assuno. De maneira geral, Salles aborda o culto da jurema a partir do que considera a transitividade e fluidez de suas prticas (ibid .: 33),descrevendo de forma excelente a tradio do culto aos mestres em Alhandra.

    20 O autor destaca que em seu levantamento as casas que visitava necessariamente deveriam se declararcomo umbandistas e ter prticas do culto da jurema.

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    Localizada em uma zona rural da Paraba, a jurema em Alhandra apresentaconceitualizaes mais sistematizadas no que tange a relao das entidades e a mata.Na regio h abundncia de locais em que a jurema possa crescer, mas somentealguns podem se tornar sacralizados para os juremeiros. Salles explica que

    mesmo tendo sido plantada em um lugar apropriado, necessrio, ainda, que a jurema passe por um ritual que a sacralize, que a diferencie das demais rvores: preciso calc-la (...) existem diferentes formas de calar ou ensementar a jurema.Todas, no entanto, tm no fumo, o calo, seu elemento central (Salles, 2010: 110-1).

    Esclarecendo isso, Salles relata que um de seus interlocutores lhe explica que se

    uma rvore da jurema no passar por esse processo ela no passa de uma plantaqualquer. Mais do que isso, cada jurema sacralizada em si a morada de algummestre juremeiro falecido (2010: 63), locais onde as pessoas rezam, acendem velas,fazem rituais e deixam oferendas. Em contraste com a presena dos ps de jurema nasmatas, nas juremas de Recife comum encontrarmos troncos da planta emassentamentos e mesas de jurema.21 De fato, uma mesa de jurema em um terreirourbano parece no poder ser feita sem esses cortes de tronco de jurema, que podem

    tambm ser adquiridos no mercado no centro de Recife.Uma importante diferena entre candombl e jurema a ser destacada o fatode que a segunda mais acessvel, mais barata: para a maioria dos filhos de santo,composta de gente pobre, as obrigaes so bastante caras, considerando que, almdos animais a serem sacrificados, h os demais gastos com a festa (Salles, 2010: 138).Salles se refere aqui s festas de jurema, mas o mesmo pode ser dito para a iniciaono candombl. Por outro lado, uma ideia que apareceu com certa frequncia paraesclarecer a diferena do culto aos mestres e aos orixs que a jurema fala portugus,d recados mais diretos, enquanto os orixs no falam e suas msicas so em lnguasafricanas. Assim, a jurema uma religiosidade mais acessvel tanto em termosfinanceiros quanto em sua compreenso.

    De maneira similar, os espaos destinados a cada religio so diferenciadosdentro dos terreiros. Isso envolve tanto a constituio de quartos separados no

    21 Salles chama esses assentamentos detronqueira, que consiste em um tronco ou galho de jurema-

    preta, onde esto assentados os senhores mestres (Salles, 2010: 100), mas no ouvi esse termo emespecfico.

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    ambiente quando dias distintos para as festas. A seguir esboo o esquema do terreirode Pai Messias:

    Descrevendo o espao em sentido horrio, temos em 1 o quarto da jurema, ousimplesmente jurema, como comumente chamado. Esse espao todo ornamentadocom flores e arranjos e contm uma mesa ao centro com velas, inmeras imagens deentidades, bacias de loua ou metal, conhecidas como princesas, e taas, tambmchamadas de prncipes. O quarto da jurema tambm onde se guarda o vinho da jurema a ser consumido ritualmente e para onde as pessoas que esto prestes aincorporar um encantado so encaminhadas, afim de se prepararem e se vestirem deacordo. O nmero 2 representa um banheiro, que tem acesso pela cozinha, indicadaaqui pelo nmero 4. A cozinha possui fogo e itens industriais, como panelas grandes,e onde os animais sacrificados ritualmente so preparados para consumo.

    J o nmero 6 representa o quarto dos orixs, a parte africana do terreiro. nesse espao que Messias realiza os trabalhos de candombl e onde esto assentadosos santos das pessoas da casa. O espao de nmero 8 o local onde so jogados osbzios e tambm a sala pessoal de Messias. O nmero 5 o espao central do terreiro,onde ocorrem as giras, as festas e as reunies de mesa em certos dias, quando ele

    rearranjado para tal. Nas ocasies de festas e reunies, essa rea separada de 7 por

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    uma grade, lugar de onde a