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MESTRES PEDREIROS E ENGENHEIROS MILITARES: da fabrica à architectura
DE SOUZA ROCHA, RICARDO
Universidade Federal de Santa Maria. Coordenadoria Acadêmica-CS
Av. Pres. Vargas 1958, Cachoeira do Sul - RS [email protected]
RESUMO Partindo da análise de dois tratados de construção portugueses do século XVIII – “Advertências aos modernos que aprendem os ofícios de pedreiro e carpinteiro”, de Valério Martins de Oliveira (1748) e “Regras de desenho para delineação das plantas, perfis e perspectivas pertencentes a arquitetura militar e civil”, de José António Moreira (1793) - o trabalho procura rediscutir a classificação proposta pelo historiador da arquitetura Paulo Varela Gomes, em “A confissão de Cyrillo”, que alinha mestres pedreiros e engenheiros militares na mesma tradição - o paradigma da fabrica - em oposição a outra tradição iniciada no Renascimento - o paradigma da architectura. Em trabalho anterior, já havia sido observado que os estudos de geometria constituíam uma base comum para mestres pedreiros, engenheiros militares e “architectos”. Nesse sentido, a distinção proposta por Varela Gomes parecia se referir a incorporação explícita da questão das ordens de arquitetura aliada ao projeto, como antecipação completa e acabada da obra, tal como se impõe a partir do Renascimento. Entretanto, na mesma oportunidade foi observado que, pelo menos no tratado de José A. Moreira, havia todo um capítulo dedicado às ordens, parecendo indicar uma maior preocupação dos engenheiros para com os problemas da "architectura". Estudos posteriores, iluminados pelas pesquisas de Lon Shelby sobre o conhecimento de geometria dos mestres construtores medievais, reforçaram e aprimoraram as questões antes apontadas. Para o autor haveria a necessidade de distinguir a geometria construtiva dos mestres herdeiros da tradição maçom medieval da geometria prática descrita nos manuscritos dos estudiosos da matemática no mesmo período. A primeira é transmitida de mestre à discípulo tal como foi recebida e pressupõe a manipulação de figuras geométricas simples - e moldes; a segunda volta-se em grande medida para a agrimensura e a topografia.. Esta distinção é válida também para a situação analisada, na medida em que Valério de Oliveira discorre sobre o uso da geometria (simples) aplicada à construção, ao passo que José Moreira descreve a utilização de instrumentos como o sector (uma espécie de “compasso de proporção” atribuído, entre outros, a Galileu Galilei) que embora facilitasse a resolução de problemas, tal como uma calculadora, pressupunha a necessidade de lidar com cálculos matemáticos mais complexos. Em sendo assim, o objetivo do trabalho é desenvolver esta discussão de modo pormenorizado, de maneira a proporcionar um melhor entendimento do conhecimento disponível e utilizado pelos atores em ação no universo da construção luso-brasileira Setecentista.
Palavras-chave: tratados; construção; arquitetura luso-brasileira
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
MESTRES PEDREIROS E ENGENHEIROS MILITARES: da fabrica à architectura
Perfeitos arquitetos
cujas ferramentas são as mãos dos oficiais
Valério Martins de Oliveira
Introdução
A aquisição pelo autor de dois tratados de construção portugueses datados do século XVIII
– “Advertências aos modernos que aprendem os ofícios de pedreiro e carpinteiro”, do
mestre pedreiro Valério Martins de Oliveira (1748) e “Regras de desenho para delineação
das plantas, perfis e perspectivas pertencentes a arquitetura militar e civil”, do engenheiro
militar José António Moreira (1793) – paralelamente à leitura do livro “A confissão de Cyrillo”,
do historiador da arte e da arquitetura Paulo Varela Gomes estão na origem deste artigo.
Em trabalho anterior, que também tomava como ponto de partida o referido livro de Paulo
Varela Gomes, onde o pesquisador português alinha mestres pedreiros e engenheiros
militares em uma mesma tradição – o paradigma da fabrica – em oposição a outra tradição
iniciada no Renascimento – o paradigma da architectura, havia sido observado que os
estudos de geometria constituíam uma base comum para mestres pedreiros, engenheiros
militares e “architectos”, não apenas no século XVI, como aponta Varela Gomes, mas ainda
durante o Setecentos (ROCHA, 2013). Nesse sentido, a distinção proposta pelo autor
parecia se referir a incorporação explícita da questão das ordens de arquitetura aliada ao
projeto, como antecipação completa e acabada da obra, tal como se impõe a partir do
Renascimento. Entretanto, na mesma oportunidade foi observado que, pelo menos no
tratado de José Antonio Moreira, havia todo um capítulo dedicado às ordens, parecendo
indicar uma maior preocupação dos engenheiros militares para com os problemas da
"architectura".
Estudos posteriores, tomando como referência as pesquisas de Lon Shelby sobre o
conhecimento de geometria dos mestres construtores medievais e a utilização que faziam
de instrumentos – compassos, esquadros, etc. – em sua prática, reforçaram e aprimoraram
as questões antes apontadas.
4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro
Dois tratados, um mestre pedreiro e um engenheiro militar
“Advertências aos modernos que aprendem os ofícios de pedreiro e carpinteiro”, de Valério
Martins de Oliveira, mestre pedreiro da cidade de Lisboa, teve quatro edições em 1739,
1748, 1757 e 18261, a última conhecida. Já as “Regras de desenho para delineação das
plantas, perfis e perspectivas pertencentes a arquitetura militar e civil”, de José António
Moreira, engenheiro militar, possui apenas uma edição, em 1793. O “sucesso” das
Advertências, com suas quatro edições conhecidas, talvez merecesse um capítulo a parte.
Enquanto ele não é escrito, passemos as informações sobre os dois autores.
Segundo Souza Viterbo (1988, v. 1, pp. 379-80), Valério de Oliveira era “homem prático, de
letras gordas, cultivando a poesia de um modo bastante original”2; e, mais adiante, em
relação às Advertências: “embora de pouco valor literário, tem, todavia, certo merecimento
pelo lado técnico e por fazer parte de uma especialidade, em que não abundam os escritos
desta natureza”. Como nota ainda Viterbo, Valério de Oliveira era “filho de peixe”, seu pai
havia realizado o teto da Igreja da Misericórdia da Vila da Almada.
Sobre José Antonio Moreira, sabe-se pouco. Souza Viterbo (1992) menciona apenas que foi
o autor das Regras. No verbete sobre Pedro Celestino Soares, ficamos sabendo que este o
substituiu como lente de desenho na Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho de
Lisboa, em 1794, ano de sua morte – um ano, portanto, depois da publicação de seu
manual.
Para Varela Gomes (1992, p.33), o “livrinho” de Valério de Oliveira “constitui um elogio dos
pedreiros e da geometria [grifado no original] como arte e técnica fundamental que
assinalou a persistência da tradição numa época que lhe era já desfavorável”. Como citado
antes, a tradição a qual Gomes se refere, e que, em um primeiro momento alinharia mestres
pedreiros e engenheiros militares, diz respeito ao paradigma da fabrica, com origens
góticas, em oposição a outra tradição iniciada no Renascimento – o paradigma da
architectura ou a tradição clássica.
O Padre Inácio da Piedade Vasconcellos (1676-1747), com seus “Artefatos simétricos e
geométricos, advertidos e descobertos pela industriosa perfeição das artes escultórica,
arquitetônica e da pintura” (1733), e Cyrillo Volkmar Machado (1748-1823), seriam
representantes da segunda tradição ou paradigma. Isto, dentro da cultura arquitetônica
1 O autor possui a segunda edição original e um fac-símile da terceira.
2 Como nos singelos versos que abrem as Advertências: “Senhor S. José/ este livro é/ do princípio ao fim/ todo
vosso, assim/ como certifica/ quem vo-lo dedica:/ este é no hemisfério/ o que não contradiz/ coisa alguma, que
queira/ o vosso Valério/ o vosso Martins/ o vosso Oliveira”.
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portuguesa do Setecentos, que pregava a primazia do projeto, da idéia como algo
fundamental e anterior à materialização da obra.
A argumentação de Varela Gomes articula-se ao redor de um texto de Cyrillo Volkmar
Machado, datado de 1793 – mesmo ano das Regras de José Moreira – em que este
reclama de mestres pedreiros e engenheiros militares. E, no mesmo ano de 1793, “o Padre
Inácio da Piedade vem dizer que a arquitetura são as Cinco Ordens” (GOMES, 1992, p.47
– grifado no original). Já foi apontada a incorporação das ordens nas Regras de José
Antonio Moreira, provavelmente em função da incorporação do ensino de arquitetura civil na
Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho – pelo menos é o que acontece, em
1792, no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, a seguir tentar-se-á examinar o conhecimento de geometria de mestres
pedreiros e engenheiros militares portugueses do Século XVIII, a partir da tradição em que
são incluídos e tomando como referência para a discussão os estudos de Lon Shelby (1965,
1971, 1972) sobre os conhecimentos de geometria dos mestres construtores medievais e o
uso que faziam de instrumentos em sua prática. Este exame tem o intuito de averiguar as
diferenças entre o conhecimento de profissionais arrolados em um mesmo “paradigma”.
O conhecimento de geometria dos mestres construtores medievais
For mediaeval masons
Euclid had virtually become an eponymous hero of the craft
Lon Shelby
Em um artigo publicado na revista Speculum, The geometrical knowledge of Mediaeval
Master Masons, Lon Shelby (1972) procura examinar quais seriam as fontes e quais seriam
exatamente os conhecimentos de geometria dos mestres construtores medievais. Para
tanto, o autor realiza uma espécie de rastreamento das possíveis fontes, como a publicação
do tratado Geometria Geberti, atribuída a Gebert de Reims (c. 940-1003), na qual aparece
uma distinção entre as duas principais abordagens da geometria na Alta Idade Média: um
tratamento mais matemático, ao redor dos comentários dos Elementos de Euclides; e o que
ficou conhecido como geometria prática. Para Shelby, scholars do início da Idade Média que
quisessem um conhecimento mais detalhado sobre a geometria prática, do aquele que era
fornecido pelos excertos dos Elementos de Euclides, poderiam recorrer aos tratados escritos
pelos agrimensores romanos (1972, p. 400).
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Nesse sentido, já no Século XII, com Hugo de São Vitor, apareceria uma distinção formal
entre geometria “teórica” e geometria “prática”, em seu tratado intitulado Pratica Geometriae.
Toda a disciplina da geometria é tanto teórica, isto é, especulativa,
quanto prática, ou seja, ativa. O teórico é o que investiga espaços e
distâncias de dimensões racionais somente pela razão especulativa;
o prático é o que é realizado através de certos instrumentos, e que
faz julgamentos reunindo uma coisa junto a outra proporcionalmente
(apud SHELBY, 1972, p. 401).
Tendo distinguido geometria teórica e geometria prática, Hugo de São Vitor propõe uma
divisão por assuntos desta última. Esta divisão era agrupada em três partes: planimetria,
altimetria e cosmimetria. A planimetria estaria voltada para a medição das superfícies
planas; a altimetria trataria de medidas de “alturas e profundidades”; e a cosmimetria voltar-
se-ia ao “cosmos”, isto é, a mensuração tanto da terra quanto do céu. Segundo Shelby, esta
divisão seria a partir de então mantida nos tratados medievais sobre geometria prática, que,
como é possível notar, voltavam-se, em grande medida, para a agrimensura, a topografia e
a metrologia. É o caso da Pratica Geometriae de Leonardo Pisano (c. 1220), com sua
subdivisão em oito partes concernentes aos problemas de: geometria, aritmética,
trigonometria, agrimensura e metrologia, etc. A Pratica Geometriae de Leonardo Pisano
fornecia, ainda, não apenas receitas ou rotinas que deveriam ser seguidas para a obtenção
de determinados resultados, como oferecia também as demonstrações matemáticas que
justificavam tais procedimentos – e aqui uma distinção fundamental que aproxima este tipo
de literatura da tradição dos Elementos.
Escritos em latim, tratados como os de Hugo de São Vitor e Leonardo Pisano não eram,
todavia, muito acessíveis aos oficiais mecânicos ou mestres construtores medievais. De
qualquer forma, a literatura em língua vulgar parecia segui-los. Caso da anônima Pratike de
Geometrie:
Devemos começar um trabalho de geometria prática dividindo-o em
três partes. Na primeira parte, devemos ensinar como fazer a
medição das superfícies planas; na segunda, como achar a medida
das alturas e profundidades; na terceira, como encontrar os detalhes
da geometria e astronomia apropriados as duas partes precedentes
(apud SHELBY, 1972, p. 405).
Em resumo, voltando-se quase completamente para a agrimensura, a topografia e a
metrologia, a geometria prática não deveria ser a fonte para os conhecimentos de geometria
dos mestres maçons medievais. Portanto,
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como a geometria dos mestres construtores era uma parte essencial
dos seus conhecimentos técnicos, mestres pedreiros medievais
normalmente teriam adquirido seu conhecimento geométrico da
mesma forma que adquiriram o resto de seus conhecimentos e
habilidades na construção - dominando as tradições do seu ofício
(SHELBY, 1972, p. 398).
Transmitida de mestre a discípulo tal como foi recebida e pressupondo a manipulação de
figuras geométricas simples (e moldes), a geometria dos mestres construtores medievais
não se encontraria codificada em tratados como os referentes à geometria prática – pelo
menos não completamente. Tanto Lon Shelby – quanto Robert Branner, outro nome
importante nos estudos sobre a arquitetura medieval – focalizaram seus esforços, assim, na
análise dos desenhos de Villard de Honnecourt3:
os problemas de estereotomia foram resolvidos pelos mestres
medievais principalmente através da manipulação física de formas
geométricas por meio dos instrumentos e ferramentas disponíveis em
sua prática. Estes procedimentos, como receitas ou rotinas, eram
seguidos passo a passo, e praticamente não havia cálculos
matemáticos envolvidos (SHELBY, 1972, p. 409).
Apesar de considerarem Euclides um herói, os mestres maçons medievais afastavam-se da
tradição dos Elementos, tal como discutida acima, tendo em vista a falta de necessidade de
provar as “verdades matemáticas” que propunham, substituindo-as por rotinas que deveriam
ser seguidas tal como descritas, passo a passo, com a utilização de instrumentos como o
esquadro e o compasso. Por isso, Shelby irá propor distinguir a geometria que utilizavam da
geometria prática, definindo-a como uma geometria construtiva.
O conhecimento de geometria dos mestres construtores e engenheiros
militares portugueses do Setecentos
O architecto deve ser bom geômetra
como [disse] Euclides
Valério Martins de Oliveira
3 Shelby irá utilizar também trabalhos deixados por mestres construtores alemães dos séculos XV e XVI, como a
Geometria Deutsch de Matthias Roriczer (SHELBY, 1972).
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Valério Martins de Oliveira cita, entre outros, Platão, Aristóteles (as especulações do filósofo
sobre o círculo aparecem nas primeiras páginas das Advertências), Arquimedes, Vitrúvio
(ver o comentário sobre o “homem vitruviano” também nas primeiras páginas), Serlio, etc .
Seu manual inicia com as noções fundamentais da geometria – ponto, linha, superfície,
plano, ângulo reto, mistilíneo, etc. – a maneira dos Elementos de Euclides: “ponto é o que
não tem partes. Entende-se, segundo a nossa consideração, o ponto com respeito à
quantidade é como a unidade com respeito ao número” (p. 1); e com a identificação dos
instrumentos necessários para “usá-las”: “o instrumento, com que se descreve uma reta, é a
régua” (p. 2); “o instrumento, com que se descreve um ângulo reto, é um esquadro” (p. 7); “o
instrumento, com que se descreve [um círculo], é um compasso, o mais simples e
engenhoso de todos, quanto se tem inventado” (p. 10).
Figura 1: Advertências: Compasso simples.
Assim, suas
Advertências tiradas de algumas regras não menos úteis, que
pertencem ao nosso ofício de pedreiro e carpinteiro, tão breves e
fáceis, como nelas se verá; para prova do que se “alegam” autores, e
dos Elementos de Euclides, compostos por aquele grande herói
Padre Mestre Manoel de Campos, flor da Companhia de Jesus, no
seu segundo livro (OLIVEIRA, 1757).
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Como se vê, Euclides continuava como um herói do ofício, e seus Elementos como
referência primordial. Nesse caso, filtrada pelos “Elementos de geometria plana e sólida
segundo a ordem de Euclides... para uso da Real Aula da Esfera do Colégio de Santo Antão
da Companhia de Jesus de Lisboa Ocidental” (1735), escrito pelo citado Padre jesuíta
Mestre Manoel de Campos, professor de Matemática na famosa Aula da Esfera do Colégio
dos Jesuítas de Santo Antão em Lisboa (CATÁLOGO, 1969, p. 66). A Aula da Esfera,
juntamente com a Aula do Paço da Ribeira, constituíam, em meados do Século XVI, as duas
instituições de ensino regular de matemática (e arquitetura militar) em Portugal.
Figura 2: frontispício de “Elementos de geometria plana e sólida segundo a ordem de Euclides”.
Após uma longa digressão, onde aparecem as citações sobre os comentários a respeito do
círculo de Aristóteles e sobre o “homem vitruviano”, começam um conjunto de regras
“proporcionais” ou “aritméticas” que deveriam ser seguidas na prática dos ofícios de pedreiro
e carpinteiro, tal e como são descritas.
Ora deixemos está prática ao mesmo trabalho, e falemos em outras
questões do mesmo consoante, pertencentes ao nosso Ofício de
Pedreiro.
Em o grosso de paredes, que se há de dar a uma Igreja, ou casas,
quando se quiserem executar, esta regra se tira do vão da dita Igreja,
ou casas; porque se intento fazer uma Igreja, ou casa, para cobrir de
madeira, lhe darei de grosso às paredes a sexta parte de seu vão; e
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se for fechada de abóbada singela, lhe darei a quinta parte, e sendo
a referida casa, ou Igreja, fechada de pedraria, lhe hei de dar de
grosso a terça parte do seu vão (OLIVEIRA, 1757, p. 24-5)
É curioso como ainda hoje se utilizam raciocínios semelhantes para se ter a ideia do
dimensionamento de uma estrutura, como no caso de se admitir que uma viga de concreto
terá dez por cento do vão que irá vencer. Outra regra curiosa das Advertências: “todas as
obras redondas se hão de medir pela regra de três, e um sétimo das três, como se verá no
diâmetro: tem sete palmos, diremos, três vezes são sete vinte e um, [mais] o sétimo são
vinte e dois” (p. 34). Uma aproximação para se calcular o comprimento da circunferência.
Após a apresentação destas regras, são então introduzidos os comentários de geometria
construtiva: “este arco se chama de escarção: para se fazer a sua volta, se toma a largura
de onde se há de fazer e com ela faz-se um cruzamento onde mostra a letra A; e deste
ponto se buscam todos os leitos das fiadas, que se querem fazer” (p. 36).
Figura 3: Advertências: arco de escarção.
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Instrumentos do desenho
Antonio Moreira também inicia seu tratado ao modo dos Elementos de Euclides, justificando
sua elaboração em função da necessidade “de reduzir a regras elementares os princípios do
desenho”. Assinala também a tensão entre teoria e prática ao dizer que “é verdade que [o
desenho] se adquire mais com o uso, destreza e habilidade do que por meio de longas e
fastidiosas descrições; mas também se não deve negar que os preceitos e regras para
riscar qualquer planta explicados somente de viva voz, esquecem com facilidade” – o que
aponta para uma “prática”, uma “tradição” próxima ao paradigma da fabrica identificado por
Paulo Varela Gomes: aprende-se melhor praticando do que estudando a teoria. A seguir cita
como referência Manoel de Azevedo Fortes, cujo tratado – O Engenheiro Português – serve
de modelo, inclusive para algumas imagens usadas nas Regras.
Para Shelby, “até que a história de suas ferramentas seja adequadamente descrita, as
realizações dos mestres pedreiros medievais não poderão ser apropriadamente avaliadas
desde um ponto de vista tecnológico” (1965, p. 236). Citando um autor anônimo do Século
XV:
Vocês não ficariam maravilhados se eu dissesse que todas as
ciências vivem apenas pela ciência da geometria... Pois não há
nenhum artifício nem artesanato forjado pela mão do homem que
não é operado pela geometria. Porque, se alguém trabalha com as
mãos, trabalha com alguma forma [de] ferramenta (apud SHELBY,
1972, p. 396).
Assim, é significativo que Antonio Moreira, alertando para o fato de que “seria impossível
desenhar qualquer planta, sem que houvesse exato conhecimento dos instrumentos
próprios com que se opera”, procure por isso fornecer “a construção e prática dos principais
instrumentos necessários”. Em relação ao desenho os instrumentos necessários seriam: a
régua simples, a régua para traçar paralelas, o compasso simples (com peças para desenho
a lápis, a tinta, ou com uma “roseta” para marcação4), o compasso de parafuso (para manter
determinada medida sem perdê-la), o compasso de três pernas (para copiar figuras), o
compasso de redução simples, petipé (espécie de escalímetro com medidas em braças,
toezas, etc) e, finalmente, o compasso de proporção (ao qual também denomina
“pantometra”): “dá-se a este instrumento de matemática o nome de compasso de proporção,
porque ele serve para conhecer as proporções entre as grandezas de uma mesma espécie,
4 Tal como descrito no Traité de la construction et des principaux usages des instrumens de mathematique de
Nicholas Bion (1709, 1716).
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como linhas com linhas, superfícies com superfícies, sólidos com sólidos, etc.”. O compasso
de proporção ou sector foi desenvolvido, entre outros, por Galileu Galilei. Até a descoberta
do mecanismo de antikythera, era considerado um dos instrumentos matemáticos, enquanto
ferramenta de cálculo, mais próximos das atuais calculadoras.
Figura 4: Detalhe da primeira das trinta lâminas das Regras: 4 e 5 compassos simples; 6 a 8 peças
para desenho a lápis, tinta e marcação; 10 compasso de parafuso e 11 compasso de três pernas.
Figura 5: Compasso simples com peças para desenho que pertenceu ao Sargento Itelvino José dos
Santos. Como os compassos das Regras, ao contrário dos compassos atuais, ele não possui o pino
superior. Foto do autor. Acervo do Museu Municipal de Cachoeira do Sul.
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Depois de apresentar os instrumentos citados acima, Moreira passa a tratar dos “problemas”
que eles permitem resolver: como dividir uma linha dada em qualquer número de partes
iguais (problema 1, p. 19), etc. Em um dado momento, comenta sobre o compasso de
redução de charneira móvel (p. 58), ao que parece, um instrumento que somaria as
vantagens de um compasso simples ou de parafuso com algumas características do
compasso de proporção. O compasso de redução de charneira móvel serviria, assim, “para
dividir uma reta dada ou a circunferência do círculo em partes iguais e inscrever-lhe
qualquer polígono regular”. Na seqüência, aparecem ainda o “compasso para copiar
plantas” (pantógrafo, p. 65); o esquadro (p. 71) e o transferidor (p. 72), para então
começarem a ser descritos os “instrumentos sobre o terreno” (p. 73).
Figura 6: detalhe da segunda lâmina das Regras com mais instrumentos de desenho: 16 um dos
lados do compasso de proporção; 19 compasso de redução de charneira móvel e 23 pantógrafo.
Nas Advertências, Oliveira havia citado a régua simples, a régua para traçar paralelas
(“quatro réguas móveis conexas entre si com quatro torninhos redondos”), o compasso
simples e o esquadro. O conjunto de compassos arrolado por Moreira, muito mais completo,
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pressupõe um número de tarefas, atividades, habilidades e possibilidades significativamente
maior, portanto. O “compasso para copiar plantas” ou pantógrafo é algo relativamente
singelo que ainda se usa, para copiar desenhos, mesmo nos dias de hoje; o mesmo
acontecendo com o compasso simples, lembrando que o compasso de parafuso é apenas
uma variação deste, já presente, por exemplo, no Caderno de Villard de Honnecourt (1991,
lâmina 39); já o compasso de redução simples era conhecido desde a Antiguidade Clássica,
de acordo com Shelby (1965, p. 238) e o mesmo autor cita uma correspondência entre dois
eruditos do Século XI, onde um afirma possuir algo como um compasso de três pernas5; o
compasso de redução de charneira móvel aparece em desenhos de Leonardo da Vinci e o
compasso de proporção surge no século XVII. Independentemente da data de sua invenção,
muitos constituem instrumentos de desenho ou instrumentos matemáticos, às vezes ambos
como no caso do compasso de redução de charneira móvel, relativamente sofisticados. Por
um lado, são facilitadores das várias tarefas dos engenheiros militares, por outro,
indicadores de desenhos de alguma sofisticação ou, pelo menos, de grande precisão.
Considerações provisórias
No final das Regras de Antonio Moreira o engenheiro e professor escreve: “ficaria
incompleto este Tratado se nele não descrevêssemos as regras elementares da Architectura
Civil” (p. 216). Por regras elementares da Architectura Civil, Moreira referia-se às Ordens: “a
descrição regular e simétrica que devem ter as partes que compõem qualquer edifício na
sua fachada ou prospecto, de cuja combinação resulta um todo agradável e proporcionado,
se chama, pelos Architectos, Ordem” (p. 216-7). Sua descrição das ordens e as imagens
que a acompanha são breves, pois o autor remete o leitor a tratadísitca “especializada”.
Não se pretende afirmar que mestres pedreiros como Valério Martins de Oliveira e
engenheiros militares Antonio José Moreira tenham quebrado o paradigma da fabrica e
alcançado o da Architectura – tudo indica, inclusive, que, provavelmente, esta não era nem
mesmo sua intenção: cada um preocupava-se, claramente, com seu ofício. Não obstante, é
admirável ler um manual de um mestre pedreiro que faz versos, cita filósofos para justificar
seus argumentos, e parece conhecer, ao menos em parte, a arquitetura erudita codificada
em tratados como os de Serlio. Da mesma forma, como ficou registrado, Antonio Moreira
preocupava-se em “codificar” o conhecimento para os novos engenheiros, percebendo os
limites de uma pedagogia(?) centrada quase exclusivamente na prática.
5 Carta de Ragimbold de Cologna para Radolf de Liége: “I have a instrument with three feet for measuring
geometrical figures, wether they be long and straight, square and bold, or thick and solid” (p. 239).
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Finalmente, os estudos de Lon Shelby sobre o conhecimento de geometria dos mestres
construtores medievais e sua utilização de ferramentas ou instrumentos permitem abrir um
leque de novas pesquisas sobre como tais conhecimentos/ instrumentos, dentro da
arquitetura setecentista ou outra, forneciam a base para a prática destes profissionais.
Algumas de suas distinções parecem válidas também para a situação analisada, na medida
em que, por exemplo, é possível dizer que Valério de Oliveira discorria sobre o uso da
geometria (simples) aplicada à construção, sugerindo rotinas e aproximações, caso do
cálculo do comprimento da circunferência antes discutido – por outro lado, seus comentários
sobre instrumentos parecem se referir apenas ao desenho, não às ferramentas do canteiro,
o que pode sugerir que o próprio desenho era considerado um instrumento ou ferramenta do
ofício.
Ao passo que José Moreira descreve a utilização de instrumentos como o sector, compasso
de proporção ou pantometra, atribuído, como dito, a Galileu, que embora facilitasse a
resolução de problemas, tal como uma calculadora, pressupunha a necessidade de lidar
com cálculos matemáticos mais complexos. O mesmo valendo para o compasso de redução
de charneira móvel em relação ao desenho, instrumento sofisticado como era o “elipsógrafo”
de Leonardo da Vinci.
A Engenharia Militar do Setecentos utilizava, portanto, ferramentas e instrumentos que
ultrapassavam em muito o compasso simples e o “grande compasso” dos mestres
construtores medievais – que, não obstante, com toda a limitação de seus conhecimentos
de geometria e mecânica (estática) e a simplicidade de suas ferramentas, conceberam
prodígios de architectura e engenharia.
Figura 6: as Ordens nas Regras de Antonio Moreira.
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Referências Bibliográficas
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mathematique. Paris: 1709, 1716.
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