metafísica no pensamento de Lima Vaz

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  • A METAFSICA ENQUANTO INSTNCIA FONTAL DA FILOSOFIA NO PENSAMENTO DE LIMA VAZ Manfredo Arajo de Oliveira 1 A filosofia, para Lima Vaz, tem uma relao muito ntima com o tempo e como todo pensamento autntico, ela progressiva e criadora.2 Assim, como o ser humano, ela vive em primeiro lugar da fora da tradio, da conscincia de uma continuidade viva com o passado.3 Mas por outro lado, o ser humano sempre inserido em 1 Doutor em Filosofia pela Ludwig Maximilians Universitt Mnchen, Alemanha. Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Cear, Fortaleza, CE, Brasil. 2 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Itinerrio da Ontologia Clssica, in: Escritos de Filosofia VI, Ontologia e Histria, So Paulo: Loyola, 2001, p.57.Mac Dowell J. A., Mtodo Dialtico, Histria e Transcendncia no Sistema Filosfico de Henrique de Lima Vaz, in: CARDOSO D. (Org.), Pensadores do Sculo XX, So Paulo: Loyola/Paulus, 2012, p. 222: Assim o progresso da filosofia apresenta-se como uma permanente reinveno, onde se conjugam continuidade e descontinuidade, no repetio mecnica do j dito, mas iniciativa de sua inteira reproposio sob a forma de espontneacriao. 3 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Morte e Vida da Filosofia, in: Sntese, v. 18, n. 55 (1991) 684-685: Mas a filosofia assume como tarefa pensar tematicamente seu prprio passado unir anmnesis e nesis e, nessa rememorao pensante, reinventar os problemas que lhe deram origem e,assim, cumprir o destino que, ainda segundo Hegel, est inscrito em sua prpria essncia: captar o tempo no conceito o tempo que foi e o tempo que flui no agora do filosofar. Filosofia Interdisciplinaridade 627 mundos histricos diferenciados e isto traz para a reflexo filosfica a convergncia de duas dimenses irrenunciveis: o filsofo situado numa epocalidade especfica tem como primeiro desafio adivinhar na face novadas aporias concretas que solicitam o esprito, sob a conjuno de dado cu histrico, os traos antigos desses problemas que bem se chamam eternos e cuja permanncia como o signo que revela a constncia de nossa natureza e a unidade de nosso destino. 4 Trata-se para Lima Vaz das grandes questes sobre o ser, o sentido e o destino. Eternidade e Epocalidade convidam a filosofia a uma eterna reinveno de si mesma nabusca de recriar o mundo das coisas e o mundo dos homens luz de um logos que julga, demonstra, ordena e unifica.5 Da a tarefa que se pe aofilsofo de hoje de se perguntar pelo projeto filosfico da modernidade. 1) A situao dramtica espiritual e intelectual gerada pela Metafsica da Subjetividade da Modernidade. Em que consiste fundamentalmente o projeto terico da modernidade? Para Lima Vaz numa inverso radical do modelo conceitual que marcou o pensamento clssico. A ideia da inverso pressupe a compreenso que tem Lima Vaz da estrutura tericabsica do pensamento do Ocidente, que para ele j se manifesta em seu ncleo basilar no propsito terico de Parmnides de pensar a unidade profunda da realidade em seu todo e, portanto, de compreender a gnese e a explicao do mltiplo a partir dessa unidade originria o que o conduz a pensar o ser e a 4 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Itinerrio da Ontologia Clssica, op. cit., p. 58. 5 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, in: Escritos de Filosofia III, Filosofia e Cultura, So Paulo: Loyola, 1997, p. 16. 628 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco

  • Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) pens-lo como absoluto. Dessa forma ele foi o iniciador da ontologia enquanto cincia do Ser e dos seres, cincia dointeligvel, cincia das razes do ser 6 que encontrou na histria do Ocidente vrias verses e que a partir de Plato se articulou de forma dialtica. O filsofo aparece nesse contexto, como se vai explicitar no desenvolvi- mento posterior dessa cincia, como aquele que tem competncia para curar a patologia de um mltiplo desordenado e dividido em que os seres humanos se perdem e para articular o modelo de inteligibilidade do mundo humano a partir da ordem do mltiplo que procede da unidade ltima. Ela emerge num mundo humano j sempre marcado por razes de viver, de crer, de pensar, de agir e de suas aporias. Nesse contexto, a filosofia procura provocar a converso desse universo verdade profunda de suas razes e ao Princpio que as unifica eexplica. 7 o que justifica sua presena ao mesmo tempo necessria e paradoxal no meio do mundo precisamente por ter como tarefa o confronto com as questes ltimas sobre o ser, a verdade e o bem. Com isso ela se faz a instncia crtica e sistemtica privilegiada das diversas formas de cultura8 e a articulao de uma ordem de razes que se radica em ltima instncia na posio de um Absoluto como Princpio rigorosamente pensado9 e capaz de sustentar uma nova viso do todo. 6Cf. LIMA VAZ H. C. de, Esquecimento e Memria do Ser: Sobre o Futuro da Metafsica, in: Escritos de Filosofia VII, Razes da Modernidade, op. cit., p. 275. 7 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 21. 8 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 46. 9 Cf. LIMAVAZ H. C. de, Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 78. Filosofia Interdisciplinaridade 629 Dessa forma, a filosofia j se revela desde o incio como pensamento do uno na multiplicidade dos discursos e dos seus objetos,10 portanto, como saber do todo e de seu princpio e, assim, saber de si mesma, de seu lugar e de sua significao no seio do todo. isso que a faz capaz de reconduzir o disperso do mundo dos homens sua unidade e ao seu ser verdadeiro11 o que faz com que sua estrutura fundamental seja uma dialtica do uno e do mltiplo. A grande questo de fundo de uma teoria do ser em seu todo,a oposio do uno e do mltiplo, foi traduzida na oposio bsica do Absoluto e do relativo. Nesse contexto um trao comum entre as concepes desenvolvi- das no seio do pensamento grego e a tradio crist a intuio da transcendncia do ser enquanto inteligvel primeiro separado da limitao essencial dos entes finitos e relativos. Assim, o que caracteriza este quadro terico que aqui o Esse absoluto possui centralidade, isto , anterioridade objetiva (p. 100) enquanto causa do ser sobre sua afirmao pela subjetividade finita. Isso implica dizer que a subjetividade no constitui a razo ltima de possibilidade dessa intuio o que liberta o pensamento clssico de uma contradio autodestrutiva na medida em que assim o Esse absoluto no relativizado na imanncia do sujeito12 o que implicaria a negao de sua absolutidade. Ao contrrio,neste quadro terico a inteligncia 10 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 12. 11 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva

  • Histrica, op. cit., p. 15. 12 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendncia: Experincia Histrica e Interpretao Filosfico- teolgica, in: Sntese v. 19n. 59 (1992) 446: Descobrir o Absoluto na imanncia do sujeito: esse o enjeu profundo e decisivo do problema da transcendncia tal como se apresentou, de Plato a Hegel, a toda a tradio filosfica. 630 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) finita ela mesma compreendida no horizonte da inteligibilidade absolutamente universal do Esse13: o Esse a fonte ltima de inteligibilidade da inteligncia finita e no essa a fonte de inteligibilidade do Esse. Nesta postura, consequentemente, a estrutura constitutiva dos entes finitos s pode ser compreendida enquanto estrutura participada no Esse absoluto, o Esse subsistente que, enquanto tal, revela sua transcendncia radical seja em relao ao esse dos seres relativos seja em relao sua expresso na inteligncia finita. Filosoficamente a modernidade significa, ento, para Lima Vaz a passagem decisiva do regime gnosiolgico do ser ao regime gnosiolgico da representao14, portanto, passagem para outro regime no tico-especulativo fundado na primazia da representao sobre o ser o que vai fazer refluir para o sujeito o princpio ltimo da fundamentao do ser 15 de tal maneira que o sujeito se torna o centro organizador do mundo simblico.16 Parafraseando a famosa explicao que Heidegger d a Jean Beaufret na Carta sobre 13 Por isso, para Lima Vaz, como ensina Toms de Aquino, um ser que assume o infinito nus metafsico de enunciar o existir dos seres s pode existir autenticamente ao assumir sua abertura constitutiva ao Absoluto: no consentimento s formas absolutas da Verdade e do Bem e no reconhecimento da ordenao de todo o seu ser ao Existir transcendente absoluto. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 342. 14 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica na Modernidade, in: Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 351. 15 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica na Modernidade, op.cit., p. 350-351. 16 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendncia e Religio, in: Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op.cit., p. 237: A ontologia da Metafsica clssica... sofre, portanto, a partir do projeto cartesiano, uma inverso de sentido na sua estrutura fundamental, cedendo lugar, finalmente, a uma ontoantropologia. Filosofia Interdisciplinaridade 631 o Humanismo17 a respeito da diferena de seu pensamento em relao ao pensamento de Sartre podemos dizer, para exprimir a intuio bsica de Lima Vaz sobre o pensamento moderno,que o que importa na modernidade no o Esse, mas a subjetividade finita 18 agora considerada o primum ontologicum da inteligibilidade do ser.19 Numa palavra, o pensamento filosfico moderno leva a metafsica clssica do ser metafsica da subjetividade. Aqui o problema fundamental no mais o Primeiro Ser (primum ens), mas o Primeiro Conhecido (primum cognitum), ou seja, o problema no mais a respeito do Transcendente, mas das condies transcendentais de possibilidade doconhecimento de qualquer objeto. Isso vai implicar uma reestruturao profunda do universo simblico da civilizao ocidental uma vez que vai transformar pelas razes nossa concepo de realidade e nossa relao com ela. Para Lima Vaz essa reviravolta antropocntrica do pensamento evoluiu na medida em que a iniciativa instituidora do mundo humano

  • atribuda ao sujeito transcendental tende a transferir-se para os grandes 17 Cf. HEIDEGGER M. Platons Lehre von der Wahrheit. Mit einem Brief berden Humanismus, Bern: Francke Verlag, 1954, p. 79-80: ... wenn er Existentialismus ist und den Satz vertritt, den Sartre ausspricht: prcisment nous sommes sur un plan o Il y a seulement des hommes (L`Existentialisme est un humanisme p. 36). Statt dessen wre, von S.u.Z. her gedacht, zu sagen: prcisment nous sommes sur un plan o Il y a principalement l`tre. 18 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendncia e Religio, in: Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 238-239: No paradigma da metafsica moderna, a descentrao se d com relao ao lugar do homem no mundo... Mas, a essa descentrao tpica corresponde uma recentrao no plano metafsico, segundo a qual o homem, como sujeito, passa a ocupar o centro do universo inteligvel. 19Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica na Modernidade, op. cit., p. 365. 632 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) sistemas do saber, da prxis e da tcnica que se estruturam segundo o modelo da subjetividade, como subjetividades universais, no seio das quais o indivduo pensa, age e produz.20 Um bom exemplo disso para ele justamente o sistema sempre mais abrangente da tecnocincia, pois ainverso significa epistemologicamente a integrao completa do todo da realidade, da natureza, da vida, do ser humano e seu agir no quadro terico da razo cientfica: O verdadeiro corao terico da modernidade o projeto de extrema audcia, cuja execuo vem transformando radicalmente a vida humana nos ltimos quatro sculos, que tem em vistaa plena reinscrio, terica e operacionalmente, nos cdigos da razo cientfica, do universo, da vida, do ser humano e das suas condutas.21 Nessa perspectiva o pensamento moderno para Lima Vaz se caracteriza em seu ncleo ltimo como um imanentismo radical, como o projeto de construo da cidade do homem. 22 Aqui as grandes questes metafsicas,23 as questes bsicas da vida humana enquanto tal, vo encontrar uma soluo na racionalidade sistmica 20 Cf. LIMA VAZ H. C. de, O Problema da Criao, op. cit., p. 144. 21 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, in: Escritos de Filosofia VII, Razes da Modernidade,So Paulo: Loyola, 2002, p. 98-99. 22 Cf. SAMPAIO R. G., Metafsica e Modernidade mtodo estrutura, temas e sistema em Henrique Cludio de Lima Vaz, So Paulo: Loyola, 2006, p. 208 e ss. 23 Cf. SAMPAIO R. G., Metafsica e Modernidade, op. cit., p. 190: Essa estrutura analgica da Razo foi rompida. E com isso os modelos de racionalidade da fsica e da matemtica, da dialtica, da lgicolingustica, da fenomenologia e da hermenutica comearam a reivindicar o posto antes ocupado pela antigarazo metafsica, sem, contudo, alcanar uma forma de unificao do campo da razo. Filosofia Interdisciplinaridade 633 como estrutura simblica bsica da nossa civilizao,24 a forma determinante do estilo de civilizao 25 que nos marca. Da porque a modernidade do ponto de vista da racionalidade em seu cerne razo cientfica, ou seja, razo que se configura como uma racionalidade voltada ao operar do ser humano nomundo direcionado produo eficaz de objetos o que significa dizer que as estruturas da techne substituem progressivamente a ordem natural do kosmos.26 Seu grande objetivo alcanar perfeita homologia na

  • ordem do conhecer e do fazer entre o ser humano e o mundo por ele transformado.27 Modernidade significa, portanto, primazia daquela forma de razo que Lima Vaz chama de operacional (a razo instrumental dos frankfurtianos) e constitui a mediao privilegiada da atividade poitica do sujeito no mundo seja na construo do prprio saber, seja na construo dos objetos. Para ele a primazia da razo operacional uma consequncia necessria do postulado epistemolgico bsico de que a razo conhece o real na representao da ideia objetiva28 que constitui o objeto prprio do ato de conhecimento. Nisso se revela com clareza o especfico da razo moderna: ela se faz a instituidora originria do universo das razes.29 Isso constitui o ponto de partida da metafsica da subjetividade, o quadro terico 24 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 78. 25 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Presena de Toms de Aquino no horizonte filosfico do sculo XXI, in: Escritos de Filosofia VII, Razes da Modernidade, op. cit, p. 253. 26 Cf. LIMAVAZ H. C. de, Fisionomia do sculo XIII, in: Escritos de Filosofia I Problemas de Fronteira, So Paulo: Loyola, 1986, p. 38. 27 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Presena de Toms de Aquino no horizonte filosfico do sculo XXI, op. cit, p. 253. 28 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 102. 29 Ibid 634 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) hegemnico na modernidade. Aparentemente isso significa um abandono radical do grande paradigma que marcou toda a histria do Ocidente at a modernidade. Paradoxal- mente, contudo, e esta a tese fundamental de Lima Vaz a respeito da Modernidade, ele significa uma inverso radical do pensamento clssico na medida em que a construo de um absoluto no interior do prprio devir histrico30 de tal forma que o horizonte da imanncia torna-se, para o homem moderno, o nico horizonte englobante de toda a realidade.31 Para ele essa inverso ocorre na transposio, para a imanncia histrica, da mesma estrutura dialtica que atribumos relao entre o Esse absoluto e os esse relativos,32 ou seja, trata-se aqui de um imenso processo de imanentizao do teolgico no histrico. 33 Da seu problema especulativo central: pensar um absoluto que se exterioriza no movimento mesmo que o constitui.34 Assim, o horizonte metafsico de fundo reaparece em forma problemtica na questo bsica do pensamento moderno: possvel reconduzir a existncia desde o simples ato de existir razo humana entendida com a fonte ltima de toda inteligibilidade? 35 Pode a razo humana reivindicar os atributos do Esse subsistente? Essas perguntas revelam para Lima Vaz a estrutura terica que especifica o pensamento moderno enquanto inverso terica radical da metafsica clssica, pois essa em sua 30 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 99. 31 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, in: Razes da Modernidade, op. cit., p. 189. 32 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, in: Escritos de Filosofia VII, Razes da Modernidade, op. cit. p. 168. 33 Cf. LIMA VAZ H. C. de, O Problema da Criao, in: Escritos de Filosofia VII. Razes da Modernidade, So Paulo: Loyola, 2001, p. 143. 34 Ibid. 35 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 100. Filosofia Interdisciplinaridade 635 estrutura terica constitutiva aponta para a transcendncia absoluta do Esse

  • enquanto que a metafsica moderna da subjetividade aponta para a imanncia da representao,36 ou seja, constitui o sujeito transcendental como instncia ltima inteligibilidade. Essa primazia dada razo operacional trouxe consequncias profundas autocompreenso do ser humano, pois dar primazia razo operacional significa dar primazia relao de objetividade na forma da compreenso explicativa da Natureza, na efetivao do ser-em-relao do homem moderno. 37 Comoa objetividade mundana nosso primeiro encontro com o ser e a primeira experincia de nossa finitude, uma mudana profunda da objetividade mundana provoca uma mudana no menos profunda do estatuto natural ou ntico do nosso ser-no-mundo e, portanto, de sua inteligibilidade ontolgica.38 A interveno transformadora na natureza dando-lhe a forma da cultura e ampliando o domnio da cultura sobre a natureza se torna a grande meta histrica da civilizao moderna inaugurando uma forma de existncia histrica inteiramente nova. Ora, intervindo na natureza, o ser humano intervm em sua prpria condio natural, porque ele um ser de natureza. O que se manifesta hoje para Lima Vaz que a forma de existir sob as normas da tecnocincia deixou de ser um programa de civilizao e se transformou na forma definitivade nossa civilizao que perpassa todos os campos da atividade humana no mundo e que por isso a forma envolvente e determinante de nossa cultura.39 36 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 102. 37 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Antropologia Filosfica II, So Paulo: Loyola, 1992, p. 55. 38 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Presena de Toms de Aquino no horizonte filosfico do sculo XXI, op. cit, p. 254. 39 Ibid. 255. 636 DraitonGonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) A modernidade se caracteriza, ento, por um oscilar permanente entre a objetividade produzida pela tcnica visibilizada no mundo dos objetos da produo industrial e a objetividade dada ao ser humano na sua experincia original e fundante experincia metafsica por definio datranscendncia do Ser sobre a finitude dos seres.40 Tratase, portanto, deuma substituio dos seres que nos so dados pela natureza pelos objetosproduzidos tecnicamente pelo ser humano, o que justifica a caracterizao de nossa civilizao como uma civilizao eminentemente cientficotecnolgica. Para Lima Vaz essa fascinao pelo objeto tcnico a razo que explica o esquecimento do Ser e o descrdito da metafsica que marcam o universo cultural de nossa civilizao hoje deixando o espao livre para a hegemonia do saber puramente operacional.41 Precisamente o monoplio do uso legtimo da razo pela cincia psgalileiana e pela tcnica dela derivada constitui para Lima Vaz a maior ameaa da civilizao ocidental.42 As consequncias ticas dessapostura se revelam acima de tudo em seus efeitos profundos no nosso universo simblico: ... desaparecida aos olhos da razo a medida axiolgica da realidade em cujo horizonte se eleva a ideia do ser como bem-em-si, no resta ao agir humano seno a errncia no espao anmicodo niilismo,43 um episdio fatal que est avanando nos estratos profundos da histria espiritual do Ocidente. Os princpios do agir humanoso 40 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Presena de Toms de Aquino no horizonte filosfico do sculo XXI, op. cit, p. 266. 41 Cf. RIBEIRO E. V.,

  • Reconhecimento tico e virtudes, So Paulo: Loyola, 2012, p. 76-77. 42 Cf.LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica na Modernidade, op. cit., p. 366. 43 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Esquecimento e Memria do Ser, op. cit., p. 283. Filosofia Interdisciplinaridade 637 agora buscados nos mitos do prazer, do consumo e da liberdade absoluta, pois no mundo do mito em que se situa agora a metafsica expulsa da esfera da razo. Da a pergunta de fundo de nossa civilizao ps-metafsica: Ir a objetividade tcnica oferecer-se, finalmente, como nico alimento carncia metafsica do nosso esprito?44 A incapacidade da tecnocincia para unificar e satisfazer exigncias e tendncias constitutivas de uma existncia humana autntica j se mostra para Lima Vaz no problema terico de fundo da modernidade que a irredutibilidade da existncia razo operacional que pode representar, explicar, transformar, modificar, organizar, projetar. Mas no pode criar.45 Da o carter paradoxal da razo moderna que se faz capaz de envolver todas as dimenses da vida humana numa imensa ao de racionalizao, que tem um enorme impacto sobre os critrios profundos de avaliao da prpria existncia, mas que se revela incapaz de dar conta do simples ato de existir o que a torna fonte de uma onda incontrolvel de irracionalismo que perpassa as sociedades modernas e se expressa em suas crenas, em suas propostas filosficas, em suas ideologias e em sua conduo poltica. Em seu fazer-se essa atividade abstrai metodologicamente de qualquer questo metafsica, mas no pode deixar de pressupor, pois do contrrio ela seria impossvel, o existir do sujeito racional no mundo, o seu existir como dadoa si mesmo, ou seja, ela no pode existir sem pressupor o que Lima Vaz denomina a situao ntica primria que no objeto de considerao pela razo cientfica em que se d primazia ao funcional e ao operacional. Eliminada a fonte ltima de inteligibilidade, o 44 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Presena de Toms de Aquino no horizonte filosfico do sculo XXI, op. cit,p. 267. 45 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 102- 103. 638 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) Esse absoluto e transcendente, seu substituto, a razo finita, vai necessariamente ter que conviver com a sem razo do simples existir que irredutvel a seus procedimentos operacionais, pois quem poder reivindicar, na imanncia, o estatuto ontolgico do Absoluto, por definiotranscendente, e inalcanvel na sua realidade em si pela razo discursiva que trabalha com conceitos finitos e relativos?46 precisamente isso que ele denomina a dramtica situao intelectual e espiritual do homem moderno que se explicita teoricamente nas filosofias do absurdo e praticamente em condutas niilistas. A grande alternativa a essa situao implicaria um retorno metafsica do esse47 afirmado como primeiro na ordem da inteligibilidade e do ser como primum logicum e primum ontologicum.48 Assim, a retomada da memria metafsica 49 a tarefa maior da filosofia em nossos dias. 46 Cf. LIMA VAZH. C. de, Essncia e Existncia, op. cit, p. 168. 47 Cf. LEOPOLDO F., Notas para um estudo dos procedimentos metdicos em Lima Vaz: singularidadee transcendncia na apreenso das ideias filosficas, in: Sntese v. 30 n. 97 (2003) p.150: ... somente nos apossamos verdadeiramente da herana quando tornamos as questes herdadas do passado nossas

  • questes, isto , quando traduzimos aquilo que o passado interrogou em termos de nossas prprias perplexidades. 48 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 103. 49 Cf. DRAWIN C. R., Henrique Vaz e a opo metafsica, in: Sntese v. 29 n. 94 (2002) p.162: Foi essa fina sensibilidade em relao s expectativas e aos impasses do mundo contemporneo, sempre atenta s aporias que se entreteciam no corao da modernidade, que alimentou a opo vaziana e a transformou numa concepo axial em torno da qual foi construda uma obra de excepcional vigor e invejvel coerncia interna. Filosofia Interdisciplinaridade 639 2) O Desafio de uma inverso radical da postura moderna: a retomada da Metafsica do Esse e a estrutura inteligvel do ser finito. A considerao doncleo terico da filosofia moderna nos conduz ao enorme desafio de recuperar teoricamente em situaes muito diferentes o que constituiu o cerne do pensamento metafsico ocidental. Isso significa dizer que no se trata aqui de uma simples repetio, mas de um repensar a estrutura bsica da metafsica no contexto de uma situao gerada pela prpria filosofia moderna que constitui em relao ao pensamento clssico um paradigma alternativo no que diz respeito questo fundamental da filosofia, ou seja, a inteligibilidade ltima do existir.50 O ponto de partida a morte da metafsica no mundo simblico de nossa cultura, ou como prefere dizer Lima Vaz, seu retraimento epocal 51 que para ele o resultado de um longo itinerrio intelectual de desconstruo que teve seu incio no nominalismo tardomedieval e que teve como resultado a deposio do lugar eminente que a metafsica ocupava na tradio da cultura ocidental o que configura nossa poca como psmetafsica. Depois de sua inaugurao com o pensamento de Parmnides, a metafsica produziu para Lima Vaz trs modelos fundamentais: o modelo platnico- aristotlico, o 50 Cf. HERRERO F.J, A recriao da tradio na antropologia filosfica de Pe. Vaz, in: Sntese v.30 n.96 (2003) p.10: Mas ele no se deixa intimidar com o interdito moderno e contemporneo da metafsica. Para ele a metafsica, ou melhor dizendo, a ontologia, uma dimenso irrenuncivel da filosofia, sob pena de abandonar o mais especfico dela, a tematizao do todo, por mais difcil que isso possa ser nas condies histricas atuais. 51 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p.305. 640 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) neoplatonismo e a filosofia tomsica. No sentido terico, podemos dizer que na realidade temos duas propostas fundamentais: a metafsica da essncia que caracteriza os dois primeiros modelos e a metafsica do ato de existir prpria ao pensamento de Toms de Aquino. A metafsica do Esse como ela se elaborou no pensamento de Toms de Aquino contm dois momentos profundamente concatenados entre si: 1) O momento notico que trata da emergncia do esse no interior do juzo no final do processo abstrativo que se exprime na noo do esse commune; 2) O momento propriamente metafsico que trata da inteligibilidade absoluta do esse que, ento, passa a ser designado como Ipse esse subsistens. O pensamento cristo medieval que se articulou no quadro terico elaborado pelos gregos, primeiramente no modelo platnico (o modelo da ideia separada da ontologia platnica) e neoplatnico, depois no modelo

  • aristtelico (o modelo da forma substancial da ontologia aristotlica) se confrontou com uma questo absolutamente central seja para a compreenso da realidade enquanto tal, de modo especial para a compreenso da estrutura inteligvel do ser finito, seja para a articulao compreensiva do contedo da f crist: a questo da distino radical entre o Esse absoluto e os esse relativos, ou seja, na linguagem da teologia crist, da distino entre Deus e as criaturas. Toms situando-se no modelo conceptual tanto do platonismo/ neoplatonismo quanto da recepo do modelo aristotlico vai partir da crtica aristotlica ao relativismo sofista que desembocou atravs do argumento de retorso na necessidade absoluta da afirmao por parte da inteligncia de uma determinao em seu objeto e assim de sua introduo na ordem do ser eda unidade o que ocorre no juzo.52 Enquanto absolutamente inteligvel, o esse (einai, 52 Cf. AQUINO M. F. de, Experincia e Sentido II, in: Sntesev.17 n. 50 (1990) p. 32 e ss. Filosofia Interdisciplinaridade 641 on) reivindicasua identidade com o intelecto no ato mesmo em que intudo. Esse e pensar coincidem, portanto, numa unidade absoluta.53 Dessa forma o ser se revela como a primeira determinao do objeto da inteligncia, ou seja, ao afirmar seu objeto a inteligncia se instala imediatamente no reino do ser o que ocorre segundo o primeiro princpio fundado na oposio entre ser e no-ser e que manifesta para Lima Vaz uma aberturaintencional infinitude do ser que no pode ser negada sem autocontradio.54 O juzo humano , assim, um ato complexo com muitos nveis. Num primeiro momento, a inteligncia humana comea situando seu objeto no plano da necessidade inteligvel, ou seja, do universal, e ela o faz atravs de uma dissociao do momento formal e qualitativo da coisa (o eidos, a essncia) de sua singularidade material. Trata-se nesse primeiro momento da conquista de um plano de perfeio formal atravs de que todos os seres se caracterizam. No entanto, esse eidos isolado da matria s predicvel nos juzos de realidade enquanto de alguma forma reintegrado na unidade concreta em que objetivamente se realiza. Isso significa dizer que num segundo momento a inteligncia busca conquistar a unidade em que o ser do objeto se constitua como tal, 53 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ideia e Existncia, in: Razes da Modernidade, op. cit., p. 105. A respeito da interpretao do esse entre os escolsticos do sculo passado cf. KELLER, A., Sein oder Existenz? Die Auslegung des Seins bei Thomas von Aquin in der heutigen Scholastik, Mnchen: Pullacher Philosophische Forschungen, 1968. 54 Cf. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendncia : Experincia Histrica e Interpretao Filosfico-teolgica,in: Sntese v. 19 n. 59 (1992) p. 448: ... e como poderia ser negada sem ter sido pensada, isto , de alguma maneira afirmada?... a evidente finitude do nosso esprito, situado na contingncia do Mundo e da Histria,s pode comportar-se com a sua tambm evidente infinitude intencional, atestada no pensamento do Ser, se aceitarmos obedecer exigncia lgica e existencial de afirmar o Transcendente como Absoluto do ser. 642 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) assim que o primeiro plano da unificao um retorno ao individual concreto. Dessa forma, o eidos alcanado reintroduzido na matria. a partir daqui que Toms de Aquino vai dar o passo decisivo para alm de

  • Aristteles. 55 Em primeiro lugar, o juzo mostra uma pluralidade de determinaes formais no objeto e justamente sobre essa pluralidade que o juzo exerce sua funo de sntese. O ncleo ontolgico capaz de suportar essa pluralidade de determinaes e unific-las para Aristteles e Toms a substncia.56 Assim, Toms aceita de Aristteles a tese de que na ordem das determinaes formais das coisas a categoria ontolgica fundamental a categoria de substncia de modo que ela a expresso da ordem substancial das coisas, a unidade de base na ordem formal e, por conseguinte a fonte ltima de inteligibilidade. At aqui vai Aristteles: O ser se revela no juzo como sntese do uno e do mltiplo naordem das 55 Cf. AQUINO M. F. de, Experincia e Sentido II , op. cit., p. 47:Com sua metafsica do ato de existir, Toms cumpre uma viragem epocalno pensamento filosfico, elevando a unificao do objeto a um nvel de inteligibilidade inalcanado pela ontologia clssica grega. 56 No h no pensamento de Lima Vaz um confronto explcito com as crticas de ordem epistemolgica e ontolgica que j se iniciaram no pensamento dos empiristas ingleses ao conceito de substncia nem tambm com as tentativas de sua reabilitao no pensamento contemporneo, por exemplo, em Strawson e Kripke e com as teorias alternativas. Cf. a respeito desta problemtica: ANGELELLI I., Handbook of metaphysics and ontology, Mnchen: Philosophia Verlag, 1991. IMAGUIRE G., A Substncia e suas alternativas: feixes e tropos, in: IMAGUIRE G./ ALMEIDA C. L S. de/ OLIVEIRA M. A de (orgs.), Metafsica Contempornea, Petrpolis: Vozes, 2007, p. 271-289. PUNTEL L. B, O Conceito de categoria ontolgica: um novo enfoque, in: Kriterion n. 104 (2001) p.7-32; Estrutura e Ser. Um quadro referencial terico para uma filosofia sistemtica, So Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2008, p. 251 e ss. Filosofia Interdisciplinaridade 643 determinaes formais em que o objeto se exprime.57 O que constitui, porm, a absoluta originalidade do pensamento de Toms de Aquino e queo conduz a um ltimo grau de inteligibilidade na com- preenso dos seres que ele se eleva a um plano supremo de unificao alm do plano formal da substncia situado no nvel da essncia em que se deteve o pensamento grego (o paradigma da primazia essncia em metafsica). Ora se a prpria tradio grega havia compreendido que o especfico do ato do juzo a afirmao do ser, 58 ento, para Toms isso significa dizerque atravs desse ato a inteligncia humana insere seu objeto na esfera da existncia.59 Da a afirmao central e decisiva para todo o pensamento de Toms: o termo prprio do juzo, o ponto de partida da metafsica, no a essncia, mas a existncia, 60 o esse rei que assim se constitui como a fonte primeira de inteligibilidade do ser 57 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Itinerrio da ontologia clssica, in: Escritos de Filosofia VI. Ontologia e Histria, op. cit., p. 72. 58 Cf. LIMA VAZ H. C. de, A Metafsica em questo, op. cit., p. 95: Do ponto de vista metodolgico, nosso roteiroprocede inicialmente seguindo a chamada via compositionis: parte da intuio e afirmao originrias do esse e desenvolve as implicaes lgico-dialticas dessa posio inicial. Ao termo do percurso, novamente nos encontramos no princpio, obedecendo a uma modalidade da via resolutionis, que ao mesmo tempo instaurao de uma totalidade de estrutura dialtica. 59 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura:

  • Perspectiva Histrica, op. cit., p. 322: ... ao ser submetido ao dinamismo da afirmao, o juzo transgride a limitao eidtica da sntese concretiva,e eleva o objeto ao nvel da universalidade formal do ser (ens commune), o que implica por sua vez referi-lo ao Absoluto real (Ipsum esse subsistens) que posto (funo ttica do juzo) como finalidade ltima do dinamismo intelectual. 60 Como tambm o ncleo fundamental de todo o pensamento de Lima Vaz. Cf. SAMPAIO R. G., Metafsica e Modernidade, op. Cit., p. 323: Seja como ponto de chegada, seja como ponto de partida a metafsica do existir organizada dialeticamente em Razes da Modernidade a chave de inteligibilidade, a clef de vote de todo o pensamento vaziano. 644 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) finito. Sua estrutura metafsica se constituicomo passagem da sntese concretiva ou da representao ao ser e do ser ao Absoluto,61 da forma ao ato de ser e do ato de ser ao Absoluto. Ora, a existncia o ato primeiro, a perfeio de todas as perfeies, do ponto de vista epistemolgico horizonte inteligvel ltimo de nossa inteligncia. Ao contrrio do que ocorre numa ontologia essencialista, Toms de Aquino vai encontrar no ato de existir o grau supremo de inteligibilidade e por isso no juzo que se opera a ltima conquista da unidade visada pela inteligncia humana desde o princpio de sua atividade. 62 Toda experincia humana desenha-se no espao do horizonte objetivo e onicompreensivo do ser. 63 Dessa forma, seu quadroterico metafsico se caracteriza pela primazia do ser e inaugura uma nova figura da metafsica. a partir daqui que Toms vai elaborar sua concepo do ser em seu todo e, portanto, sua concepo da distino entre Deus e suas criaturas. O quadro conceptual em que ele articula seu pensamento a teoria aristotlica da forma e da matria ou mais geralmente do ato e da potncia. Neste contexto a estrutura especifica doser finito se explica pela composio de um princpio potencial que suporta sua forma, ou seja, sua perfeio prpria que assim recebida nele. Numa palavra, o finito se caracteriza pela composio entre forma e princpio 61 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 322. 62 Cf. HERRERO F.J, op. Cit., p. 11: com esta compreenso do ser como fonte, como pura positividade, como pura gratuidade e superabundncia que o Pe. Vaz re-atualiza e refaz a experincia filosfica dos gregos, completada por Santo Toms com sua compreenso do ato de ser como existir (Esse) ... 63 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Mstica E Poltica: A Experincia Mstica Na Tradio Ocidental, in: Sntese v. 19 n.59 (1992) p. 494. Filosofia Interdisciplinaridade 645 receptivo, trata-se, portanto, do modelo composicional da compreenso do ente, de uma ontologia composicional, e assim, atravs desse modelo, exprime-se a inteligibilidade intrnseca do ser criado e sua distino com o Criador. Toms de Aquino avana nesta ontologia na medida em que admite um plano ontologicamente mais profundo de composio: o da forma (essncia) e do ato de existir (esse) e atravs disso ele supera de forma radical toda forma de ontologia essencialista que caracterizou o pensamento grego. Assim, por exemplo, para Plato, a inteligibilidade do ser provm da forma ou ideia e a finitude dos seres uma consequncia de sua participao na forma exemplar. Essa tese da

  • limitao da inteligibilidade do ser finito esfera da essncia era tese comumente aceita pelos neoaristotlicos medievais at porque Aristtelestambm permaneceu no nvel da inteligibilidade da essncia em sua concepo dos entes. Aristteles entende a forma como ato da matria nas substncias compostas do mundo sublunar o que faz com que seu conhecimento seja fruto de um processo de abstrao que produz a formaabstrata universal na inteligncia ou como ato subsistente nas substncias simples. Neste contexto, a forma se apresenta em dois estados: ou como parte inteligvel do com- posto, como sua quididade, ou como o todo, a forma de uma matria comum, e enquanto tal uma essncia abstrata predicvel do indivduo. Nesse quadro conceptual no se pe a questo da inteligibilidade intrnseca e fundante 64 do ato de existir. A ontologia de Toms parte da pergunta bsica a partir de onde se articulou esse pensamento: como explicar o ser finito? Como pens-lo na dialtica da dependncia e da independncia em relao ao ser infinito? Como atribuir-lhe consistncia prpria? justamente aqui para 64 Cf. LIMAVAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit, p. 154. 646 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) Lima Vaz na questo da estrutura inteligvel do ser finito que Toms manifesta sua singular originalidade no pensamento metafsico ocidental na medida em que ele empreende uma terceira navegao65 avanando alm da inteligibilidade da essncia e fundamentando a consistncia ontolgica doser finito na inteligibilidade fontal do esse ou do ato de existir66 o que para Lima Vaz constitui o tema primordial de sua metafsica67 e que s pode ser articulado de forma adequada num discurso de natureza dialtica. Toms conhece dois caminhos para a articulao da metafsica68: a via descendente que parte da intuio do Absoluto69 presente na afirmao do ser no juzo e explicita essa afirmao nas noes transcendentais que constituem o ncleo elementar de inteligibilidade de qualquer ser. Por sua vez a via ascendente parte da apreenso imediata do ser no mundo sensvel e se eleva suprema universalidade do ser expressa no conceito do ser enquanto ser. Como ato ou perfeio ltima, o esse intudo na forma da oposio dialtica entre o Esse absoluto e os esse relativos, da qual parte todo o discurso metafsico.70 Numa 65 Cf. POSSENTI V., A aliana socrtico-mosaica Ps-metafsica, Deselenizao, Terceira Navegao, in: Sntese v.36 n. 116(2009) p. 325- 353. 66 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit, p. 153. 67 Cf. SAMPAIO R. G., Metafsica e Modernidade, op. cit., p. 173: Todos os outros temas partem da metafsica do existir e retornam metafsica do existir. 68 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit.,p. 179. 69 Cf. SAMPAIO R. G., Metafsica e Modernidade, op.cit., cf. p.321: O discurso metafsico j tem seu incio com a questo do Absoluto. Mas ele tambm apresenta uma evoluo e uma seriao de categorias que parte da pr-compreenso do Absoluto, e culmina na demonstra- o da sua existncia e na demonstrao da sua natureza. 70 Cf. LIMA VAZ H. C.de, Essncia e Existncia, op. cit., p. 157. Filosofia Interdisciplinaridade 647 palavra, a intuio originria 71 do esse como perfeio absoluta faz emergir imediatamente a oposio entre o esse infinito 72 e os esse finitos e a exigncia terica de fundamentar racionalmente tanto a

  • unidade como a separao dessas duas figuras do esse, pois a afirmaode uma inteligibilidade radical do ser implica a afirmao de uma Inteligncia absoluta como fonte primeira da inteligibilidade, da qual participa o prprio sujeito afirmante enquanto sujeito finito.73 Dessa forma, o esse finito se revela como o termo da relao de causalidade queconstitui sua dependncia estrutural do Ser Infinito. A inteligibilidade do ser finito se situa inteiramente no seio dessa relao que Lima Vaz denomina num sentido original e nico de relao transcendental e isso constitui o cerne da soluo terica dada por Toms de Aquino a mais profunda das interrogaes humanas74 que permite pensar o Absoluto 71 No se trata aqui para Lima Vaz de uma intuio a priori. Cf. LIMA VAZ H. C. de, O Problema da Criao, in: Razes da Modernidade, op. cit., p. 129: A intuio do esse no , portanto, uma intuio pura, a priori. Ele mediatizada pela apreenso do sensvel e pela abstrao do serem-comum, sobre o qual tem lugar a separatio judicativa e a intuio protolgica do esse como ato. 72 Nisso se revela a relao de transcendncia como constitutivo ontolgico do ser humano como ser espiritual. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Transcendncia: Experincia Histrica e Interpretao Filosfico-teolgica, in: Sntese v. 19 n. 59 (1992) p. 444: ...a relao de transcendncia exprime, na verdade, o excesso ontolgico pelo qual o sujeito se sobrepe ao Mundo e Histria... e, assim, avana alm do ser-nomundo na busca do fundamento ltimo para o Eu sou primordial que o constitui. Cf. p. 447: Desta sorte, a reflexo sobre a transcendncia longe de ser um caminho de alienao, faz-nos descer s razes do nosso ser, onde o Absoluto est presente como princpio fontal. 73 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ideia e Existncia, op. cit., p. 109. 74 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 325-326:... a posio do ser como existir no juzo objetivo, permaneceria inexplicvel sem a presena, no movimento da 648 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) em si e os seres relativostanto na sua consistncia prpria quanto na sua total dependncia do Absoluto.75 A teoria que pretende pensar o ser em seu todo se depara logo de entrada com grandes aporias: o uno e o mltiplo, o absoluto e o relativo, o necessrio e o contingente. A soluo dessas aporias posta por Toms de Aquino consistiu em pensar a oposio dialtica entre o ato deexistir (esse) como perfeio absoluta e o ato da essncia (eidos) como perfeio relativa, fonte da diferena dos seres entre si, que, por outro lado, se integram entre si por sua essncia e pelo seu esse na ordenao dinmica do universo para o Ser infinito. Dessa forma, a composio real da essncia e da existncia constitui a razo da contingncia e da finitudedos seres criados. Com isso para Lima Vaz Toms de Aquino conseguiu assegurar tanto a transcendncia infinita do Esse absoluto como manter a distino e a autonomia dos seres finitos na sua relao transcendentalde dependncia para com o Esse infinito.76 Que razes levaram Toms de Aquino a romper com a ontologia essencialista? Em primeiro lugar o encontro entre as duas tradies que esto na base da formao do mundo simblico do ocidente: por um lado, a tradio teolgica da exegese do nome de Deus como aparece no xodo, portanto, a tradio do cristianismo; por outro, a tradio neoplatnica que concebia o ser em

  • seu todo como um universo hierrquico coroado por um princpio que Porfrio denominou o Existir (to enai). Na realidade, Toms de Aquino no escreveu nenhum artigo para explicitar sua metafsica do esse, o que inteligncia, de uma finalidade antecedente e consequente, de um Princpio primeiro e de um Fim ltimo da nossa atividade intelectual que, sendo a universalidade absoluta do ser o horizonte da afirmao, no pode ser seno o Absoluto real. 75 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit., p. 154-155. 76 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit., p. 166. Filosofia Interdisciplinaridade 649 mostra o imenso trabalho especulativo de Lima Vaz e de muitos outros intrpretes de Toms no sculo XX para elaborar essa concepo a partir dos inmeros textos de Tomas. No entanto, para Lima Vaz tudo se passa comose uma intuio bsica alimentasse uma evidncia presente no fundamento dos grandes problemas metafsicos: o evento metafsico fundamental da afirmao do esse no juzo alguma coisa . Essa evidncia bsica sempre retomada, embora permanea perdida na banalidade de nossa linguagem e de nossos pensamentos na vida quotidiana. Para Lima Vaz, para alm daquilo que o prprio Toms (que se utilizou de instrumentos lgicos analticos) foi capaz de captar, a natureza dialtica da relao entre o Esse absoluto e os esse relativos, porum lado, e a oposio intrnseca no ser finito entre essncia e existncia, por outro, que nos faz compreender o enorme passo que foi dado na metafsica com a metafsica do esse. Lima Vaz entende dialtica77 acima de tudo como mtodo, isto , como um procedimento conceitual atravs de que se exprime a inteligibilidade de qualquer realidade, portanto, o mtodo especfico de uma considerao ontolgica, e que caminha atravs de oposies apresentadas tanto na ordem real como na nocional que o logos integra numa ordem superior.78 Para ele, o procedimento dialtico no um instrumento externo aplicado a um contedo, mas a 77 Cf. MAC DOWELL J. A., Mtodo Dialtico, Histria e Transcendncia no Sistema Filosfico de Henrique de Lima Vaz, op. cit., p. 224-229. 78 A respeito de sua concepo do que ele considera os dois modelos bsicos do pensamento dialtico. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Filosofia e Cultura: Perspectiva Histrica, op. cit., p. 16-76. Para uma crtica do modelo hegeliano cf. PUNTEL L. B., possvel aclarar o conceito de dialtica em Hegel, in: Em busca do objeto e do estatuto terico da filosofia. Estudos crticos na perspectiva histrico-filosfica, So Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2010, p. 201-219. 650 Draiton Gonzaga de Souza; FranciscoJozivan Guedes de Lima (Orgs.) prpria lgica intrnseca desse contedo, a expresso do dinamismo de sua inteligibilidade. O mtodo dialtico 79 parte do contedo inteligvel mais elementar, a afirmao: alguma coisa . Atravs do argumento de retorso suprassumida a oposio mais primitiva, a oposio do ser ao nada, que se exprime logicamente pelo princpio de nocontradio. A partir desse fundamento se forma a oposio do uno e do mltiplo que d incio ao caminho da reflexo metafsica at culminar na dialtica do Ser absoluto e os entes finitos e relativos. 3) O Esse absoluto como criador do Mundo. A metafsica do esselevou Toms a pensar o ser em seu todo como a bidimensionalidade de esse absoluto e esse relativos, pois a exigncia do Absoluto transcendente

  • est inscrita na prpria essncia e no dinamismo profundo da razo. A questo que se pe agora : como pensar mais concretamente a relao transcendental entre o Esse absoluto e os esse relativos? Como pensar a origem do ser finito e a ordem do universo? Toms de Aquino enfrenta essa problemtica a partir de quatro categorias ontolgicas: inteligncia, liberdade, necessidade e contingncia. O mtodo dialtico mostra-se fundamental para compreenso ontolgica adequada dessa realidade. As relaes entre essas categorias constituem uma oposio dialtica. Assim,a inteligncia se ope dialeticamente liberdade e contingncia, como a liberdade se ope dialeticamente inteligncia e necessidade. No Esse absoluto, onde h identidade entre esse e essncia s h 79 Lima Vaz no se confrontou explicitamente com as tentativas que emergiram no sculo XX para determinar a natureza lgica, epistemolgica e metafsica da dialtica. Cf. WANDSCHNEIDER D. (org.), Das Problem der Dialektik, Bonn: Bouvier, 1997. OLIVEIRA M. A. de, Dialtica Hoje: lgica, metafsica e historicidade, So Paulo: Loyola, 2004. Filosofia Interdisciplinaridade 651 distino de razo entre os quatro termos o que significa dizer que o Esse rene em si os quatro aspectos distintos, o que permite pensar a relao transcendental como uma relao de criao enquanto relao no-recproca entre o Esse absoluto e os esse relativos, pois a simplicidade absoluta do Esse criador exclui qualquer relao real com a multiplicidade dos esse finitos. A metafsica do esse permite, destasorte, pensar na sua radicalidade o problema da origem dos seres, ao formul-lo a partir de sua identidade mais profunda como existentes.80 Acriao , ento, pensada no sentido estrito de um pr os esse relativos na existncia. De um lado, temos o Esse absoluto que permanecendo em sua distncia ontolgica infinita profere em sua inteligncia as ideias e contm em sua liberdade infinita a potncia infinita de suscitar os seres finitos do nada, isto , sem qualquer substrato pr- existente. Esses seres enquanto so postos na existncia (causalidade eficiente) pela prpria liberdade do Esse absoluto (causalidade final do Bonum, ou seja, da livre ordenao com que o esse participa da Liberdade infinita81) participam por sua essncia das ideias da inteligncia absoluta (causalidade formal do Verum, ou seja, da necessidade intrnseca da essncia que como tal participa da Ideia na Inteligncia infinita82).83 A verdade e o bem constituem os pilares da metafsica tomsica da participao. Portanto, no por indigncia, mas por superabundncia de Bondade que o Bem infinito se comunica ad extra, verificando-se aqui o axioma neoplatnico frequentemente comentado na tradio medieval: Bonum est diffusivum sui. 84 Com isso a 80 Cf. LIMA VAZ H. C. de, O Problema da Criao, op. cit., p. 134. 81 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 181. 82Ibid. 83 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 177. 84 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 181. 652 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) concepo da realidade enquanto tal chega a seu patamar ltimo: Toda a realidade est aqui concentrada na relao de criaturalidade pela qual o ser finito subsiste na unidade do seu esse e da sua essentia (relao de diferena na unidade) na radical dependncia do Esse infinito.85 Assim, a relao pensada dialeticamente no sentido de que a oposio suprimida pelo

  • Esse absoluto sem que seja eliminada sua distncia ontolgica infinita. Com isso Toms de Aquino foi capaz de pensar numa unidade na diferenao que parecia inconcilivel no esquema do essencialismo. O finito s pode ser pensado atravs dessa supresso da oposio e nessa supresso. Isso significa dizer que ele absolutamente distante do esse absoluto que enquanto tal radicalmente distinto de toda e qualquer realidade finita; por outro lado, infinitamente prximo dele em virtude da imanncia do Esse absoluto que lhe d seu esse como ato fundante do seu ser sem o que ele retornaria ao nada. precisamente essa incluso na esfera do Infinito que firma o finito em seu existir prprio, tanto na originalidade de sua forma especfica como participao 86 na ideia da inteligncia infinita,como na manifestao da gratuidade do seu ser recebido da liberdade absoluta. Do ponto de vista epistemolgico constitui o fundamento da predicao analgica entre o Esse subsistente participado (Deus) e os esse participantes (criaturas).87 85 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit.,p. 159. 86 Lima Vaz distingue dois nveis de participao. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 178: H, pois, uma participao formal dos seres no Ser enquanto noo universalssima (ens commune), e uma participao causal dos seres existindo concretamente (esse) no Esse infinito e absolutamente transcendente. Cf. SOUZA L. C. S. de, Natureza e Participao em Sto. Toms de Aquino (de substantiis separatis, c.9), in: Sntese v.36 n.116 (2009) p. 385-397. 87 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 185. Filosofia Interdisciplinaridade 653 Com isso so garantidos teoricamente tanto a transcendncia infinita do Esse absoluto como a distino e a autonomia dos esse finitos. Esse tambm o horizonte de determinao daquele mbito que constitui o objeto prprio da metafsica:a totalidade dos seres finitos formalmente enquanto seres (entia ut entia) que subsistem na dependncia causal do Esse infinito.88 4) Aprofundamento da compreenso da estrutura ontolgica do ser finito a partir da ideia da criao A determinao metafsica da relao transcendental abre espao para uma leitura aprofundada da estrutura inteligvel do ser finito. O ser finito enquanto finito s pensvel a partir de uma oposio intrnseca que se manifesta na forma de uma diferena na identidade, ou seja, a diferena entre a necessidade absoluta que prpria da essncia na medida em que o ser finito participa89 da ideia exemplar da inteligncia infinita e a necessidade hipottica que fonte dacontingncia90 com que o esse do ser finito posto pela liberdade infinitacomo semelhana participada da Bondade exemplar.9190 88 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 178. 89 Para Lima Vaz o conceito de participao um dos eixos de sustentao da metafsica de Toms de Aquino. Ele chegou a esta problemtica atravs do opsculo De Ebdomadibus de Bocio. Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, in: Razes da Modernidade, op. cit., p. 172. 90 A utilizao de categorias modais central no pensamento de Lima Vaz. No entanto, no h um confronto explcito com o debate a respeito da lgica e da metafsica modais como eles se articularam no sculo XX. Cf. a respeito: HUGHES G. E./ CRESWELL J., A new introduction to modal logic, London/ New York: Routledge, 1996. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser. Um quadro referencial

  • para uma filosofia sistemtica, So Leopoldo; UNISINOS, 2008, p. 586 e ss.91 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit.,p. 161. 654 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) Essaoposio que o caracteriza estruturalmente supressa na identidade relativa em que o ser finito subsiste na sua unidade na medida em que elerecebe na perfeio de sua essncia especfica o ato supremo do existir, realidade pensada por Toms no esquema aristotlico do ato (esse) e da potncia (essncia) que o constitui como ser composto distinto da simplicidade plena do Esse absoluto. Trata-se aqui da distino real de dois co-princpios metafsicos que asseguram justamente a unidade na diferena da estrutura metafsica do ser finito: o esse recebe sua perfeio especfica da essncia e a essncia recebe do ato do esse sua perfeio ltima. Numa palavra, pela existncia o universal da essncia est enraizado na singularidade ntica pela qual o ser si mesmo em sua identidade mais radical. 92 O ente, portanto, inteligvel a partir da realidade dos dois co-princpios, ou seja, de sua distino real; do contrrio no seria possvel compreender a separao ontolgica infinita entre o esse absoluto e os esse finitos, assim como explicar a tenso que caracteriza a finitude enquanto finitude entre a necessidade da essncia ea contingncia do esse. Com isso se explicitou o horizonte ltimo de compreenso dos seres finitos: a verdade de sua estrutura ontolgica manifesta sua inteligibilidade atravs da articulao com a verdade ontolgica ltima, a verdade, como ideia na inteligncia infinita (exemplaridade da ideia), e a bondade, que inerente sua forma enquanto perfeio especfica de seu ser, atravs da articulao com a bondade ontolgica ltima, pela qual os esse finitos participam da exemplaridade da Bondade infinita 93 (gratuidade da liberdade).94 Da asuprema tenso dialtica que marca o ser 92 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Ser e Participao, op. cit., p. 171. 93 Cf. LIMA VAZ H. C. de, Essncia e Existncia, op. cit.,p. 160. 94 Para Lima Vaz, essa tese herana platnica. Cf. LIMA VAZ H. C. de, O Problema da Criao, op. cit., p. 131: O modelo platnico legou Filosofia Interdisciplinaridade 655 em seu todo entre a dissemelhana infinita e a semelhana analgica entre as duas figuras do esse. 95 5) A superao proposta por Toms de Aquino suficientemente radical? Uma questo central para um dilogo com o quadro terico que constitui o ncleo do pensamento de Toms e que retomado no pensamento de Vaz o que aqui se denominou de ontologiacomposicional96 que busca seus conceitos bsicos (potncia, ato, matria, forma, ente, etc.) no quadro terico da metafsica aristotlica enquanto cincia do ente enquanto ente mesmo reconhecendo a originalidade e o passo fundamental do pensa- mento de Toms em relao a Aristteles e todo o Essencialismo do pensamento grego por suametafsica do esse enquanto ato do ser97 e o fato de que sua posio sejaincompreensvel fora da influncia marcante da tra- dio platnica e neoplatnica. A tese central de Toms que o objeto especfico do intelecto humano o ente (De ver. q. 1 a.1) que entendido teologia crist da criao duas contribuies doutrinais de fundamental importncia: o exemplarismo, fundado na transcendncia das Ideias, e o finalismo do Bem, que rege a ordem do mundo. 95 Cf. SAMPAIO R. G.,

  • Metafsica e Modernidade, op. cit., p. 166; ... por relao de razo Lima Vaz compreende uma relao segundo a qual a inteligncia finita pensa a Inteligncia infinita como causa exemplar das criaturas e a Vontade divinacomo causa eficiente das criaturas. 96 A respeito de uma considerao crtica com a semntica e a ontologia composicionais cf. PUNTEL L. B., Estrutura e Ser, op. cit., p. 247 e ss. 97 Retomada por seus discpulos a partir dos anos 30 do sculo passado. Cf. FABRO C., Loriginalit de lessethomiste, in: Revue Thomiste 54 (1956) p. 240-270, 480-507. Cf. tam- bm seu livro: La nozione metafisica di partecipazione secondo S. Tommaso dAquino , 2a. ed.,Turin: SEI, 1950; GILSON ., L tre et lessence,Paris: Vrin, 1948. 656 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) como o concreto,98 isto , como a conjuno doesse com algo que o recebe, ou seja, o ente aquilo que tem esse, um composto que expresso especialmente em quatro pares de conceitos: participans-participatum (participanteparticipado), potentia-actus (potncia-ato), recipiensreceptum (receptor-recebido), habens-habitum (O que tem/ o que tido). O par conceitual potncia-ato o quadro ontolgico superior: a matria a potncia frente ao ato como suaforma. O passo decisivo de Toms vai consistir em considerar a prpria forma como potncia frente a outro ato que o esse enquanto ato de ser. Aqui a forma a essncia que potncia frente ao esse enquanto ato. Esse esquema terico expresso em Toms com toda clareza em afirmaes como a do De ente et essentia c. 4: Tudo o que recebe algo de outro est em potncia em relao a este; e isto que recebido por ele seu ato. Assim, o esse a concretizao do ente de tal modo que ele s pode ser entendido a partir do esse e esta uma posio que vai claramente alm do quadro terico herdado de Aristteles. A questo central do pensamento tomsico , ento, como Toms compreendeu o esse que constitui a categoria bsica de sua metafsica. Em primeiro lugar, numa perspectiva explcita, o esse entendido como ato de ser enquanto o ato ltimo, supremo ou mais profundo na hierarquia dos atos o que leva Toms a dizer que ele a atualidade de todos os atos, a perfeio de todas as perfeies (ScG I 38). Enquanto ato, o esse se distingue de outros fatores ontolgicos como ente, essncia, forma, sujeito, etc., ou seja, o esse pensado como um momento distinto de outros momentos: o esse, enquanto ato, outro em relao essncia e aessncia 98 Cf. PUNTEL L. B., O pensamento de Toms de Aquino como pensamento sumrio-irrefletido sobre o ser e a analogia, in: Em busca do objeto e do estatuto terico da filosofia. Estudos crticos na perspectiva histrico-filosfica, So Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2010, p. 55 e ss. Filosofia Interdisciplinaridade 657 outro em relao ao esse, o que significa dizer que o esse no os abrange99, ele no aqui pensado como a unidade dosdiferentes momentos. Se o esse o ato do ser, ento, o ipsum esse puro ato de ser. Portanto, Deus, ser absoluto, o ipsum esse per se subsistens, simples, o que implica identidade fundamental entre essncia e esse e consequentemente composio no ser criado entre essncia e esse. Dessa forma, no ser finito Toms distingue duas dimenses ou duas ordens igualmente originais, a essencial e a existencial, sem que seja feita a pergunta explcita pela unidade originria

  • dos dois momentos. A unidade dos dois momentos diferenciados no tema especfico de seu pensamento. Entendido dessa maneira, o pensamento do esse enquanto ato do ser, embora constitua um passo decisivo alm da conceitualidade aristotlica no escapa crtica heideggeriana metafsica enquanto pensamento que tematizou o ente, mas marcado fundamentalmente pelo esquecimento do ser, pressupondo-se que Heidegger entende aqui ser no como o ato do ser enquanto um momento constitutivo do ente, mas como a esfera oniabrangente. Por outro lado, h vrios textos em Toms que apontam para uma concepo de ser que vai alm de sua concepo explcita como ato de ser, ou seja, que sugerem uma concepo compreensiva do ser enquanto conexo originria que, contudo, no foi de fato por ele expressamente desenvolvida. Por exemplo, sua afirmao de que nada externo ao ser pode ser acrescentado a ele j que nada pode ser externo a ele a no ser o no-ser (De pot. q. 7 a. 2 ad 9). O ser no pode ser diversificado por algo que esteja fora dele. Ento, se assim, como se pode compreender a distino entre essncia e esse? Que significa 99 Cf. PUNTEL L. B., Ser e Deus. Um enfoque sistemtico em confronto com M. Heidegger, . Lvinas e J.-L. Marion, So Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2011, p. 59. 658 Draiton Gonzaga de Souza; Francisco Jozivan Guedes de Lima (Orgs.) essncia? Numa palavra, faltou no pensa- mento de Toms de Aquino o desdobramento de uma concepo adequa- da do esse, pois normalmente o esse pensado aqui como o polo objetivo sem que neste pensamento sejam de antemo includos o ser humano, o sujeito, a linguagem, etc. Toms de Aquino e, com ele, Lima Vaz apontam com razo para o carter absolutamente fundamental da filosofia que se revela, ento, como filosofia do ser. Avanar aqui, parafraseando Hegel, significa retornar ao funda- mento, ou seja, retornar ao fundamento da filosofia do ser e pensar com rigor terico aquilo que a metafsica tomsica e vaziana j inturam e no desenvolveram: uma concepo compreensiva do ser entendido como a dimenso primordial, ou seja, enquanto a conexo de todos os elementos e de todas as configuraes do universo irrestrito do discurso, numa palavra, enquanto a dimenso oniabrangente. Assim se pode dar metafsica a configurao possvel e necessria no contexto terico em que nos situamos hoje e dessa forma efetivar o trao fundamental da filosofia enquanto teoria compreensiva darealidade enquanto tal, ou seja, enquanto teoria do ser e si mesmo e em seu todo. A metafsica assim entendida tematiza a base de todas as teorias, tanto filosficas como no filosficas, uma vez que examina o que fundamental- mente pressuposto por qualquer trabalho terico e enquanto tal se revela como absolutamente indispensvel para um pensamento crtico e racional. Ela , como diz Lima Vaz, a proposta terica de pensar a unidade profunda da realidade em seu todo. O pensamento vigoroso de Lima Vaz, mpar no contexto brasileiro, significa um passo insupervel nessa direo