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Travessias Interativas, vol. 14, 2017/2 www.travessiasinterativas.com.br
Francisco Ednardo Pinho dos SANTOS
METÁFORA VISUAL NOS QUADRINHOS
VISUAL METAPHOR IN COMICS
Francisco Ednardo Pinho dos SANTOS1
RESUMO: A partir da concepção de que a metáfora é um fenômeno cognitivo, e não apenas
linguístico, o artigo analisa algumas especificidades na metáfora visual nas histórias em
quadrinhos. Para tanto, parte da distinção entre metáforas de invenção e metáforas de uso
(FONTANIER, 2009), demonstrando a aplicabilidade desses conceitos aos quadrinhos. Em
seguida, valendo-se da teoria da interação (BLACK, 1954), postula a existência de alguns tipos
de metáforas nos quadrinhos, conforme a relação estabelecida entre o termo metafórico, a cena e
os personagens. A partir daí, o artigo conclui que a existência de diferentes expedientes formais
para a expressão da metáfora visual nos quadrinhos requer do leitor diferentes estratégias de
leitura.
Palavras-chave: Tipos de metáfora. Metáfora visual. Histórias em quadrinhos.
ABSTRACT: Assuming that metaphor is a cognitive phenomenon, not just a linguistic one, the
article analyses some particularities on visual metaphor in comics. It starts with the distinction
between metaphors of invention and metaphors of use (FONTANIER, 2009), in order to
demonstrate the applicability of these concepts to comics. Using interaction view on metaphor
(BLACK, 1954), the article postulates the existence of some types of metaphor in comics, based
on the relation among the metaphoric object, the scene and the characters. The article concludes
that different formal devices for metaphorical expression require different reading skills from the
reader.
Keywords: Types of metaphor. Visual metaphor. Comics.
Introdução
Seja no uso cotidiano de uma língua natural, seja nos usos especializados das
linguagens artísticas, a objetividade é, frequentemente, uma ilusão. São muito raros os
usos linguísticos em que predomina a chamada função referencial da linguagem, aqueles
que procuram apenas relatar acontecimentos, situações, estados de coisas, valendo-se de
designações precisas para as entidades e os processos envolvidos. Muito pelo contrário,
o comum é que façamos avaliações diversas sobre o que estamos dizendo, e assim nos
colocamos naquilo que enunciamos. Frequentemente, sentimos que simplesmente relatar
o fato não é suficiente. Precisamos enfatizar certos aspectos que consideramos mais
relevantes. Conferimos ao que dizemos um viés ora humorístico, ora dramático, ora
cientificista... Procuramos, muitas vezes, sugerir determinadas imagens ao nosso ouvinte
ou leitor, para ilustrar o que estamos tentando comunicar, ou seja, fazemos comparações.
A subjetividade aporta no enunciado junto à própria decisão de fazer uma comparação,
1 Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected]
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quando nada nos obriga a fazê-la, bem como na escolha dos termos entre os quais se
estabelece uma analogia. E pode ser que ainda a comparação não nos baste e sintamos
que só a metaforização será capaz de causar no interlocutor o impacto que a objetividade
jamais alcançaria.
Os processos de metaforização, portanto, entranham-se nos usos linguísticos e
possibilitam aos usuários das línguas a realização de efeitos de sentido diversos. Esses
processos, no caso da linguagem verbal, vêm sendo estudados desde a Antiguidade, com
Aristóteles, chegando aos estudos do século XX, com Richards e Max Black, dentre
outros. Já a metáfora visual ou plástica não tem recebido a mesma atenção. Uma notável
incursão na área são os estudos de Forceville, amparados na teoria da interação, de Black
(1954), e na teoria da metáfora conceitual, de Lakoff e Jonhson (1980). Essa perspectiva
teórica tem oferecido subsídios a diversos estudos sobre a metáfora visual e a metáfora
multimodal em domínios como a publicidade, por exemplo (Cf. FORCEVILLE, 2000).
Na reflexão sobre os quadrinhos, embora seja comum falar-se em metáfora visual,
predominam conceitos imprecisos, sobretudo em razão da falta de estudos sistemáticos
sobre a metáfora visual que levem em consideração as especificidades da linguagem dos
quadrinhos. Algumas poucas pesquisas a respeito analisam, por exemplo, expedientes
visuais convencionais para a expressão de emoções nos mangás (ABBOTT;
FORCEVILLE, 2011) e recursos igualmente padronizados para a expressão de
movimento e emoções (linhas cinéticas, espirais, gotículas de suor) em um álbum da série
As aventuras de Tintim (FORCEVILLE, 2011).
Em vista disso, procuramos demonstrar, neste artigo, que a metáfora visual
desempenha relevantes funções nos quadrinhos modernos, sendo não apenas elemento
ornamental, mas importante ferramenta conceitual. Para tanto, apresentaremos uma
seleção representativa de ocorrências do fenômeno, retiradas de obras diversas,
apresentando alguns critérios classificatórios que possam ajudar na compreensão de seu
funcionamento.
Distinção entre metáfora de uso e metáfora de invenção nos quadrinhos
Atribui-se a Fontanier (2009), em Les figures du discours, originalmente
publicado em 1830, a distinção entre a metáfora de invenção, que é inaudita, original,
transgressora, e a metáfora de uso, que é recorrente, incorporada ao repertório linguístico
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dos usuários da língua. As metáforas de invenção, altamente dependentes do contexto,
costumam ser usadas apenas uma vez, com finalidades artísticas ou retóricas. Já as
metáforas de uso (ou de convenção, segundo PAES, 1997) estão praticamente
incorporadas ao léxico da língua. Ao dizermos, por exemplo, que uma pessoa tem “uma
queda” por outra, ou que “está com os quatro pneus arriados”, estamos fazendo uso de
metáforas, mas de um tipo diferente daquela que usa Carlos Drummond de Andrade ao
dizer que as nádegas são “duas luas gêmeas”. No primeiro caso, temos o lugar comum, o
estereótipo, a metáfora codificada, lexicalizada. Nos segundo caso, temos a expressão
original, inusitada, inventiva. Ricoeur (2015), seguindo Fontanier, chama-nos a atenção
para o caráter de metáfora forçada quando se trata de expressões fossilizadas. Nesse caso,
a metáfora é dita forçada porque seu uso é necessário, não envolve a liberdade criativa do
usuário da língua. Essas metáforas forçadas (ou de uso, ou de convenção) integram o
fundo lexical da língua do mesmo modo que as palavras em seu sentido literal. Trata-se
de catacrese, na verdade, uma designação já estabelecida na língua, em que pese a origem
figurada do termo.
A mesma distinção, a nosso ver, é válida para a metáfora visual, notadamente
para o seu uso em uma linguagem como a dos quadrinhos. O emprego de ícones como a
lâmpada para indicar que o personagem teve uma ideia ou de uma sequência de pequenos
símbolos como cobras, caveiras e raios dentro de um balão para conotar palavrões
certamente se funda no princípio da metáfora. Há uma espécie de mapeamento de um
domínio conceitual em outro, de modo que o segundo sirva à expressão do primeiro.
Tal mapeamento, em casos como os citados acima, ocorre de maneira bastante
padronizada. Faz parte dos conhecimentos envolvidos na leitura de quadrinhos os
significados implicados em ícones como a lâmpada, as espirais ou nuvens sobre a cabeça,
as gotículas de suor adjacentes à face do personagem. Esses são exemplos de metáforas
de uso nos quadrinhos, referidas em estudos como Santos; Vergueiro (2012), por
exemplo, apenas como metáforas visuais. Também McCloud (2005) trata fenômenos
desse tipo como metáforas visuais. O autor cita o exemplo de certos feixes de linhas
curvas usadas para sinalizar fumaça ou mau cheiro, por exemplo. Nas palavras do
estudioso, um expediente dessa natureza “não é mais uma figura, mas uma metáfora
visual – um símbolo” (MCCLOUD, 2005, p. 128).
A metáfora de invenção, por sua vez, ocorre, por exemplo, em um número de A guerra
dos Robins, escrita por Tom King. Na história, vemos um grupo de adolescentes tomar
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para si a tarefa de combater o crime por conta própria, adotando o codinome do célebre
parceiro do Batman. A atuação desses adolescentes é desastrosa. Impõe-se às
autoridades controlar esse grupo de pretensos heróis. Nesse contexto, uma vereadora
notabiliza-se ante a opinião pública como alguém capaz de disciplinar a situação. Em
um jantar, a vereadora promete combate implacável aos Robins. À medida que sua fala
se desenrola, vemo-la destrinchar, em seu prato, a carne de caça de uma pequena ave
(robin, em inglês; ver Figura 1), para, quando arremata seu discurso, enfiar na boca o
garfo com a carne da ave retalhada e embebida em molho de um vermelho intenso
(Figura 2).
Figura 1: metáfora visual de invenção (KING, 2016, p. 10)
Instaura-se nessa cena uma interessante metáfora: o corpo das avezinhas servidas
no jantar são os Robins, e o destino destes será o mesmo daquelas, qual seja, serão
impiedosamente devorados. À intensificação de sentidos operada pela metáfora visual, a
nosso ver, aplica-se o juízo de Ricoeur acerca da metáfora verbal: por meio dela, podemos
“operar com novas situações e, se a metáfora nada acrescenta à descrição do mundo, pelo
menos amplia nossas maneiras de sentir” (RICOER, 2015, p. 291).
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Figura 2: metáfora visual não estereotipada (KING, 2016, p. 11)
Nos estudos sobre a linguagem nos quadrinhos o fenômeno da metáfora visual
quase sempre se restringe às metáforas de uso, altamente convencionalizadas. É o que se
depreende das seguintes palavras de Vergueiro:
[...] as metáforas visuais atuam no sentido de expressar ideias e
sentimentos, reforçando, muitas vezes, o conteúdo verbal. Elas se
constituem em signos ou convenções gráficas que têm relação direta ou
indireta com expressões do senso comum, como, por exemplo, “ver
estrelas”, “falar cobras e lagartos”, “dormir como um tronco” etc. As
metáforas visuais possibilitam um rápido entendimento da ideia. Elas
podem estar localizadas dentro ou fora dos balões (VERGUEIRO,
2004, p. 54).
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Por essa citação, tem-se a impressão de que as metáforas visuais nos quadrinhos
apenas representam, sob forma gráfica convencional, as mesmas relações metafóricas já
expressas pela linguagem verbal cotidiana. Como afirma Eisner, a “universalidade da
forma” (EISNER, 2001, p. 13) é crucial no processo de construção de sentidos por meio
da imagem. Para o autor, o fracasso ou o sucesso dessa linguagem dependem “da
facilidade com que o leitor reconhece o significado” (EISNER, 2001, p. 14). Faz parte,
portanto, do processo de constituição da linguagem dos quadrinhos a consolidação de
uma iconografia prontamente reconhecível. Dessa forma, na metáfora de uso, parece-nos
que temos antes o que Eco denomina “processos de visualização da metáfora” (ECO,
1979, p. 143), em vez de metáfora visual propriamente dita.
As metáforas de invenção, por seu turno, deixam claro que a metaforização, nos
quadrinhos, é recurso criativo, pelo qual novos mapeamentos metafóricos são possíveis.
Como dissemos acima, a metáfora é um procedimento conceitual, não apenas linguístico.
Assim, as metáforas de invenção, nos quadrinhos, constituem novas conceitualizações, e
não apenas uma maneira alternativa de se representar uma relação metafórica já detectada
em outro domínio de linguagem.
Tipos representativos da metáfora visual nos quadrinhos
Estudiosos da metáfora verbal costumam distinguir dois elementos na análise de
uma expressão metafórica: o focus e o frame (BLACK, 1954). O primeiro é definido
como o termo passível de interpretação figurativa, ao passo que o frame é a parte restante
da expressão linguística, com sentido literal. Assim, no conto “Um apólogo”, de Machado
de Assis, quando o “professor de melancolia” diz “Também eu tenho servido de agulha a
muita linha ordinária!”, temos aí o uso de duas expressões metafóricas: “agulha” e “muita
linha ordinária”. Essas expressões têm o estatuto de focus, ao passo que o restante da frase
pode ser categorizado como frame. É a partir da interação entre esses elementos, ainda
segundo Black (1954), que a metáfora se instaura, possibilitando que confluam para um
único termo duas interpretações: uma literal e outra figurada.
A partir dessa distinção, podemos esboçar alguns critérios para a análise da
metáfora visual nos quadrinhos a partir das relações entre o objeto que veicula a metáfora,
(o focus), de um lado, e, de outro, a cena em que se dá a ação e os personagens que dela
participam (o frame).
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Dessa forma, podemos ter um tipo de metáfora apenas justaposta à cena. As
figuras que instauram a metáfora não integram o cenário e, consequentemente, também
não interagem com os personagens. Para exemplificar esse tipo, imaginemos uma história
construída de tal modo que, a certa altura, o leitor saiba que certos acontecimentos
trágicos aguardam o herói: este será vítima de um ataque vilanesco do qual não poderá
escapar ileso. Podemos, na exata página em que o ataque se dará, apenas mostrar o golpe
fatal, como ocorre em A queda do morcego (MOENCH; APARO, 1995). Os desenhos e
o texto dão conta de mostrar, factualmente, a cena em que o Batman é vítima da fúria de
Bane (Figura 3). Nesse caso, a ilustração funciona de modo eminentemente literal. Ou
podemos fazer como Alan Moore e John Totleben, na história "O jardim das delícias
terrenas", no número 53 de A saga do Monstro do Pântano (MOORE; TOTLEBEN,
2015). O Monstro invadiu Gotham City à procura de sua amada, que está feita prisioneira
na cidade. Sabemos que Lex Luthor tem um plano malévolo para neutralizar os poderes
de comunicação do Monstro com o reino vegetal e, assim, destruí-lo. A tensão aumenta.
Na exata página em que o ataque será desferido, intercalam-se, entre os quadros, pequenas
caixas em que vemos oscilar um pêndulo de Newton, para um lado, para o outro, para um
lado, para o outro, até que, na última caixa, imediatamente antes do quadro final, uma das
esferas é detida e a harmonia do pêndulo é quebrada bruscamente (figura 4). Uma
metáfora apropriada para o momento em que as coisas desandam para nosso herói, o
instante exato em que ele é atingido em cheio pelo ataque inimigo.
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Figura 3: uso literal da imagem (MOENCH; APARO, 1995, p. 160)
Outro tipo de metáfora é aquele em que os objetos metafóricos não interagem
com os personagens, mas participam da cena. Temos uma ocorrência desse tipo de
metáfora em uma passagem de Batman: o Cavaleiro das Trevas, em que Superman e
Batman, em trajes civis, estão conversando sobre o retorno de Batman à vida de justiceiro.
Nesse contexto, Superman é o super-herói que age com chancela governamental, ao passo
que o Batman age à margem da lei. Conversam ambos e, a certa altura, Clark Kent, o
Superman, diz: “A situação é grave, Bruce. Mais dia, menos dia, alguém vai me ordenar
a prender você! Alguém com autoridade!” (MILLER, 1988, p. 17). Nesse momento, a
arte mostra, ao fundo, uma águia que passa voando com um camundongo entre as garras
(Figura 5). O focus, nesse caso, a expressão metafórica, são a águia e o camundongo.
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Esses termos participam da cena, que se desenrola ao ar livre, mas não interagem com os
personagens.
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Figura 4: metáfora visual com focus e frame justapostos (MOORE, TOTLEBEN, 2015,
p. 94)
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Figura 5: metáfora visual sem integração entre focus e frame (MILLER, 1988, p. 17)
Por fim, temos um terceiro tipo de metáfora visual, em que o objeto não apenas
integra o cenário, mas é também manipulado pelos personagens. O exemplo que demos
acima, de A guerra dos Robins, ilustra bem esse tipo. Temos também esse tipo de
metáfora na história “Triângulos infernais”, do personagem Monstro do Pântano, escrita
por Jamie Delano. Os fatos narrados ali narrados acontecem logo após uma história em
que a namorada do Monstro do Pântano, Abby, teve de fazer sexo com outro personagem,
John Constantine, para que ela pudesse engravidar. Na primeira página da história, vemos
uma série de quadros que mostram Abby no pântano manuseando uma cadeia de
triângulos (Figura 6). Logo aparece o Monstro do Pântano, o qual constata que a relação
entre Abby e Constantine pode ter sido ruim para o relacionamento entre ele, Monstro, e
a jovem: “Pensei que... ficaríamos mais próximos do que nunca... mas agora... parece que
eu causo repulsa em você” (DELANO; MANDRAKE, 2016, p. 9).
Abby afasta-se e, ao longo da história, encontra pessoas, conversa e vai
refletindo sobre os acontecimentos que a afligem. No fim da história, encontram-se os
três: o Monstro, John e Abby. John toma das mãos do Monstro a cadeia de triângulos e
Abby, em paz consigo mesmo após sua jornada de autoconhecimento, abraça o amado.
No último quadro, vemos John desfazendo-se da cadeia de triângulos, todos eles soltos
(Figura 7).
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Figura 6: metáfora visual com integração entre focus e frame (DELANO;
MANDRAKE, 2016, p. 7)
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Figura 7: integração da metáfora visual à cena (DELANO; MANDRAKE, 2016, p. 30)
Ainda na história “Triângulos infernais”, temos exemplos da mesma metáfora
relativa ao triângulo, mas sem que o objeto metafórico interaja com as personagens.
Vários triângulos aparecem nas cenas, apenas ilustrando, metaforicamente, o estado de
espírito da personagem. Eles aparecem sob a forma de uma estrada, na estampa de um
lenço, nos brincos de uma personagem secundária, na estrutura de uma ponte, no
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brinquedo de um parque, no pórtico de entrada de uma casa... À medida que a narrativa
progride, os triângulos vão rareando, demonstrando que as aflições da personagem vão
se desvanecendo.
Essa classificação é essencialmente formal, pois leva em consideração os
recursos de que se valem os criadores para veicular conteúdos metafóricos. De todo modo,
ela aponta para a existência de diferentes estratégias de leitura do quadrinho, conforme o
tipo de metáfora visual empregado.
Quando temos uma metáfora visual justaposta, o leitor se vê compelido a atribuir
algum sentido àquela massa imagética que, em rigor, não faz parte da história, da trama.
Aquilo aparece ali como ilustração acessória, como uma chave de leitura para a cena,
dando o tom requerido para a leitura da cena: cômico, dramático, épico etc.
Metáforas visuais integradas à cena, por outro lado, requerem mais perspicácia
do leitor. Uma leitura superficial pode mesmo deixá-las passar despercebidas. Nesses
casos, os objetos metafóricos podem ser lidos de duas formas, como denotação e como
conotação. A ave que a vereadora retalha em A guerra dos Robins é, simultaneamente,
mera ave a ser retalhada e índice das intenções da personagem. Eis aqui, portanto, uma
característica fundamental desse tipo de metáfora: o sentido figurado não proscreve a
interpretação mais literal. Frequentemente, elas coexistem. A compreensão do sentido
metafórico enriquece a leitura ou apreciação da obra em questão, mas uma leitura fluida
apenas fundada nos sentidos referenciais é normalmente possível.
Nessas metáforas em que o objeto metafórico integra-se à cena e relaciona-se
com os personagens, temos a possibilidade, já vista por Paes para as metáforas verbais,
de se estabelecer, entre as possibilidades de leitura, “uma ponte de mão dupla por onde a
surpresa da descoberta irá transitar comprazidamente num repetido ir e vir” (PAES, 1997,
p. 21).
Considerações finais
A noção de metáfora visual funda-se na concepção de que a metáfora não é
propriamente um fenômeno linguístico, mas uma operação cognitiva. Trata-se de uma
tentativa ou uma proposta de compreensão de determinada realidade. A constatação de
que tal realidade apresenta certas propriedades já detectadas, e mais bem compreendidas,
em outro domínio pode levar a uma compreensão mais profunda das experiências que
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temos. Ou seja, usamos um conhecimento já relativamente estruturado para construir
categorias que nos possibilitem a compreensão de um novo domínio.
É essa a função que a metáfora visual exerce nos quadrinhos. Sendo já uma
linguagem centrada na imagem (GROENSTEEN, 2015), os quadrinhos não se limitam a
apresentar as imagens de modo literal, apenas representando personagens e suas ações. O
imagético, muitas vezes, carrega uma segunda camada de significado, de modo a
expressar certos conteúdos de maneira sumamente econômica e com efeitos dramáticos
variados. O modo como esses significados são veiculados exige do leitor estratégias de
leitura diferenciadas em relação aos modos de ler textos de outros gêneros.
A leitura dos quadrinhos, assim, requer não apenas conhecimento da gramática
estrutural dessa linguagem, pela consideração de aspectos como as onomatopeias, os
balões e as metáforas visuais mais rotinizadas e convencionais. Daí a importância da
distinção, nos quadrinhos, entre metáfora de uso e metáfora de invenção, com a
consequente decisão teórica de concentrar a análise nesse segundo tipo. Dessa forma,
acreditamos dar alguma contribuição para o estudo das ricas possibilidades expressivas
dos quadrinhos como linguagem artística.
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