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MEUS MENINOS, OS OUTROS MENINOS

Meus Meninos e Outros Meninos por Odylo Costa, filho

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MEUS MENINOS, OS OUTROS MENINOS

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NOTA

Grande era a vontade que tinha meu pai de ver reunidos em livros os seus artigos. Meus Meninos, Os Outros Meninos, que fala de seus filhos, de menores abandonados e de deficientes, faz parte de seu plano para publicar uma coleção de seus recortes de jornal. Recolhemos juntos o material. Tinha uma duvida: publicar todas as crônicas? Fazer uma seleção? Ela era maior ainda em relação a este volume. Publicar tudo o que escrevera sobre a criança excepcional ou abandonada - ou fazer um novo livro? Acrescentar pequenas biografias, histórias exemplares? Sempre concluíamos que a redundância dos artigos vinha da permanência dos problemas e que a insistência das frases e idéias daria mais vigor a seu apelo. Os outros volumes da coleção ficaram esboçados. Ora ele os esquematizava por assunto - Casa Com Menino e Quintal, Capelas Imperfeitas- ora por épocas de sua vida - Encontro Matinal (Diário de Notícias), Jornal do Brasil - sem uma forma definitiva de apresentação. Acreditamos que começando os seus” Recortes de Jornal” por este livro, não mais no Ano Internacional da Criança (1979), como esperou ver, mas já agora no Ano da Pessoa Deficiente, estaremos continuando sua obra e sua luta pelos outros meninos.

Prefácio

UM GRITO DEIXADO POR ODYLO

“De um profundo sono despertei:

O mundo é profundo, mais profundo que o dia imagina.

Profunda é sua dor e a alegria é mais profunda que o sofrimento!

A dor diz: Passa.

Mas toda alegria quer uma profunda eternidade!”

(F. Nietzsche)

Não são apenas as piedades que, filhos ao colo, choram sua dor. Também os pais. Nestes artigos aqui reunidos, meu pai, Odylo Costa, filho, parece chorar seus filhos, em sua dor,trazê-los ao colo... Chorar Odylinho, aquele que “pelos outros tudo, e a vida, dera”, “por ser quem era e filho de quem era” como disse Manuel Bandeira; Odylinho, o menino de dezoito anos que se torna homem e anjo de repente, que tomba ao defender sua namorada Irene, num assalto de duas crianças; Odylinho que perde a vida num instantâneo momento.

Parece chorar Maria Aurora, que nasce com aparência sadia, cujo choro insistente e a moleira fechada logo serão sinais de profunda deficiência mental; Maria Aurora que não deixará nunca de ser bebê, embora seu corpo se alongue que sobrevive por doze anos - dois olhos pretos e um riso de beleza e alma, o braço apenas levantando para tentar tocar os seres que reconhece; Maria Aurora no final só ossos, deitadinha; Maria Aurora de quem a vida se esvai durante doze longos anos. Mas não. Odylo, meu pai, não chora seus filhos.

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Vence o pudor que o levaria a esconder-se em solidão, e mostra-se; mas não para chorar seus filhos. Para ele, os outros meninos são mais importantes. Mais importante que chorar Odylinho será tentar lutar em favor dos menores abandonados, para que sobre tantas outras crianças não aconteça a mesma tragédia de não terem direito a um lugar na sociedade. Mais importante que chorar Maria Autora será lutar pelos direitos dos deficientes, será gritar para que a sociedade e o governo compreendam seus direitos e os protejam.

Ninguém é culpado, mas todos somos responsáveis. Insistia. E preciso organizar a bondade nacional. Voltava a insistir. Será necessário, em primeiro lugar, mobilizar a opinião publica; depois, saber quantos são; depois conseguir do governo planos nacionais e duradouros, onde estejam previstos recursos e competências; aumentar as associações privadas, reuni-las numa entidade que as conjugue; conseguir do Congresso Nacional leis que definam e regulamentem os direitos dos necessitados e os deveres dos outros; depois será preciso que os próprios necessitados se organizem, dentro de suas possibilidades. Falta tudo! Vamos começar!

Nessa direção Odylo, meu pai, repetia sempre, teimoso como quem quebra pedra. A dor apenas aflorava num canto da boca, como pedira em um poema. Havia alegria (talvez não tenham se lembrado, em meio a tanto quanto terna e amigamente disseram dele, na sua morte), a alegria e o riso de quem acredita no pequeno grande milagre de cada dia. Já então acreditava num outro mundo, simples como este, mesas, cadeiras, cartas: “meus queridos”...

Todos os dois problemas, o dos menores abandonados e o dos deficientes - físicos ou mentais - não são problemas menores, não são problemas de assistencialismo, não são questões individuais. Envolvendo cada um mais de dez milhões de brasileiros (mais que

a população de muitos países ricos!), são questões de dignidade humana, e só serão resolvidos se se alargar o entendimento da questão social. São uma enorme força produtiva desperdiçada, num país que precisa tanto aumentar sua riqueza econômica e social. Mas são muito mais que isso: estão dentro daquele “direito de ser feliz” de que fala a declaração de independência norte-americana. Problemas que envolvem mais de vinte milhões de brasileiros não são problemas individuais nem menores. E dói nosso coração brasileiro a verdade que o canadense Jean Vanier dizia: “Uma nação se mede pela maneira como trata os seus pequenos.” Pois infelizmente não estamos preparados para tratar de tais questões no Brasil! Mesmo que haja os abnegados que há, as Apaes, as Pestalozzi e outros; mesmo que a Funabem já seja “um palmo de terra limpa” conquistada a duras penas, como dizia Odylo.

São problemas para serem resolvidos, não com medidas paliativas, menores, mas com soluções grandes, generosas e adequadas, com uso da imaginação, através de homens competentes e corajosos. Não com esforços individuais isolados, mas com estes se unindo como gotas que vão formar o oceano.

Meu pai Odylo costumava também lembrar que,como está na Bíblia, a casa dividida não pode prevalecer. E enquanto tais questões não forem resolvidas, enquanto houver menores nas ruas, enquanto houver cegos, surdos ou deficientes mentais escondidos nos quartos dos fundos, a nossa casa estará dividida. Não haverá-paz em nossa terra nem em nossa consciência.

Estes artigos são gritos de meu pai na noite (os dois braços em cruz, uma pedra em cada braço), depoimentos de uma luta contínua até seu fim, no limite de suas forças.

Que eles sejam para você, leitor, o que seu autor desejaria que

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fossem: uma luz de vela em cada consciência. Que você se volte para abandonados e deficientes lembrando-se de que são seus semelhantes, seus próximos, seus irmãos. Estenda o braço, dentro do seu alcance, naquele gesto apenas que for natural. Principalmente torne-se solidário, principalmente não tenha medo,principalmente não finja que não vê. Mesmo os olhos dos que sofrem ou têm medo são bonitos. O mundo precisa ser transformado, e isso pode ser feito através do amor.

Virgílio Costa

MEU MENINO

O menino já se julga um homem, mas ainda não no direito de escrever coisas suas. E o professor indicou um tema para a prova de francês. Por que escolheu essa profissão? Obediente, a mão vai traçando, no idioma estrangeiro, uma confissão de alma:

“Por que escolhi esta profissão?

Não escolhi nada. O que penso mais em fazer, hoje; é o curso de Sociologia, mas isso não quer dizer muito. E apenas o curso mais fácil, isto é, o mais acessível, o mais belo, o mais simpático. Atualmente amo os assuntos sociais. E então as promessas de amor são inevitáveis, mas não valem nada. Têm sua missão, são sinceras, exprimem uma verdade interior em relação ao ‘tempo’ interior. Pobres obstáculos ao duro e poderoso tempo.

Mas, em minha pobre idéia de felicidade, ela não está nas sabedorias, riquezas e outras ezas, naturalmente não está ainda numa verdade (que não me sinto maduro para parar e procurar), nem na mulher que há de vir, mas no trabalho, um trabalho para que somos feitos, que amamos, que nos dignifica, nosso papel na sociedade... E tão bom. E fora disto não me parece fácil ser feliz. É, pois, muito sério escolher.

Eu é que não sou muito sério. As idéias me parecem um pouco acessórias, não levam a nada, têm seus milhões de vantagens, mas me parecem um ‘ofício’ como a química. Sou muito moço, como lá diz o outro. Calma, que o Brasil é nosso.”

O mestre de inglês é um artista. Seus temas são sempre um toque para que a alma parta no sonho da adolescência. Ainda agora

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acaba apenas de indicar esta palavra: “Butterfly”. E a imaginação do adolescente voa na língua estrangeira:

“Penso que, se fôssemos simbolistas, deveríamos escrever borboleta com maiúscula. Porque borboletas não se comparam a nada, nem mesmo a vida ou alegria. Elas são estranhas — e estranhas como um escaravelho.

Antes de tudo, penso que as borboletas são um dos mais independentes animais que existem. São apanhadas por homens de óculos, líricos e ridículos, e cantadas por poetas provincianos, mas são livres em sua vida, nem mesmo sabemos onde ou quando comem folhas ou Fazem seu casulo. Há, certamente, sua comercialização, a indústria da seda, mas isso não tem importância. Sua independência é maior, é uma auto-suficiência — sua totalidade, essa é a palavra.

Sim, totalidade. Se eu fosse simbolista, escreveria borboleta com maiúscula. Elas não são, como a gente anda dizendo, pura alegria, pura beleza, ou pura fragilidade. Muitas vezes são estranhas e feias como um escaraveiho, e não há praga pior do que a lagarta.

Bem, eu ia dizer mais alguma coisa, mas me interromperam e agora não sei mais o quê. O que penso, talvez possa dizer com um pouco de autobiografia: me sinto criança quando apanho borboletas, me sinto adolescente quando penso que é um crime apanhar borboletas, e me sinto adulto quando sinto que perfeitamente normal, e tenho um discreto sorriso de superioridade.”

Borboletas... Uma das mais antigas recordações que dele guardo é de vê-lo, muito espigadinho, aos cinco anos, nos campos de Campo Maior, chão materno, atrás de borboletas. Ele conseguia apanhá-las com a mão, e logo as soltava. Visão entre flores campestres... Nos pequenos bolsos havia sapinhos, vivinhos da silva. E um dia levou na

mão, à avó, um presente: cinco ratinhos recém-nascidos, que chorou quando foram mortos.

Ficou sempre assim, íntimo da Natureza. Aos oito anos, numa das nossas viagens ao vale do Parnaíba, comunicou-me resolutamente que não pretendia continuar os estudos. Ia ser vaqueiro, O Mundoca não o era e não vivia satisfeito? Veio depois, aqui no Rio (mas já ele era maiorzinho), a fase da criação de peixes, só abandonada quando os aquários, subindo além da dezena, começavam a perturbar seus estudos com o pensamento na multiplicação dos peixinhos, e até daqueles multicores furta- cores que brigam conseguiu reproduzir em cativeiro. Tinha as mãos hábeis para criar e plantar, amava criar e, sobretudo, plantar. Uma rosa era, para ele, realmente, uma rosa. E pouco antes de morrer subiu ao nosso sítio na Serra do Brejal, numa jornada estafante de cinco horas de kombi — porque teve de ir e vir no mesmo dia — para ver se as quaresmeiras já estavam em flor. Ainda não. Mas pôde voltar — a tempo de vê-las no seu manto roxo.

O sítio era para ele um reencontro não só com a Natureza, mas com os simples, o pessoal que morava lá, os vizinhos; e certa vez, em que saiu para passear pelas montanhas, foi parar na casa de Antônio Raimundo, léguas distante, sentou-se à mesa humilde e partilhou do almoço. E tal era a sensação de plenitude que o mundo natural lhe dava por lá, que seus 16 anos quis festejá-los na casa ainda sem janelas nem portas, era agosto e gelado, dormiram uns na kombi (vocês se lembram, Eugênio, Gilberto, Bolinha, Maurício?).

Havia também seus companheiros do Clube do Porão — a garagem da nossa casa que ele transformara em clube, com o pomposo nome de Associação Atlética Estrela (a pequena entidade que se vira de repente sem sede e pedira sua ajuda), mas que foi para ele o democrático Clube do Porão, onde vinham dançar pobres e

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ricos, brancos e pretos, e que morreu para muita gente não perder exame no fim do ano.

Mas isso foi há muito, muito tempo. Começava a ser homem.

É certo que o Colégio, para ele, era sempre o São Bento, como a escola era sempre a Escola Santa Catarina. Mas no Colégio de Aplicação, onde fez o terceiro ano clássico, encontrou sua verdadeira turma, a ambição da inteligência que faz atravessar a noite acordado discutindo os livros, o mundo, e a reforma do mundo; e andou a levá-la ao sítio para compactas leituras de Carlos Drummond de Andrade e andanças em noite de luar no rumo do açude.

Mas não queria escrever por ora. Surpreendia-se, com o sorriso meio aberto que era o seu, quando o pai ou o tio lhe diziam que escrever já não tinha segredo para ele, os exercícios estavam encerrados, cabia jogar-se ao mar alto.

Os exercícios estavam completos: foi o que lhe mandou dizer o padrinho, Ribeiro Couto, a quem nunca escrevera e, de repente, sentiu necessidade de fazê-lo:

“Uma carta preciosa... me chega precisamente hoje, véspera de Natal, como um autêntico presente... não obstante as premuras do dia de hoje, desejei agradecer e responder a você no mesmo dia do recebimento.., pela alegria que elas me deram, pois verifico que V. tem talento de escritor, talento verdadeiro em tão verdes anos’’.

Não fazia muito tempo, num jantar em casa de Maria Rita, Gilberto Amado, surpreso diante das dúvidas levantadas sobre o destino futuro do rapaz, exclamara:

— Mas que discussão sem sentido! Ele vai ser escritor, é só o que ele vai ser!

Não chegou a ser. Mas ainda chegou a receber um primeiro salário de escritor, traduzindo um conto. Muito andarengo, saiu de O Cruzeiro, foi a pé ao Mercado das Flores, procurou para a mãe rosas cor-de-rosa, as que ela, o pai e ele preferiam.

— Mamãe (foi ao telefone), queria lhe levar umas flores com o primeiro dinheiro ganho com meu trabalho. Mas só acho rosas brancas e não estão bonitas.

— Meu filho, deixe para outro dia.

— Acho bom você querer logo senão você acaba perdendo seu presente.

Mas não trouxe. Foi a pé ao Mosteiro procurar confissão, não achou Dom Cirilo, seu amigo, professor de religião e confessor. Veio a pé às livrarias do centro da cidade (amava andar a pé pelas ruas do centro). Não achou o livro que queria. Encontrei-o exausto, às seis e meia. Descobrimos a kombi. Deitou-se no último banco, tirou os sapatos, pôs os pés para cima, na janela. O sinal fechou na esquina de Sete de Setembro e Gonçalves Dias, parava gente para comentar aquele pé descalço.

Fizera-se homem e era livre.

Sexta-feira Dom Cirilo lhe telefonou.

— Não, Dom Cirilo. Não tenho problema moral. Quero apenas conversar um pouco e me confessar. Não tenho pressa.

Combinaram para domingo.

Almoçou conosco sábado. Discutimos acaloradamente o que era melhor, se sorvete de graviola ou de cajazinha. Eu era pela graviola. Ele e a mãe pela cajazinha.

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Ia ficar no Rio, Irene que lhe deu tanta alegria e tanto o jogou (e ajudou) nas disciplinas da inteligência — cuidava da sua inscrição no concurso para umas vagas sobrevindas no Curso de Administração da Fundação Getúlio Vargas. Queria fazê-lo, embora já aprovado em dois vestibulares. Este ano iria ao Rio Grande do Norte, depois voltaria ao sítio por uns meses para viver no meio do povo e plantar árvores, talvez fosse à Espanha. Para o ano se transferiria para a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Havia também um roteiro a fazer para cinema sobre o assalto de Rio Bonito: compreensão e bondade para os gangsters jovens, uma história brasileira.

Estava adulto, pronto para a colheita.

Nessa tarde, fez o exame psicotécnico na Fundação.

Falou do passado, do presente, do futuro.

Escreveu (não sei as palavras exatas):

— Quero fazer bem aos outros. Quero morrer feliz. Nunca devagar.

Era meia-noite. Irene amparou seu corpo, caiu ao chão de Santa Teresa, chão que amava. Tomou-o um anjo nos braços, sua alma subiu aos céus.

Ele não tinha pressa, com seu sorriso nunca-de- todo-aberto. Deus tivera.

O Cruzeiro, 6.4.1963

A MORTE, A POESIA E O MENINO

Era outro o título da crônica do poeta Manuel Bandeira. Mas nela havia, entre outros, um verso, um lindo verso que se ajustava às graças da invenção artística com que o editor de arte, Ziraldo, esse raro artista, está renovando a paginação de O Cruzeiro. Telefonei a Bandeira. Seu “Começo de Conversa” passou então, a intitular-se

“Por ser quem era e filho de quem era”: mas, não tardou, o improviso se desenhou no papel, declanchado pelo primeiro verso, e o poeta nos remeteu este soneto:

improviso para Odylo e Nazareth

Por ser quem era e filho de quem era, Eu queria-lhe bem. Pouco eu sabia Do que no coração ele trazia. Era discreto. A sua primavera Não gritava. Tranquilo em sua espera, Não se apressava, O que é que pretendia? Fazer o bem aos outros, e o fazia: Pelos que amava tudo, e a vida, dera.

E a noite veio em que, quando contente Findava ele o seu dia, a sorte fera Lhe surgiu de improviso pela frente. E o que pelos que amava a vida dera, Pela que amava a deu valentemente, Por ser quem era e filho de quem era.

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***

Digo-lhes uma coisa. Eu levo a minha dor devagarinho: não me faço de tolo com ela, isso jamais. Para que ensaiar rebeldias inúteis? Trato-a de leve, bem de leve, de mãos leves (para que ela me deixe viver, cuidar dos outros). E me lembro do sonho de Joaquim Nabuco, o Papa Leão XIII velhinho, velhinho, num lugar do infinito, falando-lhe, e ele: “— Como devo tratar Vossa Santidade?” E o Papa: — “Chame-me Vossa Dor...” Com a Dor (como com o Amor) não se brinca. Por isso, não tento fugir a ela, nem ao menos escrever sobre o assunto. Pensar, penso: penso nos outros, nos que vivem sob o meu teto e nos que não têm teto para viver debaixo dele... E releio, muitas vezes, a prova de exame psicotécnico que às cinco e meia da tarde de sábado, 9 de março de 1963, foi entregue nas mãos do Professor Silveira Pontual, na Fundação Getúlio Vargas, pelo candidato ao Curso de Administração nº 83 Odylo de Moura Costa, neto:

“Meu futuro

Preferia falar agora da minha vida atual. Dado, porém, que ela está bastante voltada para o futuro, creio que não seria justo abusar do titulo. De qualquer modo, vou ter que escolher com este vestibular o modo de realizar meus planos (um tanto vagos, ainda) de ajudar os outros. Se farei isto no interior, aqui ou no estrangeiro, numa microestrutura ou numa macroestrutura, é o que me compete resolver esta semana. Quanto ao mais, tenho conceitos mais definidos: quero comer frutas brasileiras (ou aqui, no quintal da minha casa, ou num país frio, com o paladar aguçado pela saudade). Ter filhos, certamente — provavelmente, muitos. As filhas ensinarei a cozinhar divinamente — e renda do Norte. E acabar de ler os grandes livros. Meu último desejo: morrer feliz, nunca devagar.”

Disse-me o Prof. Silveira Pontual:

— A letra é de alguém tranquilo, de um manso. Foi a opção da honra que exaltou.

Disse-me alguém, que o conheceu e amou:

— Ele não era valente. Ele era um bravo.

***

Poderei arrumar em versos essa última prova, desentranhar o poema dessa prosa de adeus, mas para quê?

Ai, meu filho, meu filho, o que mais dói, e me tira o sono das noites, é tão pouco: a leve carga da esperança que Deus me arrancou dos ombros.

O Cruzeiro, 11.5.1963

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OS OUTROS MENINOS OS OUTROS MENINOS

Deixem-me dizer-lhes. A todos. À Nação inteira. Tenho hoje uma condição moral que me permite falar. Sou pai do meu filho. Essa autoridade moral é maior do que qualquer prestígio intelectual que os pobres êxitos de uma vida inteira possam me ter dado. Pois um pequeno herói e mártir vale mais do que cem velhos jornalistas.

E eis o que quero dizer.

O que desonra uma Nação não é que um moço de dezoito anos já seja assassinado defendendo sua dignidade humana, seu bem humano, a vida que lhe estava próxima, a menina de quem estava enamorado.

Esse gesto heróico — resistir — tem um sentido e redime uma geração.

Não foi por acaso que um dos seus companheiros, um dos que ele admirava, José Guilherme Merquior, me disse esta palavra de consolo: “Odylinho, símbolo da minha geração.”

Já agora ninguém dirá que essa geração é dos playboys que se dissipam sem amor na inquietação bruta da roleta paulista.

Não. A geração de Odylo Costa, neto, não é a dos que mancham a pureza das virgens, mas dos que a defendem à custa da própria vida.

Essa geração sabe o que vale resistir. Vai resistir. E se a resistência se tornar coletiva e se organizar nos planaltos da vida brasileira, vai salvar a Nação. Vai salvá-la porque vai honrá-la.

Porque o que desonra uma Nação não é que o rapaz de dezoito anos tenha morrido. E que ele morreu nas mãos de um menino, que

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aos onze anos praticou o primeiro furto e aos quinze se tinge com o sangue da primeira morte.

E, entre os onze e os quinze, vinte vezes entrou e saiu do SAM, e conheceu todas as Delegacias e viu a cara de todos os policiais.

Para acabar com esta vergonha é preciso que esta Nação inteira se levante e se una em defesa da sua própria sobrevivência que é a sobrevivência da sua mocidade.

Estamos brincando com fogo, pensando que a casa dividida pode durar indefinidamente.

Ah, minha gente, faz cento e cinquenta anos que José Bonifácio fundava esta Nação e escrevia: “No Brasil há um luxo grosseiro em contraste com a infinita privação de coisas necessárias.”

Pois, século e meio depois, não conseguimos resolver este problema da nossa estrutura moral.

Nem mesmo conseguimos organizar a bondade, ou pelo menos organizá-la nas proporções que nos permitissem uma doçura de viver não construída sobre a escravidão do preto ou sobre o sofrimento do próximo.

No plano do material, fizemos muito. Fizemos até demais. Meu mestre Roquette Pinto costumava citar estes exemplos da energia criadora do brasileiro; a epopéia bandeirante, a ocupação da Amazônia, a conquista da Rondônia. Eu acrescentaria a Noroeste, Volta Redonda, o sistema brasileiro de petróleo. Um dia invertemos os rios do planalto paulista, jogamos as águas serra abaixo, fizemos uma civilização em S. Paulo. Outro dia — já fartos de ter, em cinquenta anos, transformado em metrópoles de milhões cidades docemente estudantis e provincianas do princípio do século — construímos uma

capital no oco do Mundo. E depois de ter domado a cachoeira de Paulo Afonso (eu vi exposta ao sol a pedra que jazia debaixo da água há milhares e milhares de anos), investimos contra o Rio Grande e o estamos mudando em força tecnicamente útil aos homens. Tudo isto é belo, a beleza do trabalho humano, e não nos falta até beleza eterna: Ouro Preto, São Luís do Maranhão, Salvador da Bahia de Todos os Santos.

Mas em tudo isso esquecíamos o resto. A Nação continua dividida. Negamos o preconceito de cor como se negá-lo bastasse para acabá-lo. E deixamos que o contraste entre a vida da cidade e a vida do campo se agravasse tanto que, meses antes de morrer, Roquette me dizia que esse era o principal problema brasileiro.

Não soubemos unir moralmente a Nação.

E ainda vêm me dizer que é preciso ganhar a guerra contra as favelas (ou contra os bambambãs das favelas) quando o que é preciso é acabar com a guerra. Acabar com os bambambãs das favelas é necessário, é mesmo indispensável, mas será inoperante enquanto não soubermos acabar com a miséria das favelas.

A morte de Odylo Costa, neto, pôs, de repente, por efeito do seu heroísmo e da sua pureza, pela resistência do anjo, que é uma das faces do homem, ao demônio, que é a outra face, uma das chagas dessa divisão.

Seu drama é um espelho de três faces.

A primeira pertence ao Eterno. É o mistério do Mal.

O Mal é uma coordenada da liberdade do Homem. Existirá enquanto o Homem existir até o terrível dia do julgamento.

A segunda pertence ao efêmero. É o problema policial. Isto pode ser

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resolvido, deve ser resolvido, tem soluções fáceis, orçamentariamente possíveis e tecnicamente conhecidas.

A terceira está na contingência humana e é a culpa dos pais.

Dos pais que não podem ou não sabem olhar pelos seus filhos. Dos pais que só podem ou só sabem olhar pelos seus filhos — e esquecem os alheios, centenas e centenas de milhares, desamparados que podem ser salvos, delinquentes que podem ser recuperados ou, quando irrecuperáveis, devem ser impedidos de fazer mal ao próximo e a si mesmos. E entre esses delinquentes, aí sim, cabe incluir os playboys; mas Deus que tenha piedade do homem que teve a liberdade nas mãos e, por muito rico, não hesitou em dar ao filho o automóvel com que ele rolou de olhos vendados pela rua e foi matar a moça que conversava na calçada. E a humildade não há de ser apenas desse que era rico e se fez monstro, mas do pobre que se cristalizou no ressentimento e no ódio e permitiu que o filho, em vez de se curvar ao destino, buscasse as soluções facílimas do vício e do crime, usando para o mal a liberdade que vem de Deus e recusando a pobreza que Deus partilhou.

Do fundo da minha dor humana, nestes dias que se abateram sobre um homem que sempre pensou mais nos outros do que em si, eu me julgo no direito de, como pai de Odylo Costa, neto, o menino que morreu como homem em defesa da sua hombridade de homem, da sua humanidade de homem, dirigir um apelo aos milhares de filhos da mesma Pátria que pensaram com emoção no sacrifício de meu filho. Demos um sentido a esse sacrifício, fruto de bem humano, a essa pobre semente de sangue humano. Olhemos para os outros meninos. Salvemos os outros meninos.

O Cruzeiro, 6.4.1963

CONVERSA DE PAI SOBRE FILHOS

O leitor há de permitir que, voltando a escrever neste Jornal cuja face ajudei a mudar, fale primeiro de mim. De mim? Também dos outros. De um tema que não é só meu, mas de quem seja pai ou por acaso tenha descansado em filho alheio olhar de solidariedade humana.

Saberá o leitor que eu tinha, entre meus nove filhos (Deus me dera essa graça de nove rostos em torno à nossa mesa), um que trazia o meu nome.

Era o mais velho dos meus homens. Tinha dezoito anos. Nele se fundiam as qualidades dos pais, sem os seus defeitos, e, através dos pais, as das velhas gentes nortistas, que nos pais aportavam num lento caminhar pelo tempo da labuta rural para a convivência urbana. Tinha a minha teimosia, mas a doçura materna; e o dom da ironia, uma ironia fina e funda, mas não feroz, que lhe viera do avô paterno e em mim a vida embotara, se deixava banhar nele por uma estranha bondade, ainda mais universal e comunicativa do que a de seus avós. Intelectualmente, ao atravessar a adolescência, estava pleno, completo, formado: nada mais tinha a aprender nas artes do dizer, e tenho sobre isso o testemunho de Prudente de Morais, neto, surpreso diante de farrapos de cartas, únicas relíquias de sua mão que nos restam. Espiritualmente, sua comunicação na fé não tinha problemas, ele o repetiu ao amigo, mestre e confessor, quando não podia prever um futuro de horas depois. Socialmente, era da raça dos inconformados e, por isso, dos líderes; e duas provas nos ficaram desse clima entre ele e seus amigos: sua camisa de colegial, em que no dia da conclusão do curso os companheiros de geração deixaram escritas as dedicatórias da fraternidade, e o prolongamento, na nossa casa, da amizade

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desses rapazes e moças, flores do Brasil. Moralmente, a honra era sua atmosfera natural, dentro dela se movia fácil, distraído, sorridente, e sua morte, ai de mim, o demonstrou.

Pois, mataram-no. Não era soldado em guerra estrangeira nem militante em luta revolucionária. Não estava em desastre de trem, queda de avião ou cataclismo da natureza. Usava apenas esse humilde direito civil, passear com a namorada, antes da meia-noite, no bairro lírico de Santa Teresa, onde fora criado e que amava. Era um estudante de blusão com a namorada, falavam coisas simples, quando o mal lhe surgiu pela frente, e desarmado reagiu diante de um revólver, no sacrifício e na resistência. Defender a honra, própria e alheia, vale morrer? Ele não hesitou um segundo na opção.

Não entregou a modesta quantia que no bolso lhe restava do primeiro salário. E não entregou a moça que dias antes, na dedicatória de um livro, chamava de “minha vida”. Deu a vida.

Não escrevo isto para comover, pedir a dor dos outros sobre a minha e dos meus. Bem sei que a lição dos tempos já me devia ter consolado. Lembro-me, porém, da história de Sólon que Unamuno recorda no El Sentimento Trágico de la Vida. Sólon chorava o filho perdido, um concidadão chegou-se ao filósofo: — Por que choras, Sólon, se as lágrimas não te restituem o filho perdido? — Justamente por isso é que choro, respondeu Sólon, porque as lágrimas não me restituem meu filho perdido.

A dor — como a qualquer outro pai em hora assim amarga — foi enorme e me encontrou despreparado para ela, mas não fiz dela literatura. Pelo contrário. Zelei para que a revista, onde então trabalhava, ao refletir a indignação dos meus companheiros, mantivesse a sobriedade que lhe impunha a circunstância de ser a principal publicação do gênero na América Latina. Tal era o meu

acabrunhamento que não tive então (e não tenho até hoje) a coragem material de agradecer às manifestações que em avalanche recebi, e algumas eram de antigos adversários em lutas ásperas; mas do fundo do desespero que me imobilizava clamei pedindo que salvassem os outros meninos. Porque o tiro que desgraçadamente matara o meu filho fora de um outro rapaz, mais novo do que ele, que aos onze anos cometera o primeiro furto e aos quinze se marcava com a primeira morte.

E no destino desse assassino se refletiam as condenações que pesavam sobre o futuro de centenas de milhares de brasileiros: só no Estado da Guanabara calcula-se em trezentos mil o número dos que a lei enquadra na expressão, inadequada, mas persistente de “menores abandonados”.

Não quis nem espero para o meu filho, herói e mártir, a glória dos intercessores, e deliberadamente desencorajei as cristalizações sentimentais em torno do drama, mas desejei ligar seu nome a alguma coisa de belo e de útil, fiel à mensagem que nos deixara, na sua última prova estudantil, na tarde que antecedera a seu sacrifício.

Nesse espírito fomos, eu e minha mulher, agradecer a Carlos Lacerda, Governador da Guanabara, meu antigo companheiro na direção da Tribuna da Imprensa, as visitas de amizade que ele e a esposa nos fizeram. Tinha dois pedidos a dirigir-lhes. Não mudar o nome de ruas antigas do bairro nem perpetuar em mármore ou bronze a lembrança da cena de horror. Mas Santa Tereza era um bairro sem jardins, e os outros meninos precisavam de jardins: pedi-lhe que abrisse uma praça em Santa Teresa. Não havia, também, ali, um centro que desse ocupação aos menores que a proibição legal ou as exigências do serviço militar mantêm sem emprego e as deficiências do ensino profissional deixam sem ofício: pedi-lhe que ajudasse a

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criar, em Santa Teresa, um centro de comunidade, ao mesmo tempo núcleo ocupacional, escola de artes, serviço de recreação educativa. Encaminhou-me o Governador, com sua prévia aprovação, ao Administrador de Santa Teresa, Dr. Filipe Cardoso Filho, que, com inteligente compreensão e amor ao burgo de sua infância, onde seu pai é médico universal de pobres e ricos, fez desapropriar um terreno naquele propósito generoso, mas ainda não pôde iniciar as obras necessárias.

Ao Sr. João Goulart, Presidente da República e meu antigo adversário, fui agradecer seu telegrama de pêsames, acompanhado por Dona Maria Celeste Flôres da Cunha. Guiava-nos, ao lado do meu dever de gentileza, a decisão de fazer-lhe um apelo no sentido de tomar a si a solução do problema do menor em termos nacionais. O então Presidente da República foi atencioso e correto. Ali mesmo dispôs-se a criar um grupo de trabalho para sugerir as providências a solicitar do Legislativo, e propôs as medidas de emergência que dependessem do Executivo. O eminente brasileiro João Mangabeira, então Ministro da Justiça, concretizou a recomendação presidencial, que coincidia com seu próprio propósito, escolhendo, entre as figuras lembradas, sem levar em conta opiniões políticas, uma comissão de alto nível com uma única exceção, a minha própria, constituída de veteranos e técnicos do assunto.

Presidia-a o então Diretor do SAM, Eduardo Bartlett James. Integravam-na Dom Cândido Padim, Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro; Dona Helena Iraci Junqueira, a quem um profundo conhecimento e uma lida íntima e constante com o problema em São Paulo deram uma autoridade sem contraste; Dona Lúcia Silva Araújo, na dupla condição de técnica do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e de conhecedora das soluções dadas na Bahia;

Luis Carlos Mancini, ex-Secretário de Administração da Guanabara, veterano de serviços sociais no País, ainda agora contratado pela OEA para funções sociais no plano internacional; Pedro José Meireles Vieira, autor de estudos e projetos especializados e, mais do que isso, Presidente e relator do inquérito do Governo Jânio Quadros sobre o SAM, inquérito desdobrado em 19 volumes, o último dos quais é a síntese de uma situação de inferno sobre a terra, em chão brasileiro; Dona Maria Celeste Flôres da Cunha, Vice-presidente da Ação Social Arquidiocesana, teimosa criatura que não perde a esperança, e por fim o jornalista que perdera o filho nas mãos de menores delinquentes. E a Comissão, com o conhecimento e aprovação do Ministro João Mangabeira, convocou para aconselhá-la juridicamente outro eminente brasileiro, o Sr. Prado Kelly, cujo projeto de criação do Instituto Nacional do Menor, encaminhado ao Congresso Nacional em 1955 pelo Presidente Café Filho, não foi até hoje objeto de decisão legislativa.

Ao aproximar-se da conclusão a nossa tarefa, o Sr. João Mangabeira foi substituído, no Ministério da justiça, pelo Sr. Abelardo Jurema. Entre a posse deste e a entrega do nosso trabalho sobreveio um fato inesperado e triste: comprimido ao mesmo tempo pelos cortes radicais na execução orçamentária e pela realidade brutal dos internados (e internadas) do SAM ameaçados de fome ou despejo, Eduardo Bartlett James, que dirigia o SAM com amor pelos pequenos e honestidade na ação, morreu de enfarte, sonhando, nos delírios da agonia, com verbas e destinos.

A 3 de setembro de 1963 entregamos, oficialmente, o projeto ao Ministro Abelardo Jurema, que já conhecia antes e de quem ouvimos expressões de grande apreço. Passaram-se setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro, março. Quando o Governo

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foi deposto a 1º de abril, o trabalho desinteressado daquela equipe de brasileiros flutuava nas antecâmaras jurídicas do Ministério da Justiça para gáudio da máquina burocrática do SAM, assim sobrevivente a mais uma tentativa de reformar estruturas e renovar métodos.

Não sei se o nosso anteprojeto concretizava a melhor solução.

Propúnhamos criar uma Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, mantida por uma percentagem sobre a receita tributária da União e destinada a formular e implantar uma política nacional do menor. Ela estudaria o problema. Planejaria as soluções. Orientaria, coordenaria e fiscalizaria as entidades que executassem essa política, a seu cargo direto apenas onde já houvesse serviços do SAM, a ser absorvido e extinto. Seria organizada em moldes de fundação de direito privado e dirigida por um Conselho Nacional, de que a União participaria mas onde estariam decisivamente representadas as instituições nacionais em que a bondade dos brasileiros se organizou para a ação social.

Não tenho queixas pessoais do Sr. Abelardo Jurema. Mas não posso deixar de repetir aqui o que disse, falando a Gilson Amado, na sua admirável Universidade do Ar, quando jurema ainda era Ministro: podia ele ter recusado in limine o trabalho, poderia tê-lo encaminhado, poderia ter nomeado outra comissão para revê-lo ou substitui-lo. Mas nada disso fez.

Acrescentarei que a solução proposta não deve ser de todo inadequada, menos pelos responsáveis por ela do que pelos aplausos que teve, e citarei três nomes ilustres, de posição ideológica diversa: a escritora Adalgisa Néri, o jurista Caio Tácito, o Professor Maurício Joppert da Silva.

Conto estas coisas constrangido. Não quero com a minha

dor particular pôr uma sombra, por mais leve, nas esperanças gerais desta hora. Mas não considero o problema pessoal. Se o desespero de que não conseguimos emergir ainda (apesar de tantas solidariedades, desde os correspondentes desconhecidos até o amigo que nos cedeu sua moradia em frente ao mar para a terapêutica das presenças oceânicas), é só meu e dos meus, o drama da infância e da adolescência desassistidas, “abandonadas”, para usar a palavra da lei, juridicamente imperfeita mas impregnada de grande verdade verbal, esse drama é um problema nacional.

Por outro lado, se, neste seu primeiro domingo presidencial, entre tanta palavra maior, a curiosidade do Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco se viesse fixar neste desabafo de um brasileiro a quem tiraram uma das razões de viver e que mal sabe como conseguiu sobreviver à carga de tanta esperança desfeita, eu lhe diria:

— Presidente, mande desenterrar o anteprojeto que cria a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. Peça ao eminente brasileiro Milton Campos, seu Ministro da Justiça, que o examine. Se parecer adequada a solução, encaminhe-a ao Congresso Nacional com caráter de urgência. Caso contrário, emende-a, ou nomeie nova comissão para, em prazo curto e certo, apresentar novo estudo. Mas creia Vossa Excelência: não há problema mais grave do que esse nesta Pátria. Porque este é o problema da sua sobrevivência, isto é, da sobrevivência do seu povo e da unidade moral das novas gerações de brasileiros.

Jornal do Brasil, 19.4.1964

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CONFISSÃO DE UM DONO-DE-ASSUNTO DESENGANADO

Leio que foram presos em Copacabana cineastas e adolescentes, empenhados nesta inusitada tarefa: fazer um filme sobre a situação dos menores abandonados, pondo em contraste a miséria das favelas com o luxo dos palácios. O Juiz de Menores autorizara o trabalho de meninos e rapazes, o Administrador Regional a filmagem: mas um morador enxergou propósitos subversivos na empreitada, e os que filmavam e os que eram filmados lá respondem a inquérito, por ora ainda não policial- militar, mas quem está livre de vir a enfrentar a Justiça Fardada?

Ando com certo receio de ficar marcado como “dono-de-assunto” nos jornais — uma das piores coisas que pode acontecer a um cristão neste País, provocando duas incomodidades: telefonemas a horas desencontradas pedindo palpite e um sorriso indisfarçável que raspa a cara da gente quando se empurra a porta das redações. Conheci muitas vezes esse sorriso, quando começava minha vida de jornalista; e eu próprio muitas vezes não consegui contê-lo. Nem lhe faltava calor humano ou simpatia, mas já se adivinhava,ao ver entrar alguém, no geral ilustre e puro de coração, que daquele mato sairiam remédios nacionais. Cada um cristalizava problemas e soluções num só problema, com uma solução única. O Brasil se salvaria se acabasse a saúva, a lepra ou a tuberculose... Houve o tempo da lombriga, mais geral (usemos sapatos) e o do esquistossomo, mais peculiar (matemos caracóis). Se se ligasse o Atlântico ao Pacífico as messes ondulariam, as estradas abraçariam um novo destino continental... Mas... e se não viesse a reforma agrária? Havia, contudo, que atentar para o cooperativismo e suas benesses... No fundo, sempre simpatizei com esses apóstolos, embora de um deles recebesse certa ocasião

indignado protesto porque, num jantar por mim noticiado, se bebera vinho... Por sinal que o meu correspondente não falava “vinho”, mas

“álcool”, de que era inimigo jurado, mal sabendo que se tratara de amena dissipação boêmia, naqueles tempos em que uma garrafa de Graves se vendia a treze mil réis, segundo vejo por um rótulo, datado, nas costas, pelos presentes, de 1939.

Receio estar caindo nesse mesmo destino, e tremo dos risos de mangação e cansaço quando, mal comece a falar, logo se adivinhe que aí vem o angustiante-destino- do-menor-abandonado. Mas só no Estado da Guanabara há mais de trezentos mil, dizem-me que talvez quatrocentos mil, meninos e adolescentes desassistidos; e não creio que baste, para salvá-los, proibir filmes, brasileiros, suecos ou afegãos, sobre o assunto.

Bem sei, também, que esse problema desafia as soluções. Bem sei que dele são coordenadas a miséria, a desagregação da família, a vida das grandes cidades, a tenuidade econômica do país. Conheço os equívocos da lei que proíbe o trabalho ao menor de quatorze anos, e o dificulta ao menor de dezoito sujeitando-o à expectativa do serviço militar e cobrindo-o com a sufocante proteção da igualdade de salários entre maiores e menores não aprendizes. Não ignoro que há questões maiores, como a inflação, cuidados maiores, como a moeda, causas maiores, como o desenvolvimento. Mas afirmo que não basta virar a cara quando o pretinho vende drops na fila do cinema pensando que seu drama não se resolve pela caridade individual e que Dona Sandra está cuidando dele. E preciso fazer mais, fazer alguma coisa de concreto, quando mais não seja para honrar a bondade brasileira que aqui e ali, graças a alguns homens e mulheres de exceção, conseguiu vencer a nossa dispersividade e organizar-se, mas luta com a desordem geral e a desatenção da maioria.

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Quando perdi o filho que iluminara meu nome em sua curta vida, disse a mim próprio e escrevi aos outros:

“— E terrível perder um filho, e sobretudo quando não se pode lutar para salvá-lo; mas é menos terrível quando se pensa que morreu em defesa da honra, própria e alheia.” Acrescentei: “— Não é esse episódio que desonra a cidade e a nação, sim que o assassino tenha sido outro menino, que aos onze cometeu o primeiro furto, aos quinze faz a primeira morte, e entre os onze e os quinze vinte vezes entrou e saiu do SAM.”

E me prometi dar tudo para ajudar na solução do problema.

Não dei. Para evitar espetaculosidade na dor, por mal entendido respeito humano, para não querer literatura ou publicidade à custa do meu sofrimento, e da solidariedade alheia, para não insistir nas formulações do sentimento, e também porque precisava sobreviver para os filhos que me restavam, não cobri tanto quanto necessário a cabeça de cinzas, nem rasguei as vestes para perturbar, na medida necessária, as alegrias gerais com um tormento que não era só meu. Não fiz mais do que podia, e era meu dever fazer mais do que podia.

Sinceramente, todavia, não creio que, embora tivesse enfrentado de peito mais aberto os sorrisos apiedados dos companheiros de profissão, tivesse conseguido mover as pedras. O assunto tem caveira de burro. Desde que chegou ao Ministério da Justiça, tomou-o a si o grande e bom brasileiro Milton Campos. Ressuscitou o anteprojeto que criava a Fundação Nacional do Bem- Estar do Menor. Fê-lo examinar (e aprovar) pelo eminente deputado Pedro Aleixo, que bem conhece as tarefas assistenciais, em cuja prática seu coração tem arrastado muito de suas rendas. Pois apesar de todo o empenho de Milton Campos as autoridades fiscais ainda não concluíram o estudo da matéria.

No fundo, quem tem razão é quem proibiu o filme de Copacabana. Vamos fazer um Brasil de cartão-postal, e sobretudo não percamos o sono com assuntos eu ia escrever menores, mas não tenho coragem de fazê-lo; pareceria trocadilho, e ainda seria mais fácil rirem de mim.

Jornal do Brasil, 11.8.1964

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NÃO SE RESOLVE O PROBLEMA DO MENOR COM UMA FUNDAÇÃO MENDIGA

Muitas vezes, nesta vida de jornal, a gente não sabe como principiar. Mas hoje não o sei de todo.

Acontece que o Congresso deve estar aprovando, em votação final, o projeto que cria a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor. E eu, que tanto insisti para que o trabalho, elaborado por uma comissão de que participei, fosse discutido, venho dizer que não. Que é inútil. Que como está o que se cria é uma Fundação mendiga. E melhor fora não haver.

Não sei se pensarão assim meus companheiros de comissão. Eu os respeito e estimo, mas não me posso calar. Tenho um dever a cumprir. Curvo a cabeça, cerro os dentes — e o cumpro, embora me doa.

Essa Fundação mendiga não resolverá o problema.

O Problema de termos duas Nações, a dos que se educam e a dos que se perdem.

Dentro dele, a delinquência juvenil, que tanto fere a vista, é apenas um aspecto, e aspecto universal. Há pouco, o Sr. John Winters, da Polícia de Washington, dizia que o mais acabrunhante nos crimes de lá é que um terço deles, mesmo roubo e morte, cometem-no menores. A delinquência juvenil é o caco de vidro, que rasga o pé descalço. Dentro do chão está a garrafa quebrada.

Mas que consolo isto nos dá? Não carecemos de consolo, mas de solução.

A Comissão de que fiz parte não julgou que o mundo nascesse com ela. Olhou para trás, o que às vezes é bom. E consolidou, melhorando e sintetizando, o que um decênio de estudos e projetos argamassara na experiência e na meditação.

Um dos pontos mais debatidos foi o da fonte de recursos para a Fundação. Os anteprojetos anteriores, tanto o que criava o Instituto de Assistência e Proteção à Família (INAPFAM) como o que criava o Instituto Nacional de Assistência ao Menor (INAM), adotavam um sistema misto: garantiam à nova entidade 0,5% da renda tributária da União, mais% do Fundo Nacional do Ensino Médio e% do Fundo Nacional do Ensino Primário; e estabeleciam uma taxa de 0,02% sobre as operações bancárias.

O exemplo de São Paulo era o da inovação fiscal: a Lei nº 3.738, de janeiro de 1957, criara, ali, o Fundo de Assistência ao Menor, e para ele um adicional de 20% ao imposto resultante de transmissões superiores a 3 milhões de cruzeiros.

Faltava-nos a imaginação fazendária bastante para inventar um tributo novo.

E pareceu-nos discutível a constitucionalidade da participação nos Fundos Nacionais de Ensino, inviável (e quanto!) uma taxa sobre operações bancárias, adequada à garantia da continuidade orçamentária, através da vinculação, num limite mínimo, da receita tributária da União.

Propusemos 3%. Era um mínimo.

Estávamos convencidos de que o SAM falhara por muitas causas, mas sobretudo por ser solução menor para um problema maior. Muitos dos seus dirigentes eram dos melhores brasileiros, capazes, honestos, devotados. Mas a desgraça das verbas! Vai daí homens

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como Eduardo Bartlett James — e faço dele um símbolo porque está morto, e morreu de mãos limpas, delirando com os destinos dos mais pequenos — tinham de sair a esmolar na hora da execução orçamentária.

Propusemos 3 %.

Vieram os dias de abril. Milton Campos, Ministro da Justiça, acreditou na comissão, que acreditou nele.

E o projeto ressurgiu. Mas não é esse.

Como não é? E quase todo.

Mas se não fosse o “quase”, o mundo era outro.

O projeto é o nosso, e não é.

A interferência do Ministro Otávio Bulhões, que nos ouviu uma tarde, a mim e a D Maria Celeste Flôres da Cunha, num silêncio mesclado de sorriso entreaberto e pasmo triste, vulnerou a Fundação no ponto nevrálgico. Tornou-a tão impotente quanto o SAM.

Pois sem dinheiro Cervantes pôde escrever o D. Quixote. Sem dinheiro Van Gogh pôde pintar a pontezinha de Arles. Mas sem dinheiro não se resolvem problemas sociais.

O Ministro Otávio Bulhões, num gesto que não faz honra à sua inteligência, retirou do projeto a vinculação de 3 % da receita federal às tarefas — realmente nacionais — da Fundação. E fez esta coisa enorme: enumerou entre as fontes de receita “as dotações que a União se obriga anualmente a consignar no orçamento”, redundando no que o mesmo artigo dizia em item anterior: “as dotações orçamentárias e subvenções da União, dos Estados e Municípios...”

O Ministro Bulhões quedou em paz. Mas essa Fundação

desgarantida financeiramente é uma Fundação mendiga.

Que vai fazer? Vestir belas roupas, por fora bela o céu, mas sem dinheiro não daremos um passo não bela viola, por dentro pão bolorento, as velhas verbas e o patrimônio tão cobiçado e em boa hora imobilizado do SAM.

E sairá pedindo esmola.

Os Estados lhe dirão que a União é rica, não deu, por que darão eles? E os Municípios, que mal põem a mira na sua quota do Imposto de Renda? E os participantes: “Nestes tempos de extorsão fiscal, nos enforca o sem-jeito de tanto imposto, a pagar depressa depressa, agorinha mesmo, antes da correção monetária. A União estoura de dinheiro, não dá, não damos.” E chorarão no ombro da Fundação, mas choro não enche barriga, e a mendiga terá de inventar outra freguesia. Restam os fundos internacionais de socorro, mas não creio que brasileiro algum pense em pôr anúncio em jornal inglês ou filme na TV americana suplicando, para os meninos e adolescentes seus patrícios, a migalha da mesa do rico.

Quando, em 1879, Leôncio de Carvalho, Ministro do Império, fazia mais uma das reformas com que penodicamente se salva a Educação neste País, Joaquim Nabuco lhe disse “... o nobre Ministro se convença, sem dinheiro pode S. Exª fazer as reformas que quiser, mas nunca a instrução dará um passo”. Compreendo muito bem as esperanças com que os meus companheiros e os melhores homens do Governo e do Congresso vêem a possibilidade de mudança de objetivos e de métodos, a integração nos conselhos das entidades representativas da comunidade moral, a possibilidade de planejamento pelos comandos capazes e de fiscalização das subvenções, subordinando-as a esse planejamento. Mas não me iludo. Não seria honesto comigo mesmo e com meu próprio sangue, derramado no sacrifício de meu

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filho, se calasse isto:

— Não se resolve o problema do menor com uma Fundação mendiga. Pode-se fazer toda reforma, sonhar mas sem dinheiro não daremos um passo, não resgataremos o inferno aqui debaixo.

Jornal do Brasil, 17.11.1964

DO MEU AMARGO NATAL UMA NOVA ESPERANÇA

Tive um Natal amargo este ano.

E não sei falar de outra coisa.

A rigor, preferia o silêncio. Mas falo.

Não por mim. Sou um homem a quem Deus deu duas das maiores dores com que pode marcar o ser humano. Perdi dois filhos em menos de dois anos. Perdi antes um rapaz de dezoito anos em minutos. Perdi agora uma filha de doze anos que os atravessou entre a vida e a morte. Cuja sobrevivência foi dia a dia conquistada pelo heroísmo, pela santidade materna, ajudada do afeto do próximo, do próximo mais próximo e do próximo mais desconhecido. Perdi um filho cuja inteligência sensível amanhecia para todas as vocações da vida pública e todas as visões do mistério poético. Que, morrendo como herói e mártir, mostrou de que matéria moral era formado, de que matéria carnal fora investido. Perdi uma filha que as alegrias que nos deu nasceram dos seus grandes olhos e do seu puro sorriso, pois não chegou a falar, e na sua cadeira de rodas, no emparedamento do síndroma terrível, era apenas uma silenciosa presença, uma sombra perene, inconvulsa, mas inerte.

***

Por que falo agora? Por que, de repente, deixo transbordar um coração que tantos anos se calou como se dentro dele não chorasse a fonte oculta?

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Eu poderia conter as represas da emoção. Mas falo porque, pela segunda vez, o problema da infância brasileira se situa brutalmente diante de mim em seus aspectos mais desgraçados.

Ontem, com o assassinato do meu filho, era esse caminho-da-cruz, que começa com o abandono e acaba na delinquência.

Hoje, com a morte da minha filha, é a situação da criança excepcional.

Ainda são felizes os que, como eu, podem arrancar recursos do salário para atender às necessidades mínimas dos mutilados profundamente.

Mas à proporção que o retardamento intelectual se faz menos dilacerante e crescem as possibilidades de sobrevida, é paradoxalmente maior a angústia dos pais diante do amanhã.

Ouso mesmo dizer que ela não distingue pobres e ricos. Porque, por mais ricos que sejam, onde encontrarão, em nossa terra, uma casa, um lar, que lhe acolha o filho no dia em que faltarem?

Não há nem mesmo um levantamento objetivo das coordenadas gerais ou apenas censitárias do problema. Nem se sabe qual o número de crianças excepcionais existentes no País!

O que existe são devotamentos imensos, a começar pelo de Helena Antipoff, velhinha, sábia e santa, a quem hoje se negam as verbas úteis mas amanhã se levantarão as inúteis estátuas.

E há o esforço dos que dominam o sofrimento pessoal para agir coletivamente, em sociedades como a APAE, a Pestalozzi, a ABBR, e convocam a bondade brasileira para organizar-se fora da moleza e do sentimentalismo.

Mas querem saber com que contam? Narrarei um episódio. Quando, há dois anos, levei para O Cruzeiro minha ridícula mania de que jornalismo é um instrumento de cultura popular, pude encaminhar à APAE o donativo pelo ator Kirk Douglas dos direitos autorais de um artigo sobre o carnaval carioca. Foi uma conspiração sentimental e faço justiça aos dirigentes da grande revista: uma vez combinado o destino da promoção, já não discutiram se ela valia os quinhentos mil cruzeiros. A Diretoria da APAE, surpreendida com a notícia, suspirou. Parecia milagre: precisava desesperadamente daquelas cinco centenas de contos... Ora, quando se sabe que mais do que isso há quem dê por um vestido ou gaste num jantar...

E não me venham dizer que a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor já foi criada e conta com a bênção que é ter Milton Campos no Ministério da Justiça. Porque ela jamais poderá ser panaceia aquietadora do sono da sociedade.

***

Tudo está por fazer. A começar — o que é necessário e difícil — pelo despertar da consciência coletiva. E — ainda mais necessário e ainda mais difícil — pelo despertar das consciências individuais para o fato de que não é uma vergonha ter um filho excepcional. De que essa cruz não pode ser carregada escondido. De que a criança diferente educável deve ter educação adequada, de sorte a se sentir, não posta de lado, vista com desprezo, pena ou ridículo, mas integrada, feliz, salva.

Creio nos milagres da bondade brasileira. Creio na sua possibilidade de organizar-se, vencendo a nossa tenuidade econômica

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e o nosso temperamento dispersivo. Ainda agora vi uma instituição funcionar primorosamente: o Pronto-Socorro Infantil Santa Lúcia. Quanto devotamento, quanta competência! Que bondade, desde os dirigentes, os médicos e as enfermeiras, ao mais humildes dos auxiliares.

***

No mundo das inúteis premonições que frequentemente recordamos, encontrei entre os livros lidos e relidos por Odylo Costa, neto, em seus últimos dias, — o Fazendeiro do Ar, de Drummond, os romances de Malraux — certos trechos assinalados em La Condition Humaine que mostram não ser a meditação sobre a morte e a dor alheia ao seu mundo espiritual. “Não é fácil morrer.” “Que valeria uma vida pela qual não se aceitasse morrer?” “Não há dignidade que não se funde sobre a dor.” “Toda dor que não ajuda ninguém e absurda.”

Toda dor que não ajuda ninguém é absurda. Se esta minha dor, agora renovada e outra vez esmagadora, vier a ser útil aos outros, sinto que meu amargo Natal floresce em esperança e divina consolação.

Jornal do Brasil, 19.12.1964

II

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A MENINA QUE TINHA O NOME DE MINHA MÃE

Nas páginas que se seguem, encontrará o leitor uma primorosa reportagem de Eurico Andrade e Jorge Butsuem sobre um problema nacional, que atinge milhões de crianças: mesmo quando crescidas fisicamente, continuam mentalmente crianças. Tendo sofrido, anos a fio, na minha própria casa e na minha própria carne, o que isso é, estou em condições que não são apenas as do julgamento profissional para louvar sem reservas o trabalho feito em poucos dias por esses dois companheiros, que souberam captar o drama humano dos pais e a fragilidade permanente dos filhos para narrar a gravidade de uma situação que impõe a todos o dever da caridade (por que fugir a essa palavra? “Tudo é caridade”, dizia o Apóstolo), isto é, da solidariedade social traduzida em medidas efetivas. Pearl Buck, no comovente livrinho que escreveu sobre sua filha, “a criança que não cresceu nunca”, que não devia crescer, não podia crescer — e já então era, fisicamente, moça — calculava em um por cento da população americana as crianças diferentes, excepcionais. Eurico Andrade divulga dado mais grave: três por cento nos Estados Unidos, provavelmente cinco por cento no Brasil. Mas eu me pergunto: ainda que fosse uma única, nosso dever de fraternidade não era o mesmo?

E agora, leitor amigo, se não gostas de ver de perto a dor humana, vira esta página. Há tantas e tão excelentes coisas a ler nas demais!

Pergunto a mim mesmo por que volto a reabrir o coração, uma vez apenas entreaberto, quando perdi a filha que tinha o nome de minha Mãe, num triste Natal, há três dezembros. Sim, por que volto a falar no que apenas de relance aflorei naqueles dias, correndo o risco de parecer me deleitar em mostrar aos outros, sem respeito humano, a pena que para mim devia guardar?

E muito simples. Porque um homem de cabeça branca veio à minha sala; e eram brancos os cabelos da ilustre dama brasileira que me procurou, mas o que os identificava não era isso, e sim o sorriso, um sorriso que eu conhecia de outros tempos, o mesmo que tantas vezes vi no rosto de minha mulher, ela há de ter visto no meu: um sorriso onde há traços do sal nunca enxuto nessas caras cristãs.

E depois porque venho falar de seres a que não alude a reportagem de Eurico Andrade e Jorge Butsuem: daqueles mutilados profundamente, a que não é dada nem a esperança do milagre. Aqueles cujos pais a maior tentação contra que têm de lutar é essa: a da esperança.

Minha filha viveu doze anos, e deles onze foram para nós de desengano e aceitação. Mas quantas vezes se acendia em mim e em minha mulher a leve chama, a pesada carga da leve chama da esperança! Lembro-me como se fosse hoje de Marcelo Garcia em nossa casa — a menina já tinha dez anos e sabíamos bem que inútil — a me dizer isso mesmo, que era inútil, que não valia a pena levá-la a uma clínica nos Estados Unidos.

A menina nasceu tão bem! Tinha os grandes olhos negros de minha Mãe, e lhe demos o nome que por isso mesmo lhe assentava ao pequeno rosto redondo: era como quem ressuscitava uma presença. O rosto depois cresceu e nunca se refletiu nele a mutilação que a impedia de falar, de andar, de coordenar mesmo os mais pobres movimentos. Tempo houve em que tendo lido o folheto que coloca a esperança para os retardados em três R — repetição, relaxação e rotina —, todo nosso esforço se concentrou em obter dela esta coisa mínima: engolir. Foi inútil. Era preciso, pacientemente, pacientemente, pacientissimamente, esperar que a pasta de alimentos dada por mão de quem lhe queria bem descesse devagarinho pela garganta.

O rosto crescera e era belo, não apenas aos nossos olhos, aos

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dos outros que a viam, porque se a não exibíamos também não a escondíamos. Era preciso — tantas coisas se fizeram a esse comando imperativo! — que os irmãos — os que vieram antes e os que chegaram depois, todos sadios de corpo e de mente — se habituassem com ela. Assim ela viveu sua frágil vida em nossa casa, e tudo foi natural em nosso sofrimento sem remédio. Os amigos entravam, pousavam a mão em seus cabelos, e ela sorria largo sob as compridas pestanas, estendia para as faces que conhecia e onde havia amor o longo e magro braço, a magra mão comprida, fina, os finos dedos mal comandados, e desse gesto ficava no ar uma semente que se colhia sem tristeza. Com o mesmo gesto a mão ia se pousar na cabeça de Pepe, o negro e alto cachorro que depois também se foi.

Contarei que tivemos uma sorte. Sorte? Desde cedo (o que não acontece a tantos pais, sobretudo àqueles cujos filhos excepcionais se encontram no limite da normalidade e em que, por isso mesmo, a identificação da deficiência mental é mais difícil) cedo ainda soubemos da verdade. Tudo ia bem com ela. Umas noites chorou muito. Observamos que a moleira não estava mais aberta. Ou nunca estivera. Encontramos Marcelo Garcia no Mosteiro de São Bento.

— Acho bom vocês levarem a menina a um neurologista. E o meu conselho a vocês.

Ausente Deolindo Couto, ainda erramos aqui e ali. Depois, por minha vez, ausentei-me para o Maranhão, a fazer campanha política — para quebrar a camada de gelo que asfixiava e empobrecia minha província. Minha mulher suportou o choque sozinha. Maria do Carmo Nabuco levou-a a um médico de sua confiança:

— Minha senhora, é duro o que lhe vou dizer mas tenho o dever de fazê-lo. Sua filha dificilmente andará ou falará. Dificilmente atravessará a puberdade. Talvez goste de música. Mas será tudo muito difícil...

Abrahão Ackermann mal conseguiu arrancar palavras da sua emoção para nos confirmar isso.

Foi muito difícil. Aprendemos a deslocar nossa prece quotidiana do “venha a nós o Vosso Reino” para o “seja feita a Vossa Vontade”.

Até seus dois anos ainda tivemos o pesadelo das convulsões. Depois nos habituamos a tê-la, inerte mas inconvulsa, na sua cadeirinha de rodas; e certas manhãs, no sítio, na serra, ao sol frio, ela parecia feliz.

E quantas coisas aprendi com aquele ser mutilado!

Outros pais me compreenderão.

Antes de tudo aprendi paciência. Paciência, não passiva, mas ativa, consciente, voluntária, recomeçada a cada instante.

Aprendi uma forma diferente de alegria: a me satisfazer com pouco. A colher no ar um gesto que ela esboçava. A ficar feliz apenas porque naquele dia comera melhor.

Aprendi ainda a reconhecer, à primeira vista, a bondade alheia. Vivemos muito todos nós, muita vez sem saber, da bondade alheia, que se encontra a cada instante no próximo, no próximo que está perto pelo sangue e no próximo mais desconhecido, que nunca víramos antes, nem voltaremos a ver.

No fim, ela era apenas pele e ossos — Arnaldo, o farmacêutico, pediu para não lhe dar mais injeção. Mudamo-nos de Santa Teresa para o Leblon mas a presença do mar não a atingiu para melhor. Há daqueles dias imagens de coração alheio e de pureza profissional que não esqueço. A de Bernardo Couto (seu Pai fora amigo do meu Pai) descendo com ela nos braços abertos como quem carrega uma toalha de renda, levando-a de automóvel ao Hospital Miguel Couto, ele, um

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professor, para lhe salvar o fio de vida — uma vida que sabia tão frágil! E no hospital a equipe, onde eu não conhecia ninguém e que acabava de passar vinte e quatro horas sem dormir, lutando quase toda uma tarde para evitar a asfixia de uma criança desconhecida, dar-lhe a sobrevida de alguns dias, talvez nem isso... Depois Rafael de Souza Paiva e seus companheiros do Pronto-Socorro Infantil Santa Lúcia, noites e noites em claro: um deles, Cesar Adnet, me confessou que ao se deitar para dormir, quando não era seu plantão, pedia a Deus que tirasse a minha filha aquele tênue sopro que dolorosamente lhe restava — e na véspera tanto lutara — teimosamente mas sem esperança — para prolongar...

Aprendi com ela, finalmente, a aceitar. Deus me deu duas das maiores dores com que pode marcar o ser humano. Perdi dois filhos em menos de dois anos. Perdi um rapaz de dezoito anos em minutos. Perdi uma filha de doze anos que os atravessou entre a vida e a morte. Cuja sobrevivência foi dia a dia conquistada pela ajuda alheia e pelo sacrifício materno, feito de heroísmo simples e santidade recomeçada. Não me queixo. Ele próprio escrevera na última tarde, horas antes da desgraça: “ajudar os outros... Meu último desejo: morrer feliz, nunca devagar.” E no exemplar de La Condition Humaine que andara lendo havia certas frases assinaladas: “Não é fácil morrer.” “Que valeria uma vida pela qual não se aceitasse morrer?” “Não há dignidade que não se funde sobre a dor.” “Toda dor que não ajuda ninguém é absurda.”

Doem-me os dedos quando escrevo, uma dor fina, que vai ao fundo da alma. Mas escrevo. Adquiri o direito de falar pelo silêncio. Por um silêncio de doze anos. Doze anos de maceração constante, de martírio quotidiano — em que podia falar, e calei. Com a chaga do lado, vivi, participei, amei. Dei o melhor de mim ao meu ofício. Minha mulher, o melhor de si à sua tarefa. Ri. Rimos. Demos o

exemplo de rir.

Agora, porém, que extravasei um pouco do pranto reprimido, deixem-me dizer ainda umas coisas. Isto, por exemplo, aos que só têm filhos normais e julgam que o assunto só interessa a uns poucos por cento: — o problema é de todos, e não só por dever de solidariedade humana. E que qualquer casal, por mais sadio, pode vir a ter uma criança diferente, excepcional. O que se sabe até hoje das causas, no geral, é tão pouco! Você, que hoje se encolhe no seu egoísmo sob ênfases ideológicas por julgar que o tema é menor (mais urgente é mudar o mundo), poderá estar amanhã a braços com essa profunda e desenganada dor humana.

Tudo apenas começa a ser feito. A consciência coletiva apenas começa a acordar. Há quase cem Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais, sobrevivem as Sociedades Pestalozzi, fundaram-se instituições novas? E tudo tão pouco!

E para a prevenção, que é que se está fazendo? E é sempre possível fazer alguma coisa.

Quantas consciências individuais ainda são más consciências! Quantos pais ainda não sabem que não é vergonha ter um filho excepcional. Que essa cruz não pode ser carregada escondido nem a sós. Que a criança diferente educável deve ter aprendizagem adequada, realista e carinhosa, de sorte a se sentir, não posta de lado, vista com desprezo, pena ou ridículo, porém integrada, feliz, salva.

Mas há uma outra angústia desamparada. E a dos pais dos mutilados profundamente. Pobres ou ricos, onde encontrarem um lar, uma casa que lhes acolha os filhos no dia em que faltarem, se não os quiserem — ou puderem — deixar a cargo de irmãos, se os irmãos mal puderem consigo mesmos?

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Eu bem sei que por ora não há resposta a essa pergunta. E que, de forma geral, essa angústia se estende a todas as categorias de deficiência mental. Bem sei que esse “amanhã” é indefinido, nebuloso, amargo — para todos.

Mas é urgente que a bondade brasileira se organize, fora da moleza e do sentimentalismo, para esse dever humano.

Se esta página, escrita à custa da vitória sobre tantos constrangimentos íntimos, vier a contribuir para isso, bendita seja a minha dor!

Realidade, dezembro de 1967

CONVERSA DE PAI

Creio que devia acrescentar: — “de excepcional”. Pois — embora seja o mais relapso dos sócios da APAE (Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais) da Guanabara — nem por isso perco a desventurada condição que me levou ajuntar-me a ela. E dentro dela tenho o direito e o dever de me felicitar pelo bom sucesso do V Congresso das Apae e augurar idêntico resultado ao próximo encontro das Sociedades Pestalozzi de todo o Brasil. Até hoje, suas faixas de trabalho não foram definidas, mas numas e noutras o amor dos seres mutilados identifica homens e mulheres de boa vontade; e cabe alegrar- nos por este fato: pela primeira vez o Estado brasileiro

— senão a própria sociedade — tomou conhecimentos da existência de um problema que amarga centenas de milhares de vidas.

Tive, tenho uma dessas vidas. Porque o Deus de misericórdia nos levou a filha que nos dera, mas nem por isso nos tirou a condição paterna.

Caíram sobre mim duas das maiores dores que podem marcar o ser humano. Perdi — perdemos, minha mulher e eu — um rapaz de dezoito anos num minuto: consola-me (se há consolação possível) saber que morreu bem, pois, como ele próprio desejara e escrevera momentos antes, morreu “feliz, nunca devagar”, defendendo sua honra, sua hombridade de homem. Perdi, perdemos em doze anos uma filha que os atravessou entre a vida e a morte. Cuja vida foi dia a dia conquistada pela bondade alheia e pelo sacrifício materno, feito de heroísmo simples e santidade recomeçada. Não me queixo. Procuro aceitar. Procuro compreender. Ergo a cabeça. Deixo que as chuvas desabem sobre mim. E sigo sem cair.

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Contarei mais uma vez.

A menina nasceu tão bem! Tinha os grandes olhos negros de minha mãe, e lhe demos o nome que por isso mesmo assentava no pequeno rosto redondo: Maria Aurora, era como quem ressuscitava uma presença; as luzes da madrugada se adensavam no alvorecer da criatura. O rosto depois cresceu e nunca se refletiu nele a mutilação cerebral que a impedia de falar, de andar, de coordenar mesmo os mais pobres movimentos. Tempo houve em que, tendo lido o folheto que coloca a esperança para os retardados em três R — repetição, relaxação e rotina — todo nosso esforço se concentrou em obter dela esta coisa mínima: engolir. Foi inútil. Era preciso, pacientemente, pacientemente, pacientissimamente, esperar que a pasta de alimentos dada por mão de quem lhe queria bem descesse devagarinho pela garganta.

O rosto crescera e era belo, não apenas aos nossos olhos, aos dos outros que nos procuravam, porque, se não a exibíamos, também não a escondíamos. Era preciso — tantas coisas se fizeram a esse comando imperativo! — que os irmãos — os que vieram antes e os que chegaram depois, todos sadios de corpo e de mente — se habituassem com ela. Assim viveu sua frágil vida em sua casa, em nossa casa, e tudo foi natural em nosso jamais mitigado sofrimento sem remédio. Os amigos entravam, pousavam a mão nos cabelos pretos e lisos, e ela sorria largo sob as compridas pestanas, estendia para as faces que conhecia e onde havia amor o longo e magro braço, a magra mão comprida, fina, os finos dedos mal comandados, e desse gesto ficava no ar uma semente que se colhia sem tristeza. Com o mesmo gesto quase involuntário a mão ia se pousar na cabeça de Pepe, o alto cachorro preto, que depois também se foi.

O médico, a quem Nazareth a levara, quando ainda

não tinha um ano de nascida, pela mão de Maria do Carmo Nabuco (a quem nunca pagarei esse ato de amor) prevenira: — Minha senhora, é duro o que lhe vou dizer, mas tenho o dever de fazê-lo. Sua filha dificilmente andará ou falará. Dificilmente atravessará a puberdade. Talvez goste de música. Mas será tudo muito difícil...

Foi tudo muito difícil. Aprendemos a deslocar nossa prece cotidiana do “venha a nós o Vosso Reino” para o “seja feita a Vossa Vontade” Até os dois anos, ainda tivemos o pesadelo das convulsões. Depois nos habituamos a tê-la, inerte, embora inconvulsa, na sua cadeirinha de rodas; certa manhã, no sítio, na serra, ao sol frio, parecia feliz. Com ela aprendi paciência.

Paciência, não passiva, mas ativa, consciente, voluntária, recomeçada a cada instante.

Aprendi uma forma diferente de alegria: a me satisfazer com pouco. A colher no ar um sinal que nada esboçara. A ficar feliz apenas porque naquele dia comera melhor. Minha mulher me esperava, quase alegre: — Ela, hoje, comeu melhor.

Aprendi ainda a reconhecer, à primeira vista, a bondade alheia. Vivemos muito todos nós, muita vez sem saber, da bondade alheia, do próximo que está perto de nós e do próximo mais desconhecido, que nunca víramos antes nem voltaremos a ver.

Aprendi, finalmente, com ela, a aceitar. Com a chaga do lado, dei o melhor de mim ao meu ofício, minha mulher o melhor de si a sua tarefa de Mãe, alienada, terrível, doce tarefa. Com a chaga do lado, vivemos, participamos, amamos, rimos. Demos o exemplo de rir — tomar o sal do rosto e cristalizá-lo em riso.

E tivemos coragem de lutar contra a tentação da esperança.

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Nada se podia esperar, nem o milagre.

Por isso tudo, creio ter o direito de ficar feliz com o despertar da consciência coletiva para a presença, na vida, da criança excepcional. Será que a bondade brasileira vai, afinal, se organizar, fora da moleza e do sentimentalismo, para cumprir o dever humano de ver sem desprezo, ou pena, ou o senso bruto do grotesco, os meninos marcados pelo destino, e em vez disso, com a decisão de vê-los integrados, felizes, e salvos?

Pela saudade de minha filha, assim seja!

Diário de Notícias, 1.8.1971

UMA CASA PARA UMA VELHINHA

Faz aqui uns anos, escrevi um artigo sobre este eterno assunto da criança no seu duplo e doloroso aspecto: o menino que é abandonado (sei bem que a palavra moderna é desassistido) e que tantas vezes se encaminha para bruto descaminho da desgraça e do mal, e o menino excepcional por mal dotado ou bem dotado. E falava na velhinha sábia e santa, santa e sábia (não sei o que prevalece nela) a quem a Nação brasileira, isto é, o Estado, mais os homens de poder e da riqueza e do poder da riqueza, negam, hoje, as verbas úteis para erguer amanhã as inúteis estátuas.

Eu não conhecia pessoalmente Helena Antipoff. Fui vê-la, daí a dias, no Leme, ela empenhada, como sempre, em salvar a Sociedade Pestalozzi que, aliás, Deus me perdoe a comparação, é como Deus mesmo, que está sempre morrendo. Mas tal qual Deus, o catolicismo, o carnaval, a cidade do Rio, a Sociedade Pestalozzi não morre nunca. Deus é muito teimoso: nem morre Ele, nem morrem o cristianismo católico e as outras faces de Deus. A alegria do povo é muito teimosa: O carnaval está sempre moribundo, ressuscita no ano que vem. O carioca é muito teimoso, teimosíssimo: ninguém nos arranca o Pão de Açúcar, o mais que fazem é desfigurar a Praça Quinze, toca-se pra frente, vivam os jardins do Aterro e o lazer dos homens. E a Pestalozzi não morre: Helena Antipoff é muito teimosa, o Dr. João Franzen de Lima, duro de teimosia, a Dra. Lisair Guerreiro, mulher de estalar uma unha na outra morrendo de tão teimosa. A APAE não morre: Inesita Félix Pacheco Brito não deixa. Viva a teimosia que salva o mundo! E cito apenas uns nomes — que se escrevendo num caderno de colégio não dava para enumerar todos os teimosos.

Como ia dizendo, fui ver Helena Antipoff. E ela me atacou logo:

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“está tudo errado, não sou velhinha, não sou sábia, não sou santa”. Velhinha não era, nem moça velha ao menos, antes, marcada de maternidade, os filhos que dela nasceram, os que a ela vieram. E nem parecia velha, magrinha, a voz como um fio, mas tão natural quanto a magreza, ousando negar que não lhe dessem as verbas necessárias, tudo que fizera era ajuda dos outros. Concedi a mocidade, reservei-me liberdade de opinião sobre os outros temas, com reserva mental de lhe mandar os orçamentos da União, Estados e Municípios, mais os balanços de algumas empresas a fim de que ela visse que migalha da migalha lhe davam para os seus desamparados. De que adiantaria? Ela continuaria a crer — e a esperar, só que esperar trabalhando dia e noite, no seu jeito natural. Tudo nela é naturalidade, naturalidade e natureza inclusive a outra Natureza, com N grande, em cuja presença sempre acreditou como salvação do homem — e modeladora de criança.

No próximo sábado, 25 de março de 1972, Helena Antipoff faz oitenta anos. Recusou qualquer homenagem. O mais que aceitou foi que se encontrassem seus discípulos e amigos. Para um bródio farto? Eu imaginava um cardápio que fosse uma biografia. Alguma receita de Grodino, na Bielo-Rússia, onde nasceu, ou de S. Petersburgo, onde fez o ginásio, e, depois, virou Leningrado, onde cuidou de crianças abandonadas e colaborou no Instituto Pedagógico; ou uma fondue, umas raclettes suíças, para lhe lembrar Genebra, onde foi assistente de Claparède e uns surubins gordos, um honrado feijão de tropeiro com lombinho de porco, pois metade de sua vida se passou no Brasil, e no Brasil sobretudo em Minas Gerais, e de Minas é que seu nome cresceu e se fez símbolo nacional, no Brasil todo. Disse nacional; e a sobremesa, em vez do syrnik, o grande bolo de queijo de S. Petersburgo, seria sorvete do bacuri do Maranhão, pois sei de olhos maternos que também lá se enchem de sombra — e de luz — quando se fala em Dona Helena. Mas Dona Helena

não quis comida, nem discurso, nem festa. O mais que aceitou foi que discípulos e amigos se reunissem para trabalhar: durante uma semana, discutir-se-á o problema do excepcional, não apenas como educá-lo, mas sobretudo como integrá-lo na sociedade, e quando se descansar se vai carregar pedra, debater a educação nas áreas rurais.

Eu estarei lá, não para proclamar vitoriosamente que nos oitenta anos ela fica velhinha mesmo, mas para com humildade lhe beijar a mão da sábia e da santa. Não o farei, entretanto, em sua casa. Porque esta mulher, que escolheu o Brasil para pátria (e nisso tem mais merecimento do que nós, pois não foi o umbigo mas o coração que a ancorou), não tem uma casa — ainda que não fosse dela mesma — para morar. Um quartinho, uma casa, uma mesa. S. Francisco não pedia nem isso. Monsenhor Vicente não pedia nem isso. O Padre Anchieta, o Padre Nóbrega não pediam nem isso, O Padre Damião não pedia nem isso. Ela acha que já tem demais, já tem que sobre, Deus sabe.

Mas nós temos que lhe dar uma casa, a Casa da Mestra. Onde, Deus queira que ela more por muitos e muitos anos. Homens ricos do Brasil, mesmo que não tenhais filhos excepcionais, mesmo que não saibais o que é ensinar (ou aprender) no mato, mesmo que sejais voluntariamente maninhos de pilula ou urbanos de apartamento, vamos dar a Helena Antipoff, lá mesmo na Fazenda do Rosário, a Casa da Mestra. Você Adolfo Bloch, tão generoso, que também nasceu na Rússia e é hoje, também entranhadamente brasileiro, vamos dar a Helena Antipoff a Casa da Mestra. Porque Walter Moreira Sales e Amador Aguiar não festejam seu novo banco dando a Helena Antipoff a Casa da Mestra?

Eu queria encontrar bastante eco para que esse apelo fosse repetido, ampliado, transfigurado, e os ecos suscitassem outra Mansa

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Raja Gabaglia, você que acaba de publicar um livro tão leve, tão saboroso, ao mesmo tempo tão sério, seu estupendo “Milho para Galinha Mariquinha”, deixe comédia humana de lado, junte-se a nós para mover águas e terras e dar a Casa da Mestra a Helena Antipoff. A Helena Antipoff? Não, a Helena Antipoff não, ela não aceitaria: à Fazenda do Rosário.

Sou tão otimista que antevejo dinheiro dando e sobrando. E com as sobras será possível resolver as angústias da Acorda que anda atrás de sede. A Acorda é o mais novo sonho de Helena Antipoff, a associação por ela criada para agremiar, orientar, ensinar artes e dar ofícios às famílias, sobretudo mães e filhos — que vivem em torno da Fazenda do Rosário, e sofrem um mal tão grave quanto a mutilação mental. Um mal que arranjou agora o nome eufórico de subdesenvolvimento, mas outrora era apenas pobreza. Pobreza? Miséria, meu Deus!

Diário de Notícias, 19.3.1972

A ARCA DE JOÃO

O nome é Jean, Jean Vanier, mas podemos logo nacionalizá-lo em João. Foi o que fizemos a outro ser da mesma espécie apostolar, que aqui teve trocado o nome de batismo pelo correspondente brasileiro, e ficou, muito simplesmente, Dona Helena. Já foi muito lhe terem respeitado o sobrenome de Antipoff. Elizabeth Bishop é, sem dúvida, uma das maiores poetisas do mundo contemporâneo, mas para a gente do povo do bairro da Samambaia, perto de Petrópolis, ficou sendo Dona Bicha: queriam-lhe bem, mas articular aqueles complicados sons ingleses era outra coisa, superior às forças populares.

João, pois, traduzo logo, João está aportando por estas paragens, na sua arca. Reparo, aliás, que arca não existe, em português, na acepção que ele dá, e sempre supus cabível, de embarcação sobre as águas, a não ser na expressão “arca de Noé”; e se arca não existe, por que haveríamos de falar em Jean?

Arca não existe. Está aqui o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, a que Aurélio Buarque de Holanda deu seu nome entre todos ilustre, e ao qual acabou de somar o grande Dicionário, essencial ao estudo da língua: “Arca, s.f. Grande caixa de tampa chata; cofre; tesouro, tórax, costado.” Não é diferente o que está nos demais dicionários a começar pelo Moraes.

Ora, pois, estaríamos diante do inexistente — a arca — e do traduzido — João. E assim, tendo perdido o tema, eu pouparia meu tempo e o do leitor — se por aqui ficasse.

Mas João, isto é, Jean Vanier, está no Brasil, chega ao Rio de Janeiro agorinha mesmo, e traz no coração a sua arca, refúgio de salvação, como a outra, num mundo que se dissolve e se perde; e aqueles que

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pensa em ajudar não são dezenas, nem centenas, nem milhares, nem mesmo centenas de milhares, mas se contam por milhões. E se, desses milhões, se mudasse um só destino, já lhe bastaria para alegrar-se e a nós para celebrá-lo. Ele, porém, quer mais: quer trocar os olhos dos outros, dos que vêem o adulto excepcional como um problema desesperado, sem solução e sem sorriso, para, pelo contrário, ensiná-los a encontrar, na presença dos simples, uma das bem-aventuranças de Deus. Quando, há um decênio, perdi minha filha excepcional, cuja vida se ganhara no dia-a-dia através da santidade materna e da bondade alheia, deixei pela primeira vez extravasar o coração, que até então se contivera em não exibi-la nem escondê-la. Quantas ocasiões, depois, tenho aproveitado para contá-lo de novo, não para pedir piedade para mim mas caridade para os outros! Parada na sua cadeira de rodas, sem andar ou falar, o sorriso puro sob os rasgados olhos, estendendo a frágil mão incerta para afagar o cão pastor negro que depois se foi, na montanha e ao sol frio, ela por vezes parecia (e talvez fosse) feliz. Mas sua morte, se não nos tirava a sombra perene em nosso quarto, amargamente nos aliviava do duro cuidado com o amanhã. E isso duramente eu o disse ao perdê-la.

Pela manhã, uma voz me chamou ao telefone. Lera meu artigo no Jornal do Brasil. O problema da sua casa era a sobrevivência do sangue do seu sangue na criatura mutilada que, como nós à nossa filha, desesperançadamente amava. E chorava: — “Não é a falta de recursos que nos angustia, mas a quem confiar o nosso filho no dia em que nós mesmos faltarmos?” Nada pude responder. Calei até que o telefone também o fizesse.

Não sei se a solução proposta por Jean Vanier — a vida dos excepcionais adultos na pequena comunidade que os abrigará junto a pessoas da família e a outros acompanhantes, movidos por sentimento

humanitário, caridade cristã, impulso místico, solidariedade comunal, espírito científico, procura de um destino, não sei se essa solução será

“a” solução. Mas creio que é importante ouvi-lo atentamente, muito atentamente. Não porque ele seja filho de ex-governador geral do Canadá, e tenha servido na Marinha de seu povo, e se haja refugiado num mosteiro dominicano e, dele egresso sem entrar na ordem de São Domingos, se tenha feito mestre de Filosofia em Toronto, para trocar tudo por sua arca. “L’Arche”, que fundou e se vai repetindo e estendendo em novos centros “Arche”, de lindos nomes pelos quatro cantos do mundo, da India à França, da Dinamarca ao Canadá e à Grã-Bretanha. O poeta dizia: “Ah! que le monde est grand à la clarité des lampes!” Mas não é a claridade das lâmpadas que o faz maior. E o coração dos homens.

Não sei se Jean Vanier é santo. Grãos de santidade há em cada ser humano que vem a este mundo, por mais pecador que a tentação o faça. Mas é a circunstância de nalgum de nós essa estranha semente mudar-se em árvore que salva a comunhão universal. Outro dia, neste canto, a propósito de José Piquet Carneiro que acabara de morrer, eu lembrava que santo não é colunável. Sim, não sei se Jean Vanier é santo. Ser santo não é fácil. Santo em si mesmo não é fácil. São Francisco de Assis não era fácil. Santa Clara não era fácil. Santa Catarina de Siena não era fácil. São Luiz, Rei de França, não era fácil. São Damião não era fácil. São Pedro, minha gente, querem fenômeno mais estranho, capaz de negar aquele em que reconhecera Deus (“Tu, quem dizes que sou?”), e depois de sair, e chorar amargamente, e levar sempre consigo um pano em que pranteasse sua miserla?

Mas se, sem ser santo, nem filósofo, nem andarilho, nem vagabundo sob as estrelas, Jean Vanier tiver encontrado para os

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mutilados mentais que não têm a sorte de morrer antes de acabar de crescer fisicamente uma forma de viver aceitável e limpa, abrir-lhe-ei os braços para dizer: — Meu irmão!

Ultima Hora, 14.3.75

O PREFEITO E O MINISTRO PECARAM CONTRA A LUZ, ESQUECENDO QUE O CRISTO FOI MENINO JESUS

Meu amigo Carlos Silvestre de Ouro Preto, Embaixador do Brasil, parecendo agnóstico, sempre se interessou pelas coisas da alma. Uma vez, em Luanda, num pôr-de-sol (chamavam-se — e talvez ainda se chamem em Angola — pôr-de-sol, além do propriamente dito, os coquetéis ao ar livre, enquanto o fogo do céu se deitava na mais linda restinga do mundo) num pôr-de-sol, dizia, e repito para manter a cor de bronze do ar africano, se virou para mim, me perguntou tão de repente: — “Para que viemos ao mundo?” Ao que, não me tendo atrapalhado nem um instante, e muito havendo já meditado sobre esse mistério, fui logo ali respondendo em cima da bucha: “Para ser santos.” Carlos Silvestre de Ouro Preto ficou bastante perturbado.

Outra conversa ele me contou que tivera com o Cardeal-Arcebispo de Viena, a quem, enquanto afagava no próprio rosto a verruga meditativa, interpelou como era essa coisa de pecado. E o Cardeal explicou que muito simples. Os pecados do umbigo pra baixo são inerentes à fraqueza do homem, próprios da natureza dele: ele peca, se arrepende, a Igreja, em nome do Senhor, absolve sem relutância, ele vai e, esquecido da contrição, de novo peca e de novo se arrepende, e de novo a Igreja, sem relutância, perdoa em nome do Senhor. Mas os pecados entre o umbigo e o pescoço, os pecados do sentimento, esses a Igreja não gosta de perdoar. Perdoa, mas com irritação por vezes desmanchada na doçura obrigatória do conselho, por vezes inevitavelmente indisfarçado em grito de homem, e de qualquer sorte sempre profunda. E há os pecados que a Igreja não perdoa, ou se o faz é porque se remete à misericórdia de Deus e ela é infinita, e a ninguém o Cristo excluiu do arrependimento e da

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remissão: são os pecados da inteligência, pescoço arriba.

Ora, eis que o Prefeito Marcos Tamoyo, que tanto admiro da intimidade da minha querida Djanira, isto é, de uma casa onde se vive intensamente a arte, e a mão não pára nunca e nunca treme quando o pincel, abelha estranha, pousa na tela, o Prefeito Marcos Tamoyo (hoje estou com esse defeito de voltar atrás na narrativa mas há de ser porque escrevo com raiva, eu tão sem ressentimento da vida!) está em pecado mortal. Pois decretou que não podia haver no Leblon, zona de residências individuais, escola para crianças excepcionais. Entretanto o Cristo mandou que os pequeninos fossem até ele, e acrescentou: “A eles pertence o reino do céu.”

Prefeito Marcos Tamoyo, olha que a qualquer de nós pode ser jogada nos ombros essa cruz inocente e pura, e no dia do juízo te será cobrada essa casa fechada, uma casa onde se abrigavam crianças destinadas a sê-lo enquanto viverem. Que importa que fosse paga? Não foi por não ser beneficente no senso da gratuidade que cerraste as portas do “Bem-me-quer”, mas por não ser — ao que evasivamente e como quem foge disseste na TV — residência individual. Acaso nas demais casas do Leblon moram homens e mulheres sozinhos? Nelas não haverá crianças? Se há, deixam de ser individuais como o salário-mínimo para ser coletivas como a Ceia do Cristo. Foi uma Ceia do Cristo que interrompeste, ó bom Marcos Tamoyo! Pelo mesmo raciocínio já não haverá bairro onde se abriguem esses meninos de Deus! Corre depressa a um padre..

Conheço Marcos Tamoyo. Não conheço o Ministro Almeida Machado. Ao que me dizem é um sábio. Mas mal me dizem, pois não é tão sábio assim. Um repórter lhe perguntou sobre os excepcionais. Sua Excelência enfadado respondeu que o problema para ele não existia. Toda sua atenção estava nas endemias, milhões de chagásicos,

e chistozomóicos, e impaludados, e dá-lhe, e ainda as epidemias, a meningite, abrenúncio!, o cólera... Pensei ainda em perguntar a Mestre Manuel Ferreira se era isso o certo. Mas me lembrei depois que do dever do Estado ninguém está excluído, e uma só criança excepcional que houvesse havia que atendê-la, e olhando melhor para as fotos do Ministro vi-lhe repontar um ar sutil de Diabo filosófico, que me deu medo.

Mas ai! Excelência, ai! Ministro, ai! sábio, ai! homem, ai! de nós todos, ai! deste país, que os excepcionais nele não são um só. Se adotarmos uma percentagem menor que a dos Estados Unidos, seriam, no conjunto, 8% da população, oito milhões. Mas ninguém sabe: são tudo conjecturas primeiro porque nunca houve um censo, segundo porque o censo é praticamente impossível, tão desmedido o esforço de diagnóstico exigível, tantos, desgraçadamente, são os pais que escondem os filhos deficientes, envergonhados de uma culpa que não têm.

Mas por outro lado as primeiras medidas a tomar são de saúde pública, desde as invenções que a revolução biomédica foi criando nos últimos vinte anos ao cuidado com a nutrição das gestantes. Isso o Ministro sabe melhor do que eu. Não lhe falta a ciência nem o coração. O que nega, bem sei, é a prioridade do tema. E eu lhe digo que assim como, no plano moral, não há mais grave problema no Brasil do que o do menor abandonado (deixem-me usar a velha e cruel palavra, desassistido diz tão murchamente pouco!), nada há, no plano sanitário, mais urgente que uma criança excepcional — pois sua presença perturba e inquieta não a ela, mas aos que em redor dela vivem, e são milhões que sofrem. Longo vai este lamento. Mas não quero acabar sem uma reflexão de Jean Vanier. Ele compara o excepcional a um copo d’água

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pelo meio. E diz que diante desse copo d’água pelo meio, a gente pode chorar: “E triste, está meio vazio!”, mas pode alegrar-se: — “E extraordinário, está meio cheio. E um copo d’água: vida!” E essa água é tão pura que dá para lavar os pecados do mundo, mesmo quando são de Prefeitos e de Ministros.

Última Hora, 30.5.75

COMO DOIS BRAÇOS DE UMA CRUZ

Não digo que tenha sofrido mais do que os outros, que eu e minha mulher tenhamos sofrido mais do que os outros. Não seria justo. Dor mata? Não mata. Mas tem um limite: além dele não dói mais ou não conta. Como a gota no copo d’água. Transborda, e vai daí, daí em diante é tudo o mesmo.

Mas digo que veio primeiro um braço, depois o outro da cruz. E então conheci — como quem recebe uma bofetada para acordar tão de repente — as duas mais amargas faces da desgraça da criança no Brasil. O delinqüente. O excepcional.

Quando um adolescente de 15 anos, depois também ele desgraçadamente morto, integrante de uma gang onde havia adulto, matou o filho que tinha meu nome e era minha primeira esperança de homem — pois era o primogênito dos meus homens — não clamei vingança, mas pedi socorro para que salvassem os outros meninos. De então por diante — e quantas vezes! — toda vez que li notícia de menor, dando ou recebendo morte ou sofrimento, era como se fosse eu próprio o culpado, uma angústia que me rasgava, um dardo que me pungia. Que fiz para evitar isso? Fiz o que pude? Fiz tão pouco! Era preciso bater de porta em porta como um sem pão, pedindo o pão humano. Há quem saiba o que isso é. A esses falo. Mas não é esta a hora de insistir.

Mais longa, mais continuada, magrinha como a filha que tinha o nome de minha Mãe, foi a vida pequena que ela atravessou 12 anos durante. Ganhei o direito de falar porque nesses 12 anos calei. Não a exibi, não a escondi. Os irmãos se habituaram a vê-la entre eles, não mais nem menos querida do que eles, semi-imobilizada na prisão

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da sua cadeira de rodas, o gesto afetuoso incompleto mas esboçado sempre, o sorriso sempre acudindo a um rosto que lhe sorria, mas não a fala, que só dos grandes olhos se derramava em silêncio. Quando ela se foi, falei. E quis agir. Quem pode agir neste país? O Estado? As associações que dele dependem tanto para sobreviver e onde a bondade brasileira mal se organiza em nossa dispersão? Transbordei em testemunho. Mas não quero lágrimas. Não me dêem lágrimas. Eu próprio não as tenho. Não sei mais chorar.

Não me dêem lágrimas. Recuso-as. Quero dinheiro. Dinheiro? Sim, dinheiro. Isso mesmo. Sem dinheiro e sem amor — não vai. — Dinheiro não distribuído individualmente — como esmola — mas assegurado às instituições que fazem o que o Estado não faz. E são tantas! Desde as Sociedades Pestalozzi, cuja Federação eventualmente presido, às APAEs, que já se multiplicaram, ao Grêmio-Sorriso que começa a se multiplicar, tantas, tantas sem exceção carecidas de recursos. Quero também que se crie uma consciência coletiva. Ninguém é culpado. Todos são responsáveis.

E me dêem um órgão central em que se juntem as ações do Poder Público. Se é que ele quer agir. Um órgão interministerial que planeje, coordene, controle, incentive execute. A dor humana não é propriedade de ninguém. E há muita ajuda que já vai desfalecendo, desajudada.

A 4 de julho de 1945 Helena Antipoff pousou no Leme a Sociedade Pestalozzi do Brasil. Trinta anos depois, dia por dia, não a recordamos e festejamos só a ela, a nossa bem-amada fundadora para sempre ausente, com seu olhar onde havia pássaros, auroras e palmeiras. Nem lembramos apenas o que foram esses três decênios. Não vamos apenas fazer história. Vamos instalar o V Encontro Nacional das Sociedades Pestalozzi. A ação e a idéia não moram mais

apenas no casarão do Leme. Vem gente de todo o Brasil.

Encontrei, esta semana, em Luis Gonzaga do Nascimento e Silva, um Ministro nascido das artes da paz para a proposição de reconhecer, nos mais frágeis dos seres humanos, um dever do Estado. Ganhei o dia.

E bem que ando precisando! Há tanta treva — e desesperança!

Mas é preciso manter a esperança. Eu próprio escrevi e me lembro:

“Não minha própria dor, a dor alheia,

— Se não fosse o consolo da esperança — Me poria uma pedra em cada braço.”

Depressa, depressa, Senhor, olha as pedras na minha mão e as arranca depressa, depressa!

Última Hora, 4.7.1975

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AO PRESIDENTE ERNESTO GEISEL, EM BRASILIA

Senhor Presidente:

Conhecemo-nos há algum tempo.

Servimos ambos ao mesmo Presidente Café Filho, Vossa Excelência, ainda Coronel, na Casa Militar, eu, já velho jornalista, como Secretário de Imprensa. Foi um Presidente como V. Excia., de mãos limpas e ânimo sereno. Recebendo o Governo às vésperas da guerra civil, evitou-a. Fez eleições livres, preservou as instituições, aceitou, com resignação democrática — como dizia, a liberdade dos meios de comunicação onde os interesses criados não o pouparam. Não tarda o dia em que lhe farão justiça. De nós ambos sempre ele a teve, transformada em devoção de amizade.

Além dessa circunstância, pertencemos a uma fraternidade maior, mais profunda. Vossa Excelência perdeu um filho; eu, dois. Não conheci o de Vossa Excelência; mas sua filha foi colega do meu rapaz, quando adolescentes, integraram o grupo mais homogêneo de estudantes que conheci até hoje, e que abria, no antigo CAP, uma clareira de bondade, inteligência, e vocação para as aventuras do conhecimento.

O outro filho que perdi era uma menina, Senhor Presidente, uma criança excepcional que trouxe à nossa casa a alegria de um sorriso e de uma pureza que só aos anjos pertence. E a sombra perene em nosso quarto era a mesma que invade tantos lares do Brasil.

Quantos milhões de excepcionais há no Brasil? Um? Dois? Três? Ponhamos cinco. Serão talvez mais. Mais que o mar com os peixinhos, o céu com as estrelas... Os pessimistas chegam a oito milhões. Sejam

cinco. Sabe Vossa Excelência quantos são assistidos?

Sim, é esse o número. Sarah Couto César, diretora do CENESP (Centro Nacional de Educação Especial) preparada no devotamento (ser mãe de excepcional é um destino, lidar com eles sem esse dever materno uma vocação) acaba de promover o primeiro levantamento objetivo da área educacional (que se confunde com a da assistência). Entre os excepcionais a lei inclui deficientes da visão, da audição, físicos, mentais, com deficiências múltiplas, com desvios de conduta e mesmo os superdotados. Nem cem mil são atendidos! Nem cem mil! E quase como zombaria, entre esses 96.256 figuram — pasme Vossa Excelência — 43 superdotados. Os deficientes mentais assistidos pouco passam de 60 mil; educáveis 43.318; treináveis, 13.498. E dependentes em tudo (era assim a minha menina), 4.156. Some Vossa Excelência. O resto é treva — e desesperança.

Se Vossa Excelência me perguntasse o que se deve fazer, eu lhe pediria, desde logo, que ouvisse, entre seus Ministros, Nascimento e Silva e Ney Braga, Velloso e Golbery, que creio sensibilizados pelo tema.

Mas me animo a dizer que três pontos acho básicos.

O primeiro é a criação de uma consciência coletiva. Ninguém é culpado. Mas todos são responsáveis.

O segundo são recursos, recursos, recursos. Não me dê Vossa Excelência lágrimas, sei que não é o seu forte. Peço dinheiro. O recente projeto do Senador José Sarney seria um passo. Mas ele esquece, quando manda entregar aos excepcionais parte percentual da renda da Loteria Esportiva, que nela tudo é terra demarcada e defendida a tiro de rifle. Ninguém nos dará nada. Ainda que seja para se gabar depois de que não gastou o que recebeu.

Recursos... Se oficializassem o “jogo do bicho” e dessem ao

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excepcional todo o dinheiro da Zooteca, não creio que houvesse brasileiro a se indignar, mesmo entre aqueles que qualquer imposto revolta e qualquer jogo condena. E lá da sepultura o Barão de Drummond até se mexeria para bater palmas.

Sem recursos, Senhor Presidente, de nada adiantam palavras. Era o que o brasileiro Joaquim Nabuco já avisava, quando na Câmara do Império se discutia uma das nossas periódicas e salvadoras reformas do ensino: sem dinheiro, ele, o gentil-homem supremo, clamava, quase bruto, não se fala em educação.

Precisamos também de um órgão interministerial, que centralize, planeje e comande a execução de uma política nacional, em que convirjam os deveres inarredáveis do planejamento, saúde, justiça, trabalho, educação, previdência e assistência. Como vê Vossa Excelência, o tema está nas áreas governamentais mais diversas. O excepcional não pode ficar enclausurado nas estruturas de um Ministério só. Para integrá-lo na vida, hão de juntar-se todas as forças do Poder Público. E o mutirão dos que inventam e agem.

Porque há que inventar soluções depressa. E agir mais depressa ainda.

Os instrumentos de trabalho já existem. Novas Sociedades Pestalozzi começam a juntar-se à experiência grande das antigas. Multiplicaram-se as APAEs. Começam a surgir os Grêmios-Sorriso. E há tantas outras entidades, beneficentes ou remuneradas, confundidas na mesma luta suprema. Dê-lhes Vossa Excelência o amparo da sua palavra transfigurada em ação.

Peço-lhe não para mim, que minha filha já se foi. Peço-lhe, neste dia em que se comemoram os 30 anos de fundação, pelas mãos de Helena Antipoff, da Sociedade Pestalozzi do Brasil e se instala o V

Encontro Nacional das Sociedades Pestalozzi, em nome de milhões de seres que não são assistidos e até daqueles 96.256 que o são por vezes precariamente mas sempre com carinho.

E peço-lhe também em nome de Helena Antipoff, que se fez brasileira pelo amor da criança brasileira.

Pelo que Vossa Excelência fizer, muito grato lhe fica o velho amigo, admirador e correligionário O.C., f.

Jornal do Brasil, 4.7.75

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À REDAÇÃO DO JORNAL DO BRASIL, NO RIO

“Venho, muito sensibilizado, agradecer-lhe o destaque com que foi publicada a entrevista que concedi a uma das nossas jovens colegas — na qualidade de presidente da Federação Nacional das Sociedades Pestalozzi — sobre o VI Encontro Nacional dessas Sociedades, a realizar-se de 15 a 11 deste mês, em Fortaleza, comemorando 209 aniversário da Sociedade do Ceará, presidida pelo nobre devotamento e pela invulgar competência da professora Eunice Damasceno.

Tenho grande confiança nesse VI Encontro, que se tornou possível graças ao decidido apoio financeiro e moral que nos deu o Ministro da Educação, Senador Ney Braga. Nele espero que o Secretário de Assistência do Ministério da Previdência Social, Marcos Candau, possa lançar as premissas de uma política nacional para os excepcionais brasileiros, que o Ministro Nascimento e Silva anunciara ao abrir o V Encontro. O tema do VI Encontro será o excepcional adulto. Tema predominante, embora não exclusivo.

É a primeira vez que essa patética situação, dentro do quadro geral da excepcionalidade no Brasil, constitui o objeto principal de uma reunião das entidades assistenciais, educativas e científicas, que há tanto tempo lutam, sem fins lucrativos, tentando organizar a bondade da nossa gente.

Não levamos qualquer idéia preconcebida para o debate.

Distribuímos às entidades federadas textos de Jean Vanier, que criou, sob a denominação simbólica de L’Arche, comunidades que são novas arcas de refúgio onde excepcionais, seus parentes e seus amigos, convivem numa nova experiência de caridade profunda.

Mas não sabemos se essa solução é aplicável em nosso país.

Nem sabemos se o seguro especial, instituído pelo Instituto de Resseguros, é praticável e trará segurança para o futuro do excepcional. O que sabemos é que não há angústia maior para os pais do que essa pergunta: — Que será feito amanhã do meu filho?

Pois, enquanto menor, o excepcional participa da sorte do grupo familiar. Mas quando faltam os pais? Se não houver irmãos? Se os irmãos não puderem com essa carga, amorável mas duríssima?

E, entretanto, o sorriso dessa pureza total pode iluminar uma vida!

O ano passado, no dia da instalação do V Encontro, dirigi-me em carta aberta ao Presidente Ernesto Geisel. Nela, depois de lembrar que o cálculo do número de excepcionais no Brasil se fazia por simples conjectura, chegando os pessimistas a 8 milhões, acentuava que a área educativa se confunde com a da assistência e os assistidos para educação, segundo o levantamento oficial, procedido pelo Cenesp (Centro Nacional de Educação Especial), dirigido excelentemente pela professora Sarah Couto César, era, naquele ano, apenas 96 mil 256. Entre eles a lei incluía deficientes da visão, da audição, físicos, mentais, com deficiências múltiplas, com desvio de conduta e mesmo superdotados. E nem 100 mil se atendiam! E entre os 96 mil 256 figuravam — quase com zombaria!, escrevia eu — 43 superdotados. Os deficientes mentais assistidos pouco passavam de 60 mil: educáveis, 43 mil 318; treináveis, 13 mil 498; e dependentes em tudo, 4 mil 156. Essa era a situação em 1975. Não se terá alterado o quanto baste. Acrescentava eu que três pontos pareciam básicos:

“O primeiro é a criação de uma consciência coletiva. Ninguém é culpado. Mas todos são responsáveis.”

“O segundo são recursos, recursos, recursos.” E me dirigia ao

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Presidente: “Não me dê Vossa Excelência lágrimas, sei que não são o seu forte. Peço dinheiro.” Dizia mais: “Recursos... Se oficializassem o jogo do bicho e dessem ao excepcional todo o dinheiro da Zooteca, não creio que houvesse brasileiro a se indignar, mesmo entre aqueles que qualquer imposto revolta e qualquer jogo condena.”

O terceiro ponto decorria do caráter interministerial do problema, em cuja solução convergem os deveres de vários ministérios: planejamento, saúde, justiça, trabalho, educação, previdência e assistência. “O excepcional não pode ficar enclausurado nas estruturas de um ministério só.’’

Fez-me o Presidente a honra de comunicar, através dos Ministros Reis Velloso e Nascimento e Silva, que lera minha carta e o texto que escrevera para o Jornal do Brasil no mesmo dia, e com esses escritos se impressionara. Creio ter ouvido notícia idêntica dos Ministros Ney Braga e Golbery do Couto e Silva. E não foi outra a que recebeu o Secretário de Assistência do Ministério da Previdência, Marcos Candau.

Por ocasião do Encontro de Escritores de Brasfiia, este ano, fiz parte do grupo que foi ao Palácio do Planalto cumprimentar o Presidente. Tratado por ele com a afabilidade costumeira, falei-lhe no drama do excepcional e perguntei-lhe pelo projeto de Loteria Popular. Ponderou-me o Presidente haverem surgido objeções quanto à insistência por parte do Governo da União na política de recorrer à poupança popular através da loteria. Insisti na necessidade de novos e suficientes recursos públicos não só para impedir o desaparecimento das entidades assistenciais, educativas e científicas existentes, incentivando a ampliação dos seus serviços, como para permitir a criação de novas entidades através do território nacional, sob pena de ter o Estado de tomar os excepcionais a seus próprio

cargo, possivelmente com menor eficiência e certamente com maior despesa.

Sei que há quem, dentro de critérios morais respeitáveis, prefira ver o jogo, embora proibido, praticado quase às escancaras, a tê-lo oficializado. Teme-se que, neste caso, a área de corrupção se dilate ao invés de restringir-se, os capitais empregados no jogo do bicho se desloquem para a droga, e o caminho para o retorno da permissibilidade dos jogos de azar fique aberto.

Gostaria de pedir a atenção para alguns aspectos de assistência ao menor e do amparo à excepcionalidade em geral, e da utilização da Loteria Popular como fonte captadora de recursos.

Quanto aos primeiros, cabe ponderar que a presença de menores e de excepcionais desassistidos perturba profundamente a força de trabalho em todo o país. E certo que as duas áreas não se excluem, sendo notório que numerosos menores desassistidos são excepcionais e que, excepcionais ou não, menores desassistidos frequentemente se tornam menores delinquentes ou, para usar o eufemismo da lei, menores com desvio de conduta. Nessas circunstâncias, o problema atinge a área do desenvolvimento econômico e social, além dos limites da simples solidariedade humana ou da compulsividade emotiva. Com uma área de cinco a oito milhões de menores desassistidos, em parte confluente, e tomando para raciocinar um número de doze milhões, uma décima parte da população brasileira necessita amparo urgentíssimo do Estado para evitar as repercussões negativas da sua presença sobre o binômio “segurança e desenvolvimento”. Só isso justificaria a ação, em grande escala, dos Poderes Públicos, sobretudo se se tiver em vista que a criminalidade juvenil e a criminalidade profissional são alimentadas, em parte, mas diretamente, por esse gravíssimo problema.

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Quanto à Loteria Popular creio que a oficialização do jogo do bicho tenderia a diminuir, em termos mais ou menos profundos, a extensa zona de criminalidade ligada à prática dessa contravenção, área que vai do assassínio à corrupção e que cem anos de repressão não conseguiram extinguir. Há quem lhe calcule a dimensão financeira em duzentos milhões de cruzeiros de apostas semanais só no Rio de Janeiro, e quem aponte cinquenta milhões de cruzeiros diários no Rio e cem milhões de cruzeiros em São Paulo. Imagine-se o efeito desse gigantesco volume de poupança popular inorgânica refluindo para a assistência à infância abandonada ou carenciada e para a solução

— na maioria em que exista solução acaso possível — dos problemas da excepcionalidade, ao invés de continuar teimosamente a resistir aos organismos de repressão, corrompendo-os, e de confluir para alimentar a fortuna de meia dúzia de contraventores afortunados, instituídos em poderosa organização, que usa para sobreviver de todos os processos, não recuando nem mesmo diante do assassinato na luta interna entre bandos rivais.

Essa máfia poderá mobilizar contra a Loteria Popular gigantesca mola monetária. Só um Governo da autoridade moral do Governo do Presidente Geisel é que está em condições de desferir contra ela o golpe proposto no projeto da Loteria Popular. Um fenômeno social como o jogo do bicho, com raízes históricas na pobreza das classes menos favorecidas e na sua esperança de sobrevivência econômico-financeira quotidiana mediante apostas de pequeno valor, não pode ser considerado através de receios éticos, por mais respeitáveis que se definam, sobretudo quando se considera que a criminalidade profissional se alimenta das condições atuais da prática dessa contravenção, inerradicada e, ao que tudo indica, inerradicável. E quando se lembra que outras formas de jogo de azar são toleradas, desde a inocência do leilão da quermesse e da rifa beneficente, aos

páreos simpáticos do turfe.

E a receptividade popular se acrescentará certamente se os resultados líquidos da Loteria Popular se destinarem ao menor desassistido ou carenciado e ao excepcional, em relação a cujos problemas já se começa a esboçar, se é que já não se criou uma consciência de responsabilidade na opinião pública, com aquela convicção de que ninguém é culpado mas todos são responsáveis.

E não esqueçamos, como dizia Jean Vanier, que diante de um copo d’água pela metade, alguém pode exclamar:

— “Que pena! Está metade vazio!” Mas outro alguém haverá que se alegre: — “Que alegria! Tem água pela metade! E é vida!”

Jornal do Brasil, 12.7.76

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