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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LINGUÍSTICA SARAH LORIATO RODRIGUES MI PARLO TALIÀN: UMA ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA DO BILINGUISMO PORTUGUÊS-DIALETO ITALIANO NO MUNICÍPIO DE SANTA TERESA, ESPÍRITO SANTO VITÓRIA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM LINGUSTICA

SARAH LORIATO RODRIGUES

MI PARLO TALIN: UMA ANLISE SOCIOLINGUSTICA DO

BILINGUISMO PORTUGUS-DIALETO ITALIANO NO MUNICPIO

DE SANTA TERESA, ESPRITO SANTO

VITRIA

2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM LINGUSTICA

MI PARLO TALIN: UMA ANLISE SOCIOLINGUSTICA DO

BILINGUISMO PORTUGUS-DIALETO ITALIANO NO MUNICPIO

DE SANTA TERESA, ESPRITO SANTO

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

de Ps-Graduao Stricto Sensu em Lingustica do

Centro de Cincias Humanas e Naturais da

Universidade Federal do Esprito Santo.

Orientadora: Profa Dra Edenize Ponzo Peres.

Coorientador: Prof. Dr. Alexsandro R.Meireles.

VITRIA

2015

Aos teresenses, seus descendentes

e seus antepassados.

AGRADECIMENTOS

Agradeo, em primeiro lugar, a Deus, pela proteo e por colocar em

meu caminho pessoas que me ajudaram, tornando possvel a realizao deste

estudo. A toda minha famlia, que sempre me apoiou nessa caminhada. Em

especial minha me, pelo amor, incentivo e por ter cultivado em mim o amor

pela nostra Italia. A minha irm Selma, pela amizade e companheirismo. A

minha irm Juliana, pela leitura desta dissertao e por suas sugestes

valiosas. Ao Nicola, por ser sempre to presente na minha vida, mesmo

quando est distante. A minha prima, Ana Senair Vigan, que muito me ajudou

durante a coleta de dados. A Lauretta e Bruna, pelo carinho com o qual me

receberam em Camposampiero, Padova terra de origem de meus ancestrais.

Retornar a esse lugar 137 anos aps eles terem partido da Itlia para Santa

Teresa, e ainda ser to bem recebida por vocs, foi uma grande emoo.

Meu agradecimento especial a minha orientadora Edenize Ponzo Peres,

pela orientao, por acreditar no meu trabalho e pelo incentivo. Muito obrigada

por ter me recebido em seu projeto desde a graduao. Foi ali que tudo

comeou! Agradecimento especial tambm ao meu coorientador Alexsandro R.

Meireles, pela disponibilidade e por compartilhar comigo seu conhecimento.

profa. Annita Gullo, pelas informaes preciosas e por ter aceitado participar da

banca examinadora, o que me deixou muito feliz. profa. Janayna Casotti

pelos valiosos comentrios e sugestes, quando do exame de qualificao do

mestrado. Ao prof. Rivaldo por ter aceitado participar da minha defesa.

profa. Chiara Meluzzi, por ajudas que seria impossvel numerar. Ao

prof. Cinotto e a Giampiero Rorato, pelas referncias bibliogrficas fornecidas.

A Giulia Biasco, pela amizade e apoio durante o perodo em que estive em

Veneza. A Vicenzo Braga, Antonietta Favaretto e Caterina Tonello, por terem

me ajudado durante a coleta de dados no Vneto.

A Renzo Tommasi e toda sua famlia, por terem me ajudado e me

recebido to bem em Trento. A Silvia Gradin, Bianca Caserotto e Pio Rattin,

que to gentilmente me receberam em Canal San Bovo. A Gabriele Mattedi,

Diego Dalmonech, Gino Tramontin, Fabio Vitali e Vittorio Ingegneri, por terem

me presenteado com livros valiosssimos. A Milena Bassoli, funcionria da

Biblioteca Comunale di Trento, que tanto me ajudou durante a pesquisa

bibliogrfica.

Agradeo a Elga e famlia Disperdi, Daniele Marconcini e Alessandro

Fracassi, por terem me recebido to bem em Mntova. A Licia Mari, Mons.

Giancarlo Manzoli, Alessandra Pignatta, Gilberto Scuderi, Raffaella Tessaro,

Luigi Tacconi, Maria Armani, Domizio Bagnara, Antonella Giordani, Antonella

Mott, Diego Margon, Biancamaria Bazzanella e Mariano Monauni, pela valiosa

ajuda durante a coleta de dados na Itlia.

Agradecimento especial a Clarinda Ferrari, Antnio Angelo Zurlo, Clio

Perini, Luiza do Carmo Loss, Maria Ana Loss, Amelia Giurizzato, Lourdes

Gozzer, Valentin Vago e Giuvncio Pedroni. Aos amigos Gustavo, Daniele e

Patrick, por sempre torcerem por mim. Aos ex-colegas de trabalho e amigos do

Fisk da Praia da Costa, Aladir, Antnio e Leila. Aos meus alunos-amigos Ana,

Helena e Nicodemus. As amigas Kriscila e Marilda, por terem me incentivado a

realizar esse curso.

A Raquelli, pelo apoio e amizade sincera durante o perodo do mestrado.

A todos os professores que contriburam para a minha formao desde o

ensino fundamental at o mestrado. profa. Penha Lins, pela agillidade com

que preparou a documentao para que eu pudesse participar do programa

Visiting Students junto a Universit Ca'Foscari di Venezia. A Luciana, secretaria

do PPGEL, por sempre ter me ajudado quando precisei.

Aos funcionrios dos Arquivos de Estado do Esprito Santo e das

parquias, dioceses, prefeituras e Arquivos de Estado italianos, pela ajuda

durante a pesquisa.

FAPES e CAPES pelas bolsas de estudo concedidas.

Por ltimo, mas no menos importante, gostaria de agradecer a todas as

famlias teresenses e italianas, que com muito carinho me receberam.

Obrigada por compartilharem comigo suas histrias de vida, sentimentos e

recordaes. Sem a ajuda de vocs, este estudo no teria sido realizado.

RESUMO

A presente dissertao investiga o atual estgio de manuteno das

variedades dialetais da Itlia setentrional no municpio de Santa Teresa,

localizado na regio serrana do Esprito Santo. Este trabalho se justifica

porque, aps 141 anos da chegada dos primeiros italianos a esse municpio,

ainda no existem estudos que abordem questes relacionadas aos dialetos

italianos da localidade. Considerando esse cenrio, o objetivo deste estudo

oferecer um panorama da situao bilngue portugus-dialeto italiano no

municpio, com a identificao das reas de maior ou menor uso do dialeto e

ainda os fatores determinantes para a escolha lingustica, os domnios de uso e

as atitudes lingusticas dos falantes. Um segundo objetivo do estudo foi

documentar algumas tradies orais italianas ainda presentes em Santa

Teresa. Os dados foram coletados por meio de observao participante,

questionrio sociolingustico e 146 entrevistas semiestruturadas, nas quais os

informantes foram divididos por local de residncia (zona rural e urbana) e em

trs faixas etrias (entre 08-30 anos, 31-60 e acima de 60 anos de idade). Os

resultados encontrados revelam que o termo talin, que significa italiano nos

dialetos da Itlia setentrional (cf. BOERIO, 1856; RICCI, 1906 etc.), usado

pela maior parte dos falantes da faixa etria acima de 60 anos das zonas rural

e urbana. Analisando diacronicamente o processo de uso do dialeto italiano

atravs dos diferentes domnios, no perodo da infncia dos informantes e na

atualidade, possvel verificar a perda do dialeto no trajeto de vida dos falantes

das faixas etrias de 31-60 anos e dos acima de 60 anos. Entre os informantes

da faixa etria de 08-30 anos, verifica-se um quase completo monolinguismo

portugus. Entre os informantes da faixa etria de 31-60 anos, o uso do dialeto

italiano fortemente influenciado pela idade do interlocutor: usam-no mais com

seus avs do que com seus pais, e com seus pais mais do que com seus

irmos. Entretanto, nenhum informante desta faixa etria relatou usar o dialeto

italiano com os filhos. Em resumo, o uso do dialeto italiano somente entre os

membros mais idosos indica o processo de sua substituio pelo portugus e

aponta que sua transmisso s geraes mais jovens est seriamente

ameaada. A anlise das atitudes lingusticas dos informantes acima de 60

anos permitiu constatar o desprestgio e o preconceito em relao ao uso do

dialeto no perodo da infncia dos informantes. Por outro lado, os relatos em

relao ao uso do dialeto na atualidade referem-se associao da lngua e da

cultura de origem italiana com elementos positivos; vontade explcita de

manuteno do dialeto pelos adultos e idosos, recuperao da lngua de

imigrao pelos informantes de 08-30 anos. Alis, entre os mais jovens,

percebe-se uma tentativa de retorno s origens, de valorizao da cultura e da

lngua dos antepassados.

Palavras-chave: Contato lingustico. Bilinguismo. Dialetos da Itlia

setentrional. Tradio oral.

ABSTRACT

This dissertation investigates the present status of maintenance of northern

dialectal varieties of Italian in Santa Teresa, located in the mountains of Esprito

Santo state in Brazil. This work is justified because 141 years after the arrival of

the first Italians in this town, there still have been no studies of the Italian

dialects spoken in the area. Considering this scenario, the objective of this

study is to offer an overview of the Portuguese-Italian bilingual situation in the

municipality, with identification of the areas of greater or lesser use of the

dialect, the determining factors in language choice, domains of use, and

linguistic attitudes of the speakers. A second objective of the study was to

document some oral Italian traditions still present in Santa Teresa. The data

were collected through participatory observation, a sociolinguistic questionnaire,

and 146 partly structured interviews, in which the informants were divided by

place of residence (rural or urban areas), and by three age groups (from 8-30

years of age, 31-60, and over 60). The results reveal that the term talin, which

means Italian in the dialects of northern Italy (cf. Boerio, 1956, Ricci, 1906,

etc.) is used by most speakers in the over-sixty age group in rural and urban

areas. Analyzing the use of the Italian dialect diachronically through different

domains, in the childhood period of the informants and at the present time, it is

possible to verify the loss of the dialect over the life of the speakers in the 31-60

and over-60 age groups. Among informants in the 8-30 age group, almost

complete Portuguese monolingualism is found. Among those between 31 and

60 years of age, the use of the Italian dialect is strongly influenced by the age of

the interlocutor: it is more common with grandparents than with parents, and

more common with parents than with siblings. However, no informant of this

age group reported using the Italian dialect with their children. In summary, the

use of the Italian dialect only among the oldest members indicates the process

of replacement by Portuguese and points to the fact that its transmission to

younger generations is seriously hampered. The analysis of linguistic attitudes

of the informants over 60 revealed a lack of prestige and prejudice against

using the dialect during the informants childhoods. On the other hand, reports

concerning the use of the dialect at the present time mention association of the

language and culture of Italian origin with positive feelings. There is evidence of

an explicit desire of adults and elders to maintain the dialect, and interest in

recovery of the language of immigration by informants from 8 to 30 years of

age. In fact, among the youngest, an attempt is evident to return to their origins,

along with attributing value to the culture and language of their ancestors.

Keywords: Linguistic contact. Bilingualism. Northern Italian dialects. Oral

tradition.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Cartaz comemorativo da Festa da Uva e do Vinho .................. 80

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1 - Placa comemorativa exposta na zona urbana de

Santa Teresa ................................................................... 120

LISTA DE GRFICOS

Grfico 1 - O que os jovens de Santa Teresa pensam sobre a Itlia ...... 176

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Mapa da Itlia setentrional.......................................................... 37

Mapa 2 - Mapa poltico da Itlia ................................................................ 38

Mapa 3 - Mapa dos dialetos da Itlia......................................................... 39

Mapa 4 - O municpio de Santa Teresa..................................................... 77

Mapa 5 - A localizao de Santa Teresa no Esprito Santo ...................... 78

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Quadro-resumo do perfil sociocultural dos entrevistados ....... 82

Quadro 2 - Definio dos informantes conforme os fatores extralingusticos analisados ................................................... 133

LISTA DE SIGLAS

L1 Lngua materna, primeira lngua

L2 Segunda lngua

IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico Artstico Nacional

INDL Inventrio Nacional de Diversidade Lingustica

APEES Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Percentual de analfabetos na Itlia de acordo com o ano.... 42

Tabela 2 - Denominao da variedade italiana de Santa Teresa, de

acordo com os informantes e local de residncia ................ 127

Tabela 3 - Habilidades lingusticas auto-declaradas em portugus e dialeto italiano, de acordo com o local de residncia ........... 134

Tabela 4 - Habilidades lingusticas auto-declaradas em portugus e em dialeto italiano, de acordo com a faixa etria ................. 136

Tabela 5 - Total de falantes do dialeto italiano no municpio de Santa

Teresa, de acordo com a faixa etria e local de residncia.. 138

Tabela 6 - Contexto de aquisio do dialeto italiano e do portugus,

de acordo com a faixa etria e o local de residncia ........... 139

Tabela 7 - Uso do dialeto italiano na infncia, no domnio domstico,

de acordo com os interlocutores ......................................... 143

Tabela 8 - Uso do dialeto italiano atualmente, no domnio domstico,

de acordo com os interlocutores ......................................... 144

Tabela 9 - Uso do dialeto italiano na infncia, no domnio vizinhana... 149

Tabela 10 - Uso do dialeto italiano atualmente, no domnio vizinhana.. 150

Tabela 11 - Uso do dialeto italiano na infncia, no domnio amizade.... 152

Tabela 12 - Uso do dialeto italiano atualmente, no domnio amizade.... 152

Tabela 13 - Uso do dialeto italiano na infncia, no domnio escola,

de acordo com os interlocutores ......................................... 154

Tabela 14 - Uso do dialeto italiano nas funes internas, na

atualidade ........................................................................... 166

Tabela 15 - Uso do dialeto italiano para bestemmiare .......................... 167

Tabela 16 - Atitudes dos jovens em relao ao dialeto italiano ............ 173

Tabela 17 - Atitudes dos jovens em relao ao ensino do italiano

standard e do dialeto nas escolas ...................................... 174

.

.

SUMRIO

1 INTRODUO ................................................................................... 21

2 DA ITLIA A SANTA TERESA SOBRE A IMIGRAO

ITALIANA E A CONSTITUIO LINGUSTICA................................. 25

2.1 O contexto histrico ......................................................................... 25

2.1.1 A Itlia e a Grande Emigrao....................................................... 26

2.1.2 Histrico da colonizao do Esprito Santo................................... 29

2.1.3 A imigrao italiana no Esprito Santo .......................................... 31

2.1.4 A imigrao italiana em Santa Teresa........................................... 33

2.1.5 A procedncia dos imigrantes italianos e a questo lingustica..... 33

2.2 A constituio lingustica da Itlia e de Santa Teresa .................... 33

2.2.1 Lngua e dialeto............................................................................. 34

2.2.2 Os dialetos italianos....................................................................... 36

2.2.3 Os dialetos da Itlia setentrional ................................................... 40

2.3 A situao lingustica italiana: do final do sculo XIX aos dias

atuais ................................................................................................. 41

3 FUNDAMENTAO TERICA: A SOCIOLIGUSTICA, O

CONTATO LINGUSTICO E O BILINGUISMO .................................. 44

3.1 Lnguas em contato e o bilinguismo ............................................... 44

3.1.2 Processos de aquisio da lngua materna e da segunda lngua 47

3.2 Lngua materna, lngua 2 e lngua estrangeira ............................... 49

3.3 Diglossia ......................................................................................... 51

3.4 Domnios de uso da lngua ............................................................. 53

3.5 A lngua como identidade ............................................................... 62

3.6 As atitudes lingusticas ................................................................... 64

3.6.1 Atitudes em relao s lnguas minoritrias ................................ 66

4 METODOLOGIA DA PESQUISA ....................................................... 73

4.1 Implicaes metodolgicas dos objetivos do estudo ...................... 73

4.2 Metodologia de pesquisa qualitativa e quantitativa ........................ 74

4.3 A pesquisa sociolingustica ............................................................. 75

4.3.1 A escolha da localidade ............................................................... 75

4.3.2 A escolha dos informantes ........................................................... 80

4.3.3 Histrico dos informantes ............................................................. 83

4.3.4 Instrumentos de coleta de dados e procedimentos de

aplicao....................................................................................... 84

4.3.4.1 Observao participante ........................................................... 84

4.3.4.2 Entrevista semiestruturada ....................................................... 85

4.3.4.3 Entrevista no estruturada ........................................................ 86

4.3.4.4 Entrevista estruturada ............................................................... 87

4.4 O registro das tradies orais italianas .......................................... 90

4.5 Procedimentos na anlise dos dados ............................................ 90

5 A TRADIO ORAL DOS DESCENDENTES DE ITALIANOS

EM SANTA TERESA ......................................................................... 92

5.1 A provenincia dos antepassados italianos dos informantes.......... 93

5.2 A vida tradicional ............................................................................. 95

5.2.1 As relaes externas .................................................................... 96

5.2.2 As relaes internas ..................................................................... 100

5.3 A famlia .......................................................................................... 103

5.4 A alimentao ................................................................................. 104

5.5 Documentao de canes ............................................................ 114

6 A SITUAO BILNGUE PORTUGUS-DIALETO ITALIANO

EM SANTA TERESA ......................................................................... 126

6.1 A variedade italiana de Santa Teresa ............................................. 126

6.2 O grau de bilinguismo portugus-dialeto italiano ............................ 132

6.2.1 A atuao dos fatores extralingusticos ....................................... 132

6.2.1.1 Local de residncia dos informantes ......................................... 133

6.2.1.2 Faixa etria ................................................................................ 135

6.3 O contexto de aquisio do dialeto italiano e do portugus ........... 138

6.4 Os domnios de uso do dialeto e do portugus em Santa .............

Teresa: uma anlise diacrnica ....................................................... 141

6.4.1 O domnio famlia ......................................................................... 142

6.4.2 O domnio vizinhana .................................................................. 149

6.4.3 O domnio amizade ..................................................................... 151

6.4.4 O domnio escola ......................................................................... 153

6.4.5 O domnio comrcio e instituies pblicas ................................. 157

6.4.6 O domnio meios de comunicao ............................................... 159

6.4.7 O domnio religio ........................................................................ 163

6.5 O uso do dialeto nas funes internas ............................................ 166

6.6 As atitudes lingusticas dos falantes ............................................... 169

6.6.1 Atitudes em relao ao uso do dialeto no passado ..................... 169

6.6.2 Atitudes em relao ao uso do dialeto na atualidade .................. 171

6.6.3 Atitudes em relao Itlia e cultura italiana ........................... 175

7 CONSIDERAES FINAIS ................................................................ 178

8 REFERNCIAS .................................................................................. 183

APNDICES ........................................................................................... 195

APNDICE A Roteiro de perguntas para a entrevista

semiestruturada ........................................................... 196

APNDICE B Ficha para elaborao do histrico dos entrevistados.. 199

APNDICE C Questionrio Sociolingustico ....................................... 200

APNDICE D Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............. 204

21

1 INTRODUO

A presente dissertao resulta de uma pesquisa sobre a presena das

variedades dialetais da Itlia setentrional como lnguas de imigrao em Santa

Teresa, municpio localizado na regio serrana do estado do Esprito Santo.

Devido imigrao em massa no final do sculo XIX, centenas de italianos

provenientes de diversas provncias do norte da Itlia se estabeleceram em

diferentes localidades que constituem, hoje, o municpio de Santa Teresa.

Este trabalho se justifica porque, aps cento e quarenta e um anos da chegada

dos primeiros italianos em Santa Teresa, ainda no existem estudos que

abordem questes relacionadas s variedades dialetais italianas nesse

municpio. Dessa forma, levanta-se uma srie de questes relacionadas atual

situao (scio)lingustica de Santa Teresa: quais dialetos italianos entraram

em contato com o portugus em Santa Teresa? Os descendentes de

imigrantes italianos esto mantendo o(s) dialeto(s) ancestral(is) ou o(s) esto

substituindo pelo portugus? Quando e com quem o(s) utiliza(m)?

Considerando os domnios de uso de duas lnguas, o que determina a escolha

entre uma e outra? Como os descendentes de italianos denominam a

variedade dialetal italiana por eles falada? Quais so as atitudes dos falantes

em relao ao dialeto italiano e ao italiano padro?

A presente pesquisa toma como rea de estudo as relaes entre o portugus

neste caso, a lngua nacional, majoritria, de status mais elevado e de maior

prestgio e o dialeto italiano1 representado por variedades dialetais

trazidas pelos imigrantes italianos a partir do final do sculo XIX para o estado

do Esprito Santo. Trata-se de um estudo que aborda desde a constituio

lingustica e a formao do bilinguismo nos perodos iniciais da colonizao

italiana at a anlise atual das variedades dialetais italianas e do

comportamento lingustico dos falantes. Desse modo, o objetivo geral que

norteia este trabalho analisar a situao bilngue portugus/dialeto italiano no

municpio de Santa Teresa, contribuindo com os estudos sociolingusticos que

1 A escolha do uso do termo dialeto ser explicada mais adiante.

22

se desenvolvem em nosso pas acerca das lnguas de imigrao. Quanto aos

objetivos especficos, estipularam-se os seguintes:

a) Analisar a influncia dos fatores sociais idade e local de residncia

(zona urbana ou rural) para o uso das lnguas.

b) Verificar o grau de bilinguismo dos falantes (falar, ler, escrever e

entender) em relao ao dialeto italiano e ao portugus.

c) Discutir as atitudes lingusticas dos falantes em relao ao italiano

standard e ao dialeto italiano.

d) Analisar diacronicamente o processo de uso do dialeto italiano no

perodo da infncia dos informantes e na atualidade.

e) Identificar os domnios e as funes desempenhadas pelo portugus

e pela lngua de imigrao.

f) Documentar canes e tradies orais dialetais italianas2 ainda

presentes em Santa Teresa.

Com respeito a este ltimo objetivo especfico, Frosi e Mioranza (1983, p.80)

fazem o seguinte alerta: em breve espao de tempo, os dialetos no Brasil

deixaro de existir como sistema lingustico de comunicao. Todavia, os

autores apresentam algumas possibilidades de uso dos dialetos italianos no

Brasil e ainda sugerem formas de favorecer a preservao, a continuidade e o

incentivo do uso do dialeto italiano (1983, p. 80), como: incentivar as canes

dialetais e pesquisar e registrar as tradies orais. Portanto, espera-se que o

resgate das tradies orais dos imigrantes italianos contribua para a

manuteno desses importantes elementos na composio da identidade do

povo teresense e da populao capixaba.

Outra contribuio do presente estudo so os subsdios fornecidos aos

professores teresenses para a construo de uma prtica pedaggica voltada

2 Como tradio oral, entende-se a cultural material (conjunto de objetos vesturio, estilo de moradia,

utenslios etc) e tradies transmitidas oralmente de uma gerao a outra (FERRARO; ANDREATTA, 2010; VANSINA, 1985).

23

para a realidade sociolingustica da comunidade, com base em seus

interesses, necessidades e aspiraes.

Com base na reviso da literatura existente e em observaes realizadas em

estudos precedentes, dentro de nosso projeto de pesquisa elencaram-se sete

hipteses para posterior verificao:

(1) Os informantes mais idosos usam mais a variedade dialetal italiana

como sistema de comunicao do que os mais jovens.

(2) Existe uma maior manuteno dos dialetos italianos entre os

informantes da zona rural.

(3) Os entrevistados das faixas etrias mais jovens demonstram atitudes

de desprestgio em relao ao dialeto italiano e prestigiam o italiano standard.

(4) Os falantes no utilizam o termo "dialeto italiano" para se referir

variedade dialetal italiana por eles falada.

(5) A varivel social idade do interlocutor o que mais influencia a

escolha da lngua nos domnios analisados.

(6) Somente os entrevistados mais idosos tm desenvolvidas as

habilidades de ler, escrever, falar e entender o dialeto italiano.

(7) Apenas os informantes da faixa etria acima de 60 anos usam o

dialeto italiano para realizar contas, calcular, sonhar, pensar e bestemmiare3.

Alm desta introduo, este trabalho divide-se em mais cinco captulos. No

captulo 2, ser realizada uma contextualizao histrica do processo de

colonizao envolvendo os imigrantes que aqui se estabeleceram e abordam-

se alguns aspectos relativos aos dialetos e situao lingustica italiana: a

primeira parte do captulo apresenta uma sntese das principais motivaes

para a emigrao da Itlia, a fundao de Santa Teresa e o estabelecimento de

3 A bestemmia (blasfmia), aqui, considerada como uma ofensa, um insulto dirigido a uma divindade,

a uma religio ou algo que considerado sagrado. Neste estudo, leva-se em considerao que a bestemmia um elemento caracterizador da cultura popular italiana.

24

mltiplas colnias italianas no Esprito Santo. Em seguida, na segunda parte,

trata-se da origem e da classificao dos dialetos italianos, principalmente dos

dialetos que entraram na constituio e formao lingustica de Santa Teresa

nos primeiros anos de fundao dessa cidade. Na ltima parte do captulo, ser

abordada a situao lingustica da Itlia no final do sculo XIX e nos dias

atuais.

O captulo 3 d sustentao terica pesquisa realizada dentro da

Sociolingustica, do Contato Lingustico e do Bilinguismo. Apresenta definies

de termos importantes para a compreenso do estudo realizado, a saber:

lngua materna, lngua 2 e lngua estrangeira. So abordados o contato

lingustico, o bilinguismo, a diglossia, os domnios de uso das lnguas, a

identidade e os usos e funes da lngua(gem). O mesmo captulo aborda

ainda o papel das atitudes lingusticas nos processos de

manuteno/substituio lingustica de lnguas minoritrias.

O captulo 4 descreve a metodologia empregada para o conhecimento da

situao sociolingustica existente no municpio de Santa Teresa,

caracterizando, entre outras coisas, a comunidade em estudo e os

procedimentos empregados para a coleta e anlise dos dados.

O captulo 5, de cunho etnogrfico, buscar colocar em evidncia alguns

aspectos pertencentes a um conjunto de tradies e testemunhos orais

relativos colonizao italiana em Santa Teresa. Na primeira parte, sero

evidenciados testemunhos relativos vida camponesa nos anos iniciais da

colonizao. Na segunda parte, abordam-se as memrias relacionadas

alimentao de famlias descendentes de italianos de Santa Teresa. A ltima

parte do captulo ser dedicada documentao de canes dialetais italianas

ainda presentes em Santa Teresa.

O captulo 6 analisa quantitativa e qualitativamente a situao bilngue-

portugus-dialeto italiano no municpio de Santa Teresa.

Por fim, concluindo este trabalho, apresentam-se as Consideraes Finais

resultantes da pesquisa.

25

2 DA ITLIA A SANTA TERESA - A IMIGRAO

ITALIANA E SUA CONSTITUIO LINGUSTICA

Neste captulo, sero abordados dois temas bsicos para a compreenso das

anlises feitas ao longo desta dissertao. Na primeira parte do captulo, ser

apresentado o contexto histrico da Itlia e do Brasil - especificamente do

Esprito Santo e de Santa Teresa - no sculo XIX, poca em que ocorreu o

fenmeno e/imigratrio italiano. Na segunda parte, sero discutidos tpicos

concernentes s questes lingusticas tratadas neste trabalho: os conceitos de

lngua e dialeto, a constituio lingustica da Itlia e suas consequncias para

a(s) lngua(s) falada(s) em Santa Teresa.

2.1 Contexto histrico

2.1.1 A Itlia e a Grande Emigrao

Em meados do sculo XIX, a Europa Central entrava num processo veloz de

industrializao, trazendo mudanas profundas na vida socioeconmica de sua

populao. Por sua vez, a Revoluo Francesa vinha norteando e definindo

novos rumos do mundo ocidental. Desse modo, a Itlia especialmente as

regies setentrionais e fronteirias sofria em consequncia da dura realidade

da poca.

Os habitantes do Norte carregavam fardos insuportveis: as constantes

guerras regionais tiravam seus filhos e dizimavam as famlias; a agricultura

debilitada e a produo artesanal no conseguiam competir com as mquinas

industriais; o latifndio massacrava os pequenos agricultores, que comearam

a passar fome e a vagar pela Europa em busca de trabalho; e, para piorar essa

situao, aluvies e pragas assolavam as lavouras.

Esse conjunto de acontecimentos geraram um grande empobrecimento da

populao, causando falta de emprego e fome, principalmente aos

26

camponeses, fazendo com que houvesse emigrao definitiva em massa de

sua populao (FRANZINA, 2006).

Nesse contexto, a emigrao tornou-se uma alternativa "aventureira" para

muitos italianos que buscavam uma vida melhor (GROSSELLI, 2008) e uma

soluo conveniente para os governos da Itlia e do Brasil, especialmente do

Esprito Santo, como ser visto a seguir.

2.1.2 Histrico da colonizao do Esprito Santo

At meados do sculo XIX, a Provncia do Esprito Santo4 no passava de uma

mera diviso administrativa. No pesava na balana econmica nacional e no

tinha densidade demogrfica capaz de eleger ou prestigiar um lder que a

fizesse presente na trama administrativa do Imprio.

Aps a expulso dos jesutas, em 1759, os indgenas em territrio capixaba

eram aproximadamente 10.000 indivduos. Em 1856, o recenseamento

levantado pelo Baro de Itapemirim, vice-presidente em exerccio, constatou

49.000 habitantes atrasados, anmicos e debilitados por constantes

epidemias (DERENZI, 1974, p.28). Alm disso, viviam em comunidades que

no contavam com estradas nem escolas.

De acordo com Grosselli (2008), a densidade populacional no territrio

capixaba, no ano de 1874, era de dois habitantes por km2, fato que indicava

uma grande escassez populacional ou mesmo um verdadeiro despovoamento

da regio. Ademais, os habitantes no eram uniformemente esparsos pelo

territrio. A grande maioria das pessoas vivia em uma estreita zona ao longo da

costa litornea. Assim, o povoamento do territrio capixaba dependia da

penetrao do homem, derrubando matas, abrindo caminhos e plantando. Mas,

para que isso ocorresse, era preciso o elemento humano (DERENZI, 1974).

4 O Estado de Esprito Santo que, na poca da dominao portuguesa era sede de uma Capitania, tornou-se provncia do Imprio aps a declarao da Independncia do Brasil em 7 de setembro de 1882, e, com a Proclamao da Repblica Federativa em 15 de Novembro de 1889, obteve a denominao de Estado (NAGAR, 1895).

27

Assim, em 1852, o Presidente Evaristo Ladislau e Silva diria, a propsito:

[...] a primeira e vital necessidade da Provncia reside na falta

de gente vinda de outras regies, porque apenas assim obter

indispensvel incentivo para despertar o pas do sono que

dorme. O exemplo do estrangeiro, seu trabalho, seus costumes

e a concorrncia ensinaro aos filhos desta terra o que no

conhecem, e lhe incutir o desejo de fazer fortuna, ensinando-

lhes como obt-la (OLIVEIRA, 1975, p.353).

Entretanto, a experincia com a imigrao deu-se antes disso. A formao de

ncleos coloniais propriamente ditos, no Esprito Santo, deu-se em 1812, com

a fundao do Ncleo Santo Agostinho, hoje municpio de Viana, formado por

30 casais de habitantes das Ilhas Aores (NOVAES, 1968).

A experincia seguinte de transporte de imigrantes europeus para o territrio

da provncia do Esprito Santo aconteceu provavelmente5 entre 1828 e 1831

(GROSSELLI, 2008). De acordo com Oliveira (1975), aproximadamente em

1828 foram trazidos ao Esprito Santo alguns alemes para defender a estrada

que levava a Minas Gerais, provavelmente de ataques de ndios (OLIVEIRA,

1968, p.320). Segundo Baslio Carvalho Daemon (1879), o governo da

provncia destinou uma soma em dinheiro para que um certo senhor Henrici

trouxesse 400 alemes da localidade alem de Bremem. Estes deveriam ser

empregados na limpeza da estrada para Minas Gerais.

Daemon (1879) tambm afirma que, em seguida, chegaram outros 108 colonos

alemes, porm mais da metade de todos eles foram para o Rio Grande do Sul

ainda naquele ano. De acordo com Novaes (1968), o contrato com o senhor

Henrici datava em 1829. Os alemes chegaram efetivamente e foram

empregados a partir de maro de 1830 e, a partir de abril de 1831, chegaram

outros 105. Levy Rocha (1971) fala de 400 camponeses norte-americanos que,

em 1868, estabeleceram-se na zona do Rio Doce, mas a abandonaram em

seguida, fato tambm mencionado por Costa Pacheco (1978) (GROSSELI,

2008). Levy Rocha (1971) tambm menciona uma colnia privada, nascida em

5 Grosselli (2008) afirma que a questo do transporte de europeus para o territrio da provncia naquela

poca aparece confusa na bibliografia existente.

28

torno de 1865, s margens do rio Iconha e habitada por ingleses, que,

entretanto, no prosperou.

Devido a essas frustradas tentativas de colonizao, Grosselli (2008) afirma

que as colnias que deixaram marcas em termos de ocupao do territrio e

importao de caracteres culturais nacionais especficos no Esprito Santo

foram fundadas a partir de 1847.

Gilda Rocha (1984), em sua obra Imigrao Estrangeira no Esprito Santo

1847-1896, divide a histria da imigrao capixaba em trs fases: a primeira,

de 1847 a 1881, refere-se histria das quatro colnias nascidas no tempo do

Imprio - a Colnia de Santa Izabel, iniciada com imigrantes alemes; a colnia

de Rio Novo; a Colnia de Santa Leopoldina e a Colnia de Castello.

A segunda fase, de 1882 a 1887, situa-se entre a poca da completa abolio

de todos os auxlios e facilitaes concedidos aos imigrantes que se

estabeleciam nas colnias - e a definio das vantagens para os imigrantes

que desejavam estabelecer-se nas fazendas - e o ano em que governo da

provncia decidiu, por conta prpria, conferir novo impulso imigrao no

Esprito Santo. Nesta, surgiram novos ncleos coloniais (os quatros anteriores

haviam sido emancipados por volta de 1882),

A terceira fase, de 1886 a 1896, trata do perodo em que a imigrao destinada

s plantaes privadas ou a novos ncleos coloniais foi favorecida pelas

prprias autoridades de Vitria. Nesta fase foram criados os de Accioly

Vasconcelos, Moniz Freire, Demtrio Ribeiro, Afonso Cludio e Costa Pereira.

Derenzi (1974) afirma que a colonizao do Esprito Santo, de modo geral, foi

patrocinada pelo Regime Imperial a partir da criao das diversas colnias no

Estado. No entanto, as alteraes na poltica imigratria do Governo Imperial,

na virada da dcada de 1870, acabou por contrariar os interesses dos

colonizadores do Esprito Santo, j que se passou a privilegiar a grande lavoura

paulista, retirando os benefcios concedidos aos imigrantes (ROCHA, 1984).

Essa mudana levou estruturao de uma poltica imigratria local,

independentemente dos interesses do governo central, com a implantao de

29

diversos ncleos coloniais, que passaro a receber as novas levas de

imigrantes, principalmente italianos.

Resumidamente, pode-se afirmar que a imigrao italiana e germnica, entre

outras, no Esprito Santo, teve como objetivo primordial a colonizao e o

povoamento do grande vazio demogrfico que era o seu territrio no sculo

XIX (cf. NAGAR, 1995[1895]; GROSSELLI, 2008). Esse tipo de poltica

imigratria - com alvos demogrficos e de povoamento do territrio - resistiu no

Estado pelo menos at 1888. Somente com a abolio da escravatura que a

poltica imigratria do Esprito Santo passou, por presso dos fazendeiros da

regio sul, a encaminhar imigrantes italianos para as grandes fazendas de

caf, pois, no perodo anterior a 1888, os fazendeiros abastecidos de mo de

obra escrava conviviam pacificamente com os ncleos coloniais, chegando a

recusar as ofertas do governo da Provncia de abastec-los com mo de obra

imigrante (NAGAR, 1995[1895]).

2.1.3 A imigrao italiana no Esprito Santo

Segundo Derenzi (1974), em sua obra Os italianos no Esprito Santo, os

primeiros imigrantes italianos destinados Provncia do Esprito Santo eram de

Trento e foram trazidos por Pietro Tabacchi, que os esteleceram no municpio

de Santa Cruz, em terras a ele concedidas por Decreto Imperial 5.295 de 31 de

maio de 1872.

Em 1875 chegaram mais duas levas com imigrantes tiroleses: uma, trazendo

565 pessoas, foi encaminhada para o 2o Territrio da Colnia do Rio Novo6; a

outra, com 350 pessoas, foi encaminhada colnia de Santa Leopoldina.

Esta ltima leva desembarcou no Rio de Janeiro a bordo do navio Rivadavia e,

depois de cumprir quarentena, foram destinados ao Esprito Santo, chegando

ao porto de Vitria em dois grupos: no navio Ceres, 154 imigrantes; e no navio

Bahia, 163 migrantes. Ainda em 1875, chegaram no navio Fenelon 325

imigrantes. Em fevereiro de 1876, no navio Miholy, desembarcaram em Vitria

6 A colnia do Rio Novo era dividida em cinco territrios, sendo que o 2

o, 4

o e 5

o ficavam margem do

Rio Novo (DEMONER, 2011).

30

276 imigrantes. Em outubro de 1876, chegava ao Porto de Vitria o vapor de

guerra Werneck com 744 imigrantes, trazidos pelo navio Columbia, destinados

Colnia de Santa Leopoldina.

Essas levas sucessivas possibilitaram a ocupao de todo o territrio do

Timbuy, havendo necessidade urgente de criao de um novo ncleo para que

se pudessem estabelecer as novas levas, programadas e esperadas nos

prximos anos. Surge ento o ncleo Santa Cruz, fundado em 1877, que,

depois de ter recebido vrias denominaes, adotou a de Conde DEu,

homenagem ao chefe das foras brasileiras na Guerra do Paraguai, e de quem

o diretor da Colnia Aristides Armnio Guaran fora ajudante de Ordens.

Em agosto de 1877 chegavam, no navio Columbia, 55 famlias, num total de

275 imigrantes, destinados ao Ncleo Santa Cruz Morro das Palmas, na

confluncia com o rio Taquarau, de onde os imigrantes avanaram na direo

das matas virgens e terras devolutas.

A ocupao e posse das terras eram programadas segundo as convenincias

econmicas governamentais. Primeiro se fazia uma explorao da mata,

depois chegava a comisso de engenheiros e agrimensores, que procedia

medio dos prazos7.

No mesmo ano de 1877, no navio Isabella, que chegou em 17 de setembro de

1877, vieram 77 famlias (476 pessoas) procedentes das provncias do Norte

da Itlia, como Bergamo, Mantova, Padova, Brescia, Rovigo, Vicenza, Treviso,

Belluno, Trento e Verona, entre outras. A partir de 1880, verifica-se o

deslocamento do norte para o sul, sendo a Colnia Imperial do Rio Novo

preparada para receber os novos imigrantes.

Enquanto que, nos ncleos fundados ao norte de Vitria, as terras eram

devolutas, ao sul da capital a rea destinada colonizao estava recortada de

fazendas abandonadas e de sesmarias. A frente de ocupao se deu com a

criao, em 1880, do ncleo Castelo, que foi dividido em vrias sees, os

quais iam se multiplicando medida que novos grupos de imigrantes iam

7 Os terrenos eram denominados prazos porque tinham o prazo de dois anos para serem pagos.

31

chegando. As primeiras sees se chamaram: Araguaia, Carolina, Matilde,

Alexandria, Urnia e Vitor Hugo.

Em 1892, j no perodo republicano, foi firmado um dos maiores contratos para

a introduo de imigrantes italianos: o contratante foi Domenico Giffoni, que

recebeu do governo brasileiro o direito de introduzir 20.000 imigrantes

(NAGAR, 1895). No entanto, no foram introduzidos mais que 10.000, no

perodo de 1892 a 1895, pois chegaram Europa as notcias dos erros

cometidos por conta desse contrato e das ms condies a que eram

submetidos os imigrantes ao chegarem ao Esprito Santo. No foi sem razo

que, por ordem do Ministro dos Negcios Estrangeiros do Gabinete Italiano, por

decreto de 20 de julho de 1895, foi suspensa a imigrao italiana para o

Esprito Santo (DEMONER, 2001).

Encerrava-se, assim, temporariamente, um movimento que alterou toda a

estrutura socioeconmica do Esprito Santo e que determinou caractersticas

at hoje inconfundveis, ou seja, a maior parte dos capixabas descende desses

pioneiros italianos, que, procura de um futuro melhor para si e seus filhos,

tiveram a coragem de deixar sua terra natal e vir para outra totalmente

desconhecida. (DEMONER, 2001).

2.1.4 A imigrao italiana em Santa Teresa

Como j se disse, a primeira leva de imigrantes italianos para o estado veio por

concesso dada a Pietro Tabacchi, pelo Decreto Imperial 5.295, de 31 de maio

de 1872 (DERENZI, 1974). Por esse instrumento, Tabacchi se comprometia a

introduzir 700 imigrantes italianos e tiroleses no municcpio de Santa Cruz, no

Esprito Santo, em terras a ele concedidas, as quais denominou Nova Trento,

em homenagem cidade de seu nascimento8.

Assim, em 3 de janeiro de 1874, no porto de Gnova, 392 pessoas, a grande

maioria do Trentino e algumas do Vneto e da Lombardia, embarcaram no

Navio La Sofia, com destino s terras de Pietro Tabacchi. O navio era vela, o

8 Segundo Grosselli (2008), a Expedio de Pietro Tabacchi foi o primeiro caso de partida em massa de

imigrantes do norte da Itlia para o Brasil.

32

que poderia ser considerado um absurdo, visto que, quela poca, h muito

tempo existiam os navios a vapor com casco de ferro. No dia 17 de fevereiro do

mesmo ano, o La Sofia entrou no porto de Vitria, aps 45 dias de viagem

(BIASUTTI, 2005).

Aps terem permanecido uma semana em Vitria, os primeiros italianos em

solo capixaba foram transportados por um vapor brasileiro at a povoao de

Santa Cruz e, em seguida, at Nova Trento. No entanto, em maro de 1874,

houve a primeira revolta dos colonos contra o contrato de Tabacchi, pois

achavam que haviam sido logrados: "Tudo era trabalho penoso, insano e o

ouro to prometido e que parecia brilhar at alm do Atlntico, aqui no se via"

(MULLER, 1925, p.9).

Segundo Biasutti (2005), no dia 19 de maro de 1874, um grupo de italianos

fugiu da colnia de Tabacchi embrenhando-se pela floresta em direo

nascente do Rio Timbuhy, sendo os primeiros imigrantes a pisarem em solo

teresense: Paolo Casotti, Francesco Bassetti, Bernardo Comper, Lazaro Tonini,

Anibale Lazzari, Giuseppe Paoli, Daniele Palaoro e Abramo Zurlo. Ao

chegarem a Santa Teresa, encontraram alguns trabalhadores preparando a

chegada da imigrao oficial, patrocinada pela Provncia do Esprito Santo,

inclusive os barraces que acolheriam os imigrantes.

Sobre este mesmo assunto, Mller (1925, p.15) afirma: "O que certo que no

ano de 1874, embrenhou-se pelas florestas do Rio Timbuy, um corajoso grupo

de fugitivos", fazendo referncia aos imigrantes da Expedio Tabacchi. Sobre

esse grupo, Grosselli (2008, p. 198) afirma:

Os camponeses que deixaram a Colnia de Tabacchi e foram para Santa Leopoldina estabeleceram-se no Ncleo Timbuy ainda em formao, em uma localidade que chamaram Valsugana (que em seguida foi denominada Valsugana Vecchia, quando muitos deles se transferiram para outra zona do mesmo ncleo, denominada Valsugana Nuova (GROSSELLI, 2008, p.198).

Em 17 de abril de 1875, inicia-se, ento, a imigrao oficial para a Provncia.

Os imigrantes italianos embarcaram nesse dia no vapor Rivadavia com destino

33

ao Brasil. No dia 31 de maio de 1875, o Rivadavia chegou ao Esprito Santo e

os passageiros foram encaminhandos para o Ncleo Timbuy9 (DERENZI, 1974;

BIASUTTI, 2005).

No dia 26 de junho de 1875, aconteceu o sorteio dos lotes de terras para os

imigrantes, realizado pelo agrimensor Franz Von Lippes. Essa ficou sendo a

data oficial de fundao do Ncleo Timbuhy e da atual cidade de Santa Teresa.

Nos anos posteriores, mais levas de imigrantes italianos se estabeleceram na

localidade, dando incio configurao daquele territrio.

2.1.5 A procedncia dos imigrantes italianos e a questo lingustica

Segundo dados do APEES (2013), os imigrantes italianos que colonizaram o

Esprito Santo eram, em sua maioria, originrios do Vneto, do Trentino Alto-

dige e da Lombardia. Dessa forma, os primeiros imigrantes italianos que

chegaram a Santa Teresa tiveram que superar diversas dificuldades; entre

elas, talvez uma das mais difceis, foi a questo lingustica, pois, apesar de

possurem a mesma nacionalidade a italiana, existiam diversas diferenas

entre esse contingente populacional, principalmente se levarmos em

considerao que a recente Unificao Italiana havia colocado sob uma mesma

bandeira vrios povos e culturas distintas.

Assim, sabendo-se dessa realidade, na segunda seo, a seguir, sero

abordados aspectos relativos caracterizao lingustica desses imigrantes.

Na terceira e ltima seo, ser tratada a situao lingustica italiana do final do

sculo XIX at os dias atuais.

2.2 A constituio lingustica da Itlia e de Santa Teresa

Nesta segunda seo, ser analisada a constituio lingustica tanto da Itlia

quanto de Santa Teresa; entretanto, primeiramente, preciso abordar a

polmica em torno dos conceitos de lngua e dialeto.

9 Atual municpio de Santa Teresa.

34

Na Itlia, terra de origem dos imigrantes que se estabeleceram em Santa

Teresa, o termo dialeto amplamente utilizado para designar as variedades

dialetais italianas (cf. ROHLFS,1966; ZAMBONI, 1974; PELLEGRINI, 1977;

MARCATO e URSINI, 1998; MARCATO, 2007; LOPORCARO, 2013 etc). No

Brasil, o termo dialeto italiano tambm pode ser conferido em diversas

publicaes (FROSI; MIORANZA, 1983; FROSI, 1996; FROSI; DAL CORNO;

FAGGION, 2008 etc). Tendo isso em vista, no presente trabalho, optou-se por

usar o termo dialeto italiano em referncia variedade dialetal italiana que

falada no municpio de Santa Teresa.

No entanto, cabe aqui frisar que o uso do termo dialeto , por vezes, carregado

de preconceito e estigma. Pensando-se nisso, uma questo levantada pelo

presente estudo determinar como os falantes teresenses denominam a

variedade italiana por eles falada. Isso particularmente importante, se

pensarmos na hiptese de que, talvez, muitos falantes no utilizem a

expresso dialeto italiano para se referir variedade que falada em Santa

Teresa. Assim, o uso do termo dialeto por pesquisadores, durante a realizao

de entrevistas, poderia contribuir para a estigmatizao da variedade italiana

que falada na localidade. Dessa forma, esta autora, durante as entrevistas,

decidiu por utilizar a mesma denominao dada pelos informantes para a

variedade que falam. Isso posto, tem-se, a seguir, a reflexo a respeito de

lngua e dialeto.

2.2.1 Lngua e dialeto

Lngua e dialeto so termos que apresentam certa ambiguidade de sentido, o

que torna difcil seu entendimento. No h consenso universal sobre os

critrios usados para distingui-los, embora exista um certo nmero de

paradigmas, o que gera, s vezes, resultados contraditrios.

De modo geral, as distines entre lngua e dialeto no so determinadas

apenas por critrios lingusticos, mas principalmente por fatores de carter

histrico, cultural, poltico e social (TRUDGILL, 1992).

35

Como se disse anteriormente, o termo dialeto normalmente apresenta uma

conotao social mais negativa, ao contrrio de lngua, que vista como

instrumento de comunicao de prestgio. O termo dialeto, por sua vez,

muitas vezes associado a uma forma rural da lngua e, geralmente, classe

camponesa, trabalhadora ou a outros grupos sem prestgio. Alm disso, como

observam Chambers e Trudgill (1998, p.3):

"[...] Dialeto tambm um termo que frequentemente aplicado s

formas de lngua, particularmente aquelas faladas em partes mais

isoladas do mundo, que no tm forma escrita. E dialetos tambm so,

muitas vezes, considerados como algum tipo de (frequentemente

errneo) desvio da norma, como aberraes de uma forma correta ou

padro da lngua (CHAMBERS; TRUDGILL, 1988, p.3)10.

Para esses dois conceitos, em muitos casos, a Sociolingustica recorre ao

termo variedade. Podemos considerar variedade como um termo neutro11,

aplicvel a qualquer tipo de lngua considerada, sem especificaes mais

precisas (CHAMBERS; TRUDGILL, 1998, p.4). Segundo Fishman (1995), o

termo variedade tambm frequentemente utilizado na Sociologia da

Linguagem, com a inteno de dar ao termo uma designao no valorativa. O

termo variedade, diferentemente do termo dialeto, no indica status lingustico

de uma variedade em comparao com outras.

Repetindo-se o que se disse, neste estudo ser adotado o termo dialeto, pelo

fato de ser ele utilizado na Itlia para designar as variedades dialetais italianas

(cf. ROHLFS,1966; ZAMBONI, 1974; PELLEGRINI, 1977; MARCATO; URSINI,

1998; MARCATO, 2007; LOPORCARO, 2013 etc), mas que esse termo no foi

utilizado pela pesquisadora durante a coleta de dados em Santa Teresa (cf.

captulo metodolgico).

10

Do original: [...] dialect is also a term which is often applied to forms of language, particularly those spoken in more isolated area of the world, which have no written form. And dialects are also often regarded as some kind of (often erroneous) deviation from a norm - as aberrations of a correct or standard form of language (CHAMBERS; TRUDGILL, 1988, p. 3. Traduo nossa, como todas as constantes desta dissertao).

11 Neutral term (CHAMBERS; TRUDGILL, 1998, p.4).

36

2.2.2 Os dialetos italianos

Em vrios pases europeus, existem dialetos com rica tradio literria, mas

que foram suplantados pelo idioma nacional. o que acontece na Itlia, que

linguisticamente formada por variedades muito peculiares e distintas entre si

(cf. Mapa 3), sendo muito difcil, por exemplo, a comunicao entre um falante

do dialeto vneto (do Norte da Itlia) e um falante do napoletano (do Sul da

Itlia), se ambos usarem a sua variedade lingustica.

A sua origem complexa. Acredita-se que os dialetos italianos (talo-romance),

como todas as lnguas neolatinas, sejam fruto de uma continuao ininterrupta

do latim. Segundo Marcato (2007, p.21),

Os dialetos italianos so resultado de um processo de transformao e diferenciao do latim falado amplamente, atravs da conquista romana, no apenas na Itlia, mas em boa parte da Europa e ao longo da frica setentrional"12.

Hoje, o territrio italiano caracterizado por diversas ilhas dialetais, formadas

principalmente pelas subdivises de localidades, que assinalam a presena de

inmeras variedades lingusticas. No entanto, as classificaes dialetais

divergem de um autor para outro.

Segundo Loporcaro (2013), a classificao dos dialetos italianos que

atualmente utilizada como referncia a proposta por Giovan Battista

Pellegrini (1977), na Carta dei dialetti d'Italia. De acordo com esta proposta, os

dialetos italianos so classificados em cinco principais grupos:

1) Dialetos setentrionais.

2) Ladino-friulano.

3) Dialetos toscanos.

4) Dialetos centro-meridionais.

5) Sardo.

12

Do original: "I dialetti italiani sono il risultato di un processo di trasformazione e differenziazione del

latino parlato diffuso, attraverso la conquista romana, non solo in Italia ma in buona parte dell'Europa e lungo le coste dell'Africa setentrionale" (MARCATO, 2007, p. 21).

37

Visto que Santa Teresa foi colonizada essencialmente por imigrantes

provenientes do norte da Itlia, a presente dissertao considerar aqui apenas

os dialetos da Itlia setentrional, com vistas a uma melhor compreenso da

realidade lingustica do municpio. Os mapas a seguir apresentam a diviso

poltica da Itlia setentrional, da Itlia e os dialetos italianos, respectivamente.

Mapa 1. Mapa da Itlia setentrional

Fonte: . Acesso em: 10 out. 2014.

http://www.comuni-italia.it/

38

Mapa 2. Mapa poltico da Itlia

Fonte: . Acesso em: 10 out. 2014.

http://www.comuni-italia.it/

39

Mapa 3. Mapa dos dialetos da Itlia

Fonte: Pellegrini (1977).

40

2.2.3 Os dialetos da Itlia Setentrional

De acordo com a proposta de Pellegrini (1977), os dialetos da Itlia setentrional

so divididos em dois grupos principais: galo-itlico e vneto. Ambos - galo-

itlico e vneto -, foram os principais que entraram em contato com o portugus

em Santa Teresa, sendo subdivididos da seguinte forma: vneto, emiliano,

lombardo, piemonts e lgure.

O sistema vneto dividido por Pellegrini (1977) da seguinte forma:

i) Veneziano e lagunar, que compreende a provncia de Veneza;

ii) Padovano-vicentino-polesano ou meridional, que corresponde s provncias

de Padova, Vicenza e Rovigo;

iii) Trevisano-feltrino-beluns ou centro-setentrional, que corresponde s

provncias de Treviso e Belluno;

iv) Verons, que se localiza na rea geogrfica correspondente provncia de

Verona;

v) Triestino-giuliano, que corresponde area de influncia de Trieste;

vi) Trentino oriental, que compreende a Valsugana, Tesino e Primiero.

A rea emiliana dividida em: emiliano ocidental, emiliano oriental, romagnolo,

lunigiana, marchegiano setentrional, voghere-pavese e mantovano. E, por fim,

a rea lombarda compreende:

i) Lombardo ocidental, rea que inclui a provncia de Milo e parte de Como,

Varese e Pavia;

ii) Lombardo oriental, que compreende as provncias de Brgamo, Brescia e

Cremona;

iii) Lombardo alpino, que compreende a provncia de Sondrio e parte de Como;

iv) Novars e ossolano, que a rea de transio entre o lombardo e o

piemonts, mas com influncia mais fortemente lombarda;

41

v) Trentino ocidental, que compreende a parte ocidental da Provncia de

Trento, a qual conserva muitas caractersticas lombardas;

vi) Ladino-fiammazzo;

vii) Ladino-anunico.

Isso posto, passaremos terceira e ltima seo deste trabalho, que trata da

situao lingustica da Itlia.

2.3 A situao lingustica italiana: do final do sculo XIX aos dias atuais

Segundo De Mauro (1963), no momento da unificao poltica da Itlia (1861),

cerca de 80% da populao italiana era analfabeta e, nas provncias, a

percentagem dos italofoni estava em cerca de 2,5%.

Ainda segundo De Mauro (1963), com base em estimativas feitas por Coletti

(1912), relativas ao perodo de 1879 - 1910, pelo menos 80% dos indivduos

que emigravam das vrias regies italianas eram camponeses, trabalhadores

braais e mo de obra no qualificada. Em 1931, quando a mdia nacional

italiana de analfabetismo diminuiu para 21,6%, nas localidades rurais esses

nveis se mantinham em 29,6% (DE MAURO, 1963, p. 58-9).

O nvel de analfabetismo na Itlia pr-unificada e nas regies da Lombardia,

Emilia Romagna e Vneto pode ser conferido na Tabela 1. Vale aqui ressaltar

que os dados apresentados no incluem as regies do Trentino Alto-Adige e

Friuli Venezia-Giulia, uma vez que, dessas localidades, somente existem dados

disponveis a partir de 1921. Nessa data, o percentual de analfabetos para

duas regies mnimo (2,5 e 2,2%, respectivamente).

42

Tabela 1. Percentual de analfabetos na Itlia de acordo com o ano13

Analfabetos %

1861 1911 1951

ITALIA 75% 40% 14%

Lombardia 54% 13% 3%

Emilia Romagna 78% 33% 8%

Vneto 65% 25% 7%

Fonte: De Mauro (1963, p.95).

Nota: Adaptado pelo autor.

Hoje, a situao quase inversa. Cresce cada vez mais o nmero de italianos

que usam somente o italiano standard. De acordo com os levantamentos do

Istituto Nazionale di Statistica14 (ISTAT), sobre o uso dos dialetos e da lngua

italiana na Itlia, as pessoas que falam predominantemente o italiano no

ambiente domstico representam, no ano de 2006, 45% da populao italiana.

Esses valores aumentam em relao ao uso do italiano com os amigos (48,9%)

e, de maneira mais consistente, em relao ao uso do italiano com

desconhecidos (72,8%).

O uso predominante ou exclusivo do italiano standard est difundido

principalmente no Centro e no Noroeste da Itlia, em todos os contextos

analisados pelo ISTAT (2007). Por sua vez, o Vneto sempre esteve entre as

localidades com os maiores percentuais de uso da variedade local, em

detrimento do italiano padro. Em 2006, o uso predominante - ainda que no

exclusivo - do dialeto em famlia representava quase 69,90% dos informantes,

com um leve aumento no uso do dialeto tambm entre os jovens.

Esses resultados representam os maiores nveis nacionais de uso de um

dialeto. A manuteno do uso dos dialetos na Regio do Vneto deve-se a

13 Esto excludos os dados da Regio de Trentino Alto-Adige e Friuli Venezia-Giulia, pois existem dados somente a partir de 1921 e com um percentual mnimo de analfabetos (2,5 e 2,2%). 14

O ISTAT um rgo estatstico do Governo Italiano. Foi institudo em 1926, durante o fascismo, para coletar informaes sobre a vida econmica e demogrfica na Itlia.

43

alguns fatores: em primeiro lugar, estruturalmente, os dialetos do grupo Vneto

so bem prximos do italiano, ou seja, um falante de vneto seria mais bem

compreendido por um falante do italiano padro do que, por exemplo, um

falante do dialeto napolitano.

O segundo motivo para essa manuteno o maior prestgio do Vneto ao

contrrio dos demais dialetos. H uma tradio de seu uso mesmo em

situaes relativamente formais. No tempo da Repblica de Veneza, o

veneziano era, por exemplo, usado em instituies oficiais e tambm na escrita

(CORTELAZZO, 1982). A tutela, a valorizao e a promoo do patrimnio

lingustico e cultural da Regio do Vneto so tambm assegurados pela Lei

Regional nmero 8, de abril de 2007.

O nvel de escolarizao tambm influencia fortemente a escolha da lngua. Os

dados do ISTAT (2006) demonstram que o uso predominante do dialeto com os

amigos e com a famlia maior entre os indivduos com menor instruo

escolar. Alm disso, como afirma Grassi (2002), o nvel de instruo

seguramente uma varivel que exerce grande influncia no processo de

italianizao dos dialetos e tambm na substituio do seu uso pelo do italiano

padro.

Fazer as reflexes sobre as questes lingusticas concernentes Itlia, do

sculo XIX at os dias atuais, essencial para esta pesquisa, tendo-se em

vista que um dos objetos deste estudo o registro da diversidade lingustica de

Santa Teresa. No prximo captulo, ento, apresentam-se os pressupostos

tericos que fundamentaram esta pesquisa.

44

3 FUNDAMENTAO TERICA: A SOCIOLINGUSTICA,

O CONTATO LINGUSTICO E O BILINGUISMO

Este captulo, que tem por objetivo situar o objeto de estudo no mbito da

Sociolingustica, do Contato Lingustico e do Bilinguismo, encontra-se

estruturado em oito sees. Na primeira (3.1), abordam-se os pressupostos

tericos do trabalho no mbito dos estudos de lnguas em contato e

bilinguismo. Em 3.2, discutem-se alguns conceitos e terminologias importantes

para a compreenso do presente estudo, a saber: lngua materna, lngua 1,

lngua 2 e lngua estrangeira. Em 3.3, discute-se a noo de diglossia. Na

seo 3.4, apresenta-se a definio de "domnios" e os diversos estudos j

realizados sobre esse tema. Em 3.5, discute-se a relao entre lngua e

identidade. Finalmente, em 3.6, aborda-se o conceito de atitudes lingusticas e,

na subseo 3.6.1, traa-se um panorama dos principais estudos j realizados

sobre o papel das atitudes lingusticas nos processos de

manuteno/substituio de lnguas minoritrias. Nessa etapa, particular

ateno ser dada correlao entre atitudes lingusticas e os fatores

identidade, prestgio, status socioeconmico, status da lngua, solidariedade e

redes sociais.

3.1 Lnguas em contato e o bilinguismo

A situao de contato entre duas ou mais lnguas promove uma srie de

fenmenos (socio)lingusticos. Entre eles est o bilinguismo, que se origina do

contato de indivduos falantes de uma lngua com falantes de outra(s). No

entanto, o conceito de bilinguismo bastante complexo e pode ser considerado

a partir de vrias perspectivas.

De acordo com Appel e Muysken (1992, p.1), o bilinguismo pode ser definido

como individual, quando diz respeito a um s falante, ou societal, quando

envolve toda uma comunidade bilngue. No caso de Santa Teresa, a situao

de contato lingustico resulta do processo de colonizao, iniciado no final do

45

sculo XIX, o qual ps em contato a fala de imigrantes italianos com o

portugus. Trata-se, portanto, de uma situao de bilinguismo societal, pois

envolve toda uma comunidade de fala, embora nem todos os falantes do grupo

possam apresentar um comportamento homogneo quanto ao grau de

bilinguismo.

Uma das primeiras definies do bilinguismo foi dada por Bloomfield, em 1933,

que, utilizando critrios rigorosos, considerava que o falante bilngue deveria ter

o domnio das duas lnguas como um falante nativo (native like speaker). Mais

adiante, no ano de 1953, Haugen (p.7) defende o bilinguismo como sendo a

capacidade de produzir sentenas com sentido completo na segunda

lngua"15. Uma extenso desse conceito encontra-se em Weinreich (1974

[1953], p.1), que descreve o biliguismo como "a prtica de usar alternadamente

duas lnguas"16 e as pessoas envolvidas, ele denominou bilngues.

No entanto, essas definies, bastante gerais, fornecem poucas informaes

sobre o quanto duas lnguas devem ser conhecidas pelo falante, para ele ser

considerado bilngue. Alm disso, no mencionam a possibilidade de haver

variao de proficincia no uso que os bilngues fazem de suas habilidades de

falar, escrever, ler ou ouvir. Diante disso, Mackey (1972) prope uma

ampliao do conceito de bilinguismo, de modo a incluir o conhecimento

passivo de uma lngua ou a habilidade de usar uma segunda lngua no

ambiente de uso nativo dessa lngua.

Para Mackey (1972), as habilidades de indivduos bilngues no poderiam ser

as mesmas para ambas as lnguas e em todos os nveis lingusticos; portanto,

essa proficincia deveria ser avaliada em diversos mbitos. Por considerar o

bilinguismo um fenmeno complexo, Mackey (1972, p.556) prope ainda um

sistema de classificao que possibilita uma anlise tipolgica das

caractersticas do comportamento bilngue. Esse sistema envolve quatro

aspectos, de acordo com os quais o autor considera que o bilinguismo deve ser

descrito: "Bilinguismo um padro de comportamento de prticas lingusticas

15

Complete meaningful utterances in the other language (HAUGEN, 1953, p.7). 16

Weinreich (1974 [1953], p.1) definiu o bilinguismo como sendo "the practice of alternately using two languages, e as pessoas envolvidas ele denominou de bilingual (bilngue).

46

que se modificam mutuamente, variando em grau, funo, alternncia e

interferncia17 (MACKEY, 1972, p. 556).

Na concepo do autor, o grau de bilinguismo refere-se habilidade do

indivduo no uso de cada uma de suas lnguas. O autor tambm salienta que as

habilidades de fala, leitura, compreenso e escrita podem no ser as mesmas

em todos os nveis lingusticos. Por exemplo, um indivduo pode ter um vasto

vocabulrio em uma lngua, mas o nvel de pronncia ser muito baixo; ou ter

uma boa pronncia e cometer muitos erros gramaticais. J a funo o uso

que o bilngue faz da lngua e sob quais condies ele a utiliza.

As funes internas influenciam a habilidade do bilngue em resistir ou

aproveitar-se das situaes com as quais entra em contato. Englobam usos

no-comunicativos (contar, calcular, xingar, rezar, sonhar, escrever em um

dirio e fazer anotaes) e expresso de atitudes intrnsecas, que so

provveis fatores que influenciam a atitude do bilngue (sexo, idade,

inteligncia, memria, atitude lingustica e motivao).

Mackey (1972) tambm chama a ateno para o caso do bilinguismo receptivo

ou passivo, prprio de muitas crianas filhas de imigrantes, que entendem e

leem, mas no falam a lngua estrangeira. Ele prope, tambm, que os nveis

fonolgico, gramatical, lexical, semntico e estilstico sejam deteminados em

cada lngua. Por exemplo, o bilngue pode ter um problema de fluncia fontica

muito grande e ainda comportar-se como um nativo nos outros nveis. Para

esse autor, o grau de proficincia em cada lngua depende de sua

funcionalidade, isto , depende do uso e das condies em que o bilngue faz

uso da lngua.

Mais adiante, Grosjean (1982) defender uma definio funcional do

bilinguismo: o uso regular de duas lnguas por uma pessoa. Para ele, a fluncia

do bilngue pode ser maior em uma das lnguas que sabe. O domnio de uma

lngua, por parte de uma pessoa, depende tambm das habilidades lingusticas

de falar, escrever, ler e ouvir, da situao, do tpico de conversao e do

interlocutor. O autor afirma que o uso das lnguas por um bilngue

17

"Bilinguilism is a behavioural pattern of muttualy modifying linguistic practices varying in degree, function, alternation and interference.

47

determinado pela necessidade: se uma habilidade particular no necessria,

ela no se desenvolver. O indivduo bilngue, na concepo do autor, seria

aquele que possui uma das quatro habilidades lingusticas (fala, leitura,

audio e escrita) em uma dada lngua.

Outra perspectiva de bilinguismo foi apresentada por Li Wei (2006), em sua

obra The Bilingualism Reader, situando os estudos dos bilngues e do

bilinguismo em trs reas: 1) Sociolingustica, concentrando os estudos sobre a

escolha das lnguas, diglossia e bilinguismo, interao social e code-switching;

2) Lingustica, que abarca os estudos da gramtica do code-switching e a

aquisio da linguagem por crianas bilngues; e 3) Psicologia, que congrega

estudos sobre o crebro e o processamento do discurso bilngue.

Seguindo a perspectiva de Li Wei, o presente trabalho ir concentrar-se na

anlise sociolingustica do bilinguismo, dando especial relevncia aos fatores

que afetam o uso e a escolha das lnguas. Antes, porm, sero abordados os

processos de aquisio da lngua materna e da segunda lngua, os quais,

embora no faam parte dos objetivos deste estudo, sero indispensveis para

a compreenso de determinados fenmenos sociolingusticos existentes na

comunidade pesquisada.

3.1.2 Processos de aquisio da lngua materna e da segunda lngua

Os estudos acerca do bilinguismo buscaram tambm analisar o processo de

aquisio da lngua materna e de uma segunda lngua na infncia. Segundo

Grosjean (1982), os fatores que podem levar as crianas ao bilinguismo so: a)

casamento entre indivduos de etnias diferentes; b) proximidade de outros

grupos lingusticos ou exposio constante a outra lngua; c) ingresso na

escola, onde a lngua adotada no a lngua da criana; e d) interesse da

comunidade em tornar as crianas bilngues bilinguismo planejado.

Para o autor, o bilinguismo na infncia normalmente ocorre em funo da

necessidade de a criana comunicar-se com as pessoas que lhe so

importantes: pais, colegas, amigos, professores etc. Para ele, os fatores

48

psicossociais, como o uso da lngua na famlia, na sociedade ou na escola,

condicionaro quando e por quanto tempo uma criana ser bilngue.

Grosjean (1982) afirma que a aquisio de duas lnguas pode dar-se de

maneira sucessiva ou simultnea. No bilinguismo simultneo, a aquisio da

segunda lngua ocorre geralmente antes dos trs anos de idade. Este o caso,

por exemplo, de filhos de pais com etnias diferentes. J no bilinguismo

sucessivo, segundo McLaughlin (1978) e Grosjean (1982), a criana adquire a

segunda lngua aps os trs anos de idade. Assim, no incio da vida,

predomina a lngua dos pais; depois, progressivamente, a criana vai

adquirindo a lngua local, por intermdio dos vizinhos e da mdia, como seria o

caso de filhos de imigrantes. Nota-se ento que, desde cedo, a aquisio de

outra lngua est ligada a questes de integrao das crianas ao grupo

majoritrio, quer isso se manifeste de forma positiva ou negativa, e que a

lngua materna da criana pode no ser a lngua mais frequentemente usada

pela comunidade onde ela vive.

Ainda em relao ao processo de aquisio, Lambert (1974) utilizou o termo

bilinguismo aditivo para descrever a aquisio de uma segunda lngua, sem

prejuzo da primeira lngua. O termo oposto, bilinguismo subtrativo, foi utilizado

para definir a situao em que, ao se adquirir uma segunda lngua, perde-se a

proficincia na primeira. Esse fenmeno manifesta-se principalmente em

comunidades de imigrantes, onde a primeira lngua considerada minoritria e

adquire, por isso, um status inferior ao da lngua oficial da localidade.

Com respeito escolarizao, um aspecto importante a ser considerado

nessas comunidades, onde, na maioria das vezes, a lngua materna do aluno

no a lngua oficial do pas, o ensino da segunda lngua. Baker (2001),

analisando a situao de crianas falantes de lnguas minoritrias, considerou

que o processo de ensino de uma segunda lngua pode ser assimilativo ou

subtrativo. Para o autor, importante distinguir se uma segunda lngua est

sendo ensinada com o intuito de substituir a primeira lngua ou adicionar uma

segunda lngua ao repertrio do indivduo. Isso de grande relevncia no

presente estudo, uma vez que muitos entrevistados admitiram ter adquirido a

lngua portuguesa (L2) na escola.

49

Como se v, o bilinguismo normalmente envolve o contato entre duas lnguas:

a materna e outra, a segunda lngua. A prxima seo discute esses dois

conceitos.

3.2 Lngua Materna, lngua 2 e lngua estrangeira

Nas ltimas dcadas, diversos pesquisadores tm procurado identificar os

diversos fatores envolvidos no processo de aquisio e aprendizagem de

lnguas maternas e no maternas. Desde o incio desses estudos, a distino

entre os termos lngua materna, segunda lngua e lngua estrangeira tem sido

bastante discutida. Entretanto, em virtude da diversidade de perspectivas

adotadas nesse mbito, no possvel apontar uma definio nica e definitiva

para cada um desses conceitos. Assim, para compreender com mais clareza

em que contextos eles se inserem, faz-se, a seguir, uma breve descrio de

cada conceito com base na perspectiva de alguns investigadores.

Entende-se como lngua materna, tambm designada como primeira lngua

(L1) ou lngua nativa, a primeira lngua aprendida, aquela que mais usada

pelo falante como instrumento natural de comunicao, da qual ele se intitula

falante nativo18; por isso alguns a chamam de lngua principal (SIGUN;

MACKEY, 1992). Alm de ser o primeiro sistema lingustico de socializao da

criana, adquirido no contexto familiar, ela constitui tambm um elemento de

identidade e produz no indivduo um sentimento de pertena a um determinado

contexto cultural e social19.

Sobre o conceito de lngua materna, Lieberson (1969) acrescenta que este

pode ser usado para designar uma lngua que era usada no ambiente

domstico de um indivduo durante a sua infncia, ainda que esta no seja a

lngua utilizada por ele atualmente.

18

Falante nativo refere-se ao ingls native speaker, expresso j usada por Bloomfield (1933, p.43) para

denominar a primeira lngua que um ser humano aprende a falar: "A primeira lngua que um ser humano aprende a falar a sua lngua nativa; ele um falante nativo dessa lngua" [..."The first language a human being learns to speak is his native language; he is a native speaker of this language"].

19 cf. Gass; Selinker (2008).

50

Na definio de Romaine (1995) e de Marcato (2012), o termo lngua materna

foi cunhado em aluso lngua que se aprende nos primeiros meses de vida e

que se acredita ser tambm a da me, sendo assim "lngua da me". No

entanto, em circunstncias diversas, na sociedade, isso pode no ocorrer. Por

exemplo, uma criana filha de imigrantes estrangeiros na Itlia pode ter como

lngua materna o italiano, que no a "lngua de sua me". Um exemplo de

situao contrria poderia ser observada em Santa Teresa, no caso dos filhos

de imigrantes italianos que tm como lngua materna o portugus.

Outra definio do termo lngua materna est relacionada com a competncia:

a lngua materna seria aquela que um indivduo conhece melhor. Considerando

que uma mesma pessoa raramente consegue manter o mesmo nvel de

competncia em mais de uma lngua ao longo de toda a sua vida, muitos

bilngues podem conhecer melhor uma lngua do que a outra, por ter sido

escolarizado nela, mas continuar sentindo uma forte ligao com a outra

lngua, por ter sido esta a usada em seu ambiente domstico.

Com relao aos conceitos de segunda lngua (L2) e lngua estrangeira (LE),

existe uma vasta discusso acerca dessas nomenclaturas, que, no geral,

diferem entre si no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem.

Apesar de no adentrar na temtica de estudo da presente dissertao, a

definio desses termos importante, principalmente se levarmos em

considerao que, atualmente, o italiano padro ensinado nas escolas

municipais de Santa Teresa, apesar de os italianos que aqui chegaram serem,

em sua maioria, dialetfonos.

Segundo Balboni (2012), o termo lngua estrangeira utilizado para indicar

uma lngua que estudada em um pas, local ou regio em que esta no

presente, a no ser na escola. Assim, um brasileiro que aprende ingls no

Brasil o aprender como lngua estrangeira, ou seja, fora da rea onde esse

idioma falado. Ainda segundo Balboni (2012, p.126), "diferente da segunda

lngua, o input lingustico ou estmulo na lngua estrangeira fornecido

51

(diretamente ou com tecnologia didtica) pelo docente"20 (BALBONI, 2012,

p.126).

J o termo segunda lngua, ou Lngua 2, usado em referncia lngua que

ensinada em um local em que ela tambm pode ser encontrada fora do

ambiente escolar. Segundo Balboni (2012), a aprendizagem de um idioma

como segunda lngua se d diferentemente da lngua estrangeira: na

aprendizagem da segunda lngua, o input lingustico (estmulo) provm

diretamente do ambiente externo, do mundo extraescolstico. A motivao

geralmente imediata, instrumental, cotidiana e visa integrao do aluno no

pas em que a lngua falada. Assim, um brasileiro que vai Frana para

aprender francs estudar esse idioma como segunda lngua, ou seja, estar

imerso na cultura e na lngua que deseja aprender, encontrando facilmente

falantes com quem exercitar o que est sendo adquirido na escola. Enfim,

estar envolvido com a lngua-alvo no exato local em que essa a lngua do

contexto situacional de comunicao.

Havendo sido expostos os conceitos de lngua materna, segunda lngua e

lngua estrangeira, no prximo tpico ser tratado outro conceito relacionado

ao tema em estudo: a diglossia.

3.3 Diglossia

O termo diglossia foi originalmente utilizado por Ferguson (1959) para se referir

separao funcional de duas ou mais variedades de uma mesma lngua,

dentro de uma comunidade. Nessa situao, o uso da variedade dominante,

conhecida como variedade alta (H, do ingls high) seria estritamente destinada

a domnios formais, como o ambiente escolar e instituies pblicas. J a

20

"a differenza di quanto avviene nella lingua seconda, l'input in lingua straniera fornito (direttamente o con tecnologia didattica) dal'insegnante" (BALBONI, 2012, p. 126).

52

variedade subordinada, conhecida como variedade baixa (L, do ingls low),

seria utilizada no contexto domstico e em outros domnios informais.

Segundo Ferguson (1959), uma caracterstica importante da diglossia a no

superposio funcional das duas variedades, ou seja, em determinados

domnios, somente a variedade baixa apropriada, e em outro, somente a

variedade alta. Casos clssicos de diglossia citados por Ferguson (2000)

incluem o uso da lngua padro e do dialeto regional em pases como o Ir e a

Itlia, onde muitos falantes utilizam seu dialeto local no contexto familiar ou

com amigos, e tambm a lngua padro, usada em situaes pblicas ou para

se comunicarem com falantes de outros dialetos.

Fishman (1967), por sua vez, deu outra abordagem a essa questo. Para ele,

casos de diglossia incluiriam qualquer sociedade em que duas lnguas so

utilizadas em situaes distintas e diferenciadas. Como exemplo, ele cita o

Paraguai, sendo as lnguas alta e baixa, respectivamente, o espanhol e o

guarani.

Levando-se em conta as noes de bilinguismo e diglossia, Fishman (1967)

afirma que, em uma situao de bilinguismo estvel, isto , de preservao de

dois cdigos lingusticos, um majoritrio e outro minoritrio, surge o fenmeno

da diglossia. Segundo o autor, os conceitos de bilinguismo e diglossia no

coincidem, necessariamente: bilinguismo o uso de duas lnguas por uma

mesma pessoa bilinguismo individual ou pelo mesmo grupo

bilinguismo social; j a diglossia uma superposio de uma lngua sobre a

outra em determinadas funes sociais.

Dessa forma, Fishman (1980) distingue as comunidades de fala em quatro

tipos: a) nem bilngue nem diglssica; b) com bilinguismo e sem diglossia; c)

com bilinguismo e com diglossia; e d) com diglossia e sem bilinguismo.

a) Nem bilngue nem diglssica. As comunidades caracterizadas pela

ausncia de bilinguismo e de diglossia foram denominadas

comunidades de fala monolngues.

53

b) Com diglossia e sem bilinguismo. Este o caso de duas

comunidades monolngues que esto unidas, como, por exemplo, as

reas francfonas do Canad.

c) Com bilinguismo e com diglossia. o caso de uma comunidade

bilngue em que as duas lnguas so usadas em domnios

separados, como o espanhol e o guarani no Paraguai;

d) Com bilinguismo e sem diglossia. Esta uma situao em que

ambas as lnguas so usadas em todos os contextos e podem

competir pelo uso em todos os domnios, como o catalo e o

espanhol na Espanha.

Para Fishman (1980), as comunidades bilngues com diglossia tm claras as

funes atribudas a cada uma das lnguas. J nas comunidades bilngues sem

diglossia, as funes no esto compartimentalizadas, podendo, portanto, uma

lngua ir ocupando o lugar da outra at que uma desaparea.

O estudo da diglossia e do bilinguismo leva, necessariamente, a se tratar dos

domnios de uso das lnguas. Este o tema da prxima seo.

3.4 Domnios de uso da lngua

De acordo com Li Wei (2000), a teoria de domnios de Fishman (1965, 1972) foi

um dos primeiros modelos para a determinao da escolha da lngua no

bilinguismo. Domnios, a partir da concepo de Fishman (1965), seriam

esferas contextualizadas ou totais contextos interacionais atravs do qual se

localizaria e se expandiria o bilinguismo, o que Li Wei (2010) exemplifica a

partir da seguinte situao: marido e esposa (participantes) conversando sobre

assuntos domsticos (tpico) em casa (local) poderiam constituir um domnio

famlia. Esse domnio poderia requerer o uso de uma lngua ou variedade

diferente da que seria usada, por exemplo, no domnio trabalho.

Em uma pesquisa realizada junto comunidade porto-riquenha em Nova York,

Fishman, Cooper e Ma (1971), com base em observao e entrevistas,

chegaram a uma lista de cinco domnios em que espanhol ou ingls eram

54

usados de forma consistente: famlia, amizade, religio, trabalho e escola. Em

cada um deles, havia presses de vrios tipos econmicas, administrativas,

culturais, polticas, religiosas etc., que influenciavam o bilngue a usar mais

uma lngua do que o outra (cf. MACKEY, 1972, p. 563-4).

Alm disso, diversos estudos j atestaram que os domnios nos quais uma ou

outra lngua usada desempenham um importante papel no processo de

manuteno e substituio lingustica (FISHMAN, 1965; 1972; CLYNE 1982;

BOYD, 1985; HYLTENSTAM e STOUD, 1991).

Weinreich (1970 [1953]) tambm afirmou que possvel analisar o processo de

substituio lingustica por meio da identificao dos domnios em que as

lnguas so usadas. O autor diz que, se a lngua majoritria estiver

gradualmente assumindo as funes da lngua minoritria nas reas

especficas onde L1 era usada, o processo de substituio lingustica teria sido

iniciado.

Segundo Pauwels (1986), as discusses sobre os domnios geralmente

envolvem duas questes: a) o que constitui um domnio e b) quantos domnios

devem ser estabelecidos em um estudo. Para a autora, os principais elementos

que constituem um domnio incluem os interlocutores, como estes se

relacionam e os locais especficos da interao, isto , o local de encontro dos

interlocutores.

Em relao ao nmero de domnios, diversos autores apresentam opinies

bastante distintas a esse respeito: Haugen (1956, p.31) lista como principais

grupos de domnios, aqueles qu