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Mia Couto, "Prenda de anos", leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli
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A.A. ~ 2010-2011
Prof.ª eli
MIA COUTO
Imagem - aqui
Mia Couto: aqui
Prenda de anos
Abriu as mãos, desconchando-as, e delas tombou a pedrinha. Os
olhos da menina seguiram a queda, até se fecharem como se se
protegesse do adivinhado ruído.
- Isso que trouxe para mim?
O pai acenou. Que sim, trouxera da viagem para o aniversário da
mais nova. Uma anónima pedra, sem tamanho nem cor especiais. Ser
pedra era o único valor daquela pedra.
A menina já conhecia as ofertas que lhe cabiam: pena de corvo,
casca de arbusto, fragmento de chão. Tudo fragrância do natural,
nada comprado nem comparável. Esses sendo seus mimos desde que
nascera, consumando o pensar paterno – o que se dá, quando se
ama, não se compra. A moça levou a prenda e colocou-a sobre a
mesa do seu quarto. Sentou-se, sem gesto nem ruído. Assim calada,
esperava que a pedra saísse do silêncio.
- Nenhuma coisa é um qualquer nada.
Assim aprendera a inventar nome para os muitos anónimos
objectos. Ela vestia esses pequenos desvalores com histórias que
retirava da sua fantasia. Nesse criar ela mesmo se iluminava. A
restante família se opunha a este fazer de conta. Para os outros
aquilo era um desgaste de tempo, desconversação. As amigas da
moça, por igual, lhe desvalorizavam as dádivas. E exibiam os seus
pertences, cheios de preços. E tanto o faziam que, às vezes, a
menina era ruída por súbitas invejas. Como aquela que agora
despontava em sua alma. Porque ela, sentada na penumbra do
quarto, não lograva inventar nenhuma fantasia para a prenda de
anos, algo que convertesse a pedra em coisa única.
Então, o pai entrou no aposento e igualmente se sentou. Não se
imagina o que sentado se alcança fazer. O Homem se constituiu
graças à marcha. Mas foi o sentar que forjou a maior fatia da nossa
humanidade.
- Lhe explico a palavra, filha. Paisagem vem de pai.
A filha riu, enquanto ele lhe contava como descobrira aquela
pedra, tão aquela e nenhuma demais. Começava, então, a prenda
não de aniversário mas de eternidade. Conforme catava magia com
suas palavras o pai era todo dela, entregue inteiro e aparecido, como
se ela fosse sempre o único motivo dela. Seu pai lhe dava um outro
pai, roubando-a dessa orfandade original que nos ataca nas
fraquezas.
A voz do pai dissolvia o tempo como açúcar se extinguindo no
chão. Na ensombração do quarto, o mundo sumia enquanto uma
pedra entrava em ovulação.
Mia Couto, in «Pública», 16.6.2000
Mia Couto
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