Miceli, Política cultural no Brasil

  • Upload
    manih-1

  • View
    22

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

S. Miceli

Citation preview

  • artigo

    Teoria e prtica dapoltica cultural oficial no

    BrasilSrg;o Miceli

    Professor titular 110 Departamento de FundamentosSociais e Jurtdtcos da Administralo e chefe do

    Ncleo de Pesquisas e Publicaes da EAESP/FGY.

    "Uma pequena elite intelectual poltica e econmi-ca pode conduzir, durante algum tempo, o proces-so do desenvolvimento. Mas ser impossvel apermanncia prolongada de tal situao. gprecisoque todos se beneficiem dos resultados alcanados.E para esse feito necessrio que todos, igual-mente, participem da cultura nacional." (Trechodo documento Poltica Nacional de Cultura,Brastlia, MEC, 1975, p. 9.)

    Alguns estudiosos j se referiram ao Estado como"o grande mecenas da cultura brasileira nos anos 70".1Tal postura parece procedente, caso se entenda pormecenato a disposio em subsidiar intelectuais e artis-tas que no encontram colocao segura no mercadopara os bens que produzem. Ou ento, como pareceocorrer no Brasil e em inmeros outros pases, o"mecenato" governamental sustenta atividades e gne-ros artsticos s voltas com um pblico declinantee que passam a depender crescentemente da proteooficial. Desta maneira, a presena do Estado revela-seproporcional s dificuldades de mercado, ou melhor, impossibilidade de auto financiamento para umadada atividade de produo intelectual ou artstica.Quanto maiores se mostram as dificuldades de comer-cializao de um determinado gnero de produoartstica ou intelectual no mbito do mercado de bensculturais, mais densas tendem a se tornar as pressesdos produtores e especialistas, com vistas a ampliaras faixas de atendimento material e institucional porparte da iniciativa pblica. e. justamente por foradessa tendncia ''previdenciria'' que os setores pro-dutivos mais dependentes dos subsdios oficiais narea cultural buscam justificar esse apoio, salientandoo valor da atividade em questo para o sucesso deuma poltica cultural "patrimonialista", que "adquireassim o status de contedo "universal" das polticaspblicas no campo da cultura. Quer dizer, o fato de ainterveno do Estado ocorrer precisamente naquelas

    Rev. Adm. Empr.,

    atividades culturais que vm encontrando dificuldadescrescentes de sobrevivncia em funo de critrios es-tritos de mercado (pblico, rentabilidade etc.) contri-bui para a tnica marcadamente "conservacionista" dapoltica cultural oficial.

    Tais tendncias so responsveis, em ltimaanlise, pela postura defensiva da iniciativa governa-mental na rea cultural, deixando a cargo da empresaprivada as melhores oportunidades de investimento efaturamento no campo da produo cultural. Parecehaver, assim, uma segmentao irreversvel do mercadode bens culturais. Cabe aos grandes empreendedoresparticulares explorar as oportunidades de investimentonaquelas atividades e frentes de expanso capazes deassegurar as mais elevadas taxas de retorno sobre ocapital, tais como os fascculos, a televiso, as estaesde rdio FM, discos, as fitas cassete ou o vdeo-cassete,destinado aos modernos meios de reproduo eletrni-ca. Os responsveis pela iniciativa pblica na reacultural se incumbiriam, ento, das tarefas defensivasde proteo e conservao do acervo histrico e arts-tico "nacional" j indexado como material "museol-gico", bem como daqueles gneros e eventos culturaisque s conseguem se reproduzir s custas da proteogovernamental, como, por exemplo, a pera, o balclssico, o teatro declamado, a msica erudita, e assimpor diante. .

    A despeito dessa tendncia de longo prazo quantos prioridades da poltica pblica na rea cultural, aolongo da dcada de 70 ocorreram transformaes impor-tantes nos contedos e orientaes da poltica culturalno tocante ao trabalho de conservao do patrimniohistrico e artstico "nacional".

    Dentre os fatores que contriburam para talsituao, o primeiro foi, sem dvida, o alheamentode importantes segmentos de intelectuais e artistasem relao s iniciativas governamentais. A inseguran-a e o medo gerados pelos desmandos cometidos pelosservios de segurana e censura, quer sobre pessoas,quer sobre obras, acabaram se convertendo em bices colaborao com os esforos dos dirigentes culturaisdo regime. Tais dificuldades no se cristalizaram a esseponto em outras frentes da produo intelectual, comono caso das cincias sociais, em virtude da restrita visi-bilidade social e da repercusso pblica "localizada"desse tipo de produo. Embora no tenha havido odestroamento de instituies ou o desmantelamentodas atividades culturais, a exemplo do que ocorreu naArgentina, no Chile e no Uruguai, inmeros empreen-dimentos acabaram se revelando inviveis, seja poringerncia direta dos rgos e agentes de censura, sejapor deciso prpria dos artistas e intelectuais. Circuns-tncias dessa ordem foram progressivamente cerceandoa atuao dos rgos oficiais nas frentes de expansoda produo cultural. 2

    O segundo fator relevante para a nfase governa-mental na poltica de preservao "patrimonial" pren-de-se sensibilizao de setores de peso no interior dacoalzao dirigente para a importncia poltica de seampliar a presena pblica na rea de produo cultu-ral. A expanso colossal de grandes redes privadas deentretenimento e informao patenteou ainda mais aprecariedade de recursos e de pessoal da infra-estruturainstitucional ofcal, Nesse sentido, a atuao gover-

    Rio ele JlDeiro, 24 (I): 27-31 .;an./mar.1984

  • namental no campo da produo cultural caracteri-zou-se por uma postura eminentemente reativa edefensiva, estando muito aqum do ritmo de desenvol-vimento logrado em outras reas de investimento socialprivilegiadaspelo poder pblico. Ao contrrio do quese costuma dizer, a atitude oficial consistiu em marcarsua presena e intervir de modo consistente sobre osrumos da atividade intelectual e artstica erudita, dei-xando os gneros e veculos mais rentveis como "re-serva" cativada iniciativaprivada.

    Ainda dentre esses condicionantes de ordem con-juntural, o marketing do regime constituiu-se decertona .motlvao decisiva das polticas pblicas adotadasna rea cultural. A chamada poltica de "abertura" acar-retava forosamente a exigncia de melhorar a imagemde marca do regime, quer dizer, requeria a definio de.espaos institucionais para os quais fosse possvel canali-zar recursos em favor da nova gerao de produtoresculturais naqueles gneros mais dependentes do apoiogovernamental. A preservao do patrimnio histrico eartstico converte-seento num terreno de consenso emtorno do qual possvel fazer convergir os esforos deagentes cujos interesses e motivaes certamente colidi-riam em gneros de produo cultural em que a proble-mtica estivesse fortemente referida a questes da atua-lidade social e poltica. O patrimnio constitui, portan-to, o repositrio de obras do passado sobre cujo interes-se histrico, documental, e por vezes esttico, no pairaqualquer dvida. Trata-se de obras e monumentos que,no mais das vezes, j se encontram dissociadosdas expe-rincias e interesses sociaisque lhes deram origem.

    Alguns defensores da postura "patrimonial" narea cultural oficial justificam tal nfase em termos deuma delegao que a sociedade faz ao Governo, indi-cando ao mesmo tempo os stios, monumentos e obrasa serem preservados. No obstante, desde os primeirosanos de vigncia do novo regime, verifica-seo empenhode diversos setores dirigentes em redesenhar algumaslinguagens e meios de comunicao coletivos. Bastamencionar a iniciativa do Banco Central de modificar oleiaute do papel-moeda, as campanhas de relaes p-blicas, desencadeadas durante o governo Mdici, explo-rando os dividendos polticos de eventos como a Copado Mundo, a reforma dos Correios e Telgrafos, e apropaganda macia das obras conspcuas do "BrasilGrande" (Itaipu, ponte Rio-Niteri etc.)

    O elemento propulsor do trabalho cultural desen-volvido pelas instituies pblicas federais deriva de umapostura eminentemente patrimonial, que se volta querpara a restaurao de monumentos de "pedra e cal"e obras de arte do passado(PCH, IPHAN,SPHAN etc.),quer para a "conservao" de algumas atividades arts-ticas (artes plsticas, msica erudita etc.), quer para a"indexao" de elementos materiais e outros associadoss manifestaes populares (folclore), quer enfim paraa "proteo" material e institucional de produtorescujas atividades vm perdendo terreno no mercado debens culturais (teatro, cinema). Isto significa que apostura ''patrimonial'' permea inclusive uma parcelasubstancial das atividades desenvolvidas pelas institui-es pertencentes chamada vertente "executiva" doMEC (Funarte, Embrafilme, SNT, INL). Ainda quealguns setores de atividade, como por exemplo o teatro,e sobretudo o cinema, continuem atraindo um pblico

    28

    considervel, tendo alcanado um estgio avanadode diferenciao de ofcios nas respectivas "classes"(associaes de produtores, sindicatos de atores e tc-nicos, associaes de crticos etc.), tais gneros corres-pondem a conjunturas passadas na histria da produocultural.

    Segundo as evidncias disponveis, o pblico paratais atividades encontra-se em declnio, inclusive emdiversos pases desenvolvidos (EUA, Frana etc.).Tal tendncia refora-se ainda mais dada a obsolescncados esquemas comerciais de exibio teatrais e cinema-togrficos. Diante dessa situao, os grupos de interesseatuantes em cada uma dessas atividades passam cadavez mais a requerer o auxflo do Estado, de maneira acompensar os prejuzos que a carncia de pblico e aconseqente perda de sustentao no mercado provo-cam.

    Como se sabe, essas tendncias no so peculiares ourestritas ao caso brasileiro. Tanto nos EUA comona maioria dos pases europeus, as despesasde consumocultural das famlias concentram-se crescentementena aquisio de "mquinas culturais" (aparelhos deteleviso, toca-discos, receptores de rdio para casa epara carro), seguida pela compra de publicaes, dediscos e fitas, de jornais, colocando-se em ltimo lugara quantia diminuta destinada a ingressos para teatro,cinema e espetculos congneres." Embora o conjuntodessas despesas no ultrapasse o teto de s% do consumoglobal das famlias, a parcela gasta com atividades delazer vem-se apliando consistentemente nos ltimos20 anos, sendo apenas superada pelos gastos com sadee telecomunicaes. E o montante da renda domiciliaralocado na aquisio de equipamentos culturais vemse expandindo, em detrimento da parcela de recursoscanalizada para espetculosfora de casa(concertos, peas,filmes etc.). Tais evidnciascaracterizamuma "cultura"praticada a domiclio s custas da relegao daquelasatividades culturais praticadas no mbito de equipa-mentos coletivos. No de se estranhar, por conse-guinte, que o resultado dessa tendncia nos grandescentros urbanos seja o progressivo dficit dos gruposde artistas e intelectuais que se valem desses espaoscoletivos (teatros, peras, museus, salas de concertoetc.).

    Eis algumas das determinaes histricas que estona raiz do privilegiamento da vertente "patrimonial"tanto no Brasil como nos EUA e em pases europeus.Quase todas as atividades artsticas que do prejuzopassaram, nas duas ltimas dcadas, a ser subvencionadaspelo poder pblico, fazendo com que o montante maiselevado de recursos canalizado para a rea cultural sejaalocado a servios incumbidos do trabalho de preserva-o e restaurao do legado histrico e artfstico."

    A explicao para essa tendncia envolve complexaargumentao. Em primeiro lugar, a preservaode in-meras atividades artsticas e intelectuais, bem como ascondies de reproduo de ofcios e habilidades artesa-nais requeridos por essas mesmas atividades deveram-seao fato de se terem tornado objeto de consumo exclusi-vo das fraes cultas dos grupos dirigentes. O apoiomaterial e institucional com que tm sido aquinhoa-das mostra-se proporcional fora social e poltica dosgrupos de elite fruidores desse gnero de bens. Dianteda impossibilidade de o mecenato continuar em mos

    Revista de Administrao de Empresas

  • de algumas poucas famflas ricas, dado o vulto de recur-sos necessrios para subsidiar tais atividades culturais deluxo, o trabalho de preservao, restaurao e dfusodo acervo hist6ricoe artstico foi aos poucos sendo en-tregue responsabilidade de instituies e tcnicospblicos especializados", no trato de bens culturais.Mesmo em pases capitalistas mais desenvolvidos do queo Brasil e dotados de uma infra-estrutura diversificada esofisticada de produo, difuso e consumo cultural,como os EUA e a Frana, o retraimento dos grandesmecenas privados e, conseqentemente, a influnciadeclinante das fundaes particulares acabaram levando criao de duas poderosas fundaes pblicas na reacultural nos EUA, e ao fortalecimento do Ministrio daCultura e multiplicao de entidades oficiais culturaisno caso francs. S A despeito da aferio permanenteque fazem das preferncias dos usurios em matriade consumo cultural, verifica-se nos EUA e em outrospases europeus um processo de "estatzao" dosmecanismos,' entidades, colegiados e agentes direta-mente ligados s instncias decis6rias na rea de produ-o, difuso e consumo cultural.

    De outro lado, a fora poltica e cultural da vertente"patrimonial" deriva da disjuno crescente entre oproduto veiculado pelos meios de comunicao demassa operando em bases comerciais capitalistas e osbens culturais subsidiados a fundo perdido por entidadesgovernamentais ou por outras modalidades oficiosas demecenato. Na raiz desse processo de mudana culturalsitua-se a crise de legitimidade com que se defronta omercado de bens culturais, cindido pela cerrada com-petio entre os grandes empresrios modernos da ati-'vidade cultural. As principais redes privadas de entre-tenimento e informao, as entidades governamentais,as confisses religiosas e os partidos polticos buscamimpor seus padres de legitimidade e suas pr6priasinstncias de consagrao.

    Sem entrar no mrito da questo, importa reiterarque uma parcela significativa dos recursos oficiaiscarreados para a rea de produo cultural hoje cana-lizada para aquelas frentes de trabalho marcadamente"patrimoniais", ou, ento, acaba sendo repassada aintelectuais e artistas s voltas com a preservao de g-neros da produo cultural que deixaram de contar comas condies materiais e institucionais que lhes deramexistncia, continuidade e sentido. Destarte, a parcelamajoritria dos produtores atuantes nos setores de arteerudita (das artes cnicas, bal, teatro, 6pera, dana,passando pela msica erudita, at as artes plsticas),devota-se a uma atividade predominantemente "museo-lgica". Da as demandas insistentes para a montagemde centros de documentao, bancos de dados e refern-cias, bibliotecas especializadas, arquivos iconogrficos,museus da imagem e do som, e similares. Dado o vultoconsidervel dos recursos exigidos para a implantao eoperao desse tipo de empreendimentos, o poderpblico tambm acaba arcando com o nus de subsi-di-los.

    A hist6ria recente das instituies culturais federaisrevela um confronto manifesto entre orientaes doutri-nrias nos marcos do que se convencionou entenderpor "poltica cultural". As diferenas de postura ocor-rem quer em funo dos contedos privilegidos daatividade cultural, quer por fora do papel reservado aos

    Teoei e PrdtiCtI diz PoIftictI

    produtores de cultura profissionais, quer enfim em rmodo tipo de pblico-alvo cujas demandas seriam acolhi-das prioritariamente pelo poder pblico na rea cultural.Para simplificar a demonstrao, basta contrapor os con-tedos alternativos do que se entende por "polticacultural pblica", tal como acabou sendo construdae operacionalizada durante as gestes dos ministros NeyBraga e Eduardo Portela.

    No intuito de qualificar a postura oficial implantadaao tempo da gesto Ney Braga no MEC, tomemos comofoco de anlise o documento-sntese Politica Nacionalde Cultura (1975). Dentre as diretrizes dessa poltica,a postura de salvaguarda do ''patrimnio histrico eartstico" configura a nica esfera de atividade dosrgos e agentes do poder pblico. A noo de patrim-nio envolve tanto o acervo associado histria dos gru-pos dirigentes como as tradies e costumes das classespopulares, definidas como folclore ou populrio."Postura idntica caracteriza a qualificao dos objetivos.A PNC visa "a preservao dos bens de valor cultural",no intuito "de preservar um ncleo irredutvel de culturaautnoma que imprima feio pr6pria ao teor de vida dobrasileiro". Pretende-se, por essa via, erigir um dique"caracteristicamente nosso", em condies de auxiliara triagem de traos culturais "perversos" produzidospelo desenvolvimento urbano-industrial e de sustar a"imposio macia, atravs dos meios de comunicao,dos valores estrangeiros". A meta "patrimonial" serve,ao mesmo tempo, para definir pautas prprias de atua-o governamental e suprir de contedos e significaesda "alma brasileira" as metas de segurana e desenvol-vimento. Na parte descritiva dos componentes bsicosda PNC, possvel discernir os dois campos privilegiadosaos quais se deve cingir prioritariamente a atuao dosorganismos pblicos. De um lado, os diversos gnerose atividades da chamada cultura legtima, que consti-tuem, em ltima instncia, o que se entende' por "patri-mnio histrico e artstico" e, de outro, o espectrodiversificado de manifestaes legado pelas classessubalternas, ou melhor, o "patrimnio menor" deixa-do pelas classes populares (o folclore).

    Os documentos e textos produzidos ao longo dagesto Portela lidam com pares conceituais idnticos,mas com sinais trocados. 7 Haveria, de uma parte,aquelas atividades que constituem o campo da "culturade elite", destinadas fruio dos segmentos educadose, de outra, quaisquer prticas ou formas de expressoassociadas aos estratos de baixa renda, destitudos detrunfos materiais, educacionais ou polticos. Ao invsde a nfase recair sobre a meta "patrimonial" a ser lo-grada em ambas as frentes de produo cultural - sejaa frente de profissionais da cultura envolvidos com oacervo passado e presente da classe dirigente, seja afrente indiferenciada do folclore como acervo "cons-trudo" e "depurado" do passado das classes popu-lares - a orientao em pauta privilegia as manifesta-es contemporneas das classes populares valendo-sedas expresses "cultura da sobrevivncia" ou "culturada subsistncia". No se trata, claro, de um enfren-tamento algo bizantino entre os defensores da superio-ridade esttica ou histrico-documental do acervo legadopelas classes dirigentes e os porta-vozes de uma nova eracultural de valorizao das coisas do povo. O alvopoltico da nova orientao doutrinria no deixa mar-

    29

  • gem a dvidas. Era preciso resistir s tendncias expan-sionistas e, ao que tudo leva a crer, vitoriosas, do pessoal"conservacionista", ao veio "museolgico" dos dirigen-tes da vertente patrimonial no interior da estruturaadministrativa do MEC. Em lugar de carregar nastintas do "nacional", do legado "comum" e "bra-sileiro ". os tericos da gesto Portela valorizam o trao"regional" e "local", sede do que "autntico" e"nosso". Ao recusar uma definio estrita da atividadecultural vigente numa economia de mercado," esse gru-po de gestores da nova orientao de poltica culturaltender, mesmo sem o desejar, a oferecer resistncias demandas dos artistas e intelectuais mais dependentesdos subsdios governamentais.

    O contlito entre uma vertente "executiva" e umavertente "patrimonial" remonta aos primeiros tempos deatuao do PAr. persistindo at s vsperas da criaoda Funarte, Naquele momento, a diretriz firmada pelosgestores do PAC consistiu na promoo de "eventos",no intuito deliberado de diferenciar esse tipo de inicia-tiva da poltica de "tombamento". O xito dos empre-endimentos do PAC esteve consistentemente calcadonuma aliana com aqueles setores de produtores pro-fissionais carentes de incentivos e recursos governamen-tais. Em outras palavras, o sucesso do PAC e, maistarde. da Funarte, a repercusso favorvel na imprensa ejunto aos prprios artistas e intelectuais, tm muito aver com a ampliao das oportunidades que ento seabriram no mercado de trabalho cultural. Nesse sen-tido. a gesto Ney Braga assinala um perodo de revi-goramento das instituies pblicas federais voltadaspara o atendimento setorial (Embrafilrne, SNT etc.).Passando a dispor de autonomia financeira, adminis-trativa e at doutrinria, essas entidades foram-se des-prendendo da tutela exercida pelos rgos de cpulado MEC. Enquanto na gesto Ney Braga os artistas eintelectuais sentiam, na teoria e na prtica da "polticacultural oficial". que o MEC, o DA(', o PAC e demaisorganismos estavam a servio de seus interesses, prontospara o encaminhamento de suas demandas, a doutrinaem voga durante a gesto Portela contribuiu para intran-qiliz-los. No obstante, na prtica, a nova orientaono chegou a ter maiores conseqncias fora do mbitoestrito da Seac, onde sucederam as experincias de"pesquisa participante".

    A despeito dos acenos tticos em direo aos pro-dutores e usurios do que consideravam como "culturaburguesa". um mvel importante da opo Seac - "na di-reo dos setores da populao de baixa renda, na dire-o daquelas regies do pas menos desenvolvidas"- foi o desejo de restaurar as funes de coordenaoque se haviam esvaziado na transio do DAC paraa Seac e em meio ao fortalecimento das instituiessetoriais (Embrafilme, SNT) e criao da Funarte.Desde o incio de gesto Portela, elementos de destaqueda nova equipe dirigente empenham-se em recuperaro espao decisrio perdido em favor dos institutos efundaes que, segundo acreditavam, tendiam a manterapenas uma vinculao nominal jurisdio do MEC.A primeira reao a tal tendncia consistiu na trans-formao do antigo Departamento de Assuntos Cul-turais em Secretaria de Assuntos Culturais. Os dirigen-tes recm-empossados da rea patrimonial, tendo frente Alusio Magalhes, revidaram, reivindicando

    30

    tambm para o antigo IPHAN o status de secretaria.Conforme declarou um dos entrevistados, "primeiroAlusio demonstrou que era preciso separar, para em se-guida demonstrar que era preciso unir", referindo-ses duas etapas por que passou o remanejamento ad-ministrativo da rea cultural do MEC. Ciosos do espaode autonomia que j haviam conquistado, os dirigentesdos institutos e fundaes, por sua vez, acabaram refor-ando a frente de resistncia aos projetos centralistasde "colaborao" que lhes fazia a cpula da Seac.

    A essa altura, o jeito era desistir de contar com oapoio dos institutos e fundaes que, da perspectiva dosmentores da Seac, tendiam a enxergar o MEC como me-ro intennedirio para repasse de recursos ou, ento, co-mo agncia governamental que pagava bom preo pelosservios que viessem a prestar ao prprio ministrio, Opessoal da Seac procurou implementar as novas diretri-zes - "descentralizao", "democratizao", "deselitiza-o", "planejamento participativo", eis algumas das pala-vras de ordem - atravs dos chamados "projetos exem-plares", a serem implantados nos estados, mormente nosmais carentes. A meta era o atendimento das "popula-es de baixa renda", em cooperao com as secretariasestaduais de cultura. A maneira privilegiada de atuar. era"fazer a cabea do pessoal das secretarias que seriam res-ponsveis pela absoro e realizao dos projetos". Esseesforo de aproximao se concretizou atravs de reu-nies com os funcionrios das secretarias estaduais e devisitas peridicas do pessoal tcnico da Seac aos estados.Sem poder dispor do trabalho de equipes pertencentes aentidades do MEC, que s estavam dispostas a tanto me-diante a celebrao de convnios remunerados, foramcontratados como autnomos socilogos, arquitetos eeconomistas de fora do MEC.

    Os projetos foram realizados num bairro e duas fave-las no Recife, em quatro favelas de Fortaleza e em duasfavelas do Rio de Janeiro. No Recife, a pesquisa de co-munidade no Clube dos Abanadores deu origem a um re-latrio onde os tcnicos davam maior importncia de-nncia pura e simples das injustias sociais de que era v-tima aquela populao do que preocupao em estabe-lecer um diagnstico da situao concreta. A idia-mes-tra de que "o produto estava no processo", fazendo comque o trabalho desenvolvido junto s populaes tomasseo lugar da identificao de quais seriam as demandas des-sa populao em matria de "cultura", pontua tambmos resultados das outras experncasmenconadas, Na ci-dade do Rio de Janeiro, a Seac contratou um grupo au-tnomo de pesquisadores-socilogos e, em Fortaleza, oprojeto foi tocado por intermdio de uma repartio doprprio MEC.

    A metodologia utilizada nessas experincias de "pes-quisa participativa" ou "pesquisa de confronto" consis-tia, basicamente, no recurso aos instrumentos usuais decoleta de dados em investigaes etnogrficas: contatosindividuais com elementos da vizinhana, histrias devida aprofundadas, reunies com setores da comunida-de, tais como igrejas, blocos de carnaval, escolas de sam-ba e participao em manifestaes coletivas da comuni-dade. Nesse processo, os pesquisadores acabaram percor-rendo as mesmas etapas de questionamento com que sedefrontaram outros cientistas sociais em situaes idnti-cas de "estranhamento" ou "desenraizamento" em rela-o ao objeto de investigao, Primeiro, comearam a

    Rellista de AdministTtlo de Emprew

  • questionar as bases das relaes de dominafo-subordina-o inerentes interao pesquisador-pesquisado, passan-do a colocar em dvida a validez de pesquisas conduzi-das por pessoas externas comunidade e alheias a seusproblemas e anseios mais prementes, a sentir necessidadede repartir sua remunerao com os prprios pesquisa-dos, culminando com a exigncia de contarem comumlugar fixo de reunio na comunidade.

    Conforme declara um dos participantes dessa expe-rincia em texto recm-publicado, o pblico-alvo dessesprojetos eram as categorias que no tm acesso s insti-tuies culturais, e nem sequer produzem artigos ou ma-nifestaes passveis de serem enquadrados nas rubricasusuais de "folclore" e "cultura popular". Poder-se-ia di-zer que as experincias em pauta foram-se desenvolvendoa partir de uma definio de cultura bastante prxima linhagem etnogrfica, qual se acrescentavam a inten-o poltica de "despertar a conscincia" daquelas popu-laes e de auxili-las a produzir conhecimentos capazesde contribuir para a transformao e melhoria das suascondies de vida.9

    Esses foram, em resumo, os principais pontos doconfronto entre a teoria e a prtica da "poltica culturalofical", em dois momentos distintos da dcada de 70.

    1 Holanda, Helosa Buarque de. Impreswes de Vllgem/CPC,vanguarda e desbunde: 1960/70, So Paulo, Brasiliense, 1980.

    2 Alm dos inmeros depoimentos de artistas e intelectuais atin-gidos na pele por arbitrariedades dos servios de segurana e cen-sura, como Mrio Lago, Antonio Houaiss, Ferreira Gullar, ver oensaio-