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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL ANA CLÁUDIA BARROS DE ANDRADE MELO MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO FATOR DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: ESTUDO SOB A ÓTICA CONSTITUCIONAL NATAL/RN 2017

MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO FATOR DE … · 2019. 5. 26. · Melo, Ana Claudia Barros de Andrade. Microgeração e mineração de energia elétrica como

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

ANA CLÁUDIA BARROS DE ANDRADE MELO

MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO FATOR DE

PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: ESTUDO SOB A ÓTICA

CONSTITUCIONAL

NATAL/RN 2017

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ANA CLÁUDIA BARROS DE ANDRADE MELO

MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA COMO FATOR DE

PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ECONÎMICO: ESTUDO SOB A ÓTICA

CONSTITUCIONAL

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-graduação em direito da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como

requisito parcial para a obtenção do título

de Mestre em Direito Constitucional.

Nome do Orientador - Professor Doutor Otacílio

dos Santos Silveira Neto

NATAL/RN 2017

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Melo, Ana Claudia Barros de Andrade. Microgeração e mineração de energia elétrica como fator depromoção do desenvolvimento econômico: estudo sob a óticaconstitucional / Ana Claudia Barros de Andrade Melo. - 2017. 105f.: il.

Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) -Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de CiênciasSociais Aplicadas, Programa de Pós-graduação em Direito. Natal,RN, 2017. Orientador: Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto.

1. Desenvolvimento econômico - Dissertação. 2. Micro geração- Dissertação. 3. Mini geração - Dissertação. 4. ConstituiçãoFederal de 1988 - Dissertação. I. Neto, Otacílio dos SantosSilveira. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III.Título.

RN/UF/Biblioteca Setorial do CCSA CDU 342:338.1

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A dissertação “Microgeração e minigeração de energia elétrica como fator de promoção do desenvolvimento econômico: estudo sob a ótica constitucional”, de autoria da mestranda Ana Cláudia Barros de Andrade Melo, foi avaliada e aprovada pela comissão examinadora formada pelos seguintes professores:

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Prof. Dr. Otacílio dos Santos Silveira Neto

________________________________________________ Prof. Dra.Mariana de Siqueira

________________________________________________ Prof. Dr. Victor Rafael Fernandes Alves

Natal/RN, 01 de novembro de 2017

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RESUMO

O consumo em grande escala dos recursos naturais gerou uma crise ambiental sem precedentes.

Tal fato, levou o ser humano a preocupar-se com questões ambientais, em especial referentes

ao aproveitamento de recursos renováveis. Por outro lado, a energia elétrica é bem

indispensável para a sociedade contemporânea. Assim, a regulação estatal no setor mostra-se

vital para a geração e abastecimento adequado tanto da indústria como dos indivíduos, visto

que a energia, por ser forte indutor do desenvolvimento econômico e pedra angular na questão

da sustentabilidade, merece particular ênfase. Assim, a presente pesquisa aborda a questão da

geração, controle e distribuição de energia elétrica e as novas perspectivas no setor, a partir da

micro e minigeração. Este novo modelo consiste na geração de energia elétrica por pequenos

geradores, que utilizam em sua maioria fontes renováveis, envolvendo as unidades

consumidoras e a disponibilização do excedente energético para a rede pública por meio de um

sistema de compensação. Para tal, analisou-se a ordem ambiental na Constituição Federal de

1988, além do papel do Estado para a consecução das finalidades ali previstas e do equilíbrio

entre o desenvolvimento econômico e a proteção ao meio ambiente. Nesse contexto, o presente

trabalho buscou perquirir se a geração distribuída de energia elétrica constitui-se como fator de

promoção do desenvolvimento econômico, tal como previsto na Constituição Federal de 1988.

Palavras chave: Desenvolvimento econômico. Micro geração. Mini geração. Energia elétrica.

Constituição Federal de 1988.

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ABSTRACT

The large-scale consumption of natural resources has generated an unprecedented

environmental crisis. This fact led the human being to worry about environmental issues,

especially regarding the use of renewable resources. On the other hand, electricity is very

indispensable for contemporary society. Thus, state regulation in the sector is vital for the

adequate generation and supply of both industry and individuals, since energy, as a strong

inducer of economic development and cornerstone in the question of sustainability, deserves

particular emphasis. Thus, the present research addresses the issue of generation, control and

distribution of electricity and the new perspectives in the sector, from the micro and the

minigeration. This new model consists of the generation of electric energy from small

generators, which use mostly renewable sources, involving the consumer units and the

provision of the energy surplus to the public network through a compensation system. For this,

the environmental order was analyzed in the Federal Constitution of 1988, as well as the role

of the State in achieving the goals envisaged therein and the balance between economic

development and protection of the environment. In this context, the present work sought to

determine if the distributed generation of electric energy constitutes a factor of promotion of

the economic development, as foreseen in the Federal Constitution of 1988.

Keywords: Economic development. Micro generation. Mini generation. Electricity. Federal

Constitution of 1988.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 7

2 ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DO TEMA .............................................................................. 13

2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA .......................................................... 13

2.2 O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................. 19

3 REGULAÇÃO E COMPETÊNCIA DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA ................................ 29

3.1 EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS DA REGULAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO ................................ 29

3.2 PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E LEGALIDADE ADMINISTRATIVA .......... 39

3.3 O PAPEL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO DIREITO BRASILEIRO ............................................. 44

3.4 REGULAÇÃO NO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO E O PAPEL DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA

ELÉTRICA ............................................................................................................................................ 49

4 ANÁLISE DA QUESTÃO ENERGÉTICA NO BRASIL ................................................................................ 55

4.1 O SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS ........................................ 55

4.2 IMPORTÂNCIA DAS ENERGIAS RENOVÁVEIS PARA A PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO ...................................................................................................................................... 61

4.3 ENERGIAS RENOVÁVEIS E DIREITO INTERGERACIONAL .............................................................. 66

5 REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA .... 75

5.1. ANÁLISE DA RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 482/2012-ANEEL E SUAS ATUALIZAÇÕES ............... 75

5.1.1 Geração compartilhada como possibilidade de reunião de consumidores para produção

de energia ..................................................................................................................................... 77

5.1.2 Autoconsumo remoto e possibilidade de produção e utilização da energia elétrica por

diferentes unidades ...................................................................................................................... 84

5.1.3 Produção de energia por condomínios residenciais .......................................................... 84

5.2 RELEVÂNCIA DO PROGRAMA PARA O FORTALECIMENTO DAS ENERGIAS RENOVÁVEIS NO

BRASIL E PERSPECTIVAS DE CRESCIMENTO ...................................................................................... 86

5.3 INCENTIVOS FISCAIS E O FOMENTO À MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA

........................................................................................................................................................... 89

6 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 97

7 REFERÊNCIAS.................................................................................................................................... 100

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1 INTRODUÇÃO

A Energia elétrica é bem indispensável na sociedade contemporânea. Tanto para a

indústria como para a vida cotidiana de qualquer ser humano, o acesso a este tipo de energia

transformou-se em algo primordial, sem a qual não se possui contato com os mais básicos meios

tecnológicos nem mesmo à mínima qualidade de vida. Desde acender uma lâmpada, até o uso

das mais complexas máquinas industriais, tudo demanda o uso da eletricidade.

Diante da essencialidade do bem em questão, assegurou-se ao Estado conforme

legislação pátria a incumbência da geração, controle e distribuição de energia elétrica. A

primeira, diz respeito à implantação de novas usinas; já a transmissão, relaciona-se com a

expansão e a construção de novas interligações entre os subsistemas, além do reforço da malha

da rede básica; e distribuição, que consiste na instalação de equipamentos e na expansão da

rede de média e baixa tensão, dependente da evolução do consumo final. Desse modo, o

fornecimento dos serviços de energia se insere no âmbito do serviço público, e, portanto, está

sujeita aos princípios jurídicos do Direito Administrativo, ao mesmo tempo em que se manifesta

como política pública.

A energia é um tema estratégico da comunidade internacional desde a década de

1970/80, inserida no conceito de desenvolvimento sustentável e de um uso mais eficiente dos

recursos naturais do planeta. Historicamente, o tema ganhou importância a partir do século

passado, com o surgimento de novos atores e uma competição acirrada pelos recursos naturais

e econômico/financeiros mundiais, além da perene busca pela segurança energética, essencial

para o desenvolvimento1.

1 VENTURA FILHO, Altino. Energia elétrica no Brasil: Contexto Atual e perspectivas. Revista Interesse Nacional. Ano 6. Número 21. Abril-junho 2013.

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No Brasil, o meio de geração de energia elétrica mais comum tem sido a hidráulica

devido a grande quantidade de bacias hidrográficas por todo o território. Este tipo de energia

está associado a barragens de grande ou média capacidade, que represam a água dos rios,

constituindo um reservatório, interrompendo pontualmente o fluxo de água. Por tal motivo,

consiste em um tipo de energia polêmica, pois causa danos ambientais em sua implantação,

como desvio de curso de rios e alagamento de áreas, além do fato da disponibilidade de água

estar sujeita à inconstância da precipitação pluviométrica.

Sendo assim, vem sendo desenvolvidos trabalhos no sentido de pesquisar fontes

alternativas de geração de energia, por meio da utilização de outros recursos. Nesse contexto,

ganhou relevância a produção de energia solar e eólica, visto que representam energia limpa e

renovável, no sentido de não emitir carbono na atmosfera, além de possibilitar o aproveitamento

de recursos abundantes no ambiente. No Brasil, mais especificamente na Região Nordeste, tais

recursos são facilmente encontrados em larga escala.

Por outro lado, com a deficiência apresentada pelo Estado brasileiro em suprir de

maneira segura o fornecimento de energia elétrica, sendo tal fato evidente nas diversas “crises

energéticas” que ocorreram com maior evidência a partir do ano de 2001, surge a tendência de

incentivar o próprio setor privado, especialmente o próprio consumidor final, a suprir esta

demanda, o que se convencionou denominar de microgeração e minigeração de energia.

Em âmbito pátrio, surgiu como marco no tema a Resolução Nº 482/2012 da Agência

Nacional de Energia Elétrica - ANEEL que tratou de regular novos mecanismos de produção,

envolvendo as unidades consumidoras e a disponibilização do excedente energético para a rede

pública por meio de um sistema de compensação.

De maneira geral, este sistema de compensação acrescentará à conta do consumidor a

energia que ele utilizar do sistema público e irá subtrair dela toda a energia que ele injetar na

rede. Assim, se for consumida mais energia do que produzida, o consumidor pagará o

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equivalente de quilowatt-hora utilizado referente às tarifas às quais o estabelecimento

corresponde. Caso contrário, se o consumidor produzir mais energia elétrica do que o consumo

pagará apenas taxa fixa estabelecida pela concessionária e usufruirá de créditos válidos por 60

meses, que poderão ser abatidos das próximas faturas do próprio imóvel ou de outro imóvel

definido pelo proprietário.

Tal sistema já vem sendo adotado por países Europeus, notadamente Espanha, Portugal

e Alemanha, além da presença nos Estados Unidos, com a diferenciação quanto a forma de

retribuição ao consumidor-gerador pela energia gerada excedente, não consumida e injetada na

rede elétrica. Em linhas gerais, consiste no pagamento de uma tarifa (usualmente com valores

acima das tarifas finais de energia), pelas concessionárias de energia locais, para a geração de

energia produzida pelas instalações de energia solar. O custeio dessa tarifa em geral é assumido

pelos tesouros nacionais - modelo espanhol - ou rateado por todos os consumidores de energia-

modelo alemão. Em tais países predomina o incentivo associado ao desenvolvimento de novas

tecnologias, à aplicação de políticas de subsídios e a subvenções. Tais políticas são realizadas

tendo em vista o papel primordial da energia elétrica para o desenvolvimento econômico.2

Sob o ponto de vista da teoria do desenvolvimento, a superação de problemas sociais

como a pobreza, a fome, a falta de acesso a serviços de saúde e educação, a inexistência de

abastecimento de energia elétrica e a ameaça à sustentabilidade das comunidades é necessária

para o completo exercício do desenvolvimento.3 Deste modo, fica evidente a importância da

questão energética para a promoção do desenvolvimento, surgindo a geração distribuída em

pequena escala (micro e minigeração de energia) como possível fator de promoção do

desenvolvimento.

2 ESPOSITO, Alexandre Siciliano. FUCHS, Paulo Gustavo. Desenvolvimento tecnológico e inserção da energia solar no Brasil. Revista do BNDES. Número 40, dezembro 2013. P. 14. 3 CAVALCANTE, Hellen Priscilla Marinho. O acesso à energia elétrica no Brasil sob a ótica do desenvolvimento como liberdade. Revista de Direito Econômico e Socioambiental. Curitiba, v. 4, n. 2, jul./dez. 2013.

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Neste aspecto, para o estudo da interseção entre indústria energética e desenvolvimento

e como os sistemas de geração distribuída se inserem nesta problemática, é necessária a análise

do próprio conceito de Desenvolvimento, a partir da abordagem teórica realizada por diferentes

doutrinadores, além da análise do peso do setor energético para a realidade nacional e de como

tal setor pode ser aprimorado por iniciativas como a geração distribuída.

O presente trabalho pretendeu, neste contexto, analisar como ocorre o incentivo à micro

e minigeração de energia no país, sob um enfoque constitucional de promoção do

desenvolvimento. Assim, a pesquisa foi realizada por intermédio da análise do papel do Estado

no panorama atual e sua transição de monopólio deste serviço para compartilhador de

responsabilidades com a sociedade. Mais especificamente foi estudado o aspecto

regulamentador do Estado e a alteração de sua qualidade de interventor na economia, de

detentor único do poder-dever de provisão deste recurso para também incentivador da iniciativa

privada neste aspecto. Além disso, a pesquisa discutiu os conceitos de desenvolvimento

econômico e como a nova regulamentação sobre energia poderá gerar impacto para promoção

deste desenvolvimento. Por fim, foi analisado o contexto do setor energético brasileiro, seus

marcos legais e possibilidade de aumento da participação das energias renováveis nesse quadro.

Foi analisada, também, a importância econômica, ambiental e social das medidas. Para

tal fim primordial o estudo específico da Resolução Normativa 482/2012 da ANEEL e se tal

sistema tem se mostrado adequado à realidade brasileira. Por fim, pesquisou-se os tipos de

incentivos estatais ao programa e possibilidades de melhoria.

A importância do presente trabalho reside na escassez de pesquisas sobre o assunto,

mais especificamente sobre o impacto que a Resolução 482/2012 da ANEEL representou para

a realidade energética do País. Ademais, o tema mostrou-se relativamente novo tendo em vista

que apesar da existência de pesquisas consolidadas sobre as vantagens no uso de energias

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renováveis, no Brasil, o sistema de micro e minigeração de energia elétrica foi implantado

somente a partir ano de 2012, com modificações em 2015.

Nota-se, também, a importância da pesquisa para a difusão de informação sobre o tema,

visto que a falta de informação sobre o assunto contribui para pouca utilização do sistema.

A pesquisa justificou-se, ademais, na necessidade de maior atenção do poder público

para a implantação da variação energética, principalmente por meio da utilização de energia

renovável.

Assim, a presente pesquisa buscou contribuir para a análise da adequação do programa

de microgeração à Constituição Federal de 1988 e para o aprimoramento do sistema e, além

disso, servir de instrumento de reforço no intuito de incitar no Estado o comportamento de

adequação da agenda pública no caminho da diversificação de fontes e descentralização da

geração de energia, com o fim de emprestar maior independência no setor, a partir de práticas

que respeitem o meio ambiente e o desenvolvimento econômico mais equitativo e socialmente

inclusivo, com o intuito de estudar a promoção da diversificação da Matriz Energética

Brasileira, através de alternativas para aumentar a segurança no abastecimento de energia

elétrica, além de permitir a valorização das características e potencialidades regionais e locais.

Assim, a pesquisa buscou analisar se o sistema de microgeração e minigeração de

energia elétrica implantado no Brasil, contribui para a promoção do desenvolvimento

econômico nos termos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

Como objetivos específicos, o presente trabalho objetivou estudar o acesso à energia

elétrica sob o aspecto do direito fundamental à vida digna e ao meio ambiente equilibrado;

abordar os princípios constitucionais que regem a atividade regulatória do Estado; analisar o

papel do Estado como Poder Concedente, planejador, regulador, fomentador e financiador do

mercado de geração de energia; pesquisar os diferentes conceitos de desenvolvimento

econômico; abordar a regulamentação do tema e como tal sistematização poderá gerar impactos

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para promoção do desenvolvimento econômico; analisar o sistema de compensação

implementado pela Resolução Nº 482/2012 da ANEEL e sua adequação ao aparato

constitucional; pesquisar sobre a necessidade de ampliação da participação das fontes

renováveis na matriz energética brasileira e como a Resolução Nº 482/2012 da ANEEL poderá

contribuir para tal; e avaliar as possíveis políticas públicas capazes de alavancar a efetivação

do sistema do consumidor-gerador.

Para empreender tal proposta, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, tendo por base

principal o estudo sobre a função do Estado como promotor do desenvolvimento e o papel da

microgeração de energia como fator relevante para promoção deste desenvolvimento, sendo

este considerado sob uma ótica ampla de processo de expansão das liberdades reais, em

contraste com as visões mais restritas do desenvolvimento, que o relacionam com o Produto

Nacional Bruto e aumento numérico de rendas, por exemplo. Assim, a pesquisa pretendeu

utilizar como base a discussão sobre os diversos conceitos de desenvolvimento.

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2 ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DO TEMA

2.1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ORDEM ECONÔMICA

O sistema jurídico brasileiro tem como centro gravitacional a Constituição Federal de

1988, que traz em seu âmbito os princípios e regras que regem toda a ciência do Direito no país.

Nesse sentido, os princípios servirão de fundamento para outras normas e quando

constitucionalizados, fazem as vezes de chave do sistema normativo. Assim, os princípios são

tidos como normas-valores com eficácia suprema conforme preceitua Bonavides4.

Canotilho5, por sua vez, ao elucidar a distinção entre princípios e regras, estabeleceu

que aqueles possuem maior grau de abstração, possuem natureza indefinida e vaga,

demandando maior atividade hermenêutica quando aplicados, possuem caráter de fundamento

do sistema normativo devido sua posição na hierarquia das fontes do ordenamento jurídico. Por

sua vez, as regras serão normas que vinculantes de caráter funcional, com menor grau de

abstração.

Com a conquista do status pleno de norma jurídica, dotada de imperatividade, com

capacidade para tutelar diretamente todas as situações contempladas, a Constituição passa a ser

a lente pela qual se leem e se interpretam todas as demais normas6.

Nessa esteira, tal diferenciação traz ao estudo da geração distribuída de energia como

fator de promoção do desenvolvimento a necessidade de se analisar primeiramente os

fundamentos constitucionais estampados como princípios na Carta Magna, visto que servirão

de fundamento para a regulamentação do tema. Desse modo, qualquer análise do regramento

específico sobre o setor elétrico no país deverá ser travada a partir dos alicerces impostos pela

4 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 248. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1035. 6 BARROSO, Luís Roberto. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003. p. 27.

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Constituição Federal, expressos através dos princípios, em especial aqueles pertinentes à ordem

econômica e com vistas à concretização dos objetivos descritos constitucionalmente.

No tocante à ordem econômica, Eros Roberto Grau7 a caracteriza como meio de

conformação do processo econômico, que se opera mediante o condicionamento da atividade

econômica a determinados fins políticos do Estado. Além disso, o autor abrange o conceito de

ordem econômica como parcela da ordem jurídica – relacionada com o mundo do dever-ser -

para um conjunto de normas que institucionaliza uma determinada ordem econômica – dizendo

respeito ao mundo do ser8.

Nesse contexto, os princípios que conformam a interpretação constitucional relativos a

atividade econômica são a dignidade da pessoa humana como fundamento da República

Federativa do Brasil e como fim da ordem econômica; os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa como fundamentos da República Federativa do Brasil e valorização do trabalho

humano e livre iniciativa como fundamentos da ordem econômica; a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária como um dos objetivos fundamentais da República; o garantir

o desenvolvimento nacional como um dos objetivos fundamentais da República; a erradicação

da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais como um dos

objetivos fundamentais da República, a redução das desigualdades regionais e sociais também

como princípio da ordem econômica; a liberdade de associação profissional ou sindical; a

garantia do direito de greve; a sujeição da ordem econômica aos ditames da justiça social; a

soberania nacional, a propriedade e a função social da propriedade, a livre concorrência, a

defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a busca do pleno emprego e o tratamento

7 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 68. 8 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 70.

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favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte, todos princípios

enunciados nos incisos do Artigo 170; a integração do mercado interno ao patrimônio nacional9.

Já no tocante ao papel do Estado na ordem econômica e financeira, a Constituição

Federal de 1988 em seu Artigo 174 preceitua: “como agente normativo e regulador da atividade

econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e

planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

Quanto à atividade normativa e reguladora da atividade econômica no caso específico do setor

elétrico, num contexto de desestatização como se analisará adiante, o Estado tem atuado nesse

tocante via agência reguladora com funções expressas para emissão de atos normativos e

poderes fiscalizadores10.

Já o Parágrafo Primeiro do Artigo 174, a Carta assevera que a lei estabelecerá as

diretrizes e bases do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e

compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. Neste âmbito, José Afonso

da Silva11 explica que um regime de justiça social, constitucionalmente previsto como objetivo

da República Federativa do Brasil, consiste naquele em que cada um deve poder dispor dos

meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física,

espiritual e política.

Por sua vez, tem-se que o constituinte optou pelo sistema econômico capitalista, ao

elevar os princípios da propriedade privada e da livre concorrência e livre iniciativa, mas não

obstante isso, abre caminho para transformações na sociedade12. Deste modo, responsabilizou

9 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição Federal de 1988. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 194. 10 A Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996 instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, com a finalidade regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal, tendo como uma de suas competências estabelecer mecanismos de regulação e fiscalização para garantir o atendimento à totalidade do mercado de cada agente de distribuição e de comercialização de energia elétrica. 11 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 673. 12 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 674.

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tanto o Estado, quanto a sociedade em geral na promoção dos direitos fundamentais ali

elencados13. No âmbito estatal, esse processo pode se dar por meio dos diversos tipos de

atividade administrativa, quais sejam: limitação da autonomia privada (poder de polícia

administrativo), regulação econômico-social, fomento, serviço público e exploração direta de

atividade econômica pelo Estado.14

Especialmente no que se refere à regulação econômico-social e ao fomento, temos que

tais atividades estatais exercem relevante papel na implementação de políticas e promoção do

desenvolvimento em determinados setores.

Quanto a regulação econômico-social, Marçal Justen Filho15 conceitua como sendo

atividade estatal de intervenção indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de

modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de governo e a realização dos

direitos fundamentais. Quanto ao fomento, o mesmo autor conceitua tal atividade como aquela

de intervenção no domínio econômico para incentivar condutas dos sujeitos privados mediante

a outorga de benefícios diferenciados, inclusive mediante a aplicação de recursos financeiros,

visando a promover o desenvolvimento econômico e social. A energia por ser forte indutor do

desenvolvimento econômico merece particular ênfase quando o assunto é regulação e fomento

por parte do Estado16.

13 “A defesa da livre concorrência é imperativo de ordem constitucional (art. 170, IV) que deve harmonizar-se com o princípio da livre iniciativa (art. 170, caput). Lembro que "livre iniciativa e livre concorrência, esta como base do chamado livre mercado, não coincidem necessariamente. Ou seja, livre concorrência nem sempre conduz à livre iniciativa e vice-versa (cf. Farina, Azevedo, Saes: Competitividade: Mercado, Estado e Organizações, São Paulo, 1997, cap. IV). Daí a necessária presença do Estado regulador e fiscalizador, capaz de disciplinar a competitividade enquanto fator relevante na formação de preços ..." Calixto Salomão Filho, referindo-se à doutrina do eminente Min. Eros Grau, adverte que "livre iniciativa não é sinônimo de liberdade econômica absoluta (...). O que ocorre é que o princípio da livre iniciativa, inserido no caput do art. 170 da CF, nada mais é do que uma cláusula geral cujo conteúdo é preenchido pelos incisos do mesmo artigo. Esses princípios claramente definem a liberdade de iniciativa não como uma liberdade anárquica, porém social, e que pode, consequentemente, ser limitada”. AC 1.657 MC, voto do rel. p/ o ac. min. Cezar Peluso, j. 27-6-2007, P, DJ de 31-8-2007. [AC 1.657 MC, voto do rel. p/ o ac. min. Cezar Peluso, j. 27-6-2007, P, DJ de 31-8-2007.] 14 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 338. 15 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 669. 16 “Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os

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Sendo notável que um dos pilares do desenvolvimento econômico e social consiste na

utilização da energia elétrica, no que tange às atividades de geração e distribuição desta, a

Constituição Federal de 1988 atribuiu à União a competência para exploração, direta ou

mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o

aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam

os potenciais hidroenergéticos, conforme dispõe o Artigo 21, Inciso XII, Alínea “b”.

Neste ponto, nota-se que devido a essencialidade do serviço de abastecimento de energia

elétrica para promoção da dignidade humana, ao proporcionar ao cidadão o mínimo de conforto

e acesso a bens básicos da vida moderna, e para desenvolvimento econômico e industrial, sua

regulamentação é tema dos mais importantes para o Direito, visto que refere-se à efetivação do

direito fundamental à dignidade e relaciona-se com a questão de infraestrutura no País e

concretização do desenvolvimento econômico.

Neste contexto, sobressai o poder-dever do Estado na prestação deste serviço,

constituindo verdadeira responsabilidade pela infraestrutura econômica, que para Alveal17

consiste em: a) Ter como base o uso intensivo de recursos naturais; e b) Ser fonte geradora de

externalidades negativas sobre o meio ambiente, designando dois campos de intervenção: o

exercício da soberania sobre recursos naturais estratégicos para serem valorizados no

desenvolvimento das economias nacionais; e a gestão dos problemas decorrentes da

identificação de propriedade dos agentes geradores de custos que deterioram o meio ambiente.

Sendo assim, a preocupação com o estudo do setor energético relaciona-se com a busca

pelos objetivos traçados na Constituição Federal de 1988: de garantir o desenvolvimento

nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.” ADI 319 QO, rel. min. Moreira Alves, j. 3-3-1993, P, DJ de 30-4-1993. 17 ALVEAL, Carmen. Reforma das indústrias de infraestrutura e regime de propriedade: a indústria de energia no Brasil. In: BENECKE, Dieter W., NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Opções de política econômica para o Brasil. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. P 254-255.

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Além disso, tal tema possui relevância constitucional ao relacionar-se com a matéria dos

direitos fundamentais, visto que na qualidade de bem indispensável ao cidadão contemporâneo,

consiste em aspecto primordial para alcance da dignidade humana; respeitando os princípios

gerais da atividade econômica, que tem por fim assegurar a todos existência digna (Artigo 170),

quais sejam: a soberania nacional, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a

defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto

ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação e redução das

desigualdades regionais e sociais.

No tocante à soberania nacional, a microgeração de energia contribui para o

fortalecimento da segurança energética no país, visto que fomenta diversificação da matriz

energética, atualmente concentrada na hidroeletricidade, cuja vulnerabilidade às alterações

pluviométricas lançam o suprimento de energia à instabilidade. Assim, o princípio da soberania

nacional será alcançado quando a geração de energia por módulos de pequeno porte

promoverem a capacidade nacional de suprimento adequado de energia.18

Ademais, a questão em tela refere-se às funções constitucionais atribuídas ao Estado

brasileiro, especialmente no tocante à regulação econômico-social e ao fomento, visto tratar-se

de tema com alta demanda de programas governamentais a fim de regular o setor e fomentar

seu crescimento.

Tais programas deverão ser priorizados conforme os influxos contidos na “ambiência

social”, o que demonstra a complexidade que envolve os princípios constitucionais e o próprio

conceito de Constituição como sistemas jurídico e político simultaneamente. Desta feita,

discute-se a atividade de fomento como resposta estatal às demandas da população por

18 “Com isso, a Constituição criou as condições jurídicas fundamentais para a adoção do desenvolvimento autocentrado, nacional e popular, que, não sendo sinônimo de isolamento ou autarquização econômica, possibilita marchar para um sistema econômico desenvolvido, em que a burguesia local e seu Estado tenham o domínio da produção, do mercado e a capacidade de competir no mercado mundial, dos recursos naturais e, enfim, da tecnologia”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Editora Malheiros, 2007. p. 793.

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determinados serviços públicos ou privados que detém relevância e demandam concretização,

demonstrando a aproximação entre o Direito e a Política, entre o Estado e a Sociedade19.

Diante do atual contexto de crise energética no país, além da forte discussão sobre o uso

de fontes renováveis na geração de energia elétrica, as demandas sociais são direcionadas no

sentido de se buscar novas perspectivas para o suprimento de energia. Nesse sentido, o sistema

jurídico servirá de fundamento para a tomada de decisões políticas que fomentem novas

respostas à questão energética. É nesse ponto que na busca pela promoção dos objetivos

traçados pela Constituição Federal de 1988, em especial do desenvolvimento econômico, as

regulamentações expedidas pelo Poder Público servirão de instrumentos para a concretização

de direitos.

Sob esse ponto de vista que serão analisadas a Resolução 482/2012 e suas alterações e

se esse modelo normativo traz impactos na realidade social e maneira a promover o

desenvolvimento econômico.

2.2 O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O desenvolvimento econômico é um tema bastante discutido pela doutrina. Assim,

várias definições foram formadas, por diferentes pesquisadores. Celso Furtado explica que a

teoria clássica do desenvolvimento econômico considera o aumento da produtividade do

trabalho e suas repercussões na distribuição e utilização do produto social o problema central

da teoria do desenvolvimento20.

19 “Todo o problema constitucional ainda hoje procede, contudo, da ausência de uma fórmula que venha combinar ou conciliar essas duas dimensões da Constituição: a jurídica e a política. A verdade é que ora prepondera uma, ora outra. No constitucionalismo clássico e individualista preponderou a primeira; no constitucionalismo social e contemporâneo, a segunda. E quando uma delas ocupa todo o espaço da reflexão e da análise, os danos e as insuficiências de compreensão do fenômeno constitucional se fazem patentes”. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 95. 20 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. São Paulo: Editora Contraponto, 2009. p. 6.

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Segundo o mesmo autor, não é o aumento de produtividade nesta ou naquela empresa

que interessa, mas a melhora na produtividade do conjunto das empresas, sendo que muitas

vezes o aumento de produtividade econômica no plano da empresa significa apenas aumento

de lucros para o empresário, sem qualquer repercussão na renda global. Assim, não se pode

confundir o aumento da produtividade, no plano microeconômico, com o desenvolvimento em

si. Deste modo, o autor constata que o desenvolvimento deve ser percebido sob um ponto de

vista macroeconômico, a partir da análise histórica das transformações de cada sociedade.

O desenvolvimento relaciona-se com as transformações e, além disso, com intenções,

sendo percebido como fator de invenção ou criação da realidade social. Neste contexto, as

condições requeridas para que a intencionalidade se manifeste ocorrem historicamente. Para

Furtado, não se pode esperar um alcance abrangente de uma teoria que procura elaborar um

modelo sustentado por uma observação histórica limitada, ou seja, que não apresente

fundamentações observáveis ao longo do processo histórico21. Tal visão ressalta, na presente

pesquisa, a importância da análise histórica do impacto da estruturação do setor energético no

País como fator gerador de desenvolvimento econômico.

Por sua vez, o conceito de desenvolvimento elaborado por Douglass North fornece uma

perspectiva original sobre o tema. O autor considera o desenvolvimento como processo de

transformação da ordem social; e, mais especificamente, de uma transformação tal que enseje

a transição de uma ordem social de acesso limitado para uma ordem social de acesso aberto.

Todavia, North adverte que o crescimento econômico não conduz necessariamente a essa

transformação: para que haja desenvolvimento, é preciso que surjam mecanismos institucionais

e organizacionais que facilitem a transferência para o campo político dos ganhos na economia22.

21 FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. São Paulo: Editora Contraponto, 2009. p. 37. 22 SALAMA, Bruno Meyerhof. Sete enigmas do desenvolvimento em Douglass North. Economic Analysis of Law Review. V. 2. N. 2. 2011.

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Três pontos centrais são evidenciados na definição de North: o desenvolvimento é um

processo evolutivo de transição da ordem social, passando-se de uma ordem de acesso limitado

para ordem de acesso aberto; o crescimento econômico pode conduzir ao desenvolvimento,

porém isso não ocorre necessariamente; e, por fim, o que diferencia os países desenvolvidos

dos demais é o tipo de ordem social existente, sendo que nos primeiros é de acesso aberto, e

nos demais de acesso limitado.

Neste âmbito, a ordem social de acesso aberto seria marcada pelo livre acesso e entrada

dos cidadãos nas organizações políticas e econômicas, pelo apoio do Estado, disponível a todos

os cidadãos, às formas organizacionais que estruturam as atividades da sociedade; e pela

aplicação das leis de maneira imparcial aos cidadãos. Por sua vez, a ordem social de acesso

limitado seria caracterizada pela militância política em partidos, a titularidade formal de direitos

de propriedades, estando disponíveis para uma elite e pela existência de fortes barreiras

informacionais.

Tal concepção traz para a pesquisa desenvolvida a importância de criação dos

mecanismos institucionais e organizacionais que facilitem a transferência para o campo político

dos ganhos na economia. No presente trabalho, são avaliados os possíveis mecanismos que

poderão gerar a expansão do uso da geração distribuída, a postura do Estado em relação aos

instrumentos de crescimento de tal sistema e como isso resulta em maior participação da

sociedade no desenvolvimento econômico do País. A importância de tal arcabouço teórico

ganha ainda mais relevância quando a análise é realizada em um País cujas desigualdades

sociais são evidentes, marcado pela ineficiência do Estado em suprir os mais básicos serviços

à população.

Por fim, Amartya Sen aborda o tema de maneira a emprestar ao desenvolvimento um

caráter material de transformação da vida das pessoas, em detrimento de conquistas apenas

formais e relacionadas a dados numéricos de crescimento econômico. Assim, o referido autor

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conceitua desenvolvimento como o fator que elimina as privações de liberdades que limitam as

escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agentes23.

Tal conceito traz uma interseção interessante entre teoria econômica e Direito, visto que

a primeira tem como uma das suas principais ocupações estudar o desenvolvimento e suas

nuances, enquanto o segundo liga-se intimamente com os conceitos de liberdade e igualdade,

com vistas à justiça social.

No contexto delineado por Amartya Sen, é claramente possível qualificar o

desenvolvimento a partir do exame das liberdades substanciais existentes, sob um enfoque que

interfere diretamente na vida de cada indivíduo, suas limitações e possibilidades. Segundo ele,

se os indivíduos forem livres (liberdade substancial), e se tais características forem distribuídas

de maneira isonômica perante o tecido social (igualdade substancial), poderá se inferir que a

sociedade esteja mais próxima do modelo e dos objetivos traçados pelo Estado Democrático de

Direito.

Tal concepção tem importância pelos motivos a seguir descritos: ao elevar os conceitos

de igualdade substancial e liberdade substancial, empresta-se ao direito de acesso à energia

elétrica um conceito abrangente, segundo o qual todos os indivíduos deverão ter o acesso a tal

“bem”, com qualidade de serviço. Assim, o modelo da geração distribuída pode ser visto como

fator de promoção deste acesso, visto que aproximaria do próprio consumidor do serviço a

oportunidade de auto fornecimento, sem receios de eventuais racionamentos e cortes que

estariam submetidos às vicissitudes de uma política energética mal planejada, extremamente

dependente das variações naturais, em especial pluviométricas.

Por outro lado, dando-se a oportunidade de acesso de equipamentos à população, seriam

rompidas as barreiras impostas pelas limitações das linhas de transmissão e sua dispendiosa

instalação, que não alcançam todas as áreas remotas deste País vasto e repleto de diversidades

23 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 12.

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geográficas. Sob este enfoque, espera-se analisar como possível a caracterização da

minigeração e microgeração de energia como fatores de promoção de um desenvolvimento

substancial.

A Carta Constitucional é rica quanto ao tratamento do desenvolvimento econômico e

sua abordagem como instrumento de alcance da dignidade da pessoa humana. Neste contexto,

diversos princípios norteiam a atividade econômica com respeito aos ditames da cidadania, da

dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Na Constituição Federal de 1988, os princípios relativos à ordem econômica se

encontram positivados principalmente no artigo 170, todavia não sendo este o único dispositivo

que comporta os conceitos ligados à questão econômica. Assim, o objetivo fundamental da

República Federativa do Brasil de garantir o desenvolvimento nacional, com a construção de

uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a marginalização e promovendo

o bem de todos com redução das desigualdades (Artigo 3ª, CF), certamente relaciona-se com

os preceitos da atividade econômica.

Neste âmbito, conforme Petter, a falta de desenvolvimento, ou o estado de

subdesenvolvimento, deve ser tida como a antítese do receituário constitucional, reclamando

redobrados esforços de superação na atividade afeta a todos os operadores do Direito, além

disso, impondo aos administradores públicos um mínimo de programação de políticas públicas

de longo prazo24.

O mesmo autor afirma, ainda, que o subdesenvolvimento importa num desequilíbrio

econômico e desarticulação social. Aquele ligado diretamente à atividade econômica (num

sentido amplo) cuja ordenação é feita a partir do texto constitucional. Este, por sua vez, adota

com base da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa (Art. 170).

24 PETTER, Lafayete Josué. O Art. 170 e os princípios constitucionais da Ordem Econômica: primeiras anotações. In: Princípios constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. P. 24.

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Quanto ao estudo da geração distribuída ganha importância especialmente o conceito de livre

iniciativa, visto que se relaciona com a produção de energia em pequena escala pelos

consumidores, o que demanda participação ativa da população neste ramo energético.

Segundo pensamento de Miguel Reale, a livre iniciativa consiste na projeção da

liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando

não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, assim como a autônoma

eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Deste

modo, liberdade de fins e meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor

primordial, como resulta da interpretação conjugada dos Artigos 1º e 17025.

Este princípio tem suas raízes nos direitos fundamentais, aos quais faz relevante sua

proteção: presente no artigo 5º, quando a Carta garante o direito à liberdade, no viés econômico

ele ganha contornos mais preciosos justamente na livre iniciativa. Deste preceito observa-se

que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, funcionando como limite negativo à

atuação do legislador, vislumbrando-se neste âmbito uma dignificante proteção da pessoa

humana26.

No tocante à matéria dos direitos fundamentais, estes podem ser definidos como direitos

público-subjetivos que estão contidos em dispositivos constitucionais e, desse modo, encerram

caráter normativo supremo dentro do Estado27. Tais direitos possuem a finalidade de conferir

aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo e de limitar a liberdade de atuação dos

órgãos do Estado, podendo este ser obrigado a fazer algo ou a abster-se de atuar. Desse modo,

do ponto de vista do indivíduo o que se constitui como um direito fundamental representa, por

25 REALE, Miguel Apud PETTER, Lafayete Josué. O Art. 170 e os princípios constitucionais da Ordem Econômica: primeiras anotações. In: Princípios constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. 26 PETTER, Lafayete Josué. O Art. 170 e os princípios constitucionais da Ordem Econômica: primeiras anotações. In: Princípios constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 24. 27 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2014. p.41

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sua vez para o Estado, uma norma de competência negativa que limita suas possibilidades de

atuação28.

Nesse âmbito, o texto constitucional enuncia a defesa do meio ambiente como

princípio da ordem econômica (Artigo 170, IV). Em virtude disso ganha relevância a discussão

sobre o “desenvolvimento sustentável”, que para Machado29 é uma locução verbal em que se

relacionam dois conceitos, onde o termo sustentabilidade passa a caracterizar o

desenvolvimento. Conforme o autor, há evidente antagonismo entre os termos

(desenvolvimento e sustentabilidade), de modo que comumente na harmonização dos jogos de

interesse, dá-se um peso maior aos aspectos econômicos em detrimento da valorização ao meio

ambiente.

Por sua vez, a Constituição em seu Artigo 225, preceitua o direito de todos ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, que se constitui em bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de

defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Assim, a Carta Magna deu uma

nova dimensão ao conceito de “meio ambiente” como bem de uso comum do povo, inserindo

a função social e a função ambiental da propriedade como bases da gestão do meio ambiente,

ultrapassando o conceito de propriedade privada e pública. Desse modo, o Poder Público passa

a figurar não como proprietário de bens ambientais, mas como gestor que administra bens

alheios e que, por isso, deve prestar contas de sua atuação30.

Diante disso, Juarez Freitas31 argumenta que o princípio do desenvolvimento

sustentável ou da sustentabilidade introduz na sociedade um novo paradigma, que precisa reunir

os aspectos nucleares de determinação ética e jurídica-institucional, oriunda especialmente dos

28 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2014. p. 49. 29 MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 71. 30 MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 74. 31 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 31.

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artigos 3º, 170, VI, e 225, a seguir delineados: de assegurar às gerações presentes e futuras, o

ambiente favorável ao bem-estar, monitorado por indicadores qualitativos, com a menor

subjetividade possível; de responsabilização objetiva do Estado pela prevenção e pela

precaução, de maneira que se chegue antes dos eventos danosos; de sindicabilidade ampliada

das escolhas públicas e privadas, de sorte a afastar cautelarmente vieses e mitos comuns das

políticas públicas, com vistas à promoção do desenvolvimento material e imaterial; de

responsabilidade pelo desenvolvimento de baixo carbono, compatível com os valores

constantes no preâmbulo da Constituição, quando o que importa é a sustentabilidade nortear o

desenvolvimento, não o contrário.

Desse modo, o princípio constitucional da sustentabilidade determina com eficácia

direta e imediata, primeiramente, o reconhecimento da titularidade dos direitos daqueles que

ainda não nasceram. Em segundo lugar, leva a considerar a ligação entre todos os seres, onde

todas as coisas são interdependentes. Por fim, o princípio leva a sopesar os benefícios, os custos

e as externalidades, ao lado dos custos de oportunidade de cada empreendimento32.

Nessa esteira, a sustentabilidade não constitui-se como princípio abstrato, mas como

plenamente vinculante das ações individuais, comunitárias e estatais. Diante da iminente

exaustão dos recursos naturais, a sustentabilidade não é um princípio de observância protelável,

mas sim, por outro lado, vincula plenamente e se mostra inconciliável com o reiterado

descumprimento da função socioambiental de bens e serviços. Assim, a sustentabilidade traduz-

se como dever fundamental de, a longo prazo, produzir e partilhar o desenvolvimento limpo em

todos os sentidos, em combinação com os elementos éticos, sociais, ambientais, econômicos e

jurídicos-políticos33.

32 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 32. 33 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 39-40.

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Dessa maneira, do princípio da sustentabilidade, arremata o autor, nasce a obrigação

de acolher o caráter preferencial das energias renováveis, assim como a obrigação de sopesar

de maneira fundada, os custos e benefícios, diretos e indiretos dos projetos. Ademais, surge a

obrigação de intervir, sem a costumeira omissão desproporcional, para promover a justiça

ambiental, protegendo de forma séria as gerações presentes e futuras, ambas titulares de direitos

fundamentais.

Nessa perspectiva, Juarez Freitas propõe a conceituação para o princípio da

sustentabilidade: princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a

responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento,

tanto material quanto imaterial, além disso, socialmente inclusivo, durável e equânime, limpo,

inovador, ético e eficiente, para assegurar, de preferência de modo preventivo, no presente e no

futuro, o direito ao bem-estar.34

Por sua vez, Ignacy Sachs35 preceitua que o desenvolvimento é um conceito

multidimensional, com objetivos sociais e éticos, além de conter uma condicionalidade

ambiental explícita. Assim, o autor traz a concepção de desenvolvimento sustentável, baseada

no duplo imperativo ético de solidariedade entre a geração atual com as gerações futuras.

Em seu estudo, Sachs afirma que os cinco pilares do desenvolvimento sustentável são:

social, fundamental por motivos intrínsecos; ambiental, como provedor de recursos e recipiente

34 “A atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente. A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. ADI 3.540 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-9-2005, P, DJ de 3-2-2006. 35 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p. 36.

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de resíduos; territorial, relacionado à distribuição espacial dos recursos, populações e

atividades; econômico, como condição primordial para as atividades sociais; e político, sendo

a governança democrática valor fundamental para garantia das liberdades.

A possibilidade real de geração de energia elétrica pelo próprio consumidor vai de

acordo com tal conceito de desenvolvimento sustentável, visto que apresenta-se como

possibilidade de democratização do uso da energia elétrica, sendo esta gerada em conformidade

com a diversidade de recursos naturais de um País vasto e com grandes diversidades naturais,

o que significa diversidade de opções quanto aos recursos disponíveis. Além disso, tal modelo

significa o aumento do uso de fontes renováveis o que geraria maior respeito à questão

ambiental.

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3 REGULAÇÃO E COMPETÊNCIA DA AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA

3.1 EVOLUÇÃO E PERSPECTIVAS DA REGULAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO

A relação entre Direito e Economia remonta inicialmente à busca por mecanismos que

assegurassem o natural funcionamento do mercado e, posteriormente, por meios de correção de

suas falhas e de direcionamento para determinados objetivos acolhidos pelo ordenamento

jurídico36. Por sua vez, a regulação é instituto oriundo da economia, que vem ganhando espaço

no mundo jurídico, especialmente no tocante à questão das agências reguladoras.

O termo regulação é definido como um conjunto de regras que limitam a liberdade de

ação ou de escolha das empresas, dos profissionais liberais e dos consumidores, cuja aplicação

é sustentada pelo poder de coerção do Estado. Assim, diferencia-se de regulamentação, visto

que é realizada em um plano mais elevado de intervenção estatal, enquanto a regulamentação

trata do detalhamento normativo dessa intervenção37.

O estudo da regulação está ligado estreitamente à mudança do papel do Estado no

decorrer do tempo e a relação deste com a busca pelo desenvolvimento econômico. Neste

tocante, analisando-se principalmente as alterações econômicas e sociais no final do século XX,

é possível notar uma transformação no padrão de desenvolvimento econômico. No modelo de

desenvolvimento anterior, conhecido como modelo de acumulação fordista, o crescimento

estável da economia capitalista foi garantido pela existência de um contrato social, pós guerra

até a década de setenta. Este período foi caracterizado por um crescimento estável, fundado na

correspondência entre a produção em constante crescimento e o consumo de massa. Assim,

36 Alexandre Santos de Aragão afirma que “A relação entre o Estado e a economia é dialética, dinâmica e mutável, sempre variando segundo as contingências políticas, ideológicas e econômicas. Inegável, assim, uma relação de mútua ingerência e limitação: o Direito tem possibilidades, ainda que não infinitas, de limitar e de direcionar as atividades econômicas; e estas influenciam as normas jurídicas não apenas na sua edição, como na sua aplicação, moldando-as, também, limitadamente, às necessidades do sistema econômico”. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 24. 37 PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Regulação dos Serviços Públicos. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. P. 254.

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baseado na coerência entre estrutura de produção e consumo se deu a articulação entre

organização do trabalho, as instituições que regulam as relações capital-trabalho e a estrutura

macroeconômica38.

Quanto às relações de trabalho, o fordismo foi marcado pela introdução da teoria

taylorista, com a divisão científica do trabalho, juntamente com a crescente mecanização. Com

a clara divisão entre trabalho de concepção e trabalho de execução tornou-se possível a criação

de índices elevados de produtividade, que sustentaram o padrão de desenvolvimento. Por sua

vez, a relação entre capital e trabalho estava baseada no contrato social fordista que determinava

a participação dos trabalhadores nos ganhos de produtividade. Outro ponto relevante para a

estruturação desse modelo, em âmbito macroeconômico, foi a criação de arranjos institucionais

em nível internacional, o que gerou estabilidade para as decisões dos investidores. Nesse

cenário, a Convenção de Bretton Wood foi realizada para promover o reordenamento do cenário

econômico mundial. Por outro lado, o Plano Marshall assegurou a reconstrução da Europa e do

Japão e houve o surgimento do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do

Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT), com o fito de regular, respectivamente, o

mercado financeiro e cambial, fomentar o desenvolvimento e promover um comércio

internacional justo39.

Do ponto de vista da atuação estatal, houve participação direta nesse processo,

principalmente no tocante à consolidação do Welfare State, que assegurou a rede de seguridade

social e pela intervenção na produção. Quanto a este último aspecto, o Estado assumiu a

produção em determinados setores da economia, principalmente no campo da infraestrutura,

que por motivos de risco e custo dos investimentos, não atraía o setor privado. Quando não

38 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 188. 39 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 189.

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havia o investimento direto na produção, criavam-se atrativos para setores de interesse por meio

de subsídios e incentivos. Nesse contexto, houve elevação do padrão de vida da população nos

países desenvolvidos, com a promoção do bem-estar da sociedade (Welfare State), como

reflexo dos elevados índices de crescimento na economia mundial.

Todavia, com o primeiro choque do petróleo em 1973, surgiram os sinais de

esgotamento do sistema, com a inflação e o desequilíbrio orçamentário do setor público.

Somado a isso, outros aspectos comprometeram o modelo fordista, como a internacionalização

dos mercados e da produção, que comprometeram a regulação nacional, além do

descontentamento dos trabalhadores com a alienação do trabalho. Ademais, o Welfare State

encontrou sua limitação na capacidade de financiamento de benefícios da seguridade social. Ao

mesmo passo, surgiram crescentes críticas ao modelo de intervenção estatal estabelecida, que

passou a ser vista como protecionista a atores econômicos em detrimento da garantia da livre

concorrência. Enfim, o declínio do regime fordista trouxe de volta a concepção econômica que

privilegia os instrumentos de mercado e de concorrência como maneira de aperfeiçoar a

economia40.

Assim, as transformações da relação entre Estado e Economia que perpassaram o

período da passagem do século XIX para o século XX, foram inicialmente marcadas pelo papel

do Estado fundado na doutrina liberal clássica de Adam Smith, segundo a qual o estado

concentrava seus esforços no poder de polícia administrativa, com funções restritas à segurança,

justiça e serviços essenciais. Nesse contexto, a finalidade principal do Estado era garantir a

proteção dos direitos individuais frente ao Poder Público, via proteção irrestrita à propriedade

privada, com base na ideia de livre iniciativa e liberdade contratual41.

40 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 189. 41 MENDONÇA, Fabiano André de Souza. OLIVEIRA, Diogo Pignataro de. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. A governança pública e o Estado regulador brasileiro na efetivação do direito fundamental ao desenvolvimento. Regulação econômica e proteção dos direitos humanos: um enfoque sob a óptica do Direito Econômico. FRANÇA,

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No Brasil, o modelo desenvolvimentista iniciado nos anos 50 reconheceu a

impossibilidade de uma industrialização espontânea e propôs um programa para superar as

dificuldades estruturais do país, baseado na industrialização e no papel do Estado como

planejador, o que resultou no Plano de Metas e a criação de uma estratégia estatal para a

promoção do desenvolvimento. No período de 1962 a 1967, todavia, o país entrou em uma fase

de estagnação e como resposta, o Governo Castelo Branco optou pelo modelo de associação

entre o capital do Estado e os capitais privados estrangeiros e nacionais para se dar continuidade

ao desenvolvimento industrial e combater a inflação42.

A economia brasileira entra, então, numa fase de crescimento econômico, que durou até

1973. Tal crescimento foi liderado notadamente pelos setores públicos e pelas industrias

multinacionais de bens de consumo duráveis. Após 1973, todavia, o esgotamento do

crescimento econômico levou o Estado brasileiro ao endividamento e fim das fontes de

recursos. Ademais, a crise mundial do petróleo gerou a transferência de recursos ao exterior.

Como alternativa, buscou-se o financiamento externo para o crescimento, além da contenção

da demanda interna. Nesse período, observou-se a expansão no número de empresas estatais

gerando o aumento da participação direta do Estado na economia43.

Após esse período, o Estado que havia sido o principal responsável pelo

desenvolvimento não tinha mais condições de manter o mesmo nível de participação, tendo em

vista o alto grau de endividamento interno e externo. A década de 1980 foi marcada, por sua

Vladimir da Rocha. MENDONÇA, Fabiano André de Souza. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar (Orgs.). Fortaleza: Konrad Adenauer, 2008. P. 44. 42 “Assim, nos anos 70, observa-se uma expansão no número e no campo de atuação das empresas estatais, o que aumenta de forma significativa a participação direta do Estado na economia. No período de 1966-1977, foram criadas 219 empresas estatais, nos mais diversos setores (grande parte destas eram empresas deficitárias, pertencentes ao setor privado e adquiridas pelo setor público para que suas contas pudessem ser saneadas).” In: NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 191. 43 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 193.

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vez, pelo crescimento econômico fraco, acompanhado da crise fiscal do Estado, descontrole

inflacionário e dificuldade do Estado em gerenciar suas empresas.

Num contexto de elevado nível inflacionário e conjuntura econômica instável, cresceu

a desconfiança da sociedade em enxergar o Estado como instituição apta a reger a dinâmica da

economia. Além disso, com o fim de amenizar os desequilíbrios financeiros do setor público, o

Estado brasileiro passou a lançar mão das privatizações como mecanismo de reforma estatal.

No período do início dos anos 80 aos anos 90, o país enfrentou a retração na produção industrial,

o embrião da hiperinflação, o implemento e fracasso do Plano Cruzado e o confisco promovido

pelo governo Collor, o que resultou na total incredibilidade dos agentes econômicos na volta

do crescimento44.

Assim, a atuação direta do Estado na economia passou a ser considerada

internacionalmente como obstáculo para resolução dos problemas enfrentados e como entrave

ao implemento da modernização econômica. Com o consenso de Washington, em 1989, dá-se

início ao processo de reestruturação do Estado, marcado principalmente pelo controle das taxas

de inflação, como condição essencial à retomada do crescimento, a reestruturação do setor

público, como ampla redefinição do papel do Estado na economia, além da abertura da

economia como forma de modernização e inserção no mercado mundial45.

A estabilização econômica ocorreu somente após a implementação do Plano Real

(1994), ocasião em que a inflação saiu de níveis elevados. O Plano apresentou os objetivos

44 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 195. 45 “Com vista para este triste cenário, reúnem-se em Washington em 1989 o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e representantes dos países da América Latina, com o objetivo de tentar traçar um diagnóstico e lançar diretrizes de reformas econômicas para a América Latina. Os 10 instrumentos deste Consenso são: a disciplina fiscal, a prioridade do gasto público para educação e saúde, a reforma fiscal, as taxas de juros positivas geradas no mercado, o câmbio competitivo, a política comercial liberal, a abertura dos investimentos diretos estrangeiros, a privatização, a desregulamentação e, por fim, a defesa da propriedade privada (no sentido de redução do papel do Estado).” NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 195.

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seguintes: garantir o equilíbrio das contas públicas a curto prazo, para o qual foi reelaborado o

orçamento de 1994 e a criação do Fundo Social de Emergência para 1994/1995; recuperar a

noção de unidade de conta estável e facilitar o alinhamento de preços e salários, para o qual foi

criada a Unidade Real de Valor (URV); eliminar a inflação e retomar as funções da moeda, para

o qual foi implementado o Real; consolidar a reestruturação do Estado brasileiro e o equilíbrio

das contas públicas no longo prazo, para atrair investimentos estrangeiros e aumentar a

produtividade das exportações, para os quais foram previstas as reformas patrimonial,

administrativa, previdenciária e tributária46. Tais mudanças geraram o reequilíbrio econômico

e por outro lado aumentaram a vulnerabilidade externa.

No âmbito do processo de reforma estatal, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do

Estado definiu que este deixou de ser responsável direto pelo desenvolvimento econômico e

social por meio da produção de bens e serviços, para fomentar a função de promotor e regulador

do desenvolvimento. Assim, houve a mudança no papel do Estado, de produtor para regulador,

na qual a venda de empresas estatais e a concessão da exploração privada de setores

considerados estratégicos ou de bens e serviços de utilidade públicas levaram à criação das

agências reguladoras. Com isto, argumentou-se que o Estado não seria retirado do campo de

atuação desses setores, apenas mudaria de papel, deixando de ser provedor e passando a ser

regulador dessas áreas.

Em suma, como principais fatores que ocasionaram essas transformações temos as

concentrações mercantis, por meio das grandes fusões entre empresas com a decorrente

dominação de mercados por alguns grupos econômicos. Esse processo resultou no

enfraquecimento do poder do Estado na economia e no alargamento das desigualdades sociais.

Além disso, o advento do Estado Social trouxe a necessidade de promoção do desenvolvimento

46 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 197.

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aliado à concepção de solidariedade. Como tal objetivo não fora alcançado unicamente pela

ação do livre mercado, as constituições passaram a estabelecer condições para a intervenção do

Estado no domínio econômico. Desse modo, o Estado passou a atuar no domínio econômico

por meio do estabelecimento de balizas para a liberdade econômica, não com o intuito de

cercear a liberdade de mercado, mas de fomentar sua ampla aplicação. Desse modo, houve a

reformulação do papel do Estado, com a necessidade de que este assumisse a promoção do

desenvolvimento, tanto de forma direta como indireta, por meio da correção das falhas e

distorções do mercado.47

Com o advento do Estado Democrático de Direito, ganha cenário a abertura para que o

Estado assuma diversas concepções políticas. Nesse contexto, diversas ideologias ganham valor

subjacente e dialogam no seio da supra ideologia constitucional. Sendo característica do Estado

Democrático de Direito, a participação do processo político por parte de diversas classes e

interesses garantiu que não houvesse a adoção de modelo político econômico único, visto que

diversas concepções reciprocamente excludentes são consideradas legítimas e protegidas pelo

Direito. Nessa realidade, a intervenção do Estado não se torna um fenômeno homogêneo,

orientado para finalidades idênticas. Nesse processo, as características do Estado Democrático

de Direito são consideradas relevantes perante a economia, que devido sua dinamicidade,

demanda uma ordem econômica constitucional maleável às necessidades econômicas e

políticas majoritárias, ressalvado o núcleo protegido contra essas contingências, num processo

de ponderação dos seus valores48.

Nesse novo contexto, o modelo de desenvolvimento em consolidação, caracteriza-se por

ser um processo de inovação tecnológica com posição estratégica, pelo ritmo acelerado de

47 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A intervenção do Estado no domínio econômico – limites constitucionais à atuação no mercado das empresas públicas. Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte: Forum, 2013. P. 161. 48 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Histórico da atividade regulatória do Estado. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 61.

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participação do setor de informação em detrimento do setor de produção de bens, economia

cada vez mais global sem os antigos limites nacionais relacionados ao capital e à força de

trabalho, pela mudança no papel do Estado, motivada pelas dificuldades de financiamento e

pela desregulação do mercado financeiro, aumentando as possibilidades de valorização da

riqueza pela via financeira, com redução da atratividade para os investimento produtivos.49

Diante dessa conjuntura, atualmente pode-se concluir que a regulação possui três

acepções: sendo tida como um conjunto de comandos normativos, que envolve regras

coercitivas editadas por um órgão criado para um certo fim; como uma influência estatal

planejada, que engloba toda ação destinada a ingerir no comportamento social, econômico ou

político; e como forma de controle social, constituída por mecanismos determinados por regras

oriundas ou não do Estado. Em sua forma clássica, a regulação era tida como a substituição da

competição do mercado pelo comando estatal como maneira de se garantir o desenvolvimento.

Atualmente, esse mecanismo tem sido visto de maneira mais sutil, identificando-se mais com

uma ação influenciadora do que determinante do comportamento dos agentes. Nesse

paradigma, o desafio da regulação tornou-se na criação de incentivos para que os agentes

econômicos busquem a eficiência de seus empreendimentos, o que resultará em maximização

do bem estar social. 50

Assim, no sentido de equilibrar a eficiência do mercado na promoção do crescimento

econômico com os demais aspectos do desenvolvimento – social, político, ambiental, entre

outros – se faz imprescindível a atuação estatal. Nessa esteira, a Constituição Federal de 1988

estabeleceu a intervenção no domínio econômico como obrigação do Estado, com vistas a

49 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 191. 50 PINHEIRO, Armando Castelar. SADDI, Jairo. Regulação dos Serviços Públicos. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. P. 254.

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alcançar os objetivos traçados em seu artigo 3º.51 Nesses termos, tal atuação vem prevista em

seu artigo 174: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado

exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este

determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”

Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado poderá atuar por

meio da edição de normas de controle, pela atividade empreendedora e por meio da atividade

financeira. Quanto a esta última modalidade, nota-se sua relevância para a promoção da livre

concorrência e da livre iniciativa, considerando o fato de que quanto maior for a presença

tributante do Estado sobre as atividades econômicas, menor será a liberdade dos

empreendedores. Deste modo, a atividade extrafiscal pode ser encarada como ferramenta

eficiente de controle do Estado sobre a economia, com vistas à promoção do desenvolvimento

econômico52.

Nesse âmbito, a Constituição Federal dispõe em seu artigo 151 a possibilidade de

concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio

econômico entre as diferentes regiões do País. Dessa forma, a extra fiscalidade deverá ser usada

com o fim de alavancar certas atividades ou setores interessantes ao interesse público, desde

que tal desoneração resulte em contrapartida mais vantajosa para à sociedade, como o acesso a

serviços primordiais e com maior qualidade.

Assim, relevante acentuar que a regulação estatal da economia não contraria a liberdade

empresarial, mas possui o objetivo de gerar um ambiente justo e equitativo, no qual o maior

número de indivíduos possa exercer seu direito de agente econômico. Desse modo, verificadas

51 SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade financeira do Estado como indutora do desenvolvimento econômico – O papel dos incentivos fiscais na promoção da livre concorrência e da livre iniciativa. Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte. Jan/Mar. 2013. P. 125-126. 52 “Na prática, os incentivos fiscais são um verdadeiro pagamento que a sociedade faz ao setor privado para que este ocupe espaços econômicos de forma mais eficiente do que se fosse entregue à feitura do próprio Estado”. SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade financeira do Estado como indutora do desenvolvimento econômico – O papel dos incentivos fiscais na promoção da livre concorrência e da livre iniciativa. Revista de Direito Público da Economia. Belo Horizonte. Jan/Mar. 2013. P. 130.

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as condições, o Estado poderá deixar livres os espaços de atuação econômica, sem qualquer

intervenção ou regulação, desde que atente para que tal liberdade não prejudique os interesses

sociais, o que traz a ideia de intervenção norteada pela subsidiariedade enquanto princípio

normativo53.

Como crítica a este processo, temos que no tocante ao campo regulatório, para que um

Estado alcance um modelo regulador eficiente, seria necessária a prévia definição do modelo

regulatório a ser implantado, ou seja, de um marco regulatório que preveja e detalhe as relações

entre os diversos atores setoriais, seus direitos e obrigações; com a posterior criação e

fortalecimento de agências reguladoras, para, só então o Estado realizar a transferência dos

serviços para o setor privado. 54 No Brasil, todavia, ocorreu a inversão nesse processo, visto que

historicamente ocorreram as privatizações das empresas públicas, para posterior criação de

agências reguladoras e após isso serem criados marcos regulatórios.55

Além disso, outro desafio no campo regulatório diz respeito à busca por instrumentos

para gestão da regulação, sendo a questão da governança regulatória primordial no atual estágio

desses processos. Conforme auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União junto às

agências reguladoras, concluiu-se que a falta de uma lei geral que normatize, uniformemente,

as questões de governança, geram diversos processos de trabalho e formas diferentes de relação

com os interessados dos serviços regulados, o que pode dificultar o acesso dos usuários aos

serviços.

53 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Histórico da atividade regulatória do Estado. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 65. 54 NASCIMENTO, Renata. A mudança de papel do Estado brasileiro: uma análise dos anos 50 aos anos 90. In: Opções de política econômica para o Brasil. BENECKE, Dieter. NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Rio de Janeiro: Konrad Adanauer, 2003. P. 201. 55 “Entretanto, é patente que ainda não há no Brasil marco regulatório claro a ser seguido pelas agências reguladoras, uma vez que a criação das agências prescindiu, até o momento, de um verdadeiro regime regulatório amplo, que desse sentido global à nova instância regulatória”. CRUZ, Verônica. Ramalho, Pedro Ivo Sebba. Processo regulatório e qualidade: implantação de indicadores de qualidade regulatória no Brasil. Revista da AGERGS. Marco Regulatório. N. 16. 2013. P. 31.

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Também foi verificado que apesar da previsão legal de que as agências são autarquias

especiais, dotadas de autonomia financeira, não foram encontrados mecanismos formais que

deem maior estabilidade de recursos orçamentários a estes entes. Ademais, apesar do

desenvolvimento de indicadores de desempenho específicos para os reguladores, em geral, os

entes não dispõem de metodologias sistematizadas e instituídas para avaliar o desempenho das

agências. Além disso, foi encontrado obstáculo à transparência, quanto ao processo decisório

das agências, o que prejudica o acompanhamento de suas ações pela sociedade.56

Acerca dos instrumentos de implementação da intervenção, tal atividade estatal pode

ser realizada por meios, que segundo Bandeira de Mello, se desdobram no exercício do poder

de polícia, pela expedição de leis e atos administrativos, a fim de fiscalizar e planejar em

decorrência da atividade normativa e reguladora, a instituição de incentivos à atividade privada,

notadamente por favores fiscais e, por fim, pela atuação empresarial, atuando como explorador

de atividade econômica, com criação de pessoas jurídicas para este específico fim57.

3.2 PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E LEGALIDADE

ADMINISTRATIVA

A Constituição Federal de 1988 serve de fundamento para todo o ordenamento jurídico

brasileiro. Nessa esteira, ao determinar em seu Artigo 1º que o Estado brasileiro se constitui

como Estado Democrático de Direito, a Carta Magna institui que nenhuma competência estatal

será válida sem que haja norma jurídica prévia, bem como exige que qualquer ato

56 PROENÇA, Jadir Dias. PRO-REG – A análise do impacto regulatório – AIR: um instrumento eficaz para a reforma e a melhoria da qualidade da regulação no Brasil. Revista da AGERGS. Marco Regulatório. N. 16. 2013. P. 64. 57 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p.632.

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administrativo esteja em conformidade com a disposição legal previamente criada. Tal

característica do Estado de Direito, ou seja, a juridicidade, traz a necessidade de sujeição do

Estado à Constituição Federal e às normas por ele mesmo expedidas, quando no exercício de

suas funções58.

Para que tal juridicidade não seja meramente formal, o Estado de Direito tem sua

qualificação como democrático, com respeito às diretrizes de justiça social assim como dos

direitos e garantias fundamentais que emprestam base valorativa ao sistema jurídico posto.

Nesse sentido, o Estado criado a partir da razão humana para a consecução de determinados

fins, possui objetivos específicos que inspiram ou devem inspirar a atuação do poder público a

cada época. Assim, com o advento do Estado intervencionista, após a primeira guerra, foram

incorporadas às constituições regras destinadas a conformar a ordem econômica e social a

determinados postulados de justiça social, buscando proteger o indivíduo não apenas do poder

estatal, mas também do poder econômico e dos desequilíbrios daí advindos. Nessa esteira,

foram inseridos dispositivos indicadores de fins sociais a serem alcançados, que estabelecem

determinados princípios e fixam programas de ação para o Poder Público59.

No âmbito do Estado Democrático de Direito, a legalidade administrativa surge como a

garantia do cidadão de que a Administração Pública não poderá cometer interferências na vida

do indivíduo de maneira arbitrária. Assim, o que é enunciado no Artigo 5º, II, da Constituição

Federal para o cidadão – “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão

em virtude de lei” – dispositivo este que consagra as liberdades individuais, traz para o Estado

uma força negativa, de resistência à uma ação estatal desenfreada60.

58 FRANÇA, Vladimir da Rocha. Princípio da legalidade administrativa e competência regulatória no regime jurídico-administrativo brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 51, n. 202, p. 7-29, abr./jun. 2014. 59 BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 197, p. 30-60, jul./set. 1994. P. 34. 60 É nesse sentido que Celso Antonio Bandeira de Mello afirma que a legalidade é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo e que consiste na submissão do Estado à lei: “É sem suma: a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguintes, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei”.

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Apesar da legalidade figurar como elemento central do regime administrativo,

historicamente ocorreu o alargamento das bases do Direito Administrativo para além da lei em

sentido estrito e a função da lei passou a ser assumida, também, por outras fontes normativas.

Inicialmente, houve o reconhecimento da força normativa das orientações jurisprudenciais, com

a submissão da Administração Pública ao Poder Judiciário, fazendo dos juízes uma fonte

produtora de normas administrativas. Além disso, as teorias dos princípios gerais do Direito,

dos atos administrativos e dos limites substanciais à discricionariedade, foram adotadas pelos

juízes, tendo estes sistematizado tal arcabouço teórico, formando uma doutrina de direito

administrativo61.

Após tais evoluções, veio o advento das normas constitucionais substantivas que

definiram a organização administrativa, além das políticas públicas, direitos sociais, direitos

individuais, que anteriormente devia sua definição somente por parte do Poder Legislativo. A

seguir, com a criação e fortalecimento da jurisdição constitucional, surgiu nova onda de

orientações jurisprudenciais, a partir de interpretações da Constituição. Somando-se a isto, as

edições de normas estrangeiras também ampliaram o rol de fontes do Direito Administrativo.

Desse modo, o monopólio da função normativa originalmente incumbida ao Parlamento foi

destituído implantando-se um regime concorrencial de normas, no qual a visão monista da

legalidade onde a vinculação da Administração ao Parlamento seria ainda a alma do direito

administrativo foi derrubada.62

Assim, apesar de constituir um importante marco na evolução histórica do Direito, o

modelo de supremacia da lei como manifestação da vontade geral e como mecanismo único de

contenção de um poder estatal que avançasse sobre os interesses dos indivíduos sofreu

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 26ª. Edição, São Paulo: Malheiros, 2008. P. 100. 61 SUNDFELD, Carlos Ari Vieira. Direito Administrativo para Céticos. Malheiros: São Paulo, 2014. P. 242. 62 SUNDFELD, Carlos Ari Vieira. Direito Administrativo para Céticos. Malheiros: São Paulo, 2014. P. 243.

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mitigação em seu caráter de verdadeiro dogma, a partir do crescimento da importância das

Constituições. Assim, a concepção de que um instrumento trouxesse o arcabouço de

organização do poder, assim como de garantia de núcleos mínimos de direitos fundamentais e

sociais, além da tendência à materialização desses direitos em textos mais analíticos, e, também,

o conceito de constituição dirigente, com uma característica de vinculação ao próprio legislador,

impuseram significativa alteração na ideia de legalidade63.

Esse processo ainda sofreu influência do surgimento de um modelo de Estado de bem-

estar, que baseando no poder público o dever de provimento de prestações e serviços, não tem

na lei o instrumento próprio à tradução de todas as necessidades, crescentes e múltiplas, dos

cidadãos. Nesse sentido, o próprio mecanismo formal, complexo e demorado de produção

legislativa passa a ser um obstáculo ao adequado desempenho das funções estatais. Ademais, o

contexto contemporâneo de rápido avanço tecnológico, com a circulação acelerada de

informações tornou-se fator determinante da necessidade de atualização das normas, com vistas

à regulação das relações sociais.

Todavia, a produção dos instrumentos legais não segue tal velocidade, ainda mais

considerando as novas relações de poder estabelecidas entre Executivo e Legislativo, pautadas

em nosso país, por um presidencialismo de coalizão, que tornam a articulação política

necessária empreender em torno de uma solução a ser expressa em lei, sempre uma “arena de

negociação penosa e demorada”. Por tais razões, a produção legislativa passou a se caracterizar

pelo uso de cláusulas abertas e da indeterminação conceitual, que dê espaço ao juízo de

concretização segundo as circunstâncias do caso concreto, dando caminho à denominada

normatividade principialista64.

63 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Delegificação, legitimidade e segurança jurídica: a hermenêutica constitucional como alternativa de harmonização. In: Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte, ano 4, n.18, out./dez. 2004. p. 148. 64 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Delegificação, legitimidade e segurança jurídica: a hermenêutica constitucional como alternativa de harmonização. In: Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte, ano 4, n.18, out./dez. 2004. p. 149.

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Dessa forma, a própria Administração Pública tornou-se fonte produtora de normas,

fenômeno este causado ainda pela ampliação das funções do Estado, em especial no século XX,

pela prestação de serviços públicos e regulação da economia. Este processo envolveu grande

intensificação na produção normativa. Como o Parlamento não absorveu tal demanda, a própria

Administração assumiu a produção de parte dessas normas, em geral por meio da interação com

o legislador que edita leis sobre serviços e regulações, as quais servem de base para a produção

normativa da Administração65.

Fator típico desse processo é o chamado direito regulatório, em que se cria uma abertura

para exercício de discricionariedade técnica na normatização de determinados temas, por vezes

se verificando uma verdadeira delegação legislativa, do que resultam questões polêmicas,

dentre elas, a do déficit democrático de tais entes para o exercício do poder de fixação das

normas abstratas de conduta.66

Válido ressaltar, todavia, que o poder regulamentar da Administração não implica na

sua libertação em detrimento da legalidade, visto que o ato administrativo somente poderá

existir a nível de concreção da lei67. Nesse contexto a expedição de regulamento, instrução,

resolução, portaria ou qualquer outro ato administrativo somente poderá restringir a liberdade

dos administrados caso tal imposição for previamente delineado em lei68.

Tal fato decorre da origem direta da lei em relação à Constituição. Assim, considera-se

o poder legiferante como sendo primário, visto que decorre diretamente da Carta Magna na

escala hierárquica dos atos normativos, enquanto o poder regulamentar é classificado como

65 SUNDFELD, Carlos Ari Vieira. Direito Administrativo para Céticos. Malheiros: São Paulo, 2014. P. 244. 66 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Delegificação, legitimidade e segurança jurídica: a hermenêutica constitucional como alternativa de harmonização. In: Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte, ano 4, n.18, out./dez. 2004. p. 150. 67 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 26ª. Edição, São Paulo: Malheiros, 2008. P. 103. 68 É nesse sentido que dispõe o Artigo 84, IV, da Constituição, segundo o qual compete ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.

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secundário, já que possui como fonte os atos derivados do poder legiferante.69 Por tal razão, o

regulamento não pode contrariar a lei ou extravasá-la, sob pena de ser considerado nulo.

Por outro lado, no caso de ausência de disciplina legislativa necessária à promoção dos

direitos fundamentais, ganha força a corrente doutrinária segundo a qual tal falta poderá ser

suprida pelo regulamento. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal considerou válida a Res.

7 do Conselho Nacional de Justiça, que trouxe a vedação ao nepotismo no Poder Judiciário. Tal

decisão afastou a necessidade de lei específica para regulamentar o tema constitucional70.

Em suma, o regulamento administrativo pode ser considerado como ato administrativo

emanado de órgão da administração pública ou privada a qual a lei tenha conferido

competência, com o fim de dispor sobre a execução da atividade administrativa, a delineação

de atribuições específicas aos órgãos administrativos, sobre a organização e divisão de tarefas

e o condicionamento da liberdade individual com o escopo de evitar a produção de danos sociais

advindos de condutas perigosas. A regulamentação que decorre, então, do poder regulamentar

da Administração Pública, constitui-se na prerrogativa conferida à Administração Pública de

editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação71.

3.3 O PAPEL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO DIREITO BRASILEIRO

Com o fito de promover uma atuação mais seletiva e eficaz do Estado no domínio

econômico, houve a transição do modelo de intervenção estatal para um modelo de regulação.

No mundo ocidental, a busca pela regulação da economia tem sido realizada por meio da

atuação de órgãos ou entidades especializados tecnicamente, dotados de autonomia frente ao

Poder Executivo. Com isso, procura-se retirar a regulação de vastos setores da esfera

69 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências reguladoras e poder normativo. In: Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. Número 7. Set/out/nov 2006. P. 2. 70 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. P. 241. 71 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16. ed. rev. amp. atual., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. p. 44.

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preponderantemente político eleitoral, para evitar-se a desvirtuação dos objetivos públicos,

traçados constitucionalmente. Essas instituições surgem, então, com o fim de representar a

atuação de um Estado presente no âmbito econômico numa instância tutelar, encarregada de

garantir a manutenção de grandes equilíbrios.72

No Brasil, as agências reguladoras são constituídas como autarquias especiais, sujeitas

a regime que assegure autonomia em face da Administração direta e investida de competência

para regulação setorial. Nesse âmbito, as agências possuem a função de controlar a prestação

dos serviços públicos, o exercício das atividades econômicas e a atuação dos agentes

econômicos, impondo a sua adequação aos fins ditados pela estratégia econômica e

administrativa inspirada pelo processo de desestatização. Em geral, a lei instituidora define o

regime a qual submeterá a agência reguladora. Todavia, não obstante a heterogeneidade das

figuras e características setoriais, as agências possuem como características a maior autonomia

em relação à administração direta, a estabilidade de seus dirigentes, que possuem mandato fixo,

o caráter final das suas decisões, não sendo passíveis de apreciação por outros órgãos da

Administração Pública.73

Entre as atividades de competência das agências estão a produção normativa sobre o

desempenho de determinada atividade econômica, a fiscalização sobre a prestação de serviços,

a aplicação de sanções em decorrência desta fiscalização e a composição de conflitos no setor

econômico. Para que cumpra tais funções, as agências reguladoras possuem certas

peculiaridades que as destacam das demais figuras jurídicas. Em primeiro lugar, as

competências atribuídas por lei às agências são subtraídas da Administração direta. Assim, a

atribuição de competências administrativas privativas em favor das agências equivale a reduzir

os poderes da administração centralizada. Tal característica impõe, inclusive, a ausência de

72 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Histórico da atividade regulatória do Estado. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 146. 73 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009.P. 594.

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revisibilidade ministerial dos atos praticados, não cabendo recurso hierárquico para o

Ministério ao qual está vinculada.74

Outro aspecto peculiar diz respeito à titularidade de competência regulamentar. Nesse

ponto, a discussão acerca da interpretação do Artigo 84, IV, da Constituição Federal sobre se a

reserva para editar regulamentos seria privativa do Presidente da República. Conforme

discutido, a atividade administrativa do Estado foi viabilizada por meio da competência para se

editar normas regulamentares pelos diversos entes e órgãos administrativos. Caso houvesse a

exigência de concentração somente no Chefe do Executivo, a atividade administrativa restaria

inviabilizada. Há de se notar, todavia, que a competência regulamentar das agências, bem como

dos demais órgãos, obedece os limites impostos pela lei75.

No tocante à função normativa, justifica-se pelo caráter complexo e dinâmico dos

fenômenos sociais, além das especificidades das atividades econômicas desempenhadas. Nesse

contexto, a doutrina diverge sobre o poder regulamentar das agências reguladoras. Alguns

74“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTADOR-REVENDEDOR-RETALHISTA (TRR). PORTARIA ANP 201/99. PROIBIÇÃO DO TRANSPORTE E REVENDA DE GLP, GASOLINA E ÁLCOOL COMBUSTÍVEL. EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS. LEGALIDADE. 1. Ação objetivando a declaração de ilegalidade da Portaria ANP 201/99, que proíbe o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. 2. A Lei 9.478/97 instituiu a Agência Nacional do Petróleo - ANP -, incumbindo-a de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º). 3. Também constitui atribuição da ANP, nos termos do art. 56, parágrafo único, do mesmo diploma legal, baixar normas sobre a habilitação dos interessados em efetuar qualquer modalidade de transporte de petróleo, seus derivados e gás natural, estabelecendo as condições para a autorização e para a transferência de sua titularidade, observado o atendimento aos requisitos de proteção ambiental e segurança de tráfego. 4. No exercício dessa prerrogativa, a ANP editou a Portaria 201/99 (atualmente revogada pela Resolução ANP 8/2007), proibindo o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. O ato acoimado de ilegal foi praticado nos limites da atribuição conferida à ANP, de baixar normas relativas ao armazenamento, transporte e revenda de combustíveis, nos moldes da Lei 9.478/97. 5. ‘Ao contrário do que alguns advogam, trata-se do exercício de função administrativa, e não legislativa, ainda que seja genérica sua carga de aplicabilidade. Não há total inovação na ordem jurídica com a edição dos atos regulatórios das agências. Na verdade, foram as próprias leis disciplinadoras da regulação que, como visto, transferiram alguns vetores, de ordem técnica, para normatização pelas entidades especiais."(CARVALHO FILHO, José dos Santos. O Poder Normativo das Agências Reguladoras’ (Alexandre Santos de Aragão, coordenador - Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, págs. 81-85). 6. Recurso especial provido, para julgar improcedente o pedido formulado na inicial, com a consequente inversão dos ônus sucumbenciais.” REsp 1101040 PR 2008/0237401-7. T1 - PRIMEIRA TURMA. Publicação: DJe 05/08/2009. Julgamento: 16 de Junho de 2009. Relator: Ministra DENISE ARRUDA. 75 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009.P. 706.

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doutrinadores argumentam que as agências não regulamentam as leis, tendo em vista que da

leitura do Artigo 84 da Constituição Federal, depreende-se a competência privativa do Chefe

do Poder Executivo para o poder regulamentar. Nessa esteira, a corrente contrária ao

entendimento do poder regulamentar como atributo dos diversos órgãos administrativos

defende que as normas editadas pelas agências restringem-se a regular a atividade da própria

agência, com efeitos internos, além de conceituar, interpretar e explicitar conceitos jurídicos

contidos em lei, sem inovar o sistema jurídico.76

Todavia, especialmente em setores econômicos, a preponderância de assuntos técnicos

e a rapidez com que se dão as mudanças demandam ainda mais a aproximação da atividade

normativa dos destinatários finais. No setor elétrico, em especial, demonstrando o ponto alto da

complexidade do setor, o que demanda uma normatização especializada e dinâmica da agência

reguladora se encontram os atos regulamentares da ANEEL no tocante à disciplina,

conceituação e a criação das figuras do minigerador e microgerador de energia elétrica, através

da edição da Resolução Normativa N. 482/2012. Ocorre que o setor de eletricidade no Brasil é

regido basicamente pelos artigos 21, XII, b, e o 22, IV, da Constituição Federal, além das leis

N. 9074/1995 (que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões

de serviços públicos e dá outras providências) e N. 9427/1995 (que institui a Agência Nacional

de Energia Elétrica - ANEEL, disciplina o regime das concessões de serviços públicos de

energia elétrica e dá outras providências), e de um vasto campo de resoluções emitidas pela

Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL e pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente

- CONAMA77.

76 PAVANI, Daniela Elias. Regulação e agências reguladora no direito brasileiro. Revista Virtual da AGU ano XIII, nº 132, fevereiro 2013. P. 10. 77 O sistema federativo instituído pela carta constitucional torna inequívoco que cabe à União a competência legislativa e administrativa para a disciplina e a prestação dos serviços públicos de energia elétrica. Consoante disposição do Artigo 21, XII, b, da Constituição Federal, compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidro energéticos. Já em seu Artigo 22, IV,

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Nesse âmbito, os próprios conceitos de distribuidora, concessionária, consumidor do

serviço, entre outros, são trazidos por meio de Resoluções Normativas, que viabilizam o

funcionamento adequado do setor, por meio da regulamentação. A especificidade e

complexidade das atividades na vida social é tanta e sua velocidade tanto ultrapassa a atividade

legislativa, que nem mesmo a complementação da lei por meio das resoluções da agência

reguladora foi suficiente para reger o desenvolvimento do sistema de geração distribuída. Para

viabilizar a implementação do sistema e de suas modificações, a própria ANEEL requereu

pareceres da Procuradoria da Fazenda a fim de que esta instituição dirimisse dúvidas e opinasse

acerca do aparente conflito quanto à definição de alguns institutos jurídicos indicados nas

normas78.

Outro aspecto singular das agências é a atribuição da administração da agência a titular

de cargo em comissão, mas investido de mandato com prazo determinado, excluída a

exoneração a qualquer tempo senão em face de comprovação de requisitos específicos. Esse

modelo gerou discussão, visto que o artigo 37, II, da Constituição Federal prevê a investidura

em cargo ou emprego público com prévia aprovação em concurso, ressalvadas as nomeações

para cargo em comissão, de livre nomeação e exoneração. As Leis 9.986/2000 e 10.871/2004,

que dispõem sobre os servidores das agências reguladoras, qualificou os cargos de diretoria

como comissionados de direção. Desse modo, foi incorporada a concepção que cargos

comissionados podem ser providos por prazo determinado e sua demissão pode ser submetida

à motivação e procedimento formal, nesses casos.

Por sua vez, no que tange à autonomia financeira, o modelo desenhado para as agências

prevê a atribuição de autonomia, pela garantia de receitas vinculadas. Desse modo, a intenção

é preceituado que compete privativamente à União legislar sobre águas, energia informática, telecomunicações e radiodifusão. 78 Diante desses questionamentos, a ANEEL solicitou manifestação da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Energia Elétrica, que em resposta emitiu o Parecer nº 00433/2016.

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foi de manter a estrutura e funcionamento sem dependência de disputas políticas sobre a

distribuição de verbas. Todavia, na prática o exercício dessa prerrogativa dependerá muito do

setor de atuação da agência e das circunstâncias em que se encontrem.

Assim, pode-se depreender que o modelo das agências reguladoras foi pensado num

contexto de dissociação entre a prestação de serviços públicos e sua regulação e com vistas à

preocupação para que a disciplina desses serviços seja fundada em critérios não exclusivamente

políticos, assegurando o funcionamento dos serviços em condições de excelência tanto para o

fornecedor quanto para o consumidor.79

3.4 REGULAÇÃO NO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO E O PAPEL DA AGÊNCIA

NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA

Especificamente sobre a regulação do setor de energia elétrica no Brasil, a primeira

regulação mais abrangente do setor foi editada em 1903, com a autorização para que o governo

federal explorasse diretamente ou por meio de concessões os aproveitamentos hidráulicos para

fins de prestação de serviços públicos. Somente a partir da década de 1930 o papel do Estado

se fortaleceu como regulador no setor, com a edição do Código de Águas. Este arcabouço

estendeu o poder concedente do governo federal para além da energia hidrelétrica, passando a

abarcar a transmissão e a distribuição de eletricidade, além de atribuir a competência legislativa

na área à União. As restrições à entrada de estrangeiros no setor, além da utilização do valor

histórico dos ativos no cálculo de remuneração do capital e o aumento da inflação nos anos 50

desestimularam os investimentos pelas multinacionais, o que foi suprido pelo poder público,

criando um ambiente crescentemente intervencionista.

79 “As agências reguladoras consistem em mecanismos que ajustam o funcionamento da atividade econômica do País como um todo, principalmente da inserção no plano privado de serviços que eram antes atribuídos ao ente estatal. Elas foram criadas, portanto, com a finalidade de ajustar, disciplinar e promover o funcionamento dos serviços públicos, objeto de concessão, permissão e autorização, assegurando um funcionamento em condições de excelência tanto para o fornecedor/produtor como principalmente para o consumidor/usuário”. REsp 757.971/RS, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, j. 25.11.2008, DJe, 19.12.2008.

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No período das décadas de 60 e 70, houve alterações na regulação do setor, com a

criação da Eletrobras, passando a funcionar como órgão de planejamento, coordenação e

financiamento do setor (1962); a transformação da Divisão de Águas e Energia do Ministério

de Minas e Energia, para Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, que funcionaria

como órgão regulador do setor até os anos 90; e a reavaliação dos ativos usados como base das

tarifas, impondo-se um mecanismo de correção monetária com vistas à inflação. Assim, o

modelo de planejamento, financiamento e operação era centralizado na Eletrobras, que obteve

sucesso em expandir o setor. Por sua vez, o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica

efetivamente exercia um papel secundário, visto que era capturado pelas empresas do setor.80

A partir da década de 70, as tarifas de energia elétrica passaram a ser controladas pelo

Ministério da Fazenda e usadas como instrumento de combate à inflação e promoção das

exportações. A situação financeira das empresas de energia sofreu deterioração, já que as tarifas

passaram a ser reajustadas abaixo do necessário para a remuneração mínima legal do capital

investido. Com isso, houve crescente endividamento das empresas, o que comprometeu parcela

elevada das receitas para o pagamento dos juros. Em resposta, na década de 90, foi editada a

Lei N. 8.631/1993 com o fito de acabar com a equalização tarifária e com a remuneração

mínima sobre os ativos, para atrair o investidor privado e aumentar a competição no setor. Em

seguida, o Artigo 175 da Constituição81 foi modificado para se permitir a entrada do capital

estrangeiro no setor. Já as leis N. 8.987 e N. 9.074 fixaram regras gerais de concessões. No ano

de 1996, foi criado o novo órgão regulador do setor, a Agência Nacional de Energia Elétrica,

80 PINHEIRO, Armando Castelar. SADDIR, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. P. 314. 81 “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II - os direitos dos usuários; III - política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado.”

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para regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição, transmissão e comercialização

de eletricidade.82

Nesse contexto, a ANEEL recebeu as atribuições de fixar os parâmetros técnicos para

assegurar a qualidade dos serviços, estabelecer os critérios para fixação das tarifas de

transmissão e de distribuição. Quanto às atividades de controle e fiscalização do sistema de

energia elétrica, a agência trabalha via convênios com as agências estaduais de regulação.

Ademais, a autarquia também se responsabiliza pela defesa da concorrência no setor, em

convênio com as Secretarias de Acompanhamento Econômico e de Direito Econômico, além

do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência.

Quanto à estrutura institucional do setor elétrico, ocorreu uma classificação em

atividades de governo, regulatórias e especiais. As de governo se caracterizam pelo exercício

de competências relativas ao poder político e é desempenhada pelo Conselho Nacional de

Política Energética (CNPE), Ministério de Minas e Energia (MME) e Comitê de

Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Já a regulatória é de competência da Agência

Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), enquanto as atividades especiais, de cunho técnico, são

exercidas pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), pela Câmara de Comercialização de

Energia Elétrica (CCEE) e pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)83.

Ocorre que o modelo de proteção da concorrência incialmente criado previu a

coordenação da ANEEL com o CADE, além da Secretaria de Acompanhamento Econômico

(Ministério da Fazenda) e a Secretaria de Direito Econômico (Ministério da Justiça) em um

sistema de cooperação institucional, com atuação conjunta de competências. Todavia, como

não houve ainda um tratamento legislativo específico sobre o papel a ser desempenhado por

82 PINHEIRO, Armando Castelar. SADDIR, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. P. 315. 83 BRAGA JUNIOR, Sergio Alexandre de Moraes. COSTA, Victor Hugo Gurgel. Da crise à sustentabilidade energética: os desafios do setor elétrico brasileiro. Florianópolis: CONPEDI, 2015. P. 316.

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cada ente na matéria, paira sobre o setor um ambiente de insegurança jurídica, quanto a previsão

de procedimentos, normas e decisões aos destinatários84.

Assim, nas últimas décadas percebeu-se uma abertura ao mercado de energia elétrica,

com a transição de um regime monopolista, como regra, para o incremento da concorrência no

setor e criação de um mercado regulado e mais aberto à iniciativa privada, com a atuação de

produtores independentes, criando um ambiente propício ao investimento privado. Contudo, a

crise energética de 2001 demonstrou a vulnerabilidade do modelo implantado, com o

crescimento da intervenção política nas instituições setoriais. Com o colapso do setor, o

Governo brasileiro suprimiu a autoridade administrativa independente da agência reguladora.

Assim, foi estabelecido novo marco regulatório para o setor, com a edição da Lei nº

10.848/2004, que reduziu a autonomia e independência da agência, ao vincular grande parte da

atuação da ANEEL ao aval do Ministério de Minas e Energia. Desse modo, a agência perdeu

sua característica de regulação autônoma no setor para se tornar um órgão de execução das

decisões do Poder Concedente.85

Nessa conjuntura, a regulação no setor energético não cumpre em totalidade seu

papel de fomentar a livre concorrência, o equilíbrio econômico entre os agentes envolvidos e,

principalmente, a defesa do consumidor. Ocorre que quando a ANEEL emite estudos e

pareceres a respeito das operações, o faz com atribuição meramente opinativa, que pode ou não

ser acolhida pelo Ministério de Minas e Energia. Desse modo, o setor fica suscetível a interesses

políticos que nem sempre correspondem ao interesse público ligado a importante esfera

econômica.86

84 KERSTEN, Felipe de Oliveira. Regulação pública da economia e defesa da concorrência no setor elétrico: repartição de competências e articulação entre a Agência Nacional de Energia Elétrica e o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Direito concorrencial e regulação econômica. MATTOS, Paulo Todescan Lemos. MOREIRA, Egon Bockmann (Coords.). Belo Horizonte: Fórum, 2010. P. 336. 85 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 282. 86 Sobre esse processo, Alketa Peci explica que “Com a crise, foram criados diversos órgãos que abalaram seriamente a autonomia e a estabilidade da Aneel, assumindo muitas das suas funções. Entre os quais, destaca-

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Nesse ínterim, questionamentos são feitos em relação à atuação da agência reguladora:

omissão na ação fiscalizatória por parte da ANEEL, que gera ambiente de desequilíbrio

econômico financeiro em favor das concessionárias e em detrimento do consumidor; a omissão

quanto sua atribuição legal de garantir tarifas justas de energia elétrica, ignorando a modicidade

das tarifas e prejudicando a universalização do acesso e uso do serviço público; o abandono do

princípio da modicidade tarifária em razão do aumento arbitrário dos lucros das distribuidoras

em detrimento do consumo; a falta de fiscalização eficiente dos contratos, do que decorreu o

desequilíbrio econômico-financeiro em favor das distribuidoras; o repasse das perdas da

distribuição aos consumidores por meio das tarifas, tida como convalidação da gestão

ineficiente do setor no que se refere às perdas elétricas; o da tarifa da energia em patamares

acima ao da inflação; e por fim, a falta de representatividade dos pequenos consumidores nas

discussões acerca dos rumos setoriais.87

Por fim, como ressalta Eros Grau88, a Constituição Federal de 1988 projeta um estado

forte, o quão necessário seja para que os fundamentos elencados em seu artigo 1º e os objetivos

elencados no artigo 3º venham a ser concretizados, assegurando que a ordem econômica

promova a existência digna a todos. Desse modo, as parcelas de atividade econômica em sentido

amplo, caracterizadas como serviço público, que são tidas como indispensáveis à coesão e

interdependência social são incumbidas como responsabilidade do Estado. Nesse sentido, há

se o Comitê de Gestão da Crise Energética. A medida provisória que instituiu esse comitê deu a este poderes antes atribuídos ao Ministério de Minas e Energia e à Aneel. Esse exemplo ilustra o elevado risco político que a inadequada prestação de serviços públicos cruciais acarreta para o governo, cujos índices de popularidade diminuíram significativamente durante a crise em questão. Afinal, trata-se de serviços importantes não apenas pelo seu impacto econômico, mas também por sua relevância social e política.” PECI, Alketa. Controle social no contexto da reforma regulatória. IX Congresso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y la Administración Pública, Madrid, España, 2-5 nov. 2004. P. 5. 87 BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão parlamentar de inquérito destinada a investigar a formação dos valores das tarifas de energia elétrica no Brasil, a atuação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) na autorização dos reajustes e reposicionamentos tarifários a título de reequilíbrio econômico-financeiro e esclarecer os motivos pelos quais a tarifa média de energia elétrica no Brasil ser maior do que em nações do chamado G7, grupo dos 7 países mais desenvolvidos do mundo. CPI Tarifas de energia elétrica. Relatório Final. Brasília: 2009. 88 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2008. P. 130.

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que se ponderar até que ponto as concessões no setor de energia elétrica estão cumprindo esse

desiderato e como as alterações nas atribuições da ANEEL representaram retrocesso para a

concretização desses direitos.

Apesar desse quadro, podem ser percebidos avanços na atuação da agência no que diz

respeito à competência para o estímulo a atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico

no setor de energia elétrica. Outro fator de vantagem foi a possibilidade de fomento da

participação do consumidor e promoção da universalização do acesso, por meio da

regulamentação da geração distribuída de energia, o que poderá representar ganhos na

concretização dos objetivos traçados constitucionalmente.

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4 ANÁLISE DA QUESTÃO ENERGÉTICA NO BRASIL

4.1 O SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA: CARACTERÍSTICAS E PERSPECTIVAS

A energia elétrica tornou-se primordial no cotidiano de qualquer cidadão do mundo.

Tanto para a fabricação de bens pela indústria, como para a realização de atividades comuns, a

energia elétrica é utilizada largamente. Por isso, seu estudo e regulamentação tem sido alvo de

constante preocupação por parte de governos e centros de pesquisa.

O estudo sobre o setor elétrico no Brasil pode ser dividido por incidentes críticos,

entendidos estes como acontecimentos que provocaram relevantes mudanças no campo

organizacional do setor em determinada época. Assim, os principais eventos envolvidos na

formação do setor elétrico brasileiro são: o período do monopólio privado; da presença do

Estado; do Estado indutor; do modelo estatal; da crise institucional; e do modelo híbrido89.

Em suma, no Brasil a indústria de energia foi construída sob um projeto de

desenvolvimento industrial constituído por políticas setoriais de substituição de importações,

estratégia que permitiu enfrentar as restrições de uma industrialização tardia, em contexto de

desvantagem face à dinâmica mundial de internacionalização do capital, consolidando a

organização econômica que atribuiu ao capital estatal a liderança na expansão do setor.90

No setor de energia elétrica criou-se a figura jurídica dos Produtores Independentes de

Energia (Lei n. 9074/1995), o livre acesso aos sistemas de transmissão e distribuição para os

grandes consumidores de energia e foi instituído o regulador independente (Lei 9427/1995) e a

Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

Assim, o contexto setorial foi formado com peculiaridades que tornaram complexa a

construção de um mercado competitivo de energia: a) o predomínio da hidroeletricidade (92%)

89 GOMES, João Paulo. VIEIRA, Marcelo Milano Falcão. O campo da energia elétrica no Brasil de 1880 a 2002. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, Mar/Abr. 2009. P. 300. 90 ALVEAL, Carmen. Reforma das indústrias de infraestrutura e regime de propriedade: a indústria de energia no Brasil. In: BENECKE, Dieter W., NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Opções de política econômica para o Brasil. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. P 254-255.

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de grande porte e a existência de considerável potencial hídrico não explorado reduzem a

competitividade das térmicas a apenas alguns espaços localizados no país; b) o ciclo de vida da

indústria de gás natural encontra-se em fase inicial de desenvolvimento e, portanto, é modesta

sua infraestrutura de transporte e distribuição; e c) a Petrobras é a empresa dominante na

produção e no transporte do setor gasífero.91

Em contraste à maturidade da indústria energética das economias desenvolvidas, no

Brasil a indústria elétrica ainda não atingiu sua maturidade e a indústria de gás natural é

embrionária. Por essa razão, a demanda de energia no país cresce em um nível superior ao do

produto e essa tendência permanecerá no futuro previsível, principalmente para a área de

indústria de gás e eletricidade. No cenário energético pós-reforma, as funções de suprimento,

fornecimento e demanda dos serviços de energia se tornaram mais complexas dada a presença

de muitos operadores privados com poderes econômicos assimétricos. Desta forma, o país

precisa aliar competência negocial e criatividade para retomar a expansão da infraestrutura

necessária ao desenvolvimento do nosso potencial produtivo.92

O sistema elétrico brasileiro apresenta como característica mais marcante um parque

gerador predominantemente hidrelétrico e grandes extensões de linhas de transmissão. No

decorrer da década de 1990, o consumo de energia elétrica apresentou índices de expansão

superiores ao Produto Interno Bruto, o que foi fruto do crescimento populacional nas zonas

urbanas e da modernização da economia, conforme levantamento feito pelo Senado Federal.93

91 ALVEAL, Carmen. Reforma das indústrias de infraestrutura e regime de propriedade: a indústria de energia no Brasil. In: BENECKE, Dieter W., NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Opções de política econômica para o Brasil. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. P 257. 92 ALVEAL, Carmen. Reforma das indústrias de infraestrutura e regime de propriedade: a indústria de energia no Brasil. In: BENECKE, Dieter W., NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Opções de política econômica para o Brasil. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. P 268. 93 BRASIL. Congresso Federal. Comissão Mista destinada a estudar as causas da crise de abastecimento de energia no País, bem como propor alternativas ao seu equacionamento. A crise de abastecimento de energia elétrica: relatório. Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2002.

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De modo geral, como características principais, o Sistema Elétrico no país é

caracterizado por: dimensões continentais; predominância de fonte hidrelétrica; diversidade

hidrológica das bacias hidrográficas permitindo complementariedade entre as regiões;

interligação entre as regiões por meio de extenso sistema de linhas de transmissão de longa

distância; participação de diversos agentes com usinas no mesmo rio, assim como linhas de

transmissão operadas por agentes distintos; tempo de construção de grandes obras de geração e

transmissão de energia94.

No início do ano de 2001 começaram a surgir evidências de uma crise de abastecimento

de energia no país, decorrente dos baixos níveis dos reservatórios de água no País. Tal problema

culminou na necessidade de racionamento no fornecimento de energia, atingindo o consumo

residencial com redução de 20% em relação ao ano anterior.95

Na ocasião, o Governo Federal criou por meio da Medida Provisória nº 2.147/2001 a

Câmara de Gestão da Crise, com objetivo de propor e implementar medidas para compatibilizar

a demanda e a oferta de energia elétrica. Todavia, passado o tempo e tendo se normalizado a

situação no abastecimento, não foram tomadas medidas estruturais suficientes para evitar nova

crise energética, que ganhou evidência no segundo semestre de 2014, decorrente novamente da

redução dos níveis aquíferos dos reservatórios. A situação se mostrou crítica com o colapso do

sistema Cantareira, principal fonte de abastecimento da Região Sudeste, o que demonstrou a

fragilidade da concentração da matriz.

Assim, apesar da preponderância da hidroeletricidade no setor energético, questiona-se

a concentração produtiva: pela impossibilidade de a hidroeletricidade suprir toda a energia

necessária nas diferentes regiões do País; pelo fato de ser uma fonte muito vulnerável ao regime

94 CARVALHO, Angela Regina Livino de. CARVALHO, Renata Nogueira Francisco de. MACHADO, Renato Haddad Simões. Planejamento e operação do Sistema Elétrico Brasileiro. TOLMASQUIN, Mauricio Tiomno (Coord.). Energia Renovável: Hidráulica, Biomassa, Eólica, Solar, Oceânica. EPE: Rio de Janeiro, 2016. P. 21. 95 BRASIL. Congresso Federal. Comissão Mista destinada a estudar as causas da crise de abastecimento de energia no País, bem como propor alternativas ao seu equacionamento. A crise de abastecimento de energia elétrica: relatório. Brasília: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2002.

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de chuvas, pelo fato das hidrelétricas possuírem um impacto ambiental significativo, visto que

os reservatórios inundam áreas extensas; pelo fato da água não ser mais considerada tão

abundante como no passado; por fim, porque as hidrelétricas exigem muito capital e longo

tempo de execução.

Neste ínterim, diante das limitações à expansão do suprimento de energia hidrelétrica e

das restrições ambientais e econômicas do uso de combustíveis fósseis, torna-se indispensável

diversificar a matriz energética. Uma produção mais descentralizada e diversificada tem a

vantagem de reduzir a vulnerabilidade do País às falhas de planejamento político e má gestão

pública e privada. Outra vantagem da descentralização consiste na promoção de

desenvolvimento econômico mais equitativo e socialmente inclusivo à medida que poderá

alcançar áreas remotas, desenvolvendo a produção local, com uso de recursos naturais próprios

de cada região.

Sendo notável que um dos pilares do desenvolvimento econômico e social consiste na

utilização da energia elétrica, no que tange às atividades de geração e distribuição desta, a

Constituição Federal de 1988 atribuiu à União a competência para exploração, direta ou

mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços e instalações de energia elétrica e o

aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam

os potenciais hidroenergéticos, conforme dispõe o Artigo 21, Inciso XII, Alínea “b”.

Neste ponto, nota-se que devido a essencialidade do serviço de abastecimento de energia

elétrica para promoção da dignidade humana, ao proporcionar ao cidadão o mínimo de conforto

e acesso a bens básicos da vida moderna, e para desenvolvimento econômico e industrial, sua

regulamentação é tema dos mais importantes para o Direito, visto que refere-se à efetivação do

direito fundamental à dignidade e relaciona-se com a questão de infraestrutura no País.

Neste contexto, sobressai o poder-dever do Estado na prestação deste serviço,

constituindo verdadeira responsabilidade pela infraestrutura econômica, que consiste em: a) Ter

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como base o uso intensivo de recursos naturais; e b) Ser fonte geradora de externalidades

negativas sobre o meio ambiente, designando dois campos de intervenção: o exercício da

soberania sobre recursos naturais estratégicos para serem valorizados no desenvolvimento das

economias nacionais; e a gestão dos problemas decorrentes da identificação de propriedade dos

agentes geradores de custos que deterioram o meio ambiente.96

De modo geral, o mercado de energia elétrica é classificado como de competitividade

restrita e imperfeita, devido as particularidades que impedem a criação de condições de mercado

adequadas à competição. Dentre tais características, destacam-se a não estocabilidade, a

homogeneidade e a não dirigibilidade.97

Visando estimular a competição e tornar as empresas mais eficientes, no Brasil foi

adotada a desverticalização das atividades de energia elétrica, divididas em dois segmentos: o

de distribuição e transmissão, exercidas mediante receitas e tarifas definidas pelo poder

concedente; no segundo a de geração e comercialização, em que podem atuar como prestadoras

de serviço público regulado, submissas as prescrições deste regime, ou submetidas à livre

negociação, com regras próprias.98

Num contexto de reestruturação do setor, é promulgada a Lei nº 8.631, de 4 de março

de 1993, que dispôs sobre a fixação dos níveis das tarifas para o serviço público de energia

elétrica e extinguiu o regime de remuneração garantida. Assim, houve paulatino afastamento

do Estado na prestação dos serviços, maior abertura do setor à iniciativa privada, com a

96 ALVEAL, Carmen. Reforma das indústrias de infraestrutura e regime de propriedade: a indústria de energia no Brasil. In: BENECKE, Dieter W., NASCIMENTO, Renata (Orgs.) Opções de política econômica para o Brasil. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2003. P 250. 97 KERSTEN, Felipe de Oliveira. Regulação pública da economia e defesa da concorrência no setor elétrico. In: MOREIRA, Egon Bockmann. MATTOS, Paulo Todescan. (Coord.) Direito concorrencial e regulação econômica. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. P 331. 98 KERSTEN, Felipe de Oliveira. Regulação pública da economia e defesa da concorrência no setor elétrico. In: MOREIRA, Egon Bockmann. MATTOS, Paulo Todescan. (Coord.) Direito concorrencial e regulação econômica. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. P 333.

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privatização, desverticalização, regime de concessão e a criação de uma agência setorial,

responsável pelo papel regulador especializado.

A nova fase de reforma voltou-se para o aperfeiçoamento do modelo implantado,

destacando-se a edição de leis e resoluções de caráter normativo da Agência Nacional de

Energia Elétrica - ANEEL, disciplinando o livre acesso aos sistemas de transmissão e

distribuição de energia.

Desse modo, o setor de energia elétrica no Brasil configurou-se pela transição de um

regime de prestação monopolista, que passa a ser exceção no sistema. Nesse cenário, tem

destaque a regulamentação de pequenas centrais elétricas, gerando aumento da oferta de energia

e disputa entre produtores independentes. Ademais, na medida em que se busca universalização

e melhora na qualidade dos serviços, cria-se um ambiente que beneficia o investimento privado.

Assim, passamos de um regime eminentemente centralizador e monopolista do início da década

de 80 para um com mais ênfase na iniciativa privada.99

Com a edição da Lei nº 10.848/2004, foi implantado um modelo baseado na modicidade

tarifária, por leilões públicos cujo vencedor é o agente que oferece a menor tarifa ao

consumidor. Além disso, com vistas na segurança do abastecimento, o modelo instituído

determina que a distribuidora deva realizar a contratação total da demanda prevista para seu

mercado100.

99 KERSTEN, Felipe de Oliveira. Regulação pública da economia e defesa da concorrência no setor elétrico. In: MOREIRA, Egon Bockmann. MATTOS, Paulo Todescan. (Coord.) Direito concorrencial e regulação econômica. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. P 337. 100 “Criado pela Lei nº 10.848/2004, o novo modelo do setor elétrico baseia-se em: regras estáveis, segurança e modicidade tarifária. A questão da modicidade tarifária se dá através de leilões públicos onde vence aquele agente que oferecer a menor tarifa ao consumidor. Isto significa que a expansão do sistema acontecerá, na medida do possível, de modo que o custo de eletricidade ao consumidor final se apresente mais competitivo economicamente, ao mesmo tempo em que os investidores em empreendimentos de geração terão a seu favor o estabelecimento de relações de longo prazo. O novo modelo institucional do setor elétrico brasileiro prevê a existência de dois ambientes de contratação: Ambiente de Contratação Regulada – ACR e Ambiente de Contratação Livre – ACL.” DUTRA, Ricardo Marques. SZKLO, Alexandre Salem. A Energia Eólica no Brasil: Proinfa e o Novo Modelo do Setor Elétrico. In: Anais do XI Congresso Brasileiro de Energia - CBE, 2006, Volume II, Rio de Janeiro. p. 861.

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A valorização da livre iniciativa no setor elétrico foi adensada quando oportunizou-se

ao próprio consumidor final do serviço a possibilidade pela geração de sua energia. Tal modelo,

denominado de Micro e Minigeração utiliza a parceria entre o produtor de pequena escala e as

concessionárias de energia. Nesse sistema, vigora a compensação, na qual a energia produzida

em excedente é liberada nas linhas da concessionária, sendo contados créditos. De outro lado,

caso a energia produzida não seja suficiente para abastecer a rede residencial/condominial

existe possibilidade de uso normal da energia fornecida pela concessionária.

4.2 IMPORTÂNCIA DAS ENERGIAS RENOVÁVEIS PARA A PROMOÇÃO DO

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

O desenvolvimento econômico é um conceito aberto, que ganha significado quando

analisado a partir dos pressupostos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 para a

atividade econômica. Nesse âmbito, o constituinte elevou a busca pelo desenvolvimento

econômico a objetivo da República Federativa do Brasil, que deverá ser pautado no princípio

da dignidade humana, conforme os ditames da justiça social e observando a defesa do meio

ambiente (artigos 1º, III, 3º e 170, VI).

Especificamente em relação ao aspecto ambiental, a Constituição Federal dispôs que

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo

e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de

defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Para assegurar a defesa do meio ambiente, o constituinte incumbiu ao Poder Público

alguns deveres: a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo

ecológico das espécies e ecossistemas; b) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio

genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material

genético; c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes

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a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através

de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem

sua proteção; d) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente

causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental,

a que se dará publicidade; e) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas,

métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

f) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública

para a preservação do meio ambiente; g) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as

práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou

submetam os animais a crueldade; entre outros.

Desse modo, a atividade econômica no Brasil é permitida livremente e incentivada,

como fator de geração de riquezas, todavia, deve ser pautada no respeito ao meio ambiente,

pincipalmente considerando o caráter limitado dos recursos naturais disponíveis. Nesse ponto,

ganham relevância ações que se baseiem no uso de fontes renováveis de energia, considerando

que esta é fator constante de necessidade para abastecimento tanto das residências quanto da

indústria e as limitações a seu acesso são preocupação estratégica nas sociedades

contemporâneas.

Com vistas ao dever do Poder Público em aliar o desenvolvimento econômico com a

preservação ambiental, impõe-se um desafio para o Estado de estabelecer a segurança

energética nacional a fim de promover uma infraestrutura que atenda o crescimento econômico,

mas que ao mesmo tempo tal infraestrutura esteja em consonância com os ditames da

sustentabilidade ambiental. Nesse âmbito, o tema das fontes renováveis de energia surgiu como

alternativa limpa e viável para a promoção dessa diversificação.

De maneira geral, os países instituem metas para o crescimento de fontes renováveis

com o fim de reduzir suas emissões de gases de efeito estufa e aumentar a segurança num

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suprimento que não dependa demasiadamente das fontes fósseis. Todavia, no Brasil metas

estabelecidas nesses patamares não fazem sentido, tendo em vista que 90% da matriz energética

está baseada em fontes renováveis. O impasse, todavia, reside no fato de este número está

assentado na participação das usinas hidrelétricas, que geram custos ambientais, sociais e

econômicos altos101.

Apesar das vantagens ambientais e sociais, a mudança de paradigma no setor energético

para a priorização de outras fontes apresenta dificuldades, já que a dinâmica do modelo

implantado é difícil de ser revertida, principalmente em decorrência do elevado nível de

consumo material e energético em países desenvolvidos, que também se reflete nos países

emergentes, a infraestrutura já estabelecida, que fora planejada com vistas a longo prazo e com

capital intensivo, o aumento da demanda por serviços relacionados à energia, além do

crescimento populacional102.

Atualmente, o quadro de fornecimento de energia no mundo é representado pelo

seguinte: 78% de toda energia é originada dos combustíveis fósseis, não renováveis a curto

prazo. Nesse contexto, a finitude dessas fontes, seu caráter poluente e a dependência energética

geraram o impulso da busca por recursos renováveis.103

No Brasil, a matriz energética é caracterizada pela forte presença de fontes renováveis,

com destaque para os aproveitamentos hidrelétricos e a utilização da biomassa. Entretanto, o

forte crescimento da demanda por energia exige que o país lance mão de todas as fontes

101 TESKE, Sven. Revolução energética: a caminho do desenvolvimento limpo. Greenpeace Internacional. Agosto de 2013. P. 15. 102 AGUIAR, Patrícia Leal Miranda de. BIZAWU, Kiwonghi. Energis renováveis e desenvovimento sustentável: desafios e perspectivas para os países emergentes. Conpedi Law Review. Uruguai. v. 2. n. 4. Jul/Dez. 2016. p. 415. 103 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. SIQUEIRA, Mariana de. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. O acesso universal à energia elétrica e a sua sustentabilidade: o papel das energias renováveis. GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar (Orgs.). O direito das energias renováveis. Fortaleza: Fundação Konrad, 2009. P. 69.

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disponíveis, para garantir o suprimento da população, assim como de investimentos

consistentes em eficiência energética.104

Nesse sentido, em uma perspectiva de longo prazo, vários caminhos podem ser seguidos

tendo em vista a disponibilidade de recursos no país. Se o Brasil desejar manter a alta

participação das energias hídricas no setor elétrico, terá que expandir os aproveitamentos nas

regiões cujo potencial é significativo, porém, a questão ambiental é relevante. Se resolver

expandir o aproveitamento das fontes fósseis terá que fazer grandes investimentos na

recuperação de gás natural e/ou carvão mineral. Neste caso, o país perderá a grande vantagem

comparativa de possuir uma matriz energética limpa.105

Com vistas a essa mudança no Brasil, ganhou relevância a instituição do Programa

Nacional de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia – PROINFA, com a edição da Lei nº

110.438/2002, com o fim de inserir fontes alternativas na matriz energética do país. Para isso,

o programa se baseou na contratação de projetos de energia eólica, biomassa e Pequenas

Centrais Hidrelétricas, com financiamento pelo Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social (BNDES) e contratação pela Eletrobrás no prazo de 20 anos. Com o fim

de efetivo incremento ao uso de outras fontes, o programa prevê o pagamento pela energia com

preços acima dos praticados com a energia hidrelétrica.

Por outro lado, o implemento da micro e minigeração ganhou atenção a partir da

constatação da crescente importância que a mesma desempenhará no atendimento à demanda

de energia no Brasil. Assim, a geração distribuída revela-se uma necessidade em longo prazo:

os estudos de suporte do Plano Nacional de Energia - 2030106 indicam que cerca de 5,7% da

104 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Série Estudos de demanda nota técnica DEA 26/14. Avaliação da Eficiência Energética e Geração Distribuída para os próximos 10 anos (2014-2023). Rio de Janeiro: Dezembro de 2014. 105 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Série Estudos de demanda nota técnica DEA 26/14. Avaliação da Eficiência Energética e Geração Distribuída para os próximos 10 anos (2014-2023). Rio de Janeiro: Dezembro de 2014. 106 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Plano Nacional de Energia 2030 / Ministério de Minas e Energia; colaboração Empresa de Pesquisa Energética. Brasília: MME: EPE, 2007.

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projeção da demanda de eletricidade deverá ser atendida por esta forma de atendimento até

2050.

Nesta conjuntura, as ações por parte consumidor final de energia tem papel relevante,

pois: permitem reduzir a necessidade de expansão da geração centralizada; cria diversificação

da matriz energética do País; valoriza o uso de fontes renováveis, com respeito ao meio

ambiente; poderá consistir em importante meio de suprimento da demanda.

A edição da Resolução Nº 482 da ANEEL trouxe regulamentação sobre a produção de

eletricidade em pequena escala por intermédio de instalações de pequenas potências, utilizando

fontes de energia renováveis, estabelecendo as condições gerais para o acesso de microgeração

e minigeração aos sistemas de distribuição de energia elétrica e o sistema de compensação de

energia elétrica. Com forte incidência de sol e vento, o Brasil é um dos países mais privilegiados

para expansão da microgeração. Nesse sentido, a Empresa de Pesquisa Energética aponta que

poderiam ser gerados 287 terawatts-hora por ano no País, somente no ambiente residencial, o

que significa 2,3 vezes o consumo residencial de energia verificado hoje em todo o País107.

As fontes alternativas com maior potencial para o Brasil são a biomassa, a irradiação

solar e a energia eólica, que possuem custos mais altos que as fontes convencionais. Mas, apesar

de seus custos ainda relativamente altos, as fontes alternativas apresentam outras vantagens:

podem gerar energia de forma mais descentralizada; podem levar a um desenvolvimento

econômico mais equitativo e socialmente inclusivo; podem gerar divisas ao invés de onerar o

balanço de pagamentos; e asseguram ao País uma maior independência energética.

Especificamente quanto à disseminação dos sistemas de microgeração e minigeração,

as vantagens no setor energético podem ser caracterizadas pela energia gerada próxima aos

centros de carga (pontos de distribuição), fazendo com que haja economia de recursos com

107 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Série Estudos de demanda nota técnica DEA 26/14. Avaliação da Eficiência Energética e Geração Distribuída para os próximos 10 anos (2014-2023). Rio de Janeiro: Dezembro de 2014.

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linhas de transmissão e com a redução de grandes obras; o baixo impacto ambiental, já que os

painéis são facilmente instalados em quaisquer locais como telhado, campo, e não geram

nenhum tipo de poluente como no caso das gerações térmicas à óleo ou a carvão; o tempo

reduzido de implantação; a redução de carregamento das redes, uma vez que a geração consegue

ser instalada próxima ao centro de consumo; e a complementação energética, pois a energia

elétrica gerada pela unidade geradora/consumidora complementará a energia elétrica gerada

por outras fontes.108

Porém, a microgeração somente poderá contribuir significativamente para o uso das

fontes renováveis, caso o Estado brasileiro coloque em prática estratégias e planejamento no

setor, assumindo uma função fortemente fomentadora da atividade. Neste âmbito, a estratégia

estatal poderá ser pautada especialmente na extrafiscalidade, na promoção de leilões de

equipamentos por preços mais baixos do que os promovidos no mercado, na abertura de crédito

para o consumidor/gerador e na divulgação das informações acerca dessa atividade.

4.3 ENERGIAS RENOVÁVEIS E DIREITO INTERGERACIONAL

A Constituição Federal de 1988 prevê as presentes e futuras gerações como

destinatárias da defesa e da preservação do meio ambiente. Para Machado109, o relacionamento

das gerações com o meio ambiente não poderá ser levado a efeito de maneira apartada, como

se a presença do homem no planeta não fosse formada por elos sucessivos. Assim, a

continuidade da vida pede que esta solidariedade não fique estagnada em uma geração, mas

leve em conta as gerações que virão, envolvendo um novo tipo de responsabilidade jurídica –

a equidade intergeracional.

108 JUNQUEIRA, Naila Melo Martins. Microgeração e minigeração de energia elétrica sob a ótica de um direito universal. In: Portal Âmbito Jurídico. Rio Grande, XVII, n. 123. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/%3C?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14628&revista_caderno=9 >. Acesso em agosto de 2017. 109 MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 73.

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Em seu Artigo 225, ao preceituar o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, que se constitui em bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de

vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as

presentes e futuras gerações, a Carta Magna deu uma nova dimensão ao conceito de “meio

ambiente” como bem de uso comum do povo, inserindo a função social e a função ambiental

da propriedade como bases da gestão do meio ambiente, ultrapassando o conceito de

propriedade privada e pública. Assim, o Poder Público passa a figurar não como proprietário

de bens ambientais, mas como gestor que administra bens alheios e que, por isso, deve prestar

contas de sua atuação110.

Diante disso, Juarez Freitas111 argumenta que o princípio do desenvolvimento

sustentável ou da sustentabilidade introduz na sociedade um novo paradigma, que precisa reunir

os aspectos nucleares de determinação ética e jurídica-institucional, oriunda especialmente dos

artigos 3º, 170, VI, e 225, a seguir delineados: de assegurar às gerações presentes e futuras, o

ambiente favorável ao bem-estar, monitorado por indicadores qualitativos, com a menor

subjetividade possível; de responsabilização objetiva do Estado pela prevenção e pela

precaução, de maneira que se chegue antes dos eventos danosos; de sindicabilidade ampliada

das escolhas públicas e privadas, de sorte a afastar cautelarmente vieses e mitos comuns das

políticas públicas, com vistas à promoção do desenvolvimento material e imaterial; de

responsabilidade pelo desenvolvimento de baixo carbono, compatível com os valores

constantes no preâmbulo da Constituição, quando o que importa é a sustentabilidade nortear o

desenvolvimento, não o contrário.

Desse modo, o princípio constitucional da sustentabilidade determina com eficácia

direta e imediata, primeiramente, o reconhecimento da titularidade dos direitos daqueles que

110 MACHADO, Paulo Afonso. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 74. 111 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 31.

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ainda não nasceram. Em segundo lugar, leva a considerar a ligação entre todos os seres, onde

todas as coisas são interdependentes. Por fim, o princípio leva a sopesar os benefícios, os custos

e as externalidades, ao lado dos custos de oportunidade de cada empreendimento112.

Nessa esteira, a sustentabilidade não constitui-se como princípio abstrato, mas como

plenamente vinculante das ações individuais, comunitárias e estatais. Diante da iminente

exaustão dos recursos naturais, a sustentabilidade não é um princípio de observância protelável,

mas sim, por outro lado, vincula plenamente e se mostra inconciliável com o reiterado

descumprimento da função socioambiental de bens e serviços. Assim, a sustentabilidade traduz-

se como dever fundamental de, a longo prazo, produzir e partilhar o desenvolvimento limpo em

todos os sentidos, em combinação com os elementos éticos, sociais, ambientais, econômicos e

jurídicos-políticos113.

Dessa maneira, do princípio da sustentabilidade, arremata o autor, nasce a obrigação

de acolher o caráter preferencial das energias renováveis, assim como a obrigação de sopesar

de maneira fundada, os custos e benefícios, diretos e indiretos dos projetos. Ademais, surge a

obrigação de intervir, sem a costumeira omissão desproporcional, para promover a justiça

ambiental, protegendo de forma séria as gerações presentes e futuras, ambas titulares de direitos

fundamentais.

Nessa perspectiva, Juarez Freitas propõe a conceituação para o princípio da

sustentabilidade: princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a

responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento,

tanto material quanto imaterial, além disso, socialmente inclusivo, durável e equânime, limpo,

inovador, ético e eficiente, para assegurar, de preferência de modo preventivo, no presente e no

futuro, o direito ao bem-estar.

112 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 32. 113 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade – direito ao futuro. 2ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 39-40.

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Com a conscientização dos indivíduos quanto ao cuidado com o meio ambiente para

evitar o esgotamento de recursos, dos mais diversificados tipos, tanto para as gerações

presentes, quanto para as futuras, surgiram questionamentos primeiramente em âmbito moral,

sobre a aceitabilidade de uma obrigação jurídica entre distintas gerações.

A partir de uma análise política e moral para um diagnóstico jurídico, surge o

questionamento se seria moralmente aceitável transmitir às gerações vindouras resíduos

radioativos ou uma biodiversidade em vias de desaparecimento114. Assim, a análise sobre a

possibilidade de direitos das gerações futuras perpassa a indagação sobre em que medidas

injustiças de uma geração podem causar dívidas transmissíveis a membros das gerações

seguintes, quanto a questão dos destinatários da tutela, quanto às formas de tutela, entre outros

aspectos.

Para analisar tal questão, diversas teorias filosóficas têm surgido ao longo do tempo.

Primeiramente, a da “reciprocidade indireta”, encabeçada por Brian Barry, lança a ideia de

reciprocidade intergeracional proveniente das máximas justificatória e da substantiva. A

justificatória sustenta que a presente geração deve algo à geração subsequente visto que recebeu

algo da geração anterior. Já a máxima substantiva, considera que a atual geração tem o dever

de repassar à próxima um capital no mínimo equivalente ao que herdou da geração antecedente.

Em resumo, a reciprocidade pressupõe que as pessoas têm a obrigação de retribuir para os

outros aquilo que eles mesmos receberam. A reciprocidade indireta gera uma cadeia de

obrigações entre gerações, ao se diferenciar da reciprocidade direta, quando aquele que recebe

benefícios tem o dever de retribuir ao seu “benfeitor”. Na indireta, por sua vez, há uma terceira

parte envolvida, colocando como destinatários as futuras gerações115.

114 LOUREIRO, João Carlos. Pensar justiça entre as gerações: brevíssimas notas para um debate. In: GROSSERIES, Axel. Diálogos sobre “Pensar justiça entre as gerações”. Cadernos do programa de doutoramento em Direito Público, Estado Social, Constituição e pobreza. SPES, Instituto Jurídico, Faculdade de Direito e Universidade De Coimbra. Julho de 2016. p. 5. 115 GROSSERIES, Axel. Theories of intergerational justice: a synopsis. Institut Veolia Environment. Sapiens. Vol 1. Issue 1. 2008. p. 63.

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Algumas dificuldades, porém, são encontradas na justificação desta teoria. Entre elas

temos que algumas pessoas podem se aproveitar daquilo que foi recebido pelas gerações

anteriores sem se sentir na obrigação de repassar algo à subsequente, obtendo um verdadeiro

passeio livre na estrada de ferro entre as gerações sem ter que comprar seu bilhete. Outra crítica

reside no fato de que a obrigação com o beneficiário inicial, pressupõe a ideia de que os mortos

possam assumir obrigações, visto que foram fontes nesse processo. Todavia, este argumento

esbarra na exigência de neutralidade do pensamento liberal, visto que não é moralmente aceito

pelas várias concepções metafísicas. Outra dificuldade apresentada é a de que a reciprocidade

não é plenamente capaz de explicar as instituições de justiça em geral, visto que alguns

indivíduos doarão menos do que receberam e menos do que os outros indivíduos da sociedade,

como no exemplo de pessoas com menos capacidade de produção116. Apesar desses entraves, a

teoria em relevo apresenta a vantagem do estabelecimento do liame ou cadeia de obrigações

entre as diferentes gerações.

Por sua vez, a teoria da vantagem mútua considera que um indivíduo ao agir em

cooperação social e submeter-se a certas regras de conformidade social acabará por servir, em

última análise a seus próprios interesses. Todavia, algumas objeções podem ser apontadas a tal

teoria: o fato de que as gerações podem não coincidir no tempo para usufruir o mútuo benefício

e a não existência de garantias de que as regras de cooperação serão efetivamente cumpridas

pelas gerações.117 Apesar disso, a teoria apresenta a vantagem de ressaltar o conceito de

cooperação entre os agentes sociais e entre as diversas gerações.

Já a cláusula de Locke, que juntamente com a teoria de Hobbes formam o pensamento

mais conhecido como libertarianismo, baseia-se na forte proteção à auto propriedade, do corpo

116 GROSSERIES, Axel. Theories of intergerational justice: a synopsis. Institut Veolia Environment. Sapiens. Vol 1. Issue 1. 2008. p. 64. 117 GROSSERIES, Axel. Theories of intergerational justice: a synopsis. Institut Veolia Environment. Sapiens. Vol 1. Issue 1. 2008. p. 65.

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e do trabalho, mas também do estado dos recursos externos. Quanto a estes últimos, a questão

central gira em torno de responder sobre a legitimidade da propriedade que inicialmente não

possui donos, ou seja, que é deixada em comum para os outros, se consistiria em uma

propriedade coletiva ou se obedeceria à regra de quem se apropria primeiro. Para Locke, os

indivíduos são proprietários de objetos que não possuem dono, sobre os quais exercem seu

trabalho, desde que não desperdicem e deixem o suficiente para que os próximos que virão não

fiquem em situação desigual.

Aplicada ao contexto intergeracional, seria possível abstrair três explicações possíveis

para tal formulação filosófica. A primeira, de que cada geração deve deixar para a próxima pelo

menos o equivalente do que a primeira geração inicialmente apropriou-se. Outra versão, seria

a de que cada geração deve deixar para a próxima pelo menos a quantidade de recursos que a

próxima geração poderia ter se apropriado na ausência da geração anterior. Por fim, a terceira

versão explica que cada geração deve deixar à subsequente pelo menos o tanto que a futura

geração poderia ter apropriado se a geração atual não tivesse contribuído pela sua ação para o

melhoramento ou deterioração que a seguinte herdaria118.

Por fim, a teoria igualitarista de Rawls argumenta que uma teoria da justiça deve levar

em conta não somente questões de eficiência, mas especialmente deve considerar questão de

justiça como uma proteção incondicional de direitos. Para tal construção filosófica, Rawls

aborda a questão em duas fases, a estável e a de acumulação. No estado de acumulação, há a

necessidade de poupança compulsória, para que se permita a construção de uma estabilidade

mínima das instituições. Após esse estágio, alcançada a estabilidade, vigora a reciprocidade

indireta com a cadeia de obrigações intergeracionais119.

118 GROSSERIES, Axel. Theories of intergerational justice: a synopsis. Institut Veolia Environment. Sapiens. Vol 1. Issue 1. 2008. p. 66-67. 119 GROSSERIES, Axel. Theories of intergerational justice: a synopsis. Institut Veolia Environment. Sapiens. Vol 1. Issue 1. 2008. p. 68.

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Tais construções de pensamento representam um avanço na pesquisa acerca da justiça

intergeracional, mesmo que ainda pouco explorada pela doutrina. Todavia, as formulações no

sentido de considerar a responsabilidade das gerações presentes com as gerações futuras, no

sentido de resguardar as condições de vida no planeta, já demonstram que o princípio da

sustentabilidade pode ser fortalecido e levado à efetividade. Principalmente no tocante às

teorias propostas no sentido de classificar a justiça intergeracional como questão de proteção

incondicional de direitos, relacionando o próprio meio ambiente saudável ou suficiente para

sobrevivência como um verdadeiro direito dos indivíduos que virão, o que torna a geração atual

responsável pela garantia dos recursos necessários para tal.

Essa visão de valorização dos direitos humanos numa sociedade, leva a mesma a ter

uma postura mais integrada do que numa sociedade que estabelecem meros direitos civis. Tal

relacionamento leva a uma visão de formação de uma genuína comunidade de direitos, na qual

a proteção e promoção da liberdade e bem-estar é de responsabilidade de todos os seus

membros, que reconhecem e tem a consciência individualmente que possuem obrigações com

a comunidade. Tal consciência leva à tese da contribuição social, onde os cidadãos reconhecem

que para que a liberdade floresça no seio da comunidade, cada membro deve desenvolver

atitudes psicológicas de gratidão e lealdade para isso, tornando o sentimento de cooperação

presente na sociedade120.

Enfim, mostra-se imprescindível a mudança de paradigma no país, considerando as

interações entre a micro e minigeração de energia elétrica e o desenvolvimento sustentável para

as presentes e futuras gerações, diante da problemática da concentração da geração de energia

elétrica no setor hidrelétrico ou uso de fontes ambientalmente negativas. Do ponto de vista

intergeracional, o fortalecimento do sistema de geração distribuída representa uma postura

120 MENUHIN, Yehudi. Enviromental human rights and intergerational justice. In: HISKES. Richard P. The human right to a green future. Enviromental rights and intergenerational justice. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 23-24.

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estatal de respeito ao meio ambiente sustentável, ao garantir o aumento da participação das

fontes renováveis na matriz energética, além de garantir o respeito às futuras gerações sob o

ponto de vista socioeconômico, visto que representará economia com grandes obras e

manutenção do sistema tradicional, o que pode representar uma herança de equilíbrio financeiro

no setor, além de demonstrar uma alteração na cultura social.

Neste último aspecto, ao analisar paralelamente tais consequências da implementação

e fortalecimento da geração distribuída de energia com as contribuições das teorias filosóficas

da justiça intergeracional, temos como consequência a sustentabilidade vista como princípio

plenamente vinculante das ações individuais, comunitárias e estatais, conforme Juarez de

Freitas, e que demanda programas políticos de longo prazo, que aliem ações integradas entre a

sociedade e o Estado no sentido de promover ações para proteção ambiental.

Nesse sentido, a geração distribuída de energia pode representar uma alternativa viável

para contribuição da construção dessas ações, visto que integra a ação estatal, como

regulamentador, regulador do setor energético e incentivador econômico, juntamente com a

sociedade, pois os sujeitos, individualmente ou em grupos, podem tomar a iniciativa de gerar

sua própria energia, a partir da utilização dos recursos disponíveis – em geral, fontes renováveis.

De maneira geral, as teorias formuladas para compreender a justiça intergeracional

podem trazer o fortalecimento do sistema em debate, ao ressaltar a importância da cooperação

social, da ligação entre gerações, da responsabilização de uma geração com as vindouras, além

de relacionar a ideia da sustentabilidade com os direitos fundamentais do homem,

independentemente da geração a qual pertença. Assim, são apresentados benefícios do

pensamento verde, como uma mudança necessária na sociedade e imprescindível para

manutenção da própria sobrevivência da espécie humana no planeta.

Nesse ínterim, todas as medidas que proporcionem a proteção ambiental devem ser

consideradas e debatidas, sobretudo aquelas que se mostrem em fase de implementação e

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demonstrem potencial de crescimento e impacto positivo no uso das fontes renováveis de

recursos naturais, como é o caso da micro e minigeração de energia.

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5 REGULAMENTAÇÃO DO SISTEMA DE MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE

ENERGIA ELÉTRICA

5.1. ANÁLISE DA RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 482/2012-ANEEL E SUAS

ATUALIZAÇÕES

No Brasil, grande inovação no setor elétrico ocorreu com a edição da Resolução

Normativa Nº 482/2012 da ANEEL, que trouxe regulamentação sobre a produção de

eletricidade em pequena escala por intermédio de instalações de pequenas potências, utilizando

fontes de energia renováveis, estabelecendo as condições gerais para o acesso de microgeração

e minigeração aos sistemas de distribuição e de compensação de energia elétrica.

Posteriormente, a referida norma foi revisada com a edição da Resolução Normativa nº

687/2015, cuja entrada em vigor ocorreu em março de 2017, com vistas a reduzir os custos e

tempo para a conexão da microgeração e minigeração, compatibilizar o Sistema de

Compensação de Energia Elétrica com as Condições Gerais de Fornecimento121, aumentar o

público alvo e melhorar as informações na fatura.

Segundo o arcabouço normativo, a compensação de energia elétrica é o processo

pelo qual a energia ativa injetada por unidade consumidora122 com microgeração ou

minigeração distribuída é cedida, por meio de empréstimo gratuito, à distribuidora local e

posteriormente compensada com o consumo de energia elétrica ativa dessa mesma unidade

consumidora ou de outra unidade consumidora de mesma titularidade da unidade

consumidora onde os créditos foram gerados, desde que possua o mesmo Cadastro de Pessoa

Física (CPF) ou Cadastro de Pessoa Jurídica (CNPJ) junto ao Ministério da Fazenda.

121 As condições gerais de fornecimento de energia elétrica, cujas disposições devem ser observadas pelas distribuidoras e consumidores, estão estabelecidas na Resolução Normativa nº 414/2010 - ANEEL. 122 A Resolução Normativa nº 414/2010 – ANEEL define consumidor como sendo a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, legalmente representada, que solicite o fornecimento, a contratação de energia ou o uso do sistema elétrico à distribuidora, assumindo as obrigações decorrentes deste atendimento à(s) sua(s) unidade(s) consumidora(s), segundo disposto nas normas e nos contratos (Art. 2º, XVII).

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A característica principal do sistema é o seu intercâmbio bilateral, onde a energia

excedente gerada pelo consumidor é diretamente injetada na rede da distribuidora123, gerando

assim créditos, que abaterão economicamente o valor da fatura de energia elétrica dos meses

subseqüentes.

Nesse contexto, a geração será qualificada como micro quando a central geradora de

energia tiver potência menor ou igual a 75 kW e que utilize fontes renováveis ou cogeração

qualificada124, ligada à rede de distribuição por meio de instalações de unidades consumidoras.

Já a minigeração é caracterizada pela central geradora com potência instalada superior a 75 kW

e menor ou igual a 3 MW para fontes híbridas ou menor ou igual a 5 MW para as demais fontes

renováveis ou cogeração qualificada, ligada à rede de distribuição por meio de instalações de

unidades consumidoras.

A norma indica que o intervalo de aproveitamento destes créditos é de até 3 anos. Por

sua vez, os custos envolvidos com a adequação ao sistema de medição serão de

responsabilidade do consumidor, cabendo à distribuidora a responsabilidade pela manutenção,

como também os custos de uma eventual substituição.

Com o fim de fomentar o modelo, a legislação trouxe a possibilidade de consumo da

energia em local diverso de onde foi gerada, trazendo as seguintes modalidades: geração

compartilhada, o autoconsumo remoto e o empreendimento com múltiplas unidades

consumidoras (condomínios)125.

123 Conforme a Resolução Normativa nº 414/2010 – ANEEL, distribuidora ou concessionária consiste no agente titular de concessão federal para prestar o serviço público de distribuição de energia elétrica (Art. 2º, XVI). 124 A cogeração é definida pela Resolução Normativa nº 235/2006 – ANEEL como processo operado numa instalação específica para fins da produção combinada das utilidades calor e energia mecânica, esta geralmente convertida total ou parcialmente em energia elétrica, a partir da energia disponibilizada por uma fonte primária (Art. 3º, I). 125 Previsão no Artigo 2º, incisos VI, VII e VIII, da Resolução Normativa nº 482/2012 – ANEEL.

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5.1.1 Geração compartilhada como possibilidade de reunião de consumidores para

produção de energia

A geração compartilhada é constituída pela reunião de consumidores, dentro da mesma

área de concessão ou permissão, por meio de consórcio ou cooperativa, composta por pessoa

física ou jurídica, que possua unidade consumidora com micro ou minigeração distribuída em

local diferente das unidades consumidoras nas quais a energia excedente será compensada.

Assim, a regulamentação abre espaço para que diferentes unidades consumidoras se reúnam

para a geração de energia em um determinado local e dividam os créditos de energia gerados

entre os cooperados ou consorciados126.

Não obstante ter definido a possibilidade da reunião de consumidores em consórcios ou

cooperativas, a Resolução Normativa nº 482/2012 e suas alterações não dispuseram acerca da

legislação que seria aplicável à constituição de consórcios e cooperativas para fins da geração

compartilhada, além da natureza do instrumento exigido para comprovar o compromisso de

solidariedade entre os integrantes, e sobre qual o tipo de consórcio é exigido pela norma.

Nesse contexto, é primordial a definição da natureza jurídica dessas entidades, para que

haja clara identificação sobre os possíveis participantes dessa modalidade, principalmente para

a atuação da própria Agência Nacional de Energia Elétrica que encontrou obstáculos para

realizar este enquadramento127.

O art. 2º, XVII, da Resolução normativa nº 414/2010, que estabelece as Condições

Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica, traz o conceito de consumidor de energia elétrica:

“consumidor: pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, legalmente

representada, que solicite o fornecimento, a contratação de energia ou o uso do sistema

126 O Art. 7º, VII, da Resolução 484/2012 ANEEL dispõe “geração compartilhada: caracterizada pela reunião de consumidores, dentro da mesma área de concessão ou permissão, por meio de consórcio ou cooperativa, composta por pessoa física ou jurídica, que possua unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída em local diferente das unidades consumidoras nas quais a energia excedente será compensada”. 127 Diante desses questionamentos, a ANEEL solicitou manifestação da Procuradoria Federal junto à Agência Nacional de Energia Elétrica, que em resposta emitiu os Pareceres nº 00433/2016 e nº 0113/2017.

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elétrico à distribuidora, assumindo as obrigações decorrentes deste atendimento à(s)

sua(s) unidade(s) consumidora(s), segundo disposto nas normas e nos contratos”.

Assim, a norma traz a necessidade de que o consórcio aplicável ao modelo de mini e

microgeração possua personalidade jurídica, já que para ser titular de unidade consumidora o

referido dispositivo traz a exigência de a titularidade de unidade consumidora ser conferida a

pessoa física ou jurídica.

Por sua vez, o termo “consórcio” remete à ideia de reunião de sujeitos para a consecução

de um determinado fim e pode assumir no direito brasileiro a forma de consórcio para o acesso

ao consumo de bens e serviços, consórcio público, consórcio simplificado de produtores rurais

e o consórcio entre empresas.

A Lei nº 11.795/2008 trata do sistema de consórcio para aquisição de bens e serviços e

tornou-se instrumento de viabilização de consumo. Segundo a norma, o sistema de consórcios

constitui instrumento de progresso social destinado a propiciar o acesso ao consumo de bens e

serviços, formado por administradoras de consórcio e grupos de consórcio. Tal regramento

dispõe que:

“Art. 2º Consórcio é a reunião de pessoas naturais e jurídicas em grupo, com prazo de

duração e número de cotas previamente determinados, promovida por administradora

de consórcio, com a finalidade de propiciar a seus integrantes, de forma isonômica, a

aquisição de bens ou serviços, por meio de autofinanciamento.”

A normativa complementa, ainda, que o contrato de participação em grupo de consórcio

poderá contemplar bem móvel, imóvel ou serviço de qualquer natureza (Art. 12). Quanto à

formação do sistema de consórcio, a Lei 11.795/2008 traz as figuras dos consorciados, que em

reunião formarão o grupo de consórcio e a figura da administradora do sistema:

“Art. 3º Grupo de consórcio é uma sociedade não personificada constituída por

consorciados para os fins estabelecidos no art. 2o.

§ 1º O grupo de consórcio será representado por sua administradora, em caráter

irrevogável e irretratável, ativa ou passivamente, em juízo ou fora dele, na defesa dos

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direitos e interesses coletivamente considerados e para a execução do contrato de

participação em grupo de consórcio, por adesão.”

“Art. 4º Consorciado é a pessoa natural ou jurídica que integra o grupo e assume a

obrigação de contribuir para o cumprimento integral de seus objetivos, observado o

disposto no art. 2o.”

“Art. 5º A administradora de consórcios é a pessoa jurídica prestadora de serviços

com objeto social principal voltado à administração de grupos de consórcio,

constituída sob a forma de sociedade limitada ou sociedade anônima, nos termos do

art. 7o, inciso I.”

Assim, o grupo de consórcio se refere a uma massa despersonalizada constituída como

associação de fato, com intuito de dividir resultados. Desse modo, o grupo de consórcio é

“massa destituída de personalidade jurídica, uma mera comunhão de interesses e direitos. Por

não se tratar de reunião com finalidade de lucro, não pode ser uma sociedade, mas, somente,

uma associação (de fato)128”.

Como o regulamento da micro e minigeração exige que consórcio aplicável ao modelo

de geração distribuída possua personalidade jurídica, nesse caso específico, caso um sistema de

consórcio tenha por finalidade a geração compartilhada, deve figurar como unidade

consumidora a administradora do consórcio que tenha regular inscrição no CNPJ129. Nesse caso,

ressalta-se que os consorciados deverão se encontrar dentro da mesma área de concessão ou

permissão, pois caso contrário, seria impossibilitado o sistema de compensação de energia com

a empresa concessionária.

Quanto ao consórcio público, o artigo 241 da Constituição Federal dispõe que os entes

federados disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação

128 MAIA, Felipe Fernandes Ribeiro. O sistema de consórcio financeiro na lei 11.795/2008. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 47, Jan /2010. P. 66. 129 “A administradora de consórcio é parte legítima para integrar a ação em que se pleiteia a devolução de prestações pagas, posto que o grupo de consórcio não possui personalidade jurídica e seria inviável a citação de cada um dos consorciados.” (TJ-DF, 2ªTurma Cível - AC 2001.01.5.001991-5. Relatora: Adelith de Carvalho Lopes, Data de julgamento: 29 de abril de 2002. Data de publicação: 12 de junho de 2002)

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entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a

transferência total ou parcial de encargos, serviços públicos, pessoal e bens essenciais à

continuidade dos serviços transferidos. Para disciplinar tal norma, foi editada a Lei nº

11.107/2005, que define em seu artigo 1º, §1º, que o consórcio público constituirá associação

pública ou pessoa jurídica de direito privado. Nesse contexto, tanto a associação pública quanto

a pessoa jurídica de direito privado criadas pelo consórcio público poderão ser entendidas como

micro ou minigeradoras de energia, visto que a Resolução 482/2012 apenas exige que os

consumidores que podem se reunir para fins de geração compartilhada estejam dentro da mesma

área de concessão ou permissão e abre a possibilidade de pessoa jurídico de direito público

participar do programa130.

Já o consórcio simplificado de produtores rurais, previsto no artigo 25 A da Lei nº

8.212/1991, consiste em uma equiparação legal ao empregador rural a quem se outorga poderes

para contratação e gerencia de trabalhadores para prestação de serviços aos consorciados. Como

tal instituto jurídico possui a única finalidade de gestão de contratação de pessoal, não é possível

a relação com o tema pesquisado131.

Por fim, a Lei nº 6.404/1976, que trata das Sociedades por Ações, dispõe sobre o

consórcio de empresas, definido que as companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo

controle ou não, podem constituir consórcio para executar empreendimento. Ademais define

130 A Procuradoria Federal Junto à Agência Nacional de Energia Elétrica em parecer entendeu que: “a) o consórcio previsto na Lei nº 11.795/2008 é composto pelo grupo de consórcio (ente sem personalidade jurídica e com prazo determinado) e pela administradora do consórcio (sociedade empresária, portadora de personalidade jurídica, responsável pela constituição, organização e administração dos grupos de consorciados e gestão dos recursos dos consorciados); b) a fim de avaliar se o tipo de consórcio previsto na Lei nº 11.795/2008 enquadra-se na Resolução Normativa ANEEL nº 482/2012 para fins de geração compartilhada, cabe à área técnica, em cada caso, analisar se este tipo legal permite a utilização dos créditos de energia gerados entre os integrantes do consórcio conforme indicado à distribuidora.” BRASIL. Advocacia Geral da União. Procuradoria Federal Junto à Agência Nacional de Energia Elétrica. O consórcio previsto na Lei 11.795/2008 no âmbito da REN ANEEL n° 482/2012. Parecer normativo, n. 00113/2017, de 28 de março de 2017. Relator: Michele Franco Rosa. 131 Art. 25 A. Equipara-se ao empregador rural pessoa física o consórcio simplificado de produtores rurais, formado pela união de produtores rurais pessoas físicas, que outorgar a um deles poderes para contratar, gerir e demitir trabalhadores para prestação de serviços, exclusivamente, aos seus integrantes, mediante documento registrado em cartório de títulos e documentos.

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que o consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas

condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem

presunção de solidariedade132.

Nesse caso, o consórcio representará uma combinação de esforços e recursos para a

consecução de objetivo comum. Todavia, dessa união não resultará uma nova pessoa jurídica:

“Por fim, se duas sociedades quiserem combinar seus esforços e recursos para o

desenvolvimento de empreendimento comum, elas podem contratar a formação de um

consórcio. As consorciadas respondem pelas obrigações especificadas no instrumento

de consórcio, já que este não tem personalidade jurídica própria. Não há, por outro

lado, solidariedade presumida entre elas, exceto nas obrigações relacionadas com os

direitos do consumidor (CDC, art. 28, § 3º) e nas licitações (Lei n. 8.666/93, art. 33,

V).”133

Apesar da não constituição de pessoa jurídica, a Instrução Normativa da Receita Federal

do Brasil nº 1.634/2016 instituiu a obrigação do consórcio serem inscritos no Cadastro Nacional

132 “Art. 278. As companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento, observado o disposto neste Capítulo. § 1º O consórcio não tem personalidade jurídica e as consorciadas somente se obrigam nas condições previstas no respectivo contrato, respondendo cada uma por suas obrigações, sem presunção de solidariedade. § 2º A falência de uma consorciada não se estende às demais, subsistindo o consórcio com as outras contratantes; os créditos que porventura tiver a falida serão apurados e pagos na forma prevista no contrato de consórcio. Art. 279. O consórcio será constituído mediante contrato aprovado pelo órgão da sociedade competente para autorizar a alienação de bens do ativo não circulante, do qual constarão: I - a designação do consórcio se houver; II - o empreendimento que constitua o objeto do consórcio; III - a duração, endereço e foro; IV - a definição das obrigações e responsabilidade de cada sociedade consorciada, e das prestações específicas; V - normas sobre recebimento de receitas e partilha de resultados; VI - normas sobre administração do consórcio, contabilização, representação das sociedades consorciadas e taxa de administração, se houver; VII - forma de deliberação sobre assuntos de interesse comum, com o número de votos que cabe a cada consorciado; VIII - contribuição de cada consorciado para as despesas comuns, se houver. Parágrafo único. O contrato de consórcio e suas alterações serão arquivados no registro do comércio do lugar da sua sede, devendo a certidão do arquivamento ser publicada.” 133 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 258.

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de Pessoas Jurídicas, o que viabiliza a inclusão desse tipo de consórcio no sistema de geração

compartilhada134.

A posterior atualização da norma trouxe a inclusão da geração compartilhada visando

facilitar o acesso aos equipamentos de produção de energia, tendo em vista o alto investimento

que demanda a instalação dos micro e minigeradores. Os institutos do consórcio e da

cooperativa se coadunam com este desiderato, visto que consistem essencialmente em reunião

de esforços com vistas a realização de empreendimento, aquisição de bem ou serviço, que neste

caso será tanto a aquisição dos geradores, como a manutenção, o espaço para instalação, entre

outros esforços, que significa uma estrutura difícil de ser obtida por um único sujeito. A

expectativa é que com a abertura de acesso a consórcios e cooperativas, a utilização do sistema

seja fomentada.

Apesar disso, a exigência feita pela norma quanto às formas de consórcio e cooperativa

ainda limitam o acesso a esse tipo de geração de energia, visto que demandam toda uma

organização, burocraticamente difícil de ser formulada. Como a intenção do próprio sistema de

micro e minigeração é justamente promover a universalidade do acesso a energia, ainda espera-

se que tal união de esforços possa ser realizada por meios menos burocráticos.

134 A Procuradoria Federal Junto à Agência Nacional de Energia Elétrica em parecer entendeu que: “para os fins de geração compartilhada prevista na Resolução Normativa ANEEL n. 482/2012, a constituição: a.1) de consórcio deve seguir o disposto na Lei n. 6.404/76 e também observar o disposto na Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil nº 1.634/2016, para fins de inscrição no CNPJ; c.2) de cooperativa deve observar as regras gerais previstas no Código Civil (arts. 1.093 a 1.096), assim como o disposto na Lei n. 5.764/61; b) o instrumento jurídico adequado a comprovar a solidariedade existentes entre os componentes do consórcio ou da cooperativa é seu ato constitutivo, seja para fins jurídicos, seja para os fins previstos no § 6º, do art. 4º, da REN ANEEL n. 482/2012; c) não há uma espécie de cooperativa ou de consórcio prefinido na Resolução Normativa ANEEL n. 482/2012 para fins de geração compartilhada, devendo ser adotada a forma que permita a utilização dos créditos de energia gerados entre os integrantes do consórcio ou da cooperativa conforme indicado à distribuidora.” BRASIL. Advocacia Geral da União. Procuradoria Federal Junto à Agência Nacional de Energia Elétrica. Esclarecimentos sobre a formação de consórcio e cooperativa no âmbito da REN nº 482/2012. Parecer normativo, n. 00433/2016, de 30 de agosto de 2016. Relator: Michele Franco Rosa.

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Nesse âmbito, o próprio contrato entre particulares poderia suprir o estabelecimento de

condições de aquisição, de uso e distribuição dos créditos de energia entre os contratantes. O

Código Civil dispõe sobre a formação dos contratos:

“Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função

social do contrato.”

“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,

como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

“Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais

fixadas neste Código.”

É de interesse público a disseminação da geração distribuída de energia, devido as

vantagens sociais e econômicas do modelo. Por outro lado, a geração compartilhada possui

potencial de fomentar esse crescimento, na medida em que permite a união de esforços em prol

da geração de energia em pequena escala. Todavia, restringindo-se às formas jurídicas do

consórcio e da cooperativa, se limita a oportunidade de incentivo do instituto. Por isso, ressalta-

se ímpar o adensamento da geração compartilhada, com alargamento de seu público alvo e

desburocratização, para que possa se tornar a mola propulsora para a universalidade do acesso

a micro e minigeração de energia elétrica135.

135 “Se o acesso à energia se liga à liberdade, ao desenvolvimento, à dignidade e à concretização de direitos fundamentais variados, se é dever do ente estatal nacional promover o bem de todos, nada se faz mais razoável e urgente que a promoção eficaz pelo Estado do acesso universal à energia elétrica no País. É importante que se diga que também é dever constitucional do Estado agir de modo a preservar o meio ambiente para as futuras e presentes gerações118. Sendo assim, não apenas caberá ao ente estatal fomentar o acesso universal à energia elétrica mas também promover um fomento que se revele ambientalmente sustentável. Destacam-se, aí, as energias renováveis.” GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. SIQUEIRA, Mariana de. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. O acesso universal à energia elétrica e a sua sustentabilidade: o papel das energias renováveis. GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar (Orgs.). O direito das energias renováveis. Fortaleza: Fundação Konrad, 2009. p. 73.

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5.1.2 Autoconsumo remoto e possibilidade de produção e utilização da energia elétrica

por diferentes unidades

Já o autoconsumo remoto é constituído por unidades consumidoras de titularidade de

uma mesma Pessoa Jurídica, incluídas matriz e filial, ou Pessoa Física que possua unidade

consumidora com micro ou minigeração distribuída em local diferente das unidades

consumidoras, dentro da mesma área de concessão ou permissão, nas quais a energia excedente

será compensada. Assim, não importa a distância entre as unidades de geração e de uso, visto

que o que se considera é a compensação dos créditos gerados a partir da injeção da energia

excedente na rede distribuidora.

Essa modalidade permite ao consumidor que possua mais de um imóvel, escolher o

local com melhores condições naturais para a geração de energia, o que pode ser realizado em

praias, terrenos vazios e outros.

5.1.3 Produção de energia por condomínios residenciais

Por sua vez, o empreendimento com múltiplas unidades consumidoras ou condomínio

é qualificado pela utilização da energia elétrica de forma independente, no qual cada fração

com uso individualizado constitua uma unidade consumidora e as instalações para atendimento

das áreas de uso comum constituam uma unidade consumidora distinta, de responsabilidade do

condomínio, da administração ou do proprietário do empreendimento, com micro ou

minigeração distribuída, e desde que as unidades consumidoras estejam localizadas em uma

mesma propriedade ou em propriedades contíguas, sendo vedada a utilização de vias públicas,

de passagem aérea ou subterrânea e de propriedades de terceiros não integrantes do

empreendimento.

Nessa modalidade, os créditos gerados podem ser divididos pelos condôminos

conforme a definição sobre o rateio. Caberá ao titular da unidade consumidora (condomínio)

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definir como os créditos serão rateados entre seus integrantes, podendo se abater também o

consumo da área comum.

Desse modo, a modalidade do autoconsumo remoto e de condomínio representam um

elemento importante de avanço no aproveitamento das fontes renováveis e como elemento de

potencial para promoção do sistema de geração distribuída e criação inclusive de novos

modelos de negócio. Nesse âmbito, existe, por exemplo, a possibilidade de arrendamento de

telhados ou terrenos para a instalação de micro ou minigeração distribuída, desde que o valor

do aluguel ou do arrendamento não ocorra em reais por unidade de energia elétrica. Nesse

sentido, dispõe o Artigo 6º A da Resolução 482/2012:

“Art. 6-A A distribuidora não pode incluir os consumidores no sistema de

compensação de energia elétrica nos casos em que for detectado, no documento que

comprova a posse ou propriedade do imóvel onde se encontra instalada a

microgeração ou minigeração distribuída, que o consumidor tenha alugado ou

arrendado terrenos, lotes e propriedades em condições nas quais o valor do aluguel ou

do arrendamento se dê em reais por unidade de energia elétrica.”

Tal restrição, é imposta pela estruturação do mercado de energia elétrica. A Lei nº

10.848/04, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica e define que essa

comercialização ocorrerá mediante contratação regulada ou livre. A contratação regulada

acontecerá quando ocorrer a compra de energia pelas concessionárias ou permissionárias do

serviço público de distribuição de energia e o fornecimento para o mercado regulado. Já no

mercado de contratação livre ou Ambiente de Contratação Livre os consumidores podem

escolher livremente seus fornecedores, com negociação das condições de contratação.136 Desse

136 A referida lei dispõe: “Art. 1º A comercialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizados de serviços e instalações de energia elétrica, bem como destes com seus consumidores, no Sistema Interligado Nacional - SIN, dar-se-á mediante contratação regulada ou livre, nos termos desta Lei e do seu regulamento[...] § 2º Submeter-se-ão à contratação regulada a compra de energia elétrica por concessionárias, permissionárias e autorizadas do serviço público de distribuição de energia elétrica, nos termos do art. 2o desta Lei, e o fornecimento de energia elétrica para o mercado regulado. § 3º A contratação livre dar-se-á nos termos do art. 10 da Lei no 9.648, de 27 de maio de 1998, mediante operações de compra e venda de energia elétrica envolvendo os agentes concessionários e autorizados de geração, comercializadores e importadores de energia

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modo, a venda de energia gerada pela microgeração estaria ferindo o modelo de comércio

energético vigente. Desse modo, a Resolução pertinente ao tema expõe claramente que a

energia excedente gerada pelo consumidor é cedida à concessionária a título gratuito, em forma

de empréstimo a ser revertido para posterior compensação.

5.2 RELEVÂNCIA DO PROGRAMA PARA O FORTALECIMENTO DAS ENERGIAS

RENOVÁVEIS NO BRASIL E PERSPECTIVAS DE CRESCIMENTO

Conforme divulgado pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos, a demanda por

energia elétrica no mundo continuará a crescer nos próximos anos. A previsão é que até o ano

de 2035 o crescimento alcance 45% desta demanda. Por representar necessidade estratégica

para os países, a questão central gira em torno de como atender a demanda tendo como contexto

o acirramento das questões ambientais. Com vistas à segurança energética e às mudanças

climáticas, os países desenvolvidos buscam acelerar a transição da matriz energética,

particularmente fomentando a participação das fontes renováveis de energia137.

Em relação às perspectivas de demanda de energia no Brasil, a geração distribuída deve

apresentar uma contribuição cada vez mais importante para seu atendimento. Nesse sentido, os

estudos de demanda de energia no longo prazo identificaram alguns aspectos-chave para essa

estimativa, entre eles, o impacto do papel do consumidor final como agente do mercado de

energia, englobando o uso eficiente de energia e também como gerador de sua própria

energia.138

Nesse caso, tanto as taxas de penetração mais agressivas de eficiência energética quanto

a expansão da geração distribuída podem contribuir para redução significativa do crescimento

elétrica e os consumidores que atendam às condições previstas nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995, com a redação dada por esta Lei.” 137 GIANNINI, M., DUTRA, R.M., GUEDES, V.G. Estudo prospectivo do mercado de energia eólica de pequeno porte no Brasil. In: Anais do Brazil Windpower 2013 - Conference & Exhibition, Rio de Janeiro. p. 2. 138 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Nota Técnica DEA 13/15: Demanda de Energia 2050. Série Estudos da Demanda de Energia. Rio de Janeiro, Janeiro de 2016. p. 10.

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da demanda de energia no longo prazo. Nesse sentido, para o horizonte de longo prazo a

principal questão que se coloca é em que patamar as oportunidades de eficiência energética e

geração distribuída serão aproveitados pelos consumidores finais. A depender desse patamar,

as necessidades de expansão do setor energético como um todo poderão ser diferentes.139

Nesse contexto, o sistema apresentado representa vantagens em sustentabilidade

econômica e ambiental que seria fruto da diversificação dos negócios e das oportunidades para

novos serviços de valor agregado ofertados pelas concessionárias, além de eficiência comercial

e energética, confiabilidade do sistema elétrico e segurança operacional e sistêmica.

No mesmo sentido, está em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei 204/2014,

que prevê destinação de parte dos recursos das concessionárias e permissionárias ligadas ao

setor elétrico para a criação de projetos de microgeração distribuída. A proposta busca a

alteração da Lei nº 9.991, de 24 de julho de 2000, incluindo nela mais um inciso, segundo o

qual as concessionárias e permissionárias de distribuição de energia elétrica deverão aplicar, no

mínimo, 60% dos recursos dos seus programas de eficiência para unidades consumidoras

beneficiadas pela Tarifa Social de Energia Elétrica ou em projetos de microgeração distribuída.

Dentre os principais entraves ao sucesso da geração distribuída, estão o elevado custo

na implantação dos aparelhos de geração de energia com origem fotovoltaica ou eólica e a

burocracia e, ainda, a falta de informação dos consumidores sobre os benefícios da tecnologia,

além da existência de poucas iniciativas de financiamento específico para estimular o interesse

nos projetos.

Por sua vez, dentre as possíveis soluções para a alavancagem da geração distribuída

de energia temos a redução de impostos sobre os produtos destinados ao setor, o investimento

139 BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Nota Técnica DEA 13/15: Demanda de Energia 2050. Série Estudos da Demanda de Energia. Rio de Janeiro, Janeiro de 2016. p. 17.

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em criação de projetos de grande porte ligados a geração de energia para condomínios e prédios,

além de incentivos governamentais ligados a linhas de crédito pelos bancos públicos.

Nesse sentido, com vistas na ampliação da presença das fontes renováveis de energia

na matriz brasileira, foi apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio

o documento denominado “Agendas Estratégicas Setoriais”140, pelo qual o Estado anuncia

medidas para incentivar a indústria em 19 setores estratégicos para a economia, dentre eles o

setor elétrico.

No tocante ao uso da mini e microgeração distribuída, a Agenda Setorial traz como

medidas: dar publicidade à resolução normativa da Agência Nacional de Energia Elétrica

(482/2012); dar publicidade aos produtos e instrumentos de crédito para aquisição e instalação

de equipamento para uso em geração distribuída; incorporar a energia distribuída no escopo do

cartão do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES); incorporar a energia distribuída no

escopo do Construcard141; financiar planos de negócios de empresas que prestem serviços de

venda, aluguel ou leasing aos consumidores finais; criar linhas de crédito do Banco do Brasil e

Caixa Econômica Federal para o financiamento de equipamentos e serviços em energia

distribuída; e incluir no programa de etiquetagem142 equipamentos de geração eólica, biomassa

e gás de resíduos de pequeno porte.

O referido documento ainda expressa o objetivo de ampliar a participação da indústria

nacional no fornecimento de componentes e na produção de equipamentos para geração de

eletricidade. Para tal, as medidas a serem adotadas incluem criar mecanismo de certificação de

140 República Federativa do Brasil. Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial. Agendas estratégicas setoriais. Energias renováveis. Brasília. 2013. p. 41. 141 O Construcard consiste em uma linha de crédito destinada à aquisição de materiais de construção, inclusive móveis, aquecedores, equipamentos de geração de energia, por meio do qual as compras são efetuadas nos estabelecimentos comerciais credenciados pela Caixa Econômica Federal, por meio de cartão específico, destinado a pessoas físicas que possuam conta no Banco. 142 A Etiqueta Nacional de Conservação de Energia é concedida pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) aos produtos aprovados no Programa Brasileiro de Etiquetagem, ou seja, àqueles equipamentos com representação do estágio em termos de consumo de energia e/ou de eficiência energética.

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conteúdo nacional e definir critérios de conteúdo nacional a serem adotados no âmbito dos

leilões de compra e venda de energia elétrica.

5.3 INCENTIVOS FISCAIS E O FOMENTO À MICROGERAÇÃO E MINIGERAÇÃO DE

ENERGIA ELÉTRICA

Com o compromisso constitucional de promoção da justiça social e do

desenvolvimento, o Estado poderá exercer a função reguladora da atividade dos particulares

com objetivos diversos de obter receitas tributárias143. Assim, no contexto atual, os impostos

podem ser empregados como instrumentos de intervenção ou regulação pública, tornando a

função fiscal, muitas vezes sobrepujada pela função extrafiscal, com vistas ao desenvolvimento

de política ou diretriz econômica.144

Como discutido, o fortalecimento do sistema de microgeração e minigeração de energia

elétrica é de interesse público em decorrência dos ganhos em uso de energia renovável e pelo

seu caráter promotor da universalização do acesso à energia. Apesar deste relevante papel, o

programa ainda encontra-se incipiente e somente alcançará seus objetivos caso o Estado

brasileiro coloque em prática estratégias e planejamento no setor. Assim, espera-se que o Estado

assuma uma função fortemente fomentadora da atividade. Como resposta a esta demanda, a

extrafiscalidade consiste na finalidade deliberada por parte do Estado de estimular determinada

conduta social, acenando para esse fim com uma vantagem econômica em favor da pessoa

sujeita à imposição, ou, desestimular determinada conduta, mediante o agravamento da carga

143 “Essa obrigação de intervenção ocorre justamente para que o Estado corrija as falhas naturais de mercado e, assim, haja dentro da economia um crescimento equilibrado, ordenado, equânime, para que se alcance, enfim, o desenvolvimento econômico”. SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. A instrumentalidade da atividade financeira do Estado como indutora do desenvolvimento econômico – o papel dos incentivos fiscais na promoção da livre concorrência e da livre iniciativa. In: Revista de Direito Público Econômico: Belo Horizonte, ano 11, nº 42, abr-jun, 2013, p. 126. 144 ARAUJO, Cláudia de Rezende Machado de. Extrafiscalidade. Revista de informação legislativa. Senado Federal. Brasília. v. 34, n. 133, jan./abr. 1997. P. 329.

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fiscal do agente vinculado com a respectiva atividade, desde que o tributo esteja desassociado

do objetivo direto de arrecadação.

Quanto a isso, algumas ações têm sido tomadas no sentido de desonerar a cadeia

produtiva. Neste sentido, o Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ autorizou

que os Estados conveniados concedam isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e

Serviços – ICMS nas operações sujeitas a faturamento sob o sistema de compensação de energia

elétrica, referente a Resolução Normativa nº 482/2012 da ANEEL145.

Inicialmente foi aprovado o Convênio ICMS 6, de 05 de abril de 2013, que estabelecia

como base de cálculo para a incidência do ICMS a totalidade da energia fornecida à unidade

consumidora proveniente da distribuidora, sem se considerar a compensação com a energia

produzida pelo microgerador. Assim, a alíquota aplicável considerava toda a energia consumida

no mês na unidade consumidor.

Em 22 de abril de 2015 foi firmado novo Convênio, ICMS 16, que revogou o anterior e

autorizou as unidades federadas a conceder isenção nas operações sujeitas a faturamento sob o

sistema de compensação de energia. Todavia, para os Estados que não aderiram ao novo

Convênio, aplica-se a regra antiga que considera a cobrança de ICMS sobre todo o consumo de

energia, desconsiderando aquela que foi injetada pelo próprio consumidor na rede de

distribuição.

O ICMS encontra-se previsto no art. 155, II da Constituição Federal de 1988, que

determina a competência dos Estados e do Distrito Federal para instituir impostos sobre

operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte

145 “Cláusula primeira Ficam os Estados do Acre, Alagoas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, São Paulo, Sergipe, Tocantins e o Distrito Federal autorizados a conceder isenção do ICMS incidente sobre a energia elétrica fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular, nos termos do Sistema de Compensação de Energia Elétrica, estabelecido pela Resolução Normativa nº 482, de 17 de abril de 2012.” CONVÊNIO ICMS 16, DE 22 DE ABRIL DE 2015 – CONFAZ.

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interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se

iniciem no exterior.

A Lei complementar 87/1996 (Lei Kandir), que dispõe acerca do imposto prevê o fato

gerador e o sujeito passivo do referido tributo. Tal ordenamento dispõe que o tributo incidirá

sobre operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação

e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares. Por sua vez, em relação ao

contribuinte, a lei dispõe que é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com

habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de

mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de

comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior146.

No âmbito de incidência do ICMS, a circulação de mercadoria deverá envolver uma

transmissão de propriedade, com mudança de titularidade do bem.147 Todavia, o que ocorre no

146 Art. 2° O imposto incide sobre: I - operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares; II - prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores; III - prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza; IV - fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios; V - fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual. Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. Parágrafo único. É também contribuinte a pessoa física ou jurídica que, mesmo sem habitualidade ou intuito comercial: I – importe mercadorias ou bens do exterior, qualquer que seja a sua finalidade; II - seja destinatária de serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior; III – adquira em licitação mercadorias ou bens apreendidos ou abandonados; IV – adquira lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos derivados de petróleo e energia elétrica oriundos de outro Estado, quando não destinados à comercialização ou à industrialização. 147 “A Fazenda Pública agravante reitera os termos de seu recurso especial, alegando a nulidade do acórdão e a violação do art. 12, I, da Lei Complementar n. 87/96. A transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de incidência do ICMS, já que para a ocorrência do fato gerador deste tributo é essencial a circulação jurídica da mercadoria com a transferência da propriedade". Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recuso Especial Nº 1.127.106 – Segunda Turma - RJ, 06.05.2010.

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caso da microgeração é um empréstimo a título gratuito da energia excedente que não fora

consumida pela unidade geradora e fora transferida à distribuidora, com posterior devolução

por meio de compensação nas futuras contas. Desse modo, não há circulação do bem (energia)

com mudança de titularidade.

Assim, além de ferir a isonomia entre os consumidores, a manutenção da cobrança sobre

a totalidade do consumo de energia na unidade sem se considerar a compensação fere as

diretrizes constitucionais para cobrança do imposto, visto que existe a cobrança do imposto sem

a ocorrência do fato gerador.

Por outro lado, também com vistas a estimular a produção por microgeradores, a Lei nº

13.169/2015 em seu Art. 8º trouxe a previsão de desoneração da Contribuição para o

PIS/PASEP e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS, ao reduzir

a zero as alíquotas incidentes sobre a energia elétrica ativa fornecida pela distribuidora à

unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica ativa injetada

na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora, seja com créditos de energia ativa

originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra

unidade consumidora do mesmo titular referente ao Sistema de Compensação de Energia

Elétrica148.

Todavia, apesar do objetivo da norma buscar a defesa do meio ambiente com o incentivo

ao uso de fontes renováveis de energia o que se coaduna com o arcabouço constitucional sobre

o desenvolvimento, a medida legislativa encontra-se inviabilizada em decorrência de

questionamentos acerca da natureza da relação jurídica entre concessionária e consumidor.

148 Nos termos do Art. 8º da Lei nº 13.169/2015: “Art. 8o Ficam reduzidas a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social - COFINS incidentes sobre a energia elétrica ativa fornecida pela distribuidora à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica ativa injetada na rede de distribuição pela mesma unidade consumidora com os créditos de energia ativa originados na própria unidade consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular, nos termos do Sistema de Compensação de Energia Elétrica para microgeração e minigeração distribuída, conforme regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL”.

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Conforme entendimento sinalizado pelo Superior Tribunal de Justiça, a relação entre a

concessionária de energia e o consumidor não possui natureza jurídica tributária149. Desse

modo, a suspensão do repasse da contribuição do PIS e da COFINS não pode alcançar o

consumidor, tendo em vista as características desses tributos.

A Lei nº 10.637/2002 que trata da não-cumulatividade na cobrança da contribuição para

os Programas de Integração Social (PIS) e de Formação do Patrimônio do Servidor Público

149 “PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. REPASSE DA CONTRIBUIÇÃO AO PIS E À COFINS AOS CONSUMIDORES DO SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. RELAÇÃO ENTRE CONCESSIONÁRIA E CONSUMIDOR NÃO POSSUI NATUREZA TRIBUTÁRIA. No presente caso, cuida-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, e da Espírito Santos Centrais Elétricas S.A. - ESCELSA, objetivando, em síntese, •a suspensão do repasse da contribuição ao PIS e à COFINS aos consumidores do serviço de fornecimento de energia elétrica, no Estado do Espírito Santo, prestado pela ESCELSA. O Colendo STJ vem sinalizando que a referida matéria não representa questionamento a relação jurídico-tributária” REsp 1.1850.070/RS, Primeira Seção do STJ, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJe de 27/09/2010, decisão unânime, o regime do artigo 543-C do CPC; e REsp 976.836/RS, Primeira Seção do STJ, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe de 05/10/2010. ““DIREITO DO CONSUMIDOR. PROCESSO CIVIL. REPASSE DE PIS E COFINS AO CONSUMIDOR DE ENERGIA ELÉTRICA. DEFESA DE INTERESSE INDIVIDUAL HOMOGÊNEO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MPF. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. FATO GERADOR DE PIS E COFINS. RECEITA BRUTA OPERACIONAL. FATURAMENTO. INEXISTÊNCIA DE FATO GERADOR EM RELAÇÃO AOS CONSUMIDORES. EVENTUAL DESEQUILÍBRIO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO A SER DISCUTIDO EM AÇÃO PRÓPRIA. 1. Apelações Cíveis nos autos de Ação Civil Pública (com pedido de antecipação de tutela) interpostas por ENERGISA NOVA FRIBURGO DISTRIBUIDORA DE ENERGIA S/A, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA contra Sentença, proferida pelo Juízo da Vara Federal de Nova Friburgo - Seção Judiciário do Rio de Janeiro, que julgou parcialmente procedentes os pedidos autorais. 2. A demanda proposta pelo Ministério Público Federal tem por objetivo a proteção de direito individual homogêneo, conforme disposto no artigo 81, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). A aplicação de tal dispositivo, combinado com o artigo 82, inciso I, do mesmo Diploma Legal, demonstra a legitimidade ativa do Parquet Federal no caso em tela. 3. O PIS e a COFINS, por sua vez, têm por base de cálculo, em síntese, a receita bruta operacional ou o faturamento da pessoa jurídica. No caso, a concessionária de energia elétrica. Logo, os consumidores de energia elétrica de Nova Friburgo não possuem o fato gerador necessário para a cobrança do referido imposto. Os referidos tributos devem ser levados em conta no momento do estabelecimento da tarifa a ser cobrada, uma vez que dentro desta já se presumem os diversos impostos pertinentes ao serviço prestado. 4. Assim, quanto ao não cabimento do repasse do PIS e da COFINS, oportuno destacar trecho da Sentença do Magistrado a quo (fls 354/361), que se mostrou irretocável na apreciação do tema, verbis: “A regra é simples: só deve pagar PIS/COFINS quem realiza o fato gerador ‘faturamento’ ou ‘receita bruta operacional’. No ICMS, o consumidor final paga indiretamente o imposto, suportando seu ônus tributário porque participa do seu fato gerador, que é a circulação de mercadoria. Se adquire o produto, o consumidor realizou ou, ao menos, participou dessa circulação da mercadoria, sujeitando-se à exação. 5. Ademais, cumpre registrar que, mesmo que possa existir eventual desequilíbrio no contrato administrativo celebrado, ainda assim o repasse do PIS e da COFINS mostra-se incabível à luz do Ordenamento Jurídico Tributário, motivo pelo qual tal aspecto, se for o caso, deve ser discutido entre as Partes conflitantes, o que, a toda evidência, não envolve o consumidor. 6. Por fim, malgrado o conteúdo da Apelação interposta pelo MPF (fls 478/490), esta Relatoria, da mesma forma, entende que, na hipótese, o pedido de devolução aos consumidores do que foi indevidamente pago (a título de PIS e de COFINS) realmente não merece prosperar, tendo em vista as ponderadas razões invocadas pelo Juiz Federal Singular (fls 363/364). 7. Do exposto, nego provimento às Apelações interpostas pelo MPF e pela ENERGISA e pela ANEEL, mantendo, in totum, a Sentença de 1º grau.” (AC 200751050018235, Rel. Des. Fed. REIS FRIEDE, Sétima Turma Especializada, DJ de 02/09/2009).”

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(Pasep), prevê em seu Artigo 1º: “A Contribuição para o PIS/Pasep, com a incidência não

cumulativa, incide sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica,

independentemente de sua denominação ou classificação contábil.”

Por sua vez, a Lei nº 10.833/2003 a respeito do COFINS, dispõe: “Art. 1º A

Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social - Cofins, com a incidência não

cumulativa, incide sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica,

independentemente de sua denominação ou classificação contábil.”

Por outro lado, o Código Tributário Nacional determina que interpreta-se literalmente a

legislação tributária que trate sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário (Art. 111, I) e

outorga de isenção (Art. 111, II). Nesse ínterim, sendo que todas as isenções em matéria

tributária, inclusive aquela prevista pela Lei nº 13.169/2015, devem obedecer as diretrizes do

Código Tributário Nacional, a anulação da alíquota do PIS e do COFINS somente poderá

alcançar o campo de incidência de tais, ou seja, sobre “o total das receitas auferidas no mês pela

pessoa jurídica”, conforme a hipótese prevista legalmente.

No caso em tela, a relação tributária existente é estabelecida entre o fisco, como sujeito

ativo, e entre a concessionária de energia, sujeito passivo, restando o consumidor excluído da

relação jurídico tributária. No caso em tela, a concessionária vê-se obrigada ao recolhimento do

PIS e COFINS em favor da União, independentemente de sua relação com o consumidor e se

este produziu energia excedente ou não150.

150 “CIVIL. TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA NÃO UTILIZADA. PIS/ COFINS.

AUSÊNCIA DE RELAÇÃO TRIBUTÁRIA ENTRE CONCESSIONÁRIA E CONSUMIDOR.

INOCORRÊNCIA DE DIREITO À ISENÇÃO OU NÃO-INCIDÊNCIA. PRECEDENTES FIRMES EM

REGIME REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. SENTENÇA IMPROCEDENTE. RECURSO

IMPROVIDO. [...] Inicialmente, convém reproduzir o assentado pelo Tribunal de origem (eDOC 51, p. 2-4): 5. O

PIS e o COFINS, de incidência não-cumulativa, têm como base de cálculo o faturamento e total das receitas

auferida da pessoa jurídica (Leis n. Leis nº 10.637/02 e 10.833/03, com alterações da Lei n. 12.973/2014), com

esteio, aliás, na Constituição Federal (art. 149, § 2º, III, a; art. 195, I, b). 6. Cediço que interpreta-se literalmente a

legislação tributária que disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário e outorga de isenção (art. 111,

I e II do CTN), bem como que a isenção é modalidade de exclusão do crédito tributário (art. 175, I do CTN). Por

fim, a isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e

requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração (art. 176

do CTN). 7. A situação é a de produção de energia dentro da propriedade do consumidor, que devolve o excedente

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Desse modo, apesar dos objetivos da norma estarem em consonância com os princípios

constitucionais do desenvolvimento econômico e de preservação do meio ambiente, a previsão

de isenção fere a legalidade tributária, o que inviabiliza a efetivação dessa medida de incentivo.

Por fim, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 6.878/2017 que busca a

instituição de sistema de compensação de energia elétrica para os microgeradores e

minigeradores de energia elétrica alternativa. Além de ratificar os conceitos de microgeração e

minigeração já regulamentados, traz a inovação em relação ao regulamento da ANEEL quando

emprega o caráter pecuniário no sistema de compensação.

Segundo o projeto em questão, o excedente de energia que não tenha sido compensado

na própria unidade consumidora ou em outras unidades sob mesma titularidade, conforme

regulamento da ANEEL, ou seja não tenha sido utilizado o crédito gerado junto à

concessionária, entendido como empréstimo gratuito de energia do consumidor à

dessa produção - isto é, o que não for consumido pela própria residência ou empresa imediatamente - à rede elétrica

para ser posteriormente abatido do consumo total dessa propriedade. Essa energia, gerada a partir de um sistema

de micro ou minigeração de fonte solar ou eólica instalado em sua propriedade, quando não consumida em sua

totalidade, é cedida à distribuidora e, depois, compensada em forma de créditos. A ANEEL, no exercício das suas

atribuições, editou a Resolução Normativa 482, de 17 de abril de 2012, que estabeleceu as condições gerais para

o acesso de Micro e Minigeração distribuída aos sistemas de distribuição de energia elétrica, e criou o Sistema de

Compensação de Energia Elétrica. 8. Ao mesmo tempo e independente dessa devolução, a concessionária vê-se

obrigada ao pagamento do PIS e COFINS ao poder concedente (União) independentemente do que se dê com essa

relação entre ela e o consumidor. No intuito de estimular a geração de energia "limpa", foi editada a Lei n.

13.169/2015 (art. 8º), que desonerou a tributação dos microgeradores e minigeradores, ao reduzir a zero as

alíquotas da Contribuição ao PIS e da COFINS incidentes sobre a energia elétrica ativa fornecida pela distribuidora

à unidade consumidora, na quantidade correspondente à soma da energia elétrica ativa injetada na rede de

distribuição pela mesma unidade consumidora, seja com créditos de energia ativa originados na própria unidade

consumidora no mesmo mês, em meses anteriores ou em outra unidade consumidora do mesmo titular, nos termos

do Sistema de Compensação de Energia Elétrica para microgeração e minigeração distribuída, conforme

regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica ANEEL. 9. O que é fato, porém, é com ou sem alteração

legislativa que assegure alíquota zero no ICMS, PIS e COFINS, a viabilidade de cobranças desse jaez foi assentada

pela jurisprudência superior em recursos especiais julgados sob o rito de representativos de controvérsia, já há

algum tempo, inclusive afastando-se taxativamente a natureza tributária na relação concessionária e consumidor,

bem como de responsabilidade tributária por transferência, sucessão ou substituição. Desta forma, constata-se que

eventual ofensa à Constituição, se existente, seria reflexa, tendo em conta a necessidade de análise de fatos e provas

e o da legislação infraconstitucional aplicável à espécie, de modo a inviabilizar o processamento do apelo

extremo.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1025651 RN - RIO GRANDE DO NORTE 0508279-34.2015.4.05.8400. Reclamante: Luciano Pessoa Mendonca. Reclamado: União. Julgado em 01 de março de 2017. Publicado em DJe-042 de 07 de março de 2017. Relator: Ministro Edson Fachin.

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concessionária, deverá ser convertido em pecúnia e depositado no mês subsequente em conta

corrente indicada pelo titular da unidade consumidora151.

Tal previsão traz coerência ao sistema de compensação de energia, visto que o modelo

atual empregado pelo regulamento da ANEEL corresponde a verdadeiro locupletamento ilícito

da concessionária de energia elétrica, nos casos em que obtém a energia que foi gerada pelo

consumidor-gerador, pelo empréstimo a título gratuito, e quando esta energia produzida é

injetada na rede, automaticamente já se encontra vendida a outros consumidores, gerando lucro

para a concessionária. Caso o consumidor que gerou a energia não utilize os créditos pelo

empréstimo no prazo estipulado, simplesmente a concessionária obteve enriquecimento na

venda de energia que ela não produziu.

Apesar desse esforço no sentido de incentivar o sistema de microgeração e minigeração

e da importância dessas medidas para o desenvolvimento no setor elétrico brasileiro, o

mencionado Projeto ainda encontra-se em análise pela Comissão de Meio Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável desde abril de 2017, sem qualquer previsão de aprovação e

implementação das medidas.

151 Art. 7º Os créditos em quantidade de energia ativa que não tenham sido utilizados para compensar o consumo da unidade consumidora com microgeração ou minigeração distribuída de energia alternativa ou de outra unidade consumidora até o encerramento do prazo referido no artigo quarto serão convertidos em pecúnia e depositados no mês subsequente em conta-corrente indicada pelo titular da unidade consumidora, conforme regulamento.

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6 CONCLUSÃO

A partir da dotação de imperatividade à Constituição Federal, houve a obrigatoriedade

de observação das normas constitucionais para a interpretação das demais normas. Nesse

âmbito, os princípios constitucionais deverão ser considerados quando da análise do regramento

sobre a micro e minigeração de energia elétrica, notadamente o arcabouço referente à ordem

econômica constitucional.

Assim, com a análise dos princípios constitucionais referentes à ordem econômica,

notadamente a livre concorrência e a livre iniciativa, concluiu-se que o sistema normativo

estruturado para a micro e minigeração de energia elétrica no Brasil respeitou os ditames

constitucionais, ao trazer a possibilidade do próprio consumidor final produzir a energia

necessária às suas necessidades, possibilitando inclusive que haja reunião de esforços para tal

produção.

Por sua vez, no tocante à promoção da dignidade humana, o arcabouço normativo trouxe

a possibilidade de promover o acesso de qualidade a um bem essencial para a vida moderna

como a energia elétrica, sem interrupções ou falhas quanto ao abastecimento.

Já em relação ao respeito ao direito do consumidor, a geração distribuída promove a

qualidade no acesso ao bem, além de significar segurança quanto à instabilidade do setor que

em decorrência da concentração de sua fonte utiliza o aumento na tarifa como maneira de retrair

o consumo para garantir que o abastecimento não seja interrompido.

Quanto à proteção ao meio ambiente, tal modelo apresentou-se compatível e

concretizador dos objetivos estampados na Constituição Federal de 1988, visto que provocam

o maior uso de fontes renováveis de energia, menos poluentes e geram acesso de qualidade a

um bem essencial para a vida moderna.

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Ademais, ao prever o desenvolvimento como objetivo da República Federativa do

Brasil, aliado aos ditames da justiça social e do respeito ao meio ambiente, impõe ao Estado e

à sociedade a busca por instrumentos que promovam tal finalidade. Para atingir esses objetivos,

a regulação do setor elétrico no Brasil, por sua vez, evoluiu de um modelo marcadamente estatal

e monopolista para um cenário de livre iniciativa e desestatização. Nesse contexto, surgiu como

ápice da liberdade no setor a possibilidade de geração de energia pelo próprio consumidor, via

sistema de compensação e cooperação com as concessionárias, o que foi regulamentado pela

Resolução 482/2012 da ANEEL.

Todavia, para que o programa seja difundido entre a sociedade e tenha significância na

diversificação da matriz energética, o Estado deverá lançar mão de instrumentos de fomento,

notadamente, a desburocratização para a produção compartilhada de energia, a abertura de

créditos e a extrafiscalidade.

Quanto a este último aspecto, houve a previsão de isenção do ICMS para a energia

produzida e injetada na rede distribuidora, todavia ainda persiste uma situação de disparidade

para consumidores-geradores de diferentes unidades federativas, visto que para os Estados que

não aderiram ao convênio ICMS 16, a cobrança do ICMS incide sobre toda a energia fornecida

ao consumidor, sem considerar aquela que é transferida a título de créditos anteriores.

Por sua vez, a previsão de desoneração da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS,

por meio da Lei nº 13.169/2015, resta inviabilizada tendo em vista questionamentos acerca da

natureza da relação jurídica entre concessionária e consumidor, sendo que o entendimento

assentado pelo Superior Tribunal de Justiça indica que tal relação não é de cunho tributário e

por tal motivo não pode haver a desoneração.

As vantagens da micro e minigeração de energia consistem principalmente no fato de

ser próxima aos centros de carga promovendo a economia de recursos com linhas de

transmissão e com a redução de grandes obras, de permitir a redução do impacto ambiental em

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relação a outros modos de geração, promover a redução de carregamento das redes e a

complementação energética, pois a energia elétrica gerada pela unidade geradora/consumidora

complementará a energia elétrica gerada por outras fontes, fomentando a diversificação da

matriz e consequente segurança energética.

Com isso, o incentivo à geração em pequena escala possui aspecto desejável para o

Estado brasileiro, visto que seu fortalecimento guarda relação com a promoção do

desenvolvimento econômico nos ditames constitucionais. Para isso seja concretizado, porém,

há necessidade de aperfeiçoamento do aparato do sistema, principalmente no sentido de

desburocratizar o acesso dos consumidores, notadamente na modalidade da geração

compartilhada, além da demanda por incentivos estatais por meio de créditos para compra de

equipamentos, tendo em vista o alto investimento necessário para sua implantação.

Por fim, nota-se a importância do trabalho para difusão de informação sobre o tema,

visto que um dos grandes entraves à utilização no País do sistema de geração distribuída ser

devido a escassez de informações suficientes para a sociedade civil sobre as vantagens na

implantação desses instrumentos.

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