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1 Elizabeth Webster O voo do cisne Composição: Selecções do Reader's Digest - Lisboa Impressão: Maury Imprimeur, SA - Mallesherbes, França Encadernação e acabamento: Reliures Brun - Mallesherbes, França 1.' edição: Junho de 1993 ISBN: 972-609-076 - 8 Printed in France “Voa.. voa... voa... Livre... livre... livre...” Para Laurie Collins, a batida das asas do cisne falava de uma mensagem irresistível fugir de um marido que a espancava. Fugir para salvar os filhos. Fugir e ser livre para sempre. Mas, após a fuga, iam surgir novas necessidades. Porque a liberdade não é apenas partir. É saber aonde se quer chegar...

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Elizabeth Webster

O voo do cisne Composição: Selecções do Reader's Digest - Lisboa

Impressão: Maury Imprimeur, SA - Mallesherbes, França

Encadernação e acabamento: Reliures Brun - Mallesherbes, França

1.' edição: Junho de 1993

ISBN: 972-609-076 - 8

Printed in France

“Voa.. voa... voa...

Livre... livre... livre...”

Para Laurie Collins, a batida das asas do cisne falava de uma mensagem irresistível fugir de um

marido que a espancava.

Fugir para salvar os filhos. Fugir e ser livre para sempre.

Mas, após a fuga, iam surgir novas necessidades. Porque a liberdade não é apenas partir. É

saber aonde se quer chegar...

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Parte I

O Esconderijo O som sussurrante vinha do céu, forte, doce e estranho. Laurie olhou .

para cima, abraçando-se a si própria para parar de tremer... A dor, o choque e o medo não desapareceram, e as nódoas negras no corpo e no rosto marcado não deixaram de lhe doer. Mas o sussurrar longínquo e rítmico, como música ao longe, aproximava-se e por algum motivo parecia trazer consigo uma espécie de paz... ou talvez de segurança... Lá longe, dizia, alto no céu, havia um mundo de ar azul e de sol, um mundo de espaços limpos e abertos e sem pressões, para além do subir e baixar do vento... Sem medos nem dúvidas, sequer, da nossa própria força e resistência. Um mundo de liberdade.

Laurie levantou a cabeça para ver mais longe, por sobre as árvores enfarruscadas de fuligem do pequeno quintal, e ali - num voo majestoso e firme - vinham três cisnes brancos com os pescoços esticados numa linha perfeita, apontando para o poente brilhante, e o seu bater de asas era lento, forte e cheio de música.

“Livre... livre... livre...”, cantavam as asas pulsantes. “Fugir... fugir... fugir...”, soavam ao passar no alto, douradas pelo sol. Observou-as até as perder de vista, com a garganta a doer de lágrimas contidas.

“Sim”, pensou de pé ali, tremendo, no quintal miserável. “Fugir, fugir, fugir! Para vocês é fácil, com todo o céu vasto e livre para voar.” - Mãe? - chamou a voz de Jason da porta da cozinha. - Mãe? Fiz um pouco de chá.

Ela teve um suspiro profundo e entrecortado e levantou os olhos mais uma vez para o pálido céu de Londres. Longe e ainda doce, parecia-lhe, conseguia ouvir um leve sussurro de asas no vento.

- Lá vou - respondeu, e voltou a entrar na cozinha desarrumada. “Francamente”, pensou, empurrando o cabelo para trás para afastá-lo da testa ferida, enquanto limpava os pratos do almoço, “não devia deixar as coisas chegarem a este ponto. Mas estou tão cansada. E tão confusa. E quanto mais ele grita e me espanca, mais baralhada fico.”

- Vá lá, mãe... - Os braços de Jason abraçavam-na, conduzindo-a para a cadeira. A voz meiga e jovem procurava consolá-la. Pôs-lhe a chávena de chá à frente e tentou desajeitadamente arranjar-lhe o cabelo. - Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho?

Ela abanou a cabeça.

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- Está tudo bem. Mas não estava nada bem. De modo nenhum. Sobretudo a voz prática

do seu filho a falar com uma aceitação descontraída, nascida de muitas ocasiões idênticas... “Quer que vá buscar uma esponja para pôr no olho? Quer que varra os pratos partidos? Quer que telefone ao médico?” O rosto infantil e preocupado do miúdo estava pálido com o esforço de tentar dar algum apoio e conforto. Os olhos cinzentos estavam ansiosos e demasiado abertos na face macilenta. Ela pôs-lhe um braço em volta dos ombros e apertou-o com força.

- Não te preocupes, Jay. Estou bem. Onde está a Midge? Ele mirou-a de forma estranha e séria, maduro e atento, muito para

além dos seus oito anos. - Fugiu para o armário das vassouras e adormeceu. Por isso deixei-a lá,

onde estava a salvo. - Baixou os olhos para a sua própria chávena de chá, mexendo com fúria. Depois, ergueu de novo os olhos e acrescentou:- Ela está bem. Fui ver. Continua a dormir.

Laurie suspirou. Uma súbita onda negra de desalento invadiu-a, esgotando-lhe a energia e a vontade. De que é que servia preocupar-se? Estava presa ali naquela casa pequena e esquálida com um homem violento que não fazia mais nada senão gritar e a erguer o punho contra o mundo injusto - que não encontrava o trabalho a que estava habituado, não suportava o facto de que era um falhado indesejável e gastava o tempo e o dinheiro a embebedar-se até à inconsciência. Um homem que descarregava a sua fúria e frustração na esposa esgotada, enquanto a filhinha se arrastava para um armário e chorava até adormecer e o irmão assistia e tentava confortar a assustada mãe.

Era demais. Era tudo demais, e ela não sabia o que fazer nem aonde as coisas iriam parar. Enquanto lá fora, no ar azul e vasto, aquelas asas brancas e puras pulsavam... pulsavam... Lá fora havia todo um mundo de árvores, relva e céu.

- Jay - disse de repente -, pega no teu casaco. Eu acordo a Midge. Levantou-se depressa, antes de mudar de ideias, e abriu a porta do armário das vassouras. A criança estava deitada, enrolada num cobertor velho. O cabelo, louro cor de mel como o da mãe, espalhava-se à volta da sua cabeça em madeixas macias e emaranhadas. Uma das mãos apertava a juba de lã do seu boneco preferido, um velho leão amarelo cujo pêlo de veludo estava gasto e fino.

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“Como eu”, pensou Laurie, com uma centelha desesperada de humor. “Estou fina de gasta. Na verdade, quase desfeita... Desfeita.” Aconchegou Midge nos braços, procurou o casaco dela e enfiou-lhe os braços sonolentos e passivos nas mangas. Depois, pegou no seu próprio casaco e na carteira e seguiu Jason para a entrada estreita.

- Aonde vamos? - perguntou ele, seguindo pelo corredor pequeno e escuro.

- Não sei... Ao parque... apanhar ar fresco. Mas, ao chegarem à porta de entrada, alguém lhes barrava o caminho. - Onde raio pensas tu que vais? - disparou Jeff. O coração de Laurie contraiu-se. Viu logo que ele estivera a beber ainda

mais desde a hora do almoço. Estava bêbado e a fervilhar de fúria contra o mundo negligente e desinteressado em geral e contra a jovem esposa em particular.

- Ia... levá-los a passear. - Ai ias, não ias? Pois podes voltar a entrar. - A mão disparou e fé-Ia

rodopiar, atirando-a para trás, para a porta da cozinha. - Sabes que horas são? Ou estás demasiado passada para reparar? - A voz estava cheia de sarcasmo. Parecia chocalhar-lhe na cabeça como uma dor física. - Se calhar, é pedir muito ter comida pronta quando chego a casa. - Mas chegaste cedo...

- Cedo? Então, eu estive lá em baixo no Centro de Emprego a passar a pente fino os anúncios todo o dia!

Ela fitou-o. Era óbvio onde ele passara a maior parte do dia. Mas não valia a pena retorquir. Já fora violento que chegasse de manhã. Laurie estremeceu.

- Não te ponhas com esse ar de mártir, sua manhosa - gritou ele de repente, furioso. Até o silêncio dela era uma reprovação. - Volta ali para dentro e cozinha alguma coisa, senão... - A mão elevou-se.

Ela recuou, sentindo os membros macios e sonolentos de Midge ficarem rígidos nos seus braços. A mão infantil e tensa de Jason esgueirou-se para dentro da dela. Olhou para baixo e viu o aviso nos olhos do filho.

“Agora, não”, pareciam dizer. “Agora, não. Não o deixe começar outra discussão agora.”

Derrotada, voltou-se, entrou de novo na cozinha e, distraidamente, começou a preparar qualquer coisa.

Mas a ira de Jeff ainda não se tinha esgotado. Quando Laurie pôs um prato de comida à sua frente, ele mirou-o com nojo.

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- O que é isto? - Estufado de feijão e lentilhas. Ele picou-o com o garfo. - Onde está a carne? - Não posso comprar carne todos os dias. O dinheiro não chega. Jeff

bateu com uma mão na mesa de tal maneira que toda a loiça saltou. E os miúdos também, que estavam a tentar não ser vistos, a brincarem no chão.

- Dou-te mais que o suficiente. Tu é que és uma dona de casa miserável. - Se não gastasses tanto no bar - replicou ela de súbito, corajosa e tão

zangada como ele estava -, podias comer carne todos os dias. Jeff pegou no prato de estufado e atirou-lho. A mistura quente e peganhenta atingiu a parede e ricocheteou para a cara dela, escaldando-a. O prato estilhaçou-se, e um bocado de loiça partida em bico voou e cortou-lhe a face. O sangue e o molho misturaram-se, pingando cara abaixo. Jeff levantou-se e dirigiu-se a ela, cada vez mais furioso.

- Bebo - atirou - para esquecer que estou casado com uma ranhosa ordinária como tu. -, Deu-lhe uma bofetada que a atirou contra o lava-loiça, magoando-lhe as costas contra o bordo aguçado. - Olha para ti! Seu monte de lixo sangrento. Lava essa imundície da cara.

Sem ver, ela virou-se para apanhar um pano húmido no lava-loiça. Ele bateu-lhe outra vez. A sua cabeça bateu na parede com força e por momentos ela ficou cega. Um zumbido alto e estranho começou a soar-lhe nos ouvidos, quase como o voo dos cisnes.

- E bebo - gritou ele, debruçando-se sobre ela com ênfase aterrorizadora - porque não consigo arranjar um emprego e ninguém quer saber peva do que me acontece. Sabes o que me ofereceram hoje? Ir alcatroar estradas, a mim que sou um vendedor!

Laurie segurava o pano húmido contra o rosto, fitando-o com os olhos arregalados. As asas ainda adejavam na sua cabeça, tentando libertar-se. Tudo estava desfocado. A cara distorcida de Jeff parecia subir e ficar estreita num momento para depois encolher e esticar-se para os lados como um balão monstruoso. Era uma sensação esquisita e aterrorizava-a.

- Um vendedor! - berrou ele, e começou a abaná-la selvaticamente. - Arrastado para isto... - Abarcou com um braço a cozinha em desordem e as crianças assustadas no chão e depois rodou-o com violência contra o rosto dela. - Como é que posso trazer a casa um possível cliente para ver isto? Quanto mais um eventual patrão!

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Estava a ficar entaramelado, e ela teve um desejo louco de rir. Desde quando tivera ele possíveis clientes? Ou patrões?

Jeff deve ter vislumbrado o riso no rosto dela, porque bateu-lhe de novo ainda com mais força, atirando-lhe a cabeça contra a parede novamente e magoando-lhe as costas ainda mais contra o bordo do lava-loiça. Laurie sabia vagamente que tinha de fazer um esforço para chamá-lo à razão. Pelo menos pelas crianças, tinha de tentar parar aquilo de qualquer forma.

- Jeff - começou ela -, por favor. Eu sei que é frustrante... - Frustrante! - berrou ele. - Bem podes dizê-lo. Contigo e com as crianças

penduradas ao meu pescoço como um fardo! Ela baixou os olhos para a pequena Midge, agachada no chão. A suave e

meiga Midgezinha com os seus grandes olhos cinzentos. Um fardo? - Então, porque não te vais embora? - Ouviu-se a si própria dizer com

um tom de coragem falsa na voz desesperada. - Ir embora? - Soou como se ele não tivesse compreendido bem. Depois,

pareceu entender e desatou a rir. Era um som feio e fez arrepiar os cabelos da nuca de Laurie. - Podia fazê-lo - ripostou, ainda a rir. - Tu até gostavas, não era?

E então, como ela mais uma vez não respondesse, ele bateu-lhe de novo. Ela percebeu nessa altura, num repente curioso e cristalino de

compreensão, que ele nunca a deixaria. Gostava de ter alguém em quem bater e uma razão para a sua fúria e rancores. Ela e as crianças eram a sua desculpa para os seus próprios fracassos e imperfeições. Não precisava de se culpar a si próprio. Só tinha de puni-los a eles.

A eles? Laurie compreendeu que os filhos estavam em perigo. No momento em que vislumbrava esta realidade, Jeff deu um passo atrás, hesitante, e tropeçou no leão amarelo que Midge tinha deixado no chão, no meio do terror, ao gatinhar para debaixo da mesa. Agora, ele avançava para a criança com um punho levantado e um olhar vidrado de fúria.

- Seu pirralho maldito! - Não! - exclamou Laurie, e pôs-se rapidamente em frente da mesa. -

Não, Jeff. A Midge não. Ele nunca tinha batido nos miúdos. Até agora. Tinha sempre sido

Laurie que queria magoar, Laurie que queria humilhar e derrotar. Mas agora o olhar no seu rosto ultrapassara o grau de sanidade. Ela teve medo. Curvou-se e deitou os braços à criança.

- Jay - chamou bruscamente -, anda. Vou meter-vos aos dois na cama.

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- Não vais nada - gritou Jeff. - Deixa-os aí. - Não - retorquiu Laurie, e recuou com rapidez, mantendo Jason atrás

de si. Jeff virou a mesa de pernas para o ar -e veio atrás dela. Mas uma das

pernas da mesa revirada atingiu-o quando ele cambaleou para a frente, ébrio, e fê-lo estatelar-se numa chuva de vidros e insultos.

As asas soavam muito forte na cabeça de Laurie. Fugir... fugir... fugir!, diziam, e o som do seu voo seguro e rápido era

mais alto do que a voz de Jeff. De alguma forma, sem saber bem como, Laurie encontrou-se na rua

com Midge nos braços e Jason ao lado, e a correr... a fugir no crepúsculo azul da noite de Setembro, deixando muito' longe a figura minúscula de Jeff aos gritos e a casa sufocante e acanhada. E com ela, enquanto corria, as asas continuavam a pulsar.

Quando a pontada se tornou demasiado forte, ela parou para recuperar

fôlego. Estavam numa zona de Londres que não conhecia, mas as ruas eram bem iluminadas e havia um quiosque de café aberto na esquina. Olhou para baixo, para os miúdos, com os rostos voltados para ela numa pergunta muda, indagando. E agora? Agarrou com força a alça da carteira. Tinha algum dinheiro que guardara para o dia seguinte... O dia seguinte? Não conseguia pensar até tão longe. Nesse momento, precisavam de uma bebida quente e algo para comer.

Aproximou-se do quiosque com cuidado. Não sabia que aspecto apresentava, claro, com o rosto marcado e o corte por baixo do olho ainda a deixar escorrer um fiozinho de sangue, o cabelo solto em longas madeixas desgrenhadas e os olhos arregalados, em choque.

O dono do estabelecimento deu-lhe uma olhadela e serviu uma caneca de chá quente.

- O que é que os miúdos vão tomar? - perguntou. - Chá - respondeu Jason prontamente. - Se faz favor. - E a pequenina?

Leite quente? Para a aquecer um pouco? Laurie acenou que sim com a cabeça.

- Deixe ver - disse o homem com compreensão. - Sente-a aqui em cima. Descanse um pouco os braços, menina. - Sentou Midge no balcão, que ficou com as pernitas de quatro anos de idade penduradas, e o rosto ao mesmo

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nível do da mãe. Ela levantou uma mãozinha e fez uma festa na face ferida de Laurie.

- Coitadinha da mãe - lamuriou. - Tão tristinha. Laurie engoliu à pressa um gole de chá quente. A ternura inesperada de

Midge quase fora a última gota. - Podia arranjar-lhes um cachorro quente?- pediu, tentando sorrir para o

rosto enrugado à sua frente. - Com certeza. - O homem meteu duas salsichas quentes entre duas

fatias de pão com umas colheres de cebola. - Molho? - Sim, se faz favor - respondeu Jason, acenando a cabeça. - Molho! -

concordou Midge, sorrindo como um anjo. - E a senhora? - Os olhos castanhos atentos vigiavam-na sem surpresa,

mas não sem compreensão. - Não, obrigada. Não tenho fome. - Teve uma noite má? - indagou com delicadeza. - Acho que sim... - Aquecia as mãos na caneca, mas não conseguia parar

de tremer. Ele pareceu abarcar toda a situação, com a cabeça inclinada. - Vai para

casa? - inquiriu. - Não - ripostou ela, e estremeceu de novo. - Nunca mais. O homem fez que sim com a cabeça para si próprio, como quem

compreende demasiado bem o problema. O seu rosto enrugado, meio velho, meio novo, tinha um ar abatido de compaixão. Já tinha visto tudo aquilo anteriormente. Mas antes que lhe pudesse dizer mais qualquer coisa, ela desfaleceu à sua frente.

Acordou num quarto desconhecido numa casa cheia de sons

desconhecidos. Estava deitada numa cama de campanha coberta com uma manta cinzenta da tropa. Havia outra cama no quarto e dois beliches. Mas não havia sinais dos filhos. Começou a levantar-se em pânico, mas o movimento súbito causou-lhe uma dor violenta e penetrante na cabeça, e ela voltou a recostar-se com as mãos na cabeça, que latejava.

- Está tudo bem - afirmou uma voz perto. - Tenha calma. - Os meus filhos...

- Estão bem. A Penny está a tomar conta deles. Laurie abriu os olhos. A dor abrandara um pouco. Deu consigo a olhar

para o rosto de uma mulher rija e seca, com cabelo cinzento curto, uma boca

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recta e determinada e olhos de um estranho tom dourado que pareciam emanar calor e segurança.

Onde... Que sítio é este? - É a Casa Hyde, um refúgio para mulheres. - Um... um refúgio? - Exactamente. - Um ligeiro sorriso perpassou pela boca firme. -

Chamam-lhe O Esconderijo. E eu sou a fundadora, Jane Everett. - Como é que eu... Como é que viemos cá parar? - O Joe trouxe-vos. O dono do quiosque. Ele traz muitas vezes pessoas

para cá. Já viu muita coisa assim, o nosso Joe. E é um homem bom. Laurie suspirou.

- Sim... Lembro-me. Foi muito bondoso. Jane Everett acenou que sim com a cabeça. A seguir, sentou-se aos pés

da cama de Laurie e afirmou com suavidade: - O seu sensato rapaz, Jason, disse-me o seu nome e o da Midge, mas há

uma ou duas coisas que quero saber. Acha que aguenta umas perguntas? - Sim. Mas não sei as respostas... Jane voltou a sorrir. - Pois, não creio que as saiba neste momento. Mas, ouça, eu quero que

vá para o hospital e que essa cabeça ferida seja vista, e eles vão fazer-lhe perguntas.

- Não preciso... - Precisa, sim, senhora. - Jane calou-se por momentos e depois

prosseguiu: - E se, como desconfio, não tem intenções de voltar para mais espancamentos, pode precisar das provas dos seus ferimentos por parte do hospital. Compreende?

Laurie mirou-a. Num repente, todo o assustador processo judicial... e as consequências das acções de Jeff e as da sua fuga... se apresentaram aos seus olhos como uma estrada de pesadelo.

- Ou quer voltar? - indagou Jane, ainda a falar com suavidade. - Não - respondeu Laurie. - Não, não posso voltar. - Olhou com ansiedade para o rosto da outra mulher, como a tentar justificar a sua decisão. - São as crianças, percebe? - explicou ela com a voz a tremer. - Já não estão seguras. Não estão... seguras... - Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.

Jane Everett rodeou-lhe os ombros com um braço. - Não se preocupe agora. Estão perfeitamente seguras aqui. Vou mandá-

las com a Penny e pode ver com os seus próprios olhos. Laurie fez que sim com a cabeça, esquecendo-se da dor, e depois deu

um ligeiro grito.

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- Desculpe - murmurou desamparadamente. - Desculpe estar a dar tanto incómodo. - Mas não conseguia fazer parar as lágrimas. Nessa altura, Jason entrou, equilibrando uma bandeja com pão com doce e uma chávena de chá, e Midge trazia uma sardinheira vermelho-vivo. Com eles estava uma alegre rapariga ruiva, grávida e sem aliança. - Eu sou a Penny - apresentou-se e sorriu. - Vou partilhar este quarto consigo e com os miúdos. Eles dão-se bem comigo, por isso pode deixá-los enquanto vai ao hospital para ser vista. - Piscou um olho azul a Jason. - Ele e eu somos bons amigos, sabe? Nós tomamos conta da Midge, não tomamos, Jay?

Laurie tentava comer pão com doce e parar de chorar ao mesmo tempo. Jason abraçou-a.

- Não chore, mãe. Está tudo bem. Nós gostamos disto aqui. O quarto rodava em frente dos seus olhos e ela deitou-se, exausta.

Penny deitou-lhe uma olhadela e fez sinal em silêncio a Jason. Depois, pegou em Midge ao colo e saiu do quarto.

O pessoal hospitalar era activo, eficiente e inesperadamente bondoso.

Jane apresentou uma explicação breve da situação e anunciou que voltaria para saber os resultados dos exames. Pôs então em movimento os processos dos serviços sociais que iam ajudar Laurie e os filhos a sobreviver.

Laurie foi levada para as radiografias. Quando a despiram, até ela se espantou um pouco com a quantidade das contusões. Parecia ter nódoas negras por todo o lado; as costelas ardiam-lhe como brasas quando inspirava; e a coluna, no sítio em que Jeff a atirara contra o bordo do lava-loiça, provocava-lhe agora uma dor profunda e paralisante.

Deram-lhe uns pontos no corte da face e radiografaram-lhe a cabeça, as costelas e a coluna. Depois, deitaram-na numa enfermaria. Tremia imenso nessa altura, morta de frio, mas empilharam-lhe cobertores em cima e trouxeram-lhe uma botija de água quente. A enfermeira de serviço debruçou-se sobre ela, sorrindo, e disse:

- Não se preocupe. É só do estado de choque. Apareceu um médico novo e sentou-se ao lado dela. - Sou o Dr. Lang - informou. - Como se sente agora?

- Bem. Só tenho fr-frio... - Inspirou entrecortadamente. A cabeça ainda estava estranha. As asas continuavam a rodopiar lá dentro, a tentar sair. Tornava-se difícil concentrar-se.

- Queremos que fique cá esta noite. - Mas não posso. Os meus filhos...

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- Pode, sim, senhora. Os seus filhos estão muito bem entregues. - Sorriu para ela confiantemente e pousou-lhe uma mão no punho, tomando-lhe o pulso com dedos competentes e frescos. - Garanto-lhe que não vamos retê-la por mais tempo do que o necessário. Temos poucas camas.

Ela tentou retribuir o sorriso. - Quais são os estragos? - Tem uma ligeira concussão e uma possível fractura em cabelo.

Também tem três costelas partidas e uma equimose grave na coluna que lhe vai doer muito durante algum tempo. - Deu-lhe uma palmadinha alegre no braço e levantou-se. - Parece mau, mas, na verdade, são tudo coisas que só requerem descanso. Teve sorte.

- Sim - murmurou ela. - Muita sorte... Nessa altura, um funcionário dos serviços de registo entrou no quarto e

perguntou: - Podemos fazer-lhe a ficha agora? Não devíamos chamar o marido? - Não! - exclamou Laurie. - Não! Não podem! - Deixem os formulários por agora - declarou o Dr. Lang com firmeza. Laurie tentou sair da cama. - Não posso ficar aqui! Deixem-me ir embora! O médico agarrou no pulso de Laurie com uma das mãos e garantiu: -

Não vem cá ninguém. Não vou permiti-lo. Vamos dar-lhe qualquer coisa para dormir. Esqueça tudo. Está absolutamente segura.

De algum modo, a voz calma e a pressão segura dos seus dedos longos e frescos atingiram-na. Ela descontraiu-se e encostou-se para trás na cama, exausta. Por fim, adormeceu.

De manhã, deixaram-na tomar banho, mas nem o toque agradável da

água quente no corpo macerado conseguia apagar a sensação das mãos duras de Jeff, as pancadas intermináveis e castigadoras dos seus punhos e a voz zangada - que parecia não se calar - a gritar-lhe dentro da cabeça dorida. E aquelas asas ainda lá estavam.

Quando voltou à enfermaria em cima das pernas vacilantes, com uma bata do hospital, Penny estava lá com uma mão-cheia de roupa limpa. Sorriu.

- Vim buscá-la para a levar para casa - anunciou. “Para casa?”, pensou Laurie. “Qual casa?” Em voz alta, perguntou

rapidamente: - As crianças? Estão bem?

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- Claro que estão. Sãs que nem peros. Já vai vê-las. Nesse momento, chegou o Dr. Lang. Verificou-lhe os olhos, estudou a

ficha e mais uma vez tomou-lhe o pulso com a mão fresca e firme. - Vai aguentar-se - declarou, sorrindo. - Mas quero que tenha cuidado

durante pelo menos uma semana. Se as dores de cabeça piorarem ou começar a ter visão dupla, volte cá imediatamente.

Laurie mirou-o, sentindo-se desorientada, mas não disse nada. - Jane Everett tratou das coisas para que ficasse com as crianças na Casa

Hyde durante quinze dias - explicou ele ao ver a dúvida e confusão nos olhos dela. - Depois disso, logo vemos...

- Ela disse pelo menos quinze dias - interrompeu Penny. - E eu posso tomar conta dos miúdos. Vai poder fazer exactamente o que o doutor mandou.

Laurie tapou a cara com as mãos e afirmou numa voz sufocada: - Só queria... que não fossem todos tão horrivelmente simpáticos. O Dr.

Lang riu-se. - Creio bem que vai habituar-se a isso. Embora possa aperceber-me de

que não tem tido muito contacto com a simpatia nos últimos tempos. “Nos últimos tempos?”, pensou Laurie com tristeza. Há quanto tempo Jeff não demonstrava qualquer simpatia? Há quanto tempo ela tinha medo de cada vez que Jeff entrava em casa?

Não tinha sido sempre assim. Lembrava-se ainda de um tempo longínquo em que Jeff tinha sido atencioso e amável, até ternurento. E lhes trazia pequenos presentes para casa, e os seus olhos eram suaves e não acusadores. Nervosamente, fez a pergunta vital:

- O que é que... Sabe se notificaram alguém? O médico sorriu. - Dei instruções ao serviço de registo para notificarem o seu marido,

mas a carta só vai ser enviada hoje. - Uma ligeira piscadela pareceu perpassar pelos olhos dele por um instante.

- Ah! - Laurie retribuiu-lhe o sorriso com uma breve onda de esplendor. - Ah... obrigada.

Jeff estava confuso. Quando Laurie fugira de casa a correr, ele supusera

que voltaria em breve, contrita, como de costume. Mas não voltara. Inspeccionou os destroços da cozinha e o guisado de lentilhas espalhado pela parede. Tinha sido de facto ele que fizera aquilo? O que o enfurecera assim tanto? Não conseguia lembrar-se, mas a ideia daquela cena assustava-

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o. Caiu na cama numa nuvem de álcool e autocomiseração e sonhou que se encontrava num carrocel, a rodar cada vez mais depressa, de tal maneira que ficava cada vez mais tonto com cada volta. E Laurie e as crianças estavam de pé, de mãos dadas, ao lado, a observarem, muito sérias, enquanto ele continuava a rodopiar e não conseguia sair...

Acordou a sentir-se enjoado e estranhamente assustado com qualquer coisa. Não havia ninguém em casa, e o silêncio e o vazio pareciam troçar dele. Precisava de uma bebida. O dia passou num nevoeiro de bares e uma sensação de perda que ele não entendia bem. Quando regressou a casa, ainda não estava lá ninguém. Começou a interrogar-se se poderia ter acontecido alguma coisa a Laurie.

“Não”, pensou ele. “Ela está só a vingar-se. Se calhar, dormiu em casa de um dos vizinhos.” Enfurecido, deu um pontapé na mesa tombada da cozinha. “É melhor limpar esta porcaria”, continuou a pensar. Mas deixou tudo como estava.

De manhã, encontrou a carta do hospital, um.formulário impresso com os espaços preenchidos com: “Mrs. Laura Collins, casada com Jeffrey Collins, Wetherby Terrace, 14, deu entrada, sofrendo de costelas partidas, fractura do crânio, concussão, grave equimose na coluna e contusões múltiplas.” Nem uma palavra sobre quanto tempo lá ia ficar nem como adquirira os ferimentos. O estômago contraiu-se-lhe de medo.

O que lhes teria ela dito? Todos aqueles ferimentos não podiam ter sido provocados por ele. É verdade que tinham discutido duas vezes num dia, mas não, ela tinha com certeza sido atropelada por um carro ou assaltada ou qualquer outra coisa.

Era melhor ir ver como ela estava. Mas, e se o acusassem? Era melhor esperar que entrassem em contacto com ele. Ou a mandassem para casa. Afinal, não diziam que corria perigo. Entretanto, precisava de uma bebida. Um choque e tanto, notícias daquelas.

Mas, após uma manhã no bar, sentiu-se com mais coragem. Começou a pensar: e se não a fosse ver? Não iam pensar que não se importava com ela? Não ia parecer que ele lhe tinha mesmo dado uma sova? Talvez fosse melhor ir e fazer um ar preocupado. Fazer um ar? Bom, ele estava mesmo preocupado.

Pensou vagamente no que teria acontecido às crianças. Não podia tê-las com ela, pois não? Alguém devia estar a tomar conta delas. Bom, que lhes

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fizesse bom proveito! Talvez ficassem com elas um dia ou dois e lhe dessem um momento de descanso. Ia fazer-lhe muito bem.

Ocorreu-lhe que, se ia trazer Laurie para casa, como um bom marido, era melhor primeiro dar uma arrumadela a tudo. Para o caso de alguém querer vir verificar pessoalmente. Arranjar-se um bocado também. Emborcou mais um gole e comprou uma garrafa para levar para casa. As coisas podiam tornar-se feias no hospital.

De regresso a casa, varreu os vidros partidos e as loiças e lavou todos os pratos no lava-loiça. A seguir, limpou o guisado da parede. Ficou um pouco abalado por lá encontrar sangue também. Por essa altura, a sua coragem estava a evaporar-se de novo, por isso parou para beber uma boa dose de whisky. Não gostava de hospitais nem nas melhores alturas, e aquela visita podia ser traiçoeira.

- Venho ver a minha mulher, Mrs. Laura Collins - anunciou Jeff. A recepcionista respondeu, sem sequer levantar os olhos: - Segundo andar. Enfermaria dez. Apanhe o elevador ao fundo do

corredor. Jeff apanhou o elevador. Sub-repticiamente, tomou mais um trago da

garrafa de whisky escondida no bolso. À entrada da enfermaria 10, cruzou-se com uma enfermeira.

- A minha mulher, Laura Collins Pôs o seu ar mais simpático. - É esta a enfermaria dez?

A enfermeira mirou-o. - Mrs. Collins? - Fez uma pausa. - Espere um momento - acrescentou

com rispidez. - Vou saber. Por fim, a enfermeira voltou e convidou com delicadeza: - Não se importa de esperar aqui, Mr. Collins? O Dr. Lang já desce para

falar consigo. - Conduziu-o por uma porta para dentro de uma pequena sala de espera. - O doutor não se demora.

Derrotado, Jeff sentou-se numa cadeira ao lado de outro homem que também estava à espera. Em breve, o outro homem foi levado. Só deu tempo para Jeff dar mais outra golada rápida antes de o rosto sério do jovem médico aparecer no umbral.

- Mr. Collins? - Sim, sou eu. A resposta do médico foi seca e sem meios-termos.

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- Receio que tenha chegado tarde demais. - Depois, pareceu parar deliberadamente, observando o terror súbito nos olhos de Jeff.

- O quê? - Demos-lhe alta ontem. Jeff ficou furioso de repente. Assustá-lo daquela maneira. Tinha

pensado por momentos que... e, afinal, ela não estava mal! - Deram-lhe alta? Para onde? O Dr. Lang encolheu os ombros. - Não

faço a mínima ideia. - Mas... Onde é que ela está? Não deixou um endereço? - Só o seu endereço, Mr. Collins, e esse com muita relutância. - O quê?

Ela... Ela disse alguma coisa? - Acerca de quê? Acerca de como adquiriu os ferimentos, talvez? Jeff

sentiu outra onda de medo. - Bem, e disse? - A voz saiu-lhe demasiado alta, demasiado truculenta. - Ela não contou muita coisa. Tinha uma concussão e estava em estado

de choque. - Deve ter caído - tartamudeou Jeff. - Atropelada por um carro ou coisa

assim. Não perguntou por mim? - Perguntar por si? - O médico parecia frio e desdenhoso. - Não, não

perguntou. Na realidade, a única vez que se mencionou o seu nome ela ficou tão assustada que tentou sair logo nessa altura do hospital.

Houve um silêncio enquanto Jeff digeria aquilo. Por fim, o medo e a fúria apoderaram-se dele.

- É ridículo! - rugiu. - O senhor recusar-se a dizer-me onde ela está! A fazer essas acusações todas.

- Ninguém fez acusações nenhumas, Mr. Collins. - Exijo saber onde ela está. E os meus filhos? Ela não tem o direito de

desaparecer sem deixar uma morada. E o senhor não tem o direito de a deixar... - Avançou para o Dr. Lang, apontando um dedo acusador. - O senhor sabe de certeza. Não saio daqui sem mo dizer.

O jovem médico limitou-se a fitá-lo, com as mãos nos bolsos da bata branca.

- Lamento, mas não posso ajudá-lo. Jeff atirou-se a ele às cegas, mas uma mão forte e rápida forçou-lhe o

braço para baixo. - Aconselho-o a não ser violento, Mr. Collins - afirmou o Dr. Lang em

tom agradável. - Acho que já tivemos violência suficiente. Jeff tentou

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novamente bater-lhe. Mas desta vez uma enfermeira entrou seguida de dois porteiros corpulentos, que agarraram cada um num braço de Jeff.

- Se fosse a si, eu ia-me embora sossegado - aconselhou o médico com suavidade. - Ou quer que chame a Polícia?

Jeff ficou atemorizado. Lembrou-se do papel com a lista de ferimentos. Mas a pressão forte dos porteiros enfurecia-o. Sacudiu-os, dizendo entredentes:

- Larguem-me. Já lhes disse: não saio daqui enquanto não souber onde ela está.

Os dois porteiros agarraram-no outra vez e seguiu-se uma luta. A enfermeira foi chamar a Polícia. Quando lá chegaram, Jeff estava fora de si de frustração e medo. Tentou bater nos porteiros, no Dr. Lang e num dos polícias.

- Deixem-me - gritava. - Quero a minha mulher. Quero saber onde está. Como é que se atrevem a esconder-ma!

Levaram-no, ainda a debater-se e a gritar. - Bem - disse o Dr. Lang à enfermeira sombriamente -, não há grandes

dúvidas de onde aqueles ferimentos surgiram. Numa cela nua, quando a fúria ébria se desvaneceu, Jeff sentou-se e

chorou. Queria ir para casa. Queria a mulher. Até queria os filhos. Estava aterrorizado com o que acontecera a Laurie e a si próprio. Não compreendia como é que a vida tinha seguido de repente um caminho tão horrivelmente errado.

- Ande lá - mandou o agente de serviço, puxando-o para o pôr de pé. - Não é preciso chorar. Pode ir para casa depois de prestar declarações. O sargento está à espera.

Quando a provação terminou, tendo ele sido acusado de agressão a um agente e de comportamento desordeiro e ébrio, o sargento declarou: - Julgamento na segunda-feira. Apresente-se a horas. É melhor manter-se sóbrio até lá e não se meter em sarilhos.

- Ai, sem dúvida - garantiu Jeff piamente. - Sem dúvida. Quando Laurie acordou no refúgio, na manhã seguinte a ter saído do

hospital, o pequeno quarto encontrava-se vazio. Ela levantou-se e deu com os miúdos a brincarem no quintal. Correram para ela, que os abraçou e depois deixou voltar para a brincadeira. Decidida a tornar-se útil, foi para

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dentro um pouco zonza e encontrou Jane Everett com um pincel e uma lata de tinta azul a preparar-se para pintar uma porta.

- Não posso fazer isso? - perguntou Laurie. Jane observou-lhe o rosto ensombrado.

- Hoje não - respondeu, sorrindo. - Talvez amanhã. Estamos a tentar alegrar um pouco as instalações.

- Tenho de fazer alguma coisa - disse Laurie com a voz embargada. Jane pousou o pincel e levou Laurie para a cozinha. - Sei que é maçador - continuou, sorrindo -, mas pode ajudar a arranjar

os legumes. Para já, não me parece que deva deitar a mão a nada muito cansativo, sobretudo com três costelas partidas.

Era verdade que as costelas lhe doíam bastante quando se mexia mais bruscamente.

- Está bem - concordou, retribuindo o sorriso a Jane. Parecia uma criança pequena sem saber se era bem-vinda, e Jane sentiu-

se compelida a indagar: - Laurie, que idade tem? - Vinte e sete. - E o Jason tem... - Oito. Deixei a minha família em Sunderland e casei com o Jeff aos

dezoito anos. A minha mãe era contra, mas ele convenceu-me a fugir com ele. Não estava grávida... só mais tarde. - Laurie fechou os olhos e estremeceu. Como descrever quanto Jeff tinha mudado, do homem afectuoso, alegre e risonho que fora? Como ela própria mudara da jovenzinha que ficara tão ofuscada com o encanto dele. - Mas quando o bebé nasceu, ele não gostava de ficar em casa à noite. Estava habituado a divertir-se. Depois, perdeu o emprego. Não conseguia arranjar outro. Convenceu-se de que, se não fosse por minha causa e por causa das crianças, podia ter partido para algum lado. Ser vivaço, solteiro e sem prisões... e desejado. Por isso - Laurie olhou para Jane dolorosamente -, começou a beber um bocadinho mais.

- O que é que por fim a despertou? - perguntou Jane. - Ele ia bater na Midge - explicou Laurie. - Mas foram os cisnes, na

verdade... - Os cisnes? - Sim. A voarem muito alto... mesmo por cima da nossa casa. Tudo se

tornou claro para mim. Algures por aí fora há um mundo. Tinha-me esquecido de como era belo, mas não posso continuar a ignorá-lo nem

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deixar os meus filhos crescerem sem o conhecer. Tenho de sair e encontrá-lo.

- Sim - concordou Jane. - Sim. É claro que tem. Ao fim dessa tarde, falaram do hospital para Jane com a notícia da

prisão de Jeff. Ela ligou para a Polícia e sugeriu que lessem o relatório do médico. Parecia-lhe que havia provas suficientes para conseguir uma acusação de agressão física grave - e conseguir uma sentença proibindo o marido de molestar mais a mulher. Qual era a opinião deles?

Veio uma mulher-polícia jovem ao refúgio para se informar sobre a questão. Verificou que Laurie não estava ainda refeita do recente espancamento.

- Alguma vez recorreu à Polícia? - Sim - suspirou Laurie. - Duas vezes. Uma vez, fiquei assustada e

fechei-o lá fora e ele deitou a porta abaixo. Entrei em pânico e levei as crianças para a esquadra. Deram-me uma chávena de chá e mandaram-me para casa.

- E da segunda vez? - Atirou-me pela janela para o quintal. Fui à Polícia e pedi-lhes para

falarem com ele. Veio um agente comigo, mas nessa altura já Jeff se tinha acalmado. Foi muito sensato. Disse que tinha sido um acidente e que eu era nova, assustava-me com facilidade e era exagerada. Ele é capaz de ser muito persuasivo e encantador quando quer. O polícia acreditou nele.

- Sim - murmurou a mulher-polícia. - Compreendo. Depois, foi-se embora e Laurie começou a tremer. Um suor frio

apareceu-lhe na fronte. As asas, que tinham estado sossegadas a maior parte do dia, de súbito iniciaram uma batida urgente na sua cabeça. Pareciam revoltear e crescer até as suas poderosas penas encherem o ar e taparem a luz. Perante a sua potente investida, Laurie caiu sem um ai.

Foi Penny quem a levantou e a pôs na cama, lhe trouxe uma botija de

água quente e uma chávena de chá. Penny quem se debruçou na cama e lhe disse com um alegre sentido prático:

- Não devia deixar que a perturbassem. Eu não deixo. Que se danem todos, digo eu.

Laurie tentou rir-se. - És um conforto, Penny. - Olhou para o rosto simpático e bonacheirão

da miúda à sua frente e perguntou de repente: - O que é que estás a fazer

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aqui? És demasiado nova para estares aqui connosco, mulheres gastas e cansadas.

Penny abanou o pé para a frente e para trás e baixou os olhos. - Depende do que quer dizer com demasiado nova - retorquiu. Laurie

ficou horrorizada. - Tu? Espancada? - Moída de pancada - assentiu ela. - Sim. Mas eu não era propriamente

esposa. Laurie estava baralhada. - O quê, então? - Filha - ripostou ela com verdadeiro azedume na voz. - Queres dizer

que o teu pai te batia? - Ah, não. Bem, não exactamente... - Fixou os olhos em Laurie quase

com pena. - Não percebe mesmo nada, pois não? - Não - concordou Laurie com um meio-sorriso. - Nada de nada. - Bom,

eu conto-lhe. - O tom- vigoroso e irreverente tinha voltado à sua voz. - O meu pai era um bocadinho excitado, percebe? Gostava de rapariguinhas, por isso... - Baixou os olhos para a sua própria barriga volumosa.

- Oh, meu Deus - exclamou Laurie. - Mas... Que idade tinhas? - Cerca de oito anos quando começou. Não podia dizer à minha mãe... nem a quem quer que fosse, na verdade. Ele ameaçava bater-me se o fizesse. Ele disse que, de qualquer modo, negaria e ninguém ia acreditar em mim. Iam pensar que eu não passava de uma perversa. - Um sorrisinho triste arrepanhou-lhe os cantos da boca. - E no fim foi mesmo isso que pensaram, incluindo a minha mãe.

- O quê? Quando tu... Quando ele te engravidou? - A minha mãe não queria acreditar em mim. Gostava da vida que

tinha. E deu-me a maior das sovas que já apanhei por ser mentirosa e conflituosa e ter uma mente doentia, como ela disse. Depois, pôs-me na rua.

- Mas, Penny. O que é que tu fizeste? Penny deu um suspiro. - O Joe encontrou-me na rua como a encontrou a si. E depois a Jane

assumiu o comando. - Sorriu a Laurie, com a velha e animada alegria a vir ao de cima. - Graças a Deus, existe a Jane, não é?

- Sim, mas, Penny, quantos anos tens agora? O que é que vais fazer? - Tenho quase dezasseis. E hei-de conseguir! A Jane diz que posso ficar

cá como ajudante. - Olhou à volta e pela janela, para o jardim mal-arranjado, e acrescentou, meio para si própria: - Mas não tenho a certeza de querer educar o meu filho aqui. Pelo menos para sempre.

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- Não gostas disto? - É bom. - Penny abanava o pé de novo e franzia o sobrolho. - É seguro.

Ninguém se mete connosco e temos que chegue para comer. Não estou a dizer que não estou agradecida. - Levantou os olhos para Laurie outra vez, sorrindo um pouco. - Mas... Ah, não sei, acho que um bebé precisa de um sítio mais assente.

Laurie suspirou, pensando em Jay e Midge. No dia seguinte, Laurie sentia-se mais perturbada que nunca.

Encontravam-se no escritório de Jane e o ambiente estava carregado de silêncios significativos. Havia uma assistente social, Lois Brown, que era simpática, mas insistente. E havia uma advogada de ar calmo chamada Madeleine Williamson, que parecia ser amiga de Jane. E havia Jane, atenta e neutra. Queriam falar com os miúdos a sós.

- Se não tem objecções estava Lois Brown a dizer educadamente. Mas Laurie, francamente, tinha. - Não são um pouco novinhos para interrogatórios? - indagou ela. -

Sabe - explicou Jane pacientemente -, a Madeleine está habituada a lidar com estas situações. Ajuda muitas mulheres. E se e para ajudá-la com o processo judicial e mais tarde com um divórcio, vão surgir questões sobre quem fica com as crianças, etc. Ela precisa de saber o que sentem as crianças sobre isso e se é seguro deixar o seu marido aproximar-se delas. E Lois também.

- Podia ajudar-nos - confirmou Lois - a ter uma imagem completa. “Uma imagem completa”, pensou Laurie, desesperada. “Como é que

podem alguma vez saber?” Mas em voz alta pediu: - Desde que não os perturbem nem assustem. Disso já tiveram que

chegasse. Olhou, impotente, para Jane, que garantiu: - Temos todas muita experiência, Laurie. Nunca intimidaríamos uma

criança. Na verdade, é mesmo essa a ideia do Esconderijo... Nenhuma intimidação de qualquer espécie.

Laurie fez um sorriso pálido e afastou o cabelo dos olhos. - Desculpem. Sei que estou ansiosa. Mas, sabem... - Nós sabemos muito bem, Laurie, acredite em mim - interrompeu Jane.

- Pode confiar em nós. Mas Laurie não conseguia confiar em ninguém. Ainda não. Naquele

momento, Penny entrou com as crianças. Midge correu logo para Laurie e

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subiu-lhe para o colo. Mas Jason ficou de pé, quieto, a olhar da mãe para as outras mulheres num silêncio interrogativo.

- Jay... - Laurie puxou-o para si. - A Jane e as amigas dela querem só falar contigo um bocadinho. Podes contar-lhes o que querem saber. Basta dizeres a verdade, está bem?

- Está bem - concordou Jason. - Se a mãe quiser... Jane levantou-se decididamente.

- Então, a Laurie e eu vamos fazer um chá para toda a gente - anunciou ela. - Midge, ficas aqui com o Jason, está bem?

Mas Midge fez uma cena. Agarrou-se a Laurie, com os braços apertados à volta do pescoço dela, e chorou.

- Não faz mal - interveio Lois Brown rapidamente. - Falamos só com o Jason. - Dirigiu a Laurie um sorriso tranquilizador.

- De qualquer forma - notou Madeleine Williamson numa voz calma e clara-, acho que a Midge já nos disse o que queríamos saber. Após uma breve olhadela em redor, Penny levou Laurie e Midge para a cozinha. Portanto, agora era a vez de Jason enfrentar os problemas.

- Para já - começou Lois com suavidade -, queres voltar para casa? - Não! - atirou Jason. E a seguir, com toda a franqueza: - Se ele lá estiver,

não. - Gostas de cá estar? - A voz de Lois ainda soava casual. - Mais ou menos. - Jason olhava para ela quase com desprezo. Fazia

perguntas tão óbvias. - Estamos protegidos - explicou ele. - Protegidos de quê, Jason? - indagou Lois ainda com maior suavidade. - Da maldade - retorquiu ele. E depois, vendo que esperavam que ele

continuasse, trocou-lhes por miúdos. - Do meu pai. - Ele batia na tua mãe muitas vezes, Jason? - Sim. Todo o tempo. - E batia em ti ou na Midge? O rosto dele pareceu fechar-se como uma flor à noite. Não respondeu. - Batia, Jason? - insistiu a assistente social. - Sim - confessou ele. - Às vezes. Quando a mãe não estava. - Na Midge

também? Uma espécie de escuridão pareceu encher-lhe então os olhos. - Só quando ela chorava. Eu tentava impedi-lo... - Olhou para ela

desamparadamente. - Mas ele era forte demais. - As mulheres ficaram em silêncio, perturbadas pela voz magoada e cheia de auto-reprovação. - Eu

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bem lhe dizia para ela não chorar - continuou com uma franqueza dolorosa. - E ela conseguia a maior parte das vezes.

Lois Brown retomou num tom falsamente casual: - Suponho... que a tua mãe nunca vos batia?

Então, ele irritou-se de súbito. Os seus olhos pareciam reluzir de incredulidade. -

- A minha mãe? Ela é incapaz de magoar alguém! - Nem mesmo o teu pai?

- Não - respondeu ele com decisão. - Ela costumava dizer que não devíamos odiá-lo. - O seu rosto ficou triste de repente. - Mas eu odeio-o mesmo. Odeio-o por bater na minha mãe e na Midge.

Ficou ali, tenso e na defensiva, a desafiá-las a ambas. Mas antes que pudessem fazer mais perguntas, Laurie voltou a entrar na sala, com Midge a correr atrás dela. Dirigiu-se rapidamente até Jason e voltou-se para as inquisidoras:

- Já chega - declarou. - Não vêem que ele já sofreu demais? E Penny, atrás dela, acrescentou alegremente:

- Olha, Jason, trouxemos-te uma chávena de chá e uma bolacha de chocolate.

Jason não disse mais nada. Mas encostou-se ao braço da mãe. Toda a gente se descontraiu então, e Madeleine Williamson disse a

Laurie: - Ele é um rapazinho muito corajoso. Deve ter orgulho nele. - E tenho - concordou Laurie. A seguir, de certa forma hesitante,

perguntou: - Conseguiram... Descobriram o que queriam saber? - Ah, sim. - A advogada acenou com a cabeça. - Vou representá-la no

tribunal na segunda-feira e, se quiser, depois também. A vida continuava a ser cruel para Jeff. Voltou, depois de sair da

esquadra, para uma casa fria e desarrumada, para um vazio cheio de ecos. Estava furioso com o hospital e com a Polícia, zangado consigo próprio e ainda mais danado com Laurie, que causara toda aquela confusão por ter fugido. Deu uns pontapés de frustração à toa.

No dia seguinte, apareceu uma pessoa à porta que lhe entregou uma intimação judicial. Havia outra acusação contra ele. Estava abismado. Laurie fizera tudo isto? Aquela ratazana miserável? Devia ter encontrado algures um advogado intrometido. Era melhor ele procurar um também.

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Mais tarde, no bar, alguém lhe recomendou um tipo que não era muito careiro. Não ocorreu a Jeff que também não devia ser muito bom. Em vez disso, emborcou uns copos para ganhar coragem e foi logo contratá-lo.

A seguir, sentiu-se melhor. Agora, iam tratar-lhe das coisas. Provavelmente, safar-se-ia com uma reprimenda, disse o advogado.

Voltou ao bar e encostou-se ao balcão para falar com Brenda, a empregada. Era grande e roliça e normalmente alegre, mas também forte que nem um cavalo. Toda a gente gostava dela.

- Bebe um à minha conta- convidou Jeff, acenando com uma nota numa mão ousada.

- Porto e limão, obrigada - replicou Brenda. - E tu? - Whisky - pediu ele. - Estou a afogar as mágoas. - Ai sim? Porquê?

- Estou muito só - suspirou como um menino perdido. -A minha mulher foi-se embora.

- Lamento. Jeff mirou Brenda apreciativamente. Não era nada feia, na verdade. Boa

pele e um sorriso bonito quando queria. E ele gostava bastante delas roliças, sobretudo depois daquela escanzelada da Laurie.

- O que é que fazes quando saíres do trabalho? - indagou, depois de um gole para dar coragem.

- Nada que te interesse - replicou Brenda. - Tens a certeza? - perguntou Jeff, transmitindo todo o encanto de que

era capaz. - Bem - Brenda mirou-o -, veremos... Quando o caso foi a tribunal, Jeff estava a sentir-se melhor. Brenda não

queria ir lá a casa. Não queria envolver-se em nenhum sarilho. Mas tinha-o deixado subir ao apartamento dela, por cima do merceeiro. Não passou pela cabeça de Jeff descarregar as suas frustrações nela como fazia com Laurie. Ela era dura. Não suave e frágil e mesmo a pedir que lhe chegassem. Não, esta era capaz de lhe dar uma sova a ele, se quisesse. Entretanto, fazia-o sentir-se o maior e devolveu-lhe a arrogância no andar.

Mesmo assim, precisou de uma ajudinha antes de entrar no tribunal. Quando se encontrou com o advogado, estava confiante e agressivo por fora e muito assustado por dentro. As coisas pareceram acontecer num nevoeiro. Não compreendeu o que estava a passar-se. Respondeu às perguntas deles

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com ar carrancudo, com repentes de rebeldia, e depois tentava forçar-se a ser calmo e encantador.

- Queria só ver a minha mulher - pediu com ar razoável. - Quando foi a sua brutalidade que a pôs no hospital? Era a advogada

de Laurie. Era esperta. - Um erro... - resmungou ele. - Perdi a cabeça. Lamento... - Quando isto já durava há anos? Tenho uma declaração em como a sua

mulher já tinha pedido a protecção da Polícia pelo menos por duas vezes anteriormente.

Falou-se mais um bocado, mas o magistrado parecia não estar disposto a prolongar as coisas.

- Três meses pela primeira acusação - disse com voz áspera - e mais um mês pela segunda. E vai ser obrigado a ter uma conduta irrepreensível e não se aproximar, molestar ou perseguir a sua mulher, seja de que maneira for, durante um ano.

Madeleine Williamson pensou para si própria com amargura: “Sim. Três meses por ter tentado agredir um agente da autoridade e um mês por quase matar a mulher. É assim a vida. Mas pelo menos vai estar fora da circulação enquanto aquela coitada recupera.”

Jeff não podia acreditar. Cadeia? Ele? O que é que tinha feito para merecer isso? Um homem tinha o direito de fazer o que quisesse à sua mulher dentro da sua própria casa. Não tinha? Não era justo.

De súbito, levantou-se e gritou tudo isto a plenos pulmões. Mas não serviu de nada. Empurraram-no para fora da sala, ainda a gritar e a tentar explicar-se. Foi para a cadeia. E tudo por culpa de Laurie.

Parte II Levantando voo Laurie estava no Esconderijo havia mais de uma semana, ainda exausta

e confusa, quando recebeu uma visita. Um vulto quadrado e moreno entrou no quarto atrás de Penny, e, ao avançar, Laurie reconheceu-o num repente súbito de memória.

- Sou eu, o Joe - disse ele. - Então, como vai isso? - Melhor. - Laurie sorriu. - Muito melhor, obrigada.

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- Estávamos cá a pensar, a Penny e eu, se gostaria de ir dar um passeio pelo campo. Quer dizer, você e os miúdos. - Mirava-a com olhos castanhos brilhantes e atentos. - Pensei que talvez, aqui fechada, lhe soubesse bem uma mudança. Tenho de ir buscar hortaliças, percebe?

- Pensei que tinha um quiosque nocturno de cafés. - Tenho - concordou Joe. - Hortaliças de manhã, café à noite. - Foi você

quem me trouxe para o refúgio da Jane. - Fui. - Sorria com conhecimento e simpatia. - Bem, obrigada - atirou Laurie. - Provavelmente, salvou-me a vida, e a

das crianças também. - Esqueça isso, menina. Bem, e quanto ao campo? - Ah, Joe! É uma óptima ideia. - Ela resplandecia. - Campo a sério? - Campo a sério. - Sorriu. - Prados verdes e tudo. - Vá lá - pressionou Penny. - Não desperdice tempo. Vou buscar os

miúdos. - Voltou-se para Joe. - Faço umas sanduíches? - Não - replicou ele. - Hamburgers e batatas fritas por minha conta.

Vamos fazer um dia de festa. Riram-se todos. Parecia um piquenique da escola. A velha carrinha verde de Joe matraqueou pelo meio dos campos

verdes da rica província de Kent até chegar a um caminho comprido e arenoso com uma casa de quinta ao fundo. De um lado do caminho, havia campos planos de grelos e couves, cenouras e cebolas e filas de morangos serôdios, com os apanhadores ainda a deslocarem-se por entre eles. Do outro lado, havia pomares verdes alinhados, com as suas macieiras carregadas de fruta rosada, e para lá dos pomares havia altas alas de lúpulo a crescer em latadas, como sólidas paredes cobertas de folhas. Grupos de pessoas aglomeravam-se à volta de sacas de serapilheira, apanhando o lúpulo verde e vistoso.

Quando Joe conduziu a carrinha para dentro do pátio, Laurie e os outros viram um celeiro de aspecto estranho, com um belo telhado circular de antigas telhas avermelhadas, encimado por um alto cata-vento. - O que é aquilo? - indagou Jason, apontando para ele.

- A casa do forno onde secam o lúpulo. - Joe apontou o polegar para um tractor que se movia entre altas paredes de hastes de lúpulo em cascata. - Estão a apanhá-lo agora, vês? Toca a sair!

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Enquanto Joe foi carregar a carrinha com produtos, Penny e as crianças correram alegremente por uma das longas alamedas verdes de lúpulo. Laurie seguiu-os mais devagar. Ainda lhe doía andar depressa, e as costelas doridas dificultavam-lhe a respiração, mas era maravilhoso estar ao ar livre, com aqueles vastos céus límpidos e navios de nuvens brilhantes navegando por cima de si. O cheiro estranho e pungente do lúpulo misturava-se com o cheiro mais doce das maçãs dos pomares. Sentia a cabeça mais desanuviada do que há muitos dias. As asas pareciam não bater de todo lá dentro. Na realidade, tinha uma estranha sensação de liberdade.

Uma das apanhadoras, uma mulher grande, levantou os olhos para Laurie e sorriu. Trazia um avental de serapilheira amarrado à volta da saia de algodão, e as grandes mãos estavam manchadas do verde e dou rado do lúpulo, que ela deitava para dentro do saco. A família trabalhava à volta dela em equipa.

- Vem juntar-se a nós? - perguntou a mulher. Laurie hesitou, observando quão habilidosamente os dedos dela

tiravam o lúpulo da haste e o separavam das folhas. - Costumava haver mais gente - continuou a mulher com melancolia. -

Mas as máquinas são mais rápidas. Hoje em dia, já não nos querem na maior parte dos sítios.

Laurie acenou com a cabeça. - Mas aqui querem? - Claro. O Stan é um bom patrão. - Há muito tempo que vêm para aqui? A mulher riu-se. - Mais do que quero lembrar-me! - Olhou de soslaio a plantação de

lúpulo, protegendo os olhos do sol. - O verificador vem aí - afirmou ela. - Há competição hoje para ver quem é o apanhador mais rápido... com prémios e tudo. - Apontou para um outro grupo de apanhadores. - Aqueles são jornaleiros. Vêm todos os dias de autocarro. - Piscou o olho a Laurie. - Mas não conhecem o ofício como nós.

- Qual é o prémio? - perguntou Laurie, sorrindo. - Não sei. P'raí uma garrafa de cerveja. Ou cidra. - Olhou de esguelha

para Laurie e perguntou: - Vai cá ficar muito tempo? - Não -suspirou Laurie. - Quem me dera... - Parece-me que lhe faria bem - comentou a mulher com perspicácia.

Estendeu o olhar para. as alas altas e verdes onde Jason e Midge brincavam entre um grupo de crianças aos gritos e continuou num tom surpreendentemente mais suave: - Faz muitíssimo bem aos miúdos e tudo.

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Laurie concordou. Havia muito, muito tempo, que não via as crianças tão descontraídas e sem medo. Até Penny dava a impressão de ter perdido um pouco do ar pesado e corria com os miúdos. Laurie ficou comovida pela visão do seu abandono infantil. Afinal, lembrou a si mesma, a própria Penny ainda era apenas uma criança.

- Porque não fica? - sugeriu a mulher com suavidade. - Há lugar nas cabanas e ainda há muito lúpulo para apanhar enquanto o tempo está bom. Acho que dava jeito ao patrão.

Laurie mirou-a. Todo o tipo de possibilidades amontoava-se-lhe na cabeça. Mas não disse nada. Exactamente nessa altura, o verificador, alto e esguio - Spider -, dirigiu-se para elas. Relanceou uma olhadela em volta, com ar experiente, pelas protuberâncias verdes nos sacos. Após um cálculo arguto do volume, começou a tirar o lúpulo e a atirá-lo para dentro do seu cesto de alqueire, a contar enquanto o fazia e despejando-o para os grandes sacos que iam ser postos no tractor e levados para a secagem.

- Três... quatro... cinco... - a voz continuava, monótona. Depois, somou-os todos e escreveu no bloco-notas preto. - Estás à frente até agora, Dorrie - afirmou, sorrindo, para a mulher.

- E aqueles outros ali? - perguntou Dorrie, continuando a debulhar lúpulo para dentro do saco vazio enquanto falava.

- Nem perto - retorquiu ele, rindo-se. Depois, pôs outra vez o boné sobre o cabelo ruivo e olhou para Laurie. - É nova aqui, não é?

- Estou só de visita - respondeu Laurie com timidez. Ele reparou como o longo cabelo louro brilhava ao sol e como aqueles

olhos azuis, tão fortemente marcados pelo cansaço, o miravam do fundo de uma fortaleza de decisão escondida e profunda.

- Bem - retorquiu - divirta-se! - e passou ao grupo seguinte de apanhadores.

Algures no outro extremo, perto da estrada, uma campainha como a de uma carrinha de gelados ecoou pelo ar rescendente a lúpulo.

- A comida chegou - exclamou Dorrie, e bamboleou-se na direcção do som da campainha. De toda a plantação de lúpulo e dos pomares e campos longínquos, apanhadores e crianças acorreram, numa multidão chilreante e alegre.

- Hamburgers e batatas fritas - anunciou a voz de Joe mesmo atrás de Laurie. - Como prometido. Vamos lá.

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Sentaram-se num banco cheio de pó e marcas de pés e comeram hamburgers em papéis gordurentos, lambendo o sal dos dedos. Era a primeira vez que Laurie sentia fome desde... desde Deus sabia quando, e reparou que Jason e Midge já tinham devorado a sua parte e olhavam à volta à procura de mais. Penny entregava-lhes, a rir, as suas batatas fritas para os manter sossegados.

Joe observava-os a todos com olhos experientes, mas não dizia nada. Depois, afastou-se e comprou gelados para todos.

- Mãe - declarou Jason com a boca cheia -, gosto disto aqui. Não podíamos cá ficar?

- Ficar! - concordou Midge, e comeu outra batata frita. Laurie desviou os olhos deles para Penny e suspirou.

- Bem, e porque não? - replicou Penny. - Fazia-nos bem. - Fazia-nos... ? - murmurou Laurie, com uma questão mais profunda em

mente. - Sim, a nós - confirmou Penny. - Para onde forem, eu também vou. -

Depois, corou com súbita timidez e sacudiu o cabelo ruivo ao sol. - Isto é, se não se importar.

Joe regressou então com os gelados, e Laurie tentou pagá-los em vão. - Mas eu tenho algum dinheiro, Joe. O pessoal da Segurança Social deu-me um subsídio de emergência para eu me orientar. A Jane tratou disso.

- Ela contou-me - resmungou Joe. - Mas isto é um presente, percebe? Laurie olhou para o seu rosto determinado e percebeu. Agradeceu-lhe

com seriedade. - Tem razão, claro. Não posso esbanjá-lo. Só Deus sabe de onde virá o

próximo. Estava a pensar se não podia ganhar algum aqui. - Aqui? - perguntou Joe. - Quer dizer, a apanhar lúpulo? - Porque não? - Ela relanceou os olhos pelas caras das crianças, que a

fitavam em súplica muda. - Eles adoram isto, Joe, o espaço e o... a verdura. Depois de Londres é tão limpo.

Se Joe ouviu o tom de dor na voz dela, preferiu ignorá-lo. - Está preparada para trabalhar então? - indagou. Mirou-a com ar

severo. - Não seria muito conveniente andar por aí a desmaiar pelos cantos outra vez... - Laurie apercebeu-se do brilho no olhar dele e riu-se. - Outra coisa - continuou ele, sério. - Se ficar aqui, a Jane pode não ter quarto vago quando você voltar.

Laurie acenou que sim.

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- Eu sei. Mas não posso lá ficar para sempre, Joe. - Afastou o cabelo dos olhos num gesto familiar de ansiedade. - Não é bom para os miúdos. Pelo menos permanentemente, quero dizer.

Joe concordou. - O que é que gostaria de fazer então? Laurie respirou fundo e levantou os olhos para o céu azul. - Gostava de:,. - murmurou - de me afastar de Londres - “... e de Jeff e

da sua raiva”, pensou - para um sítio calmo. Talvez perto do mar, onde fosse limpo... e eu pudesse trabalhar.

Joe ficou em silêncio por momentos. A seguir, meio a sorrir, perguntou: - O que é que sabe fazer então, para além de colher lúpulo? Laurie

suspirou. - Pouco. Sei cozinhar qualquer coisa e limpar uma casa, creio. E tratar

de um jardim. - Suspirou de novo. - Costumava ajudar o meu pai com no jardim quando voltava do banco.

- Do banco? - A voz de Joe soou mais penetrante. - Ah, sim, esqueci-me. Sei fazer balancetes de contabilidade. O meu pai

era subgerente do banco local. Arranjou-me lá um emprego. - Você vale o seu peso em ouro, rapariga - comentou Joe. Depois, deu uma vista de olhos às plantações de lúpulo. - Quer mesmo ficar aqui?

- Se houver trabalho. - Vou ver - ripostou Joe, mirando-a com ar duvidoso. - E eu? - exigiu

Penny. - Posso colher. - Nada de muito pesado - protestou Joe. - No teu estado, não, rapariga!

O Stan não ia gostar disso. - Pensou por instantes. - Há os grelos - afirmou devagar. - E os morangos serôdios ainda. Mas isso é agachar demais.

- E daí? - bufou Penny. - Não. sou de vidro. Ele abanou a cabeça. - Para que é que vou pôr o Stan em dificuldades? Mas elas continuaram a olhar para ele com um apelo urgente nos olhos.

Joe suspirou. - Está bem, está bem, vou pedir-lhe. - Sentia uma necessidade urgente

de dissipar a ansiedade do olhar de Laurie. - Mais alguma coisa que queiram?

- Cisnes declarou de súbito Laurie, a olhar para o vasto céu. Joe pareceu espantado.

- Cisnes? - indagou. - Bem, há o rio ali mesmo ao fundo, em baixo. O lamacento Medway. Porque não vão ver enquanto falo com o Stan?

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Laurie,. com Penny e as duas crianças a dançar à frente dela, desceu até ao rio vagaroso. As margens estavam cor de ferrugem com as ervas do fim de Setembro, mas ainda floridas, com balsaminas e ulmeiras. Umas galinhas-d'água e galeirões chapinhavam por lá entre os canaviais e um casal de patos-reais vogava rio abaixo.

- Ali! - disse suavemente Jason, apontando um dedo, excitado. - Ali estão eles. Era o que queria?

E além, flutuando pacificamente na superfície serena do rio, estavam dois cisnes calmos e graciosos.

- Não são lindos?- sussurrou Laurie, e afundou-se na relva para os observar, com os olhos rasos de lágrimas inesperadas.

Penny olhou para ela de lado e depois, afastou-se e começou a falar com Jason muito a sério sobre patos-reais e barcos. Afastaram-se lentamente, com Midge segura com firmeza pela mão.

Laurie sentou-se ao sol a observar os sossegados cisnes, que navegavam tão orgulhosos à frente do vento, como garbosos veleiros de outras eras. Nessa altura, pareceram acordar do seu deslizar sonolento, quase como se tivessem sido chamados, e começaram a nadar na direcção de uma pequena língua de terra saliente. Ao chegarem aos baixios cheios de juncos, Laurie viu a figura de um homem delineada contra o sol. Quase parecia fundir-se com a paisagem, de tão quieto que estava, plantado direito na margem do rio, como uma árvore a crescer.

Laurie afastou o cabelo dos olhos para observar novamente. Ele ergueu uma mão para os cisnes, como que a cumprimentar velhos amigos, e eles aproximaram-se bastante, de tal modo que, inclinando-se, ele acariciou a bela curva das suas cabeças e longos pescoços brancos. Enfiou a mão num bolso e tirou um pouco de comida, e eles comeram-na da sua mão com uma dignidade calma. Depois, fez-lhes uma carícia final e Laurie ouviu o fraco murmúrio da sua voz quando ele se afastou deles e se aproximou dela.

- Fortaleçam-se pareceu-lhe ouvir. Ela não se mexeu. Ficou sentada a observá-lo enquanto ele se

aproximava com passos longos e lentos. Parecia quase hipnotizada pela sua presença, como os cisnes estavam. Era tão calmo e pacífico. Uma sensação extraordinária de libertação e felicidade parecia avolumar-se dentro de Laurie ao vê-lo chegar, uma sensação de quase reconhecimento. Ali estava alguém sem medos, intocado pelas sementes da raiva ou do despeito, que estendia os braços para os cisnes com mãos meigas e compassivas. Alguém

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que caminhava pelo mundo sarapintado dos campos húmidos, não como se o possuísse, mas como se fizesse parte dele.

Quando ele se aproximou, Laurie deu por si a olhar para um rosto moreno e magro, com rugas finas à volta de olhos perspicazes, de um profundo cinzento de sombra de nuvem, que a miravam numa interrogação amigável. Tinha cãs prateadas no cabelo castanho e ligeiramente encaracolado, que se erguia de uma testa alta e abaulada. E a boca era bondosa, embora Laurie suspeitasse de que seria capaz de se tornar severa em certas ocasiões.

Ele, por seu lado, viu uma rapariga frágil e pálida com longos cabelos louros que brilhavam ao sol e olhos que eram demasiado grandes e demasiado escurecidos por sombras, mas que já deviam ter sido de um azul-genciano límpido.

- São seus? - indagou ela. - O quê? - Os cisnes. - Ah... Ah, não. São cisnes-bravos, completamente selvagens e livres. -

Sorriu-lhe e o sol pareceu dardejar e dançar-lhe no rosto. - Mas... conheciam-no. - Isso é porque os encontrei feridos, e os tratei. Mas já estão bem de

novo e livres de partir e voltar. - Livres? - murmurou Laurie, como se fosse uma palavra que não

conhecia. - Só voltam porque sabem que sou amigo e é seguro - explicou ele, e

havia ternura no seu sorriso. Porque sabem que sou amigo e é seguro. Laurie fechou os olhos por

instantes, fazendo retroceder lágrimas estúpidas. Quando voltou a abri-los, ele estava sentado na margem ao seu lado.

- Há muitos cisnes no rio? - Bastantes. Não tantos como era costume haver. - Porquê? - Fazem-lhes mal... E eles morrem. - A expressão dele tornou-se

sombria. - O que é que lhes acontece? - Tudo. Ficam presos em linhas de pesca, dão-lhes tiros, ficam com

anzóis presos nas gargantas, são atacados por pessoas nas margens ou nos barcos.

- Atacados? Cisnes?

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- Ah, sim. Espancados com remos. Amarrados a uma árvore e usados como alvo de setas. Atropelados por barcos a motor e cortados pela hélice. Nem pode imaginar.

Os olhos de Laurie estavam arregalados e quase negros de fúria. - Porquê? O que é que nós, seres humanos, temos? Porque é que somos

tão violentos? - Estremeceu. - Acho que é uma espécie de desespero - murmurou ele. - Desespero? - Sim, desespero. De que a vida possa ser tão feia e desapontadora.

Laurie fez que sim com a cabeça. - Por isso espancam? - Conhecia o padrão. - Mas não é, claro - acrescentou ele com o olhar pousado nos cisnes. - O que é que não é? - A vida não é desapontadora e feia. - Não é? - Não - respondeu ele. - Nem sempre. Exactamente nessa altura, nos longínquos pomares, um tiro soou e a

seguir uns gritos e uma série de detonações agudas como chicotadas. Laurie deu um salto e começou a tremer.

- Não faz mal - afirmou o homem dos cisnes. - Espanta-pardais. Normalmente, põem estes engenhos nos pomares depois de os apanhadores irem para casa. Salva muita fruta.

- Ah! - Laurie tentava em vão parar de tremer. - Que tolice assustar-me...

Ele mirou-a com gravidade. - Leva tempo - declarou de forma obscura. - Às vezes, os cisnes que

salvo levam muito tempo. - Le-levam? - Parecia mais do que uma simples pergunta. - Ao princípio, não suportam ser tocados. - Ele não olhava para ela

agora, tinha o olhar perdido no rio. - Assustam-se com qualquer som. Até uma colher a tirar comida de um prato de alumínio fá-los retesar com medo. Detestam os homens. - Continuava a não olhar para ela.

- Não se pode culpá-los, pois não? A violência marca profundamente. - Sim - sussurrou Laurie.

- Mas por fim aprendem a confiar em mim - afirmou com a voz viva de compaixão. - E vêm comer-me à mão, como viu!

Laurie fez um sorriso cheio de dor. - Sim, vi. - Ao longe, na margem, ouviu as vozes de Penny e das

crianças, que regressavam.

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- Vai melhorar - murmurou ele para ninguém em especial, e observou as figuras pequenas que se lhes dirigiam.

Midge correu para a mãe, palrando com alegria de patos e nenúfares. Mas Jason aproximou-se dela devagar, de olhos pregados no seu rosto, e estendeu-lhe uma longa pena branca de cisne que tinha encontrado.

- Mãe? - chamou, e pousou a pena no seu colo. Não disse mais nada, mas no seu olhar estranhamente maduro Laurie

viu uma nova tranquilidade e nítida compreensão. “Eu sei”, dizia. “Eu sei que nunca houve tempo para se sentar numa

margem de rio e olhar para os cisnes. Sei que quando uma coisa é bela isso fá-la chorar. Mas eu estou aqui. E a Midge está aqui. E a Penny. E estamos seguros. Não há nada aqui para nos atemorizar. Está tudo bem.”

Laurie estendeu a mão e apanhou a macia pena de asa. Avassalou-a um desejo súbito e pungente de se meter no rio e mergulhar bem fundo, até que todo o seu velho ser e a sua antiga vida tivessem sido expulsos dela e lavados para que pudesse vir à superfície completamente nova e limpa, como os puros e imaculados cisnes que deslizavam tão orgulhosos, totalmente curados e livres. Mas em voz alta comentou apenas:

- Um pequeno pedaço de liberdade, Jay - e levantou a pena brilhante na luz do sol de fins de Setembro.

O homem ao seu lado tocou na pena. Sorriu-lhe, e havia no seu olhar compassivo a mesma consciência e tranquilidade que ela vira nos olhos de Jason.

- Vai haver outros - afirmou suavemente; depois, levantou-se e afastou-se deles em direcção ao sol.

Stan concordou em contratá-los pelo menos durante a semana seguinte,

uma vez que a apanha estava quase no fim. Laurie abraçou Joe e foi telefonar a Jane, que aconselhou:

- Tire o máximo partido disso! Para Laurie, Penny e as crianças começou então um tempo de

inesperada paz e liberdade. Os alojamentos eram simples mas limpos, as cabanas tinham sido caiadas por dentro recentemente. Havia uma cozinha comunitária, mas a maior parte das famílias preferia fazer os seus cozinhados em fogões de campismo a gás ou fogueiras no chão plano e espezinhado em frente das cabanas. Isto proporcionava reuniões de

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convívio envolvidas pelo cheiro rodopiante do fumo das fogueiras nas noites frescas de Setembro.

Toda a gente era simpática, e alguém emprestou a Laurie uma panela velha enegrecida e uma lata de feijão até ela poder abastecer-se na loja ambulante que vinha no dia seguinte; Penny conseguiu que a mulher do lavrador lhe arranjasse uns ovos e leite e outra pessoa deu-lhe uma velha chaleira, chá e meio-pão escuro “para remediar”, por isso aquela primeira noite pareceu-lhes um banquete.

Levantavam-se cedo, tal como os outros, e iam para as plantações de lúpulo. Trabalhavam todo o dia ao vento e ao sol, arrancando o lúpulo verde-claro das hastes, e à noite sentavam-se às fogueiras e cozinhavam mais feijão, salsichas no espeto e batatas assadas nas brasas.

O verificador, Spider, afeiçoara-se a Laurie, e uma noite aproximou-se em grandes passadas da fogueira dela e ficou de pé a mirá-la na luz que diminuía.

- Importa-se que me junte a vocês? - Como queira - retorquiu Laurie. Ele fitou-a atentamente antes de se sentar na relva amassada. O rosto

dela tinha perdido algum do seu ar cansado e atormentado, mas ainda havia sombras sob aqueles olhos azuis.

- Está sozinha, é? - indagou ele. Laurie olhou para ele com firmeza. - Sim - ripostou, e a seguir ouviu a sua própria voz continuar: - E

tenciono manter-me assim. Spider riu-se e esticou as pernas compridas na relva. - Não seja assim.

Só estava a perguntar. Laurie suspirou. Serviu-lhe chá numa caneca de alumínio e deitou-lhe

algum leite. - Tome - ofereceu. - Lamento, mas não tenho açúcar. - Observou-o por

instantes em silêncio enquanto ele beberricava o chá, e percebeu que ele estava a magicar como haveria de prosseguir. - Ouça, Spider - declarou de repente. - Lá porque tenho cabelo comprido e olhos azuis não quer dizer que seja presa fácil para qualquer homem que apareça.

- Eh, espere lá. Eu não quis dizer... - Não? - exclamou ela, incrédula. - Bem, de qualquer forma, não sou. -

Mirou-o de novo, quase com desespero. - Para lhe dizer a verdade, Spider, estou um bocado farta de homens.

Ele olhou-a de relance, meio a sorrir. - A sério?

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- Sim, a sério. Isto é, a não ser que você consiga tratar-me como qualquer outro trabalhador, homem ou mulher. - Voltou a mirá-lo com perspicácia, quase como se esperasse ver algo na cara dele que lá não estava. - Sabia-me bem ter um ou dois amigos normais - murmurou meio para si própria.

Spider sorriu e esvaziou a caneca de chá. - Mensagem recebida e entendida - declarou, e levantou-se. Laurie

sentiu um ligeiro tremor de desilusão. Seria impossível a amizade normal com Um homem?

Mais tarde nessa noite, quando estavam deitadas lado a lado no escuro,

Laurie pediu a Penny: - Eras capaz de me cortar o cabelo? Penny estava meio adormecida, mas apoiou-se num cotovelo para

espreitar Laurie, abismada. - Cortar-lhe o cabelo? O que é... quer dizer, curto? - Sim, curto. Bastante curto. - A sua voz soava decidida. - Acho que sim,

desde que tenha uma tesoura. - A Dorrie deve ter. Deu a impressão de que ia levantar-se e perguntar-lhe logo naquele

momento, mas Penny aconselhou numa voz calma: - Amanhã de manhã. Quando houver luz. Não posso fazer isso agora...

podia arrancar-lhe a cabeça! - Riram-se baixinho no escuro. - Porquê? - indagou Penny. - Por causa do Spider?

- Não, mas... - Laurie hesitou.- Decidi que tenho de ser diferente de agora em diante.

De manhã, pediram a tesoura emprestada a Dorrie, e quando as longas

madeixas douradas jaziam em molhos aos pés de Laurie, Midge pareceu que ia chorar. Mas Jason afirmou determinado:

- Fica-lhe a matar. Parece um rapaz, só que mais bonito. Laurie riu-se. Parecia-se, de facto, mais com um rapaz delgado e frágil,

com o corte escadeado e laivos de sardas do sol de Outono. Tentou ver o seu reflexo na panela com água em cima da fogueira. Uma imagem pálida e tremeluzente de uma desconhecida, nova e decidida, olhava para ela. “Toda nova”, pensou. “Tenho de começar de novo.” Mas só disse:

- Gosto. Faz-me sentir bastante forte!

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Após o trabalho desse dia, Laurie foi à quinta buscar mais ovos e leite. No escritório, ao lado da vacaria, Stan, um homem forte de cabelos cor de areia, com mãos grandes, estava sentado à secretária a rever dolorosamente os números para calcular a colheita do dia. Spider encontrava-se de pé a seu lado. Quando Laurie passou pareceu ficar boquiaberto perante o aspecto dela. Assobiou elogiosamente.

- Santo Deus - exclamou. - O que é que você fez? Laurie abanou a cabeça loura.

- O meu novo eu - explicou. - Precisava de uma mudança. - Começou a afastar-se.

- Espere um bocadinho - chamou Stan, levantando-se. - O Joe diz que você percebe de contabilidade. É verdade?

Laurie hesitou. - Sei somar dinheiro e fazer um balancete. Stan convidou-a a entrar e mostrou-lhe os registos complicados e

riscados dos seus livros. - Isto faz algum sentido para si? - indagou. - É possível... - respondeu Laurie cautelosamente. Stan suspirou de

alívio. - Quer encarregar-se disto? É menos duro do que a colheita. Laurie

abanou a cabeça, pedindo desculpa. - Não. Tenho de estar com as crianças. É importante para elas sentirem-

se seguras neste momento. - Stan e Spider ficaram nitidamente desiludidos. - Mas talvez pudesse vir durante uma hora, à tarde.

A cara de Stan abriu-se num sorriso. - Podia? Tirava-me um grande peso de cima. - Olhou dela para Spider

com um certo pesar. - Não tenho grande cabeça para números... não tenho mesmo.

- Já somos dois - retorquiu Spider. Laurie sorriu. - Está bem. Amanhã. -Hoje não? - Não, desculpe. Prometi aos miúdos ovos para o lanche. Tenho de

voltar. Saiu do escritório muito calmamente. “Acho que o corte de cabelo me

tornou mesmo mais forte”, pensou. Com a colheita do lúpulo e o trabalho na contabilidade de Stan,

passaram-se alguns dias antes de Laurie ter oportunidade de descer novamente até ao rio para ver os cisnes. Ou seria o homem dos cisnes que

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ela queria ver? Não sabia. Mas algo lhe martelava a mente e a atraía para aquele lento rio castanho...

Uma tarde chovia, por isso pararam de trabalhar cedo, incapazes de apanhar o lúpulo enquanto estava húmido. Penny e as crianças ofereceram-se para fazer o jantar, e assim Laurie saiu sozinha para passear à chuva.

Ainda havia alturas em que as recordações de Jeff a atormentavam. Alturas em que se sentia torturada pela culpa de ele estar na cadeia. Mas depois lembrava-se das cenas de violência. Passeando ao longo da margem do rio, perseguida por estes pensamentos, quase esbarrou com o homem dos cisnes, que estava agachado à borda d'água com um deles nos braços.

- Desculpe - sussurrou, ansiosa por não assustar a ave ferida. - Posso ajudar? - Deixou-se cair na relva húmida ao lado dele.

- Um anzol na garganta- explicou ele. - Está a sufocar. - Mirou Laurie, como que a avaliá-la. - Sim. Veja se consegue mantê-lo quieto enquanto lhe enfaixo as asas.

De uma maleta de médico que se encontrava aberta na relva junto dele tirou uma longa tira de pano. Enrolou-a com presteza à volta das poderosas asas, mantendo-as bem junto do corpo do cisne para que o animal não pudesse debater-se.

- Um golpe destas asas - explicou - pode partir um braço ou uma perna sem mais nada.

Laurie segurou a ave magoada nos braços, sentindo o calor do peito sedoso nos dedos e o bater selvagem e agitado do coração enquanto o cisne se esforçava por respirar. “Era como eu me sentia”, pensou. “Agitada e desesperada, quase a morrer de medo.”

Logo que o cisne ficou bem seguro, o homem estendeu a mão para o saco e tirou um fórceps fino. Com cuidado e delicadeza, obrigou o bico a abrir-se e começou a procurar.

- Está muito fundo - afirmou entredentes. - Se calhar não consigo chegar-lhe. - Mas continuou a tentar.

E Laurie continuou a segurar firmemente a ave. - Fica quieto, cisne - trauteou. - Ele não te vai magoar. Vais ficar melhor

não tarda. Por fim, o homem dos cisnes torceu o ferro um pouco e deu-lhe um

puxão ligeiro e seco. - Cá está! - exclamou, triunfante, e retirou a mão da garganta do cisne.

Entre as estreitas lâminas do fórceps, encontrava-se um anzol de aço com

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um pedaço de fio de nylon agarrado. O cisne teve uma náusea convulsiva, pareceu arquejar e a seguir começou a respirar mais normalmente.

- Está tudo bem, meu amigo - afirmou o homem, sorrindo um pouco e afagando o longo pescoço com uma mão consoladora. - Vais ficar bom depois de um descanso. Vou levar-te para casa agora. - Levantou-se e olhou para Laurie. Agora que a ave estava livre de perigo, parecia vê-la melhor. Tocou ao de leve numa madeixa do cabelo certinho. - Outro pequeno pedaço de liberdade?

Ela sorriu-lhe e continuou com as mãos à volta do cisne, até que ele se baixou e meteu a ave abatida debaixo do braço.

- Vem? - Ficou de pé a observá-la, enquanto ela hesitava. - Pode ajudar-me a deitá-lo.

Caminharam juntos ao longo da margem, sem pressas, com medo de perturbar o cisne.

- Como se chama? - indagou Laurie. Ele voltou-se e sorriu-lhe. - A maior parte das vezes, chamam-me aquele tontinho dos cisnes,

Harper. Mas os meus amigos chamam-me Clem. E você? - Eu? Laurie. - Então, venha lá, Laurie - convidou. E alargou um pouco as passadas,

de tal modo que ela teve de esticar as suas pernas para conseguir acompanhá-lo.

Chegaram por fim a uma curva do rio e a uma pequena represa, onde se encontrava uma velha roulotte apoiada em tijolos e atrás dela, meio escondida numa confusão de salgueiros verdes, uma casinha com telhado de telhas avermelhadas e um amontoado de telheiros e anexos. Havia um lago artificial perto da casa, escavado a partir da represa, onde Laurie viu um grande número de cisnes e outras aves aquáticas a nadarem em pacífica reclusão.

Clem abriu a porta da cozinha com o ombro e pousou o seu fardo num cesto baixo e largo cheio de juncos secos e ervas. Fez uma última festa meiga à ave e virou-se para Laurie.

- Pão com queijo? - ofereceu. - E chá? Vamos sentar-nos lá fora a ver os cisnes. A chuva parou.

Sentaram-se juntos no degrau da cozinha, rodeados por um mundo aquático e verde, sereno e tranquilo. Não falaram muito, mas crescia entre os dois uma sensação de companheirismo e de curiosa união sem palavras. Nenhum deles a entendia; nenhum deles a questionava. Laurie sentiu anos

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de tensão e medo a abandonarem-na. Finalmente, mexeu-se e disse baixinho:

- Tenho de ir andando. Ele não tentou retê-la. Voltou para ela o seu sorriso meigo e lento e

acenou em concordância. - Voltamos a ver-nos - declarou. Estava a fazer uma afirmação, e não

uma pergunta. Laurie mirou-lhe o rosto e respondeu: - Voltamos, claro. Mas no fim da semana Laurie não voltara a ver Clem, e Joe devia estar a

vir comprar hortaliças e a levar o pequeno grupo de volta. Ela descobriu que estava a ficar apavorada com isso. Não queria regressar ao Esconderijo nem aos seus urgentes problemas de habitação, advogados e papéis de divórcio. Queria ficar numa plantação de lúpulo do Kent, com o Medway a correr ao lado e os cisnes. E Clem? Sim, respondeu a si própria. Queria ser como os cisnes que ficavam perto de Clem, porque sabem que sou amigo e é seguro.

Mas sabia que não podia ficar. Tinha uma vida a reconstruir. Três vidas, porque Jay e Midge estavam tão marcados como ela pela violência e tensão. Precisavam de segurança, de uma escola simpática para frequentar e de um lugar quente e afectuoso, que fosse a sua casa. Como ia conseguir tudo aquilo não fazia a mínima ideia.

E depois havia Penny. A Penny do cabelo ruivo cor de fogo, do senso comum tenaz e do riso alegre. Penny... que já se tornara parte das suas vidas. Penny... que esperava um filho do próprio pai nos próximos três meses e também não tinha para onde ir. O que ia Laurie fazer com ela?

- Já chega de matutar por hoje. - E lá estava a Penny dos seus pensamentos a oferecer-lhe uma chávena de chá. - Olhe, o sol brilha - anunciou. - E é domingo. Nada de colheitas.

Laurie riu-se e aceitou o chá. - Não há sinais de Joe? - Há. E traz um passageiro - retorquiu Penny. - Olhe! Laurie viu Joe dirigir-se a ela em passadas largas, com Jane ao lado. -

Que bom! - exclamou Laurie. - Como é que conseguiu escapar-se? - O Joe disse que eu precisava de descanso. - Jane sorria e parecia mais

nova e menos perturbada no ar suave de Setembro. - E precisava mesmo - confirmou Joe no seu resmungar fingido. - Era

mais do que tempo!

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- Por isso aqui estou. - Temos coisas para discutir - continuou Joe, e olhava de Jane para

Laurie com os olhos experientes, brilhantes como pérolas. - Venham tomar um chá - convidou Laurie, e levou-os para a sua

fogueira matinal. - Sai um chá - cantou a voz de Penny. - Vou chamar os miúdos. Laurie

achou que aquilo estava tudo cuidadosamente orquestrado. - Digam-me o que se passa - exigiu, assim que Penny foi à procura de Jay e Midge.

- Primeiro que tudo - começou Joe com um olho na cara atenta de Jane -, o Stan quer que você cá fique mais uma semana. A colheita ainda não acabou e ele diz que a sua contabilidade é impecável.

- A sério? - Laurie sentiu um estranho sobressalto de orgulho. Havia alguma coisa que sabia fazer bastante bem, recebendo ainda dinheiro por isso. E podiam ficar mais uma semana. Não era apenas orgulho que sentia, mas alegria. Alegria verdadeira, simples e efervescente. - Isso seria maravilhoso - suspirou. - Mas há tanta coisa que tenho de decidir.

- Como, por exemplo? - exigiu Joe. - Bem, preciso de um sítio para viver, um emprego, uma escola para Jay

e... - Fez uma pausa. Havia Jeff. Também tinha de fazer alguma coisa relativamente a Jeff.

- É demasiado cedo - murmurou Jane, como que lendo-lhe os pensamentos.

- Será? - Laurie voltou os olhos para Jane. - Eu estou mais forte. Devia visitá-lo. Ele não tem mais ninguém. - Falava sem amargura. - O que espera conseguir? - indagou Jane.

- Nada. - O olhar de Laurie era firme. - Sei que nada vai mudar. Também não vou voltar atrás em coisa alguma.

- Quer que o divórcio avance? - Ah, sim. - A voz era calma. - Mas ele foi meu marido durante nove

anos. E está em muito piores lençóis que eu. Jane olhou para ela, abismada. Depois de tudo por que passara, esta

rapariga conseguia ainda pensar no futuro do marido com verdadeira compaixão.

- Está bem - acedeu. - Pode combinar-se isso. - Quanto ao resto - Joe pigarreou, olhando de uma para a outra com

ansiedade -, tenho uma proposta. O cérebro de Laurie ficou alerta. - Sim?

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- O meu pai - declarou Joe, como se aquilo resolvesse tudo. - O seu pai? - repetiu Laurie, desorientada.

- Tem uma quintinha, percebe? Na Cornualha. Um sítio chamado Tregarrow. Cultiva hortaliças e narcisos na Primavera. Perto do mar. Você disse que gostava de viver ao pé do mar.

- Oh! - Laurie sorriu-lhe. - Lembrou-se. - Claro que me lembrei - ripostou Joe, muito satisfeito consigo próprio. - E...? - insistiu Laurie. - Tem uma casita - explicou ele. - Vazia no Inverno. Aluga-a durante as

férias de Verão. - Os olhos bailavam de satisfação agora. - Se for capaz de lhe fazer a contabilidade... e olhe que ele é pior que o Stan para números... e ajudar a encaixotar as hortaliças e os narcisos, pode ficar com a casa sem pagar renda e recebendo ainda um ordenado. Laurie arregalou os olhos para ele de boca aberta.

- E receber? Ele deve ser maluco. - Não, não é. Você vale o seu peso em ouro... a contabilidade. Já lhe

tinha dito. Ela abanou a cabeça, incrédula. - Perto do mar? Tem a certeza? - Claro

que tenho a certeza. A falésia fica a uns cem metros. Quer dizer - agora ria-se -, tem a certeza de que é a sério?

- E o meu pai - ripostou Joe com a boca numa linha direita e firme. - O que ele diz é a sério. Está a ficar velhote. Dava-lhe jeito ter uma ajuda. Manda uns produtos para mim, outros para o mercado de Penzance e mais umas tantas lojas. Para ele, é uma dádiva de Deus.

Laurie pousou-lhe uma mão no braço. - Joe, acho que você é o homem mais bondoso que alguma vez conheci. -

“Com excepção de um”, pensou com tristeza. - Que disparate - exclamou Joe num tom zangado. - Tenho de pensar

nos meus também. O meu pai é especial, percebe? Laurie e Jane olharam uma para a outra e riram-se. - O que é que acha,

Jane? - consultou Laurie. - Conheço o pai do Joe, chama-se Luke Veryan - respondeu Jane -, e

penso que o Joe tem razão. É uma dádiva de Deus. - Olhou de relance para Joe com ternura.

- E a Penny? - lembrou Laurie de súbito. - O que é que tem a Penny?

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- Bem, ela está muito apegada a nós. Os miúdos adoram-na e ela adora-os. Podia levá-la comigo. Podia tomar conta dos miúdos enquanto eu trabalhava. Era uma espécie de solução.

- Melhor que muitas - murmurou Jane. - Ora, sim, senhor - concordou Joe com uma resmungadela aprovadora. Ia ter de deixar Clem e os seus cisnes, pensou Laurie. Mas a oferta de

Joe era demasiado boa para ser recusada. Quando lhe perguntaram a opinião, Penny ficou muito pálida, olhou

para Laurie com uma certa candura desesperada e indagou: - Quer-me mesmo? Laurie não hesitou. Apercebeu-se de repente de que nunca ninguém

dissera a Penny que era querida nem amada em toda a sua curta vida. - Quero - respondeu. - E o Jay e a Midge também te querem. O sorriso de Penny parecia um nascer-de-sol.

- Então, vou! - O que é que achas, Jay? - inquiriu Laurie, sorrindo. - Vamos viver

numa casa à beira-mar! Uma casa nossa? - perguntou Jay. - Mesmo nossa, não. Pertence ao pai do Joe. - Pais, não - exclamou de súbito Midge. - Não quero pais nenhuns. Laurie e Jane suspiraram e lançaram a Joe um olhar pesaroso. Mas

Penny, que fora mais maltratada do que todos eles, retorquiu: - Não sejas pateta, Midge. Nem todos os pais são maus. Pois não, Joe? - Claro que não! - vociferou Joe. - O meu não é. É o melhor... o meu pai.

Vais ver. - Inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha amigável a Midge. - Eu não sou mau, pois não, pitorrita?

- Não - respondeu Midge. E como que pensando melhor disse: - Deu-nos gelados.

- Ai sim? - Joe sorriu e levantou-se. - Tenho de carregar as hortaliças. Sabem, se alguém me ajudasse, talvez comprasse mais uns gelados.

Midge pegou-lhe na mão. - Foi o que eu pensei - declarou. Portanto, ia haver outra semana de ouro nas plantações de lúpulo. E os

meses de Inverno estavam resolvidos também. Laurie mal acreditava na sua sorte. Quase se sentiu culpada ao ver Jane e Joe afastarem-se dos campos para regressar às suas vidas de trabalho árduo em Londres, ao passo que ela

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se preparava para um passeio à beira-rio com Penny e as crianças para ver os cisnes.

Penny foi à frente, com as crianças a correr adiante. Depois, Laurie ouviu Penny gritar e a voz aguda de Jason a dizer:

- Larguem-me! Em pânico, Laurie começou a correr. Chegou de rompante à curva do

rio e quase embateu em cheio em dois rapazes crescidos que seguravam Jason pelos braços.

- Atiramo-lo lá p'ra dentro? - dizia um deles. Penny batia-lhes, feita louca, com um pau que apanhara na relva, mas

um terceiro meliante agarrou-a por trás. A pequena Midge, petrificada de horror, recuava devagar na direcção de um maciço de juncos na borda-d'água.

- Parem com isso! - gritou Laurie de repente, demasiado zangada para ter medo. Agarrou num pau de uma vedação partida e começou a bater nos rapazes. - Deixem-nos em paz! - berrou. - Porque não procuram alguém do vosso tamanho?

Os três grosseirões soltaram alguns impropérios de surpresa, e o mais alto balançou um braço brutalmente, atingindo Laurie com uma forte pancada na fonte. Depois, voltaram-se e fugiram.

Mas tinham de passar por Midge, e ela viu-os aproximarem-se. Deu mais um passo aterrorizado para trás, pôs o pé nuns juncos flutuantes e caiu dentro do rio. Os atacantes deram uma olhadela assustada e continuaram a fugir. Jason tomou fôlego e mergulhou na água atrás dela.

- Não, Penny - gritou Laurie ao vê-la também a dirigir-se ao rio. - Estás demasiado pesada. Fica aí para nos puxares! -E também ela se atirou para dentro do canavial lamacento e estendeu a mão para Jason e Midge.

A água era mais profunda e fria do que esperava, e a sua filha já se afundara duas vezes, mas Jason deitara-lhe a mão ao cabelo e mantinha-lhe corajosamente a cabeça à tona. Só que ele também estava quase sem pé e os seus pés afundavam-se cada vez mais na lama do rio. Laurie apercebeu-se com súbito terror de que o que começara como um simples incidente aborrecido estava rapidamente a transformar-se numa tragédia. Debateu-se na direcção das crianças, pontapeando para libertar as pernas da lama peganhenta e das ervas.

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Penny tinha arrancado uma estaca mais comprida da vedação e esticava-se com ela. Mas era demasiado curta. E as crianças estavam a ser arrastadas pela corrente para o meio do rio.

- Aguentem-se aí! - gritou uma voz atrás deles. - Já lá vou! Laurie alcançou Jason exactamente quando a velha bateira de Clem atravessava o rio com um forte impulso.

- Aguente um minuto - disse ele. - Já agarrei a pequenina... - e estendeu uma mão forte, içando Midge para dentro da bateira. - Agora tu - disse a Jason, que engolira muita água do rio e tossia e arquejava. - Agarra na minha mão.

A seguir, foi a vez de Laurie, que também aterrou nas pranchas cinzentas da velha bateira. Clem mirou a sua carga encharcada. Depois, fez sinal a Penny e gritou:

- Segue-nos. A minha casa fica a seguir à próxima curva - e impulsionou a bateira novamente para o meio do rio.

Pouco depois, estavam todos sentados à volta do fogão de Clem, enrolados em cobertores, a beber chá. Jason não parecia mal, embora estivesse muito calado. Mas Midge agarrava-se com força a Laurie. Laurie, por seu lado, estava pálida e sentia a cabeça esquisita de novo, mas olhava das crianças para Penny e para Clem com gratidão. Estavam todos a salvo.

- Você parece cultivar o hábito de salvar coisas - comentou ela, sorrindo. Clem riu-se. - Sempre é uma variante dos cisnes! - Como está aquele do anzol? Recuperou? - Claro. - Fez um gesto vago na direcção da porta da cozinha. - Está lá

fora com os outros. - Que outros? - indagou Jason, interessado. - Acaba o teu chá que eu mostro-te - propôs Clem. Observou o corpo de

Jason coberto com o cobertor e acrescentou: - Podia arranjar-te uma T-shirt seca e uns calções. Vão ficar-te enormes, mas acho que um cinto os segurava!

Subiu as escadas e voltou com os braços cheios de roupas, e quando estavam todos mais ou menos vestidos, saíram, rindo. Havia meia dúzia de cisnes a nadar calmamente no pequeno lago que Clem lhes fizera e vários casais de patos. Havia também uma alta garça-real, cinzenta, com o bico ferido, e duas gaivotas que tinham sido trazidas com as penas cheias de óleo. E havia uma cabeça molhada e lustrosa a nadar em direcção a eles.

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- O que é aquilo? - perguntou Jason, apontando. - Aquilo? Ah, aquilo é o Jaunty. É uma lontra que encontrei numa

armadilha para enguias lá mais em baixo no rio, perto do estuário. - Uma lontra? Nunca tinha visto uma lontra viva. - Poucas pessoas as vêem hoje em dia - replicou Clem. - Estão a tornar-

se cada vez mais raras. - A sua voz soava triste. - Porquê? - Oh, motivos diversos. As pessoas caçam-nas e matam-nas. Os olhos de Jason encontravam-se pousados na bela e inteligente cabeça

a sair da água para os espreitar. - Não sei como é que alguém pode fazer-lhes mal - murmurou

entredentes. - Não são só os caçadores. Os rios estão poluídos, os canaviais são

cortados e as dragas chegam. Os locais selvagens e secretos onde as lontras gostam de viver estão a desaparecer gradualmente. É por isso que o Jaunty vai ficando por cá. Aqui tem sossego e ninguém lhe corta as canas nem os salgueiros.

- Ele é seu? Clem hesitou. - Bem, mais ou menos. Quando deixei de ser veterinário na cidade, o

meu sócio comprou a minha parte, por isso fiquei com algum dinheiro. Depois o pessoal da protecção da Natureza e eu juntámo-nos e comprámos esta casa e o máximo de terreno que conseguimos. Isto está registado como reserva natural e santuário de aves.

- Ainda bem - afirmou Jason com simplicidade. Ficou fascinado, a observar Clem a deitar comida, cuidadosamente

escolhida, aos seus cisnes convalescentes e a remexer num balde de plástico para encontrar um peixinho que atirou a Jaunty.

- A questão é que - explicou Clem, muito sério, a Jason - não se deve dar-lhes comida demais, senão nunca mais se vão embora nem aprendem a caçar sozinhos.

- Eles têm de se ir embora? - indagou Jason, ansioso. O homem grande e calmo olhou-o de relance com simpatia.

Compreendeu a tristeza na voz do rapaz, o desejo de estar seguro, como Jaunty... de ter alguém seguro como ele a quem recorrer.

- Sim - respondeu -, têm. Têm de aprender a ser independentes e livres. Foi para isso que nasceram. - Os olhos dele desviaram-se para o rosto de Laurie, e viu um olhar brilhante e singular de reconhecimento atravessado

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de determinação. - Mas é claro que - continuou rapidamente -, se regressarem de vez em quando para um pouco de conforto e segurança, fico muito satisfeito por vê-los.

Exactamente nessa altura, Jaunty mergulhou, nadou e mostrou a sua agilidade flexível na água. Fez um pino, depois levantou-se sobre as patas traseiras e sorriu-lhes, como a dizer: “Não sou esperto? Não sou bonito?” A seguir, nadou para o meio do rio.

- Lá vai ele - exclamou Clem. - Mas há-de voltar. - Há-de? - Havia tristeza na voz de Jason.

- Com certeza. Mais cedo ou mais tarde. - O sorriso dirigiu-se para Jason. - Talvez amanhã. Ele não vai esquecer-me agora.

Jason suspirou, não conseguia exprimir a estranha dor que sentia. Foi então que Laurie desmaiou. Inesperadamente, a margem do rio começou a rodar, o céu revolteou e ficou preto e ela caiu como uma pedra aos pés de Clem.

Midge gritou. Jason e Penny debruçaram-se sobre ela com ansiedade. Clem pegou-lhe, levou-a para dentro e pousou-a no sofá do canto junto ao fogão.

- É a cabeça - explicou Penny. - Tem uma ligeira fractura e acho que um daqueles grosseirões chegou a bater-lhe.

Clem acenou com a cabeça em silêncio. - Já vai acordar daqui a pouco. - Voltou-se para as crianças com a voz

calma. - Há uma esponja e uma bacia no meu lava-loiça. Tragam um bocado de água...

Ele sabia que uma acção de qualquer tipo reduziria o pânico. Midge já tinha parado de chorar e seguiu Jason. Regressaram carregando cuidadosamente uma bacia cheia de água, e Clem banhou a testa de Laurie, que tinha de facto um novo hematoma feio e vermelho. Passados poucos instantes, Laurie abriu os olhos.

- Desculpem - murmurou entredentes, a esforçar-se para se sentar. - O que é que me deu?

Clem sorriu. - Levou um murro de um malandro. - Empurrou-a suavemente para

trás. - Descanse aí um pouco. A Penny e eu vamos arranjar qualquer coisa para o almoço.

Em breve, Penny tinha preparado uma apetitosa mistura de carne enlatada, feijão cozido, tomates de lata, espinafres da horta de Clem e

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cogumelos frescos. Pousou-a triunfalmente sobre a mesa. Nessa altura, Laurie já recuperara o suficiente para se juntar a eles. O cheiro delicioso até a fez sentir bastante fome.

Antes de a refeição acabar, Midge começou a cabecear. A excitação do dia tinha sido demasiada para ela. Laurie deitou-a no sofá e tapou-a com um cobertor. Depois, Penny anunciou com à-vontade:

- Acho que eu e o Jason vamos dar uma vista de olhos enquanto descansa. - Voltou-se para Clem com um ar inquiridor: - Se não se importar, claro.

- Com certeza - concordou Clem. - Andem só devagar para não perturbarem as aves.

Laurie viu-os sair e pensou em pânico: “Não sei o que dizer a este homem. Como posso explicar-lhe o que me tem vindo a acontecer ou o que sinto?” Mas Clem surpreendeu-a.

- Quando é que se vão embora? - indagou. Laurie arregalou os olhos para ele, espantada. - No fim da semana.

- E depois? Titubeando, ela contou-lhe da casa e do emprego na Cornualha. - Tenho de o aceitar - explicou. - É uma dádiva do céu. - Clem fez que

sim com a cabeça pensativamente. - E eu... eu gostava de viver ao pé do mar... - A voz dela soava estranha e sonhadora. - Parece ser a única maneira de me sentir limpa.

Ele não fez comentários, mas perguntou: - As crianças sabem nadar? - Não. Como viu hoje, Jay mal consegue boiar. Mas Midge... - Traga-os cá - disse ele. Ela fitou-o. - O quê? - Traga-os cá, todos os dias, depois de acabar o trabalho. O bocado da

represa que eu abri é bastante limpo e não muito fundo nem lamacento. - Mas... - Todos os dias! - declarou com decisão. - Consigo ensiná-los numa

semana. Pelo menos, posso dar-lhes segurança dentro de água. E à Penny também. Mesmo no estado dela, pode aprender a boiar. - Acrescentou alegremente: - A natação é boa para as grávidas.

- Como é que sabe? - perguntou Laurie, rindo-se. Clem riu-se também. - É lógico. Flutuam dentro de água... tira-lhes um peso de cima! Ainda

estavam a rir quando Penny e Jason regressaram. Nada de sério fora dito,

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nada de triste, perigoso ou importante. Mas Laurie sentia-se estranhamente reconfortada. Clem parecia saber o que ela sentia. Aceitava a partida dela. Até compreendia o seu desejo insaciável de se sentir limpa pelos ventos fortes, pelas ondas da costa atlântica. Talvez um dia se sentisse em condições para deixar outras pessoas aproximarem-se. Talvez um dia voltasse àquela sossegada represa, como os cisnes. Mas, entretanto, havia ainda esta última semana de ouro. E Jason e Midge a aceitarem já Clem como um companheiro seguro e amigo, não um inimigo. Sobretudo Jay. Viu que os olhos de Clem, pousados no rapaz, estavam cheios de carinho. Havia uma ligação natural a crescer entre eles, porque Jason também adorava animais selvagens... “Para onde é que este homem me está a levar?”, pensou ela.

Clem era um homem calmo que não se zangava facilmente. Mas

naquela altura estava tão zangado que não conseguia estar quieto, por isso foi passear ao longo do rio.

Há muito tempo que Clem estava habituado a passear sozinho. Por opção sua. Tinha jurado, aquando da ruptura final com Sylvia, que nunca mais permitiria a um ser humano aproximar-se tanto que pudesse destruir-lhe a vida. No entanto, ali estava ele, apanhado inextricavelmente, como um dos seus cisnes, numa confusão de fio de pesca emaranhado, por uma jovem pequena e magra de olhos pisados e dilatados pelo estado de choque e um sorriso frágil como cristal.

Sylvia não era frágil. Era muito segura de si. Enquanto ele estava fora, noite após noite em serviço, como era natural para um veterinário ocupado, ela tinha-se divertido. Quando percebera que o divertimento era com o seu sócio, amigo e colega, Clem largara o consultório, deixara o sócio comprar a sua quota e levar a sua mulher. Tinha virado as costas aos caniches demasiado gordos e aos seus donos demasiado ricos. Tinha fugido para aquele santuário verde atrás dos salgueiros entrelaçados e devotado a vida às necessidades das criaturas selvagens.

Era uma existência calma e segura. Então, porquê esta súbita fúria dilacerante? Não era só devido aos grosseirões da margem do rio... nem mesmo ao homem que pusera tanto medo nos olhos de Laurie. Clem tinha receio. Uma fúria tão profunda e violenta como aquela estava muitas vezes demasiado próxima do amor.

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Jason ficara preocupado com o recontro com os rufias na margem do rio. Não que tivesse tido medo, claro. Já tivera que lidar com brigões na escola. Sabia tomar conta de si. Mas eles tinham assustado Midge de tal maneira que ela quase se afogara, e haviam mesmo batido na sua mãe e feito a cabeça dela ficar pior outra vez. Prometeu a si próprio que ninguém mais voltaria a bater na mãe. Não fora suficientemente forte para o evitar. Que espécie de ajuda ia ser para a mãe se não conseguia sequer enfrentar aqueles rapazes? Por isso, no dia seguinte foi perguntar à única pessoa que sabia que era suficientemente forte e bondosa para tomar conta deles todos... o seu novo amigo, Clem.

Encontrou Clem a dar de comer às aves e ficou a observá-lo por instantes em silêncio, a magicar como havia de explicar-lhe o problema. Mas Clem antecipou-se-lhe.

- Então, Jason? O que é que te preocupa? Jason ainda hesitou, mas por fim, declarou com vergonha: - É a mãe. E a Midge. - Fez uma pausa e a seguir acrescentou: - E a

Penny também. - O rapaz levantou os olhos com confiança, seguro de que Clem saberia a resposta. - Como é que posso mantê-las em segurança?

Os olhos de Clem encheram-se de mágoa súbita. “Deus do céu”, pensou. “Só tem oito anos e pergunta-me uma coisa destas!”

- Jay - afirmou por fim -, tu já tens vindo a mantê-las em segurança a todas. Mas a partir de agora vai tudo tornar-se mais fácil.

- Foi difícil à beira do rio, e vai haver outras vezes. - Havia um mundo de verdadeiro conhecimento na voz infantil.

- Sim, Jay, é verdade - concordou Clem. - Mas não vai ser tão grave. - Não vai ser grave? - O rapaz parecia confuso. Clem apontou para o outro lado do lago, onde a lontrazinha brincava

nos baixios. - Lembras-te do Jaunty? Quando o apanhei, a vida tinha sido muito

dura com ele. Tinha medo de tudo. Até me mordeu quando tentei ajudá-lo. Mas agora - pensou quanto precisaria de dizer - está forte outra vez. É capaz de encarar seja o que for. Já não tenho de o proteger.

Houve um silêncio durante o tempo em que Jason matutava sobre aquilo. Depois, disse devagar, sem olhar para Clem:

- A mãe está quase boa... - Sim, Jay, pois está. - Mas a Midge ainda é pequena. Clem riu-se.

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- Dá-lhe tempo, Jay. Ela há-de crescer. Com certeza que vais precisar de tomar conta delas, mas não tanto como dantes.

Clem interrogou-se se teria tirado algum do peso de preocupação dos jovens ombros ou se só piorara as coisas. Jason ergueu os olhos para

Jaunty, que corria atrás da própria cauda. - Quem me dera... - começou, e a seguir percebeu, de alguma forma, que

não devia dizê-lo. Em vez disso, transformou a frase num outro pensamento que era igualmente verdadeiro. - Quem me dera poder um dia ajudá-lo a tratar dos cisnes.

- Porque não? - O sorriso de Clem era franco e carinhoso. - Faz-me sempre jeito mais um par de mãos, isto é, desde que sejam bondosas. Jason baixou os olhos para as suas próprias mãos, admirado, e depois para as mãos grandes e morenas de Clem.

- Bondosas? - Bondosas - repetiu Clem com meiguice. - É esse o segredo, Jay.

Bondade. - Inclinou-se para os seus baldes de comida e tirou um peixe para a lontra. - Toma. Dá um petisco ao Jaunty. Talvez ele faça uma cabriola.

Jason atirou o peixe pelo ar. Ele brilhou ao sol e Jaunty deu um salto para o apanhar e fez de facto uma cabriola.

- Aí está - comentou Clem. - É assim que a vida vai ser, Jay, a partir de agora. Só sol a brilhar e cabriolas.

Havia tanta certeza na sua voz que Jason quase acreditou. Então, todos os dias ao calor do fim da tarde, após um dia nas

plantações de lúpulo, todos nadavam na pequena represa, mantendo-se na parte aberta e soalheira para não perturbarem as aves mais tímidas de Clem entre os canaviais. Laurie achava a água fria do rio um bálsamo. Penny patinhava, mais como uma foca gorda e preguiçosa, e Clem não tentou persuadi-la a fazer mais do que aprender a manter-se à tona da água. Mas as crianças aprendiam depressa. Jason já conseguia atravessar a represa, a nadar à cão, de um lado ao outro e Midge não lhe ficava muito atrás.

Na última noite, Laurie e Clem passearam lado a lado e viram as sombras alongarem-se nos prados ao pé do rio. Não falaram muito. Clem tinha sempre tendência para silêncios pacíficos mais do que para palavras, e Laurie ficava-lhe grata por isso. Mas por fim pararam, por consentimento mútuo, para observar dois cisnes brancos que deslizavam na superfície resplandecente do rio ao pôr do Sol.

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Em geral, Clem era paciente. Aprendera que não se podia banir o medo e construir a confiança da noite para o dia. Laurie, tal como os seus cisnes, tinha de encontrar o seu próprio caminho, a sua própria coragem. Mas, à beira do rio, naquela última noite juntos, sentiu uma grande tentação. Os seus braços ansiavam por abraçá-la. Virou-se repentinamente para ela e pôs-lhe os braços em redor dos ombros. Sentiu-a ficar levemente tensa e disse a si próprio, desesperado: “Burro! Demasiado cedo, demasiado cedo.” Por isso, afrouxou o abraço, sorriu-lhe e murmurou em jeito de desculpa:

- É uma altura mágica, o pôr do Sol. Até os cisnes a sentem. - Inclinou a cabeça e beijou-a, muito suave e calmamente, no rosto ansioso voltado para cima.

Laurie sabia que o magoara, mas a sua reacção fora instintiva. Não conseguia dizer nada para o sossegar. Ainda não...

De repente, os dois cisnes levantaram voo num planar lento e longo, deixando um rasto na água com as patas, até a força das suas asas levar a melhor. Voaram rio abaixo num arco largo e suave, e quando estavam já quase fora do alcance da vista e o som do seu voo cadenciado quase desaparecera, viraram no meio do ar azul e regressaram, aterrando numa chuva de salpicos cintilantes. Pareciam olhar para Clem, como que contentes por ele ainda ali estar, e depois deslizaram placidamente para os baixios, flutuando como fantasmas brancos nas sombras que se fechavam sob os grandes ramos cinzentos dos salgueiros entrelaçados.

- A liberdade - disse Clem suavemente - não é apenas levantar voo. É saber onde se quer aterrar e quando é tempo de regressar a casa. Não olhou para Laurie. Não disse mais nada.

- Sim - murmurou Laurie, de olhos postos nos cisnes. - Eu sei. Parte III Voando em Liberdade De regresso a Londres, Laurie virou os seus pensamentos

decididamente para os seus problemas imediatos e tentou não continuar a pensar no sol dourado no rio. Deixou Penny e as crianças aos cuidados de Jane e foi buscar umas roupas à esquálida casinha com todas as suas recordações sombrias. O seu coração teve um sobressalto de terror relembrado quando ela enfiou a chave na fechadura e entrou. Não foi à

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cozinha - não conseguia enfrentar aquilo -, subiu logo ao andar superior, ao quarto. Havia duas malas velhas atrás do armário. Levou uma para o quarto das crianças e encheu-a com todas as roupas que encontrou. A seguir, regressou, sem vontade, ao quarto escuro que compartilhara com Jeff e atirou apressadamente alguma da sua própria roupa para dentro da outra mala. Não olhou para a cama. Não conseguia suportar lembrar-se das vezes que Jeff se atirara para cima dela, bêbado e selvagem, e a forçara, sem amor nem piedade, numa espécie de raiva cega, nem das vezes que cedera, desesperada e em silêncio, sabendo que tudo se tornaria ainda mais violento se tentasse protestar. Estremeceu, atirando os últimos poucos objectos e peças do toucador para dentro da mala.

Quando carregava as malas para baixo,ouviu uma pancada curta e forte na porta. Laurie ficou gelada. Poderia ser Jeff? Teria saído da cadeia mais cedo? Respirou fundo e dirigiu-se à porta.

Joe encontrava-se de pé no degrau com ar ansioso; a sua velha carrinha verde estava estacionada junto ao passeio.

- Achei que talvez precisasse de boleia - explicou. Os dentes de Laurie batiam.

- Como sabia... - A Jane disse-me. Não ia deixá-la atravessar Londres carregada de

malas. Além disso - deu uma olhadela cautelosa, não lhe passando despercebidos os sinais de tensão -, achei que isto era capaz de a abalar.

- Sim - admitiu Laurie com um sorriso pálido -, abala sim. Joe deixou-a no Esconderijo e combinou levá-la, a ela, a Penny e às

crianças, ao terminal das camionetas daí a dois dias para a viagem até à quinta do pai dele, na Cornualha. Entretanto, Laurie tinha ainda mais uma obrigação desagradável.

A vida na cadeia não era fácil para Jeff. Soube-se que batia na mulher e

provavelmente nas crianças também. Os outros presos não gostavam desse tipo de gente. Era recebido por um silêncio de gelo à hora das refeições. Nas oficinas era sujeito a brincadeiras desagradáveis. Os bancos fugiam de debaixo dele; os martelos falhavam os pregos e acertavam-lhe nas mãos distraídas; pilhas de troncos de madeira bem arrumados caíam à sua volta. Para piorar as coisas, não havia bebida para apagar as humilhações do dia.

Portanto, não era surpresa que estivesse zangado e ressentido quando o foram chamar à cela e lhe disseram que tinha uma visita. Seguiu para onde

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o mandaram num estado de espírito negro, à espera de ouvir mais outro sermão de um visitante de prisões acerca do demónio da bebida.

Em vez disso, deu consigo sentado à frente de uma janela com a cara de Laurie do outro lado. Uma Laurie diferente. O cabelo estava muito curto, fazendo-a parecer mais velha e de certa forma mais forte. E o rosto tinha uma expressão de decisão firme.

- Como estás, Jeff? - indagou ela. - O que é que achas? Fechado aqui dentro! - Mostrou-lhe má cara, sem

ter a certeza do que a visita significava. - Para que vieste? Não me digas que estás arrependida.

Ela ficou ali sentada a observá-lo com uma expressão avaliadora e baralhada. “É este o homem com quem me casei?”, parecia perguntar a si própria.

- Não - falou com cautela. - Só queria saber como estavas. - Ah, obrigado. Já que tu é que me puseste aqui.

Ela suspirou. - Eu não te pus aqui, Jeff. Foste tu que te puseste aqui. Tal como me

afastaste a mim e aos teus filhos. - Fitava-o agora com determinação, desejando que ele visse a verdade. Só assim é que ele poderia vir a recompor-se.

- Sua cabra estuporada e hipócrita! - gritou ele de súbito, e deu um murro na janela. - Eu deito-te a mão quando sair daqui!

Mas Laurie não ficou assustada nem intimidada pelas ameaças dele. Da distância do painel de vidro que os separava, viu não o monstro que receara, mas um homem desnorteado e magro, cujo alegre mundo de fantasia se desmoronara à sua volta. Descobriu que tinha pena dele.

- Vim despedir-me, Jeff - disse-lhe numa voz firme. - Vou-me embora. - Despedir-te? - rosnou ele com a fúria a emergir de novo. - Não vais a

lado nenhum, percebes? És minha mulher e eles são meus filhos. - Já não - respondeu ela. - Não compreendes? Acabou-se. O processo de divórcio está a seguir os seus trâmites. E se queres ver as crianças outra vez, vais ter de esperar até serem mais velhas. Têm demasiado medo de ti agora.

- Medo de mim? Que disparate! Tu é que lhes meteste isso na cabeça. Laurie não deu uma resposta directa àquilo. - Na verdade, Jeff, tu não as queres mais do que me queres a mim.

Somos só um estorvo. - Deu-lhe a sensação de ver então um lampejo de esperança nos olhos furiosos, um vislumbre de uma vida nova e livre.

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Mas a ele ainda não lhe agradava a ideia de a mulher e os filhos estarem à solta. Eles pertenciam-lhe.

- Não podes ir-te embora sem mais nem menos - protestou, tentando soar de forma patética. - Eu preciso de ti.

Laurie levantou-se da cadeira. - Lamento - replicou ela. Jeff não queria acreditar. Ela ia mesmo abandoná-lo. Soltou um

chorrilho de obscenidades furiosas. O guarda pegou-lhe num braço e empurrou-o para fora.

A separação de Jane foi inesperadamente emotiva. Laurie sentiu que

uma linha de vida de sanidade e apoio estava a ser cortada. Mas Jane afirmou com bondade:

- Vamos manter-nos em contacto, Laurie. E sabe que pode sempre regressar. - Entregou a Laurie um envelope. - Isto é o resto do seu subsídio de emergência dos serviços sociais. A partir de agora, pode levantar os abonos na repartição deles em Penzance.

Laurie olhou para Jane e abanou a cabeça sem palavras. Depois, atirou-lhe os braços ao pescoço e abraçou-a.

- Não sei o que seria de mim sem si. - Vá lá. - A voz de Jane era quente de afeição. - Passem um bom

Inverno. Joe arrumou-os a todos na carrinha e deixou-os no terminal das

camionetas. Laurie abraçou-o e declarou: - Obrigada por tudo. Joe retribuiu-lhe com um apertão alegre e despediu-se de todos: - Divirtam-se, miudagem. - A seguir, virou-se depressa para a sua

pequena carrinha verde. De Penzance, apanharam uma velha camioneta, embrenhando-se nas

estradinhas estreitas da Cornualha. Foram deixados num cruzamento ao lado de uma antiga cruz celta.

- Tregarrow é para aquele lado - informou o motorista da camioneta. - A quinta de Luke Veryan é acima do vale.

Pegaram na bagagem e desceram com dificuldade um caminho estreito até chegarem a um portão de quinta. Para lá do portão, via-se um pátio enlameado e um amontoado de edifícios, a maior parte deles de pedra esboroada e ardósia cinzenta. Uma pequena casa de quinta erguia-se a um

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canto do pátio, e um barulho de desnatadeiras e baldes de ordenha saía das portas abertas do celeiro contíguo.

Laurie deixou os outros no pátio e aproximou-se do celeiro baixo e comprido. Seis vacas-leiteiras aguardavam pacientemente nos seus estábulos, e um homem alto e magro, de fato-macaco manchado, despejava leite de um balde para uma desnatadeira metálica. Ergueu os olhos quando viu Laurie e uma vaga centelha de reconhecimento atravessou-lhe o rosto triste e cinzento, mas não parou o que estava a fazer até o balde ficar vazio.

- Posso ajudar? - indagou Laurie, vendo outros baldes cheios. - Porque não? - ripostou Luke Veryan com uma pronúncia entrecortada

e abrupta. - Poupava tempo, lá isso é verdade. Ela entrou e despejou com cuidado o leite espumoso para dentro da

desnatadeira que o aguardava. Ele não voltou a falar até o último balde ficar vazio. A seguir, endireitou as costas e mirou Laurie um pouco mais calorosamente.

- É a Laurie Collins, suponho? - perguntou, e espreitou para o resto do grupinho, hesitante no pátio. - Não tiveram grande recepção, pois não? - Fez um sorriso e indicou o caminho para fora do celeiro. - Já os levo à casa. Tenho de tirar as vacas primeiro.

Jason avançou. - Posso ajudar - ofereceu-se. - Para onde quer levá-las? Luke Veryan mirou o rapaz de alto a baixo. Depois, acenou com a

cabeça. - Em princípio, sabem o caminho. Mantém-te atrás delas e vai andando. Tirou as vacas para o pátio. Automaticamente, a chefe da manada

encaminhou-se para o campo em frente e lentamente as outras seguiram-na. Jason seguiu com confiança atrás delas. Quando uma das vacas tentou desviar caminho, ele acenou com os braços.

- Não - disse ele baixinho. - Por aí não, tonta. Anda lá! Ao vê-lo, Laurie pensou que parecia ter andado a pastorear gado toda a

vida. Depois de as vacas estarem todas no pasto, Veryan virou-se para fechar o portão e deu com o rapaz já a empurrar a cancela.

- Óptimo - afirmou. - Serves. - E o ligeiro sorriso surgiu novamente ao ver Jason corar de prazer.

Luke Veryan pegou em duas das malas com mãos grandes e competentes e indicou-lhes o caminho para lá da casa de quinta, por um trilho empedrado ao longo da encosta da colina. Andaram cerca de cinco

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minutos e por fim o trilho alargou-se e chegaram a uma casinha quadrada encostada à colina. Para baixo, ficava uma falésia inclinada coberta de giestas e chorão e abaixo dela, estendendo-se até ao horizonte que escurecia, o mar.

- Oh! - exclamou um coro de vozes extasiadas. - O mar! Luke Veryan emitiu um som de indiferença. O mar não era novo para

ele. Mas também o afectava à sua maneira. E ficava sempre contente quando os visitantes davam aquele “Oh!” inicial de prazer.

- Tregarrow fica por baixo da colina - explicou. - Mais para lá na enseada. - Fez um sinal com o polegar na direcção da estreita entrada do vale, onde os dois braços da falésia se encontravam. - Podem lá ir às compras - acrescentou. - Mas fiz um abastecimento para vocês, a título temporário.

Tirou uma chave do bolso do fato-macaco e abriu a robusta porta, indicando-lhes que entrassem com um gesto da mão.

Lá dentro, havia uma sala quadrada, caiada e limpa, com um sofá e duas cadeiras pequenas de braços num canto à volta de uma lareira. No outro canto, havia uma mesita de jantar quadrada e quatro cadeiras de espaldar direito e uma cozinha bem equipada.

Laurie correu lá acima para dar uma vista de olhos aos quartos. Eram dois, um com duas camas individuais e outro com um beliche e um divã individual. Ambos tinham janelinhas de onde se via o mar para lá da encosta íngreme da colina. Era maravilhosamente sossegado. Desceu as escadas a correr no momento em que Luke Veryan saía.

- A que horas começo amanhã? - perguntou-lhe. Na meia-luz, os olhos, dele, castanhos como os de Joe, mas mais

sombrios, pareceram avaliá-la com severidade. - Nada de trabalho amanhã. Dia de arrumações. Apareça lá em casa

depois do pequeno-almoço e eu mostro-lhe o que há para ver. - Está bem - concordou Laurie; e deu um passo tímido na direcção dele.

- E... muito obrigada, Mr. Veryan. Ele acenou com a cabeça e afastou-se em passos pesados colina acima.

Laurie olhou pela janela para o mar que escurecia. - Será tarde demais para lá ir abaixo à enseada? - pensou em voz alta. - Se nos despacharmos, não. - Penny estava tão ansiosa como Jason e

Midge.

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Cada uma pegou numa das crianças pela mão para o caso de o caminho se tornar muito íngreme. O trilho estreito serpenteava pela encosta abaixo. Só uma vez chegou perto da borda da falésia, e todos olharam sobre uma descida vertiginosa para um amontoado de rochas afiadas. O caminho continuava a descer até a uma enseada pequena e perfeita, uma curva de areia branco-dourada em forma de concha guardada por dois braços de falésias rochosas castanho-dourados.

- Oh! - gritaram as crianças, e atiraram com os sapatos, desatando a correr pela areia firme até ao mar.

Todos patinharam. Laurie ficou a olhar fixamente para o mar, para oeste, onde o Sol se punha em raios de vermelho cor de flamingo.

“O mar é puro”, pensou. “Amanhã, vou nadar. E então talvez comece a sentir-me limpa e inteira de novo...” Em voz alta, anunciou: - Amanhã vamos tomar banho. Agora, está a fazer-se tarde. Voltaram e abriram caminho pela vereda acima até à casa na colina.

Na manhã seguinte, Laurie encontrou Luke Veryan no pátio a lavar o

celeiro da ordenha. - Vou mostrar-lhe as estufas primeiro - anunciou ele, indicando o

caminho para uma longa fila de estufas atrás dos celeiros. - Alfaces de Inverno - explicou, apontando para duas filas de caixas de sementes. - E crisântemos serôdios e vasos de plantas para o mercado de Natal.

- Ah! - sussurrou Laurie, encantada pelas longas filas de flores e pelo seu cheiro forte e aromático. - Que beleza!

Luke deu-lhe uma olhadela e esboçou um sorriso. -Também gosto de flores. São caras lindas e não magoam ninguém.

Laurie fez um pequeno sorriso e mergulhou a cara num emaranhado branco de pétalas. A seguir, Luke levou-a lá para fora, para a horta, com as suas filas arrumadas de legumes e uma profusão maravilhosa de dálias serôdias. Um homem de idade estava dobrado a mondar pacientemente entre as filas.

- Este é o Bob - apresentou Luke. - Vem da vila quando o lumbago lhe permite.

Laurie pôs-se a olhar em redor à luz suave do Sol. Havia flores por todo o lado à espera de serem apanhadas e arranjadas... ásteras tardias, crisântemos de exterior, várias filas de gladíolos, além do brilho das dálias.

- Onde são os campos de narcisos? - indagou, mirando o espaço a abarrotar.

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O difícil sorriso de Luke Veryan abriu-se. - Veio pelo meio deles, rapariga. No caminho de casa para aqui. - Vim? - Todo aquele espaço verde entre aqui e o mar está cheio de narcisos na

Primavera. - Sorriu. - Andou por cima deles, rapariga. Milhares de bolbos debaixo dos seus pés!

Laurie baixou os olhos para as suas botas de borracha cheias de lama seca e riu-se. “Toda aquela beleza dourada e verde debaixo dos meus pés, à espera de o Inverno acabar e a Primavera chegar.”

Luke levou-a para a casa da quinta por uma passagem calcetada até um pequeno escritório. Mostrou-lhe os seus livros de encomendas e a sua contabilidade, os rendimentos do leite e o calendário de empacotamento, juntamente com um monte de encomendas e contas não especificadas.

- Caos! - admitiu ele, apontando-os com uma das mãos. A seguir, indicou um outro livro cheio de nomes. - Apanhadores e embaladores à jorna para contratar em Fevereiro - esclareceu.

Então, Laurie fez a sua primeira pergunta importante: - Jason, o meu rapaz, devia ir para a escola. Há alguma aqui perto? Luke

acenou que sim., - Mesmo em Tregarrow. - Fez uma pausa, a pensar. - Creio que deve

haver vaga. É melhor perguntar a Mrs. Weelkes, a directora. - E o Joe deve ter-lhe falado da Penny - continuou Laurie. Ele fez que

sim sem se comprometer. - Bem, ela precisa de consultar o médico e marcar uma cama no hospital. Suponho que isso seja em Penzance.

- Ah... é. - Soou um pouco abrupto, e Laurie sentiu-se obrigada a acrescentar com uma ponta de malícia.

- Quero dizer, o senhor não há-de querer que o bebé nasça à sua porta! Eu não sou parteira.

- Nem eu - resmungou Luke, com um piscar de olho inconfundível bem lá no fundo. - Há o Dr. Trevelyan - informou então. - O consultório é na aldeia. E há a Agnes Penwillis... essa é que é mesmo parteira. - Laurie acenou com alívio. Mas Luke tinha os olhos nos livros e o sobrolho franzido. - Acha que é capaz de lidar com esta praga destes livros?

- Sim, acho que sim. Um sorriso revirou-lhe o canto dos lábios. Depois, ele murmurou

qualquer coisa acerca de ordenados e disse um número que fez os olhos de Laurie arregalarem-se.

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- Tudo isso e a casa também? - Sentiu-se quase ultrajada por causa dele. - Nunca vai conseguir ter lucro dessa maneira.

O riso súbito de Luke parecia mais um ladrar. - Está a recusar? Ela fitou-o, muito séria. - Não. Não sou assim tão tola. - Depois, sorriu. - Sabe - continuou com

ternura-, eu disse ao seu Joe que ele era o homem mais bondoso que eu jamais conhecera. Deve sair a si.

Luke soltou um resmungo e voltou-se para remexer desnecessariamente na secretária apinhada.

- Bem - propôs após uns instantes -, tudo assente, então? Tire o dia de hoje para os seus assuntos. Começa amanhã.

- Cá estarei - garantiu Laurie, acenando com a cabeça com vivacidade. O Dr. Trevelyan era um homem grisalho e franco. Mirou Laurie por

debaixo das sobrancelhas farfalhudas e indagou: - Em que posso ajudá-la? Laurie explicou-lhe toda a difícil situação de Penny e da vinda para a

casa de Luke durante o Inverno. A seguir, levantou-se e anunciou: - Deixo-o para observar a Penny. O Dr. Trevelyan levantou-se também e pousou-lhe uma mão no braço

para a deter. E a senhora? - Eu? - Não disse uma palavra sobre si. Sabe, é que eu mantenho-me em

contacto com o Luke, e ele com o filho dele, Joe. - Os olhos piscaram. -- Não tem tido dores de cabeça?

- Algumas - respondeu ela, hesitante. - Perturbações de visão? - Às vezes... .` - Talvez precisemos de tirar mais umas radiografias. E essas costelas? - Só me doem quando subo a colina a correr. - Bem; tenha cuidado. Se tiver algum problema, venha ter comigo. - Eu venho. - Mas não tencionava de facto fazê-lo. O trabalho dela

dependia de uma boa saúde. Laurie deixou Penny no gabinete do médico e subiu a rua à procura da

escola, com Jason e Midge a correrem à sua frente. A estrada era íngreme e estreita, com casinhas de pedra encostadas umas às outras. A escola ficava no fim da aldeia, com o pátio de recreio a dar para a vertente da colina selvagem e coberta de urze. Havia crianças no recreio, todas a correr e aos

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gritos, e uma senhora atarracada e de aspecto simpático, com o cabelo salpicado de cinzento, vigiava-as da porta.

Emma Weelkes sabia quem Laurie era. O falatório da aldeia já tinha espalhado a notícia dos arrendatários de Inverno de Luke Veryan. As pessoas de Tregarrow demoravam a aceitar gente nova, mas no fundo eram bastante simpáticas. A viverem ao pé do mar, com muita da população masculina ainda a trabalhar no feroz Atlântico, estavam habituadas a problemas. Sabiam reconhecer a desorientação aturdida que as pessoas tinham quando o destino as maltratava. Laurie tinha esse ar, e já se comentava que ela precisaria com certeza de alguma ajuda.

Portanto, Emma Weelkes deu as boas-vindas a Laurie com um sorriso e disse:

- Deve ser Mrs. Collins. Entre e dê uma vista de olhos. - Conduziu Laurie e as crianças para uma sala de aula grande e cheia de sol, decorada com pinturas de crianças e mapas de parede, e depois a uma sala de creche cheia de brinquedos pintados de cores garridas, mesinhas e cadeiras. - Que idade tem a sua pequenina? - indagou.

- Quatro... Faz cinco pelo Natal. - Mas Laurie apercebeu-se da mão de Midge a agarrar a sua com força. - Só que acho que vamos ter de esperar um pouco até ela estar preparada para a escola.

A professora voltou-se para Midge e convidou: - Gostavas de ver o nosso coelho mascote? Chama-se Maurice, e são os

meninos que tomam conta dele. Falando sempre com à-vontade, levou-os lá para fora, para um pequeno

recinto fechado com arame no canto relvado do recreio. Maurice era um macho grande de orelhas pendentes, pêlo castanho-dourado e um olhar atrevido. Jason ficou encantado.

- Posso fazer-lhe uma festa? - Ele é muito manso. - A professora mostrou a Jason como chegar dentro

da coelheira. - Posso mexer-lhe também? - pediu Midge, e largou a mão de Laurie. - Com certeza. Minutos depois, as duas mulheres afastaram-se silenciosamente. - Há

vaga para Jason? - indagou Laurie. - Há sim, não estamos superlotados. E quanto à sua pequenina... -

Emma Weelkes sorriu. - Deixe que seja ela a decidir

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A primeira manhã de trabalho foi um pouco confusa, mas Laurie começou a descodificar os livros de Luke e também foi aos barracões de empacotamento e às estufas para ajudar nas entregas diárias de hortaliças e fruta. Encontrou o velho Bob debruçado sobre as filas de crisântemos e dálias e ficou a ajudá-lo a atá-los às estacas. Ele levantou os olhos com um sorriso desdentado e cumprimentou com suavidade:

- Bom dia, menina. O tempo ainda está bom. À hora do almoço, Laurie ouviu barulho na cozinha de Luke. Encontrou

lá Penny, envolta num grande avental, e Midge e Jason a porem a mesa. Laurie mirou-a inquiridoramente.

- O Luke sabe que estás aqui? Penny acenou que sim. - Eu disse-lhe, claro. Era burrice cozinhar para os miúdos lá em cima e

deixá-la a si e ao tio Luke à fome. Os olhos de Laurie arregalaram-se. - Ah, então já é o tio Luke, é? - É mais fácil para os miúdos - explicou Penny com vivacidade. Deu

uma mexidela no guisado. - Além disso - acrescentou -, acho que ele até gosta muito. Tem de ter uma espécie de família, não é, com o Joe tão longe e tudo?

Portanto, estabeleceu-se uma rotina. Luke nunca disse se aprovava ou condenava, mas aparecia para as refeiçõs de Penny, e o velho Bob também, e fazia-lhes bem a ambos. A casa de Luke começou também a ter mais aspecto de habitada. Os quartos foram lavados e o pó limpo, e o pedaço de terra à volta da porta da cozinha cobriu-se de repente de rebentos de violetas de Inverno e vasos de sardinheiras.

Laurie mal tinha tempo para si, mas ganhou o hábito de passear até à enseada de manhã cedo. Àquela hora, era tudo pacífico, fresco e sossegado. As areias cremes estavam limpas pela maré e havia corvos-marinhos a espreitar das rochas, com os seus longos e elegantes pescoços recortados na luz matinal. E o mar... O mar a toda a volta, quebrando-se com um movimento suspirado na praia.

“Puro”, pensava Laurie. E com uma estranha sensação de abandono e liberdade despia-se e entrava na água. Não demorava muito. Só tinha tempo para uma nadadela rápida até às rochas e regressar. Depois, corria pela areia fora para aquecer, trepava o carreiro até à casa para tomar o pequeno-almoço com Penny, pôr Jason a caminho da escola, dar um abraço

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extra a Midge para compensá-la de a deixar e descer para a quinta Para mais um dia de trabalho.

Andava atarefada todo o dia e por vezes o trabalho era duro, sobretudo quando saía para ajudar o velho Bob na colheita e na monda. Mas não se importava. Ficava satisfeita por se encontrar infidavelmente ocupada, feliz por dar o máximo, contente por chegar cansada ao fim do dia. Às vezes, as preocupações com o futuro interrompiam-lhe o sono, mas punha-as de lado. A única coisa que a preocupava era a sua visão. Tinha ataques periódicos de visão dupla, de tal maneira que as colunas de números se multiplicavam de súbito. Mas decidiu que aquilo desapareceria com o tempo. Achou que não valia a pena consultar o Dr. Trevelyan.

Em Novembro, veio o primeiro dos temporais de Inverno. As árvores

quase se dobravam ao meio, e as folhas eram arrancadas numa corrente de ouro escuro. As ondas tornaram-se gigantescas e rebentavam contra as rochas amarelo-acastanhadas em grandes torres de espuma. Laurie ficou fascinada, quase petrificada, pelo seu poder terrível e proibiu as crianças de se aproximarem sequer da água. Mesmo assim, foram todos ver as grandes ondas esmagarem-se contra as vertentes ensopadas da falésia e ouviram, aterrados, o rugir da rebentação e a fúria e o bramido do vento.

Havia uma atmosfera de ansiedade em Tregarrow. Os aldeãos conheciam os temporais e o preço que por vezes tinham de pagar.

E na verdade, à noitinha, Laurie viu Luke correr com um rolo de cabo e uma bóia salva-vidas nas mãos e um magote de rapazes da aldeia atrás dele.

- Barco nas rochas - gritou sem fôlego. Após uma olhadela ao céu escurecido, Laurie acendeu a lanterna de

tempestade de Luke e seguiu-os. No topo da falésia, onde a confusão de rochas começava, estava um grupo de pessoas, entre as quais Agnes Penwillis, a enfermeira distrital.

- O que posso fazer? - indagou Laurie, tentando fazer-se ouvir acima do rugido do temporal.

- Não há muito que qualquer de nós possa fazer - ripostou a enfermeira, abanando a cabeça. - O barco partiu-se ao meio nas rochas. - Olhou para Laurie e acrescentou: - Os rapazes estão a trazer macas. Pode haver feridos. Cobertores e um termo de chá podiam dar jeito.

De trás de Laurie veio a voz de Penny. - Eu já trouxe.

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- Penny! - Laurie parecia quase zangada. - Não devias estar cá fora. Podes escorregar numa rocha ou coisa assim.

- Segura que nem um camião - garantiu Penny, sorrindo. - E quase tão grande. - Depois, vendo o rosto ansioso de Laurie, acrescentou: - O velho Bob ficou com a Midge em casa. Diz que está perro demais para ser útil. Mas o Jay vem aí com os outros rapazes e as macas. Houve um súbito movimento confuso e um coro de gritos vindo das rochas, e a seguir um brilho iluminou a cena por um curto instante. Laurie viu a proa de um navio encaixado nas rochas e um cabo esticado da sua superstrutura para um ponto em terra. Um homem balançava suspenso desse cabo, tentando desajeitadamente agarrar-se com ambas as mãos, enquanto os homens em terra o puxavam.

- Um - murmurou entredentes Agnes Penwillis, e preparou-se para receber o seu primeiro ferido. Em silêncio e com eficiência, os aldeãos ensopados passaram o ferido de uns para os outros até ser entregue cuidadosamente à enfermeira. - O que é que sentes? - perguntou ela. - O tornozelo partido, acho eu - respondeu ele.

- Os maqueiros estão aqui - disse uma forma escura perto dela. - A ambulância vem lá em cima.

Agnes deitou as mãos ao trabalho com determinação, e a seguir os maqueiros carregaram o homem para o topo da falésia.

Mais dois homens foram içados ilesos e passados para os salvadores na praia. Depois, veio um gravemente ferido. Agnes fez o que pôde por ele, abanando um pouco a cabeça, e mandou-o para a ambulância. Laurie tinha-se transformado em sua ajudante, passando-lhe ligaduras, tesouras e compressas quando necessário.

O salvamento continuou durante quase toda a noite, e salvaram todos os homens... excepto um que fora atirado borda fora no primeiro impacte e não foi encontrado na escuridão envolvente. Pela madrugada, o grupo esgotado de salvadores mirou mais uma vez o navio naufragado e começou o longo caminho de regresso a casa, encharcado e cansado.

Laurie achou que fora desde aquela noite do naufrágio que os aldeãos começaram a aceitá-la a ela e à família. Penny cruzava-se com caras simpáticas na aldeia quando ia com Midge buscar Jason, vindo da escola, e a própria Midge conheceu um rapazito da creche que lhe gritava sempre que ela passava:

- Então, vens? Vens qualquer dia? E um dia Midge respondeu:

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- Vou! Naquele fim-de-semana, havia uma quermesse na igreja para angariar

fundos para o barco salva-vidas, e Penny insistiu que fossem todos porque talvez houvesse um carrinho de bebé para venda. Havia mesmo um carrinho de bebé, e Penny comprou-o por duas libras. Laurie comprou umas camisolas de lã para os miúdos e um par de jeans para Jason, que estava a ficar grande demais para toda a sua roupa.

Ela encontrava-se junto de uma das tendas, a olhar fixamente para os potes de mel e doce caseiro, quando os seus olhos de repente lhe pregaram uma das suas partidas alarmantes e ela deu consigo a olhar para duas filas de frascos de doce. Balançou um bocadinho, sentindo-se estranhamente tonta e desequilibrada, e depois caiu no chão.

Desta vez, o Dr. Trevelyan insistiu em fazer outra radiografia; por isso, no dia seguinte, ela foi a Penzance de autocarro, faltando, cheia de complexos de culpa, a um dia de trabalho. Teve de esperar muito tempo até decidirem que as radiografias estavam satisfatórias e que podia regressar a casa.

Para a viagem de regresso, o autocarro partiu debaixo do que se tornara uma chuva torrencial, rolando colina acima e colina abaixo no meio de uma tempestade violenta. Laurie não conseguia ver nada através dos vidros, mas lá dentro estava quente e os poucos passageiros sentiam-se embalados pelo barulho monótono do motor, seguros no seu casulo de vidro barulhento.

Mas, de súbito, surgiram luzes na estrada lá à frente e figuras indistintas de impermeáveis com lanternas de tempestade nas mãos.

- A ponte ruiu... - ouviu-se um grito. - Há quase metro e meio de água na estrada.

O motorista conferenciou com os homens na estrada. Depois, gritou aos passageiros:

- Vamos voltar para St. Buryan. Não podemos passar por aqui. - E virou o autocarro de volta à cidadezinha que tinham deixado havia vinte minutos. Ali, o motorista e todos os passageiros aglomeraram-se num bar, onde aquele foi telefonar enquanto os outros pediam bebidas.

Por fim, o motorista largou o telefone e anunciou: - Não se pode passar esta noite. Lamento muito. Dizem que até a

estrada de cima está má.

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Laurie dirigiu-se então ao telefone. Passado bastante tempo, atendeu-a uma voz trémula:

- Está? Quinta Veryan. - Quem fala? - indagou Laurie, surpreendida pela voz fraca e velha. -

Aqui é Laurie Collins. - Ah, Laurie! - A voz pareceu simultaneamente aliviada e aflita. - Aqui,

Bob. Estamos com problemas, rapariga. A Penny começou... - O quê? Mas ainda não está no tempo.

- Eu sei... Escorregou no chão de Mr. Luke, foi... - Já mandaram chamar o Dr. Trevelyan?

- Já tentámos. Saiu nas suas voltas e não pode voltar por causa das cheias. A enfermeira Penwillis está em Poldurran a fazer outro parto. Ninguém cá pode chegar por estrada.

Laurie ficou gelada de medo. - Eu também estou presa, Bob. O autocarro teve de voltar atrás para St.

Buryan. O que é que vamos fazer? - Mr. Luke foi tomar conta dela e dos miúdos. - A voz abalada e

esganiçada hesitou. -Ele já ajudou a parir uns tantos vitelos quando era mais novo. Acho que vai saber o que fazer.

Laurie tentou imaginar Penny a lutar para ter o filho apenas com a orientação pouco experiente de um velho lavrador para a ajudar. “Tenho de lá chegar seja como for. Seja como for.” Em voz alta, disse:

- Se conseguir ir até lá a casa, diga a Mr. Luke que vou lá ter seja como for e dê um beijinho à Penny. Diga-lhe que vou a caminho.

- Eu digo, menina. Mas cuidado! As estradas estão perigosas. Laurie desligou, decidida a pedir ajuda. Certamente alguém teria um veículo que conseguisse passar. Falou, desesperada, com o dono do bar, que bateu com força no balcão com uma caneca de cerveja.

- Esta jovem aqui - anunciou - quer um voluntário para a levar o mais perto possível de Tregarrow. Há um bebé para nascer; o médico e a enfermeira não podem lá chegar. Alguém se sente com coragem para enfrentar o temporal?

Houve silêncio por instantes. - Se alguém me deixar perto do carreiro da falésia, posso fazer o resto a

pé - garantiu Laurie.

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- Perigoso com este vento... - declarou alguém com dúvidas. Uma figura quadrada e corpulenta levantou-se de uma cadeira junto do lume e ofereceu:

- Tenho um Land-Rover aqui. Se há um bebé para nascer, acho que é melhor tentarmos.

O dono do bar exclamou: - Boa sorte! - Como um coro, os restantes repetiram. O homem entroncado agarrou Laurie por um braço com firmeza e

levou-a para o Land-Rover. Ajudou-a a entrar e trepou também, amaldiçoando baixinho a cascata de água que lhe entrou pelo pescoço ao abrir a porta do lado do condutor.

- Chamo-me Tom Tremayne - gritou-lhe acima do ruído do motor e do rugido do vento lá fora. - É melhor tentarmos a estrada de cima e cortar para trás.

Laurie acenou que sim, apertando as mãos uma na outra e desejando manter a calma suficiente para não começar a gritar “Despache-se!”

O Land-Rover entrou na estrada e embrenhou-se noite dentro. Tom não falava muito, mantendo os olhos pregados na estrada à sua frente. De repente, descobriu um sinal na beira da estrada, à esquerda, e meteu-se pela estrada secundária.

- Por aqui talvez dê... O Land-Rover avançava aos solavancos. A certa altura, deram com um

monte de pedras de uma derrocada de um muro, mas Tom limitou-se a virar para um portão aberto e conduziu, chocalhando e derrapando, através da estrema superior de um campo de volta à estrada. Por fim, depararam com um sinal que dizia TREGARROW.

- É esta a estrada que está inundada - afirmou Tom. - Acha que consegue ir a pé a partir daqui?

- De certeza que consigo. - Laurie soava absolutamente confiante -, se me indicar o caminho.

Ele fez que sim com a cabeça, mas continuou a avançar. - Vamos até onde conseguirmos.

Desviaram-se novamente para evitar uma estaca caída, e então o Land-Rover travou de repente. À frente, havia uma interrupção profunda na estrada e uma extensão brilhante de água das cheias.

Dois candeeiros a petróleo vermelhos tinham sido colocados no meio da estrada como aviso. Laurie olhou para Tom.

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- Pode dar a volta aqui e regressar. Mas Tom apeou-se e deu a volta ao carro para a ajudar a descer. - Tem a lanterna? Venha, acompanho-a pelo carreiro da falésia. É

traiçoeiro com este tempo... Nem ligou ao protesto de Laurie e conduziu-a firmemente pelo braço.

Andaram durante muito tempo em silêncio, ouvindo o rugido do vento e a rebentação a estoirar lá em baixo nas rochas do cabo de Tregarrow. Por fim, viram janelas iluminadas num monte de edifícios escuros e, abaixo deles, a casa de Luke.

- Ora aí está - comentou Tom. - Agora vai ficar bem. - Oh, mas... - Laurie falou rapidamente. - Por favor, entre. Podia ao

menos beber um chá quente. - Está bem - disse ele, depois de uma hesitação momentânea.

Caminharam sobre a lama até à casa e entraram. Laurie deixou Tom e correu escada acima, dizendo por cima do ombro:

- Tire a roupa molhada. Entrou de rompante no quarto e encontrou Penny deitada na cama,

esticada, agarrada à cabeceira de ferro com mãos desesperadas. Luke estava debruçado sobre ela e aconselhava:

- Tem calma, rapariga. Tem calma. Não tenhas pressa demais. - Ergueu os olhos quando Laurie entrou e o rosto abriu-se-lhe num grande sorriso de alívio. - Ainda bem que chegou.

Laurie inclinou-se para Penny e pousou uma mão fria e húmida contra o seu rosto afogueado.

- Já cá estou. Não te preocupes. Vai correr tudo bem. - Não sabia como é que ia correr tudo bem. Mas havia de correr. Afinal, ela própria tinha tido dois filhos. Tinha obrigação de saber o que fazer. E havia Luke, que não era parvo nenhum. Reparando na cara cansada e cinzenta dele, pediu com delicadeza: - Importa-se de ir lá abaixo falar com o Tom Tremayne? Foi ele quem me trouxe.

Luke presenteou Penny com um sorriso de confiança. - Volto já, rapariga - disse. - Mas ficas em boas mãos. Penny gemia e apertava as mãos na cabeceira da cama de ferro e

arqueava as costas contra a dor. - As águas rebentaram... há bocado - arquejou ela. - Provavelmente, já

não demora muito... Ai! - Cerrou os dentes, gemeu de novo e caiu de costas,

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exausta, quando a dor abrandou. - Está toda molhada - observou, ofegante. - É melhor tirar... apanha uma constipação...

Laurie tirou o casaco molhado e vestiu uma saia e uma camisola secas antes da contracção seguinte. Nessa altura, já estava ao lado de Penny a segurar-lhe as mãos. Jason entrou no quarto com uma chávena de chá.

- O tio Luke disse que lhe fazia bem, mãe - declarou, sério. - Está muito molhada?

- Já não - Laurie sorriu. - Onde está a Midge? - Está a dormir. Pusemo-la no seu quarto. Mas eu fiquei acordado.

Pensei que talvez pudesse ajudar. - E podes! - concordou Laurie. Jason sorriu-lhe, não parecendo nada perturbado pela violência do

nascimento iminente, e saiu em bicos de pés lá para baixo. Laurie tentava desesperadamente lembrar-se de todas as diferentes

fases do parto e de todas as coisas que devia fazer. Desejou que Penny não fosse tão jovem. Seria mais penoso para ela? Haveria complicações? Desejou que Agnes Penwillis lá estivesse ou o Dr. Trevelyan. O que é que havia de fazer se as coisas corressem mal?

Foi então que Luke voltou com um jarro de água quente, lençóis e toalhas limpas.

- O Tom Tremayne vai-se embora - anunciou. - Vai fazer os possíveis por contactar a Agnes.

- Ai! - gritou Penny. - Ai, ela que se despache e venha! - Tenta descontrair-te e respirar fundo - pediu Laurie, segurando-lhe a

mão. - Tenta, Penny... pode ajudar. - Sombriamente, os seus olhos encontraram-se com os de Luke.

- Calma -- murmurou Luke. - Calma, rapariga. Já não tarda muito... Perderam a noção do tempo, mas todos sentiram o ritmo inexorável do

parto a acelerar, a intensificar-se e a alcançar o seu clímax. E de súbito houve um arquear desesperado e um grito rouco de Penny; e uma criaturinha vermelha apareceu, contorcendo-se, no lençol, e um gritinho feroz e fraco de protesto rompeu o ar.

Laurie lembrou-se de atar o cordão umbilical antes de o cortar. E foram as mãos velhas e seguras de Luke que seguraram no recém-nascido, enquanto ela o lavava e embrulhava num cobertor.

- O que é? - murmurou Penny, exausta e sem energia. - Está tudo bem. - É uma menina - anunciou Laurie, sorrindo. - E é perfeita. Olha!

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Estava ela a colocar o bebé nos braços de Penny e Luke a baixar-se sobre ela para lhe dizer de forma rude “Muito bem, rapariga!”, quando se ouviram passos a correr escada acima e Agnes Penwillis entrou de rompante a pingar água.

- Desculpem - disse sem fôlego. - Vim a pé pelo carreiro da falésia. O tempo está horrível. - Os seus olhos dirigiram-se para a cama e o rosto abriu-se-lhe num sorriso. - Mas vejo que se desembaraçaram muito bem sem mim. - Tirou o bebé a Penny, entregou-o a Laurie e passou à acção com a calma determinação da experiência.

Laurie sorriu a Luke e disse baixinho: - Obrigada. Não teríamos conseguido sem si. Luke encolheu ligeiramente os ombros, como se não fosse importante. - É quase igual ao nascimento de um bezerro - declarou com um brilho

de malícia -, só que as vacas são maiores. Aquela pequenita foi esplêndida! Isto, vindo de Luke, era um grande elogio, e Laurie deitou uma

olhadela a Penny para ver se ela tinha ouvido. Mas os olhos dela estavam fechados e o seu cabelo ruivo brilhante espalhava-se sobre a almofada, desgrenhado e escurecido pelo suor. Parecia incrivelmente jovem, uma criança apanhada numa experiência demasiado violenta para conseguir suportar. Suspirando, Laurie virou-se exactamente quando a voz de Jason surgiu do umbral.

- Ouvi o bebé a chorar. Posso vê-lo? Penny abriu os olhos e sentou-se, apresentando melhor aspecto. Laurie

acenou que sim e levou Jason para perto dela. Ele estendeu uma mão tímida e tocou na cabeça húmida e macia do bebé.

- Tão pequenina - sussurrou. - Como é que lhe vais chamar? - perguntou, enquanto Laurie punha o bebé outra vez nos braços da mãe. - Não sei. - Penny olhou para a cara da filha com uma ternura triste. - Devia ser uma mistura de madrugadora, temporal e tempestade. Rosa de Natal - afamou Luke Veryan de súbito.

Olharam todos para ele, admirados. Mas Luke continuou calmamente: - Elas surgem de repente no começo do Inverno. Não se importam com

a chuva nem o vento; são muito tenazes elas, e todas branquinhas e puras. , Pairou um silêncio espantado no quarto por momentos. Nenhum deles

esperara tal discurso poético de um velho lavrador da Cornualha. Então, Penny olhou para ele com uma alegria súbita:

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- Certo, então - declarou. - Fica Rosa de Natal. Mas suponho que vamos chamar-lhe só Rosa.

Na véspera de Natal, Luke levou o último carregamento de plantas para

Penzance de manhã bem cedo e regressou mesmo quando Penny e as crianças estavam a pôr na mesa um almoço quente. Quando abriu a carrinha, lá dentro encontrava-se uma árvore de Natal, uma caixa de enfeites e algumas luzes de Natal.

- A árvore é para si - disse ele a Laurie. - Vamos fazer um jantar de Natal - anunciou Laurie. - Queremos que o

senhor e o Bob estejam connosco. - O quê? - exclamou o velho Bob, surpreso. - Eu? Penny fez que sim com

a cabeça, dizendo: - Claro. Todos juntos. É Natal. Laurie sorriu e declarou: - Então, está combinado. Na manhã seguinte, ainda houve mais surpresas. Penny e Laurie

tinham sido comedidas, mas cada uma conseguira um presentinho para toda a gente. O velho Bob deu à família uma colecção de nós de marinheiro, maravilhosamente feitos, dispostos numa tábua e ofereceu-se para ensinar Jason a fazê-los. Quando o jantar de Natal estava quase pronto, Joe chegou de Londres com uma braçada de roupas mandadas por Jane. A seguir, Joe deu-lhes outro embrulho e anunciou:

- Este é do vosso amigo Clem. Lá dentro havia animais minúsculos esculpidos por Clem: uma lontra e

um conjunto de patos-reais. No fundo, uma pena branca e pura de cisne com uma etiqueta, PARA LAURIE.

Após o jantar, Joe pegou na pequena Rosa ao colo e levantou-a para ver as luzes a brilhar e a piscar na árvore, enquanto Luke fixava atentamente os olhos do bebé, acenava com a cabeça e sorria.

- Joe - afirmou Laurie por fim -, acho que este é o Natal mais feliz da nossa vida.

JEFF saiu da prisão no fim de Janeiro, num dia frio de chuva e vento. A primeira coisa que fez foi tomar uma bebida no bar mais próximo.

Após dois whiskies sentiu-se melhor. Depois de três, olhou para o dinheiro, que escasseava, e resolveu ir para casa.

Na casa fria e vazia, deambulou desconsoladamente de quarto em quarto. As coisas de Laurie tinham desaparecido, e as das crianças também.

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Praguejando, deu um pontapé numa cadeira numa névoa de autocomiseração solitária.

Laurie e os miúdos tinham sido um inferno quando lá estavam, mas agora que se encontrava entregue a si próprio sentia falta deles. Ao ir servir-se de uma bebida, viu a sua cara no espelho da cozinha. “Aquilo sou eu?”, pensou, abismado. “Aquele farrapo curvado e barbudo? Eu? O jovem e desembaraçado Jeff Collins, vendedor nato, com uma mala cheia de encomendas e uma mulher bonita em casa?” Como descera tanto?

Então, de súbito, naquele momento de dolorosa lucidez, percebeu que ele - Jeff Collins - fizera aquilo a si próprio. Respirou fundo e fez a única coisa de que era capaz. Deu um murro no espelho. O momento de verdade espalhou-se em fragmentos de vidro no chão da cozinha.

No dia seguinte, dirigiu-se ao edifício dos serviços sociais e falou com uma das assistentes sociais. Pouco tempo depois, a mulher tinha uma imagem de um marido penitente e consciencioso, desempregado e ansioso por manter a sua jovem família unida, que perdera a cabeça uma vez, só uma vez, e nunca mais deixara de se arrepender. Queria persuadir a esposa a voltar. Tinha saudades dos filhos. A assistente social foi procurar mais alguns pormenores e regressou com uns registos de pagamentos.

- Bem, Mr. Collins - afirmou -, compreendo o seu problema, mas receio que não possa dar-lhe o endereço da sua esposa. É contra o regulamento. De qualquer forma, os abonos estão agora a ser pagos noutra repartição nossa, que nem é sequer desta zona.

“E agora?”, pensou Jeff. Olhou para o outro lado da secretária, para a assistente social e para os papéis à frente dela. Um deles tinha uma morada no topo: o departamento dos serviços sociais de Penzance.

Penzance? Que diabo estava Laurie a fazer em Penzance? Se se dirigisse aos serviços sociais de lá, talvez lhe dissessem alguma coisa. Jeff agradeceu à assistente pelo seu tempo e paciência e saiu tão depressa quanto pôde. Quando chegou a casa, Mrs. Banks, a vizinha do lado, estava encostada à vedação a olhar para ele. Andava sempre por ali a tagarelar e a observar o que se passava.

- Ela foi-se embora de vez, não foi? - atirou-lhe Mrs. Banks em voz alta, mirando-o de alto a baixo com desprezo.

- Quem? - perguntou Jeff, apanhado de surpresa. - A sua mulher. Levou as malas e foi-se embora com um fulano com

uma carrinha.

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- Que carrinha? - ripostou Jeff com a cabeça a andar à roda. - Que fulano?

- Namorado novo, não me espantava nada. Um grupo de miúdos vizinhos brincavam na rua e ouviam a troca de

palavras com manifesta satisfação. Um deles pôs-se aos saltos e a cantarolar: - Laurie foi-se embora numa carrinha. Laurie foi-se embora... - Que

carrinha? - gritou Jeff. - Do Joe - retorquiu o rapaz. - Dizia na carrinha, percebe? Joe's. -

Hortaliças - acrescentou outro garoto solicitamente. - Mercado da Kite Street - informou o primeiro rapaz, que nunca perdia

pitada. - Dizia na carrinha, percebe? - entoaram. Jeff localizou a Kite Street no dia seguinte sem grande dificuldade.

Estava cheia de barracas e de gente. Todos os donos das barracas conheciam Joe. Joe Veryan. Não estava lá na altura, informaram. Tinha ido a Kent buscar as hortaliças. Mas havia de lá estar no dia seguinte, quando chegasse a mercadoria vinda de Penzance.

- Penzance? - exclamou Jeff, mirando-os, desvairado. - Do pai - explicou alguém. - Manda-lhe mercadoria regularmente. Jeff tinha conseguido aquilo para que viera. Veryan. Penzance. E Laurie

tinha partido na carrinha de Joe. Iria a Penzance no dia seguinte, e quando apanhasse Joe, quem quer que ele fosse, ensinava-lhe a não se meter com as mulheres dos outros.

Laurie apanhava narcisos. As coisas tinham andado mais calmas na

quinta em Janeiro, mas o Inverno mantivera-se suave e húmido e os narcisos tinham florido cedo. Agora, havia muito trabalho e Laurie adorava isso. Gostava da sensação dos caules robustos nos dedos e dos botões gordos e verdes a tentarem tão ardentemente abrir-se em flores douradas.

De manhã, chegara um camião cheio de apanhadores, de St. Buryan, para ajudar, e Laurie habituara-se a vê-los movimentarem-se lentamente através dos campos verdes de narcisos, por isso não ergueu os olhos de imediato quando alguém se aproximou.

- Olá, Laurie - cumprimentou uma voz bem perto, por cima da cabeça dela.

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Ela ficou gelada. As suas mãos, apertando os narcisos, ficaram paralisadas de terror. Levantou os olhos, incrédula para a cara tensa de Jeff, que sorria perigosamente. Passou-lhe uma série de pensamentos pela cabeça, mas predominante foi a rápida percepção: “Está bêbado e furioso. Não posso levá-lo para perto da casa. A Penny e o bebé estão lá, e as crianças estão a chegar. Tenho de levar o Jeff para longe, tenho de o enfrentar e fazê-lo ver a razão.” Levantou-se devagar e pousou os seus molhos de narcisos. Tinha um forte nó de medo no estômago.

- Surpreendida? - perguntou Jeff com a voz sibilante como uma chicotada.

- Não muito - respondeu Laurie com sinceridade. - Achei que ias acabar por conseguir. - A seguir, acrescentou com a maior calma que conseguiu: - Vamos.

- Vamos aonde? - A pergunta pairou no ar como uma ameaça. - Suponho que queiras conversar - retorquiu Laurie com sensatez. - É melhor caminharmos ao longo da falésia... É mais privado. - Começou a andar e Jeff seguiu-a, com a frustração a aumentar. - Então? - Laurie parou quando estavam fora do alcance da vista da quinta e da casa. - O que queres?

Jeff estava espantado. - O que quero? Quero-te de volta aonde pertences; e aos miúdos

também. - Porquê? - A pergunta foi franca e sem rodeios. - Porquê? Porque és

minha mulher... é por isso. Laurie deu um suspiro. - Não, Jeff. Já não sou. Expliquei-te isso tudo. - Explicaste uma ova! - berrou Jeff de forma brutal. - Vais voltar comigo.

Já! - Agarrou-lhe um braço. - Larga-me. - Laurie falou de maneira bastante suave, mas havia de

certa forma uma ameaça na sua voz. Jeff deu um passo atrás e levantou a mão num gesto quase automático.

Mas parou porque desta vez Laurie não estremeceu e ripostou com firmeza: - Não sejas idiota. Se me bateres, só te vai servir para ires parar outra

vez à cadeia. Porque não te acalmas e és razoável? - Razoável? - A calma de Laurie parecia enfurecê-lo ainda mais. -

Quando a minha mulher e os meus filhos fugiram, a minha casa está suja e fria e não há nada para comer?

Laurie deu uma gargalhada.

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- Ah! Agora é que estamos a tocar no ponto. Precisas de uma governanta, Jeff, não de uma esposa. Só que, claro, não podias andar a dar-lhe pancada o tempo todo.

Jeff praguejou e precipitou-se para ela de punhos fechados. Um deles deu-lhe uma violenta pancada de lado na cabeça, e Laurie pestanejou com a dor, que lhe atravessou o cérebro já traumatizado.

“A culpa é minha”, pensou ela. “Não devia espicaçá-lo. Tenho de tentar argumentar com ele.” Mas antes que pudesse dizer o que quer que fosse, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Jeff atirou-se a ela de novo, e ela deu consigo a lutar selvaticamente com ele. Midge veio a correr pelo carreiro da falésia, gritando, assustada:

- Mãe! E exactamente quando Jeff se voltou para olhar para a criança, Jason

passou a correr por ela e lançou-se contra o pai como um pequeno tornado. - Pare com isso! - gritava o rapaz. - Pare de lhe bater! Vá-se embora! - E

esmurrava Jeff com os seus pequenos punhos num ímpeto de raiva protectora.

- Jay! - chamou Laurie com voz dura. Mas era tarde demais. Jeff soltou uma imprecação selvagem e atirou

com Jason para o chão. Midge deu um grito alto e prolongado e recuou na direcção da orla da falésia.

- Midge! - A voz de Laurie elevou-se desesperadamente. - Fica quieta! Mas a criança estava fora de si com o medo. No momento em que Jeff se

moveu na sua direcção, ela deu mais um passo atrás. O pé deslizou-lhe na erva escorregadia; ela agitou os braços no ar descontroladamente, tentando manter o equilíbrio, e desapareceu para lá da beira com um grito de terror.

Durante um segundo, Laurie ficou pregada ao chão. A seguir, atirou-se ela própria para a beira e espreitou. E lá estava Midge, agarrada ao rebordo de um rochedo, com a saia presa num pequeno arbusto de giesta que crescia na superfície da falésia. Parecia ilesa, embora estivesse para lá dos limites do pavor.

Nessa altura, Jason levantou-se, abalado, mas não muito magoado. Laurie relanceou o olhar na sua direcção e ordenou-lhe:

- Jay, corre e vai buscar ajuda - e ficou aliviada de o ver encher o peito de ar, como que a tomar uma decisão, e obedecer-lhe. Pelo menos, ele estaria longe de problemas. Mas agora Jeff aproximava-se com um brilho

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louco e estranho nos olhos. Laurie sabia que tinha de o convencer, fosse como fosse.

- Jeff - chamou ela, contendo a histeria que crescia dentro de si. - É a tua filha lá em baixo. É a tua filha. Queres matá-la?

Jeff parou, balançando um pouco sobre os pés, com a mistura de álcool e de fúria lutando dentro de si.

- Midge? - indagou de forma insegura. Então, também ele olhou por sobre a beira. - Meu Deus! - Pareceu ficar sóbrio de repente. - Temos de ir buscá-la. - Começou a avançar de novo, como se tencionasse descer atrás dela.

Midge viu-o e gritou outra vez, agarrando-se ainda mais ao rochedo e apertando as mãos sobre o tronco áspero do arbusto de giesta.

- Não! - gritou Laurie. - Tu não, Jeff. Ela tem pavor de ti. Não teve tempo de ver a chicotada de consciencialização amarga no

rosto de Jeff ao aperceber-se de que a sua própria filha tinha tanto medo dele que preferia arriscar morrer a suportar a sua proximidade.

- Eu desço... - continuou Laurie, persuasiva. - Além disso, sou mais leve e podes segurar-me e puxar-nos às duas.

Sem esperar pela resposta dele, começou a deslizar cautelosamente pela beira, tentando não olhar para o vertiginoso declive até à confusão de rochas afiadas lá em baixo e do mar agitado mais além. Tufos de urze a crescer nas fendas davam-lhe algum apoio. Por fim, o seu pé tocou na saliência em que Midge estava agarrada. Então, Laurie parou. Se tentasse segurar-se ao arbusto de giesta, o seu peso podia arrancá-lo da rocha, por isso deslocou-se devagar e cautelosamente um pouco mais para baixo e escorou. os pés numa rocha saliente. Só então estendeu os braços e abraçou a criança aterrorizada.

- Está tudo bem - murmurou. - Estás segura agora. Jeff, entretanto, tinha tirado o casaco e estava deitado de barriga para

baixo no topo da falésia, com o casaco pendurado para lá da beira. Não era suficientemente comprido. Tirou a gravata e amarrou-a bem à ponta de uma das mangas. Depois, suspendeu-o de novo. Desta vez, Laurie já lhe conseguia chegar.

- Amarra-o à Midge de uma forma qualquer - gritou ele - que eu puxo-a para cima.

Laurie fez o que ele lhe disse. Mas foi preciso aliciar muito Midge para se mexer sequer quando viu Jeff a olhar para baixo para ela.

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- Tenta, querida - pediu Laurie. - O pai só está a querer ajudar-te. Por favor, tenta trepar. Isso mesmo. Agora o outro pé. Estou mesmo aqui atrás de ti.

Com cuidado e horrível lentidão, Laurie incitou a aterrorizada criança a subir, milímetro a milímetro, a superfície perigosa da falésia. Devagar, Jeff puxou Midge e por fim içou-a por cima da extremidade da falésia.

Mas, ao fazê-lo, o ressalto argiloso debaixo dele começou a esboroar-se num sinistro rumor de pedras.

- Foge, Midge. Depressa! - gritou ele, e atirou a criança para trás antes de começar a cair em câmara lenta pela falésia abaixo.

Laurie encontrava-se encalhada abaixo dele, nem seguramente apoiada pelo arbusto na saliência em que Midge estivera, nem ao alcance do topo. Agachou-se ali, horrorizada, quando uma chuva de pedras soltas e seixos de areia desabaram sobre ela. Juntamente com elas, desamparadamente apanhado numa torrente de pedras, vinha Jeff.

- Cuidado! - gritou ele quando as pedras começaram a rolar. Laurie estendeu-lhe uma mão no momento em que ele revolteava ao passar, e ele, desesperado, agarrou-lhe o pulso. O choque do peso dele deu-lhe um tal esticão na articulação do ombro que Laurie deu um berro. “Tenho o ombro deslocado”, pensou ela. “Será que vai aguentar?” E quando uma pedra pesada ressaltou da superfície da falésia e lhe bateu no mesmo braço esticado, ela mal sentiu a outra dor.

Tinha fechado os olhos aquando do abanão inicial, mas depois abriu-os de novo e deu por si a fitar a cara de Jeff. Ele estava suspenso no ar, com as pernas a abanar desesperadamente, enquanto uma cascata de pedras continuava a cair à sua volta. O aperto no pulso dela era a única segurança que tinha contra a morte certa.

- Agarra-te - disse ela em voz fraca, doente de dores, incapaz de o ajudar a ele ou a si própria por muito mais tempo.

E Jeff agarrou-se. Mas o peso do seu corpo era mais do que Laurie conseguia suportar, e ela começou a sentir-se deslizar ligeiramente para baixo. Em breve, seria um deslocar, e a seguir um resvalar inevitável e ambos cairiam.

- Agarra-te - repetiu ela, tentando manter a lucidez. E olhou para baixo de novo, bem para dentro dos olhos aterrorizados e mortiços de Jeff.

Mas estes já não estavam aterrorizados. De certa forma, quando Laurie olhou para baixo, pareceram tornar-se límpidos e mais conscientes. Naquele

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olhar estava a consciência de tudo o que Jeff fora ou podia ter sido, do que a sua jovem esposa podia ter sido se ele tivesse sabido como amá-la e acarinhá-la. E naquele olhar penetrante estava a súbita percepção do perigo que Laurie corria: Como a força do peso do seu próprio corpo estava a arrastá-los a ambos para a destruição.

- Laurie - disse ele de forma muito calma e clara -, desculpa... - E os dedos que agarravam o pulso dela com uma força convulsiva e desesperada soltaram-se lentamente um a um, e ele largou-se.

Talvez a sua força, que diminuía, tivesse cedido. Talvez os dedos apenas tivessem perdido força. Talvez todo o seu corpo encharcado em álcool e a desintegrar-se tivesse desistido, desalentado. Nunca ninguém saberia a verdade. Mas para Laurie, ao ver a expressão dos olhos dele, era tudo muito claro. Jeff sabia o que estava a fazer. Tinha visto as duras alternativas do futuro num momento único de lucidez e não fora capaz de o suportar. Por isso, escolhera: largara-se.

- Jeff! - gritou Laurie. - Jeff! Não! Durante segundos, ele parecera ficar suspenso no ar, de olhos postos em

Laurie, com a sua estranha e penetrante lucidez. E a seguir desaparecera, precipitando-se, revolteando uma e outra vez até o seu corpo embater nos rochedos lá em baixo, estatelado, de braços e pernas abertos, e totalmente imóvel.

Laurie não conseguia vê-lo. Misericordiosamente, a vertente da falésia tinha uma pequena protuberância antes do último declive terrível. Só via o extremo dos rochedos e a espuma branca a saltar sobre eles, lavando-os sem parar.

Agarrou-se ali, desamparada e a chorar, com o seu braço direito inútil ainda a balançar à frente dela. Jeff tinha morrido. Não houvera maneira de evitar aquela queda horrível. Mas chorou tristemente e com dolorosa pena pelo jovem de cabelo brilhante e sorriso sedutor que outrora tanto amara. Ainda estava agarrada ali quando os socorristas chegaram a correr, com cordas, ganchos e macas, com Jason à frente deles.

Midge estava ilesa, à excepção de algumas arranhadelas, embora

terrivelmente assustada. Mas Laurie não teve a mesma sorte. Tinha o ombro deslocado e o braço partido em dois sítios, onde a pedra lhe batera, e tiveram que lhe pôr talas. Não se lembrava bem daquilo, uma vez que estava quase desmaiada de dor e choque quando os seus salvadores

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chegaram junto de si. Mas na manhã seguinte deu consigo deitada numa cama de hospital limpa, com o braço engessado apoiado numa almofada e Luke Veryan a fitá-la.

- Não vou demorar-me - disse ele em voz rouca. - Vim para dizer que tomo conta da jovem Penny e das crianças.

Laurie acenou com a cabeça. - Suponho que... Jeff? - Morreu antes de chegarmos junto dele. - A sua expressão ficou de

repente bondosa. -Deve ter sido instantâneo. -Estendeu uma mão nodosa e agarrou as dela. - Não tenha pena, rapariga. Foi melhor assim.

Laurie não lhe respondeu. Encontrava-se demasiado ocupada a engolir as lágrimas. “Tinha tanto medo dele”, pensou. “E às vezes odiava-o: Mas nunca... nem uma única vez... desejei que morresse.”

- Não vamos falar agora - aconselhou Luke numa voz reconfortante. - Veja se dorme. - Fez-lhe uma festa de forma desajeitada. - Ainda bem que está viva, minha filha - afirmou com brusquidão, e saiu do quarto com passos pesados.

Laurie afundou-se de novo nas almofadas e fechou os olhos, por isso não viu outra pessoa chegar e ficar à porta. Não percebeu que lá estava alguém, até uma voz chamar:

- Laurie? “Não pode ser”, pensou. “Estou a sonhar. É só porque estou tão

cansada e preciso tanto de apoio...” - Laurie? - chamou de novo a voz. Os seus olhos abriram-se num repente, incrédulos. - Tu? És mesmo tu? - Sou eu - disse Clem, sorrindo com um ar grave. - Posso entrar? O rosto

de Laurie enrugou-se e ela tentou estender o único braço são. - Oh, meu Deus... Clem!

Ele atravessou o quarto com uma única passada e abraçou-a com força, de maneira que ela pudesse encostar-se no seu ombro como uma criança cansada, sentindo o calor e a força dele envolvê-la num manto de bem-estar. De repente, os terríveis acontecimentos da véspera abateram-se sobre ela e começou a chorar desesperadamente.

- Eu tentei - repetia. - Eu tentei, mas não consegui segurá-lo, Clem. Ele largou-se. Percebeu que me estava a puxar para baixo também. Ele largou-se!

- Sim - concordou Clem com calma. - Claro que largou... - E embalou-a nos braços, esperando que a tempestade passasse.

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Por fim, Laurie acalmou-se. Clem deitou a mão a um monte de lenços de papel que se encontravam sobre a mesa, secou-lhe com meiguice o rosto e afastou-lhe o cabelo dos olhos com dedos amorosos.

- Vá lá - pediu, entregando-lhe um lenço. - Assoa-te. Laurie riu-se e fez o que ele lhe disse. Depois, ainda abismada coma

presença dele, disse: - Não percebo como é que estás aqui. Clem segurou-lhe na mão. - É simples, na verdade. Tinha assuntos a tratar em Exeter e Truro. As

pessoas do Wildlife Trust estão a planear montar mais um ou dois santuários de aves. É aqui perto e achei que devias gostar de uma visita. Laurie arregalou os olhos para ele sem acreditar.

- Ainda não compreendo como sabias que precisava de ti exactamente agora.

O sorriso morreu no rosto de Clem e ele mirou-a com uma seriedade súbita e penetrante:

- Eu também não - afirmou em voz baixa. - Mas graças a Deus que sabia. O enterro foi discreto e sossegado, um serviço fúnebre triste no

crematório, mas com flores surpreendentemente belas. - Foi o velho Bob quem as arranjou - explicou a voz resmungona de

Luke Veryan, ao lado de Laurie. - Disse que você gostaria. Jeff partira... e apenas restavam umas cinzas e um ramo de radiosas flores de Primavera. A mão de Clem avançou calmamente e envolveu a dela num aperto forte e tranquilo. E Luke Veryan declarou numa voz rouca:

- Nada mais a fazer aqui. É melhor irmos para casa. Clem ficou mais três dias. Nessa altura, Laurie já tinha falado com a

advogada, Madeleine Williamson, pelo telefone e combinado ir a Londres mais tarde para resolver os assuntos dela. Jeff não possuía muito para deixar, apenas a mobília da casa e um seguro de vida que ia, na maior parte, ser absorvido pelo pagamento das dívidas dele. Mas Laurie ficaria livre de qualquer ónus e com algum dinheiro de sobra no fim.

Clem foi incansavelmente bondoso para com os miúdos e passou muito tempo a persuadir a pequena Midge a voltar a rir. Apaixonou-se à primeira vista pela Rosinha de Natal. Era agora um bebé excepcionalmente bonito - com um começo de caracóis ruivos macios como os da mãe e os olhos mais azuis, grandes e curiosos do Mundo.

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Antes de partir, Clem levou Laurie ao alto das colinas, sentou-a numa rocha sob o sol fraco da Primavera e preparou-se para falar.

- Tenho saudades dos cisnes - declarou Laurie de repente. - Há tudo o mais aqui, aves marinhas por todo o lado, mas não há cisnes. Clem sorriu. Era a oportunidade por que esperara. Enfiou a mão no bolso, tirou de lá qualquer coisa e pousou-lha na mão.

- A chave da caravana que está no meu pátio - explicou. - Lembras-te dela? Bastante velha, mas tem quatro beliches e espaço para um berço de bebé. E uma pequena zona de cozinha. - Laurie tinha os olhos pregados nele, sem palavras. Clem riu-se ligeiramente com a expressão dela, pousou-lhe um braço meigo à volta dos ombros e deu-lhe um abanão amoroso. - Quanto aos pormenores práticos... - Estava decidido a ser enérgico e objectivo, embora o olhar especado e incrédulo de Laurie o perturbasse um pouco. - Há uma escola primária bastante boa na aldeia. Acho que o Jay e a Midge vão gostar dela. E para o caso de tu e Penny quererem assistir a aulas à noite ou coisa assim, há um autocarro. E eu estaria por perto se precisassem de qualquer coisa.

- Clem... pára! - exclamou Laurie com os olhos rasos de lágrimas. Ele parou, olhando para todo o lado menos para ela.

- E quanto a emprego, tenho a certeza de que o Stan te recebe de volta, sem falar nos seus vários amigos lavradores, que são todos uns zeros em contabilidade.

- Pára com isso - repetiu Laurie. - Oh, Clem - ergueu a mão e tocou-lhe o rosto, a tremer -, não sei se eu...

- Não faz mal - retorquiu ele com rapidez. - Sem compromissos. Sei que tens um longo caminho a percorrer ainda, mas um dia...

- É exactamente isso. - Laurie parecia perturbada e desesperadamente franca ao mesmo tempo. - Não sei se sou capaz de...

Ele riu-se de súbito e,inesperadamente, inclinou a cabeça e beijou-a. Era para ser um beijo leve, suave e meigo, mas transformou-se em algo completamente diferente, longo, forte e apaixonado, e Laurie sentiu o seu próprio desejo inesperado crescer dentro de si. Após um momento estranho e palpitante em que o tempo parou, Clem afastou-se e olhou para ela, sorrindo.

- Ias a dizer que não sabias se eras capaz de amar alguém, não ias? - Ela fez que sim com a cabeça, e as lágrimas caíram-lhe como cristais de arco-íris contra o sol. - Bem, agora já sabes.

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“Sim”, pensou ela, em pânico, “agora sei e estou cheia de medo. Sei o que a paixão pode fazer. Já vi a paixão transformar um homem que era um companheiro amoroso num desconhecido cruel.” Suspirou e pegou na mão de Clem. Os dedos eram longos, extremamente sensíveis nas pontas, delicados e fortes, e, de certa forma, incorruptíveis.

- Não é justo - sussurrou. - Neste momento, não é justo para ti. - Isso decido eu - ripostou Clem com o sorriso cheio de certezas. - Os meus cisnes ensinaram-me a não esperar demais nem demasiado cedo.

Laurie mirou-o com desespero. - Mas pode demorar uma eternidade. - Não faz mal. Posso ver-te a aprender a voar. Ela bateu-lhe de súbito com o punho fechado no braço, como uma

criança assustada. - Não percebes? Estou a servir-me de ti. Estou a agarrar-me à saída mais

fácil. Tenho-me apoiado vergonhosamente em ti. - Eu preciso que se apoiem em mim. Eu amo-te, que diabo! E quando a envolveu nos braços, ela perguntou numa voz desamparada

e chorosa: - O que é que te hei-de fazer? - Amar-me só um bocadinho - retorquiu Clem animadamente. - Eu

amo... - E pegar-me na palavra. Não tens de decidir nada para já - garantiu-lhe,

ajeitando-lhe o cabelo com afagos. - Tens muito tempo. Tens a chave. Podes ir quando quiseres. - Fechou-lhe os dedos sobre a chave e beijou-a de novo, desta vez meiga e suavemente.

Ambos sabiam que aquilo era uma promessa feita. Após a partida de Clem, Laurie fez o possível por preencher os dias

com trabalho, tanto quanto o seu braço enfermo lhe permitia, mas estava desolada sem ele. E, no entanto, sentia que tinha de aprender a ser forte sozinha. Só assim poderia ser livre de espírito. Livre de escolher viver a vida com Clem? Ou de a viver sozinha? Não sabia. Mas à medida que Fevereiro deu lugar aos ventos de Março, cheios do aroma das flores, sentiu, de forma obscura, que, se continuasse a trabalhar perto da terra que desabrochava, as coisas haviam de tornar-se claras.

- Jay - perguntou um dia de súbito, quando ele chegou aos campos de narcisos depois da escola -, tens muitas saudades do Clem?

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O rapaz mirou-a do fundo dos seus olhos cinzentos e honestos. - Tenho. A mãe não tem?

Ela fez que sim com a cabeça, mal se atrevendo a admitir quanto ;mesmo para si própria.

- Porquê, Jay? - De súbito, quis saber o que ele sentia. Ele meditou por momentos.

- Porque... ele se preocupa com o que acontece connosco. - Olhou para a mãe. - Não. Não é isso... Porque eu gosto dele.

- Todos nós gostamos - afirmou Penny mesmo atrás dele, com Rosinha ao colo. - Não é, Laurie? - Ria-se, mas os seus olhos estavam brilhantes e desafiadores.

Ocorreu então a Laurie que Penny e as crianças sabiam o quanto Clem era importante para ela, e todos ansiavam por que se decidisse e enchesse a sua vida e a deles com o calor da protecção de Clem. Esta consciência só tornava a decisão ainda mais difícil. Seria tão fácil aceitar, tão bom para todos! Mas estaria certo? Seria justo para Clem? Podia ela oferecer-lhe o amor inteiro e sem limites que ele estava preparado para lhe dar a ela?

- Claro que sim - respondeu. - Mas não é assim tão fácil. Foi então que o velho Bob chegou a correr, de olhos arregalados. - Venha depressa, menina! Venha depressa. É o patrão.

Laurie disparou a correr à desfilada atrás dele. Penny voltou-se para Jason e ordenou com urgência:

- Leva a Midge e o bebé para a quinta, Jay, e espera lá por nós. - Depois, seguiu Laurie até ao fundo do campo, onde um pequeno grupo de pessoas se tinha aglomerado.

Luke Veryan estava deitado de borco no meio de um emaranhado de narcisos partidos. As mãos, fechadas em punhos de dor, cravavam-se na terra vermelha e pedregosa. Laurie inclinou-se e tentou virá-lo. Alguém a ajudou a erguê-lo um pouco para que pudesse apoiar-lhe a cabeça. Respirava ainda, mas cada inspiração era áspera e difícil e o rosto estava cinzento de dor.

“É um ataque de coração”, pensou ela. - Chamem o Dr. Trevelyan - pediu. - Depressa. - Abriu-lhe o colarinho

para o ajudar a respirar. Finalmente, alguns dos trabalhadores chegaram com uma padiola de

vime, pousaram-no em cima dela e carregaram-no para dentro de casa. O resto foi um autêntico pesadelo. Não se conseguiu encontrar o Dr.

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Trevelyan. A enfermeira Penwillis estava numa quinta longínqua, mas viria logo que pudesse. A ambulância vinda de Penzance estava a caminho, mas ia demorar pelo menos meia hora. E, entretanto, a respiração de Luke Veryan tornava-se cada vez mais áspera e mais desesperada.

Por fim, ouviram a sirene da ambulância ao mesmo tempo que o carro do Dr. Trevelyan. Deram uma injecção a Luke, puseram-lhe uma máscara de oxigénio e meteram-no na ambulância. Laurie julgara que ele estava inconsciente, mas ele abriu os olhos e fitou-a enquanto o carregavam lá para fora. Debruçou-se sobre ele e disse-lhe baixinho:

- Está em boas mãos agora. Os seus dedos agarraram os dela por um instante. Tirou a máscara de

oxigénio e sussurrou: - Linda menina... obrigado... Então, o enfermeiro da ambulância prendeu-lhe outra vez a máscara na

cara. As portas foram fechadas e levaram-no. “Joe”, pensou Laurie. “Tenho de avisá-lo.” Conseguiu ligação para Jane

no refúgio e deixou um recado urgente para Joe, mas na altura em que Jane lhe falou a dizer que Joe ia a caminho, já tinham ligado do hospital a dizer que Luke Veryan morrera na ambulância.

Luke foi enterrado na encosta ventosa da colina virada para o mar.

Toda a aldeia lá estava, e a sepultura tinha uma pilha de narcisos, junquilhos e todas as flores primaveris de que ele gostava. Havia uma pequena grinalda especialmente feita por Penny e pelas crianças. Tinha algumas frágeis rosas de Natal no meio. Após o funeral, Joe deambulou com eles até à casa.

- Quero falar convosco - anunciou. - Estão muito cansados? - Não. - Laurie conduziu-o para dentro, Penny acendeu o lume e

sentaram-se todos juntos. - O meu pai - começou Joe sem introdução - sabia o que fazia. - Fitou o

lume, - A quinta fica para mim, com as dívidas e tudo. Posso vendê-la ou tentar governá-la. Mas esta casa - olhou de Laurie para Penny com um sorriso estranho - deixou-a à Rosinha.

- O quê? - Penny levantou-se da cadeira de um salto, e Rosinha, que tinha adormecido nos braços dela, soltou um protesto sonolento. - Sim! - acenou Joe. - Tudinho. Para a Rosinha. - Riu-se da expressão atordoada de Penny. -Comigo como administrador.

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Penny fitava-o incrédula. - O que é que isso quer dizer exactamente? - Quer dizer que podes viver nela ou alugá-la e obter um rendimento,

mas não podes vendê-la. Quando a Rosa tiver dezoito anos, pode decidir por si própria. Isto quer dizer que tens um telhado para te resguardar, se quiseres. Ou tu e a Rosa podem ter dinheiro para gastar na educação dela. O que quer que decidam, pelo menos ela não vai passar fome.

Penny continuava a olhar para ele de boca aberta. Mas agora as lágrimas vinham-lhe aos olhos e corriam-lhe pelas faces coradas.

- O tio Luke... - murmurou entredentes furiosamente. - Aquele velho teimoso e maravilhoso... Eu não queria o dinheiro dele.

- Ele não to deu a ti - retorquiu Joe. - Deu-o à Rosa. - Sorria para ela agora com a mesma bondade não expressa e dissimulada do pai. - Afinal de contas - acrescentou -, ele até ajudou a pô-la no mundo. Acho que se sentia a modos que responsável. - A seguir, olhou para Laurie. Era suficientemente perspicaz para ver que isto lhe tornava a vida ainda mais complicada. - Agora, sobre a quinta - continuou com viva cidade. - Não quero governá-la eu próprio. Tenho a minha vida em Londres. - Laurie acenou com a cabeça. - Bem... - Joe ainda a mirava de forma inquiridora. -Não sei o que pensa disso, mas calculo que era capaz de a gerir sozinha se quisesse. Conhece a organização; fez a contabilidade. Mas ia precisar de um outro homem mais activo que o velho Bob. Seria um trabalho longo, difícil e monótono... mais ou menos para sempre. Não é uma propriedade suficientemente grande, de facto, para se tirar um bom lucro. Mas podiam viver todos na casa da quinta e alugar a outra casa. - Laurie voltou a acenar com a cabeça. - Ou - continuou Joe, mirando novamente o lume - eu posso vendê-la. - O que é que quer fazer, Joe?

Ele suspirou. - Não sei, rapariga. Acho que depende de si. Não quero sobrecarregá-la

com isto se tem outros planos. “Outros planos”, pensou Laurie, desesperada. “Ciem. Como é que

posso ir-me embora agora? Não posso deixar Penny aqui sozinha.” - Eu... eu vou ter de pensar nisso - respondeu, e o seu olhar cruzou-se de

repente com o de Penny. - Ambas temos coisas a decidir. Joe acenou com a cabeça.

- Eu sei que têm. Não há pressa. - Levantou-se e tocou na cabeça do bebé. - Ela é que tem razão. Durmam sobre isso. - Fez um sorriso vivo e saiu

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sem dizer mais nada. Se sofria por Luke Veryan, guardou o sofrimento para o carreiro escuro da colina e a noite calma em que caminhava sozinho.

Laurie passou os dias seguintes num estado de confusão cansada. Os

pensamentos rodopiavam-lhe sem parar na cabeça. Perguntas infindáveis sem resposta. Seria capaz de gerir a quinta sozinha? As crianças seriam felizes ali? Estaria bom para Penny? Ou devia deixar Penny e Rosa e ir para o outro lado de Inglaterra, para junto de Clem? Claro que não. Penny não ia ser capaz de criar um bebé sozinha com dezasseis anos. Como podia pensar em abandoná-la? Mas como podia levá-la, agora que ela tinha um sítio seu para viver? Era tudo impossível e não sabia o que fazer.

Penny viu-a tentar arrumar os pensamentos e absteve-se de dizer fosse o que fosse a princípio. Por duas vezes, Laurie saiu para um longo passeio sozinha e regressou cansada e pálida. Por fim, Penny não conseguiu aguentar mais e, uma noite, já tarde, depois de as crianças estarem a dormir, indagou:

- Não era melhor pormos as coisas em pratos limpos? Laurie suspirou. - Oh, Penny, quem me dera conseguir. - Na minha opinião, você precisa do Clem. E as crianças também. O

rosto de Laurie pareceu murchar como uma flor fechada. - Sim, mas tu e a Rosa precisam de mim aqui. E a quinta também. Penny

não parecia convencida. - Então, e o Clem? Laurie tentou aparentar calma e, como se os seus próprios sonhos não

estivessem a ser destruídos com cada palavra, declarou: - Ele há-de entender. - O Jay não - ripostou Penny de forma persistente. Laurie fechou os olhos. “Clem e Jay”, pensou. “Já gostam um do outro

como pai e filho. O que hei-de fazer?” - Sabe - afirmou Penny -, eu acho que devia ir perguntar ao Clem. - Perguntar-lhe? - Sim. Porque não? Ele tem mais bom-senso que nós todos. - Mas, Penny, se eu fizesse esse caminho todo para o ver, ele ia pensar... - Não, não ia. O Clem é justo. Ouve-a e há-de saber o que é melhor. Va

lá perguntar-lhe!

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Parte IV Pouso seguro Laurie seguiu a curva do rio na direcção da casa de Clem, com os pés

lentos de dúvida. Deveria ter vindo... sem nada assente na cabeça, nada para lhe oferecer? O Medway estava calmo e plácido naquela tarde perfumada de Primavera, e os salgueiros inclinavam-se e miravam-se a si próprios, imagens intactas na superfície vidrada. Ia a andar, quando dois cisnes saíram das sombras, sob os ramos rastejantes do salgueiro, e se lhe dirigiram. Pensou que era o mesmo par que vira cumprimentar Clem naquela primeira ocasião em que ele viera sentar-se ao lado dela na margem.

- Olá - cumprimentou, parando para olhar para eles e estendendo uma mão hesitante. - Lembram-se de mim?

Parecia que sim, porque nadaram confiantemente na sua direcção, e quando estavam ao alcance da margem, ficaram ali a boiar pacificamente, como que à espera de qualquer coisa. Ela lembrou-se de que Clem lhe tinha dado de comer, que eles se tinham esticado para aceitar a sua oferta. “No fim”, dissera ele “vêm comer-me à mão.”

“Tenho o resto da minha sanduíche”, pensou. “Será que a aceitariam?” Tirou do bolso um pedaço engelhado de pão e estendeu-o aos cisnes. Por qualquer razão, parecia-lhe extremamente importante que o aceitassem. E aceitaram. Comeram tudo o que tinha para lhes oferecer, depois viraram-se calmamente e partiram de novo para a corrente lenta.

Laurie continuou a andar. Não havia sinais de Clem, e começou a magicar se estaria fora ou ausente. Não lhe tinha enviado nenhum recado e pareceu-lhe de súbito monstruosamente arrogante vir por ali fora e esperar que ele estivesse à sua espera. Cheia de uma dolorosa incerteza, atravessou o caminho cheio de musgo para a parte de trás da casa. A porta das traseiras encontrava-se aberta, mas embora já estivesse a anoitecer, não havia luz lá dentro. Confusa, espreitou lá para dentro. E então escapou-lhe uma exclamação suave de consternação. Porque ali estava Clem, estiraçado num sofá velho, de olhos fechados, o rosto cinzento de cansaço e uma perna rígida engessada espetada à sua frente em cima de uma almofada de veludo desbotado.

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- Clem! - exclamou, dirigindo-se-lhe rapidamente. - O que é que aconteceu?

Ele abriu os olhos, incrédulo, e por instantes os seus olhos cinzentos fixaram-se bem dentro dos dela.

- Vieste - murmurou, e depois, inesperadamente, pôs-se a rir. - Olha para nós! - Sorriu, apontando para o braço engessado de Laurie. - Entre os dois, quase fazíamos uma pessoa completa! - E a seguir, como se tivesse compreendido de repente o que dissera, o riso morreu-lhe no rosto e olhou de novo para Laurie com a mesma seriedade penetrante.

- Sim - concordou Laurie baixinho, enfrentando aquele olhar penetrante com total segurança. - Acho que fazíamos. - Porque, ao vê-lo ali, vulnerável e com dores, sentiu todas as suas dúvidas e ansiedades dissolverem-se perante a necessidade que ele tinha dela. Era aqui que devia estar, ao lado de Clem. Este encontro estava completamente correcto e nada mais tinha qualquer significado.

- Cuidado - avisou Clem. - Sempre soube que tinhas um coração mole. Um animal ferido faz despertar os teus instintos protectores. Laurie riu-se.

- Olha quem fala! - Mas depois também ficou séria, porque já sabia que não podia permitir que esta nova sensação de enorme justeza dominasse. - Clem - começou, e procurou às cegas a mão dele. - Eu não... Não vim para ficar.

- Eu sei - retorquiu ele com calma. - Como é que sabes? O sorriso dele era terno. - Minha querida menina, a tua expressão não era exactamente a de uma

noiva radiante a vir ter com o apaixonado. A escolha de palavras dele fê-la pestanejar. - Como... como é que eu

estava? - Morta de medo. - Estendeu a mão e tocou-lhe o rosto. - E desgastada

pela dúvida. O que tem estado a acontecer-te? - Isso pergunto eu! - ripostou ela. Ele suspirou e mudou um pouco a posição da perna. - É só uma simples fractura. Estava no barco a tentar salvar um cisne

emaranhado numa rede de plástico. O pobre animal estava aterrorizado, e quanto mais se debatia e batia as asas, mais emaranhado ficava. Estava a esticar-me para o soltar com a faca quando uma das asas me desequilibrou. São muito fortes, sabes, as asas dos cisnes. Atingiu-me a perna como um tronco e caí borda fora. Quase me afogou, o pobre animal enlouquecido.

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- Conseguiste salvá-lo? - Ah, sim. Arranjei maneira de cortar a rede antes de mergulhar outra

vez. E a seguir agarrei-me ao barco e empurrei-me para a margem com a perna sã. - Parou como se já tivesse dito o suficiente. E então, vendo a expressão de Laurie, tocou-lhe o rosto de novo meigamente e pediu: - Não fiques assim. Isto cura-se, como o teu braço. Agora, não era melhor contares-me o que se passa nessa cabeça?

Ela observou-lhe o rosto, e a mesma consciência vívida estava presente nos seus olhos, o mesmo anseio, o mesmo desejo e o mesmo conhecimento de que uma crise de decisão os aguardava.

- Oh, Clem - murmurou. - Tenta compreender... - Estou à escuta - respondeu.

Então, Laurie contou-lhe tudo o que acontecera e tudo o que a morte de Luke Veryan e a sua oferta da casa implicavam para Rosa. Clem ouviu-a até ao fim com paciência e calma. Quando acabou, ele afirmou:

- Laurie, antes de eu... Antes de nós decidirmos o que deve ser feito, só queria fazer-te uma pergunta.

- Sim? - Laurie sabia qual seria a pergunta, e meia hora antes não teria sabido como responder. Mas agora, inacreditavelmente, sabia. Levantou a cabeça com coragem e enfrentou o olhar penetrante de Clem com uma certeza intrépida.

- Tu amas-me? - Amo. - A voz dela soava calma e límpida. Ele acenou com a cabeça como se já soubesse a resposta mas quisesse

apenas confirmá-la. - Já não tens medo disso? - Não. - Pareces quase totalmente segura. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas agora. - E estou. Não estava quando cheguei, mas logo que te vi, fiquei. -

Laurie - avisou ele reprovadoramente. - Eu avisei-te. O sorriso dela igualava o dele e a sua alegria brotou com as lágrimas. -

Não consigo evitar. - A seguir, continuou com uma candura desesperada: - Mas não posso abandonar a Penny e a Rosa.

Claro que não podes. -E há os meus filhos. - Não sejas tonta. É como se já fossem meus. - Mas...

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Ele interrompeu-a com um beijo. Foi um movimento meigo, consolador, mas com um toque de desejo escondido que não passou despercebido a Laurie.

- Pára de te apoquentares - aconselhou. - Arranjamos uma solução. Já fiz alguma coisa nesse sentido. Vê ali na minha secretária. Há aí uma carta de um homem do Wildlife Trust com quem falei. Querem que eu monte mais santuários de vida selvagem em Devon e na Cornualha.

Desnorteada, Laurie dirigiu-se à secretária e encontrou a carta. Leu-a toda devagar, depois reparou na data. Fora escrita pouco após o regresso de Clem da Cornualha. Devia tê-la na secretária há várias semanas.

- Clem, respondeste-lhe? - Não. Estava à tua espera. - Mas eu podia não ter vindo.

- Havias de vir - afirmou com tranquilidade. -'És demasiado boa para me deixares em suspenso para sempre. - Puxou-a para si. - Vês? Nada é insuperável. Vai levar tempo a organizar, claro. Vou ter de andar de cá para lá um pouco. Mas temos tempo, não temos? Todo o tempo do Mundo... - Ela fez que sim com a cabeça, incapaz de falar. - Eh! - exclamou ele. - Devias estar rejubilante.

- E estou - respondeu ela, e, sem forças, permitiu que Clem lhe limpasse as lágrimas dos olhos.

- Sol a brilhar e cabriolas - disse ele de forma obscura, com um sorriso retrospectivo estranho e espantosamente terno. - E, já me esquecia..., temos de fazer a ronda antes que fique noite.

Laurie ficou um pouco alarmada. - Consegues? - Claro. Sou um às das muletas. Sobretudo contigo para me guiar. -

Deitou a mão às leves muletas metálicas pousadas ao seu lado e ergueu-se. Saíram juntos para a cintilante tarde primaveril. Ainda havia um brilho

de luz amarelo-pálida para oeste, enquanto por cima deles um céu claro escurecia para uma noite cor de safira. Uma estrela brilhou por entre os ramos entrelaçados dos salgueiros e uma fina unha de lua trepava, como uma lâmina brilhante de foice, por detrás dos ulmeiros. Um rouxinol cantou de amor e êxtase no ramo mais alto de um castanheiro.

- Ele tem razão - comentou Clem, olhando para cima. - Anuncia-o a toda a gente. - E havia tal excitação de alegria na sua voz que Laurie ficou estupefacta.

Estavam ali, lado a lado, quando houve um súbito rumor de asas sobre a água, e os dois cisnes que Laurie tinha encontrado antes, os preferidos de

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Clem, desceram o rio ritmicamente num voo cadenciado e longo sobre as cabeças deles. Aquilo recordou a Laurie a voz de Clem havia muito tempo, quando se despedira dele pela primeira vez, entre as silenciosas plantaçóes de lúpulo e pomares vazios. A liberdade não é apenas levantar voo. É saber onde se quer aterrar e quando é tempo de regressar a casa.

As grandes aves brancas riscaram o céu numa harmonia perfeita, parecendo dirigir-se directamente para a luz dourada do ocidente.

- Para onde vão? - perguntou Laurie, com uma estranha sensação de perda, ao mesmo tempo que o som do seu voo se tornava mais fraco no vento.

Clem observou-os com um olhar experiente enquanto viravam no céu que escurecia e desenhavam um grande arco, de asas ainda a pulsar com aquele som etéreo.

- Não vão a lado nenhum - respondeu, e havia um mundo de amor e segurança na sua voz. - Estão a regressar a casa.

ACERCA DA AUTORA Elizabeth Webster foi sempre uma contadora de histórias - primeiro

inventando-as para os seus próprios filhos, mais tarde escrevendo peças de teatro e óperas para o Young Arts Center, de Cheltenliam, que ajudou a organizar e depois dirigiu durante vinte e dois anos. Mas tinha sessenta e dois anos quando publicou o seu primeiro livro, um romance sobre as “crianças dos barcos” que fugiam do Vietname.

Foi o primeiro de uma série de romances com uma intenção. - Acho que se pode atingir um público mais vasto com um romance do

que com um relato verídico e levar as pessoas a sensibilizarem-se e a interessarem-se mais por um assunto - diz Mrs. Webster.

Os leitores têm reagido ao seu trabalho com enorme entusiasmo. Dois dos seus livros, Bracken e A Busca de Johnnie, foram já publicados com grande sucesso nos Livros Condensados. E agora publicamos O Voo dos Cisnes.

- As pessoas só agora estão a tomar consciência de que o problema das mulheres espancadas precisa de ser levado a sério - diz Mrs. Webster. - É um assunto que precisa muito de ser abordado.

Ela sabe. Após a 11 Guerra Mundial, organizou uma creche-internato para crianças de famílias com problema e antes de escrever O Voo dos

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Cisnes visitou muitos abrigos a fim de poder criar uma imagem convincente do Esconderijo.

Mrs. Webster também conhece o poder da Natureza para curar espíritos perturbados, um tema constante na sua obra. Vive na bela província inglesa do Gloucestershire, onde há muitos interessados pela vida selvagem.

- Viver perto da Natureza torna-nos mais calmos - afirma ela. - Começa a aprender-se os verdadeiros valores da vida.

Um desses valores é seguramente a família. No Verão de 1989, exactamente quando estava a acabar O Voo dos Cisnes, Elizabeth Webster e o marido, Neil, juntaram os três filhos e os dez netos para comemorarem as suas bodas de ouro.

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