363
TRATADO DOS REGISTOS PÚBLICOS EM COMENTÁRIO AO DECRETO N.º 4.857, DE 9 DE NOVEMBRO DE 1939, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DECRETO N.º 5.318, DE 29 DE NOVEMBRO DE 1940 E LEGISLAÇÃO POSTERIOR EM CONEXÃO COM O DIREITO PRIVADO BRASILEIRO MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES Doutor em Direito e Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro VOL. III EDIÇÃO REVISTA E AUMENTADA REGISTO DE IMÓVEIS (inscrição e transcrição) Penhor de máquinas Loteamento Locação de prédio (Cód. Civ., art. 1.197) Servidões Usufruto Rendas constituídas ou vinculadas a imóvel Penhor rural Promessa de compra e venda de imóvel Anticrese Enfiteuse Títulos translativos da propriedade imóvel. 4.ª Edição 1960 Livraria Freitas Bastos S.A.

MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES - Biblioteca …...[6] ADVERTÊNCIA Na 1.ª edição dêste volume, constava um suplemento, atualizando à nova legislação tôda a matéria versada nos

Embed Size (px)

Citation preview

TRATADO DOS REGISTOS PÚBLICOS EM COMENTÁRIO AO

DECRETO N.º 4.857, DE 9 DE NOVEMBRO DE 1939, COM AS ALTERAÇÕES

INTRODUZIDAS PELO DECRETO N.º 5.318, DE 29 DE NOVEMBRO DE 1940 E LEGISLAÇÃO POSTERIOR EM CONEXÃO COM O DIREITO PRIVADO BRASILEIRO

MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES

Doutor em Direito e Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

VOL. III

EDIÇÃO REVISTA E AUMENTADA

REGISTO DE IMÓVEIS (inscrição e transcrição)

Penhor de máquinas – Loteamento – Locação de prédio (Cód. Civ., art. 1.197) – Servidões – Usufruto – Rendas constituídas ou vinculadas a imóvel – Penhor rural – Promessa de compra e

venda de imóvel – Anticrese – Enfiteuse – Títulos translativos da propriedade imóvel.

4.ª Edição

1960

Livraria Freitas Bastos S.A.

[1]

TRATADO DOS REGISTOS PÚBLICOS

[2]

DO MESMO AUTOR

SOBERANIA – Tese para catedrático da cadeira de “Noções de Direito Público e Privado” da Escola Normal do Distrito Federal, Rio de Janeiro, 1929.

45 DIAS NO JUÍZO DO ALISTAMENTO ELEITORAL – (Despachos e decisões sobre Consultas e Dúvidas dos Ofícios e Registos Públicos). Rio de Janeiro, 1932.

O SILÊNCIO COMO MANIFESTAÇÃO DA VONTADE NAS OBRIGAÇÕES – (2.ª edição revista e aumentada). Rio de Janeiro, 1944, Livraria Suíça, Walter Roth – Editôra.

O ANTEPROJETO DO CÓDIGO DAS OBRIGAÇÕES – Revista Forense, vol. 97, p. 576-587; Arq. Jud. Supl., volumes 57/58.

COMENTÁRIO TEÓRICO E PRÁTICO DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL, 3 volumes, Emprêsa. A NOITE – LIVRARIA JACINTO EDITÔRA, 1943-1946.

TRATADO DOS REGISTOS PÚBLICOS – 4 vols., 3.ª ed. – LIVRARIA FREITAS BASTOS – 1955.

CURSO DE DIREITO CIVIL – Vol. 1, Introdução, Parte Geral e Teoria de Negócios Jurídicos – LIVRARIA FREITAS BASTOS - 1955

CURSO DE DIREITO CIVIL – Vol. 2, Obrigações em Geral – LIVRARIA FREITAS BASTOS – 1955.

CURSO DE DIREITO CIVIL – Vol. 3, Parte I, dos Contratos em geral – LIVRARIA FREITAS BASTOS – 1955.

[3]

MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES

Doutor em Direito e Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Professor de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

TRATADO DOS REGISTOS PÚBLICOS

EM COMENTÁRIO AO

DECRETO N.º 4.857, DE 9 DE NOVEMBRO DE 1939, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DECRETO N.º 5.318, DE 29 DE NOVEMBRO DE 1940 E LEGISLAÇÃO POSTERIOR EM CONEXÃO COM O DIREITO PRIVADO BRASILEIRO

VOL. III

EDIÇÃO REVISTA E AUMENTADA

REGISTO DE IMÓVEIS (inscrição e transcrição)

Penhor de máquinas – Loteamento – Locação de prédio (Cód. Civ., art. 1.197) – Servidões –

Usufruto – Rendas constituídas ou vinculadas a imóvel – Penhor rural – Promessa de compra e venda de imóvel – Anticrese – Enfiteuse – Títulos translativos da propriedade imóvel.

4.ª Edição

1960

Livraria Freitas Bastos S.A.

RIO DE JANEIRO SÃO PAULO Largo da Carioca Rua 15 de Novembro, 62/66

C. Postal 899 – Teleg. ETIEL C. Postal, 1823 – Teleg. ETIEL SALVADOR CURITIBA FORTALEZA PORTO ALEGRE

[4]

PROPRIEDADE LITERÁRIA

Todos os exemplares desta obra, para os efeitos legais, serão numerados e rubricados pelo autor.

N.º 1393

[5]

Em comemoração ao 50.º aniversário do casamento de meus pais – Comendador Firmo da Cunha Lopes e Júlia de Serpa Lopes.

30 de setembro – 1890-1940.

O AUTOR.

[6]

ADVERTÊNCIA

Na 1.ª edição dêste volume, constava um suplemento, atualizando à nova legislação tôda a

matéria versada nos volumes 1.º e 2.º. Entretanto, como nesta edição tôda obra já se encontra em perfeita concordância com a legislação vigente, com profundas modificações sôbre a 1.ª edição, já não tem mais razão de ser o referido Suplemento, cujo espaço foi aproveitado para um

maior desenvolvimento das teses apreciadas no presente volume, com especial atenção à evolução havida a respeito do contrato de promessa de compra e venda de imóvel não loteado.

Rio, março 1950.

S.L.

[7]

TÍTULO IV

REGISTO DE IMÓVEIS

CAPÍTULO I

Atribuições

Art. 178. No Registo de Imóveis será feita:

A) A inscrição:

I – Do instrumento público da instituição do bem de família;

II – Do instrumento público das convenções antenupciais;

III – Das hipotecas legais ou convencionais;

IV – Dos empréstimos por obrigações ao portador;

V – Do penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com seus respectivos pertences;

VI – Das penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis;

VII – Das citações de ações reais ou pessoais, reipersecutórias relativas a imóveis;

VIII – Do memorial de loteamento de terrenos urbanos e rurais, para a venda de lotes a prazo em prestações;

IX – Do contrato de locação de prédio, no qual tenha sido consignada cláusula de vigência, no caso de alienação da coisa locada (Cód. Civ., art. 1.197);

X – Dos títulos das servidões não aparentes, para sua constituição;

XI – Do usufruto e de uso sôbre imóvel e sôbre a habitação, quando não resultarem do direito de família;

XII – Das rendas constituídas ou vinculadas a imóveis por disposição de última vontade;

XIII – Do contrato de penhor rural (Lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937);

XIV – Da promessa de compra e venda de imóvel não loteado, cujo preço deva pagar -se a prazo, em uma ou mais prestações, bem como as escrituras de promessa de venda de imóveis em geral (artigo 22 do Decreto-Lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937 e Decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938).

B) A transcrição:

I – Da sentença de desquite e de nulidade ou de anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais, sujeitos a transcrição;

II – Dos t ítulos ou a inscrição dos atos inter-vivos relativamente aos direitos reais sôbre imóveis, quer para a aquisição do domínio, quer para a validade contra terceiros;

III – Dos títulos translativos da propriedade imóvel, entre vivos, para sua aquisição e extinção;

IV – Dos julgados, nas ações divisórias, pelos quais se puser têrmo à indivisão;

V – Das sentenças que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança;

VI – Dos atos de entrega de legados de imóveis, dos formais de partilha e das sentenças de adjudicação em inventário, quando não houver partilha;

VII – Da arrematação e da adjudicação em hasta pública;

VIII – Da sentença declaratória da posse de imóvel, por 30 anos, sem interrupção nem oposição, para servir de título ao adquirente por usucapião;

IX – Da sentença declaratória da posse incontestada e contínua de uma servidão aparente, por 10 ou 20 anos, nos têrmos do art. 551, do Código Civil, para servir de título aquisitivo;

X – Para a perda da propriedade imóvel, dos títulos transmissíveis, ou dos atos renunciativos;

C) A averbação:

I – Das convenções ante-nupciais, especialmente em relação aos imóveis existentes ou posteriormente adquiridos, que forem atingidos pela cláusula exclusiva do regime legal;

[8]

II – Na inscrição, da sentença de separação do dote;

III – Do julgamento sôbre o restabelecimento da sociedade conjugal;

IV – Da cláusula de inalienabilidade imposta a imóveis pelos testadores e doadores;

V – Por cancelamento, da extinção dos direitos reais;

VI – Dos contratos de promessa de compra e venda de terreno loteado, em conformidade com as disposições do decreto n.º 58, de 10 de dezembro de 1937;

VII – Na transcrição, da mudança de numeração, da construção, da reconstrução, da demolição e do desmembramento de imóveis;

VIII – Da alteração do nome por casamento ou desquite;

IX – Dos apartamentos em edifícios de mais de cinco andares, nos têrmos da lei n.º 5.481, de 25 de junho de 1928. Para efeito exclusivo de discriminação e de numeração.

PENHOR DE MÁQUINAS

402. PENHOR DE MÁQUINAS E APARELHOS UTILIZADOS NA INDÚSTRIA – A razão do disposto no n.º V do art. 178 que se comenta, prescrevendo a inscrição no Registo de Imóveis do penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com

os seus respectivos pertences, assenta no decreto n.º 1.271, de 16 de maio de 1939 (publ. No Diário Oficial de 19-5-939), que dispõe sôbre o penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, ampliado, posteriormente, pelo decreto-lei n.º 2.064, de 7 de março de 1940.

Por força dêste decreto, ficou estabelecido que ”as máquinas e aparelhos utilizados na indústria,

instalados e em funcionamento, com ou sem os respectivos pertences, poder ser objeto do penhor” (art. 1.º, do dec. 1.271).

A natureza dêsse penhor e as suas relações com o Registo Imobiliário foram pontos que focalizamos na seguinte decisão:

“Vistos, etc.:

“O Banco dos Funcionários Públicos S.A., à fls. 2, pede seja declarada improcedente a dúvida

oposta pelo Sr. Oficial do 2.º Ofício de Imóveis, que se recusou inscrever a escritura de hipoteca e penhor junta à fls. 5, baseado nas considerações seguintes: a) que o decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939, estabelecendo a competência do Registo de Imóveis, usou da expressão

onde os bens se encontrarem, não se encontrando bem definido se isso equivale a dizer onde se acharem os imóveis em que estiverem localizados os bens dados em penhor; b) por não ter ficado determinado, no supramencionado decreto, o livro no qual deve ser feita a transcrição do

penhor; c) por ter dúvida quanto aos lançamentos a ser feitos, isto é, se sôbre os imóveis onde se encontrarem os bens dados em penhor, ficando a obrigação de dar conhecimento a terceiros da existência da transcrição, apesar da mesma não constituir ônus real, sôbre os mesmos

imóveis. Ouvido o ilustre Dr. Promotor de Registos, êste, em seu brilhante parecer de fls. 12 a 14, opinou

[9]

no sentido de poder dar-se ao caso uma das duas soluções seguintes: ou autorizar-se a transcrição do penhor no livro 4.º, ou autorizar-se nova inscrição, de vez que a existente já se não torna possível de completá-la.

Isto pôsto:

I – Tôda questão objeto da presente dúvida pode ser reduzida aos seguintes têrmos: pela escritura de fls. 5, o Banco dos Funcionários Públicos recebeu em hipoteca os prédios mencionados na escritura supra referida, e em penhor, nos têrmos do decreto n.º 1.271, de 16

de maio de 1939, as máquinas e demais aparelhos e motores utilizáveis na sua indústria de chumbo, instalados e em pleno funcionamento, com seus pertences, e que estão situados nos imóveis dados em hipoteca. E‟ possível uma tal operação? O decreto-lei n.º 1.271, de 1939,

destina-se exclusivamente ao penhor de máquinas, quando estas não constituam acessões do imóvel, onde estejam situados, ou pode regular o caso em que as mesmas sejam caracterizadamente acessões do imóvel?

II – O citado decreto-lei n.º 1.271, de 1939 dispõe, no art. 1.º: que as máquinas e aparelhos

utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com ou sem os respectivos pertences, podem ser objeto de penhor. Dos têrmos genéricos dessa disposição não se pode inferir qualquer restrição, ao contrário, dêles se deduz a possibilidade do penhor dêsses objetos, no

mais lato sentido. Invoca-se, como argumento do sentido restritivo, isto é, de que o penhor de máquinas sòmente é possível, em se tratando de coisas que não sejam acessões do imóvel onde situadas, o disposto no parágrafo 2.º do art. 2.º que diz: “o locador do imóvel onde

estiverem situados os bens empenhados deverá dar seu consentimento por escrito no próprio instrumento de constituição do penhor, sob pena de nulidade”. Também não nos parece admissível êsse fundamento, porquanto essa disposição podia ter visado apenas regular uma

situação possível de ocorrer, sem com isso indicar que o penhor sòmente poderia ser efetuado na referida situação, isto é, a de se tratar de um imóvel pertencente a outrém que não o proprietário dos maquinismos nêle instalados. A pesquisa deve ser concentrada no estudo da

possibilidade jurídica do acessório do imóvel poder ser objeto do penhor, destacadamente do imóvel. E‟ o que passaremos a demonstrar.

III – Dentre as coisas suscetíveis de hipoteca, enumerou o Código Civil; os acessórios dos imóveis, conjuntamente

[10]

com êles (Código Civil, art. 810, n.º III). Ainda dispõe, como corolário dêsse princípio, que a

hipoteca abrange tôdas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel. (C. Civil, art. 811).

Já tivemos oportunidade de dizer, com apoio na lição de N. Coviello, que a finalidade da acessão intelectual é evitar que objetos móveis, submetidos a uma relação de acessoriedade com o

imóvel, venham a ser separados contra a vontade do proprietário, e, quanto ao sentido do art. 811, que o mesmo não representa uma norma cogente, mas pura e simplesmente um princípio geral, suscetível de ser modificado pelo acôrdo das partes. Consoante êsses princípios gerais

que já admitimos, a conclusão, para o caso em espécie, é de que o devedor podia ter dado em hipoteca os imóveis, excetuando as acessões dos mesmos, tais como os maquinismos nêle instalados para fins industriais, assim como podia dar em hipoteca os imóveis, a um credor e em

penhor as acessões dos mesmos, se consistentes nas coisas especificadas no decreto n.º 1.271, de 1939, cujo objetivo se define claramente: ministrar uma nova garantia real extraída dos acessórios do imóvel, independentemente dêste. Conseguintemente, embora seja claro que, no

caso sub-judice, a hipoteca seria bastante, por fôrça do princípio do artigo 811 do Código Civil, contudo, o decreto supracitado não se opõe, (antes o permite), que, seja ao mesmo credor, seja a credores diferentes, se faça a hipoteca do imóvel, concomitantemente com o penhor de

acessórios do mesmo, desde que se trate de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com ou sem os respectivos pertences. Nesta conformidade,

JULGO improcedente a dúvida para determinar que se faça a transcrição do penhor, constituído na escritura impugnada, observadas as seguintes prescrições: a) deve ser mencionado na

inscrição hipotecária, que a mesma não abrange os maquinismos descritos na escritura e que foram dados em penhor; b) a transcrição do penhor deve ser levada a efeito no livro 4; c) a competência do Oficial do Registo, para a t ranscrição dessa espécie de garantia real, é

determinada pela situação do imóvel; d) finalmente cumpre acentuar que bem procedeu o Sr. Oficial, suscitando a dúvida, pela maneira por que o fêz. P.I.R., Rio de Janeiro, 20 d e novembro de 1939. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes. (in J. do C. de 25-11-939).

[11]

Também, em relação ao objeto do penhor industrial, a antiga Quarta Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, na Apelação Cível n.º 3.908 (in Diário da Justiça de 16 de maio de 1945, p. 1.902) decidiu que “o penhor industrial visa as m áquinas e aparelhos utilizados na

indústria, instalada e em pleno funcionamento, com ou sem os respectivos pertences”, de modo que nêle não se pode compreender “os ônibus de uma emprêsa, que continuam a ser móveis, e, como tais, sujeitos ao penhor comum, e não ao penhor a que se refere o decreto-lei n.º 1.271, de

16 de maio de 1939, devendo o contrato registar-se no Registro de Títulos e Documentos”. O julgado é do seguinte teor:

“Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Apelação Cível n.º 3.908, sendo apelante o Banco Financial Novo Mundo, S.A., e apelado o Ministério Público:

O Banco Financial Novo Mundo S.A., fêz um empréstimo de Cr$ 1.620.170,00 a uma emprêsa

de ônibus, a Viação Brasil, Limitada. A devedora deu em garantia pignoratícia ao Banco o conjunto patrimonial que constitui a emprêsa, isto é, as concessões municipais de que é titular e os 24 ônibus por ela explorados (dc. Fls. 3). Para que a devedora pudesse prosseguir na sua

atividade industrial continuou na posse dos bens empenhados, mas dêles constituída depositária.

Compareceu ao contrato o proprietário do imóvel, no qual a emprêsa tem sede a garage e concordou com a transferência de contrato de locação ao credor, no caso de não ser paga a dívida (cláusula 11 e 12 do contrato, fls. 4).

O Banco, alegando tratar-se de penhor industrial levou ao Sexto Ofício do Registro Geral de Imóveis para a devida inscrição, o citado contrato.

O Oficial do Registo levantou a dúvida fundamentada de fls. 5.

O Dr. Promotor Público opinou a fls. 11 pela procedência da dúvida.

A sentença apelada, de fls. 16, julgou procedente a dúvida.

O Banco apela a fls. 18 pedindo a reforma da sentença a fim de que o registo se faça no Registo de Imóveis.

O Dr. Promotor Público, a fls. 22, levanta a preliminar de não ser caso de recurso de apelação, e, de meritis, pede a confirmação do julgado.

O Dr. Procurador Geral emitiu o parecer de fls. 29 opinando pelo não provimento do recurso.

Isto pôsto:

[12]

Preliminarmente:

Argüiu-se a fls. 22 não caber recurso da decisão do Dr. Juiz da Vara de Registo Público em processo de “dúvida” levantada pelo Oficial do Registo. A sentença ora apelada decidiu definitivamente o mérito da matéria sub judice. Há, pois, uma sentença definitiva. O atual Código

de Processo Civil, no art. 320 estabelece o recurso de apelação das decisões definitivas de primeira instância, salvo disposição em contrário. As “disposições em contrário” têm de ser expressas, claras e positivas, isto é, negando qualquer recurso ou estabelecendo outros, como

nos casos de agravos. Acresce que a palavra decisão empregada no atual Código Processual é mais genérica que a palavra sentença empregada no art. 1.115 do anterior Código de Processo Civil e Comercial. Para a espécie, não há dispositivo legal negando o recurso de apelação ou

qualquer outro, e nem foi estabelecido o recurso especial de agravo. Assim, improcede a preliminar argüida.

De meritis:

I – O contrato de fls. 4 enumera as garantias seguintes:

a) a concessão da Emprêsa;

b) 24 ônibus;

c) transferência de lotação no caso de não pagamento da dívida.

Portanto, a garantia resume-se nos 24 ônibus, porque a transferência da “concessão” depende de assentimento do Poder Público, e a transferência de contrato de locação é condicional, pois

se verifica só no caso de não pagamento da dívida. Ora, nada mais móvel nem menos fixo de que um auto-ônibus, constantemente fora do estabelecimento da sua sede, e sem nenhum meio material de ligação com o imóvel onde porventura seja guardado.

II – O art. 1.º do decreto-lei n.º 1.271, de 1939, refere-se a máquinas e aparelhos utilizados na

indústria, instalados e em pleno funcionamento, com ou sem os respectivos pertences. O art. 3.º diz que o devedor, continuando na posse e utilização das coisas empenhadas, não poderá mudar-lhe a situação, ainda que no mesmo estabelecimento onde se acharem.

Conseqüentemente, o que se objetivou foram as máquinas instaladas num determinado imóvel, ao mesmo aderidas, que estão a êle fixadas.

[13]

III – Na hipótese dos autos o imóvel em que tem sede a emprêsa de ônibus, não pertence a esta mas a terceiro locador (fls. 4, cláusulas 11 e 12). Nessas condições não se pode cogitar da imobilização dos ônibus não são, evidentemente acessórios do imóvel que pertence a terceiro.

IV – Pelo exposto conclui-se que os ônibus só podem ser considerados como móveis e sujeitos ao penhor comum, e não ao penhor a que se refere o decreto -lei n.º 1.271, devendo, portant o, ser registrado no Registo de Títulos e Documentos.

Por tais fundamentos:

Acordam os Juízes da Quarta Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, por acôrdo

de votos, preliminarmente, conhecer do recurso de apelação, e, de meritis negar-lhe provimento, para confirmar a sentença apelada.

Custas na forma da lei.

Rio, 30 de janeiro de 1945. – Duque Estrada, Presidente e Relator. – Raul Camargo.

Ciente, 9-4-45. – Romão C. Lacerda”.

Matéria interessante, em que se fixou a diferença entre o penhor mercantil e o penhor de máquinas, foi a versada pelo Supremo Tribunal Federal nos Embargos ao Acórdão no Recurso Extraordinário n.º 5.924 (in Diário da Justiça, de 10 de março de 1945, págs. 1.221-1.223).

Num executivo cambial, foi penhorado um locomóvel a vapor. Apresentou-se P.L.F. alegando ter penhor mercantil, com a cláusula constituti, sôbre a coisa penhorada. Os embargos foram acolhidos, e a respectiva sentença mantida pelo Tribunal de Belo Horizonte. Interposto Recurso

Extraordinário, uma das turmas do Supremo Tribunal Federal dêle conheceu mas não lhe deu provimento, em razão do que foram opostos embargos. Sustentou o Ministro José Linhares que, em face da legislação sôbre penhor de máquinas, a questão da cláusula constituti estava

resolvida, e assim votou no sentido da rejeição dos embargos. Damos a seguir, a partir do voto do Ministro Filadelfo Azevedo, a discussão que se travou, bastante esclarecedora da natureza e dos princ ípios basilares inerentes ao penhor de máquinas.

VOTO

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Sr. Presidente, abstraindo-se da nova legislação, que acaba

de ser citada da tribuna, o problema era velho e, depois de inúmeras controvérsias, se desenvolveu o voto vencido do Sr. Ministro Oro-

[14]

simbo Nonato! Nada poderia eu dizer que se aproximasse dêsse voto magistral, ainda que para prestigiá-lo.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – V. Excia. daria mais brilho à tese.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Quero, apenas, acentuar a necessidade: de fato, quando

alguém comerciava e pretendia fazer o penhor de todos ou alguns de seus bens, inclusive dos que estavam no comércio e apareciam como livres e desembaraçados, havia necessidade de resguardar a boa-fé de terceiros, que não poderiam imaginar estivessem tais bens sujeitos a

privilégios em favor de determinado credor. Por isso, era de necessidade a transferência da posse da coisa para que se aperfeiçoasse o penhor, não em atenção aos interêsses das partes, mas, principalmente, em homenagem aos dos terceiros.

Pouco importa não se verificasse falência ou concurso de credores, como na espécie, em que o

credor pignorat ício procurou apenas evitar a execução sôbre móveis onerados, recorrendo aos embargos de terceiro. Observa-se, todavia, que lei anterior à hipótese teria sancionado a fórmula que as partes buscaram, convencionando penhor sem transferência de posse. (Decreto-lei n.º

1.271, de 16 de maio de 1939). Não importaria mesmo indagar se tal decreto -lei já estaria em

vigor no local porque isso dependeria de apurar a data de sua publicação para, conseqüentemente, situar a vigência nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.

Admitindo ao revés estivesse êle em vigor, a hipótese não estaria contudo protegida por suas disposições, ainda que se tratasse de penhor mercantil, e não de penhor rural. Se se tratasse de penhor rural, mais evidentemente estranha seria a aplicação da lei mercantil: cogitou -se, porém,

de penhor mercantil. Mas o decreto-lei n.º 1.271, seguindo o sistema da lei n.º 492, sôbre o penhor agrícola, instituiu novo regime, inteiramente diverso das tradições do Código Comercial: criou novo penhor para desenvolvimento do crédito industrial e baseado em sistema de

publicidade rígido, em tôrno do registo imobiliário. Assim, o decreto-lei n.º 1.271, regulando o penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria, alcançou espécie de autos em que a garantia se constituiu sôbre locomóvel, isto é, máquina destinada a produzir fôrça, a fim de

movimentar indústria com caráter fixo e funcionando nos exatos têrmos do art. 1.c. Mas, para que

[15]

prevalecesse tal penhor, com cláusula constituti, sem transferência do bem, seria necessária sua averbação, no registo de imóveis da comarca onde situado. Ora, o presente contrato de penhor,

foi apenas registado no Registro de Títulos, conforme acabo de verificar nos autos; tal registo seria insuficiente inócuo para assegurar a garantia específica que o decreto-lei n.º 1.271, estabeleceu e para resguardar a boa fé e a confiança de terceiros, que tem nêle um único e

exclusivo meio de publicidade. Para que se aplicasse, portanto, o decreto-lei n. º 1.271 seria necessário que o contrato estivesse registado no Cartório de Imóveis o que não se verificou.

Outras leis desenvolveram os mesmos princípios, estendendo o penhor in dustrial e agrícola, mas sempre se atendeu ao critério de registo imobiliário, a êle se submetendo os contratos, ainda

quando o industrial não fôsse o dono do imóvel; daí as leis exatamente promulgadas para atender aos possíveis conflitos que nesse sentido pudessem ocorrer, v.g entre o privilegiado locador da coisa principal e aos direitos do credor pignoratício sôbre o que esta acedesse.

Todo um sistema se criou, assim, sem qualquer ligação com as velhas concepções de 1850 sôbre penhor, com cláusula constituti e imediatamente tradição simbólica ou fictícia.

Assim, o presente caso não se pode abrigar à sombra do decreto -lei n.º 1.271, ainda que se pudesse acoimar, talvez, o legislador de incoerente, enquanto regulava o penhor, tão rigidamente, com base na publicidade imobiliária, admitira instituto semelhante, como a da venda

de móveis com reserva de domínio sob o mero sistema de registo de títulos que pode levar os terceiros a graves enganos.

Autorizando a cláusula reservativa de domínio, apenas em tôrno de registo de t ítulos, de caráter pessoal, exigiu, porém a lei da individualização dos bens móveis sujeitos a uma espécie de transferência condicional que o grande Clóvis Bevilaqua tinha.

Estas as razões que me levam a, desprezando os novos argumentos, reiterar adesão ao voto lançado na Turma pelo Sr. Ministro Orosimbo Nonato, que foi seguido pelo Sr. Valdemar Falcão, e, já agora pelo Sr. Ministro Relator, recebendo os embargos.

[16]

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Sr. Presidente, a restrição do eminente Sr. Ministro

Filadelfo Azevedo ao meu voto foi quanto à publicidade do penhor. Disse Sua Excia. que teria havido uma irregularidade, porque devia ter sido registado penhor, no registo de imóveis. Ora existe êsse registo no registo de imóveis.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – No registo de t ítulos e documentos.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Vê-se, entretanto, que a questão da publicidade seria interessante quanto a terceiros, mas não quanto aos dois interessados.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Mas quem cobra é que se está opondo.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Essa questão, por outro lado, não foi ventilada, antes, e não pode, portanto, ser trazida, agora em recurso extraordinário.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Mas V. Excia. invocou a lei nova!

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Em relação a essa lei é que o Tribunal de Minas julgou.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Mas o que digo é que não foi cumprida.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Quanto à publicidade, não foi matéria de debate, entretanto, consta de fls. certidão do registo do penhor.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – E‟ insuficiente o registo, porque não foi feito no cartório indicado pela lei. Trata-se de questão de direito.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Não se questionou no feito sôbre o registo, que aliás foi refeito como já disse. Prova não há, e nem mesmo se argüiu, tivesse sido êle feito irregularmente.

Mantenho o meu voto.

VOTO

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira – Sr. Presidente, em relação à nova lei, não tenho dúvida em

acompanhar o Sr. Ministro Revisor, nas suas afirmações, com as quais também estaria de acôrdo, talvez o Sr. Ministro Filadelfo Azevedo.

A meu ver, o dispositivo da nova lei abrange, positivamente, a hipótese, com a devida vênia de S. Excia. A lei fala

[17]

em utilização da indústria, instalados os objetos. Daí não se pode dizer que a ilegalidade do

legislador foi visar só a parte da maquinaria, a que está prêsa, aderida ao solo, mas mesmo todo e qualquer objeto de acessão industrial ou não, uma vez que faça parte inerente da utilização da indústria e sua instalação. Não se pode considerar que o legislador tivesse em vista que só o

objeto de utilidade que estivesse prêso é que influiria na necessidade de se não afastar da sua utilização. Isso seria contra a finalidade do legislador: seria preciso que o objeto dado em penhor não fôsse tirado à sua utilização. Instalado e utilizado, foi o que disse o legislad or. A instalação

não importa na agregação, a meu ver, porque se tem em vista o resultado, o exerc ício da indústria, que é a utilização dêsse objeto. Assim, entendi que o dispositivo da lei abrangeria o locomóvel, que é parte inerente à utilização da indústria, necessário à sua instalação e

exploração; mas mudo de voto, diante das considerações feitas pelo Sr. Ministro Filadelfo Azevedo, no sentido da necessidade, que é do regime da lei, quanto à exigência do registo de imóveis.

Só por isso voto de acôrdo com S. Excia.

VOTO

O Sr. Ministro Valdemar Falcão – Sr. Presidente, da Turma, acompanhei o voto do eminente Sr.

Ministro Orosimbo Nonato, conhecendo do recurso e dando-lhe provimento. Fundamentei, então, as razões que tinha para seguir essa orientação, que se reportava, aliás, a ponto de vista meu, já adotado em julgamento anterior, inerente à interpretação das normas legais que dizem respeito

ao penhor mercantil pôsto em confronto com o instituto do penhor capitulado no Código Civil. Parti de uma premissa: a de que o decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939, não era aplicável à espécie; assim entendendo, tôda minha fundamentação girou em tôrno do instituto do penhor mercantil pôsto em confronto com as normas do Código Civil.

Ainda nessa altura dos embargos, sou levado a reafirmar êsse meu ponto de vista.

Dos autos se verifica que êsse decreto-lei n. º 1.271, não podia ter adequação à matéria, porque não se configuraria, naquele caso, uma obrigação ligada a penhor de aparelho industrial; não se dizia sequer qual a indústria que estaria prêsa ao funcionamento do locomóvel apenhado. O

próprio devedor declarou-se comerciante e comerciante também era o credor. No instrumento de penhor, o devedor se reportou

[18]

a uma nota promissória de sua responsabilidade, da qual era portadora a outra parte que figurava no contrato.

Assim, tudo indicava que na espécie, o que se configurava era um penhor mercantil, nitidamente,

não havendo como invocar as normas criadas pelo legislador de referência a atividades industriais.

A citação do objeto dado em penhor, o locomóvel, limitando-se, apenas, a especificação da marca do mesmo e a sua potência, sem dizer o seu emprêgo, sem minuciar a sua destinação,

deixava patente que seria um aparelho utilizado pelo comerciante, em atividade eventual, possivelmente ligada ao desdobramento dessa atividade comercial por êle exercida; e nunca uma objetivamente de iniciativa industrial, possivelmente enquadrada no âmbito do decreto -lei n.º 1.271.

Com essa convicção, ainda agora mantenho o meu voto, pronunciado na Turma.

VOTO

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Sr. Presidente, o caso dos autos foi, no Tribunal mineiro,

relatado pelo eminente Sr. Desembargador Fábio Maldonado. Tive a honra de ser colega de S. Excia., cuja opinião sôbre o assunto que os autos versam já então conhecia. Entende S. Excia. que é indispensável a tradição efetiva do objeto, no penhor mercantil. E o seu respeitável voto foi

o que dominou na espécie. O problema situou-se principalmente à luz do dispositivo do Código Comercial.

A referência ao decreto-lei n.º 1.271, terá sido feita incidentalmente. Não constituiu êle o ponto de incidência da controvérsia, que, então, se acendeu, naquele Tribunal.

Com êsse mesmo colorido veio a questão do Supremo Tribunal. Aqui, todos nós emprestamos

atenção maior ao problema da possibilidade, em face do Código Civil, da Lei de Falências e do Código Comercial, de ser o penhor mercantil consumado sem que se efetuasse a tradição do objeto contendo-se alguns, quanto ao penhor, com a tradição simbólica.

A questão desenvolveu-se nesses têrmos.

E se a questão principal fôsse esta, bastariam os argumentos já expendidos sôbre a triturada

questão para não alterar, no principal e no acessório, meu voto sôbre o assunto. Contudo, invoca-se uma lei.

[19]

E é verdade que a invocação é poderosa para afastar tudo mais e para que seja ela aplicada.

Tudo, pois, agora, já se cifra, não na velha questão de direito, mas na aplicabilidade do decreto-lei n.º 1.271, ao caso dos autos. E‟, apenas, questão da aplicação da tese à hipótese; se ao caso

dos autos é aplicável o penhor especial, que a lei permitiu sem a formalidade da tradição efetiva do objeto apenhado.

O eminente Sr. Ministro José Linhares entende que o caso é de aplicação dêsse dispositivo, que o objeto é daqueles que se podem considerar imóveis, em face do princípio da acessão industrial ou intelectual.

O princ ípio é verdadeiro.

A acessão não exige para transformar o móvel em imóvel o critério físico da aderência e em têrmos que não possa mais perder essa qualificação. Todavia, não foi essa a preocupação do legislador; não foi isso o que o legislador teve em vista, no caso. De outro modo, tudo se

resolveria sem a questão da tradição efetiva, porque o devedor hipotecário fica em seu poder com o objeto hipotecário. Ao contrário, o legislador, tomou de outro critério, de duplo critério: um, o critério da utilização da coisa, daquele móvel, que não adere ao estabelecimento industrial.

O Sr. Ministro Laudo de Camargo (Relator) – Se alguém compra qualquer objeto industrial, mas não o aplica em indústria, pode ou não dá-lo em penhor, como locomóvel, sem instalação?

Creio que êsse ponto não foi rebatido com vantagem.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – S. Excia. entende que, no caso, se trata de imóvel.

Estou de acôrdo com o eminente Sr. Ministro Laudo de Camargo.

Quanto à destinação do imóvel, a que se referiu o eminente Sr. Ministro José Linhares, não me preocupa, porque, se o objeto fôsse imóvel, por destinação, caberia hipótese.

O legislador, não, como dizia, adotou dois critérios: o da utilização, para aquêles móveis que não têm aderência física, como os locomóveis, os semoventes; e o critério físico, da instalação. E‟ critério amplo; todo objeto, quer se entregue no estabelecimento por utilização ou por instalação, está compreendido aí.

Todavia, no caso, como observou o eminente Sr. Ministro Laudo de Camargo, não existe prova de que o loco-

[20]

móvel esteja utilizado na indústria ou aí instalado. Em falta dessa prova, porque aplicar a lei especial? Na hipótese, devemos recorrer ao direito comum, segundo o qual essa tradição era formalidade indispensável.

O eminente Sr. Ministro Filadelfo Azevedo trouxe mais um argumento, terminante e que não me havia acudido: é que êsse contrato de penhor não está formalizado. Falta-lhe uma condição de vida, isto é, o registo, não simplesmente para valer como tradição, mas para a própria vida do

ato, uma vez que deve ser feito no Registo de Imóveis, como determina a lei, desenganadamente, e não no Registo de Títulos.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Está registado.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Mas não no Registo de Imóveis.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Não é possível que, na Comarca de Valadares, existam todos êsses registos.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Mas, é possível.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Os autos se referem a essa questão e dizem que o objeto foi apresentado para registo, dando minúcias sôbre êsse ponto.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Tudo que está nos autos é demonstração de que foi feito o registo no Cartório de Títulos. E‟ o que significam essas expressões: D-1, D-2. Na técnica do Registo, é assim que se faz: por letras.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Não houve, assim, o registo indispensável.

Por êsses fundamentos, que acabo de expender, ligeiramente, recebo os embargos.

VOTO

O Sr. Ministro Anibal Freire – Sr. Presidente, o eminente Sr. Ministro Orosimbo Nonato já salientou bem que, pròpriamente, não se discutiu a aplicação do decreto-lei n.º 1.271, de 1939.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Foi en passant.

O Sr. Ministro Anibal Freire – ... porquanto, no recurso extraordinário, a própria ementa mostra que se cuidou de outro assunto. Apenas em um dos votos houve referência

[21]

à aplicação dêsse decreto-lei, que, entretanto, não foi, como disse, discutido no recurso extraordinário nem constituiu objeto da decisão.

Se o recurso fôsse dirigido a respeito da aplicação dêsse decreto-lei, não teria dúvida alguma em desprezar os embargos.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Se existisse lei, tínhamos de aplicá-la.

O Sr. Ministro Valdemar Falcão – Nos embargos, falou-se nisso.

O Sr. Ministro Anibal Freire – O voto de V. Excia. não faz a menor referência.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – O acórdão confirmou a sentença e esta fazia referência. Ademais, meu voto não constitui argumento, se existisse lei aplicável.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Mas adotando êsse critério em que V. Excia. se apóia e julga vitorioso, a razão, a meu ver, com a devida vênia de V. Excia. está no acórdão embargado. Se

se considera aplicável a lei n.º 1.271, a razão está com o acórdão embargado. Na própria ementa se lê: “Dispõe sôbre o penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria”.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Êsse argumento da rubrica não é suficiente.

O Sr. Ministro Anibal Freire – O decreto, portanto, se refere às máquinas e aparelhos utilizados na indústria.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Máquinas e aparelhos utilizados e instalados. Há prova de sua utilização?

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Não se discutiu êsse ponto. O que se discute é o penhor.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Não sou técnico, como apesar da profundeza de seus conhecimentos – nenhum dos ilustres membros dêste Tribunal é técnico, mas, evidentemente, o locomóvel é ou não um aparelho utilizável?

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Utilizável, mas não utilizado.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Na inicial os próprios autores declaram: “Em ação executiva contra Antônio Las Casas, os ora agravantes penhoraram um motor a vapor 8 H.P.”...

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Estava sendo utilizado? Foi utilizado nessa indústria?

[22]

O Sr. Ministro Anibal Freire – Não é preciso prova de que está definitivamente provado. A

indústria de L. Ataíde & Cia., era ou não uma indústria existente, suas máquinas estavam ou não incluídas na proteção dada pela lei?

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Quero a prova da utilização dêsse aparelho utilizável.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Perdoe-me V. Excia., mas não havia por que fazer uma prova da utilização de um locomóvel, de um motor a vapor que se declara existir, estar em funcionamento, que está servindo ao funcionamento da indústria e cuja retirada é prejudicial.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Onde está essa declaração?

O Sr. Ministro Anibal Freire – Está nos autos.

O Sr. Ministro Laudo de Camargo (Revisor) – Que a máquina está funcionando na indústria? Se eu encontrasse essa declaração, rejeitaria os embargos.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Trata-se de motor a vapor. Não preciso ser técnico, nem inquirir dos conhecimentos de quem quer que seja para considerar que se trata de aparelho que a lei

protege. Não é possível a retirada de um aparelho existente, em funcionamento, não poderia ser objeto desta ação. Evidentemente, está funcionando, está servindo.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato – Essa evidência é que não encontrei.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Numa questão destas – desculpe-me V. Excia., não é preciso fazer a prova prática. Esta emerge das circunstâncias do fato, das condições peculiares ao fato. A lei

de 1939 não visou senão a outro objeti vo, neste ponto, alterando tôdas as regras vigentes da legislação civil e comercial; ela tornou suscetíveis de penhor as máquinas e aparelhos, mas ficando êstes em poder do devedor, para não sacrificar a indústria instalada e em funcionamento.

Não compreendo que na ação inicial se declare haver sido penhorado um motor a vapor e se queira fazer a exigência de prova circunstancial.

O Sr. Ministro José Linhares (Revisor) – Nunca ouvi falar tanto em provas, em recurso extraordinário.

O Sr. Ministro Aníbal Freire – Com êstes fundamentos, de acôrdo com o pensamento da lei, que considero aplicá-

[23]

vel ao caso e, preponderante sua exegese, rejeito os embargos.

VOTO

O Sr. Ministro Barros Barreto – Sr. Presidente, o caso em tela não deve ser regulado pelo

decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939, pelos motivos aduzidos no voto do Sr. Ministro Valdemar Falcão, e, entendendo-se de forma contrária, é incontestável que se deixou de observar a última parte do art. 2.º do referido diploma.

Já sustentei que a lei falimentar, no art. 92, §1.º, de acôrdo com o critério adotado pelo Código

Civil, revogara o art. 274, do Código Comercial. E esta é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Em assim sendo, recebo os embargos.

VOTO

O Sr. Ministro Bento de Faria – Sr. Presidente, recebo os embargos pela circunstância única de não haver sido feito o registo devido, no Registo de Imóveis.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Receberam os embargos contra os votos dos

Exmos. Srs. Ministros José Linhares e Aníbal Freire. Não tomou parte no julgamento o Exmo. Sr. Ministro Castro Nunes, que não compareceu à Sessão, por motivo justificado.

Damos a seguir o texto completo das leis sôbre a matéria:

DECRETO-LEI N.º 1.271, DE 16 DE MAIO DE 1939 Dispõe sobre o penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180 da Constituição, decreta:

Art. 1.º - As máquinas e aparelhos utilizados na indústria, instalados e em pleno funcionamento, com ou sem os respectivos pertences, podem ser objeto de penhor.

Art. 2.º - O penhor de bens referido no artigo anterior, constitui-se por instrumento público ou particular, sendo êste subscrito por duas testemunhas e em três vias, pelo menos, devendo uma

delas, autenticadas as firmas de todos os signatários, ser transcrita e arquivada no registo de imóveis da comarca onde os bens se encontrarem.

§ 1.º - O instrumento do contrato, além das estipulações peculiares ao negócio, deverá conter:

[24]

I – Os nomes, prenomes, estado civil, nacionalidade, profissão e domicílio dos contraentes;

II – O total da dívida ou sua estimação;

III – O prazo fixado para o seu pagamento;

IV – A taxa de juros, se houver;

V – As máquinas e aparelhos, objeto do contrato, com as especificações que s e fizerem necessárias para sua individualização, bem como a data, forma e condição de sua aquisição;

VI – A denominação, confrontação e situação do estabelecimento onde se encontram os bens empenhados, e, bem assim, a data de sua locação ou aquisição e o número de transcrição do respectivo instrumento no registo de imóveis.

§ 2.º - O locador do imóvel onde estiverem situados os bens empenhados deverá dar o seu

consentimento por escrito no próprio instrumento de constituição do penhor, sob pena de nulidade dêste.

§ 3.º - A prorrogação do contrato de penhor far-se-á por averbação no registo de imóveis, observado o disposto no parágrafo anterior, quando fôr o caso.

Art. 3.º - O devedor, que continuar na posse e utilização das coisas empenhadas é equiparado

ao depositário, para todos os efeitos legais, e não poderá delas dispor, alterá -las ou mudar-lhes a situação, ainda que no mesmo estabelecimento onde se acharem, sem consentimento por escrito do credor.

Art. 4.º O credor poderá verificar sempre, por si ou por pessoa que designar, a situação e o

estado dos bens empenhados. A recusa por parte do devedor importará em rescisão do contrato, se assim o entender o credor.

Art. 5.º - Os mesmos bens podem ser objeto de novo penhor em favor do credor originário, para garantia de outra dívida, mas a cessão de um crédito não se fará isoladamente enquanto não houver especificação de garantias.

Art. 6.º - Quando se verificar a morte, insolvência ou falência do devedor, ou rescisão do contrato por inadimplemento dêste, o credor poderá requerer ao juiz competente para tomar conhecimento da causa principal, que os bens, objeto do contrato, passem para sua posse ou de depositário por êle indicado.

Art. 7.º - Aplica-se ao penhor regulado nesta lei, no que couber, o que sôbre o assunto dispõem o Código Civil e o Código Comercial, revogadas as disposições em contrário.

[25]

Rio de Janeiro, 16 de maio de 1939, 118.º da Independência e 51.º da República.

GETULIO VARGAS. Francisco Campos.

A. de Souza Costa. Valdemar Falcão.

DECRETO-LEI N.º 1.697, DE 23 DE OUTUBRO DE 1939

Amplia disposições do decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939.

Art. 1.º - Ficam extensivos aos contratos sôbre produtos da suinocultura, banha, carnes de porco salgadas, congeladas, fiambres, presuntos e outros derivados, naquilo que forem aplicáveis, os dispositivos do decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939.

Art. 2.º - O devedor não poderá vender os produtos empenhados, salvo se, com o consentimento

escrito do credor, repuser no lugar dêles, outros produtos da mesma natureza, que ficarão subrogados no penhor.

Art. 3.º - Ficam revogados o decreto-lei n.º 2.265, de 23 de setembro de 1939 e tôdas as disposições em contrário.

Art. 4.º - Êste decreto-lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1939, 118.º da Independência e 51.º da República.

GETULIO VARGAS.

A. de Souza Costa. Francisco Campos. Valdemar Falcão.

DECRETO-LEI N.º 2.064, DE 7 DE MARÇO DE 1940

Amplia disposições do decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939.

Art. 1.º - As disposições do decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939, tornadas extensivas

aos contratos sôbre produtos de suinocultura e ao respectivo penhor pelo decreto-lei n.º 1.697, de 23 de outubro de 1939, estendem-se também, no que forem aplicáveis, ao penhor dos animais adquiridos pelos estabelecimentos que exploram a industrialização dos suínos e, bem

assim, aos materiais por êles adquiridos para essa industrialização, tais como condimentos, sal, agaragar, e à embalagem dos respectivos produtos, tais como fôlhas de Flandres, papel apropriado e caixas.

[26]

Art. 2.º - O presente decreto-lei entra em vigor a partir da data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 7 de março de 1940, 119.º da Independência e 52.º da República.

GETULIO VARGAS. A. de Souza Costa. Francisco Campos.

Valdemar Falcão.

403. REQUISITOS DO PENHOR DE MÁQUINAS. – Algumas observações se impõem a respeito dos requisitos do penhor de máquinas, enumerados no art. 2.º, ns. I a VI.

São inteiramente aplicáveis à inteligência dos números supracitados as noções que já expendemos a propósito dos elementos integrantes da Hipoteca (c fr. vol. II).

Dispõe o § 2.º do art. 2.º que, sob pena de nulidade, deve conter o instrumento de penhor o consentimento por escrito do locador do imóvel onde estiverem situados os bens empenhados.

Êsse dispositivo tem por fundamento o respeito ao direito de penhor legal que, por fôrça do art.

776 n.º II do Código Civil, assiste ao dono do prédio rústico ou urbano, sôbre os bens móveis que o rendeiro ou inquilino tiver guarnecendo o mesmo prédio, pelos alugueres ou rendas.

Do princípio supra resulta que não pode ser inscrito um contrato de penhor, em que falte o consentimento por escrito do locador do imóvel onde os bens estiverem situados.

E se o consentimento do locador faltar no instrumento, por qualquer circunstância, poderá essa falta ser suprida por meio de ratificação?

Entendemos que os têrmos da lei são peremptórios: a lei considera essencial não só o consentimento do locador do prédio, como ainda especificou a forma de sua manifestação, declarando-a necessária no próprio instrumento de penhor.

Trata-se de um requisito substancial tanto quanto a assinatura das partes contratantes. E‟ uma

nulidade absoluta, dados os têrmos peremptórios do § 2.º do art. 2.º: “sob pena de nulidade dêste”. Deve-se, porém, ter em vista que a nulidade recai sôbre a dívida ou em relação ao contrato garantido (cfr. n.º 404, infra).

Uma outra questão: pela expressão – locador – contida na lei, entende-se exclusivamente o

proprietário? Pela negativa, foi a solução que demos, num processo de dúvida, submetido ao nosso julgamento. Assim nos manifestamos: “examinando, assim, êsse aspecto da questão, é incontestável que o disposto no art. 2.º, do decreto-lei n.º 1.271, não pode ser interpretado gramaticalmente, pura e sim-

[27]

plesmente sob a inflexível aparência do seu texto, ou melhor, atribuindo-se à expressão – locador – um significado restrito, exclusivo. O que é evidente e o que se deve ter em conta é a razão do preceito. Se o sublocador, como o locador, tem igualmente o privilégio do penhor legal,

porque êste inere ao crédito e não à pessoa, é forçoso também atender que o preceito do supracitado art. 2.º foi instituído lògicamente, para respeitar o direito decorrente do privilégio, pois, sem o consentimento do respectivo titular, impossível convencionar -se vàlidamente um

penhor em colisão com um outro decorrente da lei. Conseguintemente, a expressão locador do artigo em questão deve ser entendida como referente a todo aquêle que seja titular de locação. Assim, o preceito fica satisfeito quando, como no caso de sublocação, o consentimento vem prestado pelo sub-locador”.

Discordando dêsse ponto de vista, Waldemar Loureiro (1) liga à expressão “locador” como entendendo-se proprietário.

O que não padece dúvida é que o sublocador está frente ao sub-inquilino na mesma posição do locador frente a êle sublocador como locatário.

Mais ainda. No regime do Código Civil, não há relação alguma entre locador e sublocatário e as

leis de inquilinato atuais colocaram a sublocação no mesmo nível da locação. Entretanto, ainda quando se pretenda exigível o assentimento do locador, no caso de penhor de máquinas oferecido pelo subinquilino, é errado vincular -se a noção de – locador – à de proprietário.

Acidentalmente, ou melhor, comumente, a posição de locador coincide com a de proprietário, pois constitui uma forma de utilização do domínio. Todavia pode suceder não coincidirem as duas relações jurídicas, como, v. g., no caso de usufruto, ou de uma anticrese, situações

jurídicas que propiciam mesmo a possibilidade do proprietário figurar como a posição de locatário do seu próprio imóvel.

404. INSCRIÇÃO DO PENHOR DE MÁQUINAS E DOS DEMAIS A ÊLE EQUIPARADOS. – A inscrição do penhor de máquinas, no Registo de Imóveis, é constitutiva. Sem ela, o penhor não pode ser argüido com o caráter que lhe é próprio. Desempenha o mesmo papel da inscrição hipotecária. Trata-se de uma formalidade insubstituível por outra qualquer espécie de registo.

Assim, se registado no Registo de Títulos e Documentos, o mesmo não comunicará qualquer efeito real à garantia, que permanecerá letra morta. Decidiu, nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal: “o penhor industrial em que se admite cláusula “constituti” tem a sua validade subordinada ao seu registo no Registo de Imo-

(1) – Waldemar Loureiro, p. 127, p. 170.

[28]

veis, não podendo a sua falta ser suprida por qualquer outro registo”. (Ac. Do S.T.F., de 16 de agosto de 1944, Rev. dos Trib., vol. 160, p. 834).

De maneira diversa, pronunciou-se a Terceira Câmara Civil do Tribunal de S. Paulo (Ac. De 8 de setembro de 1943, Rev. dos Tribunais, vol. 151, p. 93-97). Depois de acentuar o ponto,

igualmente importante, de que “a falta de consentimento do locador do imóvel onde estão os maquinismos dados em penhor não pode ser alegada por terceiro”, assentou que “sòmente o penhor constituído por instrumento particular é que, para valer contra terceiros, precisa ser

transcrito e arquivado no registo de imóveis”. A Câmara supracitada acolheu os fundamentos da sustentação do despacho recorrido, nos seguintes têrmos:

“Da sentença de fls. que julgou procedente em parte a impugnação ao crédito de Levon Apovian, agravaram-se as duas partes: o impugnado para pleitear o reconhecimento de seu privilégio para

todo o crédito declarado, e um dos impugnantes por pretender que o privilégio não deva subsistir nem mesmo parcialmente, de vez que na constituição do penhor não se observaram requisitos essenciais á sua validade.

Ter-se-ia dado o caso, afirma o impugnante, do penhor ter sido feito sem que as máquinas

penhoradas estivessem instaladas e funcionando; de ter sido constituído o penhor sem consentimento expresso do locador do prédio e de não ter sido a escritura transcrita no registo de imóveis, para valer contra terceiros.

Êsses dois últimos foram alegados na impugnação de fls., e devidamente apreciados e

rejeitados pela sentença agravada. O primeiro, porém, o de que por ocasião do contrato de penhor as máquinas não estavam instaladas e funcionando, sòmente agora com a sua minuta é invocado pelo impugnante.

Fundamenta o agravante o seu argumento no artigo 1.º do decreto-lei n.º 1.271, de 16-5-1939,

que dispõe simplesmente: “as máquinas e aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com os seus respectivos pertences, podem ser objeto de penhor”.

Como se vê o dispositivo é permissivo da constituição de penhor tendo por objeto máquinas e aparelhos, utilizados na indústria, instalados e funcionando. Dos seus têrmos não se pode inferir,

como pareceu ao agravante, que as máquinas e aparelhos não instalados e que não estejam funcio-

[29]

nando, não possam ser objeto de penhor convencional. Não constitui, portanto, condição para validade do penhor o fato daqueles objetos se acharem instalados e em funcionamento.

No caso, fôsse verdade o que alega o agravante, e poder-se-ia dizer que o penhor constituído não tem os característicos do penhor industrial regulado pelo decreto-lei n.º 1.271. E, então, de pior partido estaria o agravante, porque os dois outros fundamentos de sua impugnaç ão, sem dúvida mais relevantes que o analizado, teriam perdido a razão de existir.

A outra alegação do agravante no sentido da invalidade do penhor se prende ao fato da sua constituição sem o expresso consentimento do locador do prédio ocupado pelos devedores, consoante dispõe o art. 2.º § 2.º, do decreto-lei n.º 1.271:

“O locador do imóvel onde estiverem situados os bens empenhados deverá dar o seu

consentimento por escrito no próprio instrumento de constituição do penhor, sob pena de nulidade dêste”.

Pretende-se que se trate de uma formalidade essencial para que possa subsistir o penhor, valendo “erga omnes”, e não apenas para que êle possa operar em relação ao locador do imóvel. Em conseqüência, insatisfeita aquela exigência, o penhor é nulo de pleno direito.

Não entendi assim ao proferir a sentença agravada e ainda não tenho motivos para me penitenciar, porque não me convenci de estar em êrro.

O que o citado dispositivo legal teve em vista foi certamente deixar expressa a ressalva ao crédito preferencial do credor por aluguéis, em favor de quem o artigo 776, n.º II, do Código Civil confere penhor legal sôbre os bens que guarnecem o prédio locado.

Encerra o dispositivo, por bem dizer, uma reprodução do que se contém no artigo 783 do Código Civil relativamente ao penhor agrícola das utilidades do imóvel hipotecado. Nesse artigo, o Código também impõe a pena de nulidade para o penhor agrícola constituído sem anuência do

credor hipotecário expressa no próprio instrumento de constituição do penhor. Entretanto, jamais se viu decretar-se tal nulidade a requerimento do próprio devedor ou de outro credor, que não o hipotecário, em cujo benefício a lei dispõe naquele sentido.

[30]

Nenhum interêsse ou vantagem de ordem pública se procura tutelar, para que a inobservância da formalidade legal afete a essência do ato e o invalide de pleno direito.

Finalmente, no que respeita à alegada falta de registo imobiliário, continuo entendendo que nos têrmos do art. 2.º do citado decreto-lei n.º 1.271 semelhante providência só se faz precisa quando o penhor se constitui por instrumento particular.

“....................................................

A redação parece não deixar dúvidas a respeito da exigência do registo e arquivamento do

contrato de penhor, sòmente quando êle se constituir por instrumento particular. Certamente o

legislador admitiu que feito o penhor por escritura pública ter-se-ia assegurada a sua prioridade,

como também a sua publicidade, não havendo mister a transcrição no registo público de imóveis”.

Da exposição supra, vê-se que o Tribunal de S. Paulo, através de sua Terceira Câmara Civil, sufragou as três teses constantes do despacho confirmado: a) não ser requisito do penhor a

instalação dos aparelhos utilizados na indústria e o seu respectivo funcionamento; b) não ser necessária a inscrição no Registro de Imóveis, quando o penhor de máquinas haja sido constituído mediante escritura pública; c) o requisito do consentimento do locador sòmente pode ser argüido, como matéria de nulidade, pelo próprio locador, único interessado.

Vejamos a primeira questão, quiçá uma das mais importantes, ou seja, a de que o decreto-lei n.º 1.271 não impôs a inscrição, no caso do penhor de máquinas ser constituído por escritura pública.

Na verdade, o art. 2.º encontra-se mal redigido. Entretanto não se pode daí deduzir que se tenha

privilegiado a forma do instrumento público como um meio de publicidade, de modo a dispensar a inscrição no Registo de Imóveis. E a demonstração de que tal não foi a intenção do legislador, de que não cogitou restringir a formalidade da inscrição tão sòmente ao instrumento particular se

verifica claramente do § 3.º do referido art. 2.º onde se dispõe: “a prorrogação do contrato de penhor far-se-á POR AVERBAÇÃO NO REGISTO DE IMÓVEIS, observado o disposto no parágrafo anterior, quando fôr o caso”.

Ora, a averbação é um ato acessório, subordinado à transcrição ou à inscrição que representam

a peça principal. Impossível cogitar-se de averbação onde faltou o ato principal com o qual deverá ter uma necessária relação. O que sucederia no caso de prorrogação de um contrato de penhor feito por escritura pública, faltando a ins-

[31]

crição para dar lugar à formalidade da averbação? O segundo argumento é o do dispositivo

regulamentar que estamos comentando ter imposto a inscrição, sem distinguir o instrumento público do particular, e com o caráter obrigatório, com a omissão, na lei substantiva, de qualquer disposição colidente com o regulamento.

Também não procede a solução proposta da desnecessidade de se encontrarem instaladas as

máquinas, objeto do penhor. Do penhor de máquinas, tal qual o prevê a respectiva lei, a instalação e o funcionamento das máquinas representam um pressuposto claramente impos to na lei, afastando qualquer outra inteligência diversa.

Finalmente resta a questão da nulidade.

O que o decreto-lei n.º 1.271 de 1939 determina no § 2.º do art. 2.º é a necessidade do locador

do imóvel onde estiverem situados os bens empenhados dar o seu consentimento por escrito no próprio instrumento de constituição de penhor, sob pena de nulidade.

A nulidade se nos afigura absoluta, em razão da expressão legal: “sob pena de nulidade”.

E‟ verdade que a forma proibitiva ou imperativa embora indique uma presunção do legislador em

criar uma nulidade absoluta, contudo não dispensa o intérprete de esclarecê -la, confirmando-a com a pesquisa ou despojando-a da sua aparente eficácia (1). Mas a prova de que o legislador pretendeu dar-lhe tal caráter está em que, além da pena cominada expressamente, exigiu

manifestação direta do consentimento do locador e ainda indicou a forma: no próprio ato constitutivo do penhor.

Por conseguinte, se a dívida não fica prejudicada, como obrigação, por faltar o dito consentimento manifestado pela referida forma, por outro lado, o penhor, como vínculo real pignoratício, não vale como tal.

A Quinta Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal decidiu que ”deve ser admitido o crédito como privilegiado, nos têrmos do art. 92, alínea I, do decreto n.º 5.746, de 1939, tendo sido a demora do registo do contrato, apresentado oportunamente ao cartório do Registo Geral

de Imóveis, motivada por circunstâncias independentes da vontade dos contratantes”. (Ac. Da 5.ª Câmara, de 3 de março de 1942, in Diário da Justiça, de 16 de julho de 1942).

405. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO DE PENHOR. – Permite o § 3.º do art. 2.º a prorrogação do contrato de penhor. Nesse caso não são mais necessários os requisitos dos ns. I a V do art. 2.º, pois já ficaram determinados no contrato que se prorroga.

(1) – Chironi e Abello, Trattato di Diritto Civ. It., I, p. 76.

[32]

Entretanto não se prescinde do consentimento do dono do imóvel onde estiverem situadas as coisas dadas em garantia.

E‟ um requisito da mesma forma substancial.

406. POSSIBILIDADE DE NOVO PENHOR. – Faculta o art. 5.º que os mesmos bens possam ser objeto de novo penhor, contanto que se trate do credor originário. A outro credor diferente não é permitido um segundo penhor sôbre a coisa já onerada.

Admite-se, porém, que um dos créditos possa ser cedido, com a condição de ficarem especificadas as garantias.

A inteligência dêsse dispositivo é para nós consistente nessa possibilidade condicionada a uma discriminação do grau de preferência que possa caber a um ou outro crédito, ou do modo pelo qual a coisa dada em duplo penhor responderá, em relação a cada uma das dívidas.

407. EXTINÇÃO E CANCELAMENTO DA INSCRIÇÃO DO PENHOR. – São aplicáveis aqui as

noções que já expendemos a propósito da extinção do penhor comum e da Hipoteca (cfr. vol. II). Convém notar que, enquanto o decreto-lei n.º 1.271, de 16 de maio de 1939, fala em transcrição, o art. 178 que estamos comentando estabelece que a formalidade é a da inscrição. O citado

decreto-lei n.º 1.271 foi alterado nesse ponto, adotando-se uma formalidade mais consentânea com o próprio instituto do penhor.

407 – bis. PENHOR SÔBRE PRODUTOS DE SUINOCULTURA. – O decreto-lei n.º 1.697 de 23

de outubro de 1939 tornou extensivas aos contratos sôbre produtos da suinocultura, banha, carnes de porco salgadas, congeladas, banhas, presuntos e outros derivados, naquilo que forem aplicáveis, os dispositivos do decreto-lei n.º 1.271 de 16 de maio de 1939 (art. 1.º do decreto -lei

n.º 1.697 de 23-10-939). No art. 2.º dispõe que o devedor não poderá vender os produtos empenhados, salvo se, com o consentimento escrito do credor, repuser no lugar dêles, outros produtos da mesma natureza, que ficarão sobrogados no penhor.

[33]

LOTEAMENTO

408. LOTEAMENTO. – O n.º VII da letra “a” do art. 178 refere-se à inscrição do memorial de loteamento de terrenos urbanos e rurais, para a venda de lotes a prazo e em prestações.

Esta forma de venda está estabelecida pelo decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, que foi regulamentado, posteriormente, pelo decreto-lei n.º 3.079 de 15 de setembro de 1938, que introduziu várias modificações.

409. LOTEAMENTO E A VENDA DE TERRENOS A PRESTAÇÕES: CAUSAS DA

LEGISLAÇÃO SÔBRE LOTEAMENTO. – Em vários países, precìpuamente após o conflito mundial de 1914, surgiu a legislação sôbre o loteamento de terras, e isto em razão de certas causas econômicas e mesmo políticas.

A hipert rofia das cidades e a conseqüente deserção dos campos redundaram na necessidade da

habitação, na extensão das primeiras na especulação de terrenos destinados à construção urbana.

A anarquia reclamava uma providência e uma regulamentação jurídica. Urgia enfrentar uma infinidade de problemas de ordem social, econômica, financeira, administrativa, higiênica ou

estética pois o movimento da divisão de terras em lotes vinha se processando com postergação daqueles requisitos.

A liberdade individual carecia, nesse particular, de um freio para harmonizá -la com o interêsse coletivo.

O urbanismo erigia-se, assim, num problema, para o qual mister se fazia estender os princ ípios novos de economia dirigida.

Tais foram os fatores que fizerem surgir em certos países europeus, como na França e na Alemanha, e mesmo em Marrocos, a legislação do loteamento de terras.

Maurice Polti (1), acentua que as causas da legislação sôbre loteamento foram, em França, a crise da habitação, a lei de 8 horas de trabalho, a facilidade de condução e a necessidade de ar e higiene.

O quadro que se apresentava antes dessa legislação foi traçado pelo deputado francês Amédée Chenal, dizendo:

(1) – Maurice Polti, Traité Théorique et Pratique sur les Lotissements, págs. 9-14.

[34]

“O vendedor se contenta em traçar a sua planta e efetuar no solo as vias de

comunicação; em seguida inicia a venda. Os cidadãos sob um belo sol, atraídos ao local por sugestivos anúncios não prevêem os inconvenientes futuros; o caminho embrionário é, quase sempre, coberto de relva e êles se deixam seduzir apressando-se em adquirir

um canto de terra sonhado, orgulhosos de se terem tornado proprietários. Mas, cêdo, o aspecto muda; a circulação de alguns carros transportando materiais abre sulcos lamacentos...

Entretanto, bem ou mal, construiu-se, sem a preocupação dos nivelamentos futuros, nem a da impossibilidade em se obter canalizações para água e luz”.

Outras censuras ainda eram feitas aos loteadores, como a construção dos espaços livres cuja

conservação era necessária, ausência de qualquer pl ano de construção, nenhuma proibição aos

construtores quanto à edificação de usinas, “ateliers”, mais ou menos insalubres, impróprios ou inestéticos (2).

Quase idênticas foram as causas da legislação alemã sôbre o loteamento de terras.

Após triunfar, em 1870, na guerra contra a França, a Alemanha apresentava o aspecto de uma nação eminentemente rural. As populações rural e urbana estavam divididas de modo a favorecer uma sã economia, de vez que a indústria tinha pouco desenvolvimento.

A situação, porém, foi a pouco e pouco se transformando. Grande o incremento da atividade industrial, de tal sorte que, no comêço do presente século, a Alemanha alcançava o primeiro lugar entre os produtores mundiais.

O resultado foi a diminuição da emigração, atraídos os trabalhadores para as indústrias, bem como os próprios habitantes do campo que se deixaram fascinar pelos atrativos das cidades.

Defluiu dessa situação uma proporção inversa: a população rural passou a representar não mais do que um terço da população total, permanecendo a agricultura num marasmo, e as cidades congestionadas (3).

Após o conflito de 1914-1918, a Alemanha, desorganizada, teve que enfrentar duas ordens de

problemas: era necessário desenvolver a agricultura cuja depressão se acentuava, e pôr um dique à extensão desregrada das cidades, e o meio foi o processo do loteamento.

Refere então J. Cazenavette:

(2) – Amédée Bonde, Traité Pratique des Lotissements, p. 6. (3) – J. Cazenavette, Extension des Villes et Lotissements, p. 122.

[35]

“Boden politik ou Boden reform são os nomes dados a um conjunto de medidas tomadas com o fim de proceder a uma completa reorganização da economia rural. Os grandes domínios imobiliários eram, de outro lado do Reno, uma regra corrente,

constituíam um grave obstáculo a tornar a pequena propriedade acessível aos

trabalhadores. Ora impunha-se ligar êstes últimos à terra de que desertavam. De outro

lado, convinha antes de tudo evitar uma especulação que não tardaria em aparecer se medidas apropriadas não fôssem tomadas. Estas preocupações deram causa a um sistema original que encontra sua consagração

oficial na lei do Reich de 11 de agôsto de 1919, concernente às emprêsas de loteamento (ob. Cit. P. 123).

O mesmo interêsse social que determinou a legislação francesa sôbre o loteamento levou a se

estabelecer em Marrocos uma legislação com êsse mesmo objetivo, pois, embora as cidades

marroquinas não enfrentassem o problema de uma vida difícil, de departamentos superpovoados, de habitações insalubres, o habitante de uma cidade procura sempre fugir do centro de sua atividade. Misturou-se, assim, o problema do loteamento com o dos subúrbios.

Assinala Albert Grillet (4) que em Casablanca, em Rabat, e em tôdas as municipalidades, o

operário, o comerciante, o funcionário desejam uma pequena vila no arrabalde, aspirando um pedaço de jardim.

Além disso, frisa o citado autor, a lei de loteamento alia a vantagem social de fixar o elemento francês da população marroquina, sendo de notar que foi determinada não sòmente do ponto de

vista da viabilidade, dos serviços de água potável e de esgôto, como ainda da exigência de um título de propriedade seguro.

A legislação marroquina, baseada na francesa, não consiste sòmente num trabalho de desconfiança contra os loteadores profissionais, mas também num ato de previdência destinado

a garantir a coletividade contra o nascimento e desenvolvimento anárquico de um centro de habitação.

Na Inglaterra, pôsto que desprovida de uma legislação especial concernente ao problema do loteamento, contudo se chegou a resultados satisfatórios, por meio de regulamentos inerentes

aos problemas urbanos. Sob um aspecto eminentemente administrativo, não se privou, porém, a iniciativa particular.

(4) – Albert Grillé, Traité Pratique des Lotissements au Marroc, pág. 2.

[36]

Não é de data recente o problema urbanístico na Inglaterra. De há muito que êle vinha constituindo já o ponto de alguns estudos, e em 1909 apareceu a primeira lei sob a denominação

de “Town Planning Act”. Depois foram surgindo outros, como o “Act” de 1919, o de 1925, finalmente o Local Government Act de 1929.

Tôdas essas leis visaram a solução do problema da habitação e do urbanismo, as condições higiênicas da moradia, alinhamento das novas construções, regulamentação dos estabelecimentos insalubres ou inconvenientes, etc.

Em 1932, surgiu uma outra lei de caráter geral Town and country Planning Act, estabelecendo regras obrigatórias, minuciosas, detalhadas.

Excetuadas as legislações supramencionadas, as dos demais países não se ocuparam do problema, de um modo direto e concreto.

Nos Estados Unidos não existe lei federal tornando obrigatório às municipalidades criar planos de disposição e extensão de cidades.

Uma lei de 1923 “The Standard State Zoning Enabling Act”, permite a um grupo de cidadãos solicitar ao govêrno de cada Estado autorização para criar uma comissão de disposição urbana.

410. CAUSAS DA LEGISLAÇÃO DO LOTEAMENTO EM NOSSO PAÍS. – Depois de vistas as causas que determinaram, em vários países, o surto da legislação sôbre loteamento, importante se torna apreciar as que produziram o mesmo fenômeno entre nós.

Enquanto nas demais legislações preponderaram as considerações de ordem higiênica, estética,

econômica, transporte e demais requisitos impostos pelas condições da vida moderna, entre nós dominou o interêsse de ordem privada, a questão da liquidez do domínio e da realidade prática dos contratos de promessa de compra e venda, cuja única sanção – a indenização por perdas e

danos – não bastava a garantir os que tinham empregado pequenos capitais e torná-las perfeitamente defendidos pela fé nos contratos.

Tal a conclusão que se extrai das considerações expostas por Valdemar Ferreira ao apresentar o primeiro projeto sôbre loteamento, à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em sessão de 9 de junho de 1936.

Em verdade, na exposição de motivos, ficou acentuada a carência de providências reguladoras do contrato de promessa de compra e venda de imóveis, pois a especulação de algumas emprêsas, a precariedade de certos títulos de domínio, já estavam acarretando prejuízos à economia pública.

Dentre outros males, apontava a citada exposição a surprêsa de onus reais sôbre o terreno, a penhora de lotes compromissados, o fe-

[37]

chamento de vias de comunicação, a faculdade de arrependimento prevista no art. 1.088 do Código Civil.

E assim se conclui:

“Converteu-se êsse dispositivo em fonte amarga de decepções e de justificados desesperos. Urge secá-la para que se consagre, efetivamente, a norma salutar do art. 1.126 daquêle código, em razão do qual a compra e venda, quando pura, considerar -se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes se acordarem no objeto e no preço”.

Com êsse mesmo critério e determinado pelas mesmas causas surgiu o decreto -lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, consoante se observa dos considerandos que o precedem:

“Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante pagamento do preço em prestações;

Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador, uma vez que o art. 1.088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrepender-se antes de assinada a escritura de compra e venda;

Considerando que êsse dispositivo deixa pràticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa fé e a solvabilidade das emprêsas vendedoras;

Considerando que, para segurança das transações realizadas mediante contrato de

compromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos; Considerando ainda que a loteação e venda de terrenos urbanos e rurais se operam

freqüentemente sem que aos compradores seja possível a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores”.

411. SÍNTESE HISTÓRICA DA NOSSA LEGISLAÇÃO SÔBRE LOTEAMENTO. – Apreciadas as

causas que, em nosso país, determinaram a legislação sôbre loteamento, cumpre agora fazer um ligeiro histórico da legislação.

Como vimos, o primeiro projeto foi apresentado por Valdemar Ferreira. Aprovado pela Comissão de Justiça, em sessão de 16 de junho de 1936, foram também aceitas algumas emendas introduzidas pelo autor do projeto, que afinal logrou ser aprovado pela Comissão de Finanças, em 23 de julho do referido ano.

Baixando ao plenário, recebeu o projeto várias emendas as quais foram debatidas na Comissão de Justiça, do que resultou o pro-

[38]

jeto substitutivo, encaminhado ao plenário da Câmara dos Deputados, que apro vou em último turno.

Remetido ao Senado, estava o projeto da Câmara em segunda discussão, quando sobreveio o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937.

Aproveitando-lhe a estrutura e feitas certas modificações o Govêrno da República tornou uma

realidade a legislação sôbre loteamento, com a publicação do decreto -lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937.

Posteriormente, com o propósito louvável de delir certos defeitos e esclarecer certos pontos equívocos, foi estabelecida uma regulamentação da matéria com o decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938.

412. CARÁTER DA LEGISLAÇÃO SÔBRE LOTEAMENTO.

Expostas, como ficaram, as causas determinantes da legislação sôbre loteamento, entre nós e em outros países, delas surge, claramente, a sua grande importância, e, por conseguinte, o seu caráter, que outro não pode ser senão o de uma legislação de ordem pública.

Neste sentido é a conclusão a que chegou Silvio Pereira (1).

E não temos dúvida em encará-la sob êsse prisma.

Já acentuamos que a legislação sôbre o loteamento é uma conseqüência da economia dirigida estendida ao problema do urbanismo.

A vontade é a forma ativa pela qual o indivíduo se manifestou aos demais membros do grupo social.

Soberana, enquanto isolada, a partir do momento em que se combina com outra vontade, sofre uma limitação, conjuntamente com esta.

Há, porém, circunstâncias capazes de influir sôbre essa vontade, agindo na formação dos contratos, sobrelevando, dentre elas, as de natureza econômica.

A economia livre, no seu significado próprio, é o regime em que tôdas as atividades podem se desenvolver sem limitações, sem freios; as vontades podem livremente se acordar usando e

abusando de sua liberdade, sem nenhuma preocupação, sem nenhuma consideração pela utilidade comum.

Faz-se necessária uma fôrça de equilíbrio, que não permita a ofensa a essa utilidade comum. Eis o princ ípio da economia dirigida. André Toulemon (2), distingue a intervenção puramente estatal da intervenção da lei; critica a primeira para admitir a segunda,

(1) – Silvio Pereira, Imóveis a Prestações, págs. 45-47. (2) – André Toulemon, Le Mépris des Contrats et la Crise, página 83.

[39]

pois, diz êle, “se por organização ou direção da economia, entende-se a limitação pela lei das atividades individuais ou coletivas, em vista da utilidade comum, ela existe em graus diversos em tôda sociedade civilizada por meio dos códigos e das leis”.

Pois bem, tal foi a orientação da nossa legislação. E‟ a lei que impõe certas condições, com o objetivo de garantir a perfeição do contrato.

A intervenção do Estado legitima-se por fôrça das suas atribuições administrativas, como seja, a aprovação do plano pela Municipalidade, e a inspeção dos títulos necessários ao depósito.

Ora, se se trata de uma lei eminentemente social, destinada à segurança das operações

contratuais como o público, se se visou garantir a liquidez do domínio do ofertante, a realização efetiva do contrato, uma vez preenchidas as condições nêle estipuladas, se se pretende ministrar garantias estáveis de certas condições estéticas, higiênicas e urbanísticas, não há como negar o

caráter de ordem pública dessa mesma lei, caráter que lhe empresta uma fôrça coativa tão intensa que a própria parte interessada, e a quem se destina a proteção, n ão lh‟a pode renunciar.

Se a lei é de ordem pública, qual a conseqüência de sua violação?

Sílvio Pereira (3), fundamentando-se no art. 141 da Constituição Federal, preceituando que “a lei

fomentará a economia popular, assegurando-lhe garantias especiais”, frisa que se a intenção do legislador não fôsse obrigar os proprietários a cumprir o disposto no art. 1.º, o decreto se reduziria a ostentosa inutilidade, eis que a segurança estabelecida para os compromissários de

lotes ficaria dependendo da vontade do promitente, quando a Constituição ordena que a lei consigne garantias especiais, para o fomento da economia popular.

E concluiu afirmando que sendo os decretos-leis ns. 58 e 3.079, de ordem pública, a sua transgressão determina nulidade (4).

A tese é aceitável, não sob uma forma maciça, integral, como um princípio genérico e imutável.

A noção de ordem pública está intimamente ligada à da nulidade ou da inexistência do ato.

(3) – Sílvio Pereira, ob. cit. pág. 47.

(4) – Sílvio Pereira, ob. cit. pág. 48.

[40]

Ora, a noção de ordem pública é variável, não pode ser homogênea, única, pois que um determinado interêsse pode ser mais importante que o outro (5).

Há uma ordem pública inferior, com uma função meramente proibitiva, com um caráter neg ativo, bem como outra positiva, ordem pública no sentido mais elevado da expressão, quando a lei se coloca acima das considerações pessoais e dos interesses egoísticos de cada um.

Mister se faz, portanto, o exame detalhado das normas legais. Não basta acha r-se a regra legal

incluída numa lei considerada de caráter superior, para desde logo se concluir que a sua violação importa na nulidade do ato realizado.

Tudo depende da finalidade ou da direção da norma estatuída. E esta finalidade e esta direção são colocadas no interêsse coletivo, sendo que Georges Lutzesco (6) acha que essa direção

tanto pode ser encontrada na nulidade absoluta, de um modo direto, salvaguardando o interêsse geral, como, de um modo indireto, na nulidade relativa, quando, nada obstante proteger imediatamente o interêsse privado, indiretamente serve aos interêsses gerais, através dos seus efeitos.

Mas, acentua o citado autor, na teoria das nulidades não se deve considerar nem consagrar, dura e abstratamente, algumas regras inflex íveis, ante as necessidades sociais.

Impõe-se presidir uma certa dutilidade, pesando-se os vícios e as moléstias que houverem atacado o ato jurídico.

E diz:

“Não será por meio de uma apreciação ùnicamente do lado da validade do ato de

vontade, mas colocando-se face a face a intenção das partes contratantes com o fim social; a nulidade será, de algum modo, extraída da natureza do interêsse que prevaleceu aos olhos do legislador sem que se possas ignorar os móveis do ato de violação. Em todo caso, se se quiser conhecer a nulidade que se terá de aplicar, será

necessário pesquisar antes de tudo se neste conflito a lei teve por encargo defender o interêsse público ou proteger o interêsse privado, em outros têrmos, a solução será dada pelo fim da lei”.

(5) – Japiot, Des Nullités, pág. 305.

(6) – Georges Lutzesco, Théorie et Pratique des Nullités, pág. 266.

[41]

Postos êstes princípios, temos a concluir, entretanto, que o caráter de ordem pública, decorrente das leis de loteamento, não se comunica a tôdas as suas disposições, mas sim cada norma legal

deve ser examinada de acôrdo com a finalidade de proteção com que a lei a estatuiu. Só assim se poderá conhecer quando a sua violação importa ou não numa nulidade absoluta.

Também cumpre media a intensidade da eficácia de cada norma, muitas vêzes sensivelmente variável.

O objetivo social pode assumir diversos aspectos; o conteúdo de cada relação, prevista numa norma jurídica, suscetível de variantes, apresentando-se uma com menor importância do que outra.

Certas relações podem surgir sem ter uma finalidade social, ao lado de outras incontestàvelmente fundamentais (7).

Sôbre essa matéria ainda retornaremos quando tivermos de tratar dos efeitos de certas normas importantíssimas e evidentemente portadoras do caráter de ordem pública.

413. IMPORTÂNCIA SOCIAL DA LEGISLAÇÃO SÔBRE LOTEAMENTO. – Reforça o argumento da natureza de ordem pública da lei relativa ao loteamento à consideração de sua importância social.

A crise da habitação nas cidades, eis uma das causas apontadas como determinantes do processo de loteamento.

Construir a sua própria casa, eis o problema de todos, principalmente daquêles que carecem de se libertar do aluguel pesado, ou seja a chamada classe média e o operário.

Sendo impossível, pela ausência absoluta de terrenos vagos ou ainda pelo alto valor dos

mesmos, obter um espaço no centro ou em circunscrições dêle aproximadas, o modesto funcionário, com o processo de loteamento, tem ensejo de obter um lote de terreno, mediante pagamento de prestações periódicas, e assim realizar o seu ideal.

Por outro lado, contribui para isso a facilidade dos modernos meios de transporte, tornado curtas

as distâncias e desenvolvendo o atrativo pelos lugares mais afastados da vida trepidante da cidade, dando ao trabalhador o ambiente de repouso e tranqüilidade, após as horas da vida agitada.

Além disso, há o grave problema da necessidade de ar e de higiene que os estreitos cubículos dos centros urbanos não proporcionam.

(7) – Mário Comba, Ordine Publico, in Seialoja, Dizzionario Pratico del Diritto Privato, IV.

[42]

Resolvendo-se o problema do espaço, implìcitamente se resolve o problema do ar e da higiene.

Em tese desenvolvida sôbre o alcoolismo, Pierre Janet, numa comunicação apresentada à Academia de Ciências Morais e Políticas, em sessão de agôsto de 1915 e publicada na “Révue Internationale de Sociologie”, de setembro do referido ano, frisou que um dos fatores mais

decisivos no combate ao alcoolismo consistia em proporcionar às famílias uma acomodação higiênica e ar salubre nas habitações.

A êsse respeito refere Maurice de Polti (1):

“Os casebres malsãos e muito estreitos das cidades foram abandonados com tanta

maior facilidade quanto a necessidade de se viver em pleno ar foi encorajada por uma ativa propaganda em favor da higiene da habitação e que coincidiu com uma enorme valorização imobiliária redundando na diminuição dos apartamentos urbanos, quanto á

sua superfície. Juntam-se, amontoam-se, e é por essa maneira que aparece a lepra dos casebres e que a vida urbana torna-se um fator de denegerescência”.

Como se vê, o problema do loteamento representa, ao mesmo tempo, um problema social.

Êle, em relação às classes mais desfavorecidas, proporciona um meio fácil, do ponto de vista financeiro, de aplicação das pequenas economias, transformando em proprietários indivíduos que antes de tal processo, nunca teriam imaginado semelhante realidade.

Problema moral, pois que a habitação dá à família o sentido de si mesma, da sua organização definida, evitando essa instabilidade dos apartamentos, que converte os membros da família em sêres nômades.

E‟ para o operário uma situação de bem -estar, desviando-o das tavernas, do jôgo, do álcool, etc.

Por conseguinte, a legislação reforçando e garantindo o loteamento, sob todos os pontos de

vista, realiza, com as garantias jurídicas, um objetivo social de suma relevância e de efeitos benéficos evidentes.

414. CONCEITO JURÍDICO DE LOTEAMENTO – A nossa legislação não define o loteamento. Fornece alguns elementos de que a Jurisprudência poderá utilizar-se.

O mesmo sucede em outras legislações, como a francesa, cuja omissão tem dado margem a

grandes discussões e a uma acentuada evolução no sentido de conferir ao loteamento um significado mais amplo.

(1) – Maurice de Polti, ob. cit. pág. 15.

[43]

Ao elaborar a lei francesa de 1924, assim foi definido o loteamento pela Câmara: “é a operação que consiste em subdividir em parcelas todo ou parte de um fundo adquirido a título gratuito ou

oneroso, com ou sem intenção de o alienar, e traçar o projeto de vias de comunicação tendo em vista a locação ou a venda destas parcelas”.

O Tribunal de Bordeaux resumiu a definição: “a divisão de um terreno em parcelas com um fim de especulação” (1).

De acôrdo com essas noções, o loteamento, segundo a legislação supracitada, se compunha de três elementos:

1.º) a divisão do terreno;

2.º) a intenção de vender da parte do loteador;

3.º) a construção de habitação pelo adquirente.

Êsse rígido conceito foi modificado, porém, por uma decisão do Tribunal de Apelação de Grenoble, datada de 18 de novembro de 1929 (2).

A jurisprudência passou a considerar como excluída da legislação sôbre loteamento, uma divisão de terras em lotes, quando levada a efeito por herdeiros entre si, como conseqüência da partilha. Nas mesmas condições de exceção foi considerado o caso de um proprietário que vendera uma

parte de seu terreno, conservando outra para o seu próprio uso. Para assim decidir a Côrte de Grenoble entendeu que a aplicação da lei de loteamento tinha como natural pressupôsto d’operations d’une réelle envergure”.

O Tribunal de Grenoble recusou, por êsse modo, estender as regras de loteamento a um

pequeno fracionamento de terras, levando em consideração tratar -se de uma operação feita por um particular sôbre uma propriedade modesta, e não por loteadores profissionais sôbre terrenos destinados à construção de aglomerações importantes.

O acórdão supracitado foi confirmado pela Chambre de Requêtes, e J. Cazenavette, referindo-se

a tais julgados, reputou-os felizes por terem libertado definitivamente a pequena propriedade do entrave insuportável imposto por uma interpretação bisantina e tirânica, emprestando à prática dos negócios uma elasticidade norma e uma liberdade necessária...

A administração pública francesa, aceitando o princípio dessa Jurisprudência, aduziu um outro

elemento – a consideração do interêsse público, sob o ponto de vista de que a não aplicação da lei deve constituir a exceção.

Vistos êstes princípios que muito auxiliam a interpretação dos dispositivos da nossa legislação, passemos à análise do instituto em nosso direito.

(1) – Apud G. Minvielle, Traité des Lotissements, pág. 328.

(2) – Benoist D‟Etiveaud, Le Régime juridique des Lotissements, pág. 31.

[44]

De acôrdo com o art. 1.º do decreto n.º 3.079, de 1938, estão sujeitas à legislação do loteamento as divisões em lotes de terrenos urbanos ou rurais, destinados pelos respectivos proprietários ou co-proprietários a serem vendidos, por oferta publica , mediante pagamento do preço a prazo em prestações sucessivas e periódicas.

A primeira condição é de ordem material: a divisão em lotes. Trata -se da divisão geodésica do terreno, processada com todos os requisitos, de modo a poderem ficar satisfeitos os requisitos legais dos ns. I e II do citado art. 1.º. Êstes lotes deverão ter uma medição exata, uma

caracterização irrepreensível, de vez que são destinados a se tornar objeto de uma propriedade distinta.

Não temos dúvida em afirmar a extensibilidade ao nosso direito dos princípios de jurisprudência já acima vistos e em relação ao direito francês.

Assim, não se pode considerar como sujeita à legislação sôbre loteamento a divisão de terras

entre herdeiros e co-proprietários, para a concretização de suas respectivas partes indivisas, bem como no caso em que o número de lotes seja por tal forma reduzido que o juiz possa concluir não se tratar de uma operação visando uma especulação.

O segundo requisito é o da oferta pública. Levi Carneiro combateu ten azmente êsse requisito. Disse êle:

“Não vejo razão de ordem jurídica que leve a exigir, imperativamente a observância das normas estabelecidas – o depósito no cartório do Registo de Imóveis de tais e tais documentos, a inscrição em livro especial, etc. – quando se tratar de venda mediante oferta pública e inscrição, quando a venda se não realize por essa forma.

Se se trata de uma garantia para os compradores, de uma formalidade necessária para boa ordem dos negócios decorrentes do loteamento de terre nos – por que torná-la obrigatória em um caso e nem sequer permiti-la em outro?

Assim, também, as demais garantias proporcionadas aos adquirentes – art. 11 e segs. –

por que sòmente devem caber no caso de oferta pública e, conseqüentemente, de depósito de documentos? O projeto reconhece a validade da promessa de venda constante das cadernetas usadas comumente. Muito bem! Mas por que êsse

reconhecimento há de restringir-se ao caso de venda mediante oferta pública e em que se faça depósito de tais e tais documentos?

[45]

Essa objeção foi respondida por Valdemar Ferreira (3), que procurou dar ao requisito – oferta pública – a seguinte exegese:

Teve o projeto em vista disciplinar os contratos de compromisso de venda de terrenos

loteados mediante ofertas públicas, sem nutrir o depósito de, por qualquer modo, impedir que ela se faça particularmente, sem publicidade alguma. Todo proprietário de terrenos pode loteá-los e vendê-los, se, como e quando quiser, a prazo ou à vista, como se

aprouver, sem que ninguém possa a isso opôr-se. Desde que, porém, pretenda oferecer os seus lotes em público, por anúncios na imprensa, cartazes, boletins, etc., apregoando-os pela radiofonia ou por outros meios de publicidade nada mais natural que êsse gênero de negócio seja convenientemente regulado”.

Na opinião supracitada, o que torna o loteamento subordinado à respectiva legislação é a publicidade, através de anúncios, pois, sem isso, resta a ampla liberdade do proprietário de lotear terrenos e vendê-los, quando e como entender.

Há aí uma interpretação absurda, ou melhor o autor do projeto emprestou à idéia de oferta pública um sentido por demais restrito que tornaria o requisito incongruente.

Por que motivo, proteger o que é at raído por anúncio e deixar sem proteção aquêle que também é atraído pela not ícia de um loteamento exposto à venda?

De tal forma pode ser a situação de um terreno loteado que até prescinda de anúncios para a fácil venda de lotes.

Poder-se-á argüir a imensa autoridade da interpretação de Valdemar Ferreira, por se tratar do autor do projeto primitivo e aproveitado posteriormente.

Mas é preciso não olvidar que a lei, por fôrça da publicação, se destaca do legislador e se

contrapõe ao mesmo como um produto novo, por fôrça do qual poderia ser mais previdente do que o próprio legislador.

“A vida jurídica oferece cada dia ocasião para extrair novos princ ípios da palavra da lei que subsiste de um modo autônomo, como vontade objetivada do poder legislativo. À medida que

uma lei se afasta da sua origem, a importância da intenção do legislador se entibia e se dilui: novas concepções jurídicas surgem e a lei recebe um significado e uma finalidade diversos dos originàriamente queridos.

(3) – Valdemar Ferreira, ob. cit., pág. 83.

[46]

“A lei deve ser interpretada por si mesma, como incorporando um pensamento próprio e vontade” (4).

Ora, parece-nos que, de acôrdo com o pensamento e a vontade imanentes na lei de loteamento, outro deve ser o sentido interpretativo da expressão oferta pública.

A lei visou o fim de especulação, o que força a se dar uma interpretação mais ampla ao conceito de oferta pública, interpretação essa que coopera no sentido de evitar os inconvenientes apontados na crítica de Levi Carneiro.

Conseguintemente, oferta ao público é a declaração unilateral de vontade à pessoa indeterminada, por meio da qual uma pessoa (ofertante) oferece realizar uma determinada prestação a quem quer que do público realize uma dada contraprestação (5).

Trata-se de um negócio jurídico preparatório de outro negócio. Em relação à lei de loteamento,

porém, o requisito da oferta pública não pode se cingir àquela definição jurídica, mas deve ser compreendido como sendo a apresentação de um terreno loteado, com as plantas aprovadas pela municipalidade e cujos lotes devam ser vendidos a quem quer que se apresente para os

adquirir, não sendo necessário que a oferta se apresente com aquêles requisitos que a doutrina exige para sua obrigatoriedade. Não se faz mister uma oferta processada por anúncios em jornais, pois, como acentua Gasca (6), variegados são os meios pelos quais se pode manifestar,

destacando-se entre êles a exposição da coisa com o intuito de vender, não havendo por assim dizer, forma especial para torná-la definida. São as circunstâncias que deverão indicar se existe ou não uma oferta pública e é incontestável a sua configuração quando se tratar de um terreno

dividido em muitos lotes, com as respectivas plantas aprovadas pela Prefeitura e exposto à venda pùblicamente, ainda que prescindindo de anúncios pela imprensa.

Sustentando êsse ponto de vista, num agravo de decisão nossa proferida no Juízo dos Reg. Públicos, dissemos ainda:

“A agravante procura ligar ao conceito de oferta pública a condição de se tratar de uma

oferta obrigatória para o ofertante. Entretanto, dado o caráter da lei do loteamento, não nos parece ter sido êste o fim visado. De outra maneira, sob o manto de tal definição, ter-se-ia um modo fácil de fugir às suas formalidades. Em nada a lição de Gasca vai de encontro ao conceito que expendemos. São

(4) – Ferrara, Diritto Civile, I, pág. 211. (5) – Ulrico Lorizio, in Scialoja, Dizz. Pratico, IV, pág. 337.

(6) – Gasca, Compro Vendita, I, pág. 950.

[47]

as circunstâncias que ditarão se existe ou não uma oferta pública. Diz Venzi (Pacifici - Mazzoni, Insti., IV, nota “a” à pág. 54) que essa forma se verifica mais freqüentemente

em matéria comercial e se caracteriza pela oferta que os comerciantes fazem mediante avisos nos jornais e mesmo pelo simples fato da abertura de um negócio, salientando ainda que os autores consideram essas ofertas, não como um vínculo unilateral

pròpriamente dito, mas como oferta de contrato. O citado autor frisa que há ainda uma invitatio ad offerendum, isto é, uma declaração feita sem a intenção de se obrigar, mas que contém um convite a fazer uma oferta, sem que isto produza um direito de crédito

em favor de quem quer que seja. O que queremos acentuar é que a lei de loteamento, estipulando a condição da oferta pública para um dos característicos da venda de lotes de terreno a prestação, visou a venda a pessoas indeterminadas, vendas a serem feitas

com quem quer que se apresente em condições de contratar. Por conseguinte, da mesma maneira que o comerciante ao expor suas mercadorias, dividido um terreno em lotes e estando à venda, há uma oferta pública, porque a lei não teve por escôpo a

preexistência de uma oferta no sentido restrito da palavra e apresentando -se como uma obrigação unilateral, precedendo o anúncio das condições gerais do contrato. De outra maneira importaria em contrariar a sua própria finalidade – a proteção da venda de lotes

de terras a prestações, em relação ao comprador. Mais uma vez acentuamos a lição de Ulrico Lorizio: “l‟offerta portata a conoscenza del pubblico (all‟uopo valgano i più svariati mezzi: esposizione della merce, pubblico banditore, inserzioni nei giornali, affisione di

manifesti, etc.) é perfetta com l‟esposizione – effetiva – della merce, la proclamazione della sua validitá non occorrono forme especiali” (in Scialoja, Diz. del Dir. Priv. IV, pág. 339). Figuremos a própria situação da agravante: uma firma comercial, proprietária de

um terreno, divide-o em lotes e passa a vendê-los a quem quer que se apresente em seu escritório; não há como negar, em tal caso, existir uma oferta pública, independente de anúncios (in Jornal do Comércio, de 9-9-939).

Não está subordinada à legislação do loteamento a venda de lotes de terrenos, a prestações, se

feita pelas entidades para-estatais e destinadas aos seus próprios associados. A respeito proferimos a seguinte decisão:

[48]

Vistos, etc.:

“O Sr. Oficial do 1.º Ofício de Imóveis suscitou dúvida quanto à transcrição da escritura de promessa de compra e venda de um lote a prestações, sob o fundamento de se tratar

de uma operação que exige, sob pena de nulidade, o cumprimento das formalidades previstas no decreto-lei n.º 58, de 1937 e decreto 3.079, de 15 de setembro de 1938.

Contestando os fundamentos da dúvida a impugnada – Caixa de Aposentadoria dos Ferroviários da Central do Brasil – alegou: a) que a impugnada é uma entidade para estatal, e, no conceito dos melhores tratadistas, uma instituição que age por delegação

do próprio Poder Público; b) que a suplicante impugnada não é uma emprêsa particular, nem se propõe a vender lotes de terrenos por oferta pública; c) que, ao contrário, as suas operações são regidas pelo decreto n.º 1.749, de 28 de junho de 1937 e

exclusivamente feita com os seus associados, sob fiscalização do Govêrno Federal; d)

que assim a impugnada não tem essa liberdade de transacionar com o público nem por

forma e modo que justifique a aplicação do decreto-lei n.º 58, de 1937. Ouvido o ilustre Dr. 11.º Promotor interino, o mesmo, depois de acentuar qual a natureza

da entidade paraestatal, conclui opinando pela inaplicabilidade da lei n.º 58, de 1937, ao caso objeto da dúvida.

Isto pôsto: Trata-se efetivamente de uma entidade paraestatal por conseguinte uma organização

que obedece a um regime todo especial. A denominação é recente e a natureza dessas organizações tem dado lugar a estudos de doutrina, precìpuamente na Itália. Mario Fioretti (voce – “Enti Parastatali” – in Nuovo Digesto Italiano, V, p. 431) depois de passar

em revista as teorias de Mauro, Cameo, Romano, Valada e outros, frisa que a criação dessas instituições constitui um problema atual, determinado por um critério de descentralização funcional, criadas pelo Estado ou por êle promovidas na sua formação

para um objetivo ou uma função destacados mesmo do complexo da atividade estatal, notando, dentro outros característicos, os seguintes: a) conexão estreitíssima dos fins da entidade com os da atividade econômico-social do Estado; b) particular forma da

intervenção estatal na gênese, na formação, no funcionamento e na contribuição dos meios de subsistência e de ação do ente assim criado.

[49]

Atenta, portanto, essa natureza especial e da qual se reveste, indubitàvelmente, a impugnada, está ela subordinada a um regime e exceção em todos os casos em que os

seus objetivos, coincidindo com a ação do próprio Estado, são regulados por lei especial. No caso, tem a impugnada, na venda de terrenos a prestação, um dos seus objetivos precípuos, tanto quanto a referida operação se enquadrar nos mesmos. Ora, um dos

requisitos para a subordinação da venda a prestações de lotes de terrenos é a exploração, mediante oferta ao público, entendendo-se esta, consoante já o decidimos, como a declaração unilateral de vontade à pessoa indeterminada, por meio da qual uma

pessoa (Ofertante) oferece realizar uma determinada prestação a quem quer que do público realize uma determinada contraprestação.

Por conseguinte, quer por se ajustar a venda de lotes de terrenos a prestações aos seus próprios objetivos essenciais, quer por se destinar essa venda, não a pessoa indeterminada no sentido genérico da palavra, mas a um grupo restrito de pessoas – os

seus associados – o que equivale a uma determinação precisa, senão das pessoas individualmente, pelo menos de um grupo de pessoas, perfeitamente especificadas, não se ajusta ao caso presente nem corresponde essa situação ao conceito de oferta ao

público previsto na legislação relativa ao loteamento. Não queremos com isso adotar o ponto de vista de que uma entidade, pelo simples fato

de ser paraestatal, esteja isenta da legislação sôbre loteamento, mas, com justiça, não se pode estender os dispositivos dessa última lei quando a venda de lotes à prestação está incluída entre os seus próprios objetivos e se destina, não a pessoas

indeterminadas, mas a operações com os seus próprios associados. Demais, um dos objetivos da legislação sôbre loteamento foi o de assegurar os direitos

dos compromissários em face do promitente vendedor, quer quanto à legitimidade da propriedade, quer quanto à segurança da realização efetiva da compra e venda.

Ora, não há como se cogitar de garantias tais, em se tratando de uma instituição criada

pelo Estado, regida por lei especial, da qual emanam todas as garantias possíveis e suficientes.

Nesta conformidade,

[50] Julgo improcedente a dúvida do Sr. Oficial do 1.º Ofício de Imóveis, e mando, em

conseqüência que se faça a inscrição da escritura impugnada. – P.I.R. Rio de Janeiro, 1.º de abril de 1940.

Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES.

A conseqüência dêsse princ ípio decorrente da legislação sôbre loteamento é que tôda venda a

prestações de terrenos loteados é nula pleno jure se, em se tratando de uma operação que traga todos os característicos de incidência na respectiva lei, não houver o seu proprietário satisfeito as formalidade legais.

A escritura definitiva não pode ser transcrita e o Oficial deve recusar essa transcrição, desde que tenha fundamentos para reputar caracterizada a incidência na lei de loteamento, de acôrdo com as circunstâncias de que se revestir cada caso.

Ainda, por se tratar de uma legislação de ordem pública, o Oficial pode exigir do interessado que prove estar isento da lei, devendo, em todo caso, levar o caso ao conhecimento do Juiz.

415. LOTEAMENTO EM CURSO – Trata-se, aqui, da eficácia da lei de loteamento, em relação ao tempo.

No § 2.º do art. 1.º das Disposições Transitórias (decreto número 3.079, de 1938), sob uma forma negativa, ficou definida a eficácia da lei em relação ao tempo, da seguinte forma:

“não se entendem em curso de venda as terras e terrenos loteados já comprometidos em sua totalidade, embora ainda não outorgadas as escrituras definitivas”.

Como se caracteriza, então, um terreno em curso de venda? Estando as terras e terrenos loteados, antes do advento da lei de 1937, sem que todos os lotes hajam sido objeto de um contrato de compromisso de compra e venda.

Não se pode, porém, considerar em curso um loteamento, v.g., quando o seu proprietário, após

haver comprometido todos os lotes, anteriormente à legislação de loteamento, procede, após o advento desta, ao loteamento de uma parte restante do terreno, que antes não loteara.

A questão tende a perder de interêsse, à medida que o tempo a torne naturalmente e cada vez mais improvável.

Entretanto, é mister focalizá-la. A propósito dessa retroatividade, assim a consideramos na seguinte decisão (in Diário da Justiça de 15 de junho de 1939):

“Isto pôsto: I – A questão da retroatividade da lei de loteamento a fim de abranger as vendas em curso tem sido

[51]

largamente debatida na legislação e doutrina francesas. A interpretação ofic ial foi no

sentido de que as disposições administrativas ou regulamentares visando a ordem pública abrangem em princípio não sòmente os fatos futuros, como ainda os que existiam antes de sua promulgação, se êstes fatos são de natureza a comprometer a

segurança e a salubridade públicas (G. Minvielle. Traité Pratique des Lotissements, n.º 292). Mas, se bem que contando com partidários contrários a essa retroatividade, como M. Lalou (D. P., 1926-2-2), maior é o número dos juristas que são favoráveis à mesma,

como Maurice Polti. (Traité Théorique sur les Lotissements, p. 93) achando que sem essa retroatividade o legislador teria falhado aos seus fins, ou ainda como Amédée Bonde (Traité Pratique des Lotissements, n.º 109) partindo da interpretação literal do

texto legal. Albert Grillet (Traité Pratique des Lotissements au Marroc, p. 43) ainda é mais radical, sustentando que nenhum direito adquirido pode existir para os loteadores que não pediram a autorização legal para o loteamento. Também outro não tem sido o

critério da jurisprudência. A princípio manifestou-se liberal, na apreciação, dos fatos caracterizadores dos loteamentos em curso, tendo até decidido que uma viúva que após o falecimento de seu marido não realiza ato algum tendente a prosseguir no loteamento

empreendido pelo de cujus, não incorre em nenhuma sanção penal. (Trib. Corr. Pontoise, 8 de junho de 1928, in G. Minvielle, ob. cit. n.º 297). Mas a jurisprudência mudou logo no sentido da aplicação da lei de loteamento aos loteamentos em curso, de

modo que a tese da não retroatividade não encontra fundamento senão numa fraca corrente doutrinária. II – A nossa legislação foi mais precisa que a francesa. O decreto -lei n.º 58, de 1937, dispõe nas Disposições Transitórias (art. 1.º):

“Os proprietários de terras e terrenos loteados em curso de venda, deverão, dentro de

três meses, proceder ao depósito e registo, nos têrmos desta lei, indicando no memorial os lotes já comprometidos, cujas prestações estejam em dia. Se até 30 dias depois de esgotado êsse prazo não houverem cumprido o disposto na lei, incorrerão os

vendedores em multas de 10 a 20 contos de réis, aplicadas no dôbro, quando decorridos mais de três meses”.

Posteriormente, o decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938, esclareceu o dispositivo supra citado, em dois pontos: 1.º) quanto ao que se devia entender por terras e terre-

[52]

nos loteados em curso de venda declarando excetuados daquêle conceito “as terras e terrenos loteados já comprometidos na sua totalidade, embora ainda não outorgadas as escrituras definitivas” (§ 2.º do art. 1.º das Disposições Transitórias); 2.º) declarando

competente para a imposição das multas decorrentes da lei de loteamento o juiz a que estiver submetido o registo imobiliário (art. 29). Por conseguinte, na definição legal, sòmente não há venda em curso, quando todos os lotes, de que se componha a área

loteada, tenham sido objeto de um contrato de compromisso de compra e venda de modo que restando qualquer dêles sem que haja sido objeto daquêle contrato é isto bastante para se reputar o terreno ainda em curso de venda e como tal obrigado o seu

proprietário a preencher todos os requisitos legais da lei de loteamento. Inquestionàvelmente, há semelhança entre essa definição e o critério interpretativo dado à lei francesa, de 1924. Fazendo a exegese desta, uma circular interministerial, de 29 de

novembro daquêle ano, definiu como havendo loteamento em curso “onde quer que haja

trabalhos a executar ou casas a cons truir ou terrenos a vender”. Posteriormente a

jurisprudência reforçou êsse princípio, decidindo que “um loteamento é considerado terminado, quando tenha sido vendida a totalidade dos terrenos que tenham constituído o seu objeto, (Cass. Crim., 5-V-928, A. Grillet, ob. cit., pág. 46), sendo certo ainda que o

Conselho de Estado considerou igualmente como concluído um loteamento cujas parcelas tinham sido vendidas em sua totalidade, com exceção de uma que o loteador reservara para si (Gaz. Pal., 19234, 1-95). Mas, fôrça é notar, os prejuízos que podem

advir dessa interpretação ou do dispositivo legal nosso, levado às suas últimas conseqüências. Refere G. Minvielle (La Pitoyable Régulamentation des Lotissements en France, p. 14) que a jurisprudência da Câmara Criminal francesa provocou uma

completa paralisação dos loteamentos em curso, citando exemplos em que êsse princ ípio rígido provocara injustiças. III – Conhecidas assim as razões que serviram de base aos dispositivos legais em nosso direito, passemos a analisar a situação do

requerente de fls. 2. No caso presente, é evidente, em face da planta de fls. 11, que se trata de um loteamento em curso de venda, pois a mesma planta indica a existência de lotes vendidos e outros ainda sob compromisso. De qualquer modo, anteriores ao

decreto-lei n.º 58, de 1937, ou posteriores, tais contratos tornaram o loteamento obrigado a ter os requisitos legais: no primeiro caso,

[53]

fazendo o depósito a que se refere o art. 1.º das Disposições Transitórias; no segundo, a não efetuar transação alguma sem o preenchimento das formalidades prescritas na lei.

Os vários prazos que o reclamante teve, em face da lei, deixou -os esgotados. Diz, porém, que lhe não foi possível efetuar o depósito dent ro do prazo legal, pela razão de ter havido impedimento por parte da Prefeitura Municipal. De fato, se provado estivesse

tal impedimento como razão determinante da demora, seria aceitável a recusa pelo princ ípio: “contra non valentem agere nulla praescriptio”. Mas como bem frisou o ilustrado Dr. Promotor de Registos, está provado dos autos que o reclamante, tendo

obtido aprovação da Prefeitura em 14 de março do corrente ano sòmente efetuou o depósito em 31 de maio. Dois meses deixou passar sem cumprir o dispositivo legal. Êsse retardamento injustificável tornou-o passível da multa, por isso que, para dela se

eximir, mister se fazia que provasse o impedimento legal e, provado êste, a diligência necessária em atender as exigências da lei. Evidentement e tal não sucedeu. Nesta conformidade a multa de 10.000$000 (dez contos de réis), nos têrmos do art. 29 do

decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938, sòmente lhe sendo permitido o depósito dos seus documentos para os efeitos da lei supracitada, após a prova do pagamento da aludida multa, para o que devem ser expedidas as necessárias diligências. Rio de Janeiro, 9 de junho de 1939. (a.) Dr. Miguel M. de Serpa Lopes”.

A Quarta Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (Ac. De 16 de fevereiro de 1943, na Apelação Cível n.º 808, in Diário da Justiça de 9 de junho de 1943, p. 2.505) decidiu, no tocante à aplicação do decreto-lei n.º 58, de 1937, às situações em curso do seguinte modo:

Quanto às preliminares: O caso não é efetivamente de aplicação do decreto-lei n.º 58 de 10 de dezembro de 1937.

Embora na escritura da promessa de compra e venda de fls. 6 se tenha convencionado que parte do pagamento será efetuado em prestações, e a última prestação efetuada em 21 de maio de 1930, como se verifica do documento de fls. 9, em conseqüência do que

já não se podia cogitar da promessa de compra e venda a prestações, regulado por aquele decreto-lei, quanto mais sòmente cerca de sete anos após integralizado o pagamento, entrou em vigor o invocado decreto-lei n.º 58 de 10 de dezembro de 1937.

[54]

Além disso, nenhuma prova existe, nesse processo, de que os terrenos de onde teria

sido desmembrado o lote em questão, tenha sido destinado a loteamento nas condições estabelecidas no art. 1.º do citado decreto-lei, isto é, que os proprietários, ou melhor, o espólio proprietário, pretenda vender lotes por oferta pública, mediante pagamento do preço a prazo em prestações sucessivas e periódicas.

Isso parece que seria aliás impossível neste momento, por se tratar de espólio, que não poderia empreender operações dessa natureza que necessàriamente teriam longa duração.

Seguramente em conseqüência dêsse conjunto de circunstâncias, não se efetuou o

registo de que cogita o art. 1.º do mesmo decreto-lei, nem consta que tenha sido averbada a promessa de fls. 6, em conformidade com o disposto no art. 11, § 1.º, alínea, dessa lei.

E não tendo, por tais motivos, preenchido o autor o requisito do art. 23 do citado decreto-

lei, seria de indeferir-se a petição inicial, visto como determina êsse dispositivo que “nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta lei, sem apresentação de documento comprobatório do registo por ela instituído”.

Na França, em razão da ausência de um dispositivo legal idêntico ao nosso, a questão tem sido vivamente debatida.

Em face da dissenção reinante, uma circular oficial fixou os seguintes princ ípios:

a) Estando o contrato de compra e venda do lote inteiramente perfeito, no momento da promulgação da nova lei sôbre loteamento, êle produzirá todos os seus efeitos;

b) se os entendimentos entre loteador e compromissário não se limitarem a uma simples promessa de venda, está sujeito à legislação do loteamento.

416. INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO: CARÁTER JURÍDICO E FINS DESSA FORMALIDADE. –

A condição para que se possa proceder à venda a prestações de lotes de terrenos é a sua inscrição no Registo de Imóveis, inscrição essa precedida do depósito dos documentos especificados no art. 1.º (decreto n.º 3.079, de 1938) e após cumpridas as demais formalidades preceituadas nos vários parágrafos da aludida disposição.

Qual, porém, o caráter jurídico dessa inscrição?

[55]

No agravo interposto de uma decisão do Juízo dos Registos Públicos, o ilustre Dr. Romão Côrtes Lacerda, Procurador Geral do Distrito, proferiu o seguinte parecer (1):

“Opino por que se negue provimento ao agravo, a fim de manter-se o despacho agravado, na parte em que julgou improcedente a impugnação do agravante.

O registo de que trata o decreto-lei n.º 58, de 1937, não tira direito a quem o tem, nem o dá a quem não o tem.

Os títulos do agravante são anteriores a 30 anos, e, pois, os direitos que dêles resultem para o impugnante sòmente podem ser pleiteados, como bem ponderam o Dr. Juiz a quo e o Dr. Promotor, por ação própria no Juízo competente.

Com relação a t ítulos de propriedade, o que o decreto-lei n.º 58, exige, para o registo

nêle instituído, são sòmente os que provem a propriedade desde trinta anos (art. 1., V) e, quanto a tais t ítulos, apresentados pela agravada, nada alega o agravante. Nem mesmo o agravante prova sequer ter ajuizado qualquer ação contra a agravada. Ora,

para impedir o registo seria preciso que o agravante exibisse certidão de sentença, passada em julgado, provando ter reivindicado os terrenos em apreço, que alega lhe pertencerem, e bem assim prova de ter sido anulada a t ranscrição dos terrenos, em nome da agravada, no registo de imóveis.

Os acórdãos do Tribunal da Apelação do Estado do Rio, oferecidos pelo agravante decidiram questão entre os espólios respectivamente, de Antônio da Silva Monteiro e Francisco José Soares Neto. Não podem, pois, ser opostos à agravada para ilidir o

direito de propriedade e posse desta das terras em aprêço. “Soepe constitutum est res inter alios judicata aliis non prejudicare”. – L. 63, de re jud.

O parágrafo 2.º do art. 1.º do decreto-lei, n.º 58, dispõe:

“as certidões positivas da existência de ônus reais, de impostos e de qualquer ação real ou pessoal, bem como qualquer protesto de títulos de dívida civil ou comercial, não impedem o registo”.

Dêste dispositivo se verifica que o registo, para os fins do decreto-lei n.º 58, se faz tomando-se por base o que consta do registo de imóveis, isto é, mediante a prova da pro-

(1) – In Gazeta Jurídica de 23-8-938.

[56]

priedade, mesmo onerada, resultante das transcrições imobiliárias, a respeito das quais vigore a estabelecida no art. 859 do Código Civil.

As impugnações a que se refere o decreto-lei n.º 58, como se vê do citado parágrafo segundo, do art. 1.º, sòmente se podem fundar em não ter o requerente do registo cumprido qualquer das formalidades estipuladas no mesmo decreto-lei: o agravante não

mostrou que a agravada não as tenha cumprido. – Distrito Federal, 10 de agôsto de 1938. – Romão C. Lacerda”.

Essa também a orientação seguida pelo Conselho de Justiça do Distrito Federal, o qual, no acórdão proferido no agravo n.º 125 (In Gazeta Jurídica, de 21-5-939) frisou que

“a finalidade do registo não é dar valor jurídico ao t ítulo de domínio, mas possibilitar ao

adquirente de terreno, comprado a prestação, o exame dos títulos do vendedor, protegendo os seus direitos”. (Ac. de 4 -5-939).

No mesmo sentido a Segunda Câmara do Tribunal de S. Paulo (Ac. de 3-10-938, in Gazeta Jurídica de 12-5-939), acentuando o seguinte:

“O decreto-lei visa dar uma relativa segurança ao comprador de terras por meio dos

contratos de compromisso. E para facilitar-lhes a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores, como se vê da justificação do decreto, é que estabeleceu o depósito dêles no Cartório do Registo

Geral”.

Estamos de inteiro acôrdo com o brilhante parecer do Dr. Procurador do Distrito Federal.

Inquestionàvelmente o registo do plano de loteamento não tira direito a quem o tiver e nem o dá a quem o não tiver.

Opinamos ser o princípio verdadeiro.

417. EFEITOS DA INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – A inscrição do loteamento não é um ato vazio de efeitos.

Serve para indicar que os requisitos legais da venda de lotes de terrenos a prestação estão satisfeitos e implìcitamente estabelecer que foi feita uma prova de domínio do requerente, embora essa inscrição não reforce essa prova, mas apenas sirva de demonstração de sua existência e de ter sido produzida e examinada.

Em segundo lugar, produz outros efeitos legais constantes da lei do loteamento. Assim, a partir da inscrição, se tornam inalienáveis

[57]

as vias de comunicação e os espaços livres constantes do mem orial e da planta (art. 3.º do decreto n.º 3.079, de 1938).

A disponibilidade do imóvel loteado fica subordinada às restrições do art. 9.º, por fôrça do qual, o

adquirente por ato inter-vivos, ainda que em hasta pública, ou por sucessão legítima ou testamentária, da propriedade loteada e inscrita, subroga-se nos direitos e obrigações dos alienantes, autores da herança ou testadores, sendo nula qualquer disposição em contrário”.

Se isso acontece em relação à disponibilidade, como entender-se o efeito da inscrição, em relação à Hipoteca?

No caso de ser anterior, o memorial será acompanhado da escritura pública em que o titular do ônus hipotecário tenha estipulado as condições com que se obriga a liberar os lotes no ato do instrumento definitivo de compra e venda (art. 1.º, § 4.º).

Mas, após a inscrição do loteamento, é possível ao proprietário lotes de terrenos a prestação pode ter lugar e a escritura que se fizer. Não há dúvida que pode, mediante certas condições.

Sendo a hipoteca constituída antes de comprometido qualquer lote, deverá a respectiva escritura

consignar as condições de liberação dos lotes, nos têrmos do citado § 4.º, do art. 1.º. Essa deverá ser junta ao memorial.

Mas se alguns dos lotes já houverem sido objeto de compromisso?

Não temos dúvida em afirmar que, mesmo nesse caso, a hipoteca é possível. Para isso, porém, além da observância do preceituado no art. 1.º, § 4.º, é necessário o consentimento dos

compromissários que tiverem averbado o instrumento de compromisso de venda, em face do disposto no art. 5.º, que lhes atribui direito real oponível a terceiros, quando a alienação ou oneração posterior.

Se a hipoteca fôr celebrada, sem o consentimento dos compromissários, a sua validade ficou

limitada tanto quanto não ofenda aos direitos dos compromissários, vigentes ao tempo de sua constituição, como sucede na aquisição, em que o adquirente também se subroga nas obrigações do alienante.

Decidiu o Supremo Tribunal Federal, (Ac. da 1.ª Turma, de 29 -1-945, in Rev. dos Trib.. vol. 166,

p. 822-826), que os compromissários compradores a prestações de lotes de terreno, embora não inscritos, não podem ser prejudicados com a Hipoteca posterior de todo o imóvel, quando, além de credor ter permitido expressamente a continuação dos compromissos, declarou conhece r a existência dos anteriores, aliás referidos na constituição de garantia real.

Finalmente, sem a inscrição, nenhuma operação de venda de lotes de terrenos a prestação pode ter lugar e a escritura que se fizer, com preterição dessa formalidade legal, não pode ser transcrita.

[58]

Isso decorre de outro princípio legal de que nenhuma ação ou defesa será admitida, com

fundamento na lei e loteamento, sem apresentação do documento comprobatório do registo por ela instituído (art. 23, decreto n.º 3.079, de 1938).

Consideremos, agora, a questão das servidões.

Como iremos ver (cfr. n.º 418 infra) a jurisprudência francesa tem consagrado o princípio de que as consignações feitas no cahier des charges bastavam para criar as servidões porventura

estabelecidas no plano de loteamento e que êsse mesmo critério interpretativo se aplica, entre nós, através da inscrição do loteamento, que é bastante para tornar jurídico e incontestável qualquer ônus real que se institua, não havendo necessidade de uma dupla publicidade, e isto

porque se a inscrição do loteamento é suficiente para tornar inalienáveis por qualquer títulos as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta (dec. 3.079, art. 3.º), pela mesma razão essa inscrição pode servir de meio de publicidade dos ônus reais de qualquer outra natureza, prescindindo de se fazer ainda uma transcrição.

Mas, não se pode deixar de pôr essa interpretação em confronto com o disposto no art. 8.º, que preceitua:

“O registo instituído por esta lei, tanto por inscrição quanto por averbação, não dispensa nem substitui o dos atos constitutivos ou t ranslativos de direitos reais na forma e para os efeitos das leis e regulamentos dos registos públicos”.

Êste dispositivo, contudo, não colide com a interpretação que viemos de expender.

Estabelecidos os ônus no memorial, a inscrição do loteamento torna incontestáveis êsses mesmos ônus, assim com torna inalienáveis as vias de comunicação e as de acesso.

Essa inscrição, entretanto, não atua indefinidamente. Realizada qualquer escritura definitiva de venda de lote, da transcrição da venda deve constar igualmente a dos ônus oriundos do loteamento.

Figuremos a hipótese em que do memorial do loteamento conste a obrigação dos adquirentes do

lote não elevarem as construções senão até determinada altura, ou seja uma servidão de não construir mais alto. A inscrição é bastante. O loteador não carece inscrevê-la duplamente. Ela ficou instituída. No ato da escritura definitiva, porém, a referida servidão tem de constar da

escritura e ser devidamente inscrita, pois que, já aí, a inscrição do loteamento não pode continuar a protrair os seus efeitos, nem substitui ou dispensa a inscrição que comumente se leva a efeito, de acôrdo com o preceito do n.º X, do art. 178 letra “a” do decreto n.º 4.857, de 1939.

[59]

No que se relaciona com terceiros, decidiu-se que o “direito real resultante da averbação do compromisso de venda do imóvel, quanto à sua alienação ou oneração posterior, é oponível a terceiros, e não apenas ao compromitente” (Ac. das Câmaras Cíveis Reunidas do Trib. De Ap. de S. Paulo, de 30 de outubro de 1942, in Rev. dos Tribunais, vol. 50, pág. 690-694).

A hipótese era a seguinte: o imóvel, após averbado, foi penhorado. O compromissári o ofereceu embargos, rejeitados pelo Juiz sob o fundamento de não ser titular de direito real, ante o que o compromissário propôs uma ação para anular a sentença (rescisória), sob o fundamento de ter sido violado direito expresso, fundamento acolhido pelo acórdão supra.

418. REQUISITOS DA INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. –

A) Pessoas que poder requerê-la. – O depósito da documentação relativa à inscrição do loteamento deve ser requerido pelos proprietários ou co-proprietários, de terrenos urbanos ou rurais, que pretendam vendê-los em lotes e por oferta pública, mediante pagamento do preço a prazo em prestações periódicas.

A lei fala em proprietários ou co-proprietários.

Trata-se, no primeiro caso, daquêle que possui o domínio pleno do terreno que deseja lotear.

A prova dessa condição é essencial e a lei exige-a nos requisitos formais que estabeleceu.

A lei de loteamento é omissa quanto ao caso do loteamento versar sôbre terrenos sujeitos ao domínio enfitêutico.

Não temos dúvida em admitir a possibilidade do loteamento pela enfiteuta, mesmo que não se haja premunido do consentimento do senhorio direto.

Está subordinado, porém, ao direito de preferência estabelecido no art. 683 do Código Civil, e,

em todos os casos, à obrigação do alienante, neste caso o loteador, de pagar o laudêmio, na forma estatuída no art. 686 do Código Civil.

Neste caso o direito real outorgado ao compromissário está evidentemente subordinado ao direito do senhorio direto.

O melhor critério, em tais casos, é instruir o loteante o seu pedido de depósito com o

consentimento do senhorio direto, em que êste deixe esclarecido o seu acôrdo, em relação ao direito de preferência e ao laudêmio.

Tratando-se de bens pertencentes ao domínio da União, do Estado ou do Município, cumpre a autorização dessas entidades.

Quanto ao condomínio, a questão envolve uma apreciação mais detalhada.

[60]

Assis Moura, (1), parece abraçar o ponto de vista de que a lei de loteamento autoriza ao condômino, isoladamente, lotear a sua parte num terreno em condomínio.

E‟ o que se deduz dos seguintes princípios que pretendeu estabelecer: a) obrigação de ser mencionada a circunstância da co-propriedade, consignada a descrição do imóvel dividendo e a área que o co-proprietário, ocupando-a pro indivizo, destina ao loteamento; b) essa declaração

esclarecerá os pretendentes e sujeitá-los-á aos efeitos da divisão, quando esta se efetuar; c) êsses efeitos consistem em que, a despeito do direito real do compromissário, êste perderá o seu direito se não estiver dentro no valor do aquinhoamento; d) que a lei de loteamento permite

que um condômino dê posse, no imóvel dividendo, ao compromissário comprador, afirmação que alega fundada nos arts. 1.º, n.º I, letra “c” e n.º III e 18, parágrafos 1.º e 2.º, asseverando que essas disposições revogaram o disposto no art. 633 do Cód. Civil que preceituava: “nenhum

condômino pode, ser prévio consenso dos outros, dar posse, uso ou gôzo da propriedade a estranhos”.

Tais são, em resumo, os argumentos do supracitado autor.

Já tratamos da venda da coisa em condomínio e mesmo tivemos oportunidade de tributar ao supramencionado autor todo nosso acatamento em relação à doutrina que sustentou,

relativamente à validade da venda pelo condômino de sua parte a estranho, venda essa que é considerada como subordinada a uma condição resolutiva (cfr. n.º 425 infra).

Igualmente já admitimos a possibilidade da venda de parte determinada da coisa indivisa, feita pelo condômino, possa vender em lotes uma porção da coisa indivisa?

Temos que essa forma de venda é incompatível com o espírito da legislação especial do loteamento.

Como dissemos, a possibilidade dessa alienação sòmente é compreensível mediante a transcrição do ato, como uma alienação sob condição suspensiva.

E‟ um ato sempre pendente de uma condição que pode não se realizar, como seja não ficar compreendida a coisa vendida no quinhão do condômino vendedor.

Ora, qual o objetivo da lei do loteamento? Já ficou reiteradamente dito: a proteção ao

compromissário, e proteção essa consistente em lhe conferi r, pagas as prestações, a venda definitiva.

Sendo o loteador um condômino, sem autorização dos demais consortes, a venda não pode ser definitiva. Tira-lhe êste caráter a natureza da condição que a acompanhará. A essa cláusula de resolu-

(1) – Assis Moura, Venda de Terras em Lote, pág. 75.

[61]

bilidade também ficará subordinado o contrato de compromisso de compra e venda, e o ônus real surgido com a inscrição no Registo de Imóveis será limitado igualmente pela circunstância da resolubilidade.

Seria, portanto, uma forma de venda em antinomia com os objetivos da lei e a conclusão

fàcilmente se impõe: não se pode admitir uma alienação resolúvel, como base para os atos regidos pela lei de loteamento.

A Terceira Câmara Cível do Tribunal de S. Paulo, decidiu que “o proprietário de parte sujeita a processo divisório não pode promover sua venda em lotes e a prestações, na forma da

legislação relativa ao loteamento (Ac. da 3.ª Câm. Do Trib. de S. Paulo, de 7 de abril de 1943. Rev. dos Tribunais, vol. 147, pág. 138).

Semelhantemente decidiu a Quinta Câmara do referido Tribunal (Ac. da 5.ª Câmara do Tribunal de Apelação de S. Paulo, de 23 de março de 1939, in Rev. dos Trib., vol. 120, pág. 520). Em

outro caso, a 2.ª Câmara do mesmo Tribunal, com maior precisão em tôrno à tese que estamos sustentando, decidiu que “o condômino que não obteve o assentimento dos outros comunheiros não pode vender parte das terras em lotes a prestações”. (Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de Apelação de S. Paulo, de 27 de março de 1939, in Rev. dos Trib., vol. 120, pág. 521-523).

Merece destaque o seguinte voto do Desembargador Antão de Morais:

“A decisão recorrida negou o registo que o agravante intentava fazer de um imóvel destinado a ser vendido em lotes e a prestações. Fê -lo, porque êsse imóvel é parte integrante de um condomínio. O agravante provou possuir uma parte ideal no todo; mas não provou ser proprietário exclusivo da parte que destacou.

Em tais condições, surge a dúvida: a expressão co-proprietários, a que se refere o art. 1.º do decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938, refere -se sòmente aos co- proprietários em conjunto ou também a cada um separadamente? Duas opiniões vão se

defrontando a propósito. Uns entendem que, sendo fim do registo proporcionar às p artes um meio fácil de verificação dos títulos de propriedade dos vendedores, nada impede que o condômino, que possui determinada área pro indiviso, a venda em lotes, desde

que tal circunstância conste do registo. Em tal caso, os compradores não serão i ludidos, pois sabem que ficarão sujeitos aos efeitos da divisão, quando esta se efetuar. Outros pensam que o condômino só poderá alienar a parte que possui em comum nas condições em que o Código Civil o permitir;

[62]

não poderá, porém, mediante oferta pública, nos têrmos do citado regulamento n.º 3.079.

Esta se afigura a melhor solução, pois a análise dêsse decreto mostra que o uso da

expressão co-proprietários, no art. 1.º, só pode referir -se a todos em conjunto e não também a cada um em separado. De fato, o n.º I, letra “a” daquêle artigo, exige que o registo contenha: descrição minuciosa da propriedade loteada da qual conste a

denominação, área, limites, situação e outros característicos do imóvel. E‟ claro que, estando em comum a propriedade, êsses requisitos não podem ser preenchidos. A let ra “b” requer a relação cronológica dos t ítulos de domínio, desde vinte anos.

Evidentemente, isso só com relação ao todo poderá ser cumprido. Finalmente, o n.º II pede a planta do imóvel com a situação, dimensões e numeração dos lotes, comunicação e espaços livres, indicação das construções e benfeitorias e das vias

pública de comunicação. Como é possível cumprirem-se tais exigências antes da divisão da propriedade comum?

O que, em suma, o regulamento n.º 3.079 patenteia é que o legislador admite seja vendido em lotes, mediante oferta pública, um imóvel cuja situação jurídica seja duvidosa

(art. 1.º, § 3.º). Para que os interessados se precavenham e possam examinar os t ítulos é que determinou o respectivo registo. Quanto à identificação, porém, do imóvel, o rigor é absoluto. Ora, quem destaca de todo a sua parte para vendê -la em lotes, não pode

garantir lhe venha essa parte a caber na divisão da propriedade comum. Separadamente, portanto, não pode aliená-la de conformidade com o decreto n.º 3.079. Poderá fazê-lo, como já dissemos, nos têrmos em que a legislação comum o tolerar.

Ante aquêle decreto, todavia, antes da divisão, só os companheiros, em comum poderão vender”.

B) Memorial – Valdemar Ferreira (2), dá ao memorial prescrito na lei de loteamento o mesmo caráter do memorial previsto no art. 7, do decreto n.º 451-B, de 31 de maio de 1890, bem como o art. 52 do decreto n.º 720, de 5 de setembro de 1890.

No nosso modo de entender, a expressão memorial corresponde ao programme da lei francesa e ao plano do loteamento. O memorial não diz respeito tão sòmente à concretização do terreno a ser loteado, êle abrange também o histórico da propriedade, através dos títulos de domínio

anteriores, bem como o plano de loteamento com o competente programa do desenvolvimento urbano, etc.

(2) – Valdemar Ferreira, ob. cit., I, pág. 86.

[63]

Êsse memorial deve ser assinado pelos proprietários ou por procuradores com pod eres especiais (n.º I, do art. 1.º, do decreto n.º 3.079, de 1938).

Se o proprietário fôr pessoa jurídica, precisará exibir certidão do contrato social ou dos estatutos,

na qual se fará constar: quem tenha poderes de representação; e se não há impedimento para o comércio de imóveis (3).

O memorial deverá conter:

a) descrição minuciosa da propriedade loteada, da qual constem a denominação, área, limites, situação e outros característicos do imóvel;

b) relação cronológica dos t ítulos de domínio, desde 20 anos, com indicação da natureza e data de cada um, e do número e data das transcrições, ou certidão dos títulos e prova de que se acham devidamente transcritos, salvo quanto aos títulos que, anteriormente ao Código Civil, não estavam sujeitos à transcrição;

c) plano de loteamento, de que conste o programa de desenvolvimento urbano, ou de aproveitamento industrial ou agrícola; nesta última hipótese, informações sôbre a qualidade das terras, águas, servidões ativas e passivas, estradas e caminhos, distância da sede do município

e das estradas de transporte de mais fácil acesso (letras a, b e c do n.º I, do art. 1.º, do decreto n.º 3.079, de 1938).

Em relação ao requisito da letra a, tem tôda pertinência a menção aos requisitos constantes do art. 22, n.º 7 do decreto n.º 451-B de 1890, a saber:

a) os rumos seguidos, a aviventação dos rumos antigos, com os respectivos cálculos;

b) os acidentes encontrados, as cêrcas, valos, marcos antigos, córregos, rios, lagoas, etc.;

c) a composição geológica dos terrenos, as novas culturas, a que possam adaptar-se, e bem assim a qualidade, extensão dos campos, matas e capoeirões existentes;

d) a indicação minuciosa dos novos marcos assentados, das culturas existentes e da sua produção anual;

e) indústrias agrícolas, pastoris, fabris e extrativas, exploradas ou suscetíveis de exploração;

f) as vias de comunicação existentes e as que convenham estabelecer;

g) as distâncias à estação de estradas de ferro, portos de embarque e mercados mais próximos;

(3) – Sílvio Pereira, ob. cit., pág. 48.

[64]

h) o número conhecido de trabalhadores, empregados na lavoura, com indicação, podendo ser, de suas nacionalidades;

i) o sistema adotado em relação ao serviço agrícola e ao estabelecimento de colonos (parceria, salário, subdivisão da propriedade em lotes, empreitadas, etc.);

j) avaliação de todos os móveis e imóveis, discriminando-se os preços de cada um;

k) indicação, em suma, de tudo o que concorrer possa para conhecimento cabal da propriedade e seu valor.

O requisito da letra b versa sôbre a relação cronológica dos títulos de domínio, desde 20 anos, com indicação da natureza e data de cada um.

O decreto-lei n.º 58, de 1937 estabelecia o prazo de 30 anos. no decreto n.º 3.079, de 1938 êsse prazo foi reduzido a 20 anos.

Compreende-se a razão dessa alteração: a) porque as ações reais prescrevem em dez anos entre presentes e em vinte entre ausentes (C.C, art. 177); b) porque, além disso, igual prazo é estabelecido para a consumação do usocapião, com justo título e boa -fé (C.C, art. 551); c)

porque finalmente, nada obstante exigir-se títulos, remontar essa prova além de um período de 20 anos é revelar que a prova do domínio, no direito brasileiro, é inteiramente deficiente, sem se ter em consideração o valor da transcrição, segundo o regime estabelecido pelo código civil, nem

fé nos títulos que sejam apresentados por outra forma, a despeito da prescrição das ações reais em 20 anos e do usocapião em igual prazo.

O decreto n.º 3.079 tornou a lei do loteamento mais reajustada com o regime da prova de domínio resultante do Código Civil.

Sílvio Pereira (4), referindo-se a essa mudança que o decreto n.º 3.079, de 1938 introduziu, disse:

“A inovação não terá nenhum efeito. O loteador ver-se-á obrigado a apresentar prova de propriedade de 30 anos atrás, diante da exigência da alínea V.

De fato, a certidão de existência ou inexistência de gravame real sôbre o imóvel, não poderá deixar de atingir as últimas três décadas (arts. 817 do C. Civil; 224-245 do decreto n.º 18.542, de 1928). Por outro lado, não será possível obter-se certidão

negativa, sem se conhecerem os proprietários do imóvel. O loteador terá, portanto, de apresentar t ítulos de propriedade de 30 e não de 20 anos. A facilidade estatuída pelo decreto n.º 3.079, reduziu-se, pois, a simples engôdo”.

(4) – Sílvio Pereira, ob. cit., pág. 51.

[65]

A crítica não procede. A finalidade da redução do prazo dentro do qual a prova do domínio deve

abranger correspondeu ao intuito que já definimos. A manutenção de um prazo de 30 anos seria a confissão implícita de que, no nosso país, a prova do domínio sòmente faz fé quando abrangendo um período que, por si só, já dispensa a apresentação de qualquer título, pois, em 30 anos, consuma-se o usocapião, prescindindo dos elementos do justo título, e da boa fé.

Por outro lado não há como confundir a prova da existência ou não de ônus reais com a prova do domínio.

Os meios de apuração do segundo, os livros onde deverão constar são inteiramente diversos. Nada há que possa fundamentar a conclusão de importar a exigência do segundo na do primeiro.

Na alteração havida, não existe um simples engôdo, nem se visou proteger os loteadores, mas simplesmente tornar lógico um sistema.

Relativamente à exigência da t ranscrição do título anterior, assunto que se prende também ao que estamos abordando, dêle trataremos minuciosamente quando comentarmos o art. 244.

Em outro ponto foi ainda alterada pelo decreto n.º 3.079 de 1938, a letra “b” do n.º I, do decreto-lei n.º 58, de 1937. A fórmula dêste último era a seguinte:

“ou cópia autêntica dos títulos e prova de que se acham devidamente inscritos”.

A alteração introduzida pelo decreto n.º 3.079, deu a seguinte forma:

“ou certidão dos títulos e prova de que se acham devidamente transcritos, salvo quanto aos títulos que, anteriormente ao Código Civil, não estavam sujeitos à transcrição”.

Aqui temos a assinalar a primeira diferença entre as duas leis: a lei n.º 58, referia -se à cópia autêntica dos títulos, ao passo que o decreto n.º 3.079 de 1938 refere-se à certidão dos t ítulos e

prova de que se acham devidamente transcritos; a segunda diferença é a precisão da fórmula empregada pelo decreto n.º 3.079 em contraste com o decreto -lei n.º 58.

Podemos resumir o nosso pensamento a respeito dessa matéria: de acôrdo com o sistema do nosso Código Civil, a segurança da propriedade imobiliária repousa substancialmente no Registo de Imóveis.

O fator tempo não merece senão consideração secundária. Estando a propriedade transcrita e sendo essa transcrição oriunda de

[66]

outras transcrições em ordem sucessiva, a questão do domínio é líquida.

Aduzir a isso outros cuidados é desnaturar o sistema que a lei instituiu.

C) Plano de loteamento. – E‟ o requisito da letra “c”. No projeto apresentado pelo Sr. Waldemar Ferreira o texto relativo ao plano de loteamento era mais amplo, e estava redigido nos seguintes têrmos:

“Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento, determinando direção, largura e extensão das ruas, avenidas, praças, jardins, parques, espaços livres diversos, quadras, lotes, alturas e distâncias das edificações, proporcionalidade destas

com as da área de cada lote, servidões recíprocas dos edifícios vizinhos, higiênicas ou estéticas, distribuição de água potável, rêdes de esgotos, canalizações de gás e eletricidade, saneamento do solo, etc., serão prèviamente submetidos à aprovação da

Prefeitura Municipal, e, se fôr o caso, das autoridades sanitárias e militares no que lhe tocar”.

Entretanto, não há dúvida que eimplìcitamente, êsses esclarecimentos estão mais ou menos impostos pela letra “c”, pois se refere a “programa do desenvolvimento urbano”, no qual não

podem deixar de figurar pelo menos algumas das especificações mencionadas no supracitado dispositivo do projeto.

E‟ preciso, porém, distinguir quando se trata de um plano de loteamento para construção urbana do caso em que se vise o aproveitamento industrial e agrícola.

No primeiro caso, a nossa legislação não indica os requisitos.

Os intérpretes da legislação francesa têm consignado os seguintes:

1.º) primeiramente uma planta, por exemplo em escala de 1/500 até 20 hectares, e 1/1.000

acima dessa cifra, contendo: a) a divisão por lotes, sendo cada lote numerado e indicado com as dimensões, superfície, quer total quer atingida por servidões non aedificandi, se existirem, superfície compreendida na posição de um caminho particular, indicação das construções

existentes; b) o traçado dos caminhos existentes e projetado; c) o traçado das diversas canalizações existentes e projetadas assim como a sua ligação com as canalizações públicas; d) os espaços livres previstos; e) as plantações;

2.º) o cahier des charges, onde são consignados os serviços de higiene, arqueológicos e estéticos do grupo ou do loteamento.

Em se tratando de loteamento para efeitos do aproveitamento industrial ou agrícola a lei expressamente consignou os seguintes

[67]

elementos: a) a especificação da qualidade das terras; b) águas existentes e possibilidade de aproveitamento; c) servidões ativas e passivas; d) estradas e caminhos, devendo nesse caso

indicar as condições e fins dessas mesmas estradas; e) distância da sede do município e das estações de transporte, de acesso mais fácil.

Em certas circunstâncias, determinadas indicações do plano de loteamento representam verdadeiras servidões. Nesse caso, pergunta-se, faz-se mister, para a validade dessas servidões

em relação a terceiros, que as mesmas sejam inscritas? Queremos nos referir tão sòmente às servidões criadas dentro dos terrenos loteados, afetando pura e simplesmente os que vão adquirir lotes.

Como vimos, na legislação francesa, essas servidões constam do cahier des charges; entre nós devem figurar no plano do loteamento.

Interpretando essa inclusão no cahier des charges, a Côrte de Apelação de Rennes considerou desnecessária a transcrição dessas servidões no registo hipotecário, para valer contra terceiros, porquanto as disposições do cahier des charges são oponíveis a todos os terceiros adquirentes

dos direitos reais sôbre os imóveis, e isto em conseqüência da publicidade prevista no art. 13 da lei de 1919-1924, de modo que os imóveis compreendidos no loteamento se encontram gravados de ônus legais que são oponíveis a todos e principalmente, em caso de execução, ao loteador, ao adjudicatário e aos credores hipotecários (5).

Entre nós a questão pode ser resolvida da mesma maneira, quer diretamente, pela aplicação do art. 3.º do decreto n.º 3.079 aos casos por êle previstos, como ainda por analogia a tôdas as demais circunstâncias referidas no plano de loteamento. A inscrição é uma só e abrange todos os efeitos do loteamento. Não se permite uma dupla publicidade.

O art. 3.º supracitado dispõe:

“A inscrição torna inalienáveis, por qualquer t ítulo, as vias de comunicaçã o e os espaços livres constantes do memorial e da planta”.

Uma outra forma do plano de loteamento é a consignada no § 1.º, do n.º VI, do art. 1.º,

facultando a apresentação do plano de loteamento e as especificações mencionadas, bem como a planta do imóvel e os esclarecimentos do n.º II, por meio de seções, ou por glebas, à medida que as terras ou os terrenos forem sendo postos à venda por prestações, quando por sua extensão não sejam objeto de uma única planta ou tenham origens várias.

(5) – Cours d‟Appel. Rennes, 3-6-932, D.P., apud Benoist d‟Étiveaud, ob. cit., pág. 59.

[68]

A propósito do loteamento por seções, ou por glebas, assim decidimos no Juízo da Vara de Registos Públicos, em data de 4 de novembro de 1940, a dúvida suscitada pelo Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, Dr. Valdemar Loureiro:

“Trata-se de loteamento por seções ou por glebas. Determina o parágrafo 1.º do art. 1.º

do decreto número 3.079, de 1938 que “o plano de loteamento e as especificações mencionadas, bem como a planta do imóvel e os esclarecimentos constantes do n.º II, poderão ser apresentados por seções, ou por glebas à medida que as terras ou os

terrenos forem sendo posto à venda por prestações, quando, por sua extensão, não sejam objeto de uma única planta ou tenham origens várias”. Permite a lei, consoante se vê, que o plano de loteamento, invés de compreender a totalidade de um terreno, se

circunscreva às seções do mesmo terreno, ou glebas, nas duas seguintes circunstâncias: a) quando por sua extensão não sejam objeto de uma única planta; b) quando tiverem origens várias. Visou-se, com êsse dispositivo, esclarecer a situação do

proprietário de uma grande área de terreno que não reputasse conveniente aos seus interêsses lotear o terreno em tôda sua extensão. Isso se permite no caso de uma extensão de terreno que comporte mais de uma planta, ou quando o terreno, embora

pertencente a um só proprietário, contudo, anteriormente a essa propriedade, tenha pertencido a diversos donos, isto é, várias áreas separadas jurídica e materialmente, que depois se confundiram num só titular. Ora, é bem de ver, que inscrito um plano de

loteamento, com exclusão de uma parte do terreno destinado à venda em lotes e a prestações, essa inscrição só se relaciona com essa mesma parte inscrita. Por assim dizer, estabeleceu-se uma separação material no imóvel para dar lugar a uma futura

separação jurídica. Claro, também, que se o loteante pretender adicionar novas glebas, é indispensável a inscrição, porque esta é que comunica os efeitos legais consistentes não só em indicar o domínio do requerente, como ainda em estabelecer a

inalienabilidade das vias de comunicação e dos espaços livres constantes do memorial (Trat. Dos Reg. Públicos, III, pág. 49). A inclusão da área restante é caracterizadamente uma extensão do loteamento já inscrito, mas que exige nova inscrição, para que receba

tôda eficiência legal. Por conseguinte, a averbação não teria nenhuma razão de ser nem fundamento jurídico para ser realizada, pois se há uma extensão, por outro lado há uma porção nova de terreno que se adiciona,

[69]

e que exige todo cotejo de formalidades necessárias ao seu ingresso no plano de

loteamento. A razão é óbvia: se a simples modificação do plano de loteamento impõe uma nova inscrição, com maioria de razão essa inscrição é exigível em se tratando, não

mais de uma modificação, mas de um acréscimo ao terreno loteado, para aditar uma

porção que estava fora do regime legal do loteamento. Nesta con formidade, julgo a dúvida procedente, devendo o interessado satisfazer as exigências do Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, e indicadas à fls. 3”.

Finalmente, a lei concede a possibilidade da modificação do plano de loteamento, em certas circunstâncias.

Assim, essa modificação pode dar-se quando tiver por objeto lotes ainda não comprometidos bem como em relação ao arruamento, desde que a modificação não prejudique os lotes comprometidos ou definitivamente adquiridos.

Nesse caso temos por indubitável que se faz mister a intervenção judicial para a aprovação da

planta e do memorial, antes de serem depositados no cartório do registo para nova inscrição, de vez que ao juiz sòmente é que compete, a seu critério, dispensar a apresentação das provas que já tenham sido produzidas no registo inicial (§ 5.º, do art. 1.º).

Ainda, é preciso não confundir essa questão mais geral da modificação do plano de loteamento

com a hipótese de uma simples retificação de dimensões de algum lote, que constem erradamente do plano de loteamento ou que venham a ser alteradas em conseqüência de algum ato da administração municipal. Foi o que salientamos na seguinte decisão:

“Vistos, etc.: - O Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, no processo de loteamento da Cia.

Suburbana de Terrenos e Construções, suscitou dúvida quanto à transcrição da escritura de fls. 244 a 248, alegando o seguinte: que na planta arquivada consta o lote n.º 46-A, da quadra A, da Vila Souza, com a medição de 8 ms. de largura por 40 ms. de extensão;

que na escritura definitiva a vendedora pretende, não obstante, que o lote tenha 8m,10 de largura, alegando que tal diferença não afeta a metragem dos demais lotes; que assim o caso envolve uma modificação do plano de loteamento, que a lei não autoriza

em se tratando de lote já comprometido; que falta a averbação do contrato de promessa de venda.

Ouvido o ilustre Dr. Promotor interino, o mesmo, em sua promoção de fls. 255 a 256, opinou, em parte, pela procedência dos fundamentos da dúvida, isto é, reputou-a in-

[70]

fundada em relação à exigência da averbação de contrato de promessa de compra e

venda, por isso que nenhum elemento existe indicando a sua existência, mas procedente quanto à impossibilidade da transcrição por fôrça da disco rdância das dimensões do lote, entre as consignadas na planta e as constantes da escritura impugnada.

Isto pôsto:

I – Dispõe o § 5.º do art. 1.º do decreto n.º 3.079, de 1938 que

“o plano de loteamento poderá ser modificado quanto aos lotes não

comprometidos e o de arruamento desde que a modificação não prejudique os lotes comprometidos ou definitivamente adquiridos”.

Acrescenta o aludido dispositivo que essa modificação está sujeita a nova inscrição, podendo o juiz dispensar a apresentação de provas já produzidas no registo inicial.

Por conseguinte o que a lei visou foi a modificação do plano de loteamento, operações que envolvem uma mudança da feição geral do loteamento e que são admissíveis desde que não afetem os lotes já vendidos ou já comprometidos. Estão compreendidas nesse

caso as modificações que versarem sôbre as dimensões de todos os lotes, as que consistirem na alteração das vias de comunicação e assim por diante.

Não pode, portanto, incluir ou reputar como modificação do plano de loteamento o fato de se encontrar um lote com as suas dimensões erradamente consignadas ou em

desacôrdo com uma determinação administrativa, como se, por exigência da administração municipal, um lote tiver suas dimensões aumentadas ou diminuídas.

Em tais circunstâncias, desde que se trate de uma modificação afetando apenas uma unidade e não o plano de loteamento, a orientação a seguir é a da apreciação caso por caso.

Na dúvida suscitada o que convém apurar é se a alteração das dimensões produziu a seu turno uma alteração nos lotes confinantes, e se êsses lotes estão comprometidos ou vendidos e se ainda não o estão: nos dois primeiros casos, é mister a concordância dos

compromissários ou proprietários, feitas as necessárias averbações, e desde que os direitos dêstes não fiquem afetados ou que êles, por título hábil, concordem com essa diminuição; no último caso, é suficiente a averbação da alteração das dimensões, mediante declaração de proprietário loteante.

[71]

II – Em relação à exigência da averbação da escritura de promessa de compra e venda, como bem salientou a Promotoria, não há elemento algum sôbre ter havido preliminarmente tal escritura.

Cumpre salientar que a dúvida dos Oficiais deve ser antes de tudo, fundada em

elementos positivos e não estribada em presunções, ilações ou outros processos semelhantes. Além disso a dúvida dos Oficiais deve ser restrita aos pontos que interessem à causa, ao interêsse legal em jôgo. Só ao juízo cabe extrair conclusões, a êle compete advertir os seus jurisdicionados.

Nesta conformidade,

Julgo em parte procedente a dúvida do Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, para determinar que seja feita a transcrição da escritura impugnada, desde que a impugnada apresente a concordância dos proprietários ou compromissários dos lotes confinantes

não estiverem comprometidos ou vendidos, feitas em qualquer caso, as necessárias averbações. P.I.R.

Rio de Janeiro, 20 de maio de 1940. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes”.

D) Planta do imóvel. – A planta do imóvel deve ser assinada pelo proprietário e pelo engenheiro que haja efetuado a medição e o loteamento, com todos os requisitos técnicos e legais;

indicadas a situação, as dimensões e a numeração dos lotes, as dimensões e a nomenclatura

das vias de comunicação e espaços livres, as construções e benfeitorias, e as vias públicas de comunicação (n.º II, do art. 1.º, decreto n.º 3.079, de 1938).

Acêrca dos requisitos técnicos e legais a que se refere a lei de loteamento, é oportuno lembrar os preceitos do decreto n.º 451-B, de 31 de maio de 1890 que estabeleceu o registo Torrens.

Podem ser destacados os seguintes requisitos, constantes da citada lei, no art. 22:

1.º) As plantas serão levantadas mediante goniômetros, independentemente de búss ola.

2.º) Serão orientadas segundo o meridiano verdadeiro do lugar, determinada a declinação magnética.

3.º) Além dos pontos de referência necessários para as verificações ulteriores, fixar -se-ão

marcos especiais de referência, orientados e ligados por pontos certos e estáveis na sede das propriedades, mediante os quais possa incorporar-se depois à carta geral cadastral.

[72]

4.º) As plantas conterão:

a) As altitudes relativas a cada estação de instrumento e a conformação altimétrica ou orográfica aproximativa dos terrenos;

b) As construções existentes, com indicação de seus fins;

c) Os vales, cêrcas e muros divisórios;

d) As águas principais, que banharem a propriedade, determinando-se, quanto ser possa, os volumes reduzidos à máxima sêca, em têrmos de poder-se-lhes calcular o valor mecânico;

e) A indicação, mediante côres convencionais, das culturas existentes, dos pastos, campos, matas, capoeirões, construções e divisas das propriedades.

As escalas das plantas poderão variar entre os limites:

1:500m 1/500 e 1:500m 1/5.000, conforme a extensão das propriedades rurais.

Nas propriedades de mais e 5 quilômetros quadrados se admitirá a escala de 1:10.000.

E‟ preciso frisar que a planta é o complemento essencial do requisito constante da letra “a”, que impõe a descrição minuciosa da propriedade.

Muito cuidado deve ser observado na sua feitura e precìpuamente no que diz respeito aos proprietários confinantes.

Se os limites descritos forem equívocos, relativamente à propriedade limítrofe, é claro que o Oficial deve opor dúvida.

Nem para outro objetivo é que existem as disposições dos artigos ns. 569 e 570 do Código Civil, ou seja a ação de demarcação.

Consideramos ponto substancial, embora os proprietários heréos possam, mediante título hábil, impugnar a inscrição, na forma do art. 2.º, § 2.º.

A êsse respeito, destacaremos o seguinte trecho de uma decisão que proferimos no processo de dúvida suscitado pelo Sr. Oficial do 1.º Ofício de Imóveis, quanto ao depósito de documentos para loteamento:

“No caso sub-judice teremos que apurar se a impugnação está baseada num título de domínio com todos os requisitos legais, ou seja devidamente transcritos no Registo de Imóveis, e, isto feito, se o loteamento requerido está ou não em conflito com os direitos

resultantes do aludido título, e finalmente se o imóvel acha -se perfeitamente individualizado de maneira a tornar inequívoca a argüida ofensa ao direito do impugnante.

Ora, precisamente a questão versa sôbre os limites dos terrenos do impugnante e do impugnado.

[73]

Existe uma ação em outro Juízo fundado na alegação de invasão de limites, ação proposta pelo próprio impugnado.

Surge, então, o primeiro obstáculo: decidir pelo registo ou negá-lo sob tal fundamento, implica em prejulgar a causa que corre em outro juízo.

Abre-se, assim, uma circunstância excepcional, pela impossibilidade da rejeição in limine

da impugnação, de vez que está ela amparada em títulos que a justificam, e, por outro lado, pela impossibilidade de decidir, atenta a competência já estabelecida em outro juízo, pela litispendência.

Um outro argumento ocorre.

A lei de loteamento requer que o memorial contenha descrição minuciosa da propriedade

loteada, da qual constem a denominação, área, limites, situação e outros característicos do imóvel, bem como planta do imóvel, assinada pelo proprietário e pelo engenheiro que haja efetuado a medição e loteamento e com todos os requisitos técnicos e legais.

Desde que a lei frisou, de um modo tão categórico, o requisito dos limites, falando ainda

em planta do imóvel com todos os requisitos técnicos e legais, é claro que a questão dos limites assume aspecto de suma relevância.

Assim, pois, desde que os rumos são contestados por outros t ítulos e entre p roprietários confinantes; desde que o Registo de Imóveis não acusa nenhum elemento do qual se

possa inferir uma dimensão exata, o requisito legal não se acha cumprido, e o registo só poderá ser concedido, depois que os limites do terreno tenham ficado definidos na ação própria, que é a de demarcação ou de aviventação de marcos, caso êstes estejam apagados.

No caso presente a questão de limites terá de ficar resolvida na ação contenciosa promovida pelo impugnado.

Por conseguinte, e como a contestação versa sôbre uma parte dos terrenos cujo registo se requer, e não sôbre a totalidade, ressalvados os direitos do impugnante e do impugnado, determino que seja feito o registo, com exclusão dos lotes, objeto da

impugnação, até que pelo juiz competente seja solvida a questão do domínio. Rio de Janeiro, 6 de junho de 1939. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes”.

Outra questão ainda pode surgir e ficou focalizada pelo Dr. Cesar Tinoco, 2.º Promotor de Registos, no seguinte trecho de uma promoção por êle proferi da:

[74]

“A planta pode ter lotes não numerados, ruas abertas, porque o art. 3.º diz que a

inscrição torna inalienáveis as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta que ficam arquivadas. Assim, o espaço que estiver na planta, e não fôr numerado ou descrito, como lote a ser vendido, fica inalienável. O oficial deve

verificar se os espaços em branco e os lotes numerados e descritos ficam dentro da propriedade cuja planta e cujas escrituras foram juntas ao memorial”.(in Gazeta Jurídica, de 5-8-1938).

E) Caderneta ou contrato – tipo de compromisso de compra e venda. – A terceira documentação

exigida pela lei é a juntada de caderneta ou contrato-tipo de compromisso de compra e venda dos lotes. São bem claras as noções expendidas por Valdemar Ferreira, a propósito da caderneta ou contrato-tipo de compromisso de compra e venda de lotes. Diz êle:

“Servem-se as emprêsas vendedoras de terrenos loteados de cadernetas, contendo as

cláusulas essenciais do compromisso de compra e venda de lotes, com os claros a serem preenchidos em cada caso e com os dizeres necessários para o recibo das prestações sucessivas e periódicas. Não poucas, entretanto, preferem, às cadernetas,

fôlhas de contrato impressas, também com os claros necessários ao preenchimento de mister no ato da estipulação. Numa ou noutra hipótese tem -se o contrato-tipo, tão vulgarizado nos dias correntes, e que, destarte, faz sua entrada no direito positivo”. (6).

E‟ claro que a caderneta ou contrato-tipo deve conter os requisitos do art. 11 (dec. 3.079, de 1938).

F) Certidão negativa de impostos e ônus reais e certidão referente à ação real ou pessoal, relativa a um período de 10 anos, ou a protesto de dívida civil e comercial dentro de 5 anos. – A exigência da apresentação dessas certidões se fundamenta na necessidade de informar aos que

se candidatarem à aquisição de lotes a situação jurídica dos loteadores. Fôrça é convir, porém, que êsses dois requisitos estão subordinados ao que se refere o § 3.º da mesma disposição, consoante o qual “as certidões positivas da existência de ônus reais, de impostos e de qualquer

ação real ou pessoal, bem como qualquer protesto de título de dívida civil ou comercial não impedem o registo”. Veja-se sôbre êsse ponto os comentários que já fizemos no 2.º volume.

G) Outros requisitos complementares. – Além dos requisitos supramencionados, exige a lei de loteamento mais os seguintes:

(6) – Valdemar Ferreira, ob. cit., I, pág. 89.

[75]

a) Em se tratando de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem ser

prèviamente aprovados pela Prefeitura Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades sanitárias e militares, o mesmo se observando quanto às modificações referidas no § 5.º do art. 1.º (§ 2.º, do art. 1.º, dec. 3.079, de 1939). Dessa exigência estão excetuados os

terrenos que, anteriormente à data do decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, estavam sendo vendidos em logradouros, tendo já a Prefeitura Municipal concedido alvarás para construções, ou se achem registrados de conformidade com as leis municipais.

Essa aprovação pode ser considerada como outorgada tàcitamente, quando a Prefeitura e demais autoridades ouvidas, não se pronunciarem dentro no prazo de 90 dias pela lei fixado.

Sôbre esse requisito proferimos a seguinte decisão:

“.....................................................

I – Embora constem de dois processos que foram apensados, tôda impugnação ao registo de loteamento se reduz a 2 pontos: compreender êsses terrenos loteados terrenos de marinha, de propriedade da União; e, não se achar o pedido do requerente

instruído com a necessária aprovação da Prefeitura Municipal. Dêsses dois pontos da controvérsia, o segundo prepondera sôbre o primeiro, porquanto êste versa sôbre o direito de propriedade, enquanto o primeiro assenta num requisito do processo.

II – E‟ fato incontestado que os Requerentes apresentaram os seus documentos

relativos ao loteamento pretendido, sem que tivessem obtido a aprovação da Prefeitura Municipal. Como se vê, seria inoportuno abordar -se a questão dos terrenos de marinha, sem que primeiramente não ficasse perfeitamente esclarecido se o processo

está ou não em ordem, para se conhecer da matéria nêle debatida. O § 2.º, do art. 1.º, n.º VI, do decreto n.º 3.079, de 1938, dispõe: “Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem ser prèviamente aprovados pela Prefeitura

Municipal, ouvidas, quanto ao que lhes disser respeito, as autoridades sanitárias e militares”. Trata-se de um dispositivo que se reveste de uma importância absoluta para a lei de loteamento, resguardando o seu objetivo social. Como bem acentua René

Martin (Les Projéts d‟Amenagement des Villes et des Régions, pág. 109) o loteamen to que se destina a construção de habitações envolve uma série de problemas, por isso que as condições da vida moderna pressupõem um mínimo de prestações que devem permanecer à disposição de todo indivíduo. Portanto, tem que se tomar

[76]

em consideração o transporte, a água, a iluminação, a higiene, bem como, conforme os casos, outros problemas tais como a igreja, a escola, o correio, etc.

Decorre daí, esclarece o citado autor, a necessidade da intervenção do Poder Público, que se dá através da obrigação de um preliminar projeto de loteamento, onde certos

pontos essenciais fiquem estabelecidos, bem como a aprovação dêsse plano pela autoridade municipal. Nesse particular não podemos concordar com a inovação que o supracitado decreto trouxe à lei n.º 58, de 1937, no sentido de excetuar da aprovação da

Prefeitura, quando esta já tenha concedido alvarás para construções em terrenos que já

estavam sendo vendidos antes do decreto-lei n.º 58, de 1937, bem como ao considerar

aprovação tácita da administração municipal, quando esta não se haja pronunciado dentro no prazo de 90 dias. Tais disposições, todavia, são ineficazes. Faltando a aprovação municipal, o registo do loteamento não pode habilitar a construção e a

efetivação de obras dependentes, para sua execução, de formalidades administrativas. Pela própria exposição do memorial, verifica-se que os terrenos, cujo loteamento se pretende, destinam-se à construção de prédios para habitação. Argüi -se a

prescindibilidade da aprovação da Prefeitura por se tratar de terrenos localizados na zona suburbana. O argumento carece de qualquer base. Em primeiro lugar a lei não pretendeu excluir da aprovação prefeitural o prédio da zona suburbana, ela visou a

distinção entre prédio urbano e rústico, excluindo êste do requisito daquela aprovação. Arangio Ruiz (in Scialoja, Dizionário Prático del Diritto Privatto, III, parte 1.ª pág. 191) depois de pôr em destaque o problema da distinção no Direito Romano, diz que é

aceitável a proposição de Ulpiano (1.198 Dig. 50.16) e assim ensina que o critério da distinção não deve se fundamentar no imóvel, como um todo único, tal qual se apresenta econômica e estèticamente; é necessário tomar-se como ponto de partida a parte que se

apresenta como principal, isto é, aquela que de modo vis ível e econômicamente incontestável indica a forma de utilização a que o proprietário subordina o imóvel. Pereira Braga (in Rev. de Crit. Jud., vol. 21, pág. 137) apoiado por J. M. Carv. Santos (Cód. Civ.

Int., XVII, pág. 204), em brilhante dissertação segue a mesma diretriz da finalidade econômica do imóvel dizendo que o verdadeiro critério foi o estabelecido no art. 1.384 do Código Judiciário do Estado do Rio, referindo-se em seguida a uma vasta juris-

[77]

prudência tôda ela assente em reputar as características do prédio rústico pelo destino,

pelo uso, e não pela situação do imóvel. Ainda recentemente as Câmaras Conjuntas da C. de Apelação (Ac. de 28 de junho de 1936, Arq. Jud., vol. 41, pág. 495-496) decidiram que “o prédio destinado a moradia ainda que situado na zona rural, não é rural”. Por

conseguinte é a destinação do imóvel o que lhe imprime o caráter urbano e rústico. Como urbano deve considerar-se o loteamento de terras cujo fim precípuo é a construção de casas para habitação. Neste caso, é imprescindível, como se disse, para

a perfectibilidade do processo do registo, que o loteador apresente a aprovação da Prefeitura Municipal. E‟ um requisito decorrente do caráter social da lei que, em se tratando dessa forma de venda, só permite a disponibilidade quando preenchidas não

sòmente condições de ordem jurídica, como de ordem administrativa, estética, higiênica e até de ordem militar. Cumpre salientar aqui, o que tantas vêzes reclamou o digno Dr. Promotor de Registos: tôda essa confusão origina-se do defeito processual inicialmente

cometido pelo Sr. Oficial do Registo que não devia ter dado publicidade aos editais faltando ao processo um dos seus requisitos essenciais, qual o acima apontado. Por êstes fundamentos, indefiro o pedido de registo, pela nulidade do processo, de que lhe

falta um dos seus requisitos essenciais – a falta de um dos documentos mencionados no art. 1.º do decreto n.º 3.079 de 1938. – Rio de Janeiro, 14 de junho de 1939. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes”.

b) Estando a propriedade gravada de ônus real, o memorial será acompanhado da escritura

pública na qual o respectivo titular estipule as condições em que se obriga a liberar os lotes, no ato do instrumento definitivo de compra e venda (§ 4.º, do art. 1.º, decreto n.º 3.079, de 1938).

c) A publicidade dessa documentação consiste em ficarem o memorial, o plano de loteamento e os documentos depositados franqueados ao exame de qualquer interessado,

independentemente do pagamento de emolumentos, ainda que a título de busca, cabendo ao

oficial receber apenas as custas regimentais das certidões que fornecer (§ 6.º, do art. 1.º, do dec. 3.079, de 1938).

A Segunda Câmara Cível do Tribunal de S. Paulo (Ac. de 23 de julho de 1940, in Rev. For., vol. 84, p. 378 e Rev. dos Trib., vol. 127/141) decidiu que “só no caso de tratar -se de propriedade destinada à venda dentro do perímetro urbano se exige a prévia aprovação pela autoridade municipal”.

[78]

A Primeira Câmara Cível do referido Tribunal (Ac. de 12 de maio de 1947, Rev. dos Trib., vol. 132-650), porém, sustentou ponto de vista oposto ao declarar que “embora se encontrem em zona rural, o plano de loteamento que o proprietário organizar para a venda dos lotes dos

terrenos em prestações deve ser aprovado precisamente pela Municipalidade local se encerra um programa de desenvolvimento urbano”.

Os fundamentos do referido acórdão foram os seguintes:

“Pôsto se achem os terrenos da “Vila Iolanda” em zona rural, o plano de loteamento, que seu proprietário organizou e exibiu em cartório, encerra, sem dúvida um programa de

desenvolvimento urbano. E‟ o que se infere da denominação do imóvel, da sua subdivisão em pequenos lotes adequados à construção de casas residenciais, com arruamento já organizado, e de outras circunstâncias. Não importa que aí se possam

cultivar outras plantas, uma vez que tudo evidencia destinarem -se os lotes a residências, e não a explorações agrícolas”.

Interposto o recurso de revista, as Câmaras Cíveis Reunidas deram prevalência à tese sufragada por êste último acórdão (Ac. de 11 de novembro de 1941, Rev. dos Trib., vol. 142, pág. 253-254), no que estamos de acôrdo.

419. FORMA DA INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – Recebidos o memorial e os documentos mencionados no art. 1.º, do decreto n.º 3.079, de 1938, o oficial do registo dará recibo ao depositante e, depois de autuá-los e verificar a sua conformidade com a lei, tornará público o

depósito por edital afixado no lugar do costume e publicado três vêzes, durante 10 dias, no jornal oficial do Estado e em jornal da sede da comarca, ou que nesta circule. O edital conterá, sucintamente, os dados necessários à configuração do imóvel (decreto n.º 3.079, de 1938, art. 2.º).

E‟ imprescindível, portanto, que o edital contenha os seguintes elementos:

a) indicação do nome do oficial e o respectivo cartório onde tenham sido apresentados os documentos legais para o loteamento;

b) a indicação dos nomes dos proprietários loteadores, sua nacionalida de, domicílio, estado civil e profissão;

c) a caracterização do imóvel, especificando-se a sua situação ou a sua denominação se fôr rural, área, limites e demais elementos que sirvam a individualizá-lo;

d) a declaração de que se pretende vender o imóvel di vidido em lotes a prestações por oferta pública, estando depositados em car-

[79]

tório o memorial e documentos com que os proprietários pleiteiam a inscrição; e

f) início e têrmo do prazo de recebimento das impugnações (1).

Estando em ordem os documentos, decorridos trinta dias da última publicação e não havendo

impugnação de terceiros, o oficial procederá ao registo (decreto n.º 3.079, de 1938, art. 2.º, § 2.º).

420. DÚVIDA QUANTO À INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – Após receber o memorial e os documentos mencionados no art. 1.º, o oficial tem o prazo de 10 dias para verificar se os mesmos estão em conformidade com a lei.

Encontrando qualquer defeito ou falta, poderá exigir que o depositante ponha seus documentos em ordem, concedendo-lhe para isso um prazo de dez dias no máximo.

E se êsse prazo fôr excedido? A lei não estabeleceu nenhuma sanção para essa falta.

E o que pode suceder é ficar o depositante obrigado a renovar a documentação em relação ao tempo que exceder do aludido prazo.

Não se conformando o depositante com a exigência do oficial, serão os autos conclusos ao juiz

competente para decidir da exigência (Decreto n.º 3.079, de 1938, § 1. º, do art. 2.º e art. 345, do Código de Processo Civil).

O juiz poderá ouvir quem promoveu o registo (§ 3.º, do art. 345, do Cód. Do Proc. Civ.).

O recurso da decisão que negar ou conceder o registo é o de agravo de petição (Dec. 3.079, de 1938, § 5.º do art. 2.º).

Essa disposição não nos parece haver sido alterada pelo novo Código de Processo Civil, o qual,

ao especificar os casos contemplados com recurso de agravo, faz a ressalva da subsistência dêsse mesmo recurso, nos seguintes têrmos:

“Além dos casos em que a lei expressamente o permite (art. 842). E esta é uma das situações excepcionais compreendidas na ressalva”.

Êsse nosso ponto de vista manifestado na 1.ª edição, foi impugnado por L. Machado Guimarães

(2) que partindo do ponto de vista de que o art. 842 do Código do Processo Civil se refere ao agravo de instrumento e não ao de petição, não podia ter cabimento a nossa conclusão, não sendo, por outro lado, admissível o agravo de petição, porquanto êste, na forma do art. 846, só era viável para as decisões terminativas do processo sem lhe resolver o mérito.

(1) – Cfr. Sílvio Pereira, ob. cit., pág. 70. (2) – L. Machado Guimarães, Com. ao Cód. do Proc. Civil, IV, pág. 480.

[80]

Entende o ilustre comentador ter sido revogada tôda a matéria processual contida nos decretos -

leis ns. 58 e 3.079, por efeito do art. 1.º do Código do Processo Civil. Conclui, enfim, por admitir como único recurso o de apelação, na forma do art. 820 do Código do Processo Civil, sòmente admitindo-se o de agravo de petição, se a rejeição da impugnação não tiver abrangido uma decisão do mérito da causa.

Embora reconhecendo tradicional em nosso direito o recurso de agravo das decisões proferidas em matéria de Registo Imobiliário, nos processos de dúvida, recurso que mais consulta aos interêsses da justiça e à rapidez necessária a tais processos, além da vantag em de uma reforma

da decisão pelo próprio juiz num processo cuja natureza administrativa predomina em larga percentagem, somos, entretanto forçados a reconhecer jurídica a crítica de L. Machado Guimarães.

421. IMPUGNAÇÃO AO REGISTO DO LOTEAMENTO FEITA POR TERCEIROS. – Os terceiros poderão impugnar o registo do loteamento, dentro no prazo de trinta dias da última publicação.

Oferecida a impugnação e findo o aludido prazo, os autos são desde logo conclusos ao juiz competente, para conhecer da impugnação (Dec. 3.079, de 1938, § 2.º, do art. 2.º).

Êste processo, prescrito pela lei de loteamento, foi confirmado no Código do Processo Civil, o qual, no art. 345, determina que quando o terceiro impugnar o registo de imóvel loteado para

venda em prestações, os autos serão logo conclusos ao juiz competente para conhecer da impugnação ou dúvida.

Nos §§ 1.º e 2.º da supracitada disposição, prescreve ainda:

a) que a impugnação não fundada em direito real comprovado será rejeitada in limine.

b) que se a impugnação fôr acompanhada de prova de direito real o juiz dará vista ao impugnado pelo prazo de cinco (5) dias, findo o qual proferirá a decisão, que será publicada pelo oficial, em cartório, para ciência dos interessados.

422. CARÁTER JURÍDICO E LIMITES DO DIREITO DE IMPUGNAÇÃO DE TERCEIROS. – A impugnação que não vier fundada em direito real devidamente comprovado de acôrdo com a legislação em vigor, será rejeitada in limine, remetendo-se o impugnante para o juízo contencioso (Dec. 3.079, de 1938, § 2.º, do art. 2.º)

O decreto-lei n.º 58, de 1937, regulava a matéria de modo deficiente, como se vê do art. 2.º, § 1.º, assim concebido:

[81]

“Decorridos 30 dias da última publicação, e não havendo impugnação de terceiros , o oficial procederá ao registo se os documentos estiverem em ordem”.

Não especificava a matéria sôbre a qual devia se fundar a impugnação de terceiros.

Daí surgirem as dificuldades na jurisprudência, quando das primeiras aplicações da nova lei.

Por outro lado, repontava, em muitos casos, a ausência de escrúpulos dos impugnantes, muitas

vêzes sem outro objetivo que não o de côlher uma composição amigável, mediante um lucro ilícito, a que os loteadores se sujeitavam para evitar delongas.

O decreto-lei n. 3.079, de 1938 definiu o conteúdo da impugnação, fixando-lhe um estreito e justo limite.

No regime do decreto-lei n.º 58, a Jurisprudência chegou a considerar como motivo para

impugnação de terceiro a própria omissão ou defeito nos requisitos legais para a inscrição do loteamento, quando outra fôra a intenção da lei.

E‟ certo que, em alguns casos, isso se poderia admitir, mas não menos certo é que, para pleitear a impugnação, não basta o impugnante apontar o defeito havido, mas é preciso,

preliminarmente, provar o interêsse legítimo, caracterizado por um direito real, comprovado por um título irrecusável.

Antes do decreto n.º 3.079, de 1938, o ilustre Procurador -Geral do Distrito Federal – Dr. Romão Côrtes Lacerda, em parecer proferido no agravo interposto pela Companhia Progresso Industrial do Brasil (in Gaz. Jur. De 23-8-938), acentuara que

“as impugnações a que se refere o decreto-lei n.º 58, como se vê do citado parágrafo 2.º, do art. 1.º, sòmente se podem fundar em não ter o requerente do registo cumprido qualquer das formalidades estipuladas no mesmo decreto-lei: e o agravante não mostrou que a agravada não as tenha cumprido”.

Seguindo essa mesma orientação, o Tribunal de São Paulo, já na vigência do referido decreto -lei n.º 3.079, de 1938, decidiu:

“Vistos, relatados e discutidos êstes autos de agravo n.º 4.408, da comarca de Araçatuba, em que são – agravantes a Fazenda do Estado e Mário Aguiar e sua mulher

e agravos Moura, Andrade & Cia. – Acordam em 2.ª Câmara do Tribunal de Apelação negar provimento aos dois recursos e confirmarem a decisão agravada, que bem apreciou os fatos e aplicou o direito. Custas pelos agravantes. Moura, Andrade & Cia., requereram ao oficial do registo geral

[82]

de Araçatuba o registo das terras urbanas e rurais que separaram do im óvel Guanabara, de sua propriedade, para venda em lotes, e em prestações, de acôrdo com o decreto -lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937.

Impugnaram o registo Mário Aguiar e sua mulher e a Fazenda do Estado, aquêles

porque movem contra os depositantes dos t ítulos uma ação de reintegração de posse relativamente ao imóvel Barro do Tieté e uma de divisão sôbre a fazenda Rio do Moinho, e esta porque apresentou artigos de oposição em ambos os processos.

O juiz, entendendo que o processo é administrativo e sumaríssimo, não comportando

questões de alta indagação, e que os agravados cumpriram a exigência legal, depositando títulos que se encadeiam sucessivamente num período de 30 anos, rejeitou as impugnações e determinou o registo pedido. Daí os agravos dos impugnantes.

Justificando o projeto que, depois, se convertem no decreto -lei n.º 58, de 10 de

dezembro de 1937, disse o seu autor, prof. Valdemar Ferreira: - Converteu-se êsse dispositivo (refere-se ao art. 1.088 do Código Civil) em fonte amarga de decepções e de justificados desesperos. Urge, secá-la para que se consagre, efetivamente, a norma

salutar do art. 1.126 daquele Código, em razão da qual a compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes se acordarem no objeto e no preço. Com o intuito de proporcionar aos compradores de terras e terrenos a certeza,

ainda assim relativa, de, cumpridas tôdas as obrigações, por êles assumidas, adquirirem a propriedade delas, por via judicial e mercê de uma adjudicação foi que se elaborou para receber as emendas da comissão de Constituição e Justiça, e da Câmara dos Deputados, êste projeto. – (O Loteamento e a Venda em Prestações , págs. 16 e 17).

Essas argumentações foram reproduzidas nos considerandos que antecedem o referido decreto-lei, onde claramente se acentua que o mesmo visa garantir as transações realizadas, principalmente contra futuras alienações dos lotes comprometidos.

Não se fêz a lei, portanto, para abrir um debate amplo sôbre os t ítulos de domínio do registrante e obter, com a decisão judicial, a segurança absoluta da propriedade.

Isso seria o ideal, mas inatingível em um país em que nem os poderes públicos conseguiram ainda fazer o levantamento das terras nacionais, e onde a propriedade ainda está caótica, pelo tormento de todos.

[83]

O decreto visa dar uma relativa segurança ao comprador de terras por meio dos contratos de compromisso.

Para facilitar-lhe a verificação dos títulos de propriedade dos vendedores, como se vê da justificação do decreto, é que estabeleceu o depósito dêles no cartório do registo geral.

E‟ evidente, portanto, que não é lícito estabelecer-se uma controvérsia ampla sôbre o domínio. Permite a lei que se faça impugnação ao registo.

Essa impugnação, porém, deve visar a falta de cumprimento dos requisitos e formalidades legais.

Quando consistir na alegação de domínio próprio ou na da inexistência de ônus ou ações reais ou pessoais, a impugnação não impede o registo. E‟ que está claramente estabelecido no artigo 1.º, § 2.º da lei.

Assim sendo, não podiam os agravantes, como não podem, pretender impedir o registo requerido pelos agravados.

Ficarão arquivadas em cartório as impugnações e os títulos com ela apresentados, para conhecimento de terceiros. Mas o registo tem de se fazer, desde que foram cumpridas as formalidades legais.

E no caso foram. Mesmo que fôssem falsas ou ilegítimas as escrituras primitivas, como

alegou a Fazenda do Estado, ainda assim, os agravados teriam provado o seu dom ínio, como os títulos posteriores numa cadeia de transmissões que atinge a trinta anos, como

exigia o art. 1.º, n.º I, letra “b” do decreto referido, prazo êsse, hoje reduzido a 20 anos

pelo art. 1.º, I, letra “b”, do decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938. – S. Paulo, 3 de outubro de 1938. – Mário Guimarães, Presidente, com voto; Manoel Carneiro, Relator. (in Gazeta Jurídica, de 12-5-1939)”.

O Conselho de Justiça do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, em Acórdão proferido no agravo n.º.............., assim interpretou os dispositivos relativos à impugnação:

“Acordam os Juízes do Conselho de Justiça em negar provimento ao agravo interposto por Ema Marie Antoinette Ghekiere, porquanto:

preliminarmente, o agravo é permitido, na espécie; de meritis:

em matéria de registo regulado pela lei n.º 58, ou decreto -lei, se há impugnação quanto à propriedade do requerente sôbre os terrenos que pretende registar, ou o juiz aceita a impugnação obstativa, ou não aceita;

[84]

a impugnação não contém dilema a respeito dos direitos do impugnante, cujo interêsse é fácil de provar, na ordinariedade do caso, e basta qualquer interêsse jurídico, pois:

Decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937

Art. 2.º, § 1.º: “Decorridos 30 dias da publicação, e não havendo impugnação de terceiros, o oficial procederá ao registo se os documentos estiverem em ordem. Caso

contrário, os autos serão desde logo conclusos ao juiz competente para conhecer da dúvida ou impugnação; publicada a decisão em cartório pelo oficial, que dela dará ciência aos interessados”.

Decreto n.º 3.079 de 15 de setembro de 1938

Art. 2.º, § 3.º: “Será rejeitada in limine, remetendo-se o impugnante para o juízo

contencioso, a impugnação que não vier fundada num direito real devidamente comprovado de acôrdo com a legislação em vigor”.

Os ônus reais, os impostos, as ações reais e pessoais não impedem o registo; o que impede é

o título de direito real do impugnante, exceto o consistente em ônus (decreto-lei n.º 58, art. 1.º, § 2.º);

ou não conferência das áreas, limites, situação e outros característicos do imóvel, com as declarações do requerente, de que fala o art. 1.º, I, a e II;

ou falta da junção de títulos exigidos pelo artigo 1.º, I, b.

Certo, não há o juiz de rejeitar in limine a impugnação, ainda de posseiro, que aponte infração do art. 1.º, I, a, e II. , ou art. 1.º, I, b, porque seria dar-se ao art. 2.º, § 3.º do

decreto n.º 3.079 interpretação que o faria ilegal pois que não se trata de decreto-lei, e

sim de simples decreto do Poder Executivo, Regulamento do decreto-lei n.º 58, como se diz na própria ementa.

Aliás, tal é a doutrina dos julgados anteriores dêste Conselho. O Regulamento é produto de idéias posteriores, que procuram transformar o caráter do decreto-lei n.º 58, cujo intuito foi de proteção aos compradores (“Considerando ainda que a loteação e venda de

terrenos urbanos e rurais se opera freqüentemente sem que aos compradores seja possível a verificação de t ítulos de propriedade dos vendedores” sem o propósito que os regulamentadores repeliram de tirar os direitos dos possuidores.

[85]

Os limites têm de ser precisos, claros e os títulos válidos e produtores de convicção jurídica, para que se respeitem as regras dos arts. 1.º, I e II, do decreto-lei n.º 58.

Não basta que os impugnantes não tenham direito real; é preciso que os requerentes o tenham, com perfeita verificação da área, limites, situação e metragem dos terrenos, para que se saiba exatamente o que se vai registar.

Por outro lado,

quando o juiz rejeita a impugnação não profere nenhum julgamento sôbre o direito do

impugnante. – apenas não lhe reconhece ser bastante, como prova, para o efeito obstativo do registo; de modo que a remessa para o contenc ioso é ex-lege (decreto n.º 3.079, art. 2.º, § 3.º) e quaisquer argumentos do juiz dos registos são inoperantes como elemento para apreciação noutro juízo;

quando o juiz aceita a impugnação, ou quando, em grau de recurso, a aceita êste Conselho, os argumentos do juiz, ou do Conselho, têm de ser levados em conta, porque foram positivos e consistiram em obstação do registo, podendo ser e devendo ser, no

seu tanto, consideradas convicções jurídicas pelos juízes contenciosos. Assim, se o Conselho reputa ter direito real o impugnante, não seria de admitir -se que outro juízo, a que êle não remeter as partes, lhe alterasse o julgado. Dá-se o mesmo se o Conselho afirma que há confusão de limites, não abrangência de áreas, etc.

No caso dos autos, a controvérsia tocou a uma faixa de 60 metros de testada. O juiz julgou procedente a impugnação, isto é, negou o registo pedido pela impugnada, ou reconheceu o efeito obstativo das provas feitas pela impugnante. Não cabia ao juízo dizer que A era proprietário ou que B não o era.

E‟ certo que, in caso, o juiz disse: “... excluindo o bloco de terras, onde se encontravam os 60 metros, fundamento da impugnação, até que, no juízo competente, seja afinal decidido sôbre a propriedade dos referidos 60 metros”. E mais: - “E‟ por analogia o que

se pode depreender do § 3.º, do art. 2.º, do decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938”.

Ora, o citado § 3.º, diz: “Será rejeitada in limine, remetendo-se o impugnante para o juízo contencioso, a impugnação que não vier fundada em direito real devidamente

comprovado, de acôrdo com a legislação em vigor”. Aí, uma vez que o juiz nega o efeito obstativo do registo, a parte tem de recorrer aos meios próprios contenciosos; se, porém, o

[86]

juiz aceita a impugnação, o registo não se faz, salvo quando a questão tiver outra feição

(transcrição, compromisso, alienação, decisão passada em julgado, etc.). A ressalva do juiz é, então, supérflua, se só diz que, mudadas as circunstâncias, pode ser pedido registo que antes se negara, ou ilegítima, descabida, se teve por fito fazer litigiosa a situação do impugnante.

O juiz de registo tem poder para fazer discutível o direito de quem pede o registo, pois que está êle em causa; mas, quanto ao direito de impugnantes, não:

a) porque o impugnante pede negação (não se fazer o registo pedido pelo impugnado);

b) porque o juiz, se repele a impugnação, apenas indefere o pedido de negação do registo, podendo as partes recorrer aos meios próprios, contenciosos ou não;

c) porque, se o juiz aceita, deu tudo que podia dar: negar o registo, que vale dizer reconhecer a insuficiência do pedido do registo.

Diante da dupla interpretação da sentença, êste Conselho sòmente pode entender que o juiz acolheu todo o pedido da agravante e apenas, ex-abundantia, aludiu, só aludiu, a possíveis lides entre as partes, com eventual valor de coisa julgada.

Devia abster-se disso, porque não cabe a analogia com o art. 2.º, § 3.º, uma vez que são

diferentes, nos processos de registo, as situações dos suplicantes e dos impugnantes, com reflexos nos poderes de cognição dos juízes a respeito dêles; mas, adotada a inteligência que é a da jurisprudência dêste Conselho sôbre os limites dos poderes do

juiz de registos, espécies, solução a ser assente, como aqui se assenta, é a de se negar provimento ao agravo. Dele, aliás, só se conheceu porque, podia a ressalva, em vez de inócua e suscetível de interpretação supérflua, só ser suscet ível de uma interpretação, e

essa lesiva; o que exigia entrar-se na apreciação dos dizeres. Rio de Janeiro, 23 de março de 1939. – (a) Vicente Piragibe. – Pontes de Miranda, relator. – Galdino Siqueira. – Goulart de Oliveira, pela conclusão. Ciente, 9-6-1939. – Romão C. Lacerda”.

Êste julgado merece justos reparos e severas restrições. Confere um largo poder de impugnação que exorbita das fronteiras legais.

Assim consagra a permissão legal do posseiro poder impugnar o registo, quando aponte infração do art. 1.º, I, a e II, ou art. 1.º, I, b.

[87]

Nem o chamado posseiro está habilitado a oferecer impugnação nem muito menos pode constituir fundamento de impugnação a infração pura e simples dos incisos legais indicados no acórdão.

A lei de loteamento, quer o decreto n.º 58, quer o decreto n.º 3.079, refere-se a terceiro.

O terceiro, nesse caso, não é qualquer que se apresente para impugnar: é aquêle que, portador

de um direito incontestável, estiver protegido pela lei com um direito real devidamente comprovado.

Êste terceiro não poderá alegar a infração dos incisos legais referidos no acórdão, senão tanto quanto afete o seu próprio direito argüido.

E fôrça é notar que sòmente ao Oficial de Registos incumbiu a lei o policiamento relativo ao

cumprimento dos seus dispositivos, e só após verificado estarem os documentos em ordem é que êle procede a inscrição. Ao terceiro, portanto, falece êsse poder geral de policiamento. A sua impugnação, além de dever basear-se num título de direito real comprovado, tem de ser limitada à matéria que se relacione com o seu direito real.

Destarte, carece o posseiro do direito à impugnação, como do mesmo modo dêle carece o titular de benfeitorias sôbre o terreno inscrito, pois que o único direito que lhe assiste – o de retenção – é suscetível de desaparecer, mediante indenização do que houver incorporado ao solo.

Conseguintemente, a noção de terceiro é restrita: e a matéria da impugnação também circunscrita a tudo quanto se relacione exclusivamente com o direito real do impugnante.

Felizmente, meses após, com o Sr. Pontes de Miranda na presidência, o referido Conselho retornou aos justos limites da lei de loteamento, e embora tenha reafirmado que “a impugnação autorizada pelo decreto n.º 58, de 1937, deve fundar-se em inobservância, pelo requerente do

registo, das formalidades fixadas nesse diploma lega”, contudo esclareceu in fine, que “se a impugnação não se fundou em direito real, provado incontinenti, não pode o Juízo administrativo dirimir a controvérsia, que é remetida ao contencioso, como o fêz a decisão agravada”. (Ac. do

Cons. de Justiça, do Trib. de Apelação, de 4-5-1939, no Agravo n.º 135, in Gazeta Jurídica, de 21-5-1939).

Cumpre-nos ainda dizer que o paupérrimo argumento de ordem constitucional, segundo o qual o decreto n.º 3.079, de 1938, sendo regulamentador do decreto n.º 58, de 1937, não podia ter

alterado êste, ainda se torna mais precário no caso presente, porquanto o § 3.º, do art. 2.º, do decreto n.º 3.079, de 1938, apenas esclareceu o § 1.º, do art. 2.º, do decreto n.º 58, de 1937.

[88]

Finalmente, em decisão que proferimos, deixamos assim assentado o nosso pensamento a respeito dos dispositivos legais sôbre a impugnação de terceiros:

“Em resumo a lei de loteamento possui um caráter eminentemente social; entre nós ela

surge tendo como elemento principal – o aspecto jurídico: a segurança do contrato celebrado e a prova do domínio do vendedor não se contentando com a garantia da evicção.

Daí a razão do § 1.º, do art. 2.º do primitivo decreto-lei de 1937 conceder aos terceiros,

dentro no prazo legal de 30 dias da última publicação, o direito de impugnar o registo e prescrever mesmo o processo dessa impugnação.

Abriu-se uma exceção no direito comum, segundo a qual, em regra, nos contratos apenas podem ir além dessas mesmas pessoas que contratam.

Não há dúvida que foi no interêsse de evitar perigos ao compromissário, que a lei criou êsse debate administrativo, em tôrno à propriedade dos terrenos loteandos.

O decreto-lei n.º 58, de 1937, porém, ressentia-se de um grave defeito: não definiu a matéria relativa às impugnações.

Por isso, o decreto-lei n.º 3.079, de 1938, precisou-lhe o conteúdo, prescrevendo:

“Será rejeitada “in limine”, remetendo -se o impugnante ao juízo contencioso, a impugnação que não vier fundada num direito real devidamente comprovado, de acôrdo com a legislação em vigor”.

O artigo supracitado teve um propósito moralizador, se bem que haja havida quem lhe atribuísse, levianamente, uma origem inconfessável.

Nenhum dos comentadores das leis de loteamento se aventurou à menor crítica.

O objetivo da norma é óbvio: se alguém pretender levar a efeito o registo do loteamento de terras, ofendendo a um usufruto existente sôbre as mesmas, uma servidão, ou

mesmo invadindo os terrenos de propriedade de um terceiro, cujo domínio êsse mesmo terceiro possa provar imediatamente, apresentando títulos pelos quais êsse direito de propriedade ou outro direito real de qualquer espécie surja perfeitamente identificado,

quanto à localização e devidamente transcrito, se fôr o caso de transcrição, a impugnação poderá ser apreciada devidamente.

O mesmo não pode ocorrer, em se tratando de uma propriedade duvidosa, quanto aos seus limites, ou no caso

[89]

de benfeitorias e posse. Para êstes últimos não há prejuízo algum com a rejeição da

impugnação: resta-lhe o caminho das vias judiciárias contenciosas, sendo-lhes lícito a inscrição da ação que propuserem para constituir de má-fé os futuros adquirentes”.

A jurisprudência também tem firmado que o “decreto-lei n.º 58, não cogitou de, por fôrça do registo que êle instituiu, deixar assentado a quem cabe, a propriedade, mas apenas, pelo

depósito dos documentos em cartório, permitir que qualquer interessado os examine. Quem tem a propriedade contestada pode vendê-la a prestações, mas os compradores não serão enganados, pois que encontram no Reg. de Imóveis respectivo os títulos nominais” (Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de S. Paulo, de 3 de outubro de 1938, Rev. dos Trib., vol. 117, pág. 154).

Decidiu, ainda a 4.ª Câmara do referido Tribunal que “é imprópria a discussão acêrca do domínio pretendido pelo impugnante ao registo dos documentos necessários para a venda de terrenos a prestações. A legislação sôbre a matéria tem em mira acautelar apenas os direitos dos

compromissários contra futuras alienações ou imposições de ônus. E‟ errado, pois, supor -se que o registo sòmente será feito quando escoimado de dúvidas o direito do pretendente”. (Ac. da 4.ª Câmara do Trib. de S. Paulo, de 23 de novembro de 1938, in Rev. dos Trib., vol. 117, págs. 595-596).

Êsse julgado não merece acolhida senão com fortes reservas. A legislação pretendeu proteger o

compromissário, e uma dessas formas de proteção consiste em ter o promitente um domínio completamente desnodoado.

Se a impugnação de terceiro, fundada no domínio, tem em seu favor título registado claramente em oposição ao direito pretendido pelo promitente, essa impugnação não pode deixar de ser aceita, para discussão.

Convém ser divulgado o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal, onde é de ressaltar-se o brilhante voto do Sr. Ministro Filadelfo Azevedo, em tôrno do problema da faculdade de impugnar a inscrição do loteamento (Ac. da 2.ª Turma do Sup. Trib. Federal, de 30 de novembro de 1944, in Diário da Justiça de 15 de fevereiro de 1915, págs. 902-903) e cujo teor é o seguinte:

AGRAVO DE PETIÇÃO N.º 11.928

Não provimento. Registo de imóveis. Impugnação fundada em direito real e julgada procedente.

Relator: Sr. Ministro Anibal Freire Agravante: Caixa Econômica Federal do Paraná.

[90]

Agravados: Juril de Plácido e Silva Carnasciali e outros.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos êstes autos de agravo de petição n.º 11.928, do Paraná, em que é agravante a Caixa Econômica Federal do Paraná e ag ravados Juril de Plácido e Silva Carnasciali e outros, resolvem os Ministros do Supremo Tribunal Federal,

componentes da Primeira Turma, negar provimento ao agravo, por maioria de votos, de acôrdo com as notas taquigráficas anexas.

Rio, 30 de novembro de 1944. – Laudo de Camargo, Presidente. – Anibal Freire, Relator.

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Anibal Freire. – A Caixa Econômica Federal do Paraná apresentou para registo ao Oficial do Registo de Imóveis de Curitiba a planta, memorial e documentos referentes à Vila Formosa, propriedade loteada para venda a prestações.

Publicados editais, D. Juril de Plácido e Silva Carnasciali e outros, declarando serem proprietárias da quadra 11 da planta Vila Formosa, tendo verificado na planta anexa ao imóvel que a localização atual dos lotes, que lhes pertencem por compra, não confere

com a localização primitiva. Êsses lotes foram adquiridos pelos impugnantes da Caixa Econômica Federal do Paraná em 1936 e em 1937, conforme escrituras às fls. 24 e 34 dos autos, devidamente registadas e de acôrdo com as plantas que acompanham as petições.

O Ministério Público opinou pela procedência da impugnação.

O juiz julgou procedentes e provadas as impugnações, e negou o registo requerido.

Apóia-se a decisão no decreto n.º 3.079, de 1938, que exige venha a impugnação

fundada em direito real devidamente comprovado de acôrdo com a legislação em vigor. Constituindo as escrituras de compra e venda, prova de direito real, procede a impugnação.

A Caixa Econômica Federal requereu a intimação da União, por ter esta interêsse na causa e depois agravou da decisão.

Alega a Caixa que esta autarquia houve por escritura pública de doação em pagamento um terreno de campo, no qual, realizados trabalhos de planificação, foi dado o nome de Vila Formosa. Só em 1944 obteve a Caixa a aprovação

[91]

da planta e porque ignorava a venda antecipada de diversos lotes da Vila Formosa, feita

pelo então Diretor da Caixa, Dr. Plácido e Silva, a seus filhos menores, deixou de mencioná-los quando depositou em cartório a planta e memorial. Mas o que interesse à Caixa é o aspecto legal do caso. O direito real dos impugnantes está reconhecido mas a

matéria que êles pretendem discutir é a localização dos lotes, matéria de fato, não pertinente ao direito real. Invoca o agravante a opinião dos autores em abono do seu ponto de vista.

Os agravados contraminutaram o agravo. Preliminarmente declaram ser incompetente o

Tribunal para conhecer do agravo, porquanto a União não tem interêsse no caso. No mérito, impugnam as razões do embargo e alegam que o seu direito foi por vêzes violado pela Caixa: quando o loteamento foi feito sem a menção dos lotes já vendidos;

quando a Caixa assinou a escritura de venda de 35 lotes da Vila Formosa à firma Madeira Suplex Limitada, entre os quais três da atual planta e que pela localização primitiva pertencem aos agravados, quando não se respeitou no plano de loteamento os lotes definitivamente adquiridos. (Decreto n.º 3.079, de 1937).

O Curador Geral manifestou-se pela confirmação da sentença.

Ouvido o Procurador Regional da República, êste declarou ser manifesto o interêsse da União. O juiz manteve a decisão e nesta instância o Sr. Dr. Procurador -Geral opinou pelo provimento do agravo da Caixa Econômica, de acôrdo com as razões por ela apresentadas.

VOTO

Dispõe o decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1939, regulamentador do decreto -lei n.º 58, e 10 de dezembro de 1937, que dispõe sôbre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações:

Será rejeitada in limine, remetendo-se o impugnante para o Juízo contencioso, a

impugnação que não vier fundada num direito real, devidamente comprovado, de acôrdo com a legislação em vigor (§ 3.º, do art. 2.º).

O Código de Processo Civil prescreve no art. 345, § 1.º: A impugnação não fundada em direito real comprovado será rejeitada in limine.

Ora, os agravados apresentaram escrituras públicas de compra e venda de lotes no terreno, devidamente transcritas. A própria agravante confessa a existência dêsse direito

[92]

real. Mas a verdade é que não o respeitou, não só na apresentação da planta para o registo, como em outros incidentes, a que fazem menção os agravados.

O agravante cita a opinião de Luiz Machado Guimarães. Mas esta lhe é inteiramente contrária. São palavras do comentador:

“Reconhecemos como prescrições da faculdade de impugnar o registo:

a) a legitimidade, decorrente da qualidade a titular de um direito real;

b) o interêsse, decorrente da necessidade de evitar que seja prejudicado êsse direito real” (Comentários, volume IV, edição da Revista Forense, pág. 484).

No mesmo sentido expressa-se Jorge Americano:

A lei exige que só se faça a inscrição quando a impugnação fôr manifestadamente improcedente. (Comentários, 2.º volume, pág. 189).

Nego provimento ao agravo, para confirmar a decisão agravada, pelos seus jurídicos fundamentos.

PEDIDO DE VISTA

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Sr. Presidente, peço vista dos autos.

VOTO

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Em Registo de Imóveis – Valor da Transação – Rio – 1942, abordei o regime de loteamento para demonstrar que não se separava êle da orientação geral de nossa direito: no § 53 dêsse trabalho, procurei, assim, acentuar que

o objetivo do decreto n.º 58, teria sido o de facilitar a todos o conhecimento de riscos na aquisição de lotes, mediante ampla publicidade dos títulos, inclusive em suas falhas.

Valdemar Ferreira (O loteamento e a venda de terrenos, primeiro volume – São Paulo, 1938, pág. 104), acentuou que o § 2.º do art. 1.º, a despeito de certo considerandum

preliminar, bem esclarecia que as certidões de ônus e ações não impediriam o registo e o § 3.º cogitava da liberação de hipoteca, em sistema com o art. 41, sôbre concordância do titular do direito real. Seria exagerado supor-se, portanto, que o registo só seria feito,

quando escoimado de dúvidas o direito do pretendente, pois não comportaria discussão e prova sôbre domínio o exame sumaríssimo dos t ítulos, exigido para o registo. A propósito, aludi ainda à redução do prazo da cadeia de t ítulos de 30 para 20 anos, censurada por

[93]

uns e aplaudida por outros, além de haver o Código de Processo limitado a impugnação

ao caso de direito real. Serpa Lopes, como Romão Côrtes de Lacerda (Tratado de Registos Públicos, volume 3.º, pág. 47 e seguintes), por isso, consideraram que a inscrição não dava nem tirava direitos alheios.

O legislador pretendeu principalmente proteger os compradores de lotes, por uma razão

social, isto é, pela carência de meios e letras, que, em geral, oferecem e pela exigüidade dos valores das terras, mas, no fundo, não contrariou o sistema comum, pois em grandes porções de terras, haverá sempre defeitos de caracterização, ensejando

complicações futuras: nem as exigências extraordinárias da lei, todavia, excluirão tôdas as dúvidas (Sílvio Pereira – Imóveis a prestações – São Paulo, 1938, pág. 62).

Como seriam aplicáveis essas velhas idéias ao caso em debate?

E‟ de observar, desde logo, que a impugnação não versou a ilegitimidade dos títulos, a incerteza de limites ou a existência de qualquer direito em conflito com aquêles – ao

contrário, os impugnantes filiaram seu dominio ao da Caixa, de que são sucessores imediatos.

Logo, não se tratou de afastar uma coisa litigiosa, ou deslindar um direito real no Juízo competente, alertando a boa fé dos adquirentes de lotes a prazo.

Apenas se pretende excluir o loteamento por desrespeito a alienações anteriores, mas

semelhante pretensão, justa em princípio, foi apresentada com exagêro, a pique de transformar-se em exercício abusivo de direito.

Tôda uma extensa área não pode ser excluída de um regime impôsto pelo interêsse social de fragmentação da terra, de modo acessível aos mais desafortunados, por

questão ligada a poucos lotes diante de várias centenas de outros, estranhos a qualquer debate.

Incompatível com a atual orientação do processo e o regime de nulidades dosadas em razão da utilidade – seria o absoluto non possumus; prejudicando o máximo interêsse pelo mínimo, e na parte em que êste não seria afetado.

O próprio decreto n.º 3.079 conteria ressalva semelhante no art. 2.º das disposições transitórias.

O loteamento anterior em que se baseou a venda de alguns lotes não tivera c aráter oficial e nem sequer ofereceria base à caracterização exigida pelo regulamento de regis -

[94]

tos públicos para a validade da transcrição, eis que as ruas que serviram de única referência aos lotes nem sequer estariam aprovadas pela edilidade.

Por outro lado, a regra relativa à modificação de planos pressupõe a existência de um anterior já legalizado em frente ao regime instaurado em 1937.

Está claro que, mesmo imponente para evitar o registo de uma planta oficializada, o plano anterior, se desrespeitado, não revelaria da composição de prejuízo aos

interessados, nem do emprêgo das medidas de caráter real, petitório ou possessório

(Valdemar Ferreira – op. cit., pág. 102), ajuntando-se à mais completa indenização cabível.

Mas, nada impediria o acolhimento no registo do plano proposto, sob a ressalva dos lotes anteriormente vendidos, e até das quadras vizinhas, acaso atingidas pela

deslocação dos logradouros – com isso se respeitariam os direitos dos compradores e os interêsses de terceiros pretendentes aos lotes, sem os excessos que o direito não mais tolera hoje, segundo já ficou, por exemplo, acentuado nesta turma no julgamento da apelação cível n.º 8.308 (Arqu. Jud., v. 69, pág. 25).

Serpa Lopes, provecto especialista na matéria, abordou o problema da litispendência e da impugnação parcial (Trat. cit., v. 3, pág. 35), mandando como Juiz, fazer um registo com exclusão de lotes objeto de impugnação, como, aliás, também o fizera o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro (pág. 87).

As leis ns. 58 e 3.079 são expressas no sentido de que as certidões positivas de ônus, ações e protestos não impedem o registo (art. 1.º, §§ 2.º e 3.º); quanto ao plano de arruamento, mesmo em relação aos já aprovados regularmente, os mesmos diplomas

permitem modificações, quanto aos lotes não comprometidos e ao de arruamento sem prejuízo de lotes comprometidos ou definitivamente alienados – o cancelamento é que exige a totalidade dos compromissários (art. 6.º).

O interêsse tem de ser, assim, apreciado dentro de critério razoável, já seguido naquele julgado desta Côrte, segundo a sábia orientação de Santiago Dantas.

Dir-se-á que a forma sumaríssima do processo seria incompatível com o deslinde, mesmo, parcial, a exigir, talvez, uma vistoria; isso, porém, acontece todos os dias nos casos de dúvidas comuns suscitadas pelos oficiais de registo a propósito de títulos

exibidos e processadas na Vara de Registos Públicos na forma do Regulamento n.º 4.857, de 1939.

[95]

O Código de Processo nada alterou nessa matéria (v. g. artigo 345) e perfeitamente acorde com seu sistema seria a instrução probatória sumàriamente ordenada pelo Juiz para melhor conhecimento da espécie.

Em face do exposto e ressalvado meu voto conhecido sôbre a preliminar de incompetência da Côrte em casos da Caixa Econômica, dou provimento, em parte, ao agravo para que o Juiz a quo conceda o registo pedido, excluídos apenas os lotes já

vendidos e a que se referem os Agravados, podendo preliminarmente adotar quaisquer diligências para fazer consignar na planta e na inscrição a área reservada a futuro deslinde, tudo sem prejuízo das ações reais e pessoais que as partes queiram provocar.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Anibal Freire – Relator. – Sr. Presidente, o voto do Sr. Ministro Filadelfo

Azevedo esteou-se, sobretudo, em considerações de ordem doutrinária, mas eu tive de examinar o caso, diante dos elementos concretos que o processo fornecia.

A Caixa Econômica pediu a inscrição de determinado imóvel e os impugnantes

apresentaram escritura de compra e venda que constitui, é evidente, direito real sôbre o mesmo. O juiz considerou não poder desatender à impugnação, desde que se baseava em elementos sólidos.

A sugestão apresentada pelo Sr. Ministro Filadelfo Azevedo encontra embaraço

irremovível porque, justamente a Caixa Econômica não contesta o direito real constante da escritura de compra e venda; apenas, discute sôbre a localização dos lotes. Como proceder o juiz para discriminar êsses lotes? A planta apresentada pela Caixa

Econômica difere, inteiramente, na localização dos elementos constantes da escritura de compra e venda. Como vai o juiz proceder?

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – O Juiz faz a vistoria. Isto faz -se todos os dias no Rio de Janeiro. O interêsse do processo é êste. O que não se pode é, por causa de 20 lotes,

impedir que o processo prossiga. Já os tribunais do Distrito Federal e do Estado do Rio têm assim decidido.

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – Como é possível separar êsses lotes?

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – E‟ muito fácil. Para isso há a vistoria. Trata-se de economia processual.

[96]

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – A solução dada pelo juiz não impede que a Caixa apresente nova planta.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Não pode apresentar planta alguma. A lei exige plantas aprovadas pela Prefeitura.

O Sr. Ministro Anibal Freire – Pesa-me não acolher a sugestão de V. Excia., pela impossibilidade material em que o juiz ficaria diante da disparidade entre os elementos concretos e materiais do pedido da Caixa Econômica e as certidões apresentadas.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – O resultado é um abuso de direito: quem tem dois lotes impede que se aproveite uma grande área, o que é de interêsse público.

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – Não há abuso de direito. a lei é terminante e clara. Desde que o impugnante se apresentada fundado em direito real, é procedente a impugnação e não se dá a inscrição.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Não há direito real.

O Sr. Ministro Anibal Freire – O Juiz não ofendeu, absolutamente, a lei. O Juiz conformou-se com o teor do dispositivo legal.

Não transgrediu disposição alguma.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Aqui, não se trata de recurso extraordinário, para V. Excia. ficar na apreciação de ofensa literal.

Aqui se trata de recurso ordinário em que podemos interpretar a lei.

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – Há esta impossibilidade material.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Todos os dias se faz assim no Distrito Federal.

O Sr. Ministro Anibal Freire – A Prefeitura aprovou a planta apresentada pela Caixa Econômica?

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – Exatamente.

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – Essa planta não respeitou os direito de outrem.

O Sr. Ministro Filadelfo Azevedo – O Título do agravante é nulo porque é sem caracterização.

[97]

O Sr. Ministro Anibal Freire (Relator) – Mas a Caixa Econômica dá como de sua propriedade o que a certidão diz ter sido vendida por escritura pública.

Mantenho meu voto.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes – Sr. Presidente, data vênia do ilustre Sr. Ministro Relator, voto de acôrdo com o eminente Sr. Ministro Filadelfo Azevedo.

VOTO

O Sr. Ministro Barros Barreto – Sr. Presidente, de acôrdo com o eminente Sr. Ministro Anibal Freire, nego provimento ao agravo.

O Sr. Ministro Laudo de Camargo (Presidente) – Peço vista dos autos.

VOTO

O Sr. Ministro Laudo de Camargo – Nego provimento.

Os impugnantes se fundaram em direito real.

Assim, a impugnação tinha, ex-vi legis de ser apreciada e acolhida.

Se a Caixa antes da lei sôbre loteamento havia vendido certos e determinados lotes, êstes tinham de figurar da planta oferecida, por sua localização e confrontações, o que se não deu.

E a essa falha inicial, há a acrescentar a alegação sôbre a existência de compromissos

relativos à venda de dezenas de lotes da atual planta a determinada firma, lotes que estariam a corresponder com os vendidos aos impugnantes.

Tudo, pois, está a mostrar que a impugnação, fundada em lei, estava a merecer acolhimento.

DECISÃO

Como consta da ata a decisão foi a seguinte:

Negaram provimento, contra os votos dos Srs. Ministros Filadelfo Azevedo e Castro Nunes.

Na nota do Sr. Ministro Filadelfo Azevedo há uma explanação de ordem prática de alto teor, mas

a razão pende, no nosso entender, em favor da maioria. Se o loteante já havia alienado a terceiros algumas porções do terreno, posteriormente submetido ao plano de loteamento, está claro que a inscrição dêste não poderia

[98]

processar-se em detrimento dos direitos anteriormente t ransmitidos e cuja concretização se

impunha, ficasse determinada preliminarmente. O princ ípio de que a inscrição do loteamento não dá nem tira direitos deve ser entendido em seus devidos têrmos, isto é, a inscrição do loteamento deve operar-se em função da transcrição de direito de propriedade do loteante. Não

pode ser tomado como um protesto por que se inclui no regime do loteamento quem dêle se acha natural e juridicamente excluído.

Finalmente é de assinalar-se a decisão que assentou que “rejeitada a impugnação ao registo dos títulos de domínio para a venda em prestações de terrenos loteados, não se atende o pedido

do impugnante, para que fique constando da coluna das averbações o oferecimento dessa impugnação: tal coluna se destina a contratos de compromissos e financiamentos, transferência e rescisões, nos próprios têrmos da lei” (Ac. da 2.ª Câm. do Trib. de São Paulo, de 22 de março de 1939, Rev. dos Trib., vol. 118, pág. 610).

Passemos agora a examinar os efeitos da impugnação como matéria de litispendência.

A litispendência e a impugnação parcial podem dar margem a questões interessantes, que já foram por nós apreciadas na seguinte decisão:

“II – Vista por êsse modo a inteligência dos dispositivos legais que serviram de fundamento, à impugnação ao loteamento, segue-se que, no caso sub-judice, teremos

que apurar o seguinte: se a impugnação está baseada num título de domínio com todos os requisitos legais, ou seja, devidamente transcrito no Registo de Imóveis, e, isto feito, se o loteamento requerido está ou não em conflito com os direitos resultantes do aludido

título, e, finalmente, se o imóvel acha-se perfeitamente individualizado, de maneira a tornar inequívoca a argüida ofensa ao direito do impugnante.

Ora, precisamente a questão versa sôbre os limites dos terrenos do impugnante e do impugnado.

Existe uma ação em outro juízo, fundada na alegação da invasão de limites, ação proposta pelo próprio impugnado.

Surge, então, o primeiro obstáculo: decidir pelo registo ou negá-lo sob tal fundamento, implica em prejulgar a causa, que corre em outro juízo.

Abre-se, assim, uma circunstância excepcional, pela impossibilidade da rejeição in limine, da impugnação, de vez que está ela amparada em t ítulos que a justificam, e, por outro lado, pela impossibilidade de decidir, atenta a

[99]

competência já estabelecida em outro juízo pela litis pendencia.

III – Outro ponto da controvérsia: a lei do loteamento requer que o memorial contenha descrição minuciosa da propriedade loteada, com a denominação, área, limites, situação e outros característicos do imóvel, bem como planta do imóvel, assinada pelo

proprietário e pelo engenheiro que haja efetuado a medição e o loteamento e com todos os requisitos técnicos e legais.

Uma vez que a lei frisou, de maneira tão categórica, o requisito dos limites, falando ainda em planta do imóvel com todos os requisitos técnicos e legais, é claro que a questão dos limites assume aspecto de suma relevância.

Assim, pois, desde que os rumos são contestados por outros títulos e entre os proprietários confinantes; desde que do Registo de Imóveis não consta nenhum elemento de onde se possa inferir uma dimensão exata, o requisito legal não se acha

cumprido, e o registo só poderá ser concedido, depois que os limites dos terrenos tiverem ficado definidos na ação própria que é de demarcação ou de avive ntação de marcos, caso êstes tenham ficado apagados.

No caso presente, a questão de limites tem de ficar resolvida na ação contenciosa, promovida pelo impugnado.

Por conseguinte, e como a contestação versa sôbre uma parte dos terrenos, cujo registo se requer, e não sôbre a totalidade, ressalvados os direitos do impugnante e do impugnado, determino que seja feito o registo, com exclusão dos lotes objeto da impugnação, até que, pelo juiz competente, seja resolvida a questão do domínio”.

Também o Tribunal de Apelação do Estado do Rio (Ac. da 2.ª Câmara, de 25 de outubro de 1938, no agravo n.º 3.370) reconheceu que “se a impugnação se refere apenas a uma parte do terreno, compreendida claramente entre duas linhas, deve -se excluir do registo a zona impugnada, cabendo às partes, pelos meios ordinários, a prova dominal da faixa contestada”.

A impugnação pendente e a alienação do imóvel, no todo ou em parte, mediante preço à vista. – Esta questão foi assim resolvida, na decisão que proferimos, no processo de dúvida suscitado pelo Oficial do 9.º Ofício de Imóveis (in Diário da Justiça de 31-7-1939):

“Vistos, etc.:

Giacomo Pascoal Argento, à fls. 2, alega que tendo comprado ao Banco de Crédito Móvel áreas de terras, no lugar denominado Várzea Pequena, e levando à transcrição

[100]

a respectiva escritura ao oficial do 9.º Ofício de Imóveis, o mesmo opôs dúvida, baseando-se numa decisão dêste Juízo, de 7 de novembro do ano p. passado, onde ficou determinado que enquanto não decidida a impugnação, deve ser sustado o registo

de terrenos, quer se trate de compromisso, quer ser trate de venda definitiva de lotes destacados dessas propriedades. Sustenta, então, que no decreto-lei n.º 58, não há um só dispositivo que sirva de fundamento a esta doutrina, nem que permita entravar o

direito de livre disposição do domínio. Ouvido o ilustre Dr. Promotor de Registos, êste depois de várias considerações, salienta que a área vendida ao requerente não está compreendida na área que foi objeto de impugnação do registo para o loteamento, pois que esta impugnação versou sôbre a Fazenda Vargem Grande.

Isto pôsto:

A impugnação, que o decreto-lei n.º 58 facultou a terceiro visa afastar o inconveniente ou o prejuízo do registo do loteamento poder ser levado a efeito em detrimento de um direito real de terceiros. Se o plano de loteamento atinge a área do confinante, cujos

limites constam de títulos incontestáveis, devidamente transcritos, se com êle há uma possível violação de uma servidão, devidamente comprovada, a impugnação será o remédio salutar, para resguardar os direitos de terceiros, o que também implica na

defesa dos interêsses dos futuros compromissários, que deverão encontrar tôdas as dificuldades aplainadas, e solvidas as controvérsias. Segue-se, porém, daí que a impugnação ao registo do loteamento seja motivo legal e justo para obstar a transcrição

de qualquer título translativo em relação à propriedade cujo pedido de registo para loteamento esteja se processando? Entendemos, desde logo, que um princ ípio geral de proibição não é possível ser estabelecido. O caso comporta distinções. Em primeiro

lugar, é preciso acentuar que a lei é omissa e que ainda no caso da existência de ações contra o proprietário e que essas ações hajam sido inscritas, nada impede que êle disponha do imóvel, pois apenas subordina o adquirente às conseqüências da má -fé na

aquisição. Ora, se tal acontece, existindo uma ação cujo objeto seja o próprio imóvel alienado, outro critério não é possível admitir-se, em se tratando de impugnação meramente para efeitos de impedir o registo do loteamento. Depois a impugnação poder

versar sôbre direito real, que, de modo nenhum, perturbe a disposição do imóvel, pois êste direito real pode ter por objeto uma limitação do gôzo do imóvel.

[101]

O que se pode extrair de prático, é o seguinte: 1.º) Tratando-se de uma propriedade que ainda não conste do Registo de Imóveis, e que tenha sofrido impugnação, quanto ao

registo do loteamento, claro que nenhuma t ranscrição pode ser levada a efeito, seja a que t ítulo fôr, enquanto não ficar resolvida a impugnação, no sentido de ser considerada improcedente; 2.º) Tratando-se de uma propriedade transcrita, o registo do t ítulo

translativo sòmente pode ser impugnado quando dos Livros Imobiliários conste algum elemento que possa servir de base à dúvida, cumprindo, porém, ao oficial, em qualquer caso, certificar ao adquirente da existência do processo do registo de loteamento e de

sua impugnação; 3.º) Estando uma propriedade subordinada ao regime do loteamento,

por fôrça de requerimento de registo pelo respectivo proprietário, enquanto não deferido

êsse pedido, nenhuma transação pode ser levada a registo, desde que esteja incluída no regime da lei de loteamento. (1) Posta assim a questão, que serviu de base à dúvida oposta pelo digno Sr. Oficial do 9.º Ofício, temos a ressaltar, ainda, no caso sub judice,

que o terreno objeto da compra e venda, segundo a acatadíssima informação do ilustrado Dr. Promotor de Registos, não foi objeto de impugnação. Nesta conformidade, deferindo o pedido de fls. 2, declaro improcedente a dúvida oposta pelo digno Sr. Oficial

do 9.º Ofício e mando que se proceda a transcrição do t ítulo aquisitivo, a que se refere o requerente. – Rio de Janeiro, 19 de julho de 1939. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes.

423. LIVRO EM QUE E‟ FEITA A INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – A inscrição do memorial da propriedade loteada é feita no livro n.º 8 – REGISTO ESPECIAL – dividido em colunas

correspondentes aos requisitos, além das averbações, sendo a sua escrituração nos moldes do livro n.º 2, relativo à inscrição hipotecária (dec. 3.079, de 1938, art. 196 do dec. 4.857).

424. CANCELAMENTO DA INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – A inscrição não pode ser cancelada senão:

a) em cumprimento de sentença;

b) a requerimento do proprietário, enquanto nenhum lote fôr objeto de compromisso devidamente averbado, ou mediante o

(1) – L. Machado Guimarães, Com. ao Cód. do Proc. Civil, IV, pág. 480.

[102]

consentimento de todos os compromissários ou seus cessionários, expresso em documento por êles assinado ou por procuradores com poderes especiais (art. 6.º, dec. 3.079, de 1938).

A lei adotou uma fórmula negativa, para tornar mais rígido o princípio de que o cancelamento da inscrição do loteamento, só excepcionalmente pode ser levado a efeito.

Êsses casos excepcionais são apenas dois: ou sentença judicial; ou a vontade do loteador, se

inexistir averbação de qualquer compromisso, ou ainda a vontade do loteador conjugada com o consentimento de todos os interessados, no caso de já existir compromisso de compra e venda averbado.

Dentre os que deverão prestar o seu consentimento, é inegável que devem figurar os antigos

compromissários já na posse de escritura definitiva, pois êstes “mais do que quaisquer outros, têm interêsse na permanência da inscrição e devem ser ouvidos” (1).

425. EFEITOS DO CANCELAMENTO DA INSCRIÇÃO DO LOTEAMENTO. – Quais os efeitos decorrentes do cancelamento da inscrição do loteamento?

Cremos necessário distinguir a situação oriunda de uma extinção do loteamento por ato voluntário do caso em que haja sido determinada por fôrça de sentença judicial.

Em se tratando de ato voluntário, a primeira hipótese é a da desistência do proprietário loteante, se ainda tiver sido averbado qualquer compromisso sôbre lotes inscritos. Esta primeira hipótese perde de interêsse. Enquanto não existir qualquer promessa averbada, por assim dizer não se

dá a separação jurídica do imóvel, que permaneceu tão sòmente de fato em loteamento.

Nenhum outro efeito daí em diante pode decorrer senão o de os lotes, já fìsicamente concretizados, sòmente poderem ser alienados à vista, e jamais sob o regime de promessa, pois contrariaria uma norma de ordem pública que exige um regime especial, renunciado pelo proprietário.

Na segunda hipótese, é preciso entender bem o sentido da lei. Na 1.ª edição, demos como certa a doutrina de Sílvio Pereira no sentido de que, dada essa concordância dos compromissários e cessionários, o cancelamento da inscrição do loteamento redundaria em perder os

compromissários as garantias de que eram titulares, voltando à situação de desfavor que o Código Civil estabelece. Entretanto, melhor considerando a matéria, verificamos que o sentido da lei não foi o de fazer subsistir a situação jurídica dos compromissários, pôsto que deslocados da esfera de garantias do decreto-lei n.º

(1) – Sílvio Pereira, ob. cit., pág. 89.

[103]

58, com um retôrno ao regime de desproteção do Código Civil. Desde que se cogita de um regime legal, de ordem pública, a autonomia da vontade não pode ter essa fôrça dominante, e as garantias da lei n.º 58, dada a sua natureza, são irrenunciáveis. Quis o dispositivo que estamos

estudando prever a hipótese de uma cessação completa do regime de loteamento, mas com o término e rescisão de todos os contratos, pois só assim é compreensível a renúncia. Jamais para submeter os compromissários a um regime de desgarantia, contrariando a própria função do

decreto-lei n.º 58.

De vez que se trata de um terreno dividido em lotes, a venda dêstes em prestações periódicas

só é concebível vigente a inscrição do loteamento. De outro lado, êsses contratos não podem sobreviver, pois “nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos dêste decre to e

do decreto-lei n.º 58, sem a apresentação do documento comprobatório do registo por êles instituído (dec. 3.079, de 1938, art. 23), e nem é possível o cancelamento da inscrição sem que isto arraste o cancelamento das averbações dos contratos de compromisso de compra e venda”.

Atenção especial merece se já existirem lotes sob o domínio dos que completaram o pagamento e obtiveram escritura definitiva.

Claro está que o cancelamento da inscrição do loteamento não os pode atingir. Entretanto, o plano de loteamento não é sòmente um movimento de ordem jurídica, pois também o é como expressão de um fator de ordem urbanística, como solução ao problema da habitação,

resultando daí o seu processo, com um sistema de interêsse comum, através das vias de comunicação, das servidões especiais que se criam em benefício geral.

O cancelamento da inscrição não pode atingir os direitos já adquiridos pelos titulares do domínio, tanto mais quanto os ônus constituídos pela inscrição do loteamento passam a figurar,

autônomamente, no registo comum do imóvel ou do lote alienado, destacando -se assim da inscrição-tronco e de sua averbação. Tais servidões mantêm-se intangíveis; preponderantes continuam os ônus inscritos segundo a forma comum, com fundamento no que constava do

memorial inscrito. Para que o cancelamento possa ter o efeito de os inutilizar, mister se faz a concordância dos proprietários dêsses lotes originários da inscrição cancelada, concordância manifestada mediante t ítulo hábil. De outro modo, o cancelamento da inscrição do loteamento em nada pode afetar os direitos dos proprietários.

A última forma é a sentença. O cancelamento da inscrição pode ser determinado por fôrça de

sentença. E‟ bem de ver que os seus efeitos estão em proporção com a eficácia da coisa julgada, isto é, dentro dos seus limites objetivos e subjetivos. Os compromissários,

[104]

como os que já se tornaram adquirentes, possuem direitos reais oponíveis erga omnes.

Os seus interêsses só poderão ser afetados, se efetivamente forem alcançados pela fôrça da res judicata.

426. CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE LOTES. – A legislação de

loteamento pode ser encarada sob dois aspectos: o primeiro, de que já tratamos, referente às regras gerais e condições da inscrição do loteamento, por fôrça do qual se abrem aos interessados os meios seguros de adquirirem os lotes; o segundo, a fase posterior, que é o

regime jurídico do desenvolvimento do contrato, a se encerrar ou com a realização da escritura definitiva de venda ou com a sua rescisão. Desta segunda fase, a contratual, iremos tratar no 4.º volume.

[105]

LOCAÇÃO

427. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE PRÉDIO COM A CLÁUSULA DE VIGÊNCIA, NO CASO DE ALIENAÇÃO DA COISA LOCADA. – Dispõe o art. 1.197 do Código Civil:

“Se, durante a locação, fôr alienada a coisa, não ficará o adquirente obrigado a respeitar

o contrato, se nêle não fôr consignada a cláusula da sua vigência no caso de alienação, e constar de registro público”.

Muito claro o dispositivo supracitado, sintetiza, contudo, uma longa evolução em tôrno da questão da vigência da locação, no caso de alienação da coisa locada e suscitado, a seu turno,

um outro problema: o direito do inquilino, transcrito, na forma do supracitado art. 1.197 do Código Civil, passa a ter o caráter de direito real?

Famosa no Direito Romano a Constituição do Imperador Alexandre que estabelecia: “Emptorem quiden fundi necesse non est stare colono, cui prior dominus locavit: nisi ea lege emit. Verum si

probetur aliquo pacto consentisse, ut in eadem conductione maneat, quamvis sine scripto, bonae fidei indicio, (ei) quod placuit perere cogetur”.

Mas esta constituição despertou graves controvérsias.

A jurisprudência entendia que a obrigação de manter, vigente a locação, quanto ao comprador ou outro sucessor particular, não dependia, para sua exigibilidade, tão sòmente do conhecimento do adquirente, mas cumpria ainda uma promessa formal de manutenção.

Fubini (1), acentua, porém, constituir argumento suficiente, o que se procura no Direito Romano.

Mostra a diferença de situações entre o inquilinus romano e o das legislações modernas.

Não tinha a posse da coisa, mas uma composse, exercida com o proprietário, situação que melhor se poderia denominar de detenção.

Preponderava o absolutismo do direito de propriedade.

(1) – Fubini, II Contratto di Locazione di Cose, I, pág. 38.

[106]

O proprietário não estava vinculado pela concessão da locação na disposição do próprio fundo, nem se podia falar de desapossar o locatário, que não dispunha de uma posse pròpriamente dita.

E, encarece Fubini (2), se com o tempo essa situação mudou, não o foi em conseqüência de um

sentimento de humanidade, de um movimento de justiça inspirado pela condição triste dos inquilinos, mas pela necessidade de melhorar tais condições, para obter um melhor proveito da coisa.

O Código civil Francês quebrou, porém, a orientação romana. No seu art. 1.743 estabeleceu a vigência da locação, quer no caso da alienação ter sido a título oneroso, quer a t ítulo gratuito.

Idêntica a orientação do Código Civil Alemão constante do art. 571, diferenciando-se, entretanto, da legislação francesa, nos seguintes pontos: 1.º) não visa senão os imóveis; 2.º) exige a detenção do locatário; 3.º) não faz reserva quanto à possibilidade de uma cláusula contrária; 4.º)

nenhuma distinção quanto à duração da locação; 5.º) não exige, para oponibilidade da locação ao adquirente, que haja data certa ou inscrição no Registo de Imóveis; 6.º) o caráter pessoa e a exclusão de tôda e qualquer idéia de direito real (3).

Na doutrina francesa, como na italiana, a tese da realidade ou não da locação tem sido vivamente discutida.

Foi Troplong (4) o mais ardoroso defensor do caráter real da locação.

Maior porém, o número dos que pensam de modo contrário. Pacifici-Mazzoni (5) sustentam que o respeito à locação, no caso de venda do prédio arrendado, não é devido erga omnes, mas sòmente em relação ao locador, tendo por fundamento o princ ípio nemo plus jure ad alium transfere quam ipse habet, extensivo a êsse caso, por moti vos de eqüidade e de utilidade.

Excluída da nomenclatura dos direitos reais sôbre a coisa alheia, a locação é a obrigação do locador realizar tudo quanto necessário se fizer para o gôzo da coisa locada: ut frui possit

Não se pode argumentar, dizem os citados autores, com a situação do usufruto, onde claramente surge o caráter de direito real, porque, no usufruto, o proprietário se obriga a permitir o gôzo da

(2) – Fubini, ob. cit., I, pág. 39. (3) – Cód. Civil Al., Com. par. le Comité de Leg. Étrangère, I, pág. 106. (4) – Troplong, De Louage, n.º 491. (5) – Pacif ic-Mazzoni, Cód. Civ. Comm., IV, n.º 21.

[107]

coisa objeto daquele direito, ao passo que, na locação, êle se obriga a fazer gozar do objeto arrendado.

Objeta-se com a ausência de incompatibilidade entre a realidade do direito de locação e a circunstância de ser êste um direito consistente em fazer efetivo o gôzo da coisa, porquanto é um título translativo de gôzo temporário, como a venda o é, tendo em vista um gôzo perpétuo.

Pacifici-Mazzoni revidam dizendo, após mostrar as nítidas diferenças entre os efeitos da compra

e venda e os da locação, que o locador não pode subtrair-se à obrigação assumida para com o locatário, abandonando a coisa arrendada, o que revela que a locação sòmente produz um direito pessoal: sòmente produz obrigação.

É, tanto assim, acrescentam, que se um terceiro qualquer molestar o locatário com fundamento

no direito de propriedade sôbre a coisa locada, o locatário não pode agir contra êle, mas deve chamar o locador, para que, por fôrça da sua obrigação de lhe garantir o gôzo pacífico da coisa o libere daquela perturbação.

De iguais argumentos se vale L. Abello (6) dizendo que a oponibilidade da locação em face do

novo adquirente e dos credores seqüestrantes, que são terceiros, constitui uma exceção, e isso não significa que seja contra todos os terceiros, como ocorre nas servidões, na hipoteca e noutro direito genuinamente real.

Depois considerando que a dedução do direito real deve ser processada tendo-se em vista a

relação íntima e direta entre a coisa e o exerc ício do direito sôbre esta, sustenta que o direito real se exerce pela submissão indireta da coisa ao poder do seu titular.

Diz, então, que êste característico não surge na locação, porque o exercício do direito locatário não se realiza imediata e diretamente sôbre a coisa, de vez que reclama a intervenção do locador obrigado a fazê-lo gozar da coisa (7).

Nega, em seguida, que o direito da subsistência da locação, em caso de venda, possa ser um argumento favorável ao caráter de direito real à locação, pois se trata apenas de uma condição tácita, aceita pelo terceiro adquirente, imposta pela lei, por fôrça de considerações econômicas.

Entre nós, Teixeira de Freitas (8), quanto à legislação francesa, aceitou a teoria de Troplong,

sôbre a realidade do direito do locatário, embora, na nota 108, confesse que no Esbôço, deu a êsse direi-

(6) – Luigi Abello, Tratatto Locazioni, I, pág. 299. (7) – L. Abello, ob. cit., I, p. 301.

(8) – Teixeira de Freitas, Consol. das Leis Civis, introdu., pág. LIX.

[108]

to o caráter de pessoal, ainda no caso da subsistência da locação em relação ao comprador do imóvel, pois, diz o notável jurisconsulto, se o adquirente fica impedido de despejar o locatário, quando tiver transcrito no Registo Público sua escritura de arrendamento “daí não se segue, que

o arrendatário tenha um direito real. Êle prefere ao adquirente, porque êste sabia, ou devia saber, pela publicidade do registo, que o imóvel estava arrendado. D esta maneira fica constituído em má-fé, e portanto pode ser atendido em Juízo”.

Teixeira de Sá (9), criticando o art. 1.362 do Projeto revisto, o qual sòmente admitia a

subsistência da locação, no caso de venda, se tal compromisso houvesse sido assumido no contrato de arrendamento, considerou a locação como um direito real, tanto que, mais tarde, na discussão do Projeto pediu fôsse substituído o art. 1.362 pelo seguinte:

Se durante a locação a prazo determinado fôr alienada a coisa ou transmitida por

herança ou legado ficará o adquirente em um e outro caso obrigado a respeitar o contrato.

Mas o ponto de vista não logrou impor-se e preponderou, por assim dizer, o princípio por Teixeira de Freitas adotado no Esbôço.

Assim, de acôrdo com o citado art. 1.197, duas as condições para um contrato de locação

subsistir, no caso de venda da coisa locada: a) que assim o estipule, o respectivo contrato de locação; b) que êste contrato seja inscrito no Registo de Imóveis.

Mas, regressando à questão principal, pergunta-se: Essa situação confere à locação o caráter de direito real?

Entendemos que não, de acôrdo com a opinião de Teixeira de Freitas.

O que no caso da locação dotada de tal eficácia, é uma cláusula subentendida do conhecimento

do comprador. Nada existe com o cunho de direito real. Êste tem por precípuo característico uma eficácia erga omnes, no sentido mais lato possível, o que se não verifica na locação, porquanto a publicidade do respectivo contrato produz efeito tão sòmente em relação ao comprador.

Não contestamos que a não inclusão de uma dada relação jurídica na nomenclatura legal dos

direitos reais não impede que ela seja considerada como tal, mas, no caso presente, é óbvio que faltam os característicos de direito real.

(9) – Código Civil Brasileiro – Trabalhos Relativos à sua Elaboração, II, pág. 961.

[109]

428. INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO PARA OS EFEITOS DA APLICAÇÃO DO ART. 1.197 DO CÓDIGO CIVIL. – Decidiu a 3.ª Câmara da Côrte de Apelação (Ac. de 29 de

julho de 1929, in Rev. de Dir. vol. 96, pág. 185) que as palavras herdeiros e sucessores, simultâneamente empregadas em cláusula contratual de arrendamento, revelam que as partes contratantes tiveram em vista que o contrato fôsse respeitado não só no caso de transmissão do

imóvel causa mortis, como também no caso de transmissão inter-vivos, isto é, que o contrato vigorasse até o têrmo convencionado, muito embora o imóvel deixasse, por qualquer título, de ser propriedade do locador. Para chegar a essa conclusão o acórdão supraci tado considerou

que, para que o contrato fôsse apenas respeitado pelos herdeiros, desnecessária seria a cláusula em tal sentido, em face do que dispõe o art. 1.198 do Código Civil, desde que o contrato foi feito por tempo determinado, e ainda porque, mesmo que as partes quisessem consignar no

instrumento o que está expresso na lei, não usariam as duas expressões herdeiros e sucessores para significar a mesma coisa.

Não nos parece aceitável a doutrina dêsse julgado que conta com dois votos vencidos. A expressão herdeiros e sucessores, embora a palavra sucessores possa indicar tanto a sucessão

inter-vivos como a mortis causa, é geralmente usada como fórmula de praxe em tôdas as escrituras públicas, para significar a sucessão mortis causa, mesmo porque a designação de

herdeiro é mais restrita que a de sucessor, pois há também o legatário. E‟ preciso considerar que

o art. 1.197 do Cód. Civil consagra, como princípio básico e geral, que a alienação rescinde o contrato de locação. Para que tal não ocorra é mister, dispõe o referido art. 1.197, que seja consignada a cláusula de sua vigência no caso de alienação, etc.

Por conseguinte, não é suficiente o simples emprêgo das expressões herdeiros e sucessores, a

menos que outros elementos do contrato indiquem, da parte dos contratantes, uma inequívoca vontade de manter vigente o contrato, no caso de alienação. Fora daí, cumpre que a cláusula exista no contrato, consignando expressamente a subsistência da locação, no caso de alienação, e não por meio de deduções extraídas de elementos obscuros.

Tais foram os pontos de vista que professamos na 1.ª edição, os quais tiveram repercussão vitoriosa na jurisprudência, em sua fase posterior. Verdade é que a antiga Quinta Câmara do Trib. de Apelação do Distrito Federal, sendo relator o então Desembargador Lafaiete de

Andrada, confirmou uma sentença do Juiz de Direito da 13.ª Vara Cível, sustentando a tese de que “a cláusula HERDEIROS OU SUCESSORES obriga os sucessores inter-vivos, os possíveis adquirentes do imóvel (Ac. de 18 de dezembro de 1942, in Diário de Justiça

[110]

de 10 de fevereiro de 1943 e Arq. Jud., vol. 65, pág. 63). Mas logo vieram outros em sentido

contrário. Sobreleva notar o acórdão da 4.ª Câmara do Trib. de Apelação do Distrito Federal, em que se firmou: “a estipulação feita em contrato de locação de ser êle válido entre as partes, herdeiros ou sucessores, não obriga o adquirente do imóvel locado a respeitar aquela locação,

se nela não fôr também consignada a cláusula de sua vigência no caso de al ienação e constar do Registo de Imóveis. Os sucessores a que se refere a estipulação só podem ser os que o forem a t ítulo universal, nunca, porém, o adquirente, em face do art. 1.197 do Código Civil.

Nenhum valor tem o registo operado contra êsses princípi os, em face, mesmo, do art. 256 do decreto n.º 4.857, de 1939, determinando que “serão inscritos no liv. 4.º, os contratos de locação de imóveis com cláusula expressa da vigência contra o adquirente” (Ac. da 4.ª Câm. do Trib. de

Ap., do D. Fed., de 19 de dezembro de 1941, Arq. Jud., vol. 62, págs. 437-439). E‟ de interêsse prático a divulgação dos fundamentos dêsse julgado, nos seguintes têrmos:

“Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Apelação Cível n.º 274, em que são apelantes, primeiro o Banco do Brasil, segundo João Wang, sendo que apelados os

mesmos. Acordam os Juízes da 4.ª Câmara do Tribunal de Apelação por conformidade de votos, negar provimento a ambas as apelações para confirmar, como efetivamente confirmam a sentença apelada. Assim decidem pelos motivos seguintes:

Diversas questões de direito discutiram-se nesta ação. A primeira consiste em saber se

a estipulação constante de escritura de locação pela qual o locador declara obrigar-se por si e seus herdeiros e sucessores equivale à c láusula de vigência de locação no caso de alienação e conseqüentemente, o registo do contrato de locação com tal estipulação

obriga o adquirente a respeitá-lo. A segunda consiste em saber se a inscrição de ação de renovação no registo público, em conformidade com o disposto no art. 281, do decreto n.º 4.857, de 9 de novembro de 1939, tem igualmente o efeito de obrigar o

adquirente posterior a êsse registo, a respeitar a renovação que fôr decretada, ou em outras palavras, se a sentença que fôr proferida na ação renovatória obriga o adquirente a respeitar a renovação.

Quanto à primeira questão, é fora de dúvida que a estipulação pela qual o locador se

obriga por si e seus herdeiros e sucessores, não tem o efeito de obrigar o futuro

adquirente do imóvel a respeitar o contrato de locação. As locações “o presente contrato

que é válido entre as partes, herdeiros e sucessores empregada no contrato de locação do

[111]

prédio n.º 49 (fls. 64), e “o presente contrato que é válido entre as partes, herdeiros ou sucessores usada no contrato de locação do prédio n.º 47 (fls. 71), geralmente

empregadas em tôdas as escrituras, são entretanto, desnecessárias, por isso que já a lei expressamente dispõe, no art. 928 do Código Civil que a obrigação, não sendo personalíssima, opera, assim entre as partes, como entre os seus herdeiros, e o art.

1.198 dispõe também, que “morrendo o locador ou o locatário transfere -se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado, donde se evidenc ia a desnecessidade da estipulação de que se cogita em relação aos herdeiros. No que respeita a sucessores há

que distinguir os que são por t ítulo universal tais como o legatário; o donatário universal ou a título universal conquanto segundo Savigny (Di r. Romano, v, parágrafo 105 o donatário é considerado sucessor singular); os credores que adquirem um direito geral

de penhora sôbre todos os bens que compõem o patrimônio do seu devedor, etc. E‟ a essa sorte de sucessores que se pode considerar como re ferente à estipulação do que se trata.

Quanto ao sucessor singular, nomeadamente o adquirente, a lei expressamente

estabelece que não ficará obrigado a respeitar o contrato de locação, se nela não fôr consignada a cláusula de sua vigência no caso de al ienação, e constar do registo público. Os têrmos do dispositivo legal (Cód. Civ., art. 1.197), não permitem considerar-

se o adquirente na generalidade da designação “sucessores”, na estipulação sem a menor referência à hipótese de alienação, tal como determina a lei.

Êsse é também o parecer do exímio jurista e conceituado magistrado M. M. Serpa Lopes que abordando precisamente caso semelhante, escreve, em seu apreciado “Tratado dos

Registos Públicos” (vol. III, n.º 344-A, pág. 100). – Não é suficiente o simples emprêgo das expressões herdeiros e sucessores, a menos que outros elementos do contrato indiquem, de parte dos contratantes, uma inequívoca vontade de manter vigente o

contrato, no caso de alienação. Fora daí, cumpre que a cláusula exista no contrato, consignando expressamente a subsistência da locação, no caso de alienação, e não por meio de deduções extraídas de elementos obscuros”.

Resulta, em conseqüência, que o registo de um contrato como os de que se trata, não

basta para obrigar o adquirente, por isso que o registo tem por fim ùnicamente tornar público o contrato. E‟ ainda mais, na própria lei, que se encontra sancionada essa interpretação, dispensa o art. 256 do decreto

[112]

n.º 4.857 de 9 de novembro de 1939, que “serão inscritos no livro 4, os contratos de

locação de imóveis com cláusula expressa da vigência contra o adquirente...” . Se não obstante êsse dispositivo foi o contrato inscrito sem conter cláusula assim expressa, nem por isso passará êle a valer contra o adquirente. O segundo ponto que se discute não

teve na sentença apelada, a verdadeira solução jurídica. Não há como jurìdicamente demonstrar que o adquirente não obrigado a respeitar uma locação vigorante, venha a

se tornar obrigado pelos efeitos de uma futura sentença, em ação contra o antigo

proprietário, que reconheça ao locatário o direito à renovação dessa mesma locação. Se a lei dispõe no art. 1.197 do Código Civil que o adquirente não ficará obrigado a respeitar o contrato de locação, se nêle não fôr consignada a cláusula de sua vigência no caso de

alienação; se êsse artigo do Cód. Civil não foi revogado por nenhuma outra lei, posterior, sendo ao contrário reforçado pelo disposto no art. 19, § 2.º, do decreto n.º 24.150 de 20 de abril de 1934, claro está, consoante aliás com o que determina êsse último

dispositivo, que sòmente no caso em que no contrato primitivo se tenha estipulado a cláusula que torne obrigatória a sua vigência no caso de alienação do prédio, poderá essa estipulação figurar no contrato renovado judicialmente a menos que tenha o locador

concordado, expressamente na ação de renovação, em que se introduza na nova locação essa cláusula inexistente no contrato primitivo.

Assim sendo, pois, e se no contrato renovado não houver estipulação daquela cláusula, porque não existia semelhante estipulação no primitivo contrato fora de dúvida será que

o locador, não obstante obrigado pela sentença que decretou a renovação do contrato, pode alienar o prédio sem que fique o adquirente obrigado, por sua vez, a respeitar êsse novo contrato de locação por isso mesmo que nêle, como no primitivo, não foi

estipulado, nem judicialmente decretada a cláusula de que se trata. E se o locador pode alienar o imóvel em tais condições, quando já haja passado em julgado a sentença de renovação da aludida locação – por que não o poderia fazer do mesmo modo, quando a ação de renovação estava apenas ajuizada?

Por outro lado se o adquirente de um prédio cuja locação tenha sido judicialmente renovada, não é obrigado a respeitá-la, se no contrato renovado não estiver estipulada a cláusula de sua vigência no caso de alienação; - por que motivo teria êle de ficar obrigado por essa mesma locação

[113]

renovada, quando a aquisição se efetua estando apenas ajuizada a ação?

Dessas considerações, resulta fora de dúvida, que a inscrição da ação renovatória no Registo Público, não pode ter efeito de sujeitar o adquirente do prédio, posterior a êle, a respeitar a nova locação que por ventura venha a ser decretada pela sentença que fôr

proferida nessa ação, salvo na hipótese em que no contrato a renovar tenha sido estipulado a cláusula de sua vigência no caso de alienação, e em conseqüência possa a sentença determinar que com essa mesma cláusula se opere a renovação.

No que respeita ainda o direito que o locatário, ora apelado, pretende ter de que seja

respeitado, pelo adquirente, ora apelante, a sua locação no caso de ser renovada por sentença na ação renovatória resta examinar a situação resultante do encargo que assumiu o adquirente vis-a-vis dos vendedores, locadores, na escritura de aquisição dos

prédios. Consta, com efeito, da escritura de aquisição (fls. 7 v. e 9), que a venda se efetuava com a ressalva expressa de não responder o vendedor pelo resultado da ação de renovação do contrato de locação que lhe move João Wang, pelo Juízo da 6.ª Vara

Cível. Aliás, no alvará de autorização concedido pelo Dr. Juiz da 2.ª Vara de Órfãos e Sucessões de inventariante do espólio ao Dr. Antônio Valentim do Nascimento Varela, para venda, ao apelante Banco do Brasil, do prédio n.º 47, da Praça Tiradentes, foi

estabelecido que “assumiria o referido estabelecimento de crédito o encargo de liquidação com João Wang a ação de renovação de locação proposta contra o espólio, ficando êste exonerado de tôda e qualquer responsabilidade” (fls. 11). Qual a

significação e qual o alcance dessa estipulação? De que maneira poderia o locador

exonerar-se de tôda e qualquer responsabilidade em relação ao locatário, se efetuar a

venda do prédio locado?

Vejamos primeiramente qual é, em tal caso, a responsabilidade do locador. Sua

responsabilidade decorre de sua obrigação, é, conforme prescreve a lei, garantir ao locatário, durante o tempo do contrato, o uso pacífico da coisa. (Cód. Civil, art. 1.189, II).

Se acontece o locador vender o prédio locado, não havendo no contrato de locação consignada a cláusula de sua vigência no caso de alienação, e se contrato de venda não se tiver o adquirente obrigado a respeitar aquela locação, e por isso se queira valer do

direito que lhe assegura o art. 1.197 do Código Civil, terá o locatário contra o locador, ação de perdas e danos, com fun-

[114]

damento no disposto pelo art. 1.056 do Código Civil. E poderia o locador em tal hipótese exonerar-se da responsabilidade de indenizar perdas e danos ao locatário, transferido ex

propria autoritate essa responsabilidade ao adquirente? Certamente não, por isso que a transferência da responsabilidade ao adquirente importaria em renovação subjetiva por substituição do devedor, e é canon de direito que não se pode substituir o devedor em

anuência do credor. Em conseqüência, sem embargo de convenção, continuaria o locador responsável para com o locatário.

Poder-se-ia pretender que por aquela estipulação tivessem as partes a intenção de convencionar um direito regressivo do vendedor contra o adquirente, no caso e ser

aquêle demandado por perdas e danos pelo locatário. A estipulação de que se trata não permite, porém, essa interpretação; primeiramente porque seria mister para êste efeito que as partes o tivessem explìcitamente convencionado; em segundo lugar, nos próprios

têrmos da estipulação, pela qual o vendedor exonerava -se de tôda e qualquer responsabilidade em relação ao locatário, não se poderia compreender como ficando êle, não obstante, sujeito a ser demandado pelas perdas e danos por inexecução de sua

obrigação, embora com ação regressiva contra o adquirente. Assim, portanto, o único meio pelo qual podia o locador ao vender o imóvel locado, exonerar -se de tôda e qualquer responsabilidade, para com o locatário, seria mediante a obrigação assumida

pelo adquirente de respeitar o contrato de locação. Na espécie não convinha, porém, uma estipulação expressa nesses têrmos, por isso que o direito do locatário estava em litígio. Daí a expressão usada no Alvará de autorização já referido, declarando-se que

“assumia (o adquirente ora apelante) o encargo de liquidar com João Wang a ação de renovação proposta contra o espólio, ficando êste exonerado de tôda e qualquer responsabilidade” (fls. 11). Ora, como poderia o adquirente liquidar com o locatário a

ação de renovação proposta de modo a que ficasse o locador exonerado de tôda e qualquer responsabilidade?

E‟ evidente que o único meio seria transacionando diretamente com o locatário, e, na hipótese de ser impossível a t ransação, sujeitar-se à sentença que fôsse afinal proferida

na ação. Essa é a interpretação que se pode razoàvelmente dar à estipulação contida no contrato de compra e venda dos prédios de que se trata. O apelante realizou uma alsa more; uma compra arriscada, no sentido de ter que even-

[115]

tualmente suportar os ônus da locação, no caso de ser êle renovado pela sentença a ser

proferida na ação do locatário. Quanto à segunda apelação é igualmente de negar-se prèviamente, por isso que longe de estar demonstrado qualquer malícia por parte do 2.º apelado, a questão controvertida é manifestamente suscetível de apreciação segundo o ponto de vista em que a colocou o mesmo 2.º apelado.

Custas ex-lege.

Rio, 19 de dezembro de 1941. – Edmundo de Oliveira Figueiredo, presidente. – Henrique Fialho, relator. – Foi voto vencedor o Sr. Desembargador Raul Camargo, revisor do recurso. – H. Fialho”.

A 3.ª Câmara Cível do mesmo Tribunal de Apelação do Distrito Federal, também entendeu que

“não constando da escritura de arrendamento nenhuma cláusula expressa de que o contrato continuaria em vigor se o prédio fôsse transferido a novo proprietário, possível não é a inscrição do contrato no Registo de Imóveis, à vista do disposto no art. 256, do decreto n.º 4.857, de 1939.

Mesmo inscrito o contrato, tal inscrição, sem a referida cláusula, não obrigaria o novo adquirente do imóvel, nos têrmos do art. 1.197 do Código Civil” (Ac. da 3.ª Câmara Cível do Trib. de Ap. do D. Federal, de 18 de agôsto de 1944, na Apelação n.º 4.573, interposta de sentença proferida

pelo Juiz dos Registos Públicos, in Diário da Justiça de 9 de outubro de 1944). Também o Tribunal de S. Paulo: “o adquirente do prédio não ficará obrigado a respeitar o contrato de locação se dêste não constar cláusula de sua vigência no caso de alienação e se o aludido

contrato em que essa cláusula estiver consignada não tiver sido registado regulamente” (Ac. de 29 de abril de 1924, Rev. dos Trib., vol. 50, pág. 162-164) (1).

429. POSIÇÃO DO ART. 1.197 DO CÓDIGO CIVIL, EM FACE DA ATUAL LEGISLAÇÃO DO INQUILINATO (1). – O art. 16 do decreto n.º 9.669, de 1946, determina a seguinte regra, no caso

de alienação do imóvel locado: “ressalvado o disposto no art. 1.197 do Código Civil, o adquirente (Código Civil, art. 530) é obrigado a respeitar a locação, podendo rescindi -la nos têrmos do art. 18”. Comentando êsse dispositivo, o eminente jurista Prof.

(1) – Cfr.: Rev. dos Trib., vol. 46-523; 65-621; 73-117; 54-165; Oliveira Castro, Cód. Civil Aplicado, III, ns. 662 e 663,

págs. 302-303; IV, n.º 743, pág. 301. (1) – Abordamos êsse problema excepcionalmente. Dada a natureza da presente obra, evitamos, o mais possível matéria de caráter transitório.

[116]

Agostinho Alvim (2) acusa o artigo de estar mal redigido, gerando confusão. De fato assim o é. A 1.ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Minas Gerais (Ac. de 30 de janeiro de 1947, in Diário de 14 de março de 1947) sustentou o seguinte:

“O artigo do Código Civil ressalvado declara que o locador não é obrigado a respeitar a locação, se não fôr consignada a cláusula de sua vigência no caso de alie nação e essa cláusula constar do registo público. Assim, se ao dito inciso fôr dada uma interpretação

puramente verbal, a conclusão é a de que o primeiro membro do dispositivo tornou sem efeito o segundo, mantendo-se integral o preceito do art. 1.197. Mas essa interpretação contravém princípios elementares de hermenêutica, quais os de que não pode haver disposição inútil na lei, nem se deve admitir contradição no mesmo texto legal”.

Em resumo: sustenta-se que a mudança de proprietário não rescinde a locação, com ou sem inscrição da locação.

Mas o ponto de vista preponderante na jurisprudência é precisamente outro: o da subsistência do art. 1.197 do Código Civil, de modo que a manutenção da locação, no caso de alienação do imóvel locado, sòmente pode ser assegurada se expressamente pactuada a inscrição no Registo de Imóveis.

(2) – Agostinho Alvim, Lei do Inquillinato, pág. 53.

[117]

SERVIDÕES

430. SERVIDÕES E SEU CONCEITO: O PROBLEMA DAS SERVIDÕES EM FACE DO REGISTO IMOBILIÁRIO. – No que diz respeito às servidões, o n.º X, letra “a”, do art. 178, prescreve a formalidade da inscrição em relação aos títulos das servidões não aparentes. O que

nos cumpre investigar é qual o papel representativo da inscrição em face das demais servidões , inclusive as denominadas servidões legais, que não passam de restrições legais ao exercício do direito de propriedade, mas que, apesar disso, no intuito prático de maior compreensão, a elas

nos referiremos com a denominação de servidões legais.

Sob a denominação de servidões, entendeu-se nela compreendidos não só os ônus incidentes

sôbre os imóveis como ainda certas relações de ordem pessoal, como o usufruto, o uso e a habitação, que determinam uma vinculação entre um imóvel e determinada pessoa. Essa

extensão da noção de servidão, partida principalmente dos glosadores e post -glosadores, sofreu a influência reacionária da revolução francesa contrária a tôda idéia de sujeição do indivíduo à terra, resultando daí passarem os institutos do usufruto, uso e habitação a ter um lugar distinto, sem qualquer classificação no domínio das servidões.

Tais pontos de vista foram adotados pelo Código Civil, que classificou como Direitos Reais sôbre a coisa alheia tanto as servidões como o usufruto, o uso e habitação, sem os incluir como uma espécie de servidão, ou como uma servidão pessoal.

Considerado, assim, o instituto das servidões, deu-nos o Código Civil, no art. 695, o seguinte conceito de servidão predial:

“Impõe-se a servidão predial a um prédio em favor de outro, pertencente a diverso dono. Por ela perde o proprietário do prédio serviente o exerc ício de alguns dos direitos dominicais, ou fica obrigado a tolerar que dêle se utilize para certo fim, o dono do prédio dominante”

431. SERVIDÕES LEGAIS OU RESTRIÇÕES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. – Antes de tudo é ne-

[118]

cessário não confundir as servidões prediais com as denominadas legais, que alguns juristas

ainda distinguem em legais e naturais. Só uma analogia existe entre ambas: é que uma e outra não possam, na realidade, de restrições à propriedade, inerentes ao seu modo de ser.

O nosso Código Civil não consagrou a denominação de servidões legais para essa espécie de restrições impostas à propriedade. A matéria veio regulada em várias de suas disposições.

Assim, o direito de passagem forçada (art. 559) pelo qual o dono do prédio rústico ou urbano, que se achar encravado em outro, sem saída pela via pública, fonte ou pôrto, tem o direito a reclamar do vizinho que lhe deixe passagem, fixando-se a esta, judicialmente, o rumo quando

necessário; do mesmo modo o das águas (art. 563) em que o dono do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior; ainda, a canalização em proveito agrícola ou industrial das águas através dos prédios rústicos alheios, não sendo chácaras ou

sítio murados, quintais, pátios, hortas ou jardins (artigo 567). Nas relações de vizinhança, há, quanto à construção, o direito de assentar a parede divisória até meia espessura no terreno contíguo (art. 580), o de travejar (art. 581), o de uso temporário (art. 597), etc.

Tais são as mais importantes restrições legais.

O Direito Romano desconhecia essa figura de servidões, nem como tal se pode considerar a

quasi-servitus ou as servidões naturais. Foi a partir do Código Civil francês que tomou forma definida, como um meio de contornar a concepção da propriedade, então considerada absoluta, por um princ ípio de direito natural.

Por conseguinte, o critério já acima exposto, seguido pelo nosso Código, é idêntico ao adotado

pelos Códigos germano e suíço que distribuíram a matéria concernente às servidões legais em vários títulos relativos à propriedade e seus limites e nos inerentes às relações de vizinhança.

A evidência dos fatos é que a lei concede ao proprietário o direito a uma situação que importa em restringir a propriedade vizinha.

Assim sendo, para constituição dêsse estado de restrição, impõe-se, além dos pressupostos

ditados pela lei, um ato jurídico que o reconheça ou uma sentença. E daí surgir o problema: é necessário o registo dêsse título reconhecitivo da restrição legal?

O princ ípio comum é o de que as servidões legais escapam ao registo imobiliário, em geral por lhes faltar conteúdo transcritível e pela sua íntima natureza, atento prescindir de título para sua existência (1).

(1) – Luzzatti, Della Transcrizione, 4.ª ed., 1905, pág. 152.

[119]

Trata-se de uma regra absoluta, em relação às servidões legais de utilidade pública, subordinadas, como estão, a um regime legal especial, v. g., proibição de não ultrapassar determinada altura nas proximidades da zona de defesa militar.

Quando se cogita de servidões legais de utilidade privada, a sua exclusão do Registo de Imóveis

é admitida na doutrina, porém com caráter restrito (2). Ocorre a mesma situação do usufruto legal, como o do pai sôbre os bens do filho sob o seu pátrio poder. Assim, onde quer que as servidões legais encontrem na sua própria existência a determinação do modo do exercício, não

há mister de inscrição; nos casos, porém, em que o exercício da servidão legal exija um ato ou uma sentença, e o seu conteúdo seja compatível com a natureza de uma servidão, a transcrição

deve ser efetuada. Os tipos que apresentam são extremamente variáveis como igualmente suas

modalidades e natureza, de modo que, em dadas circunstâncias, essas exceções se tornam necessárias.

Se umas surgem como ônus reais mas destituídas dos característicos essenciais às servidões, se outras aparecem como simples direitos e obrigações, há, entretanto, as que se mostram como genuínas servidões.

Por isso, são distribuídas em três categorias (3), a saber:

1.º) Servidões consistentes em obrigações meramente negativas, de abstenção, fundadas sôbre o princ ípio neminem laedere.

Destina-se a tutela o exercício livre do direito de propriedade, sem produzir nenhum elemento de subordinação entre os dois prédios.

Nessa categoria, estão compreendidos os casos previstos nos artigos 581 a 585 do Código Civil.

As restrições consignadas nas supracitadas disposições não precisam, é claro, estar sujeitas à transcrição. Dirigem-se ao proprietário, à liberdade dêste de fazer ou não fazer alguma coisa.

2.º) Servidões que importam numa recíproca tolerância dos ônus derivantes de vizinhança. Enquanto no primeiro grupo as limitações são unilaterais, neste segundo grupo a tutela se exercita bilateralmente, mediante limitações recíprocas, visando não simplesmente evitar danos

parar a propriedade alheia, mas prevenir e dirimir os conflitos que possam resultar entre proprietários vizinhos, em conseqüência do exerc ício do direito de propriedade.

(2) – N. Coviello, Transcrizione (2.ª ed., 1924), n.º 319, pág. 323; Luzzatti, ob. cit., I, n.º 195, pág. 153. (3) – N. Coviello, ob. cit., II, n.º 325; Scuto, Delle Servitù Prediali, págs. 196-205.

[120]

São as disposições que figuram nos arts. 573 e 575 do Código Civil.

Essas servidões têm na lei o seu único fundamento ou t ítulo constitutivo, o que as afasta, em todos os sentidos, da transcrição no Registo Imobiliário.

3.º) Servidões que, tutelando direitos diversos, trazem, como característico, compreender ônus de prestações positivas, dotadas e elementos de afinidade com a expropriação por utilidade pública.

Notável é a diferença entre esta última categoria e as demais , observa N. Coviello: em relação à

primeira, porque não se realiza através de uma simples abstenção, mas por meio da prestação de uma utilidade a outro imóvel; quanto à segunda, porque não representa uma recíproca limitação de propriedades vizinhas, mas limitações a cargo exclusivo de um imóvel produzindo

uma vantagem em benefício de outro. E a diferença vai desde o conteúdo até o próprio título. O título passa a ser necessário, a despeito de se tratar de uma restrição legal, atento conceder a lei apenas uma faculdade de aquisição de um direito, constituindo uma obrigação. Não outorga o direito real in natura, objetivado, mas só um direito pessoal de obtê-lo (4).

Êsses característicos aproximam de perto essas modalidades de servidões legais das servidões

prediais ordinárias, apenas observando-se a diferença de serem as últimas sempre oriundas das vontade do proprietário, manifestada através de um t ítulo, oneroso ou gratuito, ao passo que as primeiras são impostas pela lei, em razão da consideração de uma necessidade particular

(aqueduto ou passagem), mas que podem também derivar de uma convenção, se os proprietários estiverem de acôrdo, ou, em caso contrário, da sentença do juiz.

De acôrdo com êsses princípios, N. Coviello reputa necessária a transcrição nos seguintes casos:

a) no caso de aquisição da co-propriedade de um muro divisório. Entre nós, os tapumes divisórios entre propriedades presumem-se comuns, sendo obrigados a concorrer, em partes

iguais, para as despesas de sua construção e conservação, os proprietários dos imóveis confinantes (Cód. Civ., art. 588, § 1.º) .

A presunção é juris tantum. Provado que o muro foi construído por um dos confinantes, os demais são obrigados a concorrer em partes iguais com as despesas, sendo assim a co-

propriedade do mesmo dependente, para sua aquisição, dêsse pagamento, essa aquisição está, inquestionàvelmente, subordinada à transcrição.

(4) – N. Coviello, ob. cit., I, pág. 325.

[121]

b) Está subordinada à transcrição a aquisição de servidões de passagem e de aqueduto (5), servidões essas que correspondem, em nosso direito, aos arts. 59, 563 e 567 do Código Civil.

c) Devem ser transcritas as convenções relativas às servidões legais previstas no art. 545 do

Cód. Civil italiano (6). Essas servidões correspondem às previstas no art. 565 do nosso Código Civil, segundo o qual, o proprietário de fonte não captada, satisfeitas as necessidades do seu consumo, não pode impedir o curso natural das águas pelos prédios inferiores.

Acrescenta N. Coviello que, exceção dêsses casos, não acredita na existência de outros suscetíveis de transcrição.

Mas, ainda observa o citado autor, se em relação a essas servidões legais, pertinentes à 3.ª categoria, a convenção sôbre elas pode ser t ranscrita, segue-se também que, não tendo havido acôrdo, mas uma sentença impondo-a, esta pode ser transcrita também?

Essa questão, já focalizada por Luzzatti (7), foi diversamente apreciada por êle.

No seu modo de ver, as sentenças devem ser transcritas, mesmo as que tiverem por objeto

apenas regular o exercício do direito de servidão, pois as reputa como portadora, de um cunho todo especial, de vez que o seu papel não é declaratório, mas conciliatório de direitos, exercendo uma função igual à de uma convenção.

A sentença, refere o citado jurista, atribui direito novo, sendo a transcrição, em qualquer caso, uma medida de prudência.

N. Coviello é de opinião contrária.

Destaca não ser argumento aceitável o extraído de uma necessidade de cautela, pois é isso inconciliável com o critério interpretativo da lei.

E quanto à necessidade da transcrição, não encontra justificativa legal.

Diz que a referência da lei a atos não significa a inclusão da sentença, pois, se em sentido lato, a sentença pode ser considerada tal, não o é no sentido legal, de vez que as expressões ato e sentença são contrapostas, servindo a primeira para indicar a declaração da vontade privada, e não a da autoridade judiciária.

Outrossim, nega que se possa recorrer à analogia. Vejamos a aplicação possível dêsses princ ípios doutrinários, calcados em outra legislação, frente ao nosso direito (8).

(5) – N. Coviello, ob. cit., II, pág. 300. (6) – N. Coviello, ob. cit., II, pág. 301.

(7) – Luzzatti, ob. cit., n.º 202. (8) – N. Coviello, ob. cit., II, n.º 322.

[122]

N. Coviello ressalta, com muita argúcia, que em todos êsses casos a convenção não proporciona uma simples ocasião do nascimento do direito real à restrição, mas dêle é, senão a causa única, pelo menos o que êle denomina de concausa (9).

Laurent (10) situa a questão por outro modo: intervem no caso uma transferência de direitos reais imobiliários e desde que tal se caracterize, impõe-se a transcrição, v. g., na convenção relativa à concessão da meação no muro divisório.

A questão não se apresenta diversa em nosso direito, senão pelo motivo de que, em relação às

servidões prediais ou constituídas por fato do proprietário, o ato voluntário de restrição ao domínio só se constitui com a respectiva inscrição, incidindo na regra geral a constituição de ônus reais sôbre imóveis.

As restrições legais ou servidões legais não foram de um modo geral qualificadas como

servidões pela nossa lei, e assim, por conseqüência lógica, não estão subordinadas, constitutivamente, à inscrição imobiliária.

Entretanto, no que respeita ao direito de passagem forçada, o Código Civil, no art. 562, qualifica -o de servidão ao dizer que “não constituem servidão as passagens e atravessadouros particulares, por propriedades também particulares, etc”. Ainda, no art. 705 fala em servidão de

trânsito. Tudo isso indica que quando as restrições legais ao direito de propriedade participam da mesma natureza, quanto ao seu conteúdo, das servidões em geral, e quando tal direito é assegurado por meio de convenção ou decorre de uma sentença nada obsta a que seja inscrito.

Em certos casos, mesmo, essa inscrição é obrigatória, como no em que, por meio de convenção, se estabeleça o condomínio de parede meia, no em que se estabeleça e se regule o modo de ser exercitada uma passagem dágua para fins industriais. Há aí uma verdadeira transmissão de direitos reais, embora se trate de um direito pré-assegurado em lei.

Assim não aceitamos, dentro do nosso direito, a doutrina de N. Coviello, restringindo a inscrição das servidões legais ao caso tão só de vierem elas estabelecidas em título, excluindo-a no caso de sentença.

Mais ajustado é à nossa legislação o ponto de vista de Luzzatti, já referido.

Verdade é que, nos casos em que a lei quis se referir a título oriundo da autoridade judiciária, o fêz de modo expresso, ora consignando a palavra “sentença”, ora usando a expressão “julgado”.

(9) – N. Coviello, ob. cit., II, pág. 325. (10) – Laurent, Droit Civil, XXIX, n.º 80, pág. 96.

[123]

Todavia, ao nosso ver, não se deve partir do ponto de vista do título por fôrça do qual o direito se origina, mas do próprio direito.

Se êste, por sua natureza, exige transcrição, ela se fará, a despeito de se fundar numa convenção ou numa decisão judiciária.

Não há nenhuma aplicação por analogia, mas aplicação direta de um direito.

Demais, em nosso direito, a expressão atos não pode surgir com o significado restrito de uma expressão da vontade individual.

No n.º II da let ra “b” da disposição ora comentada, está consignada a sujeição à transcrição “dos títulos ou a inscrição dos atos inter-vivos relativamente aos direitos reais sôbre imóveis”.

O uso das duas expressões títulos e atos demonstra um objetivo amplo e não limitado aos atos convencionais.

Acresce que o art. 250 expressamente se refere às servidões mesmo aparentes, como sendo um direito subordinado à transcrição.

432. SERVIDÕES PREDIAIS E SEUS CARACTERÍSTICOS. – Diferentemente das servidões legais, que decorrem de imperativo legal, as servidões prediais, nascem de um ato de vontade, manifestado através de um idôneo meio legal.

Os seus principais característicos são os seguintes: 1.º) Constituem limitações da propriedade, formando uma exceção ao direito comum, pelo que não se presumem (C. Civ., art. 696). 2.º) As servidões devem produzir uma vantagem ao prédio domi nante. 3.º) As servidões são, em regra,

indivis íveis, por isso que os serviços relativos ao seu objeto, formam um só todo, e que se não podem considerar como realizados, senão integralmente (1). Assim, subsistem as servidões, no caso de partilha, em benefício de cada um dos quinhões do prédio dominante, e continuam a

gravar cada um dos do prédio serviente, salvo se, por natureza ou destino, só se aplicarem a certa parte de um, ou de outro (C. Civ., art. 707). 4.º) As servidões são direitos reais sôbre a coisa alheia, mas direitos acessórios, porque permanecem ligados ao prédio dominante de uma

maneira inseparável; “praediis inhaerent” (2). 5.º) As servidões têm caráter perpétuo. Êsse cunho de perpetuidade decorre lògicamente do seu caráter de acessoriedade, ligando-as ao prédio, de tal sorte que, se são necessárias ao

(1) – Pacif ici-Mazzoni, Inst., III, parte 2.ª, n.º 190.

(2) – Planiol-Ripert, Picard, Traité, III, n.º 891.

[124]

uso do prédio dominante, mantêm-se enquanto êste se mantiver. Todavia não se trata de um

atributo essencial mas simplesmente natural, o que faculta a sua modificação, mediante convenção (3). 6.º) O contendo das servidões não pode ser um facere, isto é, uma prestação pessoal do proprietário do imóvel serviente: servitus in faciendo consistere nequit. 7.º) As

servidões pressupõem a existência de dois prédios pertencentes a diverso dono, o que decorre da sua própria natureza de direito real sôbre a coisa alheia: nemini res sua servit.

Êste princípio, porém, comporta algumas observações que passaremos a fazer.

A) Condomínio. – Tem sido discutida a questão sôbre se a servidão pode ser instituída ou mantida, no caso de pertencer um prédio a uma pessoa, e o outro a esta mesma pessoa, porém em co-propriedade.

Pacifici-Mazzoni (4), refutando o ponto de vista de Aubry et Rau, entendem que, no caso de co -propriedade, sòmente é possível subsistir a servidão, se numa pessoa se reunir parcialmente a propriedade do fundo dominante e a do fundo serviente.

Seguiu entre nós, essa doutrina J. M Carvalho Santos (5), esclarecendo que, no condomínio, é

permitido manter-se a servidão, mas nunca instituir. Distingue-se a conservação das servidões da aquisição destas.

Tal ponto de vista tem sido, entretanto, fortemente combatido. Venzi (6), acha que se não deve levar o princípio a tais extremos. Diz êle:

“Pràticamente pode se tornar útil constituir-se uma servidão em proveito de um ou de

outro prédio; com isso não só o co-proprietário que não é também proprietário do outro prédio, pode adquirir sôbre este direito, que de outro modo não teria, mas também o proprietário exclusivo de um dos prédios pode adquirir sôbre o prédio comum um direito

que não teria em virtude só do condomínio. Estas exigências da vida prática que substancialmente não ofendem os direitos de ninguém, e cuja satisfação pode redundar em vantagens à economia da propriedade rústica e urbana, não podem ser desprezadas em conseqüência de sutilezas jurídicas, mais ou menos vistosas”.

(3) – Planiol-Ripert, Picard, Traité, III, n.º 892. (4) – Pacif ici-Mazzoni, Tratatto delle servitù prediali, III, página 23. (5) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 126.

(6) – Venzi, not. “b”, in Pacif ici-Mazzoni, Inst. III, parte 3.ª, pág. 17.

[125]

No mesmo sentido é a opinião de Butera (7), acentuando que o titular de um dos prédios é um

sujeito individual, ao passo que do outro são vários titulares, o que equivale dizer, um proprietário diverso.

Parecem-nos bem aceitáveis êsses argumentos.

B) Res nullius. – Venzi (8), sustenta a possibilidade da constituição de uma servidão recaindo sôbre um prédio sem proprietário, pois que, argumenta, a servidão atinge substancialmente o prédio considerado em si mesmo, abstração feita da pessoa do proprietário.

Parece que também admitem essa forma de servidão, entre nós Filadelfo Azevedo (9) e Pontes de Miranda (10), êste último assim se expressando:

“Se o prédio serviente está abandonado, adesposta, então o direito se exerce e se exercerá em tôda a afirmação de sua atividade, isto é, diretamente, erga omnes. A sociedade garante o direito de servidão; e não obriga a ninguém porque êsse direito é

prescindível. Ora se pode existir servidão sem dono do prédio serviente é que não há relação direta entre o proprietário do prédio dom inante e êle”.

O que há, porém, a salientar é que uma servidão sôbre um prédio sòmente é suscet ível de inscrição, mediante sentença que declare consumado o usucapião. Faltando o proprietário do prédio serviente, não pode haver a convenção necessária à constituição da servidão.

C) Vicinitas. – Devem os prédio ser vizinhos, ou então de uma tal relação topográfica entre eles que se torne possível a um prestar ao outro – ainda que mediatamente – o serviço (11).

433. ESPÉCIE DE SERVIDÕES. – As servidões podem ser: a) positivas e negativa; b) aparentes e não aparentes; c) contínuas e descont ínuas.

As servidões são positivas, quando autorizam o proprietário do prédio dominante a exercer

diretamente os atos inerentes ao uso sôbre o prédio serviente; são negativas, aquelas que autorizam ùnicamente a obstar ao proprietário o livre uso do prédio serviente, (como a servitus altius non tollendi).

(7) – Butera, Delle Servitù, III, pág. 175.

(8) – Venzi, ob. cit., pág. 18. (9) – Filadelfo Azevedo, Destinação do Imóvel, pág. 59. (10) – Pontes de Miranda, Man. Do Cód. Civil, XVI, págs. 146-167.

(11) – De Ruggero, Inst., II, § 82.

[126]

Aparentes, são as servidões que se manifestam por meios visíveis, como a porta, uma janela,

um aqueduto; não aparentes, as que não possuem sinais visíveis de sua existência, como por exemplo, uma servidão de não construir mais alto.

Contínuas são as servidões que se exercem, independentemente de fato ou ato da parte daquele a quem pertencem; descontínuas, as que dependem dêsse fato.

Pode haver, ainda, uma combinação dessas várias espécies, formando as seguintes categorias:

1.º) servidões contínuas e aparentes; 2.º) servidões cont ínuas e não aparentes, como a servidão de não construir; 3.º) servidões descont ínuas e aparentes, como a servidão de passagem, quando existe um caminho traçado; 4.º) servidões descontínuas e não aparentes (1).

434. CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES. – As servidões oriundas do fato do homem podem ser

constituídas pelas seguintes formas: 1.º) Por atos entre vivos. Êste ato tanto pode ser unilateral como bilateral.

2.º) Por disposição de última vontade. E‟ lícito a um proprietário de imóvel deixá -lo em herança ou legado sujeitando-o, v. g., a um direito de passagem, ou mesmo pode legar isoladamente êsse direito para ser exercido sôbre certo imóvel da herança (1).

3.º) Por destinação do proprietário. Essa forma ocorre quando uma pessoa estabelece entre dois

prédios que lhe pertencem um estado de fato que constituiria uma servidão, se se tratasse de dois prédios pertencentes a proprietários diversos (2).

4.º) Por ato judicial. Esta maneira de constituir servidão sòmente é admissível quando, tendo em vista a comodidade da divisão, o interêsse das partes e a igualdade da partilha, o juiz, nas ações

divisórias, a estabelece na parte do prédio atribuída a um em proveito da parte aquinhoada a outro (3).

5.º) Por usucapião. As servidões podem ser constituídas por usucapião: a) pela posse incontestada e contínua por dez ou vinte anos, nos têrmos do art. 551, do Código Civil, s ervindo

de título a sentença que julgar consumado o usucapião (C. Civ., art. 698); b) nas mesmas condições, porém mediante o prazo de trinta anos, se o possuidor não tiver título (C. Civ., art. 698, § único).

(1) – Planiol-Ripert, M. Picard. ob. cit., III, n.º 899.

(1) – Lafayette, Dir. das Coisas, § 133; Lacerda de Almeida, ob. cit., II, § 104. (2) - Planiol-Ripert, M. Picard. ob. cit., III, n.º 966; P. Mazzoni, Inst., III, p. 2.º, pág. 274; Lacerda de Almeida ob. cit., Loc. cit.; Lafayette ob. cit., loc. cit.,; Filadelfo Azevedo, Dest. do Imóvel, págs. 56-115.

(3) – Lacerda de Almeida, ob. cit., II, pág. 52.

[127]

435. REQUISITOS DA CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES. – Estabelecidas mediante contrato,

êste deve obedecer à forma comum estatuída para os contratos que objetivam coisa imóvel. Assim a escritura pública é da substância do ato, se o prédio serviente tiver valor superior a um mil cruzeiros (C. Civ., art. 134, n.º II) (1).

Também, em relação ao que constitui a servidão é necessário que se trate de proprietário do

prédio serviente, não podendo, por essa razão, constituí-la o condômino, a menos que o prédio serviente lhe venha a ser atribuído, em consequência de partilha ou de adjudicação (2).

Pela mesma razão não podem constituir servidões:

1.º) O nu proprietário, no caso de usufruto, exceto se a servidão não ocasionar prejuízo ao direito do usufrutuário, ou se houver o consentimento dêste (3).

2.º) O senhorio direto, na enfiteuse.

3.º) O usufrutuário.

4.º) O credor anticrético.

5.º) O marido, sem a outorga da mulher.

Uma questão surge na doutrina: pode o devedor hipotecário constituir uma servidão no prédio gravado de ônus hipotecário?

Apoiado em Dídimo da Veiga, Laurent, Demolombe e Pacifici -Mazzoni, J. M. Carvalho Santos (4), consigna a doutrina de que o devedor hipotecário não se encontra impedido de constituir servidão sôbre o prédio hipotecado, salvo ao credor hipotecário o direito de pedir refôrço, e, na

falta, excutir o prédio hipotecado, se as servidões constituídas produzirem a redução do valor do prédio a ponto de torná-lo insuficiente para garantir a dívida.

Esta é inegàvelmente a doutrina seguida pela maioria dos juristas que se ocuparam da matéria (5).

Mas alguns dêsses autores fazem certas restrições ao princ ípio acima visto.

Em primeiro lugar, distinguem as servidões constituídas e inscritas antes da inscrição do ônus hipotecário, caso em que são plenamente válidas e prevalecendo sôbre a hipoteca, das servidões inscritas posteriormente à inscrição da hipoteca.

(1) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 139. (2) – Planiol-Ripert e Picard, ob. cit., III, pág. 951. (3) – Pacif ici-Mazzoni, Tratatto delle servitù, III, n.º 58.

(4) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 143. (5) – Aubry et Rau, Droit Civil, III, § 250; Butera, ob. cit., III, n.º 139; Melucci, II Sistema Ipotecario II, pág. 10; Bianchi, Delle Ipoteche, II, n.º 528; Chironi, Tratatto dei Privilegii e delle Ipoteche, II, n.º 369; Guillouard, Traité des Privilèges & Hipothèques, III, n.º 1.586.

[128]

Neste último caso, sobretudo Chironi e Bianchi, não negam que o devedor hipotecário, por

conservar o direito de propriedade, tem por essa razão, a liberdade de onerar o prédio com servidão, assim como lhe é conservado o direito de alienar.

Mas certas limitações são opostas.

Assim, comenta Bianchi (6):

“Ao proprietário não é lícito piorar a condição do credor inscrito, nem o que tiver adquirido a servidão para o seu prédio pode pretender exercitá-la, em prejuízo dêle.

Tenha transcrito o seu título, ou se trate de servidão imposta por convenção ou sentença; prove também a posse trintenal, ou o fato que der lugar à servidão por destinação; a inscrição anterior da hipoteca, resultante dos registos públicos do oficial, é

obstáculo ao exercício do seu direito; poderá tocar-lhe, contra o proprietário do prédio serviente, uma ação de indenização, principalmente se a servidão fôr a título oneroso, mas não poderá exercitar o direito real de servidão, em prejuízo do direito real da hipoteca anteriormente adquirido, erga omnes, em virtude da inscrição.

A faculdade de alienar, que o proprietário do imóvel hipotecado conserva nada obstante a constituição da hipoteca, não é obstáculo a esta solução; tal faculdade pressupõe a possibilidade, por parte do credor hipotecário, de penhorar a propriedade alienada em

mãos do terceiro possuidor e de exercitar a ação hipotecária sôbre a mesma. Ora, uma servidão predial não é expropriável sem a conjunta expropriação do prédio dominante, porque, se de um lado é declarada bem imóvel em razão do seu objeto, de outro não é considerada suscetível de hipoteca.

A isso se deve acrescentar que a mesma faculdade de alienar, deixada pela lei ao proprietário do imóvel hipotecado, pressupõe, no terceiro adquirente, a faculdade de liberar da hipoteca o objeto de sua aquisição, oferecendo o preço aos credores inscritos

e dando aos mesmos a vantagem de aumentá-lo, e de provocar a venda em hasta pública, no caso do preço oferecido não corresponder ao valor real da coisa alienada;

mas a servidão não sendo, por si mesma, suscetível de hipoteca, nem podendo ser

objeto de uma expropriação separada, não se presta à aplicação das formas especiais do juízo de purgação”.

Incontestàvelmente esta é a boa doutrina e a que melhor se ajusta ao nosso direito.

(6) – Bianchi, ob. cit., II, pág. 361.

[129]

Não se pode admitir, como pretendem Dídimo da Veiga e J. M. Carvalho Santos, que o credor hipotecário fique apenas com o direito de pedir o refôrço da garantia ou excutir o prédio

hipotecado, nem, por outro lado, se pode dar tôda fôrça ao princípio de que os credores hipotecários não poderão fazer vender livre de servidão o prédio hipotecado em garantia de seus créditos, se não tiverem um interêsse sério, porque sem êste não se justifica sua ação.

Se o credor hipotecário pedir refôrço de garantia, ipso facto reconhece a subordinação da sua

garantia real ao ônus real c riado posteriormente, o que se não pode conceber; se promover a execução do imóvel, tal só lhe seria permitido, com fundamento no n.º I do art. 762 – depreciação da coisa dada em segurança, desfalque de garantia – outro absurdo, pela mesma razão do primeiro.

A lição de Bianchi é, portanto, a única adaptável ao nosso sistema legislativo.

O ônus real, criado posteriormente ao ônus hipotecário, fica subordinado, quanto à sua subsistência, ao primado dêste último.

Isto se deduz claramente do art. 811 do Código Civil, preceituando in fine:

“Subsistem os ônus reais constituídos e transcritos, anteriormente à hipoteca, sôbre o mesmo imóvel”.

Quer isto significar, pelo argumento a contrário, que todos os ônus reais constituídos e

transcritos posteriormente à hipoteca não podem subsistir, tanto quanto sejam incompatíveis com a aludida garantia real: inclusione unius fit exclusio alterius.

Assim sendo, e contrabalançando com uma interpretação mais larga diremos: não fica vedada a constituição das servidões, apenas será um ônus real subordinado, quanto à sua subsistência, ao interêsse primordial do crédito hipotecário pré-inscrito.

Não cabe, portanto, ao credor hipotecário provar que o ônus real da servidão é prejudicial ao seu crédito. Mas ao titular da propriedade do prédio dominante incumbe a prova e a promoção dos meios necessários a demonstrar o não interêsse do credor hipotecário, o qual, a seu turno, não

pode, evidentemente, ir além do valor do seu crédito, limite definido do seu direito real sôbre o imóvel dado em garantia.

A regra a seguir, para essa última hipótese, se encontra com muita nitidez estabelecida por Melucci (7). Diz êle:

“Se o valor do imóvel hipotecado fôr tal que, pôsto de lado o fato da servidão posteriormente constituída, cubra

(7) – Melucci, ob. cit., loc. cit.

[130]

perfeitamente os interêsses do credor inscrito, o terceiro adquirente da servidão poderá

pedir a manutenção em seu favor, apesar da venda e adjudicação do imóvel em leilão no estado em que se encontrar; conciliando-se e respeitando-se, assim os direitos e os interêsses de ambos os titulares. Em todo caso, pois, se do preço do imóvel penhorado,

e adjudicado como livre de qualquer ônus, resultar um excesso após satisfeito o credor, será o mesmo devido ao terceiro adquirente da servidão”.

Do expôsto, pode-se chegar à seguinte conclusão: a) constituição de servidões sôbre um prédio hipotecado tem a sua subsistência condicionada à garantia hipotecária, a menos que o credor

hipotecário, por meio de convenção, haja consentido nessa constituição; b) facultado ao credor hipotecário vender o prédio hipotecado como livre de ônus, no caso acima referido; c) ao dono do prédio dominante incumbe pedir a manutenção do ônus, provando que a permanência do mesmo não prejudica o valor da garantia real.

Tais princ ípios são levados mais longe por L. Coviello (8).

No caso da inscrição de uma servidão entre a 1.ª e 2.ª hipoteca, diz êle que o segundo credor hipotecário, inscrito posteriormente à constituição da servidão, não se encontra na mesma situação de poder desconhecer a servidão pré-inscrita. Mas sugere o citado autor, se o 1.º

credor hipotecário fizer vender o imóvel como livre de ônus reais, essa exclusão favorece o 2.º credor hipotecário?

Pensa então que se, de um lado, a solução afirmativa implicaria em proporcionar ao 2.º credor hipotecário um proveito indevido, por outro lado um prédio não poderá ser pôsto à venda como livre de qualquer ônus em relação ao primeiro credor, e gravado em relação ao segundo.

E propõe, socorrendo-se da analogia e dos princ ípios gerais de direito, o remédio da aplicação do princípio da subrogação real: “em lugar da servidão, atribuir-se ao titular da mesma o seu valor”.

436. REGISTO DAS SERVIDÕES: INSCRIÇÃO DAS SERVIDÕES NÃO APARENTES. –

Passaremos agora ao ponto precípuo do nosso comentário – a inscrição das servidões não aparentes, prescrita no n.º X da letra “a” do art. 178. Já vimos o que significam servidões não aparentes.

(8) – L. Coviello, Delle Ipoteche, §§ 6 e 7.

[131]

O referido dispositivo preceitua a inscrição dessa espécie de servidões como elemento

constitutivo das mesmas, isto é, querendo significar que nem a convenção, nem o próprio fato em si constituem elementos suficientes para a integração do ônus. A inscrição surge, assim, como condição existencial.

E‟ um preceito resultante do art. 697 do Código Civil, assim formulado:

“As servidões não aparentes só podem ser estabelecidas por meio de transcrição no registo de imóveis”.

Ressalvada a diferença, sem importância, em preceituar o Código Civil a transcrição, ao passo que o decreto n.º 4.857 fala em inscrição, os intuitos e o caráter da formalidade não sofreram alteração.

Em tôrno ao disposto no art. 697 supracitado correm, entretanto, os mais desencontrados comentários.

C. Bevilaqua (1), entende que o sentido da disposição é, em primeiro lugar, tornar constituti va a inscrição, qualquer que seja o título de que se originar a servidão não aparente, mesmo no caso de testamento; em segundo lugar, a conseqüência de que as servidões não aparentes não podem ser constituídas por fôrça de usucapião.

J. M. Carvalho Santos (2), segue a mesma orientação.

Filadelfo Azevedo (3), parece investir contra essa interpretação, admitindo que as servidões não aparentes possam ter como fato gerador o usucapião, quando diz:

“Mas, o Código Civil, como vimos, a despeito da regra do art. 676, só exige transcrição para as servidões não aparentes, servindo de título, no caso de usucapião, a sentença que o julgar consumado”.

A questão da possibilidade ou não do usucapião de servidões não aparentes está ìntimamente vinculada com a dos direitos facultativos, que alguns juristas denominaram de atos facultativos.

Sôbre tal assunto, já tivemos oportunidade de assim nos manifestar (4):

“A questão do silêncio aparece, então, no caso de contestação a êsses direitos ou atos.

(1) – Clóvis Bevilaqua, ob. cit., III, págs. 260-261. (2) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 165.

(3) – Filadelfo Azevedo, ob. cit., pág. 82. (4) – Serpa Lopes, O silêncio como manifestação da Vontade, (2.ª edição), págs. 124-128.

[132]

Nesse particular, chocam-se as doutrinas de Troplong e Marcadé: o primeiro, pretendendo que qualquer protesto ou intimação feito por terceiro seja suficiente para criar a contradição; o segundo, investindo contra essa doutrina, ensinando que um ato daquele gênero seria destituído de qualquer valor.

Conforme se admita ou não, qualquer daquelas opiniões, observa-se, desde logo, a importância do silêncio de quem, segundo a teoria de Troplong, recebe uma tal contradição, teoria essa que é a do direito comum, onde se admitia a possibilidade de se

usucapiar, a die contradictionis, a servidão negativa e algumas obrigações relativas ao direito feudal de banalidade.

Ora, segundo Marcadé e Laurent, o silêncio do proprietário que recebeu a proibição não constitui aquiescência a essa, a menos que esteja fundada num direito aparente ou cercada de circunstâncias especiais.

A questão ganha de importância em relação a servidões negativas. Na Itália, Pescatore,

Mattirolo, Pugliese e Chironi consideram possível o usucapião pelo silêncio do proprietário ante a proibição, pois que, diz Mattirolo, “a presunção legal da aquiescência do proprietário do fundo serviente, equivale perfeitamente ao t ítulo convencional, tal

como se houvesse emanado do próprio proprietário”. Na legislação italiana, a questão assume feição especial em virtude das disposições constantes dos artigos 630 e 631 do Código Civil: o primeiro, dispondo que, “as servidões cont ínuas não aparentes nas

servidões descontínuas não podem ser estabelecidas senão mediante um título”; o segundo, dispondo que “nas servidões negativas a posse começa da proibição feita pelo proprietário do fundo dominante ao proprietário do fundo serviente no sentido de o compelir a permitir o livre uso das mesmas”.

Contra a citada opinião de Mattirolo manifestaram-se Pacifici-Mazzoni e Antonio Scotti, que reputaram não escrito o artigo 631 do Cód. Civil italiano, visto chocar-se com os princ ípios gerais de direito e com o dispôsto no art. 630, e Coviello, seguido por

Gianturco, que colocou a questão nos seguintes têrmos: “em face do artigo 2.137 do Cód. Civ., todos os direitos reais, inclusive as certidões negativas, podem ser adquiridos pelo usucapião decenal, mediante boa fé e justo t ítulo; mas, além dêsses requisitos, mister se faz o da posse. E, pergunta: quando começará a decorrer a

[133]

posse para as servidões negativas? Ao que responde o art. 631 se refere à prescrição decenal e o art. 630 domina a prescrição trintenal, o que torna indispensável, em qualquer das hipóteses, o título.

Entre nós, nos têrmos do Código Civil, é possível reproduzir-se questão idêntica? O artigo 697 do Código Civil estatui que

as servidões não aparentes só podem ser estabelecidas por meio de transcrição no Registo de Imóveis, do que resulta a observação de Clóvis Bevilaqua: a servidão não aparente não pode ser adquirida por usucapião.

Se assim é, o silêncio de um proprietário e a sua abstenção em exercitar um ato ou

direito facultativo, na sua propriedade e que lhe foi proibido pelo vizinho, ainda mesmo que haja decorrido o período de 30 anos, não dá lugar ao nascimento de uma servidão não aparente pelo usucapião trintenário.

Entretanto, fôrça é observar que o nosso Código Civil, diferentemente do italiano, que se refere a título, fala de transcrição no Registo de Imóveis.

Ora, como bem distinguiu o ilustre professor Filadelfo de Azevedo, a questão do registo é diversa da do título, de modo que êle acha ser ùnicamente exigível, nas servidões não aparentes, a transcrição, servindo de título, no caso de usucapião, a sentença que o julgar consumado.

Por escapar aos nossos objetivos, deixamos de estudar êsse lado da questão, para acentuarmos que, se admitir servidões não aparentes criadas pelo usucapião, o critério de avaliação do silêncio ou tolerância do proprietário do fundo serviente deve ser o

proposto por Marcadé, no tocante aos direitos facultativos e a eventual prova de sua prescrição, na maioria das vêzes, como disse Doná, inadmissível ou impossível.”

Não temos dúvida, entretanto, que, atenta tôda dificuldade da prova da posse, necessária a se

considerar consumado o usucapião das servidões não aparentes, a verdadeira interpretação do art. 697 do Código Civil é a ministrada por Clóvis Bevilaqua. Fica assim reconhecido ser o objetivo primordial da citada disposição a proibição da constituição de servidões não aparentes,

por outro meio que não o da transcrição no registo de imóveis, procurando, assim, impedir se estabeleçam elas por via de usucapião (Ac. da C. de Ap., de 6 de set. de 1926, in Rev. de Dir., vol. 82, pág. 417).

[134]

437. REGISTO DAS SERVIDÕES: TRANSCRIÇÃO. (1) – Enquanto as servidões não aparentes

passaram a ser subordinadas à inscrição, é incontestável que as demais modalidades de servidões permaneceram sob o regime da transcrição.

A obrigatoriedade do registo para outras servidões, fora das não aparentes, tem sido objeto de contestação, com fundamento no art. 697 do Código Civil.

Como já vimos no número antecedente, esta é a opinião de Filadelfo Azevedo, o qual, depois de

afirmar que a exigibilidade da transcrição é dirigida tão sòmente às servidões não aparentes, acrescenta:

“A lei sôbre registos públicos, n.º 4.857, de 1924, ainda tornou mais explícita a regra, só cogitando, como há pouco observamos documentadamente, do registo das servidões não aparentes (art. 5.º, “b”, n. VII).

No conflito entre o preceito geral e o especial há de prevalecer êste, de modo, pelo menos, a invalidar o argumento derivado do art. 676” (2 ).

Verdade é que o ilustre professor procura, com êste fundamento, contornar a dificuldade que para a sua tese – a servidão por destino do chefe de família – o requisito da transcrição cria; mas a sua afirmação tem um tom generalizado.

Contudo, nada há de mais refutável. A questão não é nova e nem produto das disposições do nosso Código Civil.

As servidões aparentes, quer contínuas, quer descont ínuas, são subordinadas ao Registo de Imóveis, para a sua validade.

Bem acertada é a lição de João Luís Alves (3), comentando o sempre debatido art. 697 do Código Civil:

“Referindo-se o texto às servidões não aparentes, parece dispensar a transcrição das aparentes, para o seu estabelecimento. Mas tôdas as servidões que se adquirem por usucapião devem ser t ranscritas (art. 698) e tôdas as que se constituem por ato entre

vivos não podem dispensar essa formalidade, para sua aquisição, ex-vi do disposto no artigo

(1) – Devido à necessidade prática de não fraccionar a matéria que agora estamos tratando – Servidões – estudaremos, desde logo, as modalidades das subordinadas à transcrição, ao invés de o fazermos por ocasião do comentário do n.º II

da letra “b” do art. 178, deixando, porém, a parte referente ao usucapião, para quando comentarmos o n.º IX do supramencionado inciso legal. (2) – Filadelfo Azevedo, ob. cit., loc. cit.

(3) – João Luiz Alves, ob. cit., I, pág. 613.

[135]

676. Destarte, o preceito do art. 697 parece desnecessário, senão inconveniente, pelas dúvidas que ao desprevenido intérprete poderia sugerir”.

Diz também, a propósito da referida disposição, J. M. Carvalho Santos (4):

“O que o legislador pretendeu dizer, mas o não fêz de modo satisfatório, foi que

as servidões aparentes se constituem por ato entre vivos, por disposição testam entária ou por prescrição e, embora os títulos de sua constituição devam ser transcritos no registo, todavia a certidão do registo não é o título de sua existência jurídica”.

No nosso modo de entender, a única diferença entre servidões aparentes e não aparentes, para

o efeito do Registo de Imóveis, é que as primeiras podem ser objeto de usucapião, ao passo que tal não pode ocorrer em relação às últimas.

Quanto ao mais, aplicam-se a ambas as regras comuns do Registo de Imóveis. Ambas estão compreendidas no Registo Imobiliário, por fôrça do que dispõe o art. 856 n.º III, do Código civil.

A constituição de uma servidão é sempre uma alienação parcial do direito de propriedade (5).

Assim, a inscrição ou transcrição das servidões é formalidade substancial: a) como fôrça

declaratória, em se tratando de usucapião e de direito hereditário; b) como fôrça constitutiva, nos demais casos (C. Civil, arts. 530, ns. I a IV; 531, 532 e 533).

A exigência da t ranscrição das servidões, na legislação francesa e na italiana, é explicada por Luzzatti (6), como uma medida necessária, mesmo em relação às servidões aparentes,

porquanto os sinais materiais da existência destas não são sempre tão visíveis, de modo a não deixar de chamar a atenção do comprador; mesmo as vendas são algum as vêzes realizadas em lugares distantes dos em que se acham os prédios que constituem o seu objeto, ou por meio de

mandatários pouco interessados em ministrar exatas informações, ou ainda os sinais exteriores podem não ser tomados em seu justo valor, e dar ensejo a ambigüidades capazes de levar o comprador a engano.

Vejamos a jurisprudência. Um acórdão das antigas 3.ª e 4.ª Câmaras Conjuntas Reunidas (Ac. de 7 de junho de 1938, Arq. Jud. Vol. 48, pág. 417), confirmando o acórdão embargado (cfr. Arq. Jud., volume 44, pág. 447), decidiu interpretando o art. 697 do

(4) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 165. (5) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 193. (6) – Luzzatti, ob. cit., n.º 207.

[136]

Código Civil, que “se o legislador nega, isto é, não permite que as servidões não aparentes

sejam adquiridas por modo diverso da transcrição, ipso facto, declara que as outras servidões, as aparentes, podem ser estabelecidas sem necessidade dessa transcrição como título único constitutivo. Os outros modos de estabelecimento de direitos reais, além da transcrição, estão

enumerados no art. 530 do Código Civil: - acessão, usucapião e direito hereditário”. – O julgado

supra baseou-se na regra interpretativa do argumento “a contrario sensu”, regra de emprêg o perigoso, cuja aplicação, fora das justas medidas, redunda no desvio da finalidade da norma jurídica como se deu no caso concreto.

E que assim o é, patenteia-se do julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal (ac. de 7 de

maio de 1943, Diário da Justiça de 18 de janeiro de 1944, pág. 351) onde se assentou que “sendo a servidão sôbre imóveis um direito real sôbre coisa alheia, não é possível desligá -lo da exigência constante do art. 676 do Código Civil, relativa à necessidade da transcrição, para que

se possa constituir êsse direito. Mais ainda: “A Constituição de tal servidão não prescinde da outorga uxória, com relação ao ato do marido que gravar um imóvel do casal”.

438. SERVIDÕES POR DESTINO DO PAI DE FAMÍLIA. – Cumpre agora estudar o problema das servidões por destino do pai de família e de sua posição em face do Registo de Imóveis.

Tal forma de constituição de servidão é geralmente denominada por destinação do pai de

família, querendo isso significar, porém, não o sentido próprio de pai de família, mas de proprietário do prédio, e quanto à destinação, não a constituição voluntária da servidão pelo proprietário, que se daria por meio de um título, senão um outro significado, pelo qual se faz da

destinação do pai de família um modo de aquisição ou de constituição da servidão completamente distinto do título (1).

As legislações francesa e italiana consagram expressamente essa forma de constituição. O artigo 692 do Código Civil francês assim dispõe:

“La destination du père de famille vaut titre à l ’égard des servitudes continues et apparentes.”

No sistema do Código Civil suíço, a servidão por destino adquire plena vigência, mesmo a partir do momento em que ocorre o fato gerador, antes mesmo da separação jurídica dos dois prédios. Abre,

(1) – Scuto, Delle Servitù Prediale, pág. 319.

[137]

assim, no art. 733, uma exceção ao princ ípio nemini res sua servit, quando estabelece:

“le propriétaire de deux fonds a le droit de grever l‟un de servitudes em faveur de l‟autre”.

embora imponha a necessidade da inscrição, como elemento constitutivo (art. 731).

Mas, excetuada a suíça, as demais legislações aceitam a constituição da servidão por destino, independentemente da publicidade no registo imobiliário.

Na primeira fase, ao ser estabelecido o fato, há uma relação de ordem puramente econômica

entre os dois prédios, pois não se pode falar de servidão, enquanto estiverem sob o domínio de um só proprietário; na segunda, a servidão surge, pela separação jurídica dos dois prédios.

Aparece, assim, como a conseqüência de um fato, e não de uma declaração de vontade, e muito menos de um ato escrito (2).

Em se tratando de uma servidão contínua e aparente, a fôrça probante resulta da evidência do fato, e, em outros casos, alguns autores (Planiol -Ripert e Picard. Baudry-Lacantinerie e Chauveau e Butera) explicam a natureza do instituto, extraindo a sua fôrça probante não só do

fato, como ainda do silêncio no ato da separação jurídica, silêncio que assume, de algum modo, o valor de um comêço de prova por escrito.

Há um tácito consentimento dos adquirentes, dos alienantes e dos codividentes, pois que tôda coisa, sem declaração em contrário, entende-se concedida, alienada, ou dividida no estado em que se encontrar (3).

Scuto (4) contesta, porém, ser a vontade tática ou presumida a base da constituição da servidão por destino, de vez que, argumenta, a separação jurídica nem sempre decorre de um ato de vontade do proprietário como no caso de execução ou de expropriação, e nada obstante, a servidão se mantém.

Diz êle que não há outro fundamento senão a lei, pois é por fôrça de uma disposição legal que o estado de fato se converte num estado jurídico.

Daí o mesmo fundamento em que Luzzatti (5), se firmou para considerar dispensada a formalidade do registro imobiliário, dizendo

(2) – Butero, ob. cit., III, pág. 536; M. Planiol-Ripert e Picard, ob. cit., n.º 974; B. Lacantinerie e Chauveau, Del Beni, pág.

867. (3) – Pacif ici-Mazzoni, Inst. III, parte 2.ª, pág. 277. (4) – Scuto, ob. cit., pág. 330.

(5) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 214.

[138]

que “nesta modalidade de constituição de servidão se destaca a ação da lei, e as servidões

estabelecidas dessa maneira são em regra, como as servidões legais, isentas da formalidade da transcrição”.

Segundo a precisa explicação de Sacchi (6), a falta de uma disposição contrária ao estado de fato existente entre dois fundos pertencentes ao mesmo proprietário que passam a diversas

mãos, opera de maneira que aquêle estado de fato, por necessidade jurídica, se converte d e condição de um simples serviço material, em servidão predial. E, na verdade, prossegue, o estado de fato precedente à passagem dos dois fundos separadamente a mãos diversas das do

proprietário originário produz uma destas duas conseqüências: ou anula a destinação feita pelo proprietário dos dois imóveis quando e enquanto se encontraram ambos vinculados ao seu direito de propriedade; ou então esta destinação faz subsistir e conserva tudo, mau grado a nova posição de direito e de fato.

Tudo depende de uma interpretação dos fatos, revelando uma vontade implícita, uma tácita constituição de servidão, só destrutível ante uma manifestação expressa de vontade em sentido contrário.

Entretanto é de salientar-se constituir êrro a assertiva de que a servidão por dest inação do pai

de família decorre de uma manifestação tácita porque repousa em fatos, que, em certos casos, fazem presumir a tácita constituição da servidão (7).

Em nosso direito, a questão já tem sido focalizada, quer na Jurisprudência, quer na doutrina.

O nosso Código Civil silenciou sôbre a matéria, mas nem por isso a jurisprudência tem desconhecido essa forma de constituição de servidões, embora, em sua maioria, restringindo ao caso das servidões contínuas e aparentes.

Filadelfo de Azevedo (8), demoradamente aborda o assunto e, contestando a opinião em contrário de Clóvis Bevilaqua, refuta os três pontos vitais da tese contrária, isto é:

I – o conceito de servidão exigir a diversidade de donos;

II – as servidões não se presumirem;

III – a exigência da transcrição abranger todos os direitos reais.

As duas primeiras objeções foram feitas pelo ilustre professor respondidas vantajosamente. Nada obsta a que, na ausência de dispositivo legal, se admita um instituto, com fundamento nos princ ípios gerais de direito.

O último, porém, particularmente interessando o nosso estudo,

(6) – A. Sacchi, Servitù Prediali, I, n.º 106, pág. 670. (7) – N. Germano, Tratatto delle Servitù, II, n.º 179, pág. 210. (8) – Filadelfo Azevedo, ob. cit., pág. 73.

[139]

diz diretamente com o problema da necessidade ou não da transcrição dessa espécie de servidões no Registo Imobiliário.

Sustenta que o art. 676, dispondo que a transcrição no registo de imóveis é condição substancial para aquisição, entre vivos, dos direitos reais sôbre imóveis, é mal ajustável às servidões, e que a questão do título, sendo diversa da do registo, a transcrição, mesmo na ausência de título escrito poderia ser feita sem dificuldade intransponível” (9).

Para êle, nas servidões por destino, “reside o t ítulo na aparência, no destino, na inerência real, denunciando mesmo para alguns, uma convenção tácita”.

Mais adiante (10) confirma o seu ponto de vista indicando a maneira prática da efetivação dêsse registo, nos seguintes têrmos:

“Existindo o título materializado na inerência, ficará o interessado habilitado a promover

sua transcrição exatamente como o dono do prédio serviente, também por ato unilateral, pode cancelar as servidões, mediante a prova da sua extinção, em certos casos (Cód., arts. 708, 710 e 711).

Mas, em seguida o referido autor passa a dizer que a questão do registo “orientado pelo escôpo

principal da publicidade, perde de interêsse diante da própria evidência, que ninguém pode desconhecer”.

Por último, invoca o exemplo das legislações que dispensam a formalidade do registo. Entretanto o que há a acentuar em tudo isso, segundo pensamos, é que a instituição das

servidões por destino do pai de família obedece a um critério diverso das demais formas de servidões.

Se as legislações francesa e italiana, pelo menos, dispensam a formalidade do registo é pela razão já por nós vista e expendida por Luzzati, isto é, por se tratar de uma genuína servidão legal. E‟ a lei que institui o ônus e não a vontade das partes.

Esta é também a lição de Coviello:

“La destinazione del padre di famiglia ch‟é um modo speciale d‟acquisto delle servitù continue ed apparenti, non é sottoposta a transcrizione, poichè essa constituisce un fatto, non già um atto. Che abbia indole di semplice fatto, risulta molto chiaro dalla semplice lettura degli articoli 632, 633.

(9) – Filadelfo Azevedo, ob. cit., pág. 73. (10) – Filadelfo Azevedo, ob. cit., pág. 76.

[140]

Basta il fatto che due fondi, attualmente apparentenenti à proprietari diversi, siano un giorno posseduti dallo stesso proprietario e che questi pose e lasciò le cose nello stato

dal quale risulta la servitù, perchè questa s‟intenda stabilita attivamente e passivamente a favore e sopra ciascuno de fondi separati, se non vi sia stata alcuna dispozizione contraria dell‟antico e comune proprietario. E quegli stessi scrittori che vollero sottoposto

a publicitá tale modo d’acquisto, pensarano si trattasse di convenzione tacita. Mas questo concetto è falso, perchè, il solo silenzio mantenuto dal proprietario di due fondi, quando disponeva di uno di essi in favor d’altri non constituisce di per sè um fatto tale da

riuscire incompatible com una volontá contraria e quindi da considerarsi como tacita manifestazione della volontá nè orale nè scritta. Quindi per noi almeno sarebbe strano ed assurdo concepire la destinazione del padre di famiglia come una convenzione tacita di servitù: essa non è che um fatto, e como tale, la transcrizioni non la riguarda” (11).

Barassi (12), é do mesmo ponto de vista e os seus argumentos, unidos aos de Scutto, liquidam a questão.

Para êle, a construção baseada no consentimento tácito é um expediente cômodo, mas insatisfatório. Não encontra fundamento para se deduzir um consentimento no caso de ausência

dos proprietários dos dois prédios, que antes eram de um só, de modo a se deduzir que a servidão por destino se perpetue por um presumido consentimento. E a explicação única que encontra é a autoridade da lei: “in realtá é la legge stessa che por conto suo opera questa

transformazione, cioè il sorgere della servitù; la legge permette che perduri il rapporto come emanazione della dominicale”.

Ora, como viemos de ver, o verdadeiro princípio da servidão por destino se caracteriza pelo fato em si mesmo, para o qual a lei determina a conseqüência do ônus real. Não há o menor vestígio

de convenção ou de vontade tácita, ou manifestação pelo silêncio, pois, além do conceito de

silêncio, como fator de efeitos jurídicos, ser muitas vêzes inajustável às servidões, há a ponderar

que o ônus freqüentemente surge à margem da vontade do pai de família, como salientou Scutto.

Qual a base para se admitir uma vontade tácita, quando a separação jurídica dos prédios dominantes e servientes ocorre contra a vontade do dono, ou seja, no caso de venda judicial do prédio do-

(11) – Coviello, ob. cit., I, n.º 122. (12) – Barassi, Diritto Reali Limitati, pág. 308.

[141]

minante, em execução, ou no de venda mediante procurador, estando ausente o mandante proprietário?

Entre nós porém, e insistimos em lembrar, não há texto legal regulando a espécie. Mas se se

quiser o instituto, como já o tem feito a Jurisprudência, então ter-se-á de admitir o império dos princ ípios gerais de direito, inclusive o da dispensa da t ranscrição, conforme o fazem as legislações francesa e italiana, por ser êste o critério mais conforme com a natureza do instituto.

Também não se pode cogitar do usucapião, pois, ou o instituto é admitido em tôda sua extensão,

e nesse caso não há como falar de usucapião, ou se admite êste e, nesse caso, não existe uma constituição ùnicamente ex-vi do fato, mas sim do fato unido ao elemento – tempo.

Cremos que encarados sob êsse prisma e aplicados integralmente os princípios de direito de outras legislações, não há mais lugar para dúvidas oriundas do art. 509 do Cód. Civil, nem muito menos do artigo 698.

O que se nos afigura impossível, pelo menos, é obter o titular de uma servidão assim originada, que o Oficial dos Registos, por si mesmo, realize a transcrição do ônus, apreciando quaisquer provas apresentadas pelo interessado, como pretende Filadelfo de Azevedo, invocando os arts.

708, 710 e 711 do Código Civil, os quais não ministram, a nosso ver, elementos suficientes para uma tal conclusão.

A única hipótese possível é a transcrição de uma sentença, em que o juiz reconheça a existência da servidão por destino.

439. EXTINÇÃO DAS SERVIDÕES. – O princ ípio geral que, em nosso direito, domina tôda a

matéria concernente à extinção das servidões, precìpuamente do ponto de vis ta especial ao nosso estudo – o Registo Imobiliário – é o de que

“salvo nas desapropriações a servidão, uma vez transcrita, só se extingue, com respeito a terceiros, quando cancelada (Cód. Civ., art. 708).

Esta disposição é um corolário do nosso sistema de registo imobiliário e teve por fonte principal o art. 734 do Código Civil suíço, que também dispõe:

“La servitude s‟éteint par la radiation de l‟inscription et par la perte totale du fonds servant ou du fonds dominant”.

[142]

A supracitada disposição do nosso Código Civil foi censurada por J. M. Carvalho Santos (1),

dizendo que o texto não prima pela clareza, de vez que se o seu intuito foi indicar que, pelo menos em determinados casos, é possível a extinção da servidão, para efeit os entre os prédios dominante e serviente, sem o cancelamento da transcrição, não edita uma regra certa, real e verdadeira.

Diz então que o certo é ter o Código Civil, em dados casos, como os do art. 709, exigido o cancelamento é dispensável, bastando que ocorra qualquer um dos fatos ali mencionados.

Não nos parece aceitável essa conclusão.

Quem precisou, a nosso ver com o máximo de exatidão, a inteligência perfeita dos arts. 709 e 710 do Código Civil foi inegàvelmente Dídimo da Veiga (2), assim estabelecen do as características das disposições supracitadas:

“o que pode autorizar a redação do art. 709 pela dúvida sôbre os modos de extinção das servidões, consagradas no Código Civil, são êsses modos os do art. 710? Êste estatui: “as servidões extinguem -se”, etc., ao passo que o art. 709 dá ao serviente a faculdade

(direito) de OBTER O CANCELAMENTO DA TRANSCRIÇÃO DA SERVIDÃO, pelos meios judiciais, nos casos de renúncia da servidão pelo dominante, no de resgate pelo serviente, e no de abertura de estrada pública com acesso ao prédio dominante, no caso

de servidão de passagem. No entanto, para estudo do caso, - conquanto maior oportunidade se encontre quando fôr examinado o dispositivo do art. 710 – convém, desde já adiantar, que o art. 709 faz prevalecer as servidões – com todos os seus efeitos

– ainda entre as partes estipulantes, quando não fôr realizado o cancelamento do registro a requerimento do serviente. Na hipótese do art. 710 a extinção das servidões prevalece entre as partes contratantes, ainda quando não cancelada a transcrição –

cancelamento necessário para que prevaleça quoad tertius; tanto assim é, - que o art. 711, confere ao dono do prédio serviente a faculdade de requerer o cancelamento, para que valha a extinção contra terceiros, provando que, de fato, a servidão a extinguir-se,

por confusão, pela destruição das obras, ou pela prescrição extintiva, prova que supõe – a extinção já existente,

(1) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 255. (2) – Dídimo da Veiga, Manual do Cód. Civil, IX, parte 1.ª, pág. 414.

[143]

a qual, de fato, se opera por fôrça dos princ ípios de direito, que dominam cada uma das causas indicadas no art. 710”.

Cumpre, porém, distinguir as causas de extinção das servidões, quer do ponto de vista das pessoas que têm direito de exigir o cancelamento, quer das que são obrigadas a nêle consentir, como ainda distinguir a matéria constitutiva dessa causa, isto é, quando ela consiste numa

convenção, ou num fato material. Seguiremos nesse particular o critério de C. Wieland (3), acentuando primeiramente que “não basta afirmar que as servidões se extinguem pelo cancelamento” para depois passar a distribuir as causas da extinção em três grupos, que procuraremos adaptar à nossa legislação.

a) Causas que conferem ao proprietário do prédio serviente pura e simplesmente um direito de exigir o cancelamento.

Nesse grupo se compreendem tôdas as causas de extinção oriundas do consentimento expresso do proprietário do prédio dominante, como no caso da renúncia, resgate ou qualquer outra convenção tendente a extinguir o ônus real da servidão.

Êsses casos incluem-se nos ns. I e II do art. 709, mas é necessário observar que, constando do

instrumento, onde figure a renúncia ou o resgate, o consentimento dos interes sados, especialmente o titular do prédio dominante, já não mais dá lugar à impugnação.

O interessado – nesse caso o dono do prédio serviente – poderá, exibindo a escritura ao Oficial do Registo de Imóveis, exigir dêste o cancelamento.

Mas, celebrada a convenção, ela é válida como obrigação entre as partes contratantes. O dono

do prédio dominante, que consentiu no ato jurídico da extinção da servidão, fica obrigado a não impedir a extinção da transcrição pelo cancelamento, que poderá ser obtido pelos meios judiciais, no caso de recusa, ou de impugnação. A ausência da formalidade do cancelamento

redunda, ainda, em tornar válida a servidão em relação a terceiros que hajam contratado com o dono do prédio dominante, firmados na subsistência do ônus, por ainda figurar no Registo Imobiliário.

c) Causas que conferem ao proprietário do prédio serviente o direito de exigir de qualquer beneficiário da servidão que êle consinta no cancelamento, mesmo do adquirente subseqüente.

Dá-se essa situação quando, no caso de partilha, a servidão, por sua natureza e destino, só se aplica a certa parte do prédio dominante ou do serviente (Cód. Civ., art. 707).

(3) – C. Wieland, ob. cit., II, pág. 497.

[144]

Se o beneficiário recusar o consentimento, o interessado pode pedi-lo judicialmente.

c) Causas que operam a supressão imediata da servidão. Nesse grupo se incluem todos os casos em que a servidão, mesmo em havendo uma convenção, já está materialmente extinta,

em conseqüência de um fato, como no caso de supressão das obras referentes à mesma, por efeito de um contrato (Cód. Civ., art. 710, n.º II).

Está nesse grupo a extinção pela reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa e a oriunda do não uso, durante dez anos contínuos.

Mas, ainda no caso dêsse terceiro grupo, aplica-se o disposto no art. 708 do Código Civil, pois,

como ensina Wieland (4), não basta dizer que as servidões se extinguem pelo cancelamento da respectiva transcrição.

Nos casos previstos nos ns. II e III, do art. 710 do Código Civil, a servidão fica materialmente extinta, mas conserva a sua vida formal enquanto não cancelada a transcrição (5).

Tais são as diferenças específicas que podem ser apontadas nas causas da extinção das servidões.

Do que viemos de expor, podem ser estabelecidas as seguintes conclusões:

a) em havendo uma convenção na qual os interessados hajam pactuado a extinção de uma

servidão, o Oficial do Registo pode, à vista da respectiva escritura, efetuar o cancelamento do ônus, bem como no caso de confusão, pois só existe um único interessado;

b) nos demais casos, o cancelamento do ônus de servidão sòmente pode ser levado a efeito, à vista do consentimento dos interessados ou de sua não oposição. Na falta dêste requisito ou de

impugnação, o cancelamento sòmente pode ser realizado mediante sentença, caso em que o papel do Oficial do Registo de Imóveis ser resume em cumprir a determinação judicial.

440. ANÁLISE DE CERTAS MODALIDADES DE CAUSAS EXTINTIVAS DE SERVIDÕES. – Passaremos, agora, a tratar das modalidades das causas extinti vas das servidões que podem dar lugar ao cancelamento do ônus, independentemente de sentença judicial.

a) Renúncia. – Ao proprietário do prédio dominante é lícito renunciar ao direito que lhe assiste. Para a renúncia, porém,

(4) – Wieland, ob. cit., II, pág. 498. (5) – Wieland, ob. cit., I, pág. 499; Rossel et Mentha, Man. du Droit Civ. Suisse, III, n.º 1.370.

[145]

se requer dos mesmos elementos indispensáveis aos demais atos jurídicos, sendo tal forma de extinção suscetível de se operar por ato inter-vivos ou causa mortis.

A renúncia pode ainda ser expressa, quando, mediante título hábil, o proprietário manifesta expressamente a vontade de renunciar ao seu direito real sôbre o prédio serviente, e tática ou presuntiva quando oriunda de atos incompatíveis com o exerc ício da servidão.

Só a primeira autoriza o cancelamento, independentemente de sentença judicial. No segundo

caso, isto é, renúncia presuntiva, a declaração judicial da liberação é indispensável, sendo a sentença que reconhecer ou proclamar a renúncia, o ato que serve a fundamentar o cancelamento da transcrição (1).

A renúncia da servidão sòmente pode ser feita pelo proprietário do prédio dominante, em razão

do que é inoperante, para o cancelamento da transcrição, a renúncia feita pelo condômino do prédio dominante, sem o consentimento dos demais co-proprietários, assim como a renúncia em favor de um dos condôminos do prédio serviente.

b) Servidão de passagem. – O modo terminativo da servidão, previsto no n.º II, do art. 709, do

Código Civil, não pode justificar o cancelamento do ônus senão mediante o consentimento do titular do prédio serviente, isto é, para o efeito do Oficial do Registo poder efetuá-lo independentemente de autorização judicial.

Não lhe é dado efetuar tal cancelamento simplesmente verificando in loco o fato extintivo da servidão de passagem.

Faltando o consentimento do titular do prédio serviente, o cancelamento dependerá de autorização judicial.

c) Resgate. – Já deixamos dito que o caráter de perpetuidade das servidões constitui um atributo

puramente natural e não essencial ao instituto, de modo que pode ser estabelecida a sua extinção mediante resgate.

O resgate confere ao dono do prédio serviente a faculdade de promover o cancelamento da transcrição da servidão. E‟ mister que êsse direito conste de uma escritura, mediante a qual poderá o interessado pedir o cancelamento da transcrição da servidão.

Necessário se torna fixar duas situações diferentes: 1.º) se o titular do prédio serviente convencionou com o do prédio dominante o pagamento de determinado preço; 2.º) se a escritura consigna desde logo o próprio resgate e declara que o titular do prédio dominante recebeu o preço relativo ao mesmo.

(1) – Dídimo da Veiga, ob. cit., IX, parte 5.ª, pág. 419.

[146]

Neste último caso, o cancelamento pode ser desde logo efetuado, a despeito de qualquer impugnação do titular do prédio dominante, pois não é necessária mais a autorização ou sentença judicial.

No primeiro caso, é preciso distinguir se existe ou não concordância do titular do prédio

dominante. Se êste receber o preço convencionado na escritura em que se obrigou ao resgate, nada há que possa impedir o cancelamento; se, porém, recusar-se a cumprir a obrigação assumida, o cancelamento do ônus dependerá de sentença judicial.

Com muito senso pondera Dídimo da Veiga (2), (ob. cit., pág. 428) que o resgate é um ato

equiparável à renúncia, de modo que o art. 712, que impõe o consentimento do credor hipotecário para a perfectibilidade da renúncia da servidão, também é aplicável ao caso de resgate.

O princípio comporta, entretanto, duas exceções: 1.ª) se a servidão foi constituída antes da

inscrição da hipoteca e da sua transcrição constar o direito de resgate; 2.ª) se a servidão houver sido transcrita nas mesmas condições, posteriormente à hipoteca, com o consentimento do credor hipotecário.

d) Confusão. – Como uma conseqüência do princ ípio “nemini res sua servit”, a servidão termina

com a confusão, isto é, atua êsse modo terminativo quando o prédio dominante e o serviente se reunem nas mãos do mesmo proprietário. E‟ necessário, porém, que essa reunião seja completa, de todo o prédio dominante como de todo prédio serviente.

O cancelamento do ônus poderá ser efetuado nesse caso pelo Oficial do Registo, mediant e

requerimento do novo titular único da propriedade de ambos os prédios, e a verificação dessa situação o Oficial pode fazê-la com os próprios elementos decorrentes dos seus livros, ou de outro oficial, se o prédio dominante e o serviente estiverem situados em circunscrições diversas.

Uma das condições para que a confusão opere como causa extintiva da servidão é a de que o titular de ambos os prédios seja um só, pelo que fica excluída a hipótese de condomínio.

Assim, se um condômino do prédio dominante ou do serviente tornar-se proprietário do outro prédio, a confusão não ocorre.

Isto deriva da natureza indivisível da servidão e se a servidão é considerada como devida de um

prédio a outro prédio, não significa a personificação do prédio ao titular do direito, mas sim a dupla inerência da servidão aos prédios, isto é, a servidão é devida pela

(2) – Dídimo da Veiga, ob. cit., pág. 428.

[147]

pluralidade dos titulares do prédio serviente à pluralidade dos titulares do prédio dominante (3).

E‟ preciso considerar ainda ser absolutamente indiferente a causa da extinção da servidão. A título oneroso ou gratuito, inter vivos ou causa mortis, tenha sido o prédio serviente adquirido

pelo titular da propriedade do dominante ou vice-versa, e ainda seja essa dupla aquisição efetuada por terceiro, de qualquer modo, há sempre extinção por confusão, desde que haja um só titular.

Pacifici-Mazzoni (4), entendem que não se trata da extinção de um direito, mas da suspensão do seu exerc ício.

Êsse ponto de vista tem fortes repercussões no tocante aos efeitos da extinção pela confusão, como passaremos a demonstrar.

Butera (5) e Scutto (6), contestam a opinião de Pacifici-Mazzoni dizendo que há uma verdadeira extinção do direito, mesmo no caso de se tratar de uma aquisição já com a intenção de revender o imóvel.

Seguindo-se a doutrina de Pacifici-Mazzoni, a conseqüência seria de que a servidão permaneceria num estado latente e a sua reconstituição se daria, desde o momento em que voltasse a haver uma separação jurídica.

Entretanto, como observa Scutto, o fato de se considerar a confusão um modo extintivo da servidão não impede, em certos casos que esta volte a subsistir.

1.º) No caso de nulidade. – Ticio adquire a propriedade do prédio dominante por fôrça de um testamento que depois é anulado.

2.º) Direito subordinado à condição resolutiva. – Em havendo uma aquisição sob condição resolutiva, a superveniência do fato condicional produz necessàriamente a revivescência das servidões.

Tanto o caso de nulidade como o de condição resolutiva, v. g., a venda feita mediante cláusula de resgate; a separação jurídica dos dois prédios faz ressurgir a servidão porque decorre de uma causa jurídica antecedente, que afeta e destrói o próprio t ítulo por fôrça do qual se deu a confusão (7).

3.º) Alienação de um dos prédios, após uma aquisição válida. – Depois de reunidas as duas qualidades de proprietário do prédio

(3) – Butera, ob. cit., pág. 926. (4) – Pacif ici-Mazzoni, Trattato delle Servitù prediali, III, n.º 231.

(5) – Butera, ob. cit., III, pág. 922. (6) – Scutto, ob. cit., pág. 427.

(7) – Scutto, ob. cit., pág. 429.

[148]

dominante e do serviente, é vendido um dêsses dois prédios. Subsiste a servidão?

Diferentemente dos casos antecedentes, aqui o título do qual decorreu a confusão permanece

inatacável, e sendo novo o título que produz a separação jurídica dos dois prédios, é claro que a servidão permanece extinta, não pode reviver (8).

E se se tratar de uma servidão devidamente transcrita ou inscrita sem que, após a confusão, haja sido cancelada?

No direito francês, a doutrina tem entendido que, em se tratando de uma servidão aparente e

contínua, a mesma se mantém, por se considerar como uma servidão por destino, desde que do título que determinar a separação jurídica nada se note em contrário.

Entre nós, deve-se aplicar o princ ípio do art. 708, do Código Civil, de conformidade com o que já expusemos a respeito dos princípios gerais relativos à extinção das servidões.

Desde que o terceiro adquiriu o prédio, firmado no que definia o Registo Imobiliário e desde que

êste constava como subsistente a servidão, esta, no nosso modo de entender, a despeito da existência de uma causa de extinção, continua a subsistir, e isso pela razão de continuar a viver formalmente (9).

4.º) Aquisição de um dos prédios, mediante cláusula fideicomissária. – Nessa circunstância,

volvendo o prédio gravado de fideicomisso à propriedade do fideicomissário, e assim retornando à separação jurídica entre os prédios dominante e serviente, restaura-se a servidão?

A resposta a êsse problema depende de um outro relativo à natureza jurídica da substituição fideicomissária.

Juristas há que consideram o fideicomissário como sucessor do fiduciário, ou preherdeiro, e não

do testador. A argumentação d essa corrente assenta no fato de que no momento em que o fideicomissário recebe a herança, já não existe o testador; êle a recebe do fiduciário, que tinha direito resolutivamente condicionado ou a têrmo.

Tal modo de conceber o instituto é contrariado pela opinião dominante dos juristas, dentre êles

Pontes de Miranda (10), que esclarece não ser possível confundir -se o fato de herdar e recolher, materialmente, a herança. Diz êle então:

“Não é verdade que o direito do fiduciário passe ao fideicomissário: o que se dá é que o direito do fiduciário

(8) – Scutto, ob. cit., pág. 429; Butera, ob. cit., III, pág. 937; B. Lacantinerie et Chaucou, ob. cit., pág. 911.

(9) – Dídimo da Veiga ob. cit., pág. 444. (10) – Pontes de Miranda, Tratado dos Testamentos, IV, pág. 183.

[149]

se extingue, e êle, por isso, perde a propriedade e a posse que recebeu; começa a

atuação material do direito do fideicomissário, direito existente desde a abertura da sucessão e, por isto, - quer dizer porque começa a atuação – a propriedade e a posse lhe cabem”.

Sustenta ainda o referido autor que no fideicomisso há duas figuras: a do preherdeiro e a do

posherdeiro que se não substituem, porque substituir é excluir, mas que produz uma dupla sucessão de dois herdeiros instituídos.

Em verdade, reputamos essa a verdadeira noção do instituto.

O fideicomissário é o herdeiro definitivo, e a sua razão de suceder se prende diretamente ao de cujus, de modo que o fiduciário nada mais é do que um órgão de cooperação na sucessão do verdadeiro herdeiro, ou, para melhor definir, um órgão de transição.

O que não padece dúvida é que o fideicomissário tem um direito positivo, real, embora dependente, quanto à entrega, de acabar o direito do fiduciário (11).

De par com essa situação, isto é, a coexistência de dois titulares de direito – o fiduciário e o fideicomissário – é preciso considerar a resolubilidade do direito do primeiro (Cód. Civil, art.

1.734) defendida por Pontes de Miranda (12), e com restrições, por C. Maximiliano (13), sustentando que “embora no rigor da técnica, o fiduciário não seja um proprietário sob condição resolutiva, entretanto o instituto em apreço muito se assemelha à deixa condicional”.

Por todos êsses motivos há fortes restrições ao princípio da res nemini servit, de modo a afastar

a extinção da servidão por confusão, quando o fiduciário, por fôrça dêsse direito, se tornar proprietário dos prédios servientes ou dominantes.

6.º) Enfiteuse. – Uma outra questão ainda surge ao propósito dos bens enfitêuticos: Um proprietário do prédio dominante torna-se enfiteuta do prédio serviente ou vice-versa: a confusão

nêsse caso opera a extinção da servidão? Para os que consideram a enfiteuse um verdadeiro direito de propriedade, há, no caso figurado, uma confusão que produz a extinção da servidão, que, entretanto, poderá ressurgir no caso de extinção da enfiteuse, em benefício do senhorio direto.

Êsse princípio tem de ser admitido entre nós, pois o nosso Código Civil, apesar de classificar o enfiteuse como um jus in re

(11) – Pontes de Miranda, ob. cit., vol. IV, pág. 187. (12) – Pontes de Miranda, ob. cit., vol. IV, pág. 1.555.

(13) – Carlos Maximiliano, Dir. das Sucessões, II, n.º 1.256.

[150]

aliena, em várias de suas disposições consagra a bipartição do domínio em direto e útil.

7.º) Hipoteca e bens dotais. – No caso de hipoteca, a confusão não opera a extinção da servidão tanto quanto não prejudique o direito do credor hipotecário, a quem cabe, na forma do art. 712 do Código Civil, consentir no cancelamento.

No caso de bens dotais, recebendo o marido, como dote, o prédio dominante ou o serviente, e

se se tornar proprietário de ambos os prédios, em tais condições, não pode se opor que, terminado o regime dotal, a servidão retorne à sua primitiva eficácia jurídica (14).

(14) – Butera, ob. cit., III, pág. 936.

[151]

USUFRUTO

441. USUFRUTO. – O n.º XI da let ra “a” do art. 178 ora comentado, refere -se à inscrição do usufruto, uso e habitação, quando não resultarem do direito de família.

442. CONCEITO DE USUFRUTO. – O usufruto, segundo a definição legal, é o direito real de

fruir a utilidade e frutos de uma coisa, enquanto temporàriamente destacadas da propriedade (Cód. Civ., art. 713).

Trata-se de um direito real limitativo da propriedade, constando do Código Civil no t ítulo relativo aos “direitos reais sôbre a coisa alheia”.

O nosso Código, ainda, deixou de considera o usufruto, o uso e habitação como modalidade de servidões da classe das pessoais distintas das prediais. Só estas últimas foram conservadas.

Desviou-se da tradição escolástica, aliás como procedeu a legislação italiana, para seguir um critério mais concreto, do ponto de vista científico.

O usufruto é um direito real, estabelece o nosso Código Civil de um modo peremptório cortando cerce todos os pruridos doutrinários que surgem em contrário.

E‟ limitativo da propriedade, porque esta não se fraciona, e em qualquer situação o proprietário

não deixa de ser proprietário (1), de modo que, ao cessar o direito real limitado, a propriedade retoma, por virtude própria, tôda sua plenitude primitiva.

443. OBJETO DO USUFRUTO, PRINCIPALMENTE DO PONTO DE VISTA DO REGISTO DE IMÓVEIS. – O usufruto pode recair em um ou mais bens móveis ou imóveis, em um patrimônio

inteiro, ou parte dêste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades (Cód. Civil, artigo 714).

Em relação aos imóveis, o usufruto, quando não resulta do direito de família, dependerá de inscrição no respectivo registo (Cód. Civ., art. 715, cfr. com o art. 178, letra “a”, n.º XI, ora comentado).

(1) – Windscheid, Pandette, I, § 167.

[152]

O que nos interessa, portanto, é o usufruto recaindo sôbre bens imóveis.

Em referência a essa espécie de bens, o registo imobiliário é essencial para que êle se repute constituído, salvo o resultante do direito de família.

Conseguintemente, só o usufruto legal está isento de inscrição no Registo de Imóveis, e, no estado atual do nosso direito, só existem duas modalidades dêsse usufruto:

a) o do pai, e, na sua falta, a mãe sôbre os bens dos filhos menores; b) o do marido sôbre os bens da mulher, quando lhe tocar êsse direito (Cód. Civ., art. 260, n.º I).

O que mais comumente constitui objeto de usufruto é a propriedade imóvel.

A respeito do imóvel como objeto de usufruto, dispõe ainda o art. 725 do Código Civil:

“se o usufruto recai em florestas, ou minas, podem o dono e o usufrutuário prefixar -lhe a extensão do gôzo e a maneira da exploração”

Diz M. I. Carvalho de Mendonça (1), que o legado de uma floresta interpreta -se como usufruto, porque ela não é suscetível de outro uso.

Conseguintemente, está sujeito à inscrição o usufruto de florestas, o que absolutamente não colide com o princípio já sustentado a propósito da venda de árvores e frutos pendentes,

negando a um ato dessa natureza a possibilidade de t ranscrição (cfr. 2.º volume, n.º 245, pág. 178), pois as situações são diferentes.

444. EXTENSÃO DO USUFRUTO. – Do ponto de vista da propriedade imobiliária, a extensão do usufruto compreende as acessões destinadas à exploração de um prédio ou para o uso de uma casa.

Essa extensão é a mais completa possível, pois, segundo o disposto no art. 716 do Código Civil, “salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos”.

Não há mais lugar, dentro no nosso Código Civil, para a distinção que os jurisconsultos faziam,

entre os acréscimos da coisa quando impercept íveis, incrementum potens, para incluir no usufruto os aluviões e excluir a ilha.

O nosso Código é omisso sôbre essa distinção, e todos os comentadores admitem que o usufruto compreende a ilha, porquanto esta

(1) – M. I. Carvalho de Mendonça, Do Usufruto, n.º 24.

[153]

não é separada da propriedade, uma vez que surja dentro do limite das águas até onde vai a propriedade (1).

445. CARACTERES DO USUFRUTO. – Passemos agora à análise dos pontos que precìpuamente caracterizam o usufruto.

a) Intransmissibilidade do usufruto – Quer por ato inter-vivos, quer por ato mortis causa, o usufruto é intransmissível (Cód. Civ., art. 717), princípio êsse que sòmente uma exceção

comporta – em se tratando do proprietário da coisa – caso em que é possível a transferência por alienação.

b) O usufruto é temporário – Corolário natural da intransmissibilidade, é o da temporariedade do usufruto. Em se tratando de pessoas naturais, o usufruto tem a duração prefixada no ato institutivo; sendo o titular pessoa jurídica, extingue-se com esta, ou, se ela perdurar, aos cem anos da data em que s e começou a exercer (Cód. Civ., art. 741).

Duas conseqüências precisam ser focalizadas.

1.º) Usufruto simultâneo. – O usufruto pode ser constituído em favor de dois ou mais indivíduos, mas nesse caso extinguir-se-á parte a parte em relação a cada um dos que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão dêsses couber aos sobreviventes (Cód. Civ., art. 740).

Resultando do exposto não haver direito de acrescentar entre usufrutuários conjuntos, a menos

que se haja estipulado expressamente em contrário, ou no caso do art. 1.716 do Código Civil, se se tratar de sucessão causa mortis.

2.º) Usufruto sucessivo. – Diferentemente do simultâneo, o usufruto sucessivo se caracteriza pela possibilidade de uma pessoa gozar primeiramente da coisa e depois que ela perde o seu direito ou morre, o mesmo passa a ser exercido pelo outro usufrutuário.

Essa forma de usufruto, permitida nas Ordenações, é formalmente repelida atualmente, pois o usufruto deve cessar com a morte do usufrutuário.

E‟ preciso, porém, considerar que a instituição de um duplo usufruto não redunda em nulidad e da respectiva cláusula testamentária; considera-se não escrita a parte referente ao segundo; o beneficiado com a sua propriedade entra no gôzo do bem a êle transmitido causa

(1) - M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., pág. 74; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 364. (1) – N. Stolf i, Diritto Civile, II, parte 2.ª, n.º 178; Venezian, ob. cit., II, pág. 809; J. M. de Carv. Santos, ob. cit., IX, pág. 336; Enneccerus-Kipp-Wolff, Der. das Cosas, II, pág. 94.

[154]

mortis, logo que falece o primeiro usufrutuário nomeado pelo falecido (2).

c) O usufruto é um direito real. – Como direito real, o usufruto é exercido erga omnes,

determinando direitos e obrigações entre o seu titular e o da nua propriedade. Consiste no uso e gôzo da coisa, independentemente da vontade do proprietário, diferenciando-se da enfiteuse, que envolve o poder mais amplo de disponibilidade e de perpetuidade; e da locação, pois nesta

o uso e gôzo da coisa são produtos de um direito meramente pessoal e acentuadamente limitado no tempo.

446. CONSTITUIÇÃO DO USUFRUTO. – Não sendo legal, isto é, não resultante de uma disposição expressa de lei, o usufruto, para seu nascimento exige:

a) Um ato jurídico entre vivos.

b) Uma disposição “causa mortis”.

M. I. Carvalho de Mendonça (1), assinala pontos de notáveis diferenças entre uma e outra forma de constituição.

No caso de constituição inter vivos, o instituído não recebe desde logo o jus in re, que fica dependendo da inscrição. Se o instituidor vende a propriedade antes da inscrição, ela passa ao comprador livre de encargo real.

No caso de usufruto causa mortis, o legatário adquire o jus in re só pelo fato da morte do testador sem dependência da tradição nem do fato de herdeiro.

447. CONSTITUIÇÃO DE USUFRUTO POR ATOS INTER VIVOS. – Duas modalidades de constituição de usufruto inter vivos: a título gratuito e a título oneroso. Além disso, a constituição do usufruto pode ser pura, a têrmo, sob condição resolutiva (1).

Quer se trate de constituição de usufruto a título gratuito ou oneroso, as condições exigidas para

a validade dos títulos translativos da propriedade são igualmente necessárias à validade do título constitutivo do usufruto (2).

O usufruto, instituído entre vivos, pode assumir as seguintes formas:

a) pode o doador alienar pura e simplesmente a propriedade despida do uso e gôzo, reservando êstes para si;

b) pode dispor do uso e gôzo, reservando para si a propriedade;

(2) – Carlos Maximiliano, Dir. das Sucessões, II, n.º 1.255.

(1) – M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., pág. 90. (1) – Lafayette, Direito das Coisas, § 95. (2) – Aubry et Rau, Droit Civil, II, § 278.

[155]

c) pode instituir conjuntamente dois titulares, deferindo a um a propriedade e a outro o uso e gôzo (3).

448. DOAÇÃO. – O usufruto pode ser instituído por meio de doação. Devem ser preenchidos os requisitos de capacidade para o doador, com a aceitação expressa ou tácita do donatário (Cód. Civil, art. 1.166).

E‟ necessário, portanto, que o doador seja o proprietário do imóvel, objeto da doação; se fôr simplesmente nu proprietário da coisa a doação do usufruto fica implìcitamente subordinada à

condição suspensiva da cessação do usufruto existente e da consolidação preliminar nas mãos do doador, antes da morte do donatário (1). A inscrição do usufruto sob condição suspensiva, nas condições acima mencionadas, é perfeitamente admissível, pois em nada afeta ao direito do usufrutuário efetivo.

De interêsse prático é a doação feita com reserva de usufruto, por fôrça da qual se atribui ao donatário a nua propriedade, reservando o doador rara si o direito de usufruto sôbre o imóvel que antes tivera sob sua propriedade plena.

E‟ uma forma, atualmente em prática, por meio da qual os ascendentes fazem, por ato entre vivos, a divisão de seus bens com os seus descendentes.

Nesse caso o processo do registo é o seguinte: faz-se a transcrição do ato t ranslativo da nua propriedade e a inscrição do usufruto.

Se, ao contrário, o doador fizer apenas a doação do usufruto, depois de se inscrever êste, far-se-á, na transcrição do imóvel, a averbação da constituição do usufruto.

Fôrça é considerar, ainda, que a doação da nua propriedade implica sempre na reserva de usufruto em favor do doador, mesmo que o ato institutivo silencie a respeito, bem como deve -se ter em vista

que a existência jurídica do usufruto fica prejudicada, se o direito não fôr destinado a uma pessoa determinada, pois o direito de obrigação a constituição de um usufruto pro quolibet seria um direito sem objeto determinado (2).

Não se admite também uma reserva de usufruto que o doador estabelecesse para si e para os seus

herdeiros, pois a estipulação implicaria na aquisição do usufruto pelo doador e êste não pode transmitir aos herdeiros, em tais condições, sem conferir ao usufruto uma duração ultravital ícia.

(3) – M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., n.º 49. (1) – Venezian, ob. cit., I, n.º 156.

(2) – Venezian, ob. cit., I, n.º 158.

[156]

Quanto à forma, a doação deve ser feita por escritura pública ou particular (Cód. Civ., arts. 134 e 1.168).

449. CONTRATO. – O usufruto, quando constituído a título oneroso, tem por base um contrato.

A primeira forma com que se apresenta é a venda.

Sôbre essa forma de constituição, proferimos a seguinte decisão:

“Vistos, etc.:

Manuel da Silva Quintas, a fls. 2, pede seja declarada improcedente a dúvida oposta pelo Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, quanto à transcrição da escritura de compra de

vários lotes de terrenos, sitos à Estrada de Água Grande, sendo o usufruto dos referidos lotes para o requerente e sua mulher, e a nua propriedade para o único filho do casal, o menor José Braga Quintas.

À fls. 6 verso constam os fundamentos da dúvida que se resumem nos seguintes: a) que

o pacto outorgando o usufruto aos pais e a nua propriedade ao fi lho é absurdo e não encontra apoio na lei nem na jurisprudência, nem na prática; b) que a escritura impugnada contém um contrato sui generis, de difícil qualificação jurídica; c) que para a

vontade dos contratantes ser expressa de maneira legal, impõe-se uma escritura de compra e venda com a doação e reserva de usufruto, pois não há como admitir a venda simultânea do usufruto a um dos contratantes e o domínio direto a outro, desde que o direito de propriedade é indivisível, salvo se um único caso – a enfiteuse.

Indo a processo com vista ao Dr. Promotor interino, êste opinou no sentido de que o próprio enunciado da escritura justificava a procedência da dúvida.

Isto pôsto:

I) – Por escritura lavrada em notas do tabelião da 7.ª Pretoria Cível, Arlindo Borges de

Freitas e sua mulher venderam vários lotes de terreno, especificados na referida escritura a Manuel da Silva Quintas, sendo que a êste a nua propriedade, e aos primeiros o usufruto dos referidos lotes.

Como já se viu do relatório, tanto o Oficial do Registo, como a Promotoria, se insurgiram

contra essa operação, considerando-a sem amparo, quer na lei, quer na jurisprudência, quer na prática, e chegando-se ao extremo de se afirmar

[157]

que a procedência da dúvida espontava do próprio enunciado do contrato celebrado.

Conseqüentemente resta apurar se efetivamente há êsse absurdo jurídico, impedindo a transcrição da escritura impugnada.

II) – Cumpre ressaltar, antes de tudo, que se trata, no caso sub-judice, de uma constituição de usufruto.

A constituição de um usufruto é ato jurídico bem diferente da alienação do usufruto.

A primeira dá-se por fôrça da lei ou pela vontade do homem; a segunda, é por ato vedado por lei (Código Civil, art. 617) porquanto o usufruto só pode ser transferido, por alienação, ao proprietário da coisa; a primeira, é realizada por quem possui a

propriedade plena da coisa e que destaca para transferir a outrem uma parte dêsse mesmo direito, isto é, o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, a segunda, seria a alienação dêsse direito já constituído, outorgado por quem não é titular

pleno da propriedade, pelo que só se permite a transferência do seu exercício, a menos, como já disse, que se trate do proprietário da coisa (Cód. Civ., art. 717).

E‟ claro, portanto, que o vendedor ou vendedores, sendo proprietários plenos da coisa vendida, constituíram um usufruto, a título oneroso, alienando a nua propriedade a um dos outorgados e o usufruto aos demais.

III) – Essa operação jurídica constitui, como se afirma no processo, um absurdo jurídico, que obsta a transcrição da escritura impugnada?

De modo nenhum. Nem a lei, nem a doutrina ministram qualquer elemento justificativo dessa impugnação. Ao contrário. A lei, como vimos, proíbe apenas, a alienação do

usufruto já constituído. Nenhum outro dispositivo existe, direta ou indiretamente vedando um proprietário constituir, a t ítulo oneroso, um usufruto, ou alienar a nua propriedade a um e o usufruto a outro.

Se passarmos à doutrina, encontraremos, então, uma uniformidade que liquida a

questão. Todos afirmar a possibilidade do usufruto estabelecido pela vontade do homem, quer a título oneroso por venda, permuta, transação, etc., quer a t ítulo gratuito, por doação inter-vivos ou por testamento (Huc. Comm., IV, n.º 169; Aubry et Rau, Droit Civil,

t. 2.º, § 228; Planiol-Ripert, t. 3.º, por M. Picard, n.º 762, pág. 718; Baudry-Lacantinerie e Chauveau, Tratt. di

[158]

Dir. Civ., IV, n.º 455; Fuzier-Herman, Cód. Civ. Ann., t. 1.º, pág. 791).

Era uma forma já conhecida do Direito Romano, que reputava o direito assim constituído, como sendo per deductione.

No mesmo sentido, igualmente, a doutrina italiana: Ruggero, Inst., II, § 81; Venezian, Dell ’ Usufrutto, I, n.º 312.

N. Stolfi (ob. cit., loc. Cit.), embora acentuando tratar-se de uma hipótese extraordinária – a constituição do usufruto por venda – contudo diz que a sua possibilidade deve ser mencionada.

Também não é menos favorável a nossa doutrina. Lafayette (Dir. das Coisas, § 95) aceita a constituição do usufruto por ato entre vivos e a título oneroso ou gratuito.

M. I. Carvalho de Mendonça (Do Usufruto, n.º 49, pág. 91) é o mais preciso e dentre outras formas de constituição de usufruto, especifica mesmo a que se vê da escritura

impugnada. Diz êle: “O usufruto constituído inter vivos pode ser a título oneroso ou gratuito. Ordinàriamente, êle se funda em doação, permuta, ou em título de venda. Em caso de dúvida presume-se oneroso o que é constituído por contrato e gratuito o que é

fundado em testamento. No usufruto entre vivos a instituição pode assumir formas diversas:

a) pode o doador alienar pura e simplesmente a propriedade despida do uso e gôzo, reservando êstes para si;

b) pode dispor do uso e gôzo, reservando para si a propriedade;

c) pode instituir conjuntamente dois titulares, deferindo a um a propriedade e a outro o uso e gôzo”.

Depreende-se, fàcilmente, ante a lição supra, que a escritura impugnada não encerra nenhuma aberração jurídica, mas se trata de um ato perfeito, apto a ser transcrito e só de extraordinário possui a sua raridade.

IV) – Deve, portanto, ser transcrita a escritura objeto da dúvida, fazendo-se a transcrição

da alienação da nua propriedade e a inscrição da constituição do usufruto, nos competentes livros.

Nesta conformidade

Julgo improcedente a dúvida oposta pelo Sr. Oficial do 8.º Ofício de Imóveis, determinando que se faça a transcri-

[159]

ção requerida a fls. 2, nos têrmos dos fundamentos da presente decisão. P. I. R.

Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1939. – Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES”.

450. CONSTITUIÇÃO DE USUFRUTO MORTIS-CAUSA. – A constituição de usufruto mortis-causa dá-se em virtude de testamento.

A análise dessa forma de constituição de usufruto, quanto ao ponto de vista restrito do Registo Imobiliário, se circunscreve à apreciação do formal de partilha do qual conste o referido direito.

E‟ forçoso, porém, nessa última forma de constituição de usufruto, ter-se em vista a distinção entre usufruto e fideicomisso, bem como o princípio geralmente admitido de que “há fideicomisso

tôda vez que o testador ordena a passagem dos bens a outrem por morte do primeiro chamado a suceder, embora em relação a êste fale em usufruto; existe usufruto, se o gôzo, atribuído ao primeiro nomeado, fica extinto por sua morte, pelo cumprimento da condição, ou vencimento do

prazo. Exemplos: a) Instituo meu herdeiro Pedro, e, pó sua morte, Paulo (fideicomisso); b) Deixo o uso e gôzo da minha fortuna a Pedro, e a propriedade da mesma a Paulo (usufruto)” (1). O citado autor assim sintetiza as noções diferenciais entre os dois institutos:

a) no fideicomisso, há dois direitos sucessivos, isto é, um começa a ser vencido quando termina o outro; são simultâneos, no usufruto;

b) no fideicomisso a propriedade é do fiduciário, a princ ípio; o usufrutuário não a tem; cabe a êste o uso e gôzo; àquele o uso, gôzo e domínio, embora temporário, resolúvel;

c) o fiduciário pode alienar o seu direito e o bem; ao usufrutuário apenas se faculta o t ransferir o seu direito, e só ao nu proprietário; quanto ao domínio, nenhuma possibilidade de dispor lhe cabe;

d) falecido o fiduciário antes de findo o prazo ou de ser satisfeita a condição para entrega, o seu direito fica de pé, aproveitado pelos seus sucessores; morto o usufrutuário, cessa o usufruto;

e) o fideicomissário tem só a expectativa do domínio; o nu proprietário tem o domínio, desde logo;

f) aquêle que não pode transferir o domínio, enquanto perduram as prerrogativas do fiduciário; o nu proprietário pode fazê-lo ao tempo em que está em vigor o usufruto;

(1) – Carlos Maximiliano, Dir. das Suc., II, n.º 1.258.

[160]

g) morto o fideicomissário antes do fiduciário, cessa o fideicomisso; falecido o nu proprietário,

não termina o usufruto, nem a nua propriedade; esta é t ransferida aos herdeiros do nu proprietário;

h) incumbe ao nu proprietário o domínio; ao usufrutuário, o uso e gôzo; cabe ao fideicomissário o domínio, uso, e gôzo; ao fiduciário, também, domínio, uso e gôzo;

i) o fideicomisso advém de testamento, apenas; o usufruto é estabelecido em testamento, ato entre vivos e disposição de lei.

Todos êsses elementos de distinção apontados por C. Maximiliano, com exceção do relativo ao fideicomisso sòmente poder ser constituído por ato entre vivos, ponto que analisaremos oportunamente, são perfeitamente aceitáveis.

Relativamente à confusão dos dois institutos quando oriunda de formal de partilha, assim decidimos:

“Vistos, etc.

Basílio Pontes de Carvalho, à fls. 2, alega que, no inventário de sua mulher Camila Rosa Pires Pontes, lhe foi adjudicado, com a cláusula de usufruto, o prédio e o respectivo terreno sito à rua Tôrres Homem n.º 203 e que, levando à transcrição a respectiva carta

de adjudicação, o Sr. Oficial do 5.º Ofício de Imóveis suscitou dúvida, sob o fundamento de que a verba testamentária consigna um fideicomisso e não um usufruto.

Argúi então o requerente que ao referido Oficial falece competência para opor dúvida à interpretação judicial, constante já de uma sentença que transitou em julgado. Ouvido o

Dr. Promotor de Registos êste opinou no sentido de que ao Oficial falta competência para suscitar dúvida sôbre a matéria que constituiu objeto da própria sentença, por fôrça da qual o título tem de ser transcrito. Isto pôsto:

I) – Como reiteradas vêzes temos tido a oportunidade de sustentar: em se tratando de

uma ordem judicial, de uma sentença, a dúvida do Oficial de Registo é circunscrita a matéria estranha à coisa julgada. Êsse é o caso dos autos: pelo juiz competente a verba testamentária foi interpretada como usufruto. Por mais fortes que sejam as razões

jurídicas desenvolvidas na dúvida, por mais clara que surja a figura jurídica do fideicomisso, é impossível, diante da sentença que afirmou o contrário, reabrir a questão, reexaminar pontos que não mais podem ser discutidos. Conseguintemente, por êste lado, nada há mais a fazer senão dar cumprimento à sentença.

II) – Contudo, não podemos deixar de assinalar que, se a coisa julgada em si não pode ser objeto de dúvida, en-

[161]

tretanto é suscetível de dúvida tudo quanto não concernir ao seu objeto. Assim sendo, e partindo do ponto de vista de que, acatando-se a coisa julgada, existe um usufruto, é

óbvio que a instituição dêste, causa mortis, determina, necessàriamente, como bem acentuou o Sr. Oficial, a existência de dois titulares: o nu proprietário e o usufrutuário, subordinada a transcrição do t ítulo do primeiro, e a inscrição o do segundo. Mas quais são os titulares da nua propriedade?

Difícil encontrá-los na verba testamentária, de vez que está assim redigida: “sendo que depois da morte de seu referido marido dos bens que constituirem meação dada em usufruto, será tida a quantia de quatro contos de réis, em moeda brasileira, para o irmão

dela testadora Manuel Justino Pires e sua mulher, e caso não mais existam ao tempo da morte do marido dela testadora, passará aos legítimos herdeiros do casal do seu referido irmão; disse que os remanescentes da aludida meação ficarão pertencendo a Tito e José Areal, ambos filhos de Eduardo Areal”.

Ora, é bem claro que sendo o usufruto um direito real sôbre a coisa alheia, não se pode

inscrever o seu título constitutivo, sem que também não fiquem perfeitamente definidos os titulares da nua propriedade.

Destarte, não se opõe dúvida ao cumprimento de uma ordem judicial, nem se pretende interpretar diferentemente investindo contra o que ficou determinado na sentença de adjudicação.

Aceita-se, como certa, a instituição do usufruto, mas é preciso que fique positivado a quem cabe a nua propriedade. Sem isso, não é possível efetuar-se a inscrição.

E‟ uma questão de ordem administrativa do registo imobiliário, e que nenhuma sentença pode querer impor-se a tal ponto de a infringir.

E onde se acha o dispositivo que impõe a inscrição do usufruto subordinada a da nua propriedade?

Decorre, primeiramente, da necessidade de menções precisas no Indicador Real e no Indicador Pessoal (artigos 188, 190 do dec. 4.857, de 1939).

Em seguida, é o disposto no art. 192 do supramencionado Decreto: “se no mesmo ato figurar mais de uma pessoa, ativa ou passivamente, o nome de cada uma será lançado distintamente no Indicador Pessoal, com referência recíproc a, na coluna de anotações”.

Ora, no usufruto, fôrça é repetir, dois titulares de direitos diversos figuram sôbre a mesma coisa. Poder-se-á

[162]

argüir que o dispositivo legal se refere a mais de uma pessoa, sob uma relação jurídica ativa e passiva, o que não seria o caso de usufruto, mas a própria lei desfaz qualquer

equívoco preceituando, no art. 236, que, para os efeitos de escrituração, serão considerados credores e devedores, respectivamente: “no usufruto, o usufrutuário e o nu proprietário”. E a conclusão lógica, quer partindo-se do ponto de vista das regras

administrativas relativas à feitura do Registo Imobiliário, é a seguinte: sem a especificação dos nomes dos nus proprietários, não é possível efetuar-se a inscrição de um usufruto. Nesta conformidade,

Julgo procedente a dúvida oposta pelo Sr. Oficial do 5.º Ofício de Imóveis, ressalvando a

parte requerente a inscrição da carta de adjudicação, desde que a mesma esclareça e indique os titulares da nua propriedade, condição especial, para a inscrição do usufruto.

Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1939. - Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES”.

451. REGISTO DO USUFRUTO. – Como direito real que é, o usufruto, conforme já se disse, exige, para sua constituição inter vivos, a inscrição do respectivo ato institutivo.

A inscrição do usufruto deverá ser levada a efeito no livro 4, de acôrdo com o preceito geral contido no art. 186 in fine em combinação com o art. 250.

Certas questões, entretanto, são suscitadas em tôrno às várias mo dalidades do instituto. Passaremos a analisar cada uma delas.

a) Reserva de usufruto. – Dissemos que no caso do doador reservar para si o usufruto, o processo do registro deverá consistir na transcrição do ato translativo da nua propriedade e na inscrição do usufruto.

Isto que se nos afigura princípio tão claro e incontestável, foi, porém, combatido por Luzzati (1).

Não há na reserva de usufruto, afirma êle, duas mutações, mas uma só: quanto à reserva de

usufruto, porque não se pode constituir um usufruto sôbre si próprio, e porque a nua propriedade não é separável do usufruto nas mãos do mesmo proprietário; e quanto às servidões, pela máxima res sua nemini servit. Rebatendo a opinião de Flandin, diz que o direito de propriedade concentra no proprietário uma série de direitos que se podem idealmente distinguir ainda

(1) – Luzzati, ob. cit., I, n.º 215.

[163]

quando se confundem nas mãos do proprietário mesmo, embora materialmente inseparáveis. E finaliza: “o direito que o proprietário se reserva, quer se trate de usufruto quer de nua propriedade, ou um direito de servidão, de uso e de habitação, será certamente um direito

constituído sôbre uma coisa já passada em mãos de outrem, como pretende Verdier; será um resíduo do antigo di reito de propriedade” (2).

N. Coviello (3), refuta admiràvelmente a teoria de Luzzati, acentuando que o raciocínio assenta sôbre um antigo e inexato conceito da propriedade. Êste não pode mais ser considerado como

uma soma, um complexo de vários direitos, mas sim um direito único que possui variegadas e proteiformes manifestações formadoras das diversas faculdades do proprietário. É tanto assim, aduz o referido jurista, que quando a propriedade sofre qualquer limitação, não fica alterada a sua essência.

Considerada, por êsse modo, a noção de propriedade, a conclusão lógica é de que a reserva feita pelo alienante não é uma conservação de direito preexistente. E doutrina: “êle não tinha senão um único direito de propriedade; se dêle se despoja, nada pode permanecer”. “Se o

alienante como proprietário não tinha certamente direito separado do usufruto ou do uso, e por fôrça da reserva vem a obtê-lo, é evidente que adquire um direito novo e a reserva é uma nova constituição de direitos. Quem afirma que, assim pensando, se incide no absurdo de fazer

constituir em direito sôbre si mesmo, contra o princ ípio do nemini res sua servit, parte da falsa crença que a reserva seja um ato anterior à alienação. Mas assim não é: pela mesma contemporaneidade dos atos de alienação e de reserva, esta nem ao menos materialmente pode conceber-se como anterior”.

Não há dúvida que essa é a boa doutrina e a ela nos filiamos porque, além do que ficou exposto, é a única compatível com o nosso sistema legislativo.

Indiscutível é a preponderância doutrinária dos que consideram o direito de propriedade como sendo um direito único, embora contendo em si várias modalidades. Como explica Biagio Brugi

(4) “não se forma a propriedade serrando em um grupo várias faculdades; ao contrário, as diversas relações da propriedade têm vida ùnicamente em conseqüência da propriedade”.

Do que se segue que quando no mesmo ato o doador impõe o ônus de usufruto, tal ônus deve

ser inscrito ao lado da transcrição do domínio que passa de pleno a uma relação de nua propriedade.

(2) – Luzzati, ob. cit., n.º 917. (3) – Coviello, ob. cit., II, n.º 312.

(4) – Biagio Brugi, Della Proprietá, I, n.º 18.

[164]

Assim parece não ter entendido a 1.ª Câmara do Tribunal de Apelação de Belo Horizonte que decidiu que “a doação com que os pais fazem aos filhos, com reserva de usufruto não se

confunde com a constituição do jus in re aliena. E‟ antes uma cláusula que se torna pública desde a transcrição do ato da doação, que se mantém inalterável através das mutações ulteriores, prevalecendo como foi imposta, independentemente de inscrição especial (Ac. da 1.ª

Câmara, do Trib. de Ap. de Minas Gerais, de 14 de março de 1946, in “Diário Forense”, de 27 de março de 1946).

O caso decidido consistira numa doação feita pelos pais aos filhos com o ônus de usufruto em benefício dos doadores, além da inalienabilidade do domínio. A despeito da cláusula da

inalienabilidade, uma parte dos condôminos foi penhorada e vendida em hasta pública. A viúva meeira e doadora, com o direito de usufruto, reclamou tais direitos, denegados pelo juiz de 1.ª instância sob o fundamento de se não encontrar inscrito o ônus de usufruto. Como se vê do

acórdão, a 1.ª Câmara reconheceu que a cláusula de inalienabilidade e a transcrição da doação obstavam a alienação a terceiro e ao mesmo tempo tornavam incontestável o direito de usufruto.

Não entendemos certa a dispensa da inscrição. Era uma formalidade indispensável para constituir o usufruto, entretanto há a considerar na espécie a existência de uma cláusula de inalienabilidade que veda a transmissão a terceiro, mesmo efetuada por hasta pública.

b) Cessão de usufruto. – Já vimos que o art. 717 do Código Civil, proibindo a alienação do usufruto a outra pessoa que não o proprietário da coisa, facultou, ent retanto, a cessão do seu exercício por título gratuito ou oneroso. Diante disso, ocorre suscitar a seguinte questão: é subordinada ao Registo de Imóveis a cessão do exerc ício de usufruto?

A solução da questão depende de se saber se o exerc ício do usufruto constitui ou não um direito real: se existe na cessão dêsse direito um conteúdo real, é lógico o requisito do registo imobiliário; se há meramente uma relação de ordem pessoal, prescinde -se dêle.

Primitivamente, no Direito Romano, o usufruto era intransmissível, quer em si mesmo considerado, quer quanto ao seu exercício.

Êsse aspecto decorria da sua função originária: conciliar os interêsses da família em conservar um patrimônio com o interêsse daquele que, sem fazer parte do tronco familial, tinha direito de participar do primeiro. À família tocava a propriedade e ao membro na referida situação – a

viúva, a filha e o liberto – era atribuído o usufruto, com o intuito de assegurar a subsistência do usufrutuário.

A função do usufruto se transformou mais tarde.

Dilatado o seu modo constitutivo, que deixou de ser ùnicamente o legado para compreender o ato inter-vivos, essa circunstância de-

[165]

terminou a transformação de sua função, passando de instituto caracterizadamente alimentar a instituto de caráter econômico, redundando, ainda, na sua transmissibilidade (5).

A questão da t ransmissibilidade do usufruto continua ainda têma de discussões. No direito francês, como no direito italiano, discutem os juristas se os respectivos códigos permi tem a cessão do direito de usufruto ou simplesmente a do seu exerc ício.

Entre nós, como se observa no art. 717 do Código Civil, tais dúvidas não existem. O que clara e ùnicamente pode ser objeto de cessão é o exercício do direito de usufruto.

E êsse exercício não constitui um direito real, como passaremos a ver.

A diferença entre a cessão do direito de usufruto e a cessão de seu exercício consiste em que cedendo o direito se transfere o próprio direito real de usufruto, esclarece Venzi (6); enquanto que não cessão do exerc ício se estabelece uma relação de direito pessoal entre cedente e

cessionário, por fôrça da qual aquêle é obrigado a fazer gozar a êste o usufruto; neste caso, o direito real permanece no cedente, o qual, por esta razão, continua usufrutuário nas relações com o nu proprietário e com terceiros.

O destaque da perceptio fructum, do exerc ício do direito não tem outro sentido, senão como constituição de uma relação puramente obrigatória entre cedente e cessionário (7).

No direito alemão, cujo código contém um dispositivo idêntico ao nosso art. 717 – o art. 1.059 – geralmente se admite que o adquirente do exerc ício de uma das faculdades compreendidas no usufruto, contràriamente ao direito comum, “não adquire nenhum direito real nem sôbre o

usufruto nem sôbre a coisa”. Também esta cessão não tem necessidade de ser transcrita no Livro Imobiliário (8), embora a doutrina dominante considere que o direito de crédito do adquirente, em relação ao usufrutuário, seja reforçado pela posse (9).

A conclusão é, pois, de que a cessão do exerc ício do usufruto não pode ser considerada um ato

suscetível de inclusão no Registo Imobiliário, porquanto se trata de uma relação jurídica de direito puramente pessoal e não real.

(5) – Perozzi, Instituzioni di Diritto Romano, I, § 106; Venzi, ob. cit., II, pág. 744. (6) – Venzi, nota “i”, in Pacif ici-Mazzoni, Inst., III, parte 2.ª, pág. 171.

(7) – Venzi, ob. cit., II, pág. 753. (8) – Cód. Civ., All. comenté par le Comité de Législation Étrangère, II, pág. 665. (9) – Ennecerus-Kipp-Wolf, ob. cit., II, pág. 93.

[166]

c) Atos modificativos do usufruto. – São sujeitos ao registo imobiliário, cumprido fazer-se a inscrição, os atos modificativos do usufruto.

Claro está que tais atos sòmente podem ser estabelecidos entre o nu proprietário e o usufrutuário.

Considera-se modificação de usufruto o ato que importe numa extensão ou numa limitação da

substância do direito precedentemente constituído, produzindo uma alteração da figura jurídica, como se fôra constituição de um direito novo ou uma renúncia parcial (10).

Assim, por exemplo, entre o nu proprietário e o usufrutuário estabelece-se uma convenção, por fôrça da qual o usufruto de uma fazenda fica restrito a uma determinada área ou excetuada uma

floresta, etc. Trata-se de um ato relativo à substância do direito e que, por conseguinte, está sujeito a nova inscrição, e não a uma simples averbação, pois versa sôbre um direito com novo aspecto.

Igualmente N. Coviello considera como ato modificativo sujeito ao registo, o relacionado com o tempo de duração do usufruto.

Se ficar pactuado um prazo de usufruto maior do que o convencionado, ou se se estabelecer o seu encurtamento, em ambos os casos se faz mister o registo, pois, no primeiro caso, surge um ato constitutivo, e no segundo, uma renúncia parcial.

452. EXTINÇÃO DO USUFRUTO. – Em relação ao Registo de Imóveis, a extinção do usufruto

se opera pelo cancelamento da respectiva inscrição. E‟ preciso distinguir, porém, as causas de extinção que podem dar lugar a êsse cancel amento, independente de ordem judicial, das que não podem prescindir do mandado do juiz, por fôrça de sentença.

Ao analisarmos cada um dos modos extintivos indicaremos quando há necessidade ou não da sentença do juiz.

453. CAUSAS DE EXTINÇÃO DO USUFRUTO. – Nos modos terminativos do usufruto, fôrça é distinguir os que são necessários, isto é, os que decorrem da própria natureza do instituto, dos que não o são, nesse sentido de que não emanam da natureza do instituto e sim de causas externas.

No primeiro caso estão a morte do usufrutuário e a consolidação. Todos os demais não participam da natureza do instituto.

As causas de extinção de usufruto, contempladas na lei são as seguintes:

1.º) Morte do usufrutuário.

2.º) Pelo têrmo de sua duração.

(10) – N. Coviello, ob. cit., II, pág. 272.

[167]

3.º) Pela cessão da causa que se originou.

4.º) Pela destruição da coisa, não sendo fungível, guardadas as disposições dos arts. 735, 737, 2.ª Parte, e 738.

5.º) Pela consolidação.

6.º) Pela prescrição.

7.º) Por culpa do usufrutuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo os reparos de conservação.

a) Morte do usufrutuário. – E‟ da essência do usufruto ser temporário, de modo que o preceito que impõe a sua extinção pela morte do respectivo titular, é uma norma de ordem pública, que não pode ser modificada pela convenção das partes.

O prazo que se estipular para a sua duração fica subordinado ao falecimento do usufrutuário e

não pode ser protraído por um período superior, ai nda que se não haja consumado inteiramente ao tempo do falecimento do usufrutuário.

Havendo mais de um titular do usufruto, a regra a seguir é a do art. 740 do Código Civil, se se tratar de ato inter vivos ou a do art. 1.716, se o usufruto houver decorrido causa mortis.

Se o usufrutuário fôr pessoa jurídica, o usufruto extingue-se com a terminação dela, ou, se ela perdurar, aos cem anos da data em que se começou a exercer (Cód. Civ. art. 741).

Sendo a morte do usufrutuário a causa da extinção do usufruto, quer se trate de um usufruto constituído inter vivos ou mortis causa, é necessário requerer o nu proprietário ao juiz competente que, à vista da certidão de óbito, declare extinto o usufruto.

Em se tratando de usufruto constituído por ato inter vivos, o juiz competente para determinar o

seu cancelamento é naturalmente, salvo disposição especial de lei em contrário, o sob cuja jurisdição estiver o oficial do registo.

Em se tratando de usufruto instituído causa mortis, o competente para processar e julgar a extinção deve ser o juiz do respectivo inventário.

Do mesmo modo, se se tratar de pessoa jurídica, quer no caso de extinção desta, quer no do

decurso do prazo de 100 anos, deve-se considerar necessário um processo administrativo em que o juiz, reconhecendo aquelas duas situações, julgue extinto o usufruto.

Como princ ípio geral, deve-se ter em vista que ao Oficial de Registo sòmente é lícito levar a efeito o cancelamento do ônus real quando fundado em t ítulo que, por si mesmo, prove a causa extintiva.

Quando essa causa extintiva depender de prova de circunstâncias especiais, é necessária a intervenção judicial.

[168]

b) Expiração do têrmo do usufruto. – Têrmo, ensina Clóvis Beviláqua (1), é o dia no qual tem de começar ou de extinguir-se a eficácia de um negócio jurídico. No têrmo, o acontecimento é certo,

embora possa haver incerteza em relação ao momento, de modo que, sob êsse ponto de vista o têrmo pode ser certo ou incerto: certo, quando fixado para determinar o dia, mês e ano; incerto, quando há incerteza do momento, porém, o acontecimento é futuro e necessário, v. g. no no dia em que falecer X...

Trata-se de um têrmo certo ou incerto, de qualquer modo, com a sua superveniência, opera-se a extinção pleno jure do usufruto.

Não é necessário nem possível um pronunciamento judiciário para determinar êsse modo de extinção (2).

Em relação ao Registo de Imóveis, deve constar da inscrição do usufruto a especificação do têrmo convencionado para a sua duração. À vista da mesma, o nu proprietário pode requerer ao Oficial o cancelamento do ônus. Não há mister de outra prova, se se tratar de um têrmo certo.

Se se tratar de um têrmo incerto, é necessária a intervenção do juiz para reconhecer e fixar o momento do vencimento do têrmo.

c) Cessação da causa do usufruto. – M. I. Carvalho de Mendonça (3), critica fortemente a inclusão dêsse modo terminativo no nosso Código Civil, acrescentando ser o nosso Código o único que consagrou um tal dispositivo. Depois de algumas considerações interpreta a lei como uma referência exclusivamente ao usufruto legal.

De qualquer modo, em relação ao Registo de Imóveis, trata -se de uma causa que sòmente pode operar o cancelamento da inscrição por fôrça de sentença judicial.

d) Destruição da coisa. – Sôbre êsse modo extintivo do usufruto é muito clara a lição de M. I. Carvalho de Mendonça (4), que convém reproduzir. Diz êle: “quando se diz que o perecimento

da coisa põe têrmo ao usufruto é necessário lembrar que a coisa a que se refere a lei é uma coisa única ou a totalidade de uma coisa múltipla, porque se o usufruto é constituído, não sôbre um objeto ou coisa determinada, mas sôbre um patrimônio ou sôbre uma totalidade de coisa

composta de partes, claro é que o perecimento de uma parte não extingue o usufruto, sôbre o que dela ficar restando: o do acessório não extingue o usufruto do principal”.

O exemplo que dá, esclarece perfeitamente: recaindo o usufruto apenas sôbre uma casa, extingue-se, se a mesma vier a ruir; abran-

(1) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., I, pág. 371.

(2) – Venzi, ob. cit., II, pág. 843. (3) – M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., pág. 218. (4) – M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., n.º 128.

[169]

gendo todos os bens, o usufruto manter-se-á sôbre o solo, se a casa ruir.

E‟ preciso considerar, também, as disposições constantes do art. 737 que assim preceitua:

“Se um edifício sujeito a usufruto fôr destruído sem culpa do proprietário, não será êste obrigado a reconstruí-lo, nem o usufruto se restabelecerá, se o proprietário reconstruir à

sua custa o prédio; mas, se êle estava seguro, a indenização paga fica sujeita ao ônus do usufruto. Se a indenização do seguro fôr aplicada à reconstrução do prédio, restabelecer -se-á o

usufruto“.

A primeira situação é a do prédio que se não acha segurado.

Destruído êste, sem que para essa destruição haja concorrido um ato culposo do proprietário, essa destruição deverá ser averbada no Registo de Imóveis. Também averbada deverá ser a reconstrução.

O cancelamento da inscrição do usufruto, baseado na destruição da coisa, sòmente pode ser levado a efeito, mediante decisão judicial.

Por outro lado, o usufrutuário, provando que a reconstrução foi feita com a indenização do seguro, poderá pedir ao juiz que determine o restabelecimento do usufruto.

Mas, nesse caso, será necessária nova inscrição, ou apenas tornar sem efeito o cancelamento?

E‟ claro que se faz mister nova inscrição. Se o art. 295 determina que “o cancelamento da inscrição não importará a extinção do direito real, que não estiver extinto, sendo em tal caso

lícito ao credor promover novo registo”, com maioria de razão é necessário novo registo, num caso em que o direito real passou por uma fase de extinção transitória.

e) Consolidação do domínio. – Esta é uma causa de extinção que independe da intervenção judicial. Dá-se a consolidação do domínio e, por êsse modo, extingue -se o usufruto, quando o

usufrutuário, inter vivos ou mortis causa, a título oneroso ou gratuito, adquire o direito do nu proprietário, ou, vice-versa, no caso de ser o nu proprietário o adquirente do usufruto. Josserand (5), adverte que pràticamente a consolidação não pode se tornar efetiva senão na pessoa do

usufrutuário, pois, em relação ao nu proprietário, quando o direito do usufrutuário se extingue, é sempre por uma das causas preestabelecidas em lei. Não tem razão, entretanto, a crítica de Josserand, se considerarmos que o usufruto pode ser transferido ao nu proprietário.

(5) – Josserand, Cours de Droit Civil, I, n.º 1.945.

[170]

f) Prescrição. – A prescrição, como forma extintiva do usufruto, se caracteriza pelo fato do não

uso do direito, por parte do usufrutuário, e ocorre, ou porque o usufrutuário não haja pedido a entrega da coisa frutuária durante o lapso de tempo, ou porque, tendo tido já a posse dela e exercido seus direitos, deixou de os exercer durante o mesmo período (6).

O cancelamento da inscrição do usufruto, em conseqüência de prescrição, sòmente poderá ser feito, por fôrça de sentença que haja reconhecido aquela causa extintiva.

g) Culpa do usufrutuário. – A extinção do usufruto, em razão da culpa do usufrutuário, se dá quando êste aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação.

E‟ preciso notar, porém, como ensina M. I. Carvalho de Mendonça, que essa causa de extinção

não opera de pleno direito; é sempre necessário que seja declarada por sentença que retroage ao dia da demanda (7).

h) Outras causas de extinção. – Além das causas extintivas legalmente consignadas, existem outras que podem perfeitamente ser admitidas, a despeito do silêncio da lei. Tais são a renúncia, a resolução do domínio do proprietário e o advento de condição resolutiva.

Na renúncia, o título hábil para o cancelamento da inscrição é a escritura competente.

No caso de condição resolutiva, se a mesma constar do registo imobiliário e puder ser devidamente provada, como se o fato consiste no casamento de alguém, o cancelamento pode ser levado a efeito, à vista tão sòmente da respectiva certidão.

454. USO DE IMÓVEIS. – O direito real do uso é temporário, como o usufruto e por êle, o

usuário fruirá a utilidade da coisa dada em uso, quanto o exigirem as necessidades pessoais suas e de sua família (Cód. Civ., art. 742).

E‟ preciso notar que o usufruto não é um direito diverso em qualidade do uso, mas substancialmente idêntico, e tôda diferença é quantitativa; o usufruto não passa de um uso sem os limites das necessidades da pessoa, e o uso nada mais é do que um usufruto limitado.

Conseguintemente, tudo quanto dissemos a respeito do usufruto é i nteiramente aplicável tanto ao uso como à habitação.

(6) – M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., n.º 130. (7) - M. I. Carvalho de Mendonça, ob. cit., pág. 228.

[171]

455. HABITAÇÃO. – A habitação, como o usufruto e o uso, é um direito real temporário. Assim

ficou caracterizado no art. 746 do Código Civil: “quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular dêste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família”.

[172]

[173]

RENDAS CONSTITUÍDAS OU VINCULADAS A IMÓVEIS

456. RENDAS CONSTITUÍDAS OU VINCULADAS A IMÓVEIS. – O n.º XII da let ra “a” versa

sôbre a inscrição das rendas constituídas ou vinculadas a imóveis por disposição de última vontade.

À primeira vista pode parecer, do inciso legal ora comentado, que sòmente estão sujeitos ao

Registo Imobiliário as rendas constituídas ou vinculadas a imóveis, quando originárias de disposição de última vontade.

Mas tal não acontece: em qualquer caso, o registo imobiliário é sempre necessário. O que pode suceder é que, enquanto a disposição de última vontade está subordinada à formalidade da

inscrição, as decorrentes de atos entre vivos continuam sujeitas à transcrição, segundo a regra geral de constituição de direitos reais sôbre a coisa, além da propriedade.

457. PRINCÍPIOS GERAIS RELATIVOS ÀS RENDAS CONSTITUÍDAS OU VINCULADAS A IMÓVEIS. – A origem do instituto de rendas constituídas ou vinculadas a imó veis se prende a

uma época em que a rigorosa proibição de lucros nos empréstimos compelia a se procurar, por meios indiretos, um emprêgo de capital.

Surgiram, assim, o censo consignativo e o reservativo: o primeiro, consistente na reserva de frutos que, em seu favor, estabelecia o dono de um prédio ao aliená-lo; o segundo, constava de prestações a que alguém se obrigava, mediante recebimento de certo capital (1).

No regime das leis hipotecárias de 1864 e do dec. 169-A, de 1890, os censos não foram contemplados, pois não passavam de encargos pessoais, criados em atos inter vivos, oriundos de nexos obrigacionais (2).

Só se excetuavam os legados de prestações de alimentos, expressamente consignados no imóvel.

(1) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., II, pág. 321. (2) – Dídimo da Veiga, Man. do Cód. Civil, IX, parte 2.ª, pág. 381.

[174]

O Código Civil combinou e desenvolveu tôdas essas figuras jurídicas e assim as definiu Clóvis (3): “é o direito real temporário, que grava determinado bem de raiz, ob rigando o seu proprietário a pagar prestações periódicas, de soma determinada”.

Do que viemos de expor resultam as seguintes conseqüências que forma os característicos do instituto:

a) As rendas constituídas ou vinculadas a imóveis são um direito real. – No direito anterior, as

prestações perpétuas ou vitalícias de rendas, pensões, terças e foros, seguiam a natureza dos imóveis (4).

O Código Civil, porém, não outorgou às rendas êsse caráter. Considerou-as, entretanto, como

direitos reais, se expressamente constituídas sôbre imóveis (Cód. Civ., art. 674, n.º VI), caráter êsse que ainda tornou a confirmar no art. 1.431, com remissão aos artigos 749 e 754.

Como direito real, a renda vinculada a um imóvel acarreta todos os efeitos próprios ao direito real. Assim acompanha o imóvel em tôdas as suas mutações e a obrigação de pagar a renda é

ônus real que grava o prédio. E‟ de salientar, em tudo isso, a seguinte lição de Clóvis Beviláqua (5):

“Não é pelo fato de ser o capital da renda constituído por bem imóvel, que e la se torna direito real, e, sim, por haver imóvel sujeito ao pagamento dela”.

Oportuno, também, destacar-se a profunda diferença entre a renda, simples relação obrigacional, e a renda jus in re aliena.

1.º) sendo relação obrigacional, a renda é devida sòmente pelo devedor, ao passo que, havendo direito real, a obrigação recai na pessoa do proprietário do imóvel, seja quem fôr;

2.º) no primeiro caso, o credor pode exigir do devedor impontual uma caução, ao passo que, no segundo caso, é o próprio imóvel onerado o elemento garantidor da dívida;

3.º) no segundo caso, tem o credor não pago o direito de excutir o imóvel, para o pagamento das prestações como se a gravara uma hipoteca (6);

4.º) diferem os dois casos ainda no modo de operar a transcrição; no simples contrato em que se entrega um imóvel há apenas a transcrição da transferência do domínio; no contrato com efeitos reais há duas transcrições, uma da transferência do domínio, outra

(3) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., loc. cit.

(4) – Teixeira de Freitas, Com. das Leis Civis, art. 43, not. 2; (5) – Clóvis Beviláqua, Man. do Cód. Civil, XIV, pág. 305. (6) – Clóvis Beviláqua, Manual, XIV, pág. 305.

[175]

da constituição do direito real de renda, efetuada cada uma em livro diferente (7).

Fôrça é notar que, em nosso entender, sòmente se pode dar a hipótese sugerida por Lisipo Garcia, se, no ato institutivo da renda, ficar expresso que esta não vincula o imóvel. Só assim se

pode conceber e conciliar a doutrina acima exposta com a natureza real que decorre da renda constituída sôbre imóvel.

b) A constituição de renda é sempre de caráter temporário. – E‟ um dos requisitos estabelecidos no art. 1.424 do Código Civil. “O prazo pode ser determinado ou com referência a certo número

de anos, como se se convencionar que as prestações serão pagas durante dez anos (prazo certo), ou com referência à vida das pessoas, seja credor, ou devedor” (8);

c) A constituição de renda, vinculando o imóvel, torna-se um contrato formal. – Segue-se nesse caso a regra do art. 134 n.º II, do Código Civil.

Além disso, o contrato pode ser a título oneroso ou gratuito, em benefício próprio ou alheio.

E‟ nula, porém, a constituição de renda em favor de pessoa já falecida, ou que, dentro nos trinta

dias seguintes, vier a falecer de moléstia que já sofria, quando foi celebrado o contrato (Cód. Civil, art. 1.425).

d) A constituição de renda vinculada a imóvel é um direito real indivis ível. – Em conseqüência dêsse caráter, no caso de transmissão do prédio gravado a muitos sucessores, o ônus real da renda continua a gravá-la em tôdas as suas partes (Cód. Civ., art. 754).

e) A constituição de renda é um ônus resgatável. – O imóvel sujeito a prestações de renda pode ser resgatado, pagando o devedor um capital em espécie, cujo rendimento, calculado pela taxa legal dos juros, assegure ao credor renda equivalente (Cód. Civ., art. 751).

458. TRANSCRIÇÃO E INSCRIÇÃO DO TÍTULO INSTITUTIVO DA RENDA CONSTITUÍDA OU

VINCULADA A IMÓVEIS. – Como dissemos de início, sendo por ato inter vivos, a constituição de renda sôbre imóveis está subordinada à t ranscrição; se o ato fôr causa mortis, estará sujeito à inscrição, de acôrdo com o inciso legal que se está comentando. Estudaremos, aqui, cada uma dessas duas espécies.

a) Transcrição do ato inter vivos. – A transcrição do ato que estabelece a constituição de renda sôbre imóveis é necessária para a constitutividade do direito real.

(7) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 305. (8) – Clóvis Beviláqua, Manual, XIV, pág. 271.

[176]

E‟ o princípio geral do art. 674 n.º VI combinado com o art. 676 do Código Civil.

Pouco importa que o dispôsto no art. 1.426 do referido Código estabeleça que “os bens dados

em compensação da renda caem, desde a tradição, no domínio da pessoa que por aquela se obrigou”.

Ensina Clóvis Beviláqua (1), que “a palavra tradição é tomada aqui em seu sentido genérico; abrange a tradição pròpriamente dita, modo de transferir o domínio das coisas móveis (art. 620)

e a transcrição, modo de adquirir bens de raiz (art. 530, n.º I). Antes da tradição ou da transcrição, aliás, nem sequer o contrato é perfeito, porque a constituição de renda é contrato real, que se conclui pela entrega do capital ao censuário (art. 1.424)”.

A transcrição do ônus será levada a efeito no livro n. º 4 – Registos Diversos – além da transcrição relativa à transferência do imóvel, que será efetuada no Livro n.º 3.

b) Inscrição do título por causa mortis. – Segundo o sistema adotado pelo nosso Código Civil, em se tratando de título causa mortis, a sua inscrição ou transcrição não é constitutiva. Tem apenas o efeito de facultar a disponibilidade do imóvel e estabelecer a sucessividade dos títulos de domínio no Registo Imobiliário.

No caso de renda constituída ou vinculada a imóvel, abriu-se injustificável exceção a êsse critério. Dispõe, assim, no art. 753, que

“a renda constituída por disposição de última vontade começa a ter efeito desde a morte

do constituinte, mas não valerá contra terceiros adquirentes, enquanto não transcrita no competente registo”.

A situação que necessàriamente decorre do dispositivo supracitado é a seguinte: entre o censuário e os herdeiros do testador, a renda constituída sôbre imóveis começa a ter eficácia

desde a morte do constituinte; em relação a terceiros adquirentes, sòmente depois de transcrita, ou inscrita, segundo a nova disposição da lei sôbre registos públicos.

Uma das características especiais do ato institutivo causa-mortis, como também o é o ato inter-vivos, quando a t ítulo gratuito, é a faculdade concedida ao instituidor de tornar a renda isenta de tôdas as execuções pendentes e futuras.

(1) – Clóvis Beviláqua, Manual, XIV, pág. 278. (2) – Clóvis Beviláqua, Cód. Civ. Com., III, pág. 325.

[177]

459. EXTINÇÃO DA RENDA CONSTITUÍDA OU VINCULADA A IMÓVEIS. – São as seguintes as causas extintivas da renda: a) pela rescisão; b) pelo resgate, nos têrmos do art. 751, do

Código Civil; c) pela morte da pessoa beneficiada pela renda, se esta fôr vitalícia; d) pela morte do devedor, se fôr convencionado com tempo indeterminado; e) pelo advento do têrmo, quando a renda tiver sido convencionada por tempo determinado; f) pela morte do doador, quando êsse

assume a obrigação de pagar as prestações por tempo indeterminado (art. 1.172); g) pela ausência declarada do devedor ou do credor; h) pela inoficiosidade, pois se a renda fôr constituída a título gratuito por que, ao tempo da liberalidade, tinha herdeiros necessários, não

vale na parte excedente a de que o doador poderia dispor, então, em testamento (art. 1.176); i) pela ingratidão, quando a renda é oriunda de uma doação (art. 1.181); j) pela prescrição, que tanto pode recair sôbre o direito à renda, como sôbre o de cobrar as prestações vencidas; k) pela novação; l) pela remissão concedida ao devedor; m) pela confusão (1 ).

(1) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., loc. cit., J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XIX, pág. 202.

[178]

[179]

PENHOR RURAL

460. A LEGISLAÇÃO EM TÔRNO AO PENHOR RURAL. – O n.º XIII da letra “a” do art. 178

refere-se ao penhor rural. A matéria do penhor agrícola é regulada pelos arts. 781 a 788 do Código Civil, alterada, porém, pela lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937, cujo art. 7.º modificou o art. 782 do aludido Código e ainda pelo art. 4.º, o art. 783. A essa lei n.º 492, de 1937 sobresseguiu o decreto-lei n.º 2.612, de 20 de setembro de 1940, assim dispondo:

DECRETO-LEI N.º 2.612, DE 20 DE SETEMBRO DE 1940

Dispõe sôbre o registo do penhor rural

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 180, da Constituição, decreta:

Art. 1.º - O registo de instrumentos públicos ou particulares de contratos de penhor rural, de qualquer valor, e de cédula rural pignorat ícia far-se-á na forma da lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937.

Art. 2.º - As custas devidas pelo registo do penhor rural, expedição da cédula pignorat ícia, averbação dos endossos e cancelamentos não excederão, em hipótese alguma, às importâncias fixadas pelo artigo 34 da lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937; em se tratando de operações

efetuadas pela Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, observar-se-á além destas limitações, a redução determinada pelo art. 2.º, do decreto-lei n.º 221, de 27 de janeiro de 1938, de 50% de tôdas as custas e emolumentos devidos a tabeliães, escrivães, oficiais de

registos, hipotecas e protestos, que incidam ou venham a incidir sôbre quaisquer documentos a ela relativos, ainda quando cobrados em selos.

§ 1º Os esclarecimentos solicitados pelas partes serão fornecidos em uma única certidão e cobrados como um só ato, em relação a cada operação.

§ 2.º Em caso de omissão de lançamento de custas à margem das certidões ou dos atos mencionados neste artigo, a autoridade judi-

[180]

ciária competente aplicará ao responsável a pena de suspensão por 30 (trinta) dias.

Art. 3.º - São considerados parte integrante dos contratos de penhor rural decorrentes de financiamentos da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil, e isentos de novos selos, os instrumentos de depósito, feito em mão de terceiros, de produtos gravados pelos ditos contratos.

Art. 4.º - Revogam-se as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1940, 119.º da Independência e 52% da República.

GETÚLIO VARGAS

A. de Souza Costa. Francisco Campos.

Finalmente o decreto-lei n.º 4.360, de 5 de junho de 1942 introduziu modificações nos arts. 7.º e 13 da lei n.º 492, de 1937, assim dispondo:

Art. 1.º - O art. 7.º da lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937, passa a ter a seguinte redação:

“O prazo do penhor agrícola não excederá de dois anos, prorrogável por mais dois,

devendo ser mencionada, no contrato, a época da colheita da cultura apenhada e, embora vencida, subsiste a garantia enquanto subsistirem os bens que a constituem”.

Art. 2.º - O art. 13 da lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937, passa a ter a seguinte redação:

“O penhor pecuário não admite prazo maior de três anos, mas pode ser prorrogado por igual período, averbando-se a prorrogação na transcrição respectiva”.

461. CONCEITO E OBJETO DO PENHOR RURAL. – Segundo a definição legal, “constitui-se o

penhor rural pelo vínculo real, resultando do registo, por via do qual agricultores ou criadores sujeitam suas culturas ou animais ao cumprimento de obrigações , ficando como depositários daquelas ou dêstes” (art. 1.º, da lei número 492, de 1937).

Quanto ao seu objeto, o penhor rural é o gênero ao qual se filiam duas espécies, a saber, o

penhor agrícola e o penhor pecuário, conforme a natureza da coisa dada em ga rantia (§ único do art. 1.º, da lei n.º 492 de 1937).

O penhor rural, segundo o conceito legal, estabelece um vínculo real. Conseguintemente, está filiado à categoria dos direitos reais sôbre a coisa alheia e pertinente ao grupo dos direitos reais sôbre a

[181]

coisa alheia e pertinente ao grupo dos direitos reais de garantia.

São-lhe, por isso, aplicáveis, no que lhe forem pertinentes, as disposições sôbre o direito real de garantia e contratos de sua instituição (art. 31, da lei n.º 492, de 1937).

Assim sendo, não padece a menor dúvida que a inscrição do contrato de penhor rural, segundo a regra geral do Código Civil, é elemento essencial para sua constituição, sem o que não se pode cogitar de direito real de garantia.

A nota peculiar do penhor rural é que, em alguns casos, o seu objeto é um bem imóvel, como as colheitas pendentes e em outros versa sôbre coisa móvel.

O que não padece dúvida é que nessa espécie de penhor, semelhantemente ao que ocorre em relação ao penhor de máquinas e aparelhos utilizados na indústria (cfr. n.º 402 e seguintes),

observa-se uma evolução notável no instituto tendente a transformá-lo numa verdadeira hipoteca mobiliária.

A situação de transformação se nos afigura clara: o elemento distintivo entre a hipoteca e o

penhor assenta principalmente na circunstância da constituição da primeira não importar para o devedor na perda da posse da coisa gravada, resumindo-se tôda garantia no registo dêsse ônus, ao passo que o penhor tem, como elemento essencial de sua const ituição, a permanência da coisa gravada em poder do credor (1).

A razão da posse do credor pignoratício é explicada pela natureza dos bens móveis que, não subordinados a um regime de publicidade, não ministrariam a necessária garantia ao crédito.

Ora, tôdas essas noções elementares estão por terra. As exigências econômicas impuseram uma modificação profunda no instituto, pois, para certa classe de móveis, a especialização se torna possível e assim também possível um regime de publicidade.

Por que, então, não se proceder em certos casos sob o mesmo critério que orientou a hipoteca naval, que tem por objeto uma coisa visceralmente móvel, embora, para os efeitos de direito, a lei a considera imóvel?

O mesmo fenômeno se reproduz aqui em relação ao penhor rural. A idéia não é recente. Nas

fontes do direito suíço, no fim da Idade Média, encontra-se larga aplicação do penhor registado, a princípio, extensiva a todos os bens móveis, depois, restrita aos acessórios do imóvel e aos animais, o que caracteriza perfeitamente o nosso instituto atual (2).

(1) – Luigi Lordi, Pegno Civile, in Nuovo Digesto Italiano, IX, pág. 622.

(2) – Cfr. Ferreira Junior, L‟Ipoteca Mobiliare, pág. 169.

[182]

462. REQUISITOS DO CONTRATO DE PENHOR RURAL. – Em relação aos requisitos do contrato de penhor rural, temos que examinar a questão do ponto de vista da capacidade dos contraentes, e das condições inerentes ao ato.

A) Capacidade – A capacidade das partes contratantes é regida pelos princípios gerais de direito

sôbre a matéria aplicando-se aqui tudo quanto já dissemos a propósito da capacidade dos contratantes, em relação ao penhor e à hipoteca (c fr. 2.º volume).

Contudo, certas restrições são impostas em relação ao penhor agrícola e ao de animais, a saber:

a) não vale o contrato agrícola celebrado pelo locatário, arrendatário, colono ou qualquer prestador de serviços, sem o consentimento expresso do proprietário agrícola, dado prèviamente ou no ato da constituição do penhor (art. 9.º, da lei n.º 492, de 1937);

b) na parceria rural, o penhor sòmente pode ajustar-se com o consentimento do outro parceiro e recai sòmente sôbre os animais do devedor, salvo estipulação diversa.

Tanto o contrato de penhor agrícola como o de penhor pecuário, dispensam ambos a outorga uxória, que deixa de ser elemento do contrato (§ único do art. 11 da lei n.º 492, de 1937).

B) Imóvel hipotecado – Determinava o art. 783 do Código Civil: “se o prédio estiver hipotecado,

não se poderá, pena de nulidade, sôbre êle constituir penhor agrícola, sem anuênc ia do credor hipotecário, por êste dada no próprio instrumento de constituição do penhor”.

Êsse princípio foi, porém revogado pelo art. 4.º da lei n.º 492, de 1937, estabelecendo que:

“independe o penhor rural do consentimento do credor hipotecário, mas lhe não prejudica o direito de prelação, nem restringe a extensão da hipoteca, ao ser executada”.

No direito anterior ao Código Civil, o art. 4.º, § 2.º do decreto n.º 169-A, de 19 de janeiro de 1890, imprimiu à hipoteca convencional a fôrça de estender-se às benfeitorias que acrescessem aos imóveis, as acessões naturais, nestas incluídas os frutos pendentes, os colhidos, os

beneficiados das propriedades rurais e agrícolas e os frutos civis constantes dos aluguéis dos prédios.

Em seguida, porém, o art. 137, do decreto de 2 de maio de 1890 modificou a situação para excluir da hipoteca os frutos colhidos, partindo do ponto de vista de se não t ratar de frutos naturais.

O Código Civil, diante dessa situação, generalizou o preceito. Mas êsse critério foi criticad o por Dídimo da Veiga e João Luís

[183]

Alves (1), achando Dídimo da Veiga ter tido razão João Luís Alves ao considerar ilógico que se lhe reconheça a faculdade de dá-los em penhor sem a anuência do credor hipotecário, o que, de fato, é exigência que restringe a capacidade econômica ao crédito agrícola.

Conseguintemente, a modificação introduzida pelo artigo 4.º da lei n.º 492, de 1937, representa a boa doutrina.

A crítica feita por João Luís Alves ao art. 783 do Código Civil pode ser tomada, atualmente, como um perfeito comentário à disposição do art. 4.º supracitado. Assim diz o referido jurista:

“Não há razão para exigir o consentimento do credor hipotecário.

O seu direito, vencida a hipoteca, inscrita antes de constituído o penhor, não é de

modo algum afetado por êste. A sua execução recai, com todos os direitos de preferência e de sequela, não só sôbre o imóvel hipotecado, como sôbre as suas acessões, frutos pendentes, e melhoramentos (artigo 811). O prejudicado só pode ser, então, o credor pignoratício.

Antes, porém, de vencida a hipoteca, como o imóvel fica na posse, uso e gôzo do devedor hipotecário, tem êle o direito de perceber-lhe os frutos, arrendá-lo e tirar as vantagens compatíveis com a sua natureza”.

C) Segundo penhor rural – Independentemente do consentimento do credor, pode o devedor

constituir novo penhor rural, se o valor dos bens ou dos animais exceder ao da dívida anterior, ressalvada para esta a prioridade do pagamento (§ 1.º, do art. 4.º, da lei n.º 492, de 1937).

Estabelece, assim, a lei uma gradação quando houver mais de um ônus criado sôbre a mesma coisa.

O critério para se admitir a inscrição de um segundo penhor rural é o do valor atribuído à coisa

dada em garantia, na respectiva escritura. Por êle se ve rá a possibilidade ou não de um segundo ônus. É uma condição prevista na lei e que deve ser atendida.

D) Penhor rural por obrigação de terceiro – Permite a nova legislação que se possa ajustar o penhor rural em garantia de obrigação de terceiro, ficando as coisas ou animais em poder do

proprietário e sob sua responsabilidade, não lhe sendo lícito, como depositário, dispor das mesmas, senão com o consentimento escrito do credor (art. 3.º, da lei n.º 492, de 1937).

(1) – Dídimo da Veiga, Man. do Cód. Civil, IX, parte 4.ª, páginas 69-71; João Luiz Alves, Cód. Civ., An., I, obs. ao art. 783.

[184]

E) Forma do ato institutivo do penhor rural – O contrato de penhor rural tanto pode ser efetuado

mediante escritura pública, como mediante instrumento particular, sendo que, neste último caso, a escritura particular deve ser feita e assinada ou sòmente assinada pelos contratantes, sendo subscrita por duas testemunhas.

Quer se trate de escritura pública, quer se trate de instrumento particular, em qualquer caso é necessário constar as seguintes declarações:

I) – Os nomes, prenomes, estado, nacionalidade, profissão e domicílio dos contratantes.

II) – O total da dívida ou sua estimação.

III) – O prazo fixado para o pagamento.

IV) – A taxa de juros, se houver.

V) – As coisas ou animais dados em garantia, com as suas especificações, e molde a individualizá-los.

VI) – A denominação, confrontação e situação da propriedade agrícola onde se encontrarem as coisas ou animais empenhados, bem assim a data da escritura de sua aquisição, ou arrendamento, e número de sua transcrição imobiliária.

VII) – As demais estipulações usuais no contrato mútuo.

Quando o penhor rural fôr contraído por escritura particular, devem ser tiradas tantas vias quantas julgadas convenientes, de modo a ficar uma, com as firmas reconhecidas, arquivada no cartório do registo imobiliário (§ único do art. 14, da lei n.º 492, de 1937).

463. INSCRIÇÃO DO PENHOR – O art. 2.º da lei n.º 492, de 1937, dispõe que o contrato de

penhor rural está sujeito à transcrição, porém, a legislação sôbre Registos Públicos e em especial o artigo que estamos comentando modificou nessa parte a supracitada lei determinando a inscrição do contrato ao em vez de transcrição.

Essa inscrição deve ser levada a efeito no registo imobiliário da comarca em que estiverem situados os bens ou animais empenhados, para valerem contra terceiros.

Essa expressão legal “para valerem contra terceiros” constante do supracitado artigo 2.º deve

ser interpretada da mesma maneira com que se tem interpretado expressão idêntica constante in fine do art. 743 do Código Civil. Ali também se diz que “as hipotecas sòmente valem contra terceiros desde a data da inscrição”.

Mas a lição esmagadora de Lacerda de Almeida e João Luís Alves mostra que a interpretação

do citado art. 848 tem de ser apoiada no art. 676 do Código Civil, a fim de explicar e resolver o sistema do próprio Código Civil.

[185]

Ora, no caso do penhor rural, como já dissemos, o art. 31 das disposições gerais da lei n.º 492, mandou aplicar as disposições sôbre os direitos reais de garantia, no que lhe fôssem

pertinentes, e nenhuma disposição lhe é mais pertinente do que a do art. 676 que estabelece para todos os direitos reais sôbre imóveis a formalidade da transcrição e da inscrição no registo de imóveis como elemento constitutivo de sua aquisição.

Poder-se-á argüir que, no caso do penhor rural, pode o mesmo ter por objeto coisas móveis.

Mas como já vimos, aqui a figura do penhor se encontra completamente transfigurada e tôda tendência do legislador é vis ìvelmente para nivelar essa garantia real, ou melhor, incluí -la na classe das garantias reais sôbre imóveis, e isto não sòmente porque em alguns casos recai

sôbre bens imóveis, o que é razão suficiente para a preponderância do caráter imobiliário, como ainda pela permanência da coisa em poder do devedor e pela natureza do registo, que é o imobiliário, acrescida da circunstância, não menos ponderosa, de se indicar, como competente, o ofício de imóveis sob cuja jurisdição estejam situados os bens ou animais empenhados.

No nosso modo de ver, é aplicável à espécie, o disposto no art. 676 do Código Civil.

Sem a formalidade da inscrição não há direito real de garantia, por conseguinte não há um penhor rural dotado da eficiência que lhe confere a lei. Sem a inscrição não pode existir como direito real, pois não se concebe um direito real sòmente válido entre as partes.

Um dos efeitos da inscrição é certamente o de estabelecer o ônus real sôbre as coisas e animais

dados em penhor, os quais passam a garantir ao credor em privilégio especial, a importância da dívida, os juros, as despesas e as demais obrigações constantes da escritura (art. 4.º, § 3.º da lei n.º 492, de 1937).

464. PENHOR AGRÍCOLA – O penhor agrícola se diferencia do penhor pecuário, antes do mais, pelo objeto de cada um. Podem ser objeto de penhor agrícola:

I) – Colheitas pendentes ou em via de formação, quer resultem de prévia cultura, quer de produção espontânea do solo;

II) – Frutos armazenados, em ser, ou beneficiados e acondicionados para venda;

III) – Madeira das matas, preparada para o corte, ou em toras, ou já serrada e lavrada;

IV) – Lenha cortada ou carvão vegetal;

V) – Máquinas e instrumentos agrícolas (art. 6.º, ns. I a V, da lei n.º 492, de 1937).

[186]

Há um caso em que o objeto do penhor agrícola pode se dilatar: é quando o seu objeto em

colheita pendente, ou em via de formação. Se essa colheita frustra-se ou fôr insuficiente, o penhor se prostrai à colheita imediatamente seguinte.

Quando, porém, não quiser ou não puder o credor, notificado com 15 dias de antecedência, financiar a nova safra, fica o devedor com o direito de estabelecer com terceiro novo penhor, em

quantia máxima equivalente ao primitivo contrato, considerando -se qualquer excesso apurado na colheita, apenhado à liquidação da dívida (§ 1.º, do art. 7.º, da lei n.º 492, de 1937).

465. PRAZO DO PENHOR AGRÍCOLA – O art. 7.º, da lei n.º 492, de 1937 dispunha que o penhor agrícola só podia ser convencionado pelo prazo de um ano, ulteriormente prorrogável por

mais. Dispunha ainda que embora vencido, subsistia a garantia enquanto subsistentes os bens dela constitutivos. Essa disposição foi modificada pelo art. 1.º do decreto -lei n.º 4.360, de 1942 que dilatou o prazo para dois anos, prorrogável por mais dois, devendo ser mencionada no

contrato a época da colheita da cultura. Entretanto ficou mantido o princ ípio da subsistência da garantia enquanto subsistentes os bens vinculados.

No regime do decreto de 23 de janeiro de 1886, o prazo do penhor agrícola era de dois anos. Essa situação foi modificada pelo decreto de 2 de maio de 1890, que além de dilatar o prazo de

duração para 3 anos, admitia, ainda, que, estabelecida a estimativa da produção anual, pudesse firmar-se contrato de penhor por 10 a 15 anos, sôbre essa estimativa.

O Código Civil (art. 782) estabeleceu o prazo de um ano, ulteriormente prorrogável por seis meses.

Evidencia-se que se visa a indústria pastoril e agrícola, ìntimamente ligadas à propriedade rural.

466. PENHOR PECUÁRIO – O penhor pecuário tem por objeto os animais que se criam

pascendo para a indústria pastoril, agrícola ou de laticínios, em qualquer de suas modalidades, ou de que sejam êles simples acessórios ou pertences de sua exploração.

Pela definição do seu objeto, vê-se, desde logo, não mais proceder a crítica que se fazia ao fato de se encontrar essa espécie de penhor subordinada ao registo de imóveis, e dizendo -se mais próprio o registo de títulos e documentos.

Evidencia-se que se liga a indústria pastoril e agrícola, ìntimamente ligadas à propriedade imobiliária.

466-bis. REQUISITOS ESPECIAIS DA ESCRITURA DE PENHOR PECUÁRIO – Além dos requisitos que já foram explicados, a escritura de penhor rural deve, sob pena de

[187]

nulidade, designar os animais com a maior precisão, indicando o lugar onde se encontrem e o

destino que têm, mencionando de cada uma a espécie, denominação comum ou científica, raça, grau de mestiçagem, marca, sinal, nome, se tiver, e todos os característicos por que se identifiquem (art. 10, § único da lei n.º 492, de 1937).

Embora se trate de uma modalidade de penhor independente do penhor agrícola, faculta a lei

(art. 11) que ambos os contratos possam ser celebrados conjuntamente, desde que se trate de garantia da mesma dívida, ficando, neste caso, subordinado à disciplina do penhor agrícola.

467. PRAZO DO PENHOR PECUÁRIO – Neste particular, profunda é a diferença entre o penhor agrícola e o pecuário.

Já vimos qual a situação resultante do preceito legal relativo ao prazo do penhor agrícola (c fr. n.º 465);

Enquanto no penhor agrícola o prazo, embora vencido, não implica na extinção do ônus, que subsiste enquanto subsistente o objeto da garantia, enquanto no penhor agrícola a prorrogação não está subordinada à formalidade da averbação, pois nenhuma referência é feita na lei, no

penhor pecuário, o prazo não pode ser maior de três anos, suscetível de prorrogação por igual período, mas depende esta de averbação na inscrição respectiva (art. 13, da lei n.º 492, de 1937, modificado pelo art. 2.º, do decreto-lei n.º 4.360, de 1942).

Vencida a prorrogação, deve o penhor ser reconstituído, se não executado (§ único, do art. 13, da lei n.º 492, de 1937).

Em se tratando do penhor pecuário, o vencimento do prazo implica na extinção do ônus. Por conseguinte, a prorrogação fora do prazo já não é mais possível. Tem de se processar, com o consentimento do devedor, antes de expirado o prazo de dois anos.

Em sentido contrário entendeu o Tribunal de Justiça de Goiás, decidindo em brilhante acórdão,

de que foi relator o eminente Desembargador José Campos, que no penhor pecuário “o vencimento do prazo estipulado para a sua duração, não implica na sua extinção” (Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de Justiça de Goiás, de 6 de maio de 1947, in “Diário” de Belo Horizonte, de 18 de junho de 1947). O acórdão é do teor seguinte:

“Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de agravo de instrumento n.º 326, de Corumbaíba, em que são agravantes Bertolino e Joaquim da Costa Fagundes e agravado, o Banco do Brasil S.A.:

O Banco do Brasil S.A., por sua agência na cidade de Araguari, E. de Minas Gerais, propôs uma ação executiva de penhor pecuário contra João Vieira de Deus, residente

[188]

no município de Corumbaíba, neste Estado. Como não tivessem sido cumpridos os dispositivos legais que regem a espécie e, ainda por inadimplemento de cláusulas contratuais, expediu-se carta precatória a fim de que fôssem seqüestrados, no referido

município de Corumbaíba, as reses que constituem o objeto de penhor. Ao efetuar-se a medida, foram também seqüestradas diversas reses que se encontravam em poder de Bertolino e Joaquim da Costa Fagundes, os quais opuseram ao seqüestro embargos de

terceiros senhores e possuidores, sob a alegação de t erem obtido as ditas reses do executado mediante permuta.

Os embargos lograram acolhida pelo Dr. Juiz de Direito de Corumbaíba. Daí o presente agravo em que os agravantes alegam, inicialmente, ser insubsistente o seqüestro,

porquanto, na data da propositura da ação, o prazo do penhor já se encontrava extinto,

de vez que na lição, dos doutos, sendo o contrato pignoratício celebrado por certo e

determinado prazo, é manifesto que, decorrido êste, o penhor se extingue, embora permaneça a obrigação principal. No mérito asseveram que a troca foi feita com o consentimento dos fiscais do exeqüente e, dada ainda a fungibilidade da coisa

penhorada, não lhe pode advir, com essa permuta, prejuízo algum, não se justificando, assim, a medida tão drástica como a por êle empregada.

EX-POSITIS: Uma das questões mais debatidas que têm surgido ùltimamente na vida forense dêste Estado, dado numerosos casos que têm vindo à tona, é a de saber se,

efetivamente, com o decurso do prazo do penhor pecuário desaparece a gar antia pignoratícia, permanecendo apenas a obrigação principal. Trata-se de uma tese transcendental, porquanto, da sua resolução, podem provir graves e irreparáveis

prejuízos ao Banco do Brasil S.A., ora agravado. Como já afirmara Lafayette, “a idéia de assegurar o cumprimento da obrigação por via de uma garantia “real”, deveria ter acudido ao espírito do homem, logo que a experiência o advertiu da falibilidade da garantia puramente pessoal”. (Direitos das Coisas - § 172).

Com o perpassar dos anos e com o evolucionar da sociedade, num crescendo incessante de novas e variadíssimas relações civis e comerciais entre os indivíduos que a compõem, os direitos pignorat ícios, dada a sua importante finalidade vêm ocupando

lugar saliente nessas relações, constituindo um dos atos jurídicos que mais comumente se realizam, hoje, nos

[189]

convênios entre os homens. Daí as novas formas que vêm tomando.

Sendo da essência dêsses direitos sujeitar a coisa, por um laço real, ao pagamento da dívida, é óbvio que, enquanto subsistir a dívida deve persistir a garantia, como acessório

que é daquela, com a qual sempre está ligada. Assim sendo, seguindo, como acessório, a sorte do principal, a garantia só se extingue em desaparecendo, por qualquer motivo a dívida, ou o objeto por perecimento ou resolução de domínio, sôbre que recaiu essa mesma garantia.

Extinguir-se-á também ela com o decurso do prazo estipulado, em lei, para a duração do penhor. Não resta a menor dúvida que autores provectos como João Luís Alves, Serpa Lopes, Afonso Fraga, Carvalho Santos e outros vêm doutrinando que sendo o contrato

pignoratício celebrado por certo e determinado prazo, o penhor se extingue, embora permaneça a obrigação principal, com o vencimento dêsse prazo: “sendo contrato pignoratício, celebrado por certo e determinado prazo é manifesto que, decorrido êste,

se extingue embora permaneça a obrigação principal” (Afonso Fraga, “Direitos Reais de Garantia”, pág. 286).

“Em se tratando de penhor pecuário, o vencimento do prazo implica na extinção do penhor” (Serpa Lopes – “Trat. dos Reg. Públicos”, V, III, pág. 182).

Com a devida vênia de tão conspícuos doutrinadores aos quais rendemos o nosso preito

de grande admiração, pelos seus profundos conhecimentos jur ídicos, ousamos afirmar que laboram num engano ao estabelecerem mais êsse modo de extinção do penhor, não previsto pelo nosso direito positivo, embora saibamos que os casos de extinção dos

direitos reais, como os da hipoteca e penhor, são exemplificativos e não de enumeração taxativa. Êsse engano, a nosso ver, tem principalmente como origem as afirmativas dos

doutrinadores indígenas e alienígenas, com relação ao nosso direito anterior e

estrangeiro, como o português, de se extinguir o penhor pela veri ficação do têrmo, lapso de tempo ou prazo. Êsses prazos ou têrmos, porém, salvo no Direito Romano de depois de vencido o contrato, “passados dois anos”, poder -se vender a coisa penhorada, caso

não seja paga a dívida, só podem referir-se à prescrição ou ao dia em que, pela decorrência do prazo, se extinguir a eficácia de um negócio jurídico, que contenha cláusula resolutiva. E tanto isso é verdade é que os autores quando empregam a palavra “prazo” ou “têrmo”, como sinônimos, usam, em seguida, da alternativa “ou”, refe-

[190]

rindo-se a uma condição determinada ou resoluta, embora tal condição não se confunda com têrmo, por se referir êste a um acontecimento futuro certo, ambos, em princ ípios jurídicos idênticos, concernentes à resolução de domínio. E é lógico que, se o devedor

deixa de possuir a coisa sôbre que recaiu o direito real, pela verificação do têrmo ou condição resolutiva deve mesmo desaparecer a garantia, por dever esta recair sòmente sôbre bens que efetivamente, pertençam àquele que os ofereceu, porquanto o penhor

pressupõe a propriedade de quem os constituiu, e sòmente o dono dêles é que poderá empenhá-los ou hipotecar, nos têrmos do artigo 756, do Código Civil. Daí a justificativa de extinguir-se o penhor com a ocorrência do têrmo ou prazo. Mas qual a justificativa a

que nos poderemos apegar, com firmeza, para considerá -lo extinto, quando termina o prazo para o qual foi constituído, como no penhor pecuário?

Qual a razão de ser da fixação de um prazo “para duração” dêsse penhor?

Para responder a essas duas perguntas é necessário que, inicialmente, reconstruamos o pensamento e a vontade do “mens legis”, pondo em evidência a sua “ratio” ou o seu

sentido teleológico, porquanto, nas palavras de Ferrara a missão d o intérprete é justamente descobrir o conteúdo da norma jurídica, determinar, em tôda a plenitude, o seu justo valor, penetrando, assim o mais que possível, na alma do legislador, na sua acepção de lei.

O artigo 13, da lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937, modificado pelo artigo 2.º, do decreto-lei n.º 4.360, de 5 de junho de 1942, dispõe: “O penhor pecuário não admite prazo maior de t rês anos, mas pode ser prorrogado por igual período, averbando-se a

prorrogação na t ranscrição respectiva”. Inicialmente é necessário, que demonstremos que, pelo citado artigo 13, da referida lei, “a duração” do contrato do penhor, isto é, o “prazo dentro do qual não pode valer-se o credor da via executiva para haver o seu crédito”, é que não poderá ser convencionado por tempo superior a três anos.

Êsse prazo “de duração”, estipulado no contrato se confunde, pois, indubitàvelmente, com o do pagamento. Se se convencionou o penhor, “verbis gratia”, por três anos, será êsse o maior prazo para o pagamento da dívida que o credor pignoratício poderá

conceder ao seu devedor? Por que razão assim fala a lei em outro prazo diferente do pagamento? Assim o faz, respondemos, porque se tornou necessário, por

[191]

razões que, adiante, exporemos, delimitar o limite máximo dentro do qual poderá variar o

prazo para pagamento da dívida pignoratícia. E os motivos que serviram de arrimo à Lei para êsse procedimento foram os seguintes:

Como se sabe, o gado objeto da penhora, pela cláusula “constitui”, reforçada com a de depósito, fica em poder do devedor, e não do credor, como devera ser. E‟ a hipoteca,

podemos dizer, de bens móveis como já é prevista e disciplinada por alguma legislação estrangeira, como a Suíça. Êsse gado, porém, é suscetível de sofrer tôda a sorte de transformações, durante um regular período de tempo: crias ou bezerros que se tornam

adultos, mortes, desaparecimento, doenças, defeitos físicos surgidos após o penhor, envelhecimento, depreciando o valor, etc. Tendendo tudo isso a aumentar com o perpassar do tempo, é curial que assim, um penhor celebrado para vigorar durante um

longo prazo, poderá dar aso a que surja, ao ser executado, tôda a sorte de complicações. Não é só por isso que a Lei demarca um prazo: delimita-o ainda para melhor circulação da riqueza, a fim de que não fiquem estagnados bens durante um longo espaço de tempo, com reais prejuízos para a comunidade social.

São êsses quase que os mesmos motivos que levaram a Lei a fixar o prazo de um ano para o penhor agrícola, porquanto as colheitas se fazem, normalmente uma vez por ano, e sujeitas a deteriorização ou apodrecimento. Êsse prazo, é bom que se diga também, é

estipulado mais em benefício do credor, de vez que não tem êle a posse efetiva dos bens onerados. Eis aí, portanto a “ratio legis”, ou a razão justificativa que levou a norma a estipular um prazo de duração do penhor diferente do têrmo para o pagamento, mas

que se confundem. E, em face da doutrina perfilhada pelos referidos autores, é de se perguntar: Qual a razão ou o fundamento jurídico que poderá ser invocado para justificar a extinção do penhor pelo perecimento do prazo, se se não trata de decadência de

direito, ou de prazo para propor a ação executiva? – E a resposta que temos sempre obtido é esta: a de ter sido extinto o prazo da duração o penhor. E quando perguntamos por que fixou extinto, a resposta também não vem variando: porque a lei estatui prazo

certo para a sua vigência. E essas respostas nos fazem então lembrar aquêle circunlóquio “de fazer o ópio dormir, por ter a virtude dormitiva”, tão bem invocado por Molière, na sua obra “Le Malade Imaginaire”:

[192]

“Mihi a destor criare,

Demandatur asuram et rationem quare Opium facit dormire, A quoi respondeo:

Quia esta in eo Virtus dormitiva Cujos est natura

Sesus assopire”.

Mas respostas dêsse jaez nada nos explicam, nada nos convencem, pondo-nos em

eterna dúvida. Demais a mais se no penhor, sempre se determina o prazo de sua duração, que pode ir até o máximo prefixado em lei, quem, então, iria fazer semelhante

convenção, em se tratando de credor, se chegado ao término, deixa de existir a garantia legal, uma vez que o credor só poderá propor a excussão, findo o prazo do pagamento que, necessàriamente há de sempre coincidir com o da duração do contrato

pignoratício? De resto, como explicar o perecimento da garantia com a sobrevivência do crédito, de que é acessório, e a cuja sorte está sempre ìntimamente ligada? Ora, se a garantia tem por essência ou fim precípuo assegurar a efetividade da ação, isto é, fazer

que na falta de pagamento dentro do prazo convencionado, encontre o credor alguma

coisa que a represente e sôbre a qual possa recair a execução, como, pois, se pode explicar que, exatamente nesse momento, venha desaparecer ou extinguir essa mesma garantia? Se de fato, desaparecer o ônus com o vencimento do prazo, a ação do credor

fica bifurcada nesse dilema: Propor a execução “antes” ou “depois” de findo o prazo. Se propõe antes, o devedor se defende, alegando que o prazo não está findo. Se passar um ou meio segundo depois de findo o prazo, defende-se o mesmo devedor asseverando

estar extinto o penhor pelo término dêsse mesmo prazo, desde que não há têrmo prefixado para a propositura da ação competente. Eis, pois, o penhor de nenhuma significação para o credor, se vingar a teoria de se extinguir êle pelo decurso do prazo em tela, deixando-o, assim, sem meios de defesa para o seu direito.

De tudo se conclui, pois, que o prazo previsto na lei n.º 492, de 30 de agôsto de 1937, não visa, com o seu escoamento, extinguir direitos, mas tão sòmente proibir o prolongamento, pelos motivos já aduzidos, de um contrato por mais tempo que o por êle

marcado. A única pena para a transgressão dêsse dispositivo é a nulidade “pleno juris”. Êsse lapso de tempo fixado, como já afirmamos, tem por

[193]

objetivo ainda beneficiar mais o credor, visto que aquêle não fica com a posse da coisa gravada sujeita a tôda espécie de alterações. E sendo em seu benefício, não é possível

que se possa fazer perecer o seu direito por um ato criado em seu próprio proveito. A decadência de uma pretensão com a decorrência de prazos, é adequada para atingir os meios que protegem o direito subjetivo, como é a ação, e jamais poderá visar êsse próprio direito subjetivo em si, isoladamente.

Respectivamente ao fato de se poder subsistir o gado penhorado por outro, sob o argumento de constituir bem tangível são outras assertivas que não encontram apoio em direito: primeiro, porque tal substituição só seria possível fazer por consentimento

“expresso” do credor; segundo, porque não se trata pròpriamente de bem fungível, uma vez que cada rês difere da outra em pêso, qualidade ou raça, e, finalmente, porque um dos característicos do contrato do penhor, como dos das demais garantias, é o direito de sequela, ou o de seguir ou buscar a coisa em poder de quem quer que a detenha.

Não assistia pelo exposto, ao agravante nenhuma razão, quando propôs o presente recurso.

Nestes têrmos:

Acordam os juízes da segunda Câmara do Tribunal de Justiça, por votação unânime, em negar provimento ao recurso para confirmar, como ora o fazem, a sentença agravada.

Custas pelos agravantes. – Goiânia, 6 de maio de 1947. – (ass.) Eládio de Amorim, presidente; José Campos, relator. Jorge Jardim. Clóvis Esselim”.

Apesar da estrênua sustentação, os argumentos expendidos brilhantemente no acórdão supracitado não me convenceram. Para não nos delongar com outras razões, basta a interpretativa da legislação que rege a matéria. Vejamos. O decreto-lei n.º 4.360, de 1942, ao

modificar os arts. 7.º e 13 da lei n.º 492, de 1937 estabeleceu claramente a distinção entre o penhor agrícola e o pecuário, no tocante ao prazo e à subsistência da garant ia. Quanto ao penhor agrícola, o art. 1.º do citado decreto-lei n.º 4.360 expressamente declara subsistente a

garantia, a despeito do vencimento do prazo, apenas condicionada ao fato da existência dos

bens vinculados. Quando, porém, no art. 2.º imediato, cogitou do penhor pecuário, no tocante ao mesmo ponto do vencimento do prazo e de sua prorrogação, silenciou sôbre a subsistência da garantia. Ora, se no primeiro caso reputou necessário escorá -la, lógico se torna que a omissão no

[194]

segundo caso, em idênticas condições, significa a sua exclusão. Basta o cotejo dessas duas disposições, para, de pronto, se ter bem nítida a idéia do legislador em estabelecer a caducidade da garantia pela expiração do prazo.

468. CARÁTER ESPECIAL DO PENHOR PECUÁRIO – Trata-se do que Afonso Fraga (1),

chama de índole metaléptica do penhor pecuário. Assim é que o penhor pecuário, diferentemente das demais formas de penhor, não só envolve os frutos como ainda abrange os animais da mesma espécie comprados para substituir os mortos, ficando assim subrogados no penhor (§ 2.º do art. 12 da lei n.º 492, de 1937). Êsse caráter vem do direito romano.

O dispositivo supracitado corresponde exatamente ao art. 787 do Código Civil.

Esta substituição presume-se, mas não valerá contra terceiros se não constar de menção adicional ao respectivo contrato (§ 3.º do art. 12, da lei n.º 492, de 1937).

Mas, tendo havido essa substituição e, além disso, constando de menção adicional ao respectivo contrato, pergunta-se: essa menção adicional está subordinada a algum ato no registo imobiliário?

Entende Afonso Fraga (2), que em atenção à natureza especial dêsse penhor é totalmente dispensável averbação ou transcrição do aditivo no registo do penhor, desde que se atenda que o objeto penhorado é uma universitas, que se não altera com o aumento, diminuição ou substituição dos seus elementos componentes.

Êsse o mesmo critério seguido por J. M. de Carvalho Santos (3).

Clóvis Beviláqua (4), entende que embora o Código fale em nomeação adicion al do contrato, todavia, como o contrato tem de inscrever-se para dar ao penhor o caráter de direito real, é forçoso, ensina o eminente civilista, que também se inscreva o aditivo para o mesmo efeito.

Cremos que a questão da universitas, ainda tão intrincada, deve ser encarada aqui de outro modo.

Não se contesta que a índole da universitas afasta da substituição a necessidade de nova inscrição, pois o ato não ficou modificado em sua substância.

Mas ainda que incorporada na coletividade, a coisa singularmente existe e atua devidamente, pois o que se nota de especial é a subordinação de um complexo de coisas a um tratamento jurídico

(1) – Afonso Freire, Direitos Reais de Garantia, pág. 200. (2) – Afonso Fraga, ob. cit., pág. 202. (3) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., X, pág. 186.

(4) – Clóvis Beviláqua, Cód. Com., III, pág. 372.

[195]

unitário, como se a efetiva pluralidade das coisas fôsse (lògicamente) reduzida à unidade (5).

A substituição de animais produz uma alteração material na com posição da coisa coletiva. E se

um dos requisitos do instrumento de penhor pecuário é a designação dos animais com a maior precisão, segue-se que a substituição deve ficar constando do Registo Imobiliário, não mediante inscrição, pois a substância jurídica não sofreu modificação, mas mediante averbação, para consignar a alteração material.

469. DA CÉDULA REAL PIGNORATÍCIA – A instituição da cédula real pignoratícia é uma das formas do moderno movimento tendente a estabelecer a hipoteca mobiliária. Por meio da criação dêsse t ítulo, o agricultor, com perfeita garantia para os que com êle transigirem, tem um

meio seguro e vantajoso no sentido da obtenção de créditos necessários à movimentação e desenvolvimento dos seus campos agrícolas. Por conseguinte, a cédula real pignoratícia é um meio de desenvolvimento do crédito agrícola.

Assim, feita a inscrição da escritura de penhor rural, em qualquer de suas modalidades, pode o

oficial do registo imobiliário, se o credor lho solicitar, expedir em seu favor, averbando -a à margem da respectiva inscrição, e entregar-lhe, mediante recibo uma cédula real pignorat ícia, destacando-a, depois de preenchida e por ambos assinada, do livro próprio (art. 15, da lei n.º 492, de 1937).

Para o cumprimento dessa disposição, estabelece a lei que em cada cartório do registo imobiliário deverá haver um livro talão, de cédulas rurais pignoratícias, de fôlhas duplas e de igual conteúdo, segundo o modêlo que a lei indica, numerado e rubricado pela autoridade judiciária competente, contendo cada uma:

I) – A designação do Estado, comarca, município, distrito ou circunscrição.

II) – O número e data da emissão.

III) – Os nomes do devedor e do credor.

IV) – A importância da dívida, seus juros e data do vencimento.

V) – A denominação e individualização da propriedade agrícola em que se acham os bens ou animais empenhados, indicando a data e tabelião em que se passou a escritura de aquisição ou arrendamento daquela ou o t ítulo por que se operou, número da inscrição respectiva, data, livro e página em que esta se efetuou.

VI) – A identificação e a quantidade dos bens e dos animais empenhados.

(5) – Domenico Barbero, Le Universalitá Patrimoniali, pág. 188.

[196]

VII) – A data e o número da inscrição do penhor rural.

VIII) – As assinaturas, de próprio punho, nas duas fôlhas, do oficial e do credor.

IX) – Qualquer compromisso anterior nos casos dos artigos 4.º, §§1.º e 6.º, I (art. 15, §1º, ns. I a IX, da lei n.º 492, de 1937).

Se o credor pignorat ício não souber ou não puder assinar, será o título assinado por procurador, com poderes especiais ficando a procuração, por instrumento público, arquivada em cartório (§2.º, do art. 15, da lei n.º 492, de 1937).

Quanto o empréstimo estabelecido na escritura do penhor rural fôr entregue em parc elas

periódicas, ao devedor será permitida a expedição de várias cédulas pignorat ícias, conforme as quantias e prazos acordados, devendo, porém, constar nas respectivas cédulas, o número da inscrição da escritura e a quantia total do penhor contratado (art . 18, §1.º, da lei n.º 492, de 1937).

Expedindo a cédula pignorat ícia, dá o oficial, imediatamente, por carta, mediante recibo, aviso ao credor pignoratício, e os endossatários devem apresentar-lhe para que, averbando o endôsso à margem, da inscrição, nela o anote, anotação essa que deve abranger a todos os endossos anterior (art. 17 e § único da lei n.º 492, de 1937).

470. CARACTERES E EFEITOS DA CÉDULA PIGNORATÍCIA – São os seguintes os caracteres principais da cédula pignorat ícia:

a) E’ um título eminentemente destinado à circulação creditória – Assim pode ser transferido, sucessivamente por endôsso em prêto, em que à ordem de pagamento se acrescente o nome

ou firma do endossante, seu domicílio, a data e a assinatura do endossante, não podendo, de modo nenhum, deixar de ser o credor pignoratício o primeiro endossante (art. 16, da lei n.º 492, de 1937).

Há a observar em relação ao endôsso:

1.º) que êle é puro e simples, reputando-se não escrita qualquer cláusula condicional ou

restritiva; e investe o endossatário nos direitos do endossante contra os signatários anteriores, solidàriamente, e contra o devedor pignoratício;

2.º) que é nulo o endôsso parcial;

3.º) que o endôsso cancelado é inexistente, mas hábil para justificar a série das transmissões do título;

4.º) que o endossante responde pela legitimidade da cédula rural pignoratícia e da existência das coisas ou animais empenhados;

5.º) o endôsso pode ser garantido por aval (§§1.º a 5.º, do art. 16, da lei n.º 492, de 1937).

[197]

b) A cédula rural pignorat ícia é um título resgatável – E‟ a cédula rural pignoratícia resgatável a

qualquer tempo, desde que se efetue o pagamento de sua importância, mais os juros devidos até o dia da liquidação; e em caso de recusa por parte do endossatário constante do registo, pode o devedor fazer a consignação judicial da importância total da dívida, capital e juros até o

dia do depósito, citado aquêle e notificado o oficial do registo imobiliário competente para o cancelamento da inscrição e anotação no verso da fôlha do talão, arquivando a respectiva contra fé, de que constará o teor do têrmo de depósito (art. 19, da lei n.º 492, de 1937).

O efeito da consignação judicial é liberar os bens ou animais empenhados, subrogando-se o vínculo real pignorat ício na quantia depositada (§ único do art. 19 da lei n.º 492, de 1937).

Quanto aos seus efeitos, a cédula rural pignorat ícia produz os seguintes:

a) uma vez emitida, passa a escritura de penhor a fazer parte dela, de modo que os direitos do credor se exercem pelo endossatário, em cujo poder se encontre, e inválido é o pagamento porventura efetuado pelo devedor sem que o título lhe seja restituído ou sem que nêle registe o

endossatário o pagamento parcial realizado, dando recibo em separado, para o mesmo efeito (art. 18, da lei n.º 492, de 1937);

b) a expedição da cédula rural impede que os bens ou os animais empenhados se tornem objeto de penhora, arresto, seqüestro ou outra medida judicial, obrigado o devedor, sob pena de

responder pelos prejuízos resultantes, a denunciar aos oficiais incumbidos da diligência, para que não a efetuem, ou ao juiz da causa, a existência do título, juntando o aviso recebido ao tempo de sua expedição (§2.º, do art. 18, da lei n.º 492, de 1937).

471. EXTINÇÃO DO PENHOR RURAL. – E‟ mais ou menos aplicável aqui tudo quanto já

dissemos a propósito do cancelamento do penhor comum (cfr. 2.º volume, dêste Tratado, número 229).

Em relação ao penhor rural, porém, existem causas especiais de extinção de cancelamento do ônus. São elas:

1.º) mediante requerimento do credor e devedor, conjuntamente, se não expedida a cédula rural pignoratícia;

2.º) pela apresentação da cédula rural pignoratícia, caso em que o oficial, depois de lançar, no verso da primeira via, no livro talão, o cancelamento, a devolverá ao apresentante com anotação idêntica;

3.º) pela consignação judicial da importância total da dívida, capital e juros, até o dia do depósito;

[198]

4.º) por sentença judicial.

472. CUSTAS DO OFICIAL – Foram estabelecidas normas para a percepção de custas por parte do Oficial do Registo Imobiliário.

Assim é que dispõe a respectiva legislação que embora pela inscrição do penhor rural as custas

do Oficial do Registo Imobiliário sejam as do regimento em vigor, contudo estabelece que, em hipótese alguma, possam elas exceder de Cr$ 50,00, sendo que Cr$ 10,00, pela expedição da cédula rural pignoratícia; Cr$ 5,00 pela averbação dos endossos, cada vez; igual importância pelo cancelamento da inscrição.

Finalmente impõe ao oficial, sob pena de responsabilidade, a obrigação de não recusar ou demorar a inscrição e a expedição da cédula pignorat ícia (art. 34 e § único, da lei n.º 492, de 1937).

[199]

PROMESSA DE COMPRA E VENDA

473. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL – Com o surgir da legislação relativa á

venda de terrenos loteados e em prestações, o contrato de promessa de compra e venda de imóveis, além de adquirir feição nova, passou a ser distribuído em duas categorias: a primeira, a dos contratos de promessa de compra e venda de imóveis, sob a forma comum; a segunda, concernente aos contratos de promessa de compra e venda de imóveis loteados e a prestação.

Trataremos do contrato de promessa de compra e venda de imóveis não loteados.

474. NATUREZA DO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA – No regime do Código Civil, anteriormente às leis de loteamento, muito se discutiu sôbre a natureza do contrato de promessa de compra e venda de imóveis. A maioria, quer dos juristas, quer dos Tribunais, era no sentido de que se tratava de uma obrigação puramente de fazer.

O Sr. Ministro Edmundo Lins (1), abriu a questão, decidindo que a promessa de compra e venda equivalia a um verdadeiro contrato de compra e venda.

A conseqüência dessa concepção é óbvia: equivalendo uma venda a pro messa de compra e venda, cumpridas tôdas as obrigações, deve ter execução compulsória, através de um ato judicial, em havendo recusa da parte do promitente vendedor.

Êste foi o rumo que, há poucos anos, seguiu o Supremo Tribunal Federal (2), embora, posteriormente, tal acórdão haja sido considerado como um julgado isolado, destituído da fôrça necessária para se impor (3).

Carlos Fulgêncio da Cunha Pinto (4), estabelece a distinção da promessa de compra e venda por meio de instrumento público da

(1) – Rev. Forense, I, pág. 41. (2) – Rev. Forense, not. 65, pág. 122. (3) – Arquivo Judiciário, vol. 30, pág. 171.

(4) – Rev. Forense, vol. 74, pág. 437.

[200]

que é feita por meio de instrumento particular, opinando no sentido de que, no primeir o caso, há

lugar a execução coativa, sendo de excluir no segundo, em vista do que dispõe o art. 1.088 do Código Civil.

Para chegar a êsse resultado, o ilustre jurista se fundamenta no art. 881 do Código Civil, assim dispondo:

“Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à

custa do devedor, havendo recusa ou mora, dêste, ou pedir indenização por perdas e danos”.

Diz então que sendo todos os juristas acordes em reconhecer no caso uma obrigação de fazer, e como a obrigação de fazer pode ser cumprida por terceiro, êste terceiro será o juiz at ravés de

sua decisão e os casos análogos repontam no usucapião (arts. 550, 995 e 1.139), no condomínio e na enfiteuse.

Reporta-se, finalmente, ao direito anterior, onde diz se encontrar idêntica solução, porquanto as Ordenações (Liv. 4.º, tit. 19) excluíam o contrato de promessa de compra e venda que não se

revestisse à forma do contrato definitivo e nos demais casos consideravam o principal como perfeito e eficaz por conta da sentença, sendo essa a doutrina sustentada por Silva Pereira, Teixeira de Freitas e Corrêa Teles.

Não há dúvida ser esta a orientação mais precisa, mais lógica e mais equânime.

Mas não nos parecem aplicáveis, por analogia, os princ ípios inerentes ao condomínio, à enfiteuse e ao usucapião.

No usucapião, não se vislumbra a menor identidade. E‟ êle um direito produzido pelo tempo e que tem a propriedade de aniquilar um outro direito, sem se ter em conta a vontade, ou pelo menos deixando de lado a questão da vontade da parte daquele que perdeu a propriedade em benefício do usucapiente.

No condomínio, há um direito de preferência fundado, não em motivos subjetivos de oferta ou falta de oferta, mas na objetividade do condomínio, cuja eliminação se torna conveniente, por motivos de ordem pública.

Quase idênticos os fatores determinantes do direito de preferência na enfiteuse, isto é, o jus

proclationis se gera na conveniência que interessa à ordem pública de unificar e consolidar os direitos fracionados da propriedade, fracionamento que origina litígios e prejudica o melhor aproveitamento da terra (5).

(5) – Cunha Gonçalves, Trat. de Dir. Civil, IX, pág. 299.

[201]

Ora, a noção de analogia, segundo frisou Vander Eycken (6), para ser exata, deve ser posta em

relação com a natureza verdadeira das prescrições legais, impondo-se uma idêntica solução, quando o fim é o mesmo nas duas espécies.

Geny (7), faz ressaltar a necessidade de igualdade jurídica determinando que as mesmas

situações de fato devem comportar as mesmas situações jurídicas, bem como a de uma identidade essencial, extraída dos motivos de ordem social, moral e econômica, visando realizar a justiça concreta ou a utilidade geral.

Não existe, pois, essa identidade, o que afasta uma aplicação analógica.

O argumento deduzido do art. 881 do Código Civil não se nos afigura mais feliz.

Visou o referido dispositivo ùnicamente a prestação de um fato e não a realização de um ato jurídico, situações bem diferentes.

Nem maior refôrço se pode obter do art. 1.088. O que aí se diz é que, feito o contrato por escritura pública, sendo esta da substância do ato, não mais é lícito o arrependimento.

Tal dispositivo não se estende à promessa de compra e venda, pois o seu objeto é pura e simplesmente a promessa do contrahere.

Vivíssima é ainda essa questão entre os juristas franceses e italianos.

No direito francês, a doutrina não é tão interessante, em relação ao nosso direito, pelo fato de

que o Código Civil francês contém dispositivo expresso regulando a situação, e é o que se vê do artigo 1.589: “la promesse de vente vaut vente, lorsqu‟il y a consentement sur la chose et sur le prix”.

No Código Civil italiano, a situação é idêntica à do nosso direito, dada a inexistência de qualquer dispositivo legal sôbre o assunto.

Doutrina e jurisprudência são divergentes: uma parte (Pacifici-Mazzoni, Borsari, Ricci, Manara e Giorgi), sustenta que a promessa de venda vale venda; outra, em grande maioria, bate -se pela distinção entre a promessa de venda e a venda (Mattirolo, Cuturi, Coviello, F. Degni, Bossari, Gabba, Longo, Butera, Ascoli, Bonelli e De Ruggero).

Pacifici-Mazzoni (8), sustenta que, estando a promessa de compra e venda dotada de todos os elementos integrantes da compra e venda, e sendo à vista, vale uma venda, consider ando, contudo, uma simples obrigação de futura compra e venda, quando figure

(6) – Vander Eykeen, L‟Interpretation Juridique, n.º 184.

(7) – Geny, Méthod d‟Int., págs. 118-119. (8) – Pacif ici-Mazzoni, Inst. V, n.º 10.

[202]

uma cláusula penal, facultando libertar-se do contrato, mediante o pagamento da multa.

Gabba (9), de início salienta que promessa bilateral de contrato é obrigação convencional de dar execução a um contrato, um contrato cujo objeto é um contrato futuro.

Em seguida ressalta que se não pode confundir a vontade de se obrigar em seguida, com a vontade de se obrigar atualmente.

F. Degni (10), diz que, ainda quando o acôrdo se torne perfeito, pela presença de todos os

elementos que lhe são essenciais (coisa e preço), a promessa bilateral de compra e venda se distingue da compra e venda definitiva, porque, na promessa, dá-se sempre uma sucessiva declaração de vontade dos contraentes para que se verifique a transferência do domínio, de vez

que o conteúdo da promessa é um contrahere futuro, enquanto na venda definitiva, mesmo no caso da transferência da propriedade não coincidir com a conclusão do contrato, o conteúdo dêste é sempre a referida transferência, que pode ficar subordinada a um acontecimento futuro.

475. NATUREZA DO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS

SEGUNDO A LEGISLAÇÃO POSTERIOR AO CÓDIGO CIVIL – Já frisamos que há duas espécies de contrato de promessa de compra e venda de imóveis: a de terrenos loteados para serem vendidos a prestação e a de terrenos e edifícios de qualquer espécie. E‟ desta última que estamos tratando.

O decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937 introduziu uma inovação que alterou, ao nosso ver, profundamente, a fisionomia jurídica da situação que se esbatia no Código Civil.

O art. 22 das Disposições Gerais do referido decreto-lei, estabeleceu a averbação para os contratos de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar -se a prazo em uma ou mais prestações.

A citada disposição ficou assim redigida no art. 22 das Disposições Gerais do dec. n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938:

“As escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das

respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei, compreendidas nesta disposição as escrituras de promessa de venda de imóveis em geral”.

(9) – Gabba, Nuove Questioni di Diritti Civile, I, pág. 125 e segs. (10) – E. Degni, Compre Vendita, pág. 11.

[203]

Tal inovação trouxe a possibilidade da averbação de todo e qualquer contrato de promessa de compra e venda de imóveis, pouco importando a fixação do preço à vista ou à prazo.

A primeira questão surgida com as supramencionadas disposições foi a de se saber se se tratava de uma disposição de caráter obrigatório ou não; depois, a de se tratar ou não de um direito real.

Sôbre êsses pontos tivemos oportunidade de assim decidir:

“No nosso entender não existe obrigatoriedade, no sentido estri to da palavra, pois nenhuma

sanção direta a lei cominou para o caso da averbação não haver sido feita. O que pode suceder é ficar o promitente comprador desprovido das garantias necessárias oriundas da averbação. Mas, ainda que facultativa a averbação, uma vez realizada, produz os seus efeitos. Em se

tratando de compra e venda de imóveis loteados, êstes efeitos consistem no cunho de direito real conferido pela lei (art. 5.º do decreto n.º 3.079, de 1938). Mas êsse caráter se estende à promessa de compra e venda de imóveis não loteados?

Não temos dúvida de que assim ocorra. Não sòmente porque a lei o diz expressamente, como

ainda por fôrça dos próprios efeitos atribuídos à averbação, parece-nos clara a natureza real dêsse direito.

Expressamente a lei conferiu tal atributo, porque o art. 22 do decreto-lei n.º 3.079, de 1938, ao conceder a averbação da promessa de compra e venda não loteado, acrescentou que essa

averbação era para os efeitos da própria lei, e êstes efeitos entendem-se naturalmente os que lhes são compatíveis, ou sejam, os efeitos consignados no art. 5.º que confere o caráter de direito real.

Não quer isto significar, entretanto, a admissão em nosso direito do princípio do direito francês

de que a promessa de venda vale venda. Os contratos de promessa de compra e venda de imóveis continuam com o seu mesmo aspecto de promessa de contrahere futuro. O que lhe dá fisionomia nova é o caráter real dêsse direito. Averbado o contrato, a disponibilidade do imóvel

fica subordinada ao contrato de promessa de compra e venda, bem como qualquer outro ônus que sôbre êle venha a constituir o seu vendedor promitente. Assim, os atos medio tempore praticados pelo promitente vendedor estão subordinados, quanto à sua subsistência, à efetiva

realização ou não da promessa de venda, dependentes, portanto, da rescisão desta” (in Diário de Justiça, de 2 de julho de 1939).

476. O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS SEGUNDO A NOVA LEGISLAÇÃO SÔBRE REGISTOS PÚBLICOS – Uma nova feição foi dada ao contrato de

promessa de compra e venda de imóveis, sem ser divididos em lotes e mediante venda a prestações.

[204]

Trata-se do texto n.º XIV da let ra “a” do art. 178, ora comentado.

Assim tais contratos de promessa de compra e venda deixaram de ser simplesmente averbáveis para se tornarem sujeitos à inscrição.

Além disso, essa formalidade da inscrição passou a atuar como elemento imperativo do contrato.

A situação jurídica resultante da legislação de loteamento, e a que viemos de aludir no n.º 387

supra, modificou-se, no sentido de levar o caráter real dêsse contrato a um aspecto mais profundo e mais enérgico.

Por assim dizer, o dispositivo do n.º XIV completou a evolução iniciada pela lei de loteamento.

Não há mais dúvida que se trata de um direito real.

O texto do n.º XIV conjugado com o art. 5.º do decreto número 3.079, de 1939, corta tôda questão.

Além disso, essa inscrição é obrigatória. Qualquer contrato feito sem a dita formalidade é vazio

de efeitos, quer entre as partes contratantes, quer em relação a terceiros (art. 253, do dec. 5.318, de 29 de fevereiro de 1940) (1), admitidas certas restrições.

Mas isso não quer dizer que a promessa de venda importe na venda definitiva: ela atua como promessa, revestida das condições especiais e da natureza de um direito real. Essa convicção

nossa, mais robusta se torna ante a consideração de que a lei de loteamento prescreve

necessàriamente um segundo ato – a outorga da escritura definitiva ou a sentença judicial supletiva – quando realizadas, pelo compromissário, tôdas as obrigações contratuais (arts. 15 e 16, do decreto n.º 3.079, de 1938).

De outro modo passaria de promessa de venda a venda condicional, o que não se admite, pois,

na venda condicional, a integração do ato se realiza pelo simples advento do fato constitutivo da condição, sendo que a operação a ser feita no Registo de Imóveis para a indicar, já não mais consiste na transcrição, como sucede em relação à escritura definitiva ou à sentença, na

promessa de compra e venda, mas sim uma averbação que, revelando o evento condicional, dá fôrça retroativa à condição clausulada na venda.

Outrossim, não temos dúvida em afirmar, diante da natureza real do contrato de promessa de compra e venda de imóveis, que, estando inscrito devidamente, pode ser executado compulsòriamente.

(1) – Cfr. o comentário ao art. 253, in vol. IV, n.º 631, páginas 384-386, da 1.ª edição.

[205]

Na doutrina, há a acrescentar a valiosa opinião do prof. San Tiago Dantas (2), postando -se, decididamente, entre os que consideram o contrato de promessa de compra e venda suscetível de execução compulsória.

Entretanto, fôrça é ressaltar, que essa inscrição da promessa de compra e venda de imóvel não

loteado não o submete integralmente ao regime do decreto-lei n.º 58, de 1937. Os efeitos da inscrição são restritos à execução coacta da promessa de compra e venda e ao caráter de direito real dela resultante, em relação aos atos praticados pelo proprietário promitente, medio

tempore entre a inscrição da promessa e a outorga da escritura definitiva ou a sua atribuição por mandado judicial.

Segue-se daí, que certas peculiaridades inerentes à promessa de compra e venda de imóvel loteado não são ajustáveis à promessa de compra e venda de imóvel, de direito comum. Assim,

ultrapassa os objetivos da lei o julgado proferido pela 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de S. Paulo (Ac. de 15 de agôsto de 1946, in Rev. dos Trib., 150-692) considerando indispensável a notificação do comprador para constituição em mora, mesmo para os contratos de compra e

venda de imóveis não loteados, aplicando-se o art. 14 combinado com o art. 22, do decreto-lei n.º 58, de 1937, e decreto n.º 3.079, de 1938. A notificação pode ou não ser necessária, conforme tal medida seja ou não comportável, segundo as normas do Código Civil e não com

fundamento nas citadas disposições especiais. Cumpre ressaltar que enquanto o regime dos terrenos loteados, submetidos ao decreto-lei n.º 58, de 1937, é de ordem pública, a promessa de compra e venda de imóveis não loteados continua no domínio da autonomia da vontade, sendo,

em razão dela, que se dá a sua inscrição, prevalecendo a execução coacta, quando não estabelecido o direito de arrependimento.

O eminente Ministro Laudo de Camargo (3), em artigo doutrinário sôbre a matéria, considerou a legislação sôbre loteamento como uma legislação de exceção, e embora tenha conceitos de que

discordamos fundamentalmente, contudo frisou a restrição de que a mora, no tocante aos compromissos de compra e venda de imóveis não loteados, tem para regê-la a legislação comum e não a especial. Por isso, reputamos que a eficácia da lei de loteamento sôbre o

contrato de promessa de compra e venda de imóveis não loteados cinge -se à sua execução coacta e todos os corolários inerentes a um direito real.

(2) – San Tiago Dantas, Compromisso de C/Venda de Imóveis, Parecer, in Rev. dos Trib., vol. 151, págs. 485-505.

(3) – Laudo de Camargo, A Mora nos compromissos de compra e venda de imóveis não loteados, in Tribuna Judiciária, de 30-9-1941.

[206]

477. OS EFEITOS DA INSCRIÇÃO DA PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL NÃO LOTEADO, EM FACE DA JURISPRUDÊNCIA – Logo que os dispositivos inovadores,

examinados no parágrafo antecedente, foram postos em execução e que a doutrina abriu caminho a uma interpretação consentânea com as referidas disposições, no sentido de execução compulsória da promessa de venda, a jurisprudência cindiu-se em duas correntes:

uma intransigentemente apegada ao passado, incapaz de perceber a nova ordem instituída, e dando à inscrição da promessa de compra e venda de imóvel não loteado o valor de direito real, menos, porém, para o cumprimento coacto da obrigação; outra, porém, mais científica, consciente da renovação trazida pelos dispositivos em foco, admitindo a execução compulsória.

Assim, a 3.ª Câmara do Tribunal de S. Paulo decidiu que “a averbação à margem das transcrições, permitidas nos casos de compromisso de compra e venda e imóveis não loteados, apenas outorga ao compromissário comprador um direito oponível a terceiros” (Ac. de 28 de

novembro de 1942, in Rev. dos Trib., vol. 142, pág. 619/620). Ainda no mesmo sentido: Ac. da 3.ª Câm. do Trib. de Just. De São Paulo, de 30/8/1944, Rev. dos Trib., 145, pág. 694; Ac. das Câmaras Cíveis Reunidas do Trib. de S. Paulo, por maioria, de 2-6-1944, Rev. dos Trib., 152,

pág. 228; Ac. da 1.ª Câm. do Trib. de S. Paulo, de 12-3-1945, R. T., 156, pág. 271 idem de 24-9-1945, Rev. dos Trib., vol. 163, pág. 709 e R. T 156, pág. 633/635.

O ponto de vista dessa corrente que mantém a idéia tradicional, isto é, a da conversão em perdas e danos como modo de sancionar a obrigação de dar a escritura definitiva, no caso de

recusa, é, como se disse, êste: limitação dos efeitos reais da inscrição da promessa de compra e venda de imóveis não loteados tão sòmente a uma oponibilidade erga omnes, menos a do efeito compulsório em relação ao promitente vendedor. De pouco interêsse prático é enumerarmos

todos os julgados nesse sentido, cumprindo assinalar, entretanto, que ainda é forte a corrente jurisprudencial a êle apegada.

Vejamos a segunda corrente. Pesquisemos, em primeiro lugar, o reduto mais forte e tradicionalista, que é o Tribunal de Justiça de São Paulo. A 2.ª Câmara do referido Tribunal

decidiu que “aplicam -se aos compromissos de compra e venda sôbre imóveis não loteados os decretos n.º 58, de 10-11-937 e 2.079, de 1938” (Ac da 2.ª Câmara do Trib. de Ap. de São Paulo, de 22-8-1944, R. T., 101, pág. 105). A 1.ª Câmara do dito Tribunal também decidiu: “o

compromissário comprador do imóvel não loteado e vendido a prestações pode exigir a outorga da escritura definitiva, se inscrever a de compromisso”, acrescentando que, “o direito de arrependimento há de ser estipulado em têrmos claros e precisos” (Ac. da 1.ª Câmara Cível do Trib. de

[207]

São Paulo, de 27-11-1944, Rev. dos Trib., 156, pág. 633-635). Ainda o 1.º Grupo de Câmaras Reunidas estabeleceu: “o compromissário comprador de imóvel não loteado e vendido a prestações pode exigir a outorga da escritura definitiva, se inscreve a do compromisso” (Ac. do

1.º Grupo de Câm. Cíveis Reunidas do Trib. de São Paulo, de 4-6-1945, Rev. dos Trib., pág. 161/625); idem, da 2.ª Câmara do Trib. de São Paulo, de 20-5-947, in Rev. dos Trib. 168, pág. 257/259).

E as Câmaras Cíveis Reunidas, recentemente, aceitaram essa execução compulsória, pois só

não a deferiram em vista de existir cláusula expressa de arrependimento, o que enquadra o julgado no segundo grupo, como se vê: “não se aplica aos compromissos de venda de imóveis não loteados, em que se admitiu a possibilidade de arrependimento – por isso chamados abertos

– a legislação especial para os terrenos loteados e vendidos a prestação a não ser a instituição de um direito real de garantia a favor dos compromissários” (Ac. das Câmaras Cíveis Reunidas de S. Paulo, de 31-5-1946, R. T., 163, pág. 782/785).

Diversamente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decidiu que “a inscrição de promessa

de compra e venda a prestações, ou paga à vista ou de uma só vez, assegura ao adquirente o direito de pedir a adjudicação, mesmo em se tratando de imóvel não loteado” (Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de Ap. de Pôrto Alegre, de 16-12-1942, Rev . dos Trib., 156, pág. 317/320).

A 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Minas Gerais, embora apreciando a questão da for ma da

escritura da promessa de compra e venda de imóvel não loteado, abraçou o ponto de vista da execução compulsória, pois acentuou que “a promessa constitutiva de direito real, suscetível de execução específica, não aperfeiçoável por instrumento particular, deve ser feita por instrumento

público se o valor do imóvel supera a taxa legal, deve ainda conter a outorga uxória, bem como os necessários requisitos para a inscrição” (Ac. na Ap. número 1.955, de 31 de julho de 1944, in “Diário” de Belo Horizonte, de 17 de janeiro de 1946).

São interessantes os argumentos expendidos pelo Desembargador J. Benício e que foram os seguintes:

“Não obstante o brilho da argumentação do apelante, e direito, no meu sentir, está com a sentença apelada em sua conclusão.

O regulamento dos registos públicos, nas disposições em que o apelante se arrima para sustentar sua pretensão, não pode ser aplicado com a rigidez pleiteada, alcançando tôda e qualquer promessa de venda de imóvel não loteado.

[208]

E‟ necessário distinguir para não arrastar o nosso direito a lamentável retrocesso, como procedente, adverte o Sr. Ministro Filadelfo Azevedo, civilista, sabidamente um dos mais perfeitos conhecedores dos institutos dos registos públicos, entre nós.

A distinção está feita, esclarece S. Excia. na doutrina, na jurisprudência e consagrado no

anteprojeto do Código das Obrigações (artigo 94) a saber – promessa constitutiva de direito real, suscetível de execução específica, não aperfeiçoável por instrumento particular, e promessa geradora de mera obrigação e sòmente passível de execução imperfeita.

Às partes é livre adotarem um ou outro dêsses sistemas, certo que, se pretenderem seguir o primeiro, há necessidade que convencionem em forma solene, de instrumento público, se o valor do imóvel superior à taxa legal, como resulta, a contrário “sensu” dos

artigos combinados, 178, XIV, 237 e 252 do regulamento, impondo-se, ainda a outorga marital ou uxória e com os necessários requisitos para a inscrição (Revista de Jurisprudência Brasileira, v. LXVII, 45).

Dêste modo os preceitos de regulamento só se referem aos atos que podem ter acesso

ao registo e, portanto, às promessas de primeira categoria sem alcançarem as das

segunda, uma vez que não se pode considerar sem eficácia estas últimas quando

revestirem forma de escrito particular, cujo ingresso no registo de imóveis, é, atualmente, defeso como seria possível durante a vigência do decreto n.º 58, de 1939, e até o advento do regulamento em vigor.

Realmente, as partes podem abrir mão dos favores da lei e não querer transformar simples obrigação em direito real.

Assim, a promessa de venda de imóvel não loteado, de valor superior a mil cruzeiros, formalizada apenas por escritura particular, escapa ao regime instituído pelo decreto n.º 4.857, alterado pelo de n.º 5.318, e produz efeitos simplesmente na esfera obrigacional,

como um contrato preliminar, de natureza e objeto diferentes do contrato definitivo, com o que não se confunde, segundo a melhor doutrina.

No caso dêstes autos, a promessa de venda da casa assumiu a forma de instrumento particular, de acôrdo com as exigências do artigo 135 do Código Civil e não há como negar-lhe eficácia entre as partes contratantes, como sempre se julgou.

[209]

As partes contrataram a venda sob expressa reserva de confirmação e previram a hipótese de inadimplemento, estipulando uma multa para a parte faltosa.

Conseguintemente, não há como deixar de reconhecer a eficácia do contrato, que não ofende o artigo 3.º, IV, do decreto n.º 869, como alega o réu apelante, uma vez que essa

disposição, atento seu caráter penal, tem aplicação restrita, que não abrange o contrato ajuizado, numa promessa de venda de imóvel com a qual não se confunde a cláusula de reserva de domínio (Soriano de Oliveira, Da Compra e Venda com Reserva de Domínio, pág. 140, n.º 45), necessária à configuração jurídica daquela figura delituosa.

Na espécie, está confessadamente provado o inadimplemento do contrato pelo réu, não podendo, pois êste fugir às conseqüências de direito, decorrentes da falta ao pactuado. Nego provimento”.

No Distrito Federal, após surgirem vários acórdãos no sentido da 1.ª corrente, a tendência

atualmente preponderante é no sentido da execução compulsória da promessa de compra e venda de imóvel não loteado. Assim, o Acórdão da 4.ª Câmara, de 30 de junho de 1944, de que foi Relator o Sr. Desembargador Ribeiro da costa, atual Ministro do Supremo Tribunal Federal (in Diário da Justiça, de 4 de julho de 1944, págs. 3.967-3.968).

Depois a 3.ª Câmara (Ac. de 6 de março de 1945, in Diário da Justiça de 6-4-945, págs. 1.558-1.559); (Ac. da 5.ª Câmara, de 31 de outubro de 1944, Relator, Desembargador Saboia Lima, Rev. dos Tribunais, 163, págs. 326-327).

Finalmente as Câmaras Reunidas do referido Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por

Acórdão de 25 de julho de 1946 de que fomos relator, proferido na Ação Rescisória n.º 125, apenas contra o voto do Desembargador Men Reis, fixou que “são compulsòriamente exeqüíveis as promessas de compra e venda de imóveis não loteados, desde que tenha sido inscrito o

respectivo contrato, no Registo de Imóveis, salvo se houver pactuado o direito de arrepender, que não poderá ser atendido se o seu titular não o invocou na ação que lhe foi movida”.

Os fundamentos interessantes ao problema foram os seguintes:

Omissis...

O segundo fundamento argüido pelo autor consistiu na infringência à lei, por ter a

sentença rescindida ordenado a execução compulsória da promessa de compra e venda celebrada entre o autor e o réu.

[210]

Ora ao contrário do que se alega, a execução compulsória da promessa de compra e venda de imóvel é um imperativo legal.

Mesmo, as primeiras manifestações favoráveis a essa execução deram-se no regime

puro do Código Civil, isto é, quando ainda não se dispunha de um dispositivo de lei expresso. Destaca-se o trabalho precursor do eminente Sr. Ministro Filadelfo Azevedo (Rev. de Crít. Judiciária, volume 10, pág. 593 e seguinte) no qual defendeu a

possibilidade dessa execução, se, mediante escritura pública houvesse sido feita a promessa.

Apoiou-se na lição de Clóvis Beviláqua (Com., IV, pág. 45) quando afirma que a obrigação faciendi não importa alternatividade nem faculta ao devedor impedir o

prosseguimento da ação do credor, oferecendo pagar perdas e danos, pois, mui ao contrário “o credor é que pode propor a opção entre o cumprimento da obrigação ou perdas e danos” e como observou Teixeira de Freitas (not. ao artigo 952 do Esbôço) o

pagamento das perdas não é o cumprimento da obrigação, é o único remédio possível contra a falta do devedor.

Assim sendo, para Clóvis Beviláqua, exceto o caso de obrigação personalíssima, prevista nos arts. 880 e 878 do Cód. Civil nas demais obrigações de fazer o essencial é que o

“fato permitido se execute pelo modo ajustado, não sendo necessário que o devedor cumpra, em pessoa, o que prometeu fazer”;

Socorreu-se, ainda, o ilustre jurista da invocação analógica dos arts. 1.094 e 1.126 do Código Civil: o primeiro, prescrevendo que “o sinal ou arras dado por um dos contraentes

firma a presunção de acôrdo final e torna obrigatório o contrato”; o segundo, determinando que “a compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço”.

E concluiu: “a contrario sensu, feita a promessa por escritura pública, impossível o arrependimento, desde que todos os adminículos foram observados”.

Refôrço a êsse ponto de vista é igualmente o artigo 1.088 do Código Civil, determinando:

“quando o instrumento público fôr exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-

[211]

se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 e 1.097”.

Aderiu a êsse ponto de vista de Filadelfo Azevedo, o Sr. J. M. Carvalho Santos (Cód. Civil Int., vol. 15, página 129 e seguintes), que logrou a adesão da Côrte Suprema (Arq. Jud., vol. 34, pág. 520).

Tal era, em síntese, o estado da doutrina e da jurisprudência, quando surgiu o decreto -lei n.º 58 de 10 de dezembro de 1937, dispondo no art. 22:

“as escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei”.

Sobresseguiu o decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938, o qual, ainda no art. 22, prescreve:

“as escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei, compreendidas nesta disposição as escrituras de promessas de venda de imóveis em geral”.

Conseqüentemente, quando êsses dois diplomas legislativos frisaram que a averbação do compromisso de compra e venda de imóvel não loteado atribuía a um tal contrato os efeitos por êle conferidos, entende-se lògicamente, a eficácia integral de suas garantias, desde que coadunável com a natureza da respectiva relação jurídica.

Motivo não há para que se diga como a corrente jurisprudencial oposta, a qual, ao mesmo tempo que concede uma eficácia real, oponibilidade a terceiros, recusa estender o ponto do instituto, isto é, a execução compulsória do contrato.

Mas o movimento legislativo não se cingiu aos dois decretos supracitados. Outros vieram corroborar a situação jurídica já tão firmemente estabelecida.

O art. 178, letra “a”, alínea XIV do decreto n.º 4.857, de 1939, com as alterações constantes do decreto n.º 5.318, de 1940, prescreveu a inscrição no Registo de Imóveis,

“da promessa de compra e venda de imóvel não loteado, cujo preço deva pagar-se a prazo, em um ou mais

[212]

prestações, bem como as escrituras de promessa de venda de imóveis em geral (art. 22,

do decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, e decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938)”.

Sancionando êsse preceito, o art. 179 tornou obrigatório todos os atos contemplados na disposição supracitada.

No art. 253 ainda fixou expresso:

“Será inscrito no livro 4, para a validade, quer entre as partes contratantes, quer

em relação a terceiros, e com os mesmos requisitos do art. 247, a promessa de venda de imóvel não loteado”.

A expressão dêsses reiterados dispositivos, a evidência dos seus intuitos mostram o desacêrto daqueles que, sem nenhum motivo teórico nem justificativa de ordem prática,

entendem aplicar tão sòmente determinados efeitos do decreto-lei n.º 58, como os de oponibilidade em face de terceiros (Rev. dos Trib. volumes 142 -619-620; 444/33/ Rev. dos Trib., 145/694; 152/228; 156/271);

Não se trata de uma novidade.

No direito francês, anterior ao Código Napoleão, a aplicação da regra “nemo potest

praecise cogi ad factum” se era invocada por alguns para evitar o adimplemento compulsório da promessa de compra e venda, que se pretendia convers ível em perdas e danos, outros, precìpuamente Pothier (Traité du Contrat de Vente, n.º 479, Oeuvres III,

pág. 191), entendiam que se o promitente recusava o fato que havia prometido, supria- se pela conclusão do contrato por um julgamento equivalente a um ato de venda assinado pelo promitente.

Distinguia, ainda, Pothier, nas obrigações de fazer, os atos pessoais dos impessoais, ou

melhor, os fatos externos e corpóreos em oposição aos internos e incorpóreos, admitindo a execução in natura tão sòmente dos primeiros.

No Código Napoleão, apesar da regra “nemo potest” ter sido transformada no art. 1.142, Démogue (Obligations, VI, n.º 136, pág. 141) frisa não poder ser o texto legal

interpretado ao pé da letra, mas sim no sentido de que a execução in natura é possível, a menos em se tratando de um fato que se não possa compelir por motivos físicos ou morais, o que não ocorre na promessa de outorgar um contrato, acrescenta o referido jurista (ob. cit. II, n.º 520 e VI, n.º 137, pág. 143), de sorte que o ato do devedor

[213]

pode ser substituído por um julgamento, meio pelo qual a promessa se consumará.

Ora, essas idéias, não repugnam ao nosso direito, mas, mui ao contrário, aceitas pelo direito substantivo, como já vimos, foram igualmente reproduzidas em nosso direito adjetivo.

Trata-se do art. 1.006 do Código do Proc. Civil, prescrevendo:

“condenado o devedor a emitir declaração de vontade, será esta havida por enunciada logo que a sentença de condenação passe em julgado”.

Essa disposição completou, iniludivelmente, o sistema iniciado no direito substantivo. Comentando-a, o ilustre Desembargador Amilcar de Castro (Cód. do Proc. Com., X, pág. 372) afirma a consagração de uma boa doutrina, já sustentada por Corrêa Teles e Leite

Velho, no que é secundado por Bueno Vidigal, em brilhante monografia – Da Execução

Direta das Obrigações de Prestar Declaração de Vontade – onde a questão é estudada, precìpuamente do ponto de vista adjetivo.

A Jurisprudência, a despeito de algumas resistências, vai já aceitando o que já é um princ ípio legal inconteste.

Assim, a 3.ª Câmara (Ac. de 6-3-1945, D. da Just. de 6-4-945, pág. 1.558) admitiu a execução compulsória da promessa de compra e venda, devidamente inscrita, em

contrário a uma decisão anterior, com o voto vencido do então Desembargador Lafayete de Andrade (Ac. de 29-12-944, D. da Just. de 6-4-945, pág. 1.559). Do mesmo modo: AC. da 2.ª Câmara Cível do Trib. de S. Paulo, de 28-8-1944, Rev. For., 101, pág. 105;

AC. da 2.ª Câmara Cível do Trib. de Belo Horizonte, de 31 -7-1944, in Diário Forense, de 17-1-1948; Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de Ap. do Rio Grande do Sul, de 16-12-1942, Rev. dos Trib., vol. 156, pág. 317/320; Ac. da 1.ª Câmara Cível do Trib. de S. Paulo, de 27-11-1944, Rev. dos Trib., vol. 156, págs. 633/635.

Verdade é que, na escritura de promessa de compra e venda em apreciação, se pactuou a possibilidade do arrependimento.

Não menos certo é, ainda, que a assimilação das promessas de compra e venda de imóveis comuns, com as relativas a imóveis loteados jurìdicamente, is to é, mediante

prévia inscrição do plano de loteamento, não pode ser absoluta, integral, mas tão só para a recepção daqueles efeitos que forem compatíveis com o instituto jurídico assimilado.

[214]

Como conseqüência, a promessa de compra e venda de imóveis, não incluída no

loteamento jurídico, desenvolve-se no terreno da autonomia da vontade, da liberdade contratual, comportando, assim, a cláusula de arrependimento, ao passo que as promessas de venda de lotes, integralmente vinculadas ao processo de loteamento

previsto no decreto-lei n.º 58, têm as suas cláusulas subordinadas aos preceitos de ordem pública ditados pela aludida legislação, não comportando, v. g., o direito de arrependimento.

No caso sub-judice, a questão perde de interêsse, porque, a despeito da cláusula de

arrependimento possuir tôda validade, o autor, revel na ação, dela não se prevaleceu, nem argüiu nem ao Juiz era dado reconhecer essa alternativa em favor daquele que não se apresentou para elegê-la, como cumpria.

Por conseguinte, a sentença reconheceu um direito inconteste, ao mesmo tempo que não violou nenhum direito do recorrente.

Em tais circunstâncias, ao Juiz não restava outra solução que não a de determinar a adjudicação.

Finalmente, nem consideração merecem as demais argüições de nulidades, como a falta de fundamentação de sentença rescindenda e o defeito da carta de adjudicação, que são de manifesta improcedência”.

Essa orientação tem sido mantida, e a sua mais recente manifestação está no Ac órdão da 6.ª

Câmara Cível, assentando a execução compulsória da promessa de compra e venda de imóvel não loteado, desde que inscrito o respectivo contrato (Ac. da 6.ª Câmara, de 6 de maio de 1947, in Arq. Judiciário, vol. 82, pág. 303/305). Êsse julgado, que teve como Relator o ilustre

Desembargador Frederico Sussekind, toma por base a decisão das Câmaras Reunidas, supracitada.

Finalmente, tudo leva a crer a preponderância desta segunda corrente no egrégio Supremo Tribunal Federal (Rec. Ext. ns. 1.161 e 7.052, in Arq. Jud., 67, págs. 89 e 69, pág. 263 e Rec.

Ext. 6.330, in “Direito”, vol. 30, pág. 289). No Recurso Extraordinário n.º 8.324, por Acórdão de 7 de junho de 1946, decidiu ainda o egrégio Supremo Tribunal Federal que “o texto do decreto n.º 58 impede o arrependimento de uma das partes – o vendedor do imóvel (Diário da Justiça, de 19 de setembro de 1947, págs. 3.893/3.894).

O Relator, o eminente Sr. Ministro Goulart de Oliveira, assim fundamentou o seu voto:

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira (Relator). – O acórdão recorrido decidiu que os promitentes vendedores não tiveram motivo de fôrça maior que lhes impedissem

[215]

de cumprir a obrigação assumida, e, assim, reconheceu não se poderem arrepender mediante a simples restituição do preço confessadamente recebido mas sujeitos a

perdas e danos uma vez que incorreram e falta, tudo em face dos arts. 1.056 e 1.088 do Código Civil.

Inconformados os vencidos manifestaram o recurso extraordinário com base nas alíneas “a” e “d” do art. 101, n.º III, da Constituição Federal e alegaram feridos pelo acórdão os

arts. 5.º do decreto-lei n.º 58, de 1937, e 22 do decreto n.º 3.079, de 1938, e ao mesmo tempo contrariando a interpretação dada pelas decisões apontadas na petição sôbre a tese de não ser cabível o arrependimento dos recorridos, uma vez que deveriam ser compelidos ao cumprimento nos têrmos daqueles dispositivos.

O sentido do art. 1.088, de redação visìvelmente infeliz, como o fizera notar Clóvis Beviláqua nos seus comentários, é ainda assim a meu ver, transparente: enquanto não fôr assinado o instrumento público, as partes podem arrepender-se e Clóvis diz logo, porque sem essa forma o ato não tem existência jurídica.

Entende o recorrente que, na hipótese concreta, operou -se uma venda pura e simples, considerando o contrato perfeito e acabado, não se permitindo o arrependimento das partes. Pago o preço, a tradição se operou com a entrega do imóvel na forma do artigo 1.126 do Código Civil.

Só quando existe arras é permitido o arrependimento.

Não me convenci de que assim seja, mas antes de que os dispositivos referentes a arras regulam as espécies e não excluem outros e até mais gerais regulados por normas condizentes.

O art. 1.126 mesmo aludindo à perfeição do contrato de compra e venda não ilide a

exigência da escritura pública para que se complete a ultime íntegra a alienação de

imóvel e de direitos reais de valor excedente a mil cruzeiros. O instrumento público nem por isso deixa de ser da substância do contrato.

Mas, resta ainda a invocação dos dispositivos do decreto-lei n.º 58 e seu regulamento, em razão dos quais não é possível êsse arrependimento, pago ou não integralmente o preço.

Já tive ocasião de apreciar essa matéria quando do julgamento do recurso ex traordinário

n.º 4.896, de que fui relator. Êsse decreto tem como finalidade precípua amparar adquirentes de lotes de terrenos das possibilidades ga-

[216]

rantidas pelo Código Civil às empresas vendedoras, de não realizarem afinal as vendas prometidas, ostentando o art. 22 essas prerrogativas em favor de promitentes compradores de terrenos não loteados.

Naquele caso como neste sob julgamento o acórdão recorrido aplicou à espécie a lei federal que entendeu ajustada a hipótese jurídica e, assim, solucionou-a, deixando de fazê-lo com a outra invocada pela parte, porque a não entendeu aplicável, mas sem contudo feri-la no âmago de sua tese.

E não conheci, então, do recurso, como não o conheço agora, sob o fundamento da let ra a.

- Quanto à letra d: O recorrente afirma que o acórdão recorrido contrariou a inteligência dada ao art. 22 dos decretos ns. 58 e 3.079 pelo Tribunal de Apelação de São Paulo, no

acórdão proferido na Apelação Cível n.º 13.293, publicado na Revista Forense, vol. 90, pág. 756.

Êste aresto decidiu que “o art. 22 do decreto n.º 3.079, de 1938, ampliando o dispositivo correspondente ao decreto n.º 58, de 1937, estabeleceu a sua aplicação às escrituras de

promessa de venda de imóveis em geral, no que concerne aos efeitos decorrentes da averbação, ou sejam, os direitos reais então constituídos.

Devem, pois, ser regulados pelos mencionados decretos, tanto o nascimento como o perecimento dêsse direito”.

O próprio acórdão considera que não foi intenção do legislador atribuir todos os

dispositivos dos decretos às escrituras de promessa de venda de imóveis em geral, tal como se se tratasse de terrenos loteados. Só os efeitos da averbação. Essa, porém, a matéria condizente com a hipótese em litígio. Não se discutia a exigibilidade da

prestação cujas cobranças estariam suspensas, mas tratava -se de reconhecimento da mora, dando lugar à perda da propriedade.

Caracteriza-se imponente a contradição dos julgados, como se pretende agora.

De fato, pela primeira vez se invoca o recurso extraordinário com êsse fundamento da alínea d e indubitável assim o seu cabimento, porquanto questionados no feito os textos

da lei federal e seu regulamento, apontou o interessado o acórdão do Tribunal de São Paulo, contrariando pelo aresto recorrido, quanto à interpretação dada a êsses textos.

Conheço, assim, do recurso, sob essa invocação.

[217]

No mérito, impõe-se o destaque de uma circunstância.

No caso concreto, a venda não se operou com pagamento em pres tações, mas, ao

contrário foi desde logo pago todo o preço, dando-se dêsse pagamento plena e rasa quitação. Apenas protestou o vendedor a recusa do desmembramento de parte do terreno, alegação que ficou plenamente desmentida nos autos. Além disso, o promitente

comprador inscreveu logo o contrato no Registo Geral de Imóveis (Oitavo Ofício), conforme a exigência do decreto n.º 4.857, de 1939, e na forma do decreto n.º 58, e 1937 e seu Regulamento, de 1939, art. 5.º, assegurado o direito real.

Trata-se de um contrato feito por instrumento público pago o preço pelo comprador, em

que nenhuma das partes estipulou o direito de arrepender-se inscrito na forma e para os efeitos decorrentes do art. 178, letra a, n.º XIV, do decreto n.º 4.857. Como bem se pondera, a escritura definitiva dependia exclusivamente do desmembramento do terreno

vendido, de maior porção, condição que exuberantemente provada nos autos, tomada como pretexto, ficou desmentida e desmoralizada. O interêsse no desfazimento do contrato reveste justamente a hipótese que o texto do decreto n.º 58 e seu regulamento

buscou honestamente reprimir e remediar. O terreno valorizado pelo atêrro e melhoramentos, à custa do comprador, além do fator tempo decorrido.

Dou provimento ao recurso.

VOTO

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada. – Se o art. 22, do decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1939 dispõe que “as escrituras, de compromisso de compra e venda de

imóveis não loteados, cujo preço deva pagar-se a prazo, em uma ou mais prestações, serão averbadas à margem das respectivas transcrições aquisitivas, para os efeitos desta lei, compreendidas nesta disposição as escrituras de promessa de venda de

imóveis em geral”, está claro que não excetuou nenhuma das escrituras que tenham cumprido as exigências nela referidas – pagamento em uma ou mais prestações a averbação à margem das transcrições respectivas.

Satisfeitas essas duas condições tôdas as promessas de compra e venda de imóveis,

loteados ou não, estão obrigatòriamente sujeitas aos preceitos da lei, não podendo os promitentes vendedores se recusarem a outorgar as escrituras definitivas salvo o caso do art. 14 ou quando o direito de arrependimento fôr objeto de uma cláusula da escritura.

[218]

Assim, sem a declaração expressa de ser admitido êsse arrependimento, êste não será

possível, pois a averbação feita à margem da transcrição cria um direito real e o seu nascimento como o seu perecimento (art. 14), são regulados por essa lei especial. Cumpridas, portanto, as condições do art. 22, não há se cogitar da aplicação dos arts.

1.056 e 1.088 do Código Civil, que regulam casos não abrangidos pelo referido artigo da lei n.º 3.079.

Na hipótese dos autos, uma escritura pública de compromisso de compra e venda de um lote de terreno foi devidamente averbada no registo geral de imóveis, Oitavo Ofício (fôlhas 66), no livro das inscrições de ônus reais, e dela não consta qualquer cláusula prevendo um possível arrependimento, sendo que o preço foi totalmente pago.

Portanto, nesse caso, não se podia deixar de aplicar a lei n.º 3.079, reconhecendo os efeitos decorrentes da averbação, isto é: a existência de um direito real, cujo desaparecimento estaria sujeito ao disposto no art. 14, obedecido o processo estabelecido em seus parágrafos.

O Tribunal do Distrito Federal, entendendo de aplicar os arts. 1.056 e 1.088 do Código Civil, divergiu do julgado de São Paulo, quanto á inteligência dada à lei número 3.079 e, a meu ver, procede o recurso com fundamento na letra d.

Dêle conhecendo, dou-lhe provimento, na forma perdida”.

Cumpre assinalar, ainda, que no Recurso Extraordinário número 11.151, a 1.ª Turma do Sup.

Tribunal Federal (Ac. de 19 de maio de 1947, Diário da Justiça de 10 de novembro de 1948, páginas 3.024/3.026), confirmou um acórdão das Câmaras Reunidas do Tribunal de Apelação de S. Paulo, datado de 3 de maio de 1946, cujos fundamentos, contrários à tese da execução coativa da promessa de venda do imóvel não loteado, são as seguintes:

“Acordam, por maioria de votos, em Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Apelação, vistos, relatados e discutidos êstes autos de revista n.º 23.890, da Comarca de São Paulo, entre partes, recorrentes, Ademar Queirós de Morais e sua mulher, e, recorridos,

Eugênio Belotti e sua mulher, adotado o relatório de fls. 112-113, julgar procedente a revista para, cassando os acórdãos recorridos, determinar a volta do feito à Câmara de origem, a fim de que esta decida a espécie aplicando a doutrina dos acórdãos indicados

como divergentes, vale dizer, aplicando a legislação comum, pois que, no caso, não tem aplicação a

[219]

especial, consubstanciada no decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, e no decreto n.º 3.079, de 15 de setembro de 1938, que o regulamentou.

Custas pelos recorridos.

Incontestável a divergência: o acórdão recorrido aplicou à espécie, que não trata de

terreno loteado para ser vendido a prestação e mediante oferta pública, os referidos decretos, sem a limitação que os acórdãos divergentes fazem, pois que admitem como única modificação trazida pelos citados decretos nos casos comuns de compromisso de

compra e venda de terrenos – isto é dos que não são loteados para venda com oferta pública e mediante pagamento a prestações – a instituição, em favor do compromisso, quando inscrito o contrato, de “direito real oponível a terceiros, quanto a alienação ou

oneração posterior”. A característica mais frisante da divergência está na determinação

de outorga da escritura de compra e venda, na execução compulsória específica do

compromisso, feito pelo acórdão, muito embora se trate de um caso comum de compromisso, nem tenha havido qualquer “alienação” ou “oneração” do imóvel que, aliás, está em poder dos compromissários.

A corrente contrária a êsse acórdão, ora vencedora neste Tribunal, mantém, nestes

casos, em tôda a sua pureza, o sistema do Código Civil, considerando êsses compromissos como obrigações de fazer que, não cumpridas, se resolvem em perdas e danos, que, quando não prefixadas, deverão ser apuradas devida e oportunamente. Por

fôrça dos decretos citados, entretanto, o imóvel objeto de compromisso, quando inscrito o contrato, passa a responder pelo cumprimento da obrigação, quer tal cumprimento se haja de efetuar pela outorga da escritura, quer pelo pagamento das perdas e danos,

muito embora esteja em poder de terceiros. Os decretos citados estabelecem, em última análise, mesmo para os compromissos comuns, um direito real de garantia em favor do promitente comprador.

Não se ignora que o autor do primitivo projeto pretendia igualar as situações, mas, nem o

legislador do decreto-lei n.º 58, citado, e do seu regulamento foi aquêle a que o projeto era destinado, nem, quando o fôsse, a intenção do legislador prevaleceria sôbre a intenção da lei. A intenção da lei, nos casos de divergência de interpretação, é

encontrada naquela que dá à lei a sua melhor aplicação, a mais conveniente ao interêsse do povo. Ora, o compromisso de compra e venda não é criação do decreto -lei n.º 58, que o encontrou com uso antigo e freqüentíssimo, e, que,

[220]

na sua conceituação de obrigação de fazer, resolvendo-se em perdas e danos,

prefixados ou não, revelara-se um magnífico instrumento de circulação de riquezas. E por que goza êsse instituto de tamanho favor? Precisamente porque nêle, sem que seja nomeada, implicitamente, de maneira original a prática, atua a “rebus sic stantibus”. O

contratante, pagando a multa ou as perdas e danos, pode livrar -se de prejuízos imprevisíveis ou mesmo imprevistos. Imagine-se – como ùltimamente, por infelicidade nossa tem acontecido – um aviltamento brusco da moeda, que o dinheiro passe a ter um

poder aquisitivo notàvelmente diminuído em pouco tempo, não seriam injustos o prejuízo do vendedor e o lucro do comprador? Ou, na hipótese contrária, o prejuízo dêste e o lucro daquele?

Assim, o decreto-lei n.º 58, que com sua finalidade primordial de proteção à boa-fé, à

lealdade das transações de venda, por oferta pública, mediante pagamento a prestações, de terrenos loteados, é excelente e vem sendo provado como ótimos resultados; que, com o instituir em favor do compromissário, em qualquer caso de

compromisso, uma vez inscrito o contrato, direito real, ainda é bom: representaria, com a aplicação ampla que lhe quer dar a doutrina a que o acórdão recorrido se filia, em má. Com o retirar dêsses negócios a faculdade de arrependimento, diminuiria as vantagens e

o uso do instituto, restringiria a circulação de riquezas, e, tudo isso, sem vantagem alguma, pois que, no sistema do Código Civil, sobrariam maneiras de serem feitos negócios dêsses sem possibilidade de arrependimento. Inútil e prejudicial a

transformação de uma obrigação de fazer em obrigação de dar. De mais a mais haveria tratamento desigual das partes: o compromitente vendedor não poderia se arrepender, o imóvel garantiria o cumprimento do contrato e a compulsória transferência de

propriedade; o compromissário, o comprador, sem ter contra si nenhum direito real, via de regra sem garantia, poderia arrepender-se à vontade. Eis por que, no caso, não

podem coincidir a intenção do autor do primitivo projeto (que não se sabe se seria a intenção do legislador) e a intenção da lei.

A solução do caso, porém, embora aplicada à doutrina dos acórdãos divergentes, depende de apreciações de fato e de direito que êste recurso não comporta, razão por que os autos devem voltar à F. Primeira Câmara Civil, que terá os elementos para justa decisão.

São Paulo, 31 de maio de 1946. – Theodomiro Pisa,

[221]

Presidente. – Almeida Ferrari, Relator. – V. Penteado, vencido. – J. M. Gonzaga, vencido. – Gomes de Oliveira. – Frederico Roberto, vencidos. – Camargo Aranha. – Leme da Silva. – Pedro Chaves. – Pinto do Amaral, - Meireles Santos. – Macedo Vieira. – Cunha Cintra. – Percival de Oliveira, vencido.”

O então Procurador-Geral da República, Dr. Themístocles Cavalcanti, manifestou-se contrário à confirmação do acórdão supracitado, nos têrmos seguintes:

“De meritis, estou pelo restabelecimento da doutrina firmada pelos acórdãos por certidões a fls. 11 e fls. 78.

Parece-me ser a mais acertada como o demonstrou o douto Sr. Ministro Orosimbo Nonato, no voto citado nestes autos.

Não sòmente pode o juiz aplicar por analogia o princípio firmado pela lei em relação aos imóveis loteados como também não transgride os bons preceitos jurídicos a execução in natura, atribuindo-se ao comprador o imóvel, por meio de adjudicação judicial.

Mostrou-se Luis Machado Guimarães com muita precisão a finalidade consagrada nos

costumes brasileiros do contrato de promessa de venda (Comentários ao Código do Processo Civil, vol. IV, fls. 494), o que distancia tal compreensão das doutrinas que aproximam tais contratos das construções especulativas que isolam o contrato preliminar

do negócio jurídico cuja execução é protelada por mera conveniência das partes contratantes.

O contrato de promessa de venda de imóveis é de natureza real e não mera promessa de fazer e, por isso mesmo pode ter execução coativa at ravés de decisão judicial.

Consagrou, portanto, segundo me parece, a boa doutrina o acórdão reformado pela decisão recorrida, que merece ser restabelecida.

Rio de Janeiro, 25 de março de 1947. – Themístocles Brandão Cavalcanti, Procurador- Geral da República”.

O Relator – Ministro Barros Barreto – concluiu pela juridicidade do acórdão recorrido, reportando-se a um anterior julgamento da referida 1.ª Turma, por ocasião do julgamento do

Recurso Extraordinário n.º 5.153, de S. Paulo, relatado Ministro Laudo de Camargo (in Rev. For., vol. 90, pág. 687).

O Ministro Ribeiro da Costa, porém, após pedir vista, proferiu o seu voto, no qual concordou com

a conclusão do julgamento, tendo em vista, porém, a espécie sub judice, isto é, observou que os têrmos do contrato não permitiam a execução coatá, de vez que as partes pactuaram o direito de arrependimento. Por êsse modo deixou bem

[222]

claro que se tal direito de arrependimento não figurasse no contrato, êste devera finalizar-se pela

sua execução in natura, o que corresponde, exatamente, aos pontos de vista que sustentemos. E para maior clareza da nossa assertivo, damos a seguir o trecho capital do supracitado voto:

“As cláusulas, do contrato da promessa de venda, visando a sua rescisão, impedem, se possa valer, o comprador, como pretendeu, da execução compulsória, mediante o

depósito das prestações, transformando a mera obrigação de fazer em obrigação de dar, sob a possibilidade da adjudicação judicial, prevista naquela legislação e no Código de Processo Civil (arts. 345 e seguintes).

As condições pelas quais tem aplicação essa preceituação legal são claras e positivas,

limitadas, apenas, aos casos previstos, não obstante possa, por analogia, ser aquela faculdade estendida a certos casos especialíssimos, nos quais, e não havendo pacto rescisório, com o caráter de arrependimento, se haja integrado o pagamento total do preço da aquisição do imóvel.

Aplicou, assim, o aresto recorrido a preceituação legal, tendo em vista as próprias cláusulas contratuais, eis que previsto fôra o arrependimento com as conseqüências decorrentes da rescisão. Não colhe a invocação à legislação especial cujos efeitos se

fazem sentir expressamente nos casos que especifica admitindo a meu ver, aplicação analógica quando se trata de venda a prestação achando-se seu pagamento integralizado”.

478 – O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL NÃO LOTEADO EM

FACE DA LEI N.º 649, DE 11 DE MARÇO DE 1949. – No “Diário Oficial” de 15 de março de 1949, foi publicada a seguinte Lei:

LEI N.º 649 – DE 11 DE MARÇO DE 1949

Autoriza o Poder Executivo a dar nova redação ao artigo 22, do decreto -lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, que dispõe sôbre as escrituras de compromisso de compra e venda de imóveis loteados.

O Presidente da República:

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1.º - O artigo 22, do decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, passa a ter esta redação:

“Os contratos, sem cláusula de arrependimento de compromisso de compra e venda de imóveis não

[223]

loteados, cujo preço tendo sido pago no ato da sua constituição ou deva sê -lo em uma

ou mais prestações, desde que inscritos em qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros e lhes confere o direito de adjudicação compulsória nos têrmos dos artigos 16 desta lei e 346 do Código do Processo Civil”.

Art. 2.º - Esta lei se aplica aos contratos referidos no artigo anterior, ainda em via de execução compulsória, em qualquer instância.

Art. 3.º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Rio de Janeiro, 11 de março de 1949; 128.º da Independência e 61.º da República.

Eurico G. Dutra Adroaldo Mesquita da Costa.

A simples leitura dêste novo diploma mostra, desde logo, que todos os pontos de vista e

soluções que temos sustentado e estamos sustentando a respeito dos contratos de promessa de compra e venda de imóveis não loteados estão com êle em perfeita conformidade. O objetivo do legislador foi o de, por meio de uma nova redação gramatical, fulminar, uma vez por tôdas, essa

corrente doutrinária e jurisprudencial que temos combatido desde o nascedouro. Nem aos parágrafos já escritos nem aos subseqüentes, calcados embora no art. 22 do decreto -lei n.º 58 de 10 de dezembro de 1938, necessitamos introduzir qualquer aditamento. Tão sòmente

analisaremos, com mais tranqüilidade, alguns aspectos novos trazidos com esta nova lei. Vejamos quais são.

a) Caráter de direito real. – As dúvidas que o decreto-lei n.º 58 podia ainda trazer a êsse respeito cessaram de todo. A nova lei n.º 649 qualificou a promessa de c/venda como um direito real. A

grande controvérsia que se podia agitar a propósito dos numerus clausum do direito real já não mais tem campo propício. Como conseqüência dêsse batismo de realidade, surgem as seguintes conseqüências:

1.º) Inscrita uma promessa de compra e venda, essa inscrição estabelece uma prioridade e uma

exclusividade, de vez que, diferentemente da hipoteca, a promessa de compra e venda não comporta gradações.

2.º) Igualmente, a inscrição da promessa de compra e venda impede a inscrição de direitos reais posteriores que com ela sejam

[224]

incompatíveis, ou pelo menos, subordina a sua eficácia à da promessa de compra e venda primeiramente inscrita.

3.º) A inscrição da promessa de compra e venda é oponível a qualquer terceiro e dá ao promitente comprador as ações reais ofensivas e defensivas inerentes ao seu direito, principalmente se, com a promessa de compra e venda, fôr transmitida a posse direta da coisa prometida.

Dêsse caráter de direito real, que surge pela inscrição do contrato no Registo de Imóveis, tal

como sucede à Hipoteca e aos demais direitos reais sôbre a coisa alheia em geral, resulta que tal inscrição é incompossível com qualquer outra da mesa natureza, como assinalamos no inciso 1.º. Tal era a situação jurídica predominante, quando vigorava simplesmente o art. 22 do

decreto-lei n.º 58, tal é a posição jurídica que se esbate sob a égide da nova lei n.º 649. Assim, não nos pareceu acertada a decisão unânime do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de S. Paulo (Ac. de 21-9-1948, Rev. dos Trib., 176, págs. 772/774) ao assentar que “o

compromisso de compra e venda de imóvel é um contrato cuja execução se acha em andamento e que pode rescindir-se; e dada a possibilidade da rescisão, não há, de um modo geral, nenhum óbice à celebração de um segundo compromisso, que se tornará efetivo, caso o primeiro venha a desaparecer. Assegurando, em conseqüência, admitiu-se

“a inscrição do segundo compromisso de venda e compra para que produza os efeitos legais, ou seja, assegurar ao promitente comprador a prioridade de inscrição, no caso de rescindir-se o primeiro compromisso”.

A verdadeira solução jurídica, data vênia dos ilustres signatários do acórdão, está com a

sentença reformada, do dr. Juiz da Vara de Registo, sustentando incoadunável uma dupla inscrição sôbre o mesmo imóvel e originária de t itulares diversos. Na verdade, a vingar-se a tese vencedora no julgado supracitado, ter-se-ia que admitir a viabilidade da inscrição de mais de um

usufruto para titulares diversos, para vir a prevalecer o segundo, no caso de caducidade do primeiro, por ter o usufrutuário infringido as suas obrigações, e ainda em todos os casos de direitos reais sôbre a coisa alheia decorrentes de obrigações contratuais, cujo inadimplemento

possa dar lugar à sua rescisão. Ninguém sustentaria que uma enfiteuse tornasse objeto de transcrição em 2.º grau, para o caso de caducar a primeiramente inscrita. Tal só é possível, na garantia real hipotecária, cuja natureza já contém, em si mesma, a questão da prioridade, dado

tratar-se do jus distrahendi representativo do direito do credor que pode compreender os excedentes do valor do imóvel face ao valor do débito, e onde a lei claramente regulou a questão do grau,

[225]

permitindo até a sua posposição. Finalmente fôrça é reconhecer que o Registo Imobiliário não

comporta interpretações largas nem por analogia. Só compreende os atos expressamente determinados em lei e os registos efetuados sem êsse fundamento carecem de qualquer valor.

b) O direito de arrependimento. – O art. 1.º da lei n.º 649 se refere a “contratos, sem cláusula de arrependimento”. Como já assinalamos, a diferença substancial entre a promessa de compra e

venda de imóveis loteados dos não loteados, é que a primeira está integralmente subordinada a um regime legal de ordem pública, e cujo aspecto fundamental consiste precisamente em não poder se estabelecer o direito de arrependimento, sob pena de nulidade. No caso dos imóveis

não loteados, isto é, não sujeitos ao regime de exceção do decreto-lei n.º 58, de 1937, paira a plena autonomia da vontade. Os contratantes podem, livremente, estabelecer a irrevogabilidade ou não, o direito de arrepender-se ou a coatividade da promessa.

Não se segue do texto legal que a existência de cláusula de arrependimento prive o contrato da

inscrição e retire dêle o ônus de realidade. Apenas a lei n.º 649, embora defeituosamente, quis acentuar essa situação peculiar à promessa de compra e venda de imóveis não loteados. Se um contrato de promessa de compra e venda, com a cláusula de arrependimento, houver sido

inscrito, apenas essa inscrição não assegurará a execução compulsória, se o promitente comprador quiser exercer o seu direito de arrependimento, porquanto essa prerrogativa pode ou não ser invocada, podendo dar-se mesmo a situação da cláusula de arrependimento ter

caducado ou não poder mais ser invocada, em virtude de infração das cláusulas contratuais. Em

resumo: nos contratos de promessa de compra e venda de imóveis onde houver sido exarada a

cláusula de arrependimento, tôdas as prerrogativas da promessa de compra e vend a, como direito real inscrito, prevalecerão, enquanto pelo promitente comprador não fôr exercitado o direito de arrependimento. É uma inscrição como feita sob essa condição de resolubilidade. É

imperioso, em ocorrendo essa hipótese, que da inscrição conste a existência da cláusula de arrependimento. Todavia, nenhum terceiro, com direito subseqüente ao do promitente comprador, pode destruir a sua prioridade, a realidade do seu direito, enquanto êste não cessar

pelo exercício do direito de arrependimento por parte do promitente vendedor, manifestado pela forma devida (c fr. n.º 480 infra).

c) Outros efeitos. – As demais conseqüências do caráter real resultante da inscrição da promessa de compra e venda são principalmente os da forma do ato, que deve ser o

instrumento público, nas escrituras de valor superior a Cr$ 1.000,00, consoante já acentuamos, e a necessidade da outorga uxória (cfr. n.º 478, infra).

[226]

479. DA NECESSIDADE DA OUTORGA UXÓRIA PARA A INSCRIÇÃO E EFEITOS REAIS DOS CONTRATOS DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS. – A êsse respeito, a

jurisprudência ainda prossegue vacilante, a despeito da completa transformação da questão, dada a eficácia real da inscrição da promessa de compra e venda, circunstância mais que suficiente para não dar ensejo a maiores discussões. Mas, apesar de tudo, as oscilações prosseguem. E é o que passaremos a examinar e comentar.

Já acentuamos que essa espécie de contratos apresenta duas fases distintas: a do Código Civil e a da legislação posterior ao referido Código.

No domínio do Código Civil, a promessa de venda de imóveis tinha caráter genuinamente de uma relação puramente pessoal.

Tal caráter, porém, transfigurou-se: de vínculo pessoal, evoluiu para um vínculo real, à

semelhança do que ocorreu no Direito Romano, a respeito de alguns institutos, como a enfiteuse.

Entretanto, insiste a Jurisprudência em divergir, em se apegar a um passado já morto. E seguindo uma orientação já caduca, o Tribunal de S. Paulo inclinou-se pela desnecessidade da

outorga uxória, pelos fundamentos constantes do seguinte acórdão, proferido no Agravo de Petição n.º 7.320:

“Vistos, relatados e discutidos êstes autos de agravo n.º 7.320, de Amparo, entre partes – Francisco da Silveira Cunha, agravante, e José da Silveira Cunha, agravado:

O recorrido, por instrumento particular, obrigou-se a vender ao recorrente uma cota ideal

correspondente a um sétimo dos imóveis “Santa Rosa” e “Pico Alto”, que o promitente vendedor deveria receber por herança de seus pais, conforme inventário que se processava no fôro de Amparo. Estipulou-se que a escritura de venda seria outorgada no

prazo de dez dias, a contar da data em que transitasse em julgado a sentença homologatória da partilha, e convencionou-se uma multa de quatro contos de réis para o caso de inadimplemento.

Alegando que o agravado infringira o contrato, vendendo a outras pessoas a cota ideal

acima referida, o agravante propôs contra êle a presente ação sumária, para haver a multa convencionada, com os juros da mora.

Em defesa, o réu e sua mulher alegaram ser nulo o compromisso, por ter sido feito por instrumento particular e não ter havido outorga uxória. Disseram mais que a promessa

de venda ficou destituída de eficácia jurídica, por haverem vários condôminos se valido da preferência do art. 632 do Código Civil e que o autor fêz o negócio ape-

[227]

nas por emulação e para prejudicar os outros companheiros, com os quais não mantinha boas relações. Acrescentaram que não houve prejuízo para o autor, porque êle não deu sinal, nem fêz adiantamento algum.

Em sua sentença, o Dr. Juiz de Direito, repelindo as demais argüições, aceitou a de que o contrato preliminar deve conter a outorga uxória, valendo-se das opiniões de vários tratadistas e do preceito do art. 11, parágrafo 3.º do decreto n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, e julgou improcedente a ação.

Há, realmente, divergência na doutrina e na jurisprudência sôbre a necessidade da outorga uxória nas promessas de venda e compra.

Entende, porém, a turma julgadora, que consagra a melhor doutrina a corrente que dispensa aquela outorga. O contrato não importa em alienação de coisa imóvel e, como

diz Cunha Gonçalves, é sòmente para essa alienação que a falta de outorga da mulher pode tornar o contrato anulável. A promessa de venda representa apenas uma prestação de fato, uma obrigação de fazer.

Quer se a considere como tal, como obrigação própria do marido, ou como promessa de

fato de terceiro (Cód. Civil, art. 929), a convenção é ilìcitamente feita pelo chefe da sociedade conjugal, improcedendo o argumento do risco que isso representa para o patrimônio do casal, porque igual risco corre êsse patrimônio quando o marido se obriga

por meio de letras e outros títulos e ninguém, até hoje, ousou neg ar-lhe a competência exclusiva para êsses atos (Cfr. Cunha Gonçalves – Tratado de Direito Civil, vol. 8.º, pág. 382 – Carvalho Santos – Cód. Civil Bras. Interpretado, vol. 4.º, pág. 371 – Mário de Assis

Moura – Escrituras de Compromisso, pág. 46 – Plínio Barreto, Revista dos Tribunais, 37- 484 – Orosimbo Nonato – Revista Forense, 70-577).

Não impressiona, ainda, o argumento de que se socorreu o digno prolator da sentença, de fls. 59, tirado da exigência feita pelo artigo 11, parágrafo 3.º do decreto n. º 58 citado.

Trata-se de uma disposição especial. E compreende-se a exigência para os casos de

vendas de terras em lotes, porque os compromissos disciplinados pelo decreto referido constituem direito real, e não simples obrigação de fazer (Filadelfo Aze vedo, citado por Waldemar Ferreira, Terrenos em Prestações, pág. 158).

[228]

Também improcedente é a argüição de nulidade resultante do fato de não ter sido a

convenção celebrada por escritura pública. É doutrina hoje vencedora que a promessa de venda pode operar-se por escrito particular. Bastará citar-se o brilhante voto proferido no Egrégio Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Carvalho Mourão, e adotado por tôda a turma julgadora (Revista Forense, 76-269).

As demais alegações da defesa igualmente não têm procedência. Assim, o imóvel podia estar indiviso, mas não era indivisível, de modo que não era lícito aos vendedores cogitar de qualquer preferência pleiteada pelos outros condôminos.

Quanto à multa, desde que as partes a pactuaram para a infração do contrato, não é mister cogitar-se de prejuízo.

Diante do exposto, provada a infração por parte do réu, a ação tem inteira procedência. Para que assim fique julgado, condenado o réu no pedido e custas, acordam em Segunda Câmara do Tribunal de Apelação dar provimento ao recurso. Custas dêste também pelo recorrido.

S. Paulo, 6 de novembro de 1939. – A. César Whitaker, presidente. – Manuel Carneiro, relator. – Mário Guimarães”.

A razão está com a decisão recorrida. Considerado o contrato de promessa de compra e venda de imóveis como um direito real, o corolário lógico é a aplicação do n.º I, do art. 235, do Código

Civil que veda ao marido, sem consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens, gravar de ônus reais os bens imóveis.

Decidiu-se, também, não ser necessária a citação da mulher casada por ter a penhora recaído em direitos decorrentes de promessa de venda de imóvel, se o contrato era anterior ao decreto -

lei n.º 58 de 1937 (Ac. da 2.ª Câmara do Trib. de S. Paulo, de 18-3-947, Rev. dos Trib., 167, págs. 320/321).

480. FORMA EXTRÍNSECA DO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NÃO LOTEADOS: NECESSIDADE DA ESCRITURA PÚBLICA NOS CONTRATOS DE

VALOR SUPERIOR A UM MIL CRUZEIROS. – As razões que subsidiaram a tese do parágrafo antecedente – o da necessidade da outorga uxória – são as mesmas que nos levam a pugnar pela aplicação da exigibilidade da escritura pública, quando o valor da promessa de compra e

venda de imóveis não loteados ascenda a um valor superior a hum mil cruzeiros, de acôrdo com o disposto no art. 134, n.º II, do Código Civil.

[229]

Alguns acórdãos, porém, estendendo à promessa de compra e venda de imóvel não loteado o princ ípio do decreto-lei n.º 58, de 1937, têm reputado válida a promessa por escritura particular.

Fôrça é notar que nem todos os princ ípios do regime de loteamento podem ser transportados para a promessa de compra e venda de imóveis, pela forma comum. No regime do loteamento, a forma é simplificada, porque se t rata de um contrato de adesão, cujas condições prèviamente

ficaram constando do próprio processo de inscrição de loteamento, o que não sucede na compra e venda regida pelo Código Civil. Estranhos êsses julgados que negam aquilo que a promessa inscrita faz jus – a execução compulsória – ao mesmo tempo que lhes aplicam o que se lhe não

ajusta, o que lhe é incoadunável, ex-vi dos princípios normativos. Todavia, uma distinção cumpre

ser feita: a exigibilidade da escritura pública é sòmente para se poder atribuir à promessa a eficácia real e habilitar o instrumento do contrato a ser inscrito.

Se, nada obstante, conforme salientamos no comentário ao art. 253, a promessa de compra e venda fôr celebrada pela forma particular, sendo de valor superior a Cr$ 1.000,00, valerá apenas como um contrato de eficácia meramente pessoal, isto é, sem oponibilidade a terceiros, sem poder ser inscrito, nem lhe sendo reconhecível a fôrça de execução compulsória.

É de notar ainda que um título de promessa de compra e venda com tais falhas também não poderá satisfazer a exigência do parágrafo único do art. 244, determinando que “quando houver promessa de venda será esta inscrita ou averbada para que possa ser transcrita a escritura definitiva”.

Nota-se, porém, não haver ainda uma uniformidade jurisprudencial a êsse respeito. Assim, o Acórdão da 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Ap. do Rio Grande do Sul, de 16 de dezembro de 1942 (in Rev. dos Trib., 156, págs. 317/320), a despeito de sufragar a execução compulsória,

contudo entendeu válida a promessa de compra e venda de imóvel não loteado, acima da taxa legal, ainda que feito por escritura particular. Reformando sentença nossa proferida no Juízo dos Registos Públicos, a Quarta Câmara do Trib. de Apelação do Dist. Federal (Ac de 1.º de

dezembro de 1944, Rev. dos Trib., 157, págs. 805/806) entendeu suscetíveis de inscrição os contratos particulares de promessa de venda de imóveis, ainda que de valor excedente de 1 mil cruzeiros, máxime quando anteriores ao decreto-lei n.º 58, de 1937, julgado êste reformado

pelas Câmaras Cíveis Reunidas (Ac. de 18 de outubro de 1945, na Revista n.º 767, Rev. dos Trib., 169, pág. 785) frisando que um tal contrato mediante instrumento particular, embora não seja nulo de pleno direito, não pode, entretanto, ser averbado no registo de imóveis para o efeito de estabelecer ônus real, sendo de notar apenas o voto

[230]

vencido do então Desembargador Lafayette de Andrada. O ponto de vista vencedor, assim se encontra exposto pelo eminente Desembargador Relator – Silvio Martins Teixeira:

“Por muito tempo afirmaram os nossos tribunais a nulidade de pleno direito dos contratos de promessa de compra e venda em imóvel de valor superior a um conto de réis, feitos

por instrumento particular. Mais tarde foi reconhecida a validade de tais documentos sòmente para estabelecer a obrigação de fazer, cuja inexecução, por culpa do promitente, importa no devedor de indenizar, conforme o art. 879, do Código Civil.

Apesar disso, eram realizados constantemente tais contratos em negócios de venda de

terreno em prestações, sem a garantia legal para os adquirentes, pessoas quase tôdas pobres que, com sacrifício, retiravam mensalmente de seus parcos salários ou vencimentos uma parcela destinada ao pagamento da obrigação assumida. Precisava ser atendida essa situação

de fato, por meio de uma lei excecional. Foi o que fêz o legislador como o decreto -lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937, exigindo formalidades para a venda de terrenos loteados, mediante pagamento em prestações permitindo nesses casos o registo dos contratos particulares de

compra e venda, para o efeito de criar ônus real e tornar obrigatória a alienação mediante processo judicial (arts. 4.º, 5. º e 16.º). Feito para regular casos especiais, como lei de exceção, o referido decreto não abrange senão o que estritamente menciona: o loteamento e a venda a prestações dos terrenos loteados, de acôrdo com o processo determinado”.

E finalmente essa conclusão esclarecedora:

”Assim, pois, de acôrdo com a lei e a jurisprudência, o instrumento particular da

promessa de compra e venda do imóvel de valor superior a Cr$ 1.000,00 não é nulo, porque estabelece a obrigação de fazer cuja inexecução por culpa do promitente, importa no seu dever de pagar perdas e danos, mas não pode ser utilizada para

estabelecer ônus real por meio de registos, quando o objeto da venda prometido não é um terreno loteado, conforme o decreto-lei n.º 58, de 10 de dezembro de 1937”.

481. DIREITO DE ARREPENDIMENTO. – Um outro ponto caracterizador da promessa de compra e venda de imóvel loteado e que se não aplica à promessa de compra e venda de imóvel

não loteado é o direito de arrependimento, absolutamente vedado no primeiro caso e permitido no segundo. No acórdão da

[231]

Quinta Câmara na Apelação Cível n.º 8.888, de que fomos relator (in. Arq. Jud., vol. 81, págs. 249/251) ficou estabelecido que o direito de arrependimento é permitido na promessa de compra e venda de imóvel não loteado. O acórdão é do teor seguinte:

EMENTA – CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA – COMPATIBILIDADE DO DIREITO DE ARREPENDIMENTO COM PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL NÃO LOTEADO – OMISSÃO DA INSCRIÇÃO DO

DIREITO DE ARREPENDIMENTO – RENÚNCIA – QUANDO SE OPERA – Nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel não sujeito ao regime legal do loteamento, é permitida a estipulação das arras com o direito de arrepender-se – O

direito de arrependimento, não sendo real, não carece de ser inscrito no registo de imóveis. Expirado o prazo para a manifestação do direito de arrependimento, não mais é possível exercitá-lo, márime quando o respectivo titular praticou espontâneamente um ato de execução do contrato.

Vistos, relatados e discutidos êstes autos de Apelação Cível n.º 8.888, em que é Apelante – Antônio Mendes Monteiro e Apelado – Matadouro Avícola Brasil S.A.

Acordam os juízes da Quinta Câmara, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso, para confirmar a decisão recorrida.

Entre os Apelantes e o Apelado foi pactuada uma promessa de compra e venda dos

imóveis sitos à rua Antônio Carlos digo Senador Antônio Carlos, ns. 504 e 514. O prazo contratual estipulado para tornar efetiva a venda definitiva esgotou -se, sem que os contratantes fizessem qualquer ressalva dos seus direitos e obrigações. Após decorrido

tal prazo, porém, os Apelantes subscreveram as guias para pagamento dos impostos necessários à lavratura da escritura definitiva, e, nada obstante, recusaram a outorgá-la. Daí a ação promovida pelo Apelado visando o cumprimento coativo dessa obrigação.

A primeira questão debatida consistiu em que a promessa de compra e venda de

imóveis, devidamente inscrita, veda o direito de arrependimento. Não procede a objeção. O art. 22, do decreto-lei, n.º 58, de 1937, combinado com o Regulamento baixado com o decreto número 3.079 de 1938, prescreve a extensibilidade dos efeitos do referido

decreto-lei às escrituras de compromisso de compra e venda de imóvel não loteado, desde que inscritas.

[232]

Não há dúvida que, nesse caso, os preceitos do decreto-lei n.º 58 são aplicados

integralmente, dentro nos limites da identidade fundamental comum a ambas formas de contrato.

Num ponto, entretanto, elas se distanciam: é que o compromisso de compra e venda de imóvel loteado, sob o regime jurídico do decreto -lei n. 58, é inteiramente dominado pelos

princ ípios dêste diploma legal, normas de ordem pública que não podem ser afastadas pelo princ ípio da autonomia da vontade.

Nada podem as partes pactuar em contrário aos princípios de ordem pública, constantes do aludido diploma, dentre os quais avulta o da execução compulsória do contrato.

Ao contrário, nas promessas de compra e venda de imóveis não loteados juridicamente,

prepondera a liberdade contratual. Por conseguinte, na espécie, lícito era aos contratantes a estipulação do arrependimento.

Do mesmo modo desprestigiada é a argüição contrária a êsse direito, pelo fato de não constar êle de teor da inscrição da promessa. É de observa r-se, porém, que a cláusula permissiva do arrependimento diz respeito ao jus ad rem e não ao jus in re.

E ainda que tal não sucedesse, a conseqüência se faria sentir tão sòmente em relação a terceiros, e nunca entre as próprias partes contratantes.

O ponto nodal da questão em foco assenta exclusivamente na indagação se houve renúncia do direito de arrependimento; se o fato dos apelantes terem assinado as guias

para o pagamento do impôsto de transmissão, após o transcurso do lapso de exigibilidade da obrigação de dar a escritura definitiva, implicou ou não numa abdicação ao supramencionado direito.

Fora de dúvida que a renúncia pode surgir, quer sob uma forma expressa que sob uma

forma tácita. Tácita, diz-se a renúncia que não resulta de uma determi nada declaração mas é deduzida de um ato do titular do direito, que e apresenta como absolutamente incompatível com uma vontade oposta (Atzeri Vacca, Delle Renunzie, pág. 371, n.º 304).

Ao soberano juízo do julgador cabe apreciá-la, e assente está na jurisprudência caracterizar-se a renúncia quando o ato não pode conter outra interpretação que não a da vontade de renunciar. O ser a renúncia impresumível e a natureza stricti juris de sua interpretação não

[233]

impedem o poder ela resultar de fatos incompatíveis com a intenção de reservar os próprios direitos.

Joeiremos se, de acôrdo com a índole dos fatos ocorridos na espécie, configura -se a renúncia ao direito de arrependimento.

Na escritura de promessa de compra e venda firmada entre apelantes e apelado,

pactuou-se a outorga da escritura definitiva dentro no prazo de 90 dias, a contar da assinatura da primeira.

Firmada em 22 de setembro de 1943, o prazo contratual expirou em 22 de dezembro do

referido ano. Sucedeu, porém, que os apelantes permaneceram inertes. Não interpuseram qualquer protesto judicial. No contrato não ficou exarada a cláusula resolutória expressa. Eram obrigações bilaterais, que exigiam a demonstração de que os

apelantes se encontravam em estado de perfeito cumprimento das que lhes incumbiam. Entretanto, além e não formularem qualquer protesto ou interpelação judicial, subscreveram as guia para o pagamento dos impostos necessários à outorga da escritura definitiva.

É incontestável que a índole dêsses fatos mostra-os incompatíveis com o exercício do direito de arrependimento. Houve, em conseqüência, uma renúncia. Expirado o prazo contratual, o contratante não culpado devera, demonstrando estar apto a realizar a sua

prestação, interpelar a parte faltosa e pedir uma dessas duas medidas: ou a rescisão com perdas e danos, tornando-se senhor das arras, ou o adimplemento do contrato. O direito de arrependimento não podia estar em causa, pois, para tanto, teria que

pressupor o contrato perfeitamente executado pela outra parte. Mas, como se disse, nada disso os apelantes fizeram. E assim, pela abstenção de qualquer protesto de par com o assinarem as guias não só apagaram a mora do apelado, não só abdicaram do

direito de rescisão por perdas e danos, como ainda perderam o direito de arrepender-se, pelo seu não exercício dentro no prazo fixado no contrato para a execução dêste. Vejamos. Semelhantemente ao que ocorre no direito francês, o nosso Código Civil (art.

1.095) foi omisso quanto ao prazo em que o direito de arrependimento pode ser exercitado. Como acentua L. Rédouin (Les Arrhes em Droit Français, pág. 169), os contratos exigem uma estabilidade incoadunável com uma duração indeterminada do

direito de se arrepender. Estudando o problema, Démogue (Obligations, VI, pág. 448) entende subsistente a faculdade de arrepender-se até o momento da execução

[234]

do contrato, se nada se houver estipulado expressa ou implìcitamente.

Rédouin ainda acrescenta: “de outro lado, se uma das partes espontâneamente pratica um ato de execução, isso implica de sua parte na renúncia à faculdade de arrepender- se”.

E some-se a isso a opinião de Guilhouard (De La Vente et de l‟Echange, vol. I, n.º 24, págs. 37/38): “a convenção de arras dá às partes um meio de romper o contrato que elas formaram; mas a incerteza que está na cláusula faz reinar sôbre a sorte definitiva da

venda não pode prolongar-se de uma maneira indefinida, não só em face da parte que executou o contrato, mas em face da out ra, que aceitou a execução, sem invocar o seu direito de resolução”.

Como se vê, tôdas essas noções têm perfeito ajuste ao caso dos autos. Não só os

apelantes executaram o contrato assinando as guias como deixaram expirar o prazo contratual sem exercitar o direito de arrependimento ou constituir em mora o apelado.

Custas na forma da lei.

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1947. – Dr. Edgard Ribas Carneiro, presidente com voto. – Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes, relator. – Dr. Homero Pinto”.

Em Recurso Extraordinário, sob o n.º 13.704, a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (Ac. de

20 de dezembro de 1948, in Diário da Just. de 1-11-1949, págs. 3.602-3.604) concluiu pela reforma do supracitado acórdão. O ponto nodal da crítica feita ao julgado em que fom os Relator está no seguinte trecho do voto do Sr. Ministro Armando Prado, Relator do citado Recurso:

“Na espécie em aprêço, o ato foi perfeito. Manifestou -se por escritura assinada também pela mulher do promitente. Ficou o promissário cercado de tôdas as garantias.

Foi por essa forma impecável que, da vontade do promitente vendedor e de sua mulher nasceu o direito de arrepender-se. Ambos os reservaram para si, com a concordância do promissário, que o aceitou como motivo de rescisão contra êle oponível. Se se exigiu

outorga uxória expressa e num contrato em que havia a cláusula de arrependimento, como dispensar o consentimento da mulher e, sem êle, admitir uma renúncia tática do direito tão solenemente afirmado?

[235]

O acórdão recorrido segue a doutrina dos que, como Filadelfo Azevedo e Carvalho

Santos, legitimavam a execução perfeita da prestação prometida, dadas certas circunstâncias, uma das quais é a de ter sido feita a promessa por escritura pública. (Carvalho Santos, loc. cit.). E, por isso, entendeu o acórdão que a renúncia tática do

direito de arrepender-se trouxe como conseqüência a execução compulsória e, portanto, a alienação dos imóveis. Mas, se eram bens amparados pela norma do Código Civil, prescrita no art. 235, I, não compreendo como, para chegar ao resultado a que chegou, a

ilustre decisão contentou-se com um ato do marido, sem anuência da mulher ou seu suprimento, nos têrmos do art. 237, do Código Civil. A decisão, eu só a explico pelo evidente equívoco em que incorreu o acórdão; atribuindo aos apelantes, isto é, aos

conjuges, um ato que, na realidade foi praticado apenas pelo marido, ato do qual o acórdão tirou, por mera presunção, a existência da renúncia, porquanto o ato não a fazia supor claramente. Diz Clóvis Bevilaqua, a renúncia pode ser expressa ou tácita, mas,

deixar simplesmente de exercer um direito não importa em renunciá-lo; a renúncia deve deduzir-se de circunstâncias que a pressuponham claramente (Teoria Geral do Direito, 2.ª ed., pág. 364).

Não estou, pois, fora de admitir a conclusão tirada pelo ilustre patrono das recorridas no

item 14 das suas razões de recurso: “Sem ofensa à letra do artigo 235, I e II do Código Civil, não se poderia julgar provada por mera presunção, uma renúncia relativa a direito sôbre imóveis e de que resultaria a sua alienação compulsória, deduzida apenas de um

ato unilateral do marido, praticado sem outorga da mulher, quando esta foi parte no contrato e em razão dêle está sendo demandada.

Passo agora, a verificar se a manifestação do arrependimento fora do prazo estipulado no contrato para a escritura definitiva deve ser tomada como indicativa de renúncia do direito de arrepender-se.

Cumpre observar que, no caso em apreço, ainda quando se entenda que o arrependimento deve externar-se no prazo mencionado, a mora no cumprimento das obrigações contratuais não foi apenas dos compromitentes vendedores, quanto à

manifestação do arrependimento; foi também do comprador como está reconhecido pelo acórdão impugnado. O comprador, pois, anuiu à demora dos vendedores comprometidos. E assim, a meu ver, desapareceu a fatalidade do prazo.

[236]

Pelo disposto no art. 1.088 do Código Civil, quando o instrumento público foi exigido

como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 e 1.097.

Na lição de Carvalho Santos, o contrato só começa a ter existência com a escritura

pública, podendo qualquer das partes, até o momento de ser ela lavrada, arrepender-se do negócio. Os arts. 1.095 e 1.097, como lembra o douto Clóvis Bevilaqua, referem-se às arras dadas para firmeza do contrato, porém podem coexisti r com o direito de

arrependimento, funcionando então como pena convencional. Admite-se portanto, diz ainda Carvalho Santos, que a faculdade de livre arrependimento possa ser exercida, em qualquer momento até ser lavrada a escritura mas, desde logo, ajus tam as partes uma

indenização em benefício daquela que se mantém firme no propósito de executar o negócio definitivamente (Carvalho Santos, ob. cit., art. 1.088, pág. 190).

Tomando como renúncia do direito de arrepender-se o fato de tal arrependimento não ter sido externado no prazo prescrito para a escritura definitiva, o acórdão contrariou a let ra

do art. 1.088 do Código Civil, em face do qual a faculdade pode ser exercida até o instante que antecede a assinatura definitiva”.

Da leitura dêsse trecho principal depreende-se que as objeções feitas ao julgado reformado foram as seguintes: a) o direito de arrependimento implica no exerc ício de um direito sôbre coisa

imóvel, em razão do que, para sua renúncia, se torna imprescindível a outorga uxória; b) a despeito da disposição contratual estabelecendo prazo para ser exercido o direito de arrependimento, prevalece sempre o disposto no art. 1.088 do Código Civil, por fôrça do qual o

direito de arrependimento é exercitável até o momento da escritura definiti va. Há a ponderar que no acórdão da 1.ª Turma se fulmina, com um último recurso, a execução compulsória da obrigação.

Data vênia, o direito de arrependimento não pertence á categoria dos direitos reais, nem o seu

não exercício envolve uma renúncia a direitos reais, de modo a exigir a intervenção uxória. Nem, por outro lado, o acórdão recorrido cogitou de uma renúncia pròpriamente dita do direito de arrependimento.

O direito de arrependimento consiste numa cláusula contratual, por meio da qual se assegura a qualquer dos contratantes a

[237]

prerrogativa de uma alternatividade: ou cumprir a prestação assumida ou dela se eximir mediante a perda ou o pagamento em dôbro de determinada quantia. Não utilizá-lo, de modo nenhum, significa uma renúncia, no exato sentido jurídico da palavra, pois representa uma

opção, uma eleição face à alternativa propinada pelo contrato. Não há como exigir -se, para êsse movimento de ordem meramente obrigacional, a intervenção uxória. Quem se abstém de invocar o direito de preferência não aliena um direito real, mas executa uma função normal exsurgente

do contrato, escolhe, entre dois caminhos, o que lhe parece mais favorável. Depois disto, o acórdão recorrido estabeleceu a conclusão doutrinária, amparada na lição dos melhores juristas, de que o contratante que dá comêço à execução da prestação entende -se que, por êsse fato,

escolheu a via que lhe estava estendida no contrato, preferindo a realização da obrigação ao

invés do direito de arrependimento. Não há aqui uma renúncia, no exato sentido do têrmo, isto é, uma abdicação. Finalmente, impertinente era, no caso, a invocação do art. 1.088 do Código Civil, atento a que, sobrepairando tôdas essas circunstâncias, surgiu o argumento capital de que

do contrato de promessa de compra e venda constava estipulado o lapso dentro no qual os promitentes vendedores podiam exercer o direito de arrependimento, o qual t ranscorreu sem da parte dêles ter havido a menor manifestação. Ora, não representando o art. 1.088 do Código

Civil uma disposição de ordem pública, irrecusável se tornava dar -se tôda preponderância ao que as partes estabeleceram no contrato. A êsse nosso ponto de vista fôrça é invocar, em seu apoio, a opinião do Desembargador Antão de Morais (1) sustentando que o exercíc io do direito

de arrependimento não é um direito real mas um modo terminativo do direito real decorrente do compromisso de compra e venda inscrito. E, assim se externa: “extinto o direito do comprador de exigir a entrega da coisa, pois o vendedor não tem mais obrigação de vender, o direito real perde

sua razão de ser, salvo se as partes convencionaram continuasse o imóvel prometido garantindo a restituição das arras ou das perdas e danos. Esta hipótese é estranha aos decretos -leis n.º 58 e 3.079, que nela não cogitaram”. Prossegue, então sustentando, mui acertadamente, que,

exercido o direito de arrependimento, a liquidação das obrigações resultantes da escolha dessa segunda via se deverá processar pelos meios comuns, destituída de qualquer cunho de preferência real ou direito real de garantia, pressuposto êste que não encontra previsto quer no Código Civil, quer no dec. lei n.º 58.

(1) – Antão de Morais – Compromisso de Compra e Venda, Rev. dos Trib., vol. 170, págs. 29 e segs.

[238]

Tal conclusão, como era de esperar, teve acolhida pela 2.ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de S. Paulo (Ac. de 12 de agôsto de 1947, in Rev. dos Trib., vol. 170, págs. 128-133), acentuando que “não é de garantia o direito real instituído pelo decreto -lei n.º 58, de 10 de

dezembro de 1937, nos contratos de compromisso de compra e venda de imóvel não loteado”, querendo com isso significar não haver nenhum caráter de direito real no direito de arrependimento, cujas conseqüências obrigacionais se travam no cam po dos direitos pessoais,

sem qualquer garantia real, princípios êsses perfeitamente conciliáveis com a recente lei n.º 649, de 11 de março de 1949 (cfr. n.º 478 supra), cujos dispositivos aos mesmos se ajustam perfeitamente.

Verdade que o acórdão supracitado se filia à corrente eu, embora reconhecendo na inscrição da

promessa de compra e venda de imóvel não loteado um caráter real, contudo, incoerentemente exclui dêsse efeito real a sua conseqüência única e lógica: a da execução compulsória, como bem frisou, em seu voto vencido, o Desembargador Percival de Oliveira. Contudo, quanto ao

aspecto decorrente do direito de arrependimento, no que também concordou o ilustrado voto vencido, todos foram acordes em excluí-lo, do caráter real e ainda em lhe não dar um efeito de garantia real, cujo fim seria o imóvel objeto da promessa. E com essa orientação estamos de perfeito acôrdo.

482. O CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL EM FACE DA MORTE DE QUALQUER DOS CONTRATANTES. – Sobretudo do ponto de vista fiscal, cumpre fixar a posição dos contratantes ou dos seus herdeiros, no caso de falecimento, quer do

compromissário comprador, quer do compromitente vendedor. Como todos os demais contratos, em se tratando de uma espécie em que a prestação é de execução cont inuada, em que o contrato não se realiza instantâneamente, mas intercorrendo um prazo entre a obrigação

assumida e a sua execução, está claro que a promessa de compra e venda se transmite aos herdeiros, quer do promitente vendedor quer do compromissário comprador.

Quando a morte é do compromissário comprador, a questão não oferece dificuldades. Os seus

direitos, devidamente inventariados, caberão ao herdeiro assim indicado na partilha, e êste poderá exigir do promitente vendedor a obrigação por êle assumida, ao mesmo tempo que se prontificará a cumprir as inerentes ao “de cujus” vencidas post mortem, ou mesmo anteriores, com direito regressivo contra os demais herdeiros, se não houverem sido previstas na partilha.

Se fôr o promitente vendedor quem venha a falecer, “mesmo na ausência de cláusula expressa, os seus sucessores respondem pela

[239]

obrigação assumida pelo antecessor, por não ser ela personalíssima, nos têrmos do art. 928 do Código Civil” (Ac. da 1.ª Câm. Civil do Trib. de Just. de São Paulo, de 5-3-1945, Rev. dos Trib., vol. 161, págs. 154/155).

Entretanto convém ressaltar os reflexos dessa situação no Direito Fiscal. Falecendo o promitente vendedor, aos herdeiros passa o domínio do imóvel prometido e inscrito, mas com um ônus obrigacional e real, que deve ser levado em consideração na avaliação, porquanto as prestações pagas antes da morte do “de cujus” devem ser abatidas do valor do imóvel.

Se, por ocasião da morte do “de cujus”, já estiverem pagas tôdas as prestações devidas pelo compromissário, e não restar aos herdeiros senão a obrigação de outorga da escritura definitiva, claro que o valor do imóvel, qualquer que êle seja, não mais poderá influir, atento à execução

coativa da promessa que conjuntamente com o imóvel se transmitiu aos herdeiros. O que restará a fazer é tão sòmente o inventariante pedir ao Juiz do inventário a autorização necessária para o cumprimento da obrigação, de execução compulsória inevitável, e nenhum impôsto sucessório poderá ser, em tal caso, exigido.

483. É POSSÍVEL A INSCRIÇÃO DA CESSÃO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS? – A respeito dessa tese, manifestamo-nos contrário à extensão dos princípios da inscrição da promessa de compra e venda de imóveis não loteados a outra qualquer forma de

contrato que não a da própria promessa de compra e venda prevista na lei. A decisão em que assim nos manifestamos, ao tempo em que exerc íamos a Vara dos Registos Públicos, é do seguinte teor (in Diário da Justiça, de 19 de janeiro de 1945, pág. 494):

“Susdo: João Manuel Vilares. – O Sr. Oficial do 6.º Ofício de Imóveis, suscitou dúvida

quanto à averbação ou inscrição da escritura de fls. 3, alegando ser a mesma inadmissível ao registo por objetivar uma promessa de cessão de promessa de compra e venda, hipótese não compreendida em qualquer dos incisos relativos ao Registo de

Imóveis. Com a dúvida concordou a Promotoria. Isto pôsto: I – De fato, examinando-se a escritura de fls. 3 apura-se tratar-se de um contrato pelo qual os outorgantes cedentes, compromissários, em relação ao lote indicado na escritura supramencionada, obrigaram-

se perante o cessionário promitente, a passar-lhe escritura definitiva de cessão da promessa de venda, no momento em que obtivessem da Companhia promitente vendedora a escritura definitiva de venda do lote. Tal é o conteúdo

[240]

da escritura impugnada. Pergunta-se então: é suscetível de registo uma promessa de

cessão de promessa de venda? Por outra, pode o Registo Imobiliário compreender atos jurídicos não previstos na lei? E‟ o que passaremos a responder.

II – Invoca o interessado, uma decisão da egrégia 5.ª Câmara do Tribunal de Apelação admitindo a afirmativa. Tal acórdão foi em sentido contrário aos pontos de vista firmados

em decisão por nós proferida. Da vênia, ainda não mudamos de pensar. Para tanto, valer-nos-emos, em primeiro lugar do ponto de vista vencedor na doutrina e jurisprudência firmada no sistema do registo imobiliário francês, isto é, o sistema pelo

qual a eficácia do registo é de mera publicidade, não t ransmitindo o domínio, nem servindo de elemento integrante do direito real. Consoante já tivemos oportunidade de expor (Trat. dos Reg. Públicos, II, n.º 169, pág. 141), a Côrte de Apelação de Roma

firmou que não pode o instituto da transcrição ser utilizado num fim diverso para que foi criado, não sendo extensível aos casos não categòricamente designados pela lei. E‟ de salientar, dentre outros fundamentos do citado acórdão, o em que se frisa a

impossibilidade dos Registos Públicos serem ocupados por transcrições não determinadas pela lei, exarando atos, cuja publicidade, além de não produzir efeitos jurídicos atribuídos pelo Legislador à transcrição, pode, ao contrário, servir de obstáculo

ao livre movimento dos contratos sôbre a propriedade imobiliária. Aí vemos dois pontos fundamentais contrários à tese da extensibilidade dos Registos Públicos a atos não previstos em leis: primeiro, é que nenhuma eficácia pode produzir tal registo, de vez que

a lei não lha deu; segundo, é um prejuízo à própria circulação do bem imobiliário, pejado de publicidades estranhas e ineficazes, levando a int ranqüilidade aos que desejarem estabelecer qualquer contrato. Não menos precisa é a lição de uma outra autoridade –

N. Coviello (Della Transcrizione, I, n.º 121), apoiado, ainda, em Laurent, Lomonaco, Ricci e Pacifici-Mazzoni, observando que nem todos os atos translativos do direito de propriedade ou limitativos do seu gôzo, são objeto de transcrição, mas sòmente aquêles

indicados pela lei. E mais adiante reforça a sua conclusão, dizendo: “se a obrigação de transcrever imposta pela lei com as palavras do art. 1.932 – “devem ser tomados públicos por meio da transcrição, etc.” – o é só para determinados atos, e não para

outros, ùnicamente para êstes o interêsse de terceiros se tornou reconhecido e garantido,

[241]

não para os demais”. Passando para o sistema germano-suíço, que é o nosso sistema, a despeito das controvérsias que trovejam, com maior rigor se impõe a manute nção

dêsses pontos de vista. A propósito do art. 958 do Código Civil Suisse, I, pág. 486 (Les Droits, Réels, dans le Code Civil Suisse, I, pág. 486 ): “o registo imobiliário não se destina à inscrição de relações jurídicas quaisquer. Nêle não poderão figurar, ao

contrário, senão as relações de direito que a lei haja prescrito ou admitido a inscrição. Tais são os direitos reais enumerados no art. 958, bem como as anotações dos arts. 959-961”. A mesma lição encontra-se no direito germânico. Diz Martin Wolff: “o registo

imobiliário só é acessível a determinadas inscrições. Exceção feita das indicações de fato necessárias à individualização do imóvel, sòmente são suscetíveis de inscrição os direitos reais sôbre o imóvel ou sôbre um direito imobiliário (inscrivível), as limitações de

dispor existentes em favor de determinadas pessoas, as anotações preventivas e os assentamentos de contradição”. (Ennecerus-Kipp-Wolff, Derecho de Cosas, I, § 31, pág. 156) III) – Aplicando-se essas noções ao nosso direito, vemos que as mesmas se

quadram, perfeita e incontestàvelmente. A nossa lei reguladora dos Registos Públicos, no tocante ao Registo Imobiliário, taxativamente estabelece quais os atos subordinados à transcrição ou inscrição. Êsse simples modo de regular, essa forma taxativa de

enumerar os atos obrigados à transcrição e inscrição, já seria o suficiente para afastar

qualquer idéia de alargamento de sua esfera, fora de qualquer menção expressa na lei.

Entretanto, além do exposto, razões de ordem fundamental se opõem a essa pretendida dilatação da sua órbita. E‟ que, em nosso direito, com no germânico e no suíço, o Registo Imobiliário, em regra, atribui direito real, quer para a transferência do domínio

quer para os ônus limitativos do mesmo. Os seus efeitos apenas possuem outro aspecto, no tocante aos atos de caráter declaratório, como os julgados na partilha e na divisão entre condôminos. Ora, no caso da dúvida, trata-se de um contrato, de feição anômala é

uma promessa de cessão de promessa de compra e venda. O interessado recebeu uma promessa de que, uma vez liquidada a situação entre promitente e o dono da coisa prometida vender, a seu turno, o primeiro far-lhe-ia efetiva a promessa de venda, isto é,

a cessão, da que é titular. A lei dos registos públicos sòmente prevê a inscrição da promessa de com-

[242]

pra e venda de imóveis não loteados e a inscrição da promessa de imóvel loteado. Não se cogita da figura da promessa de cessão de promessa. Conseqüentemente, essa

inscrição é inviável, pelas razões seguintes: primeiro, porque não está prevista em lei essa inscrição; segundo, porque, implicando a inscrição da promessa de compra e venda de imóveis em conferir ao compromissário um direito real, êste não poderia ser

criado pelo arbítrio das partes, numa convenção, e os direitos reais sòmente se configuram por expressa disposição de lei; terceiro, que essa inscrição, quando fôsse feita, estaria desprovida de qualquer efeito jurídico, pois só a lei o poderia comunicar,

passando, assim a representar um pêso morto, em desproveito da própria circulação do bem imóvel, consoante bem o acentuou o Tribunal de Roma, no julgado a que viemos de nos referir. Se, no sistema em que a transcrição imobiliária tem mero valor de

publicidade, há unanimidade na doutrina e jurisprudência, em não permitir qualquer amplitude, com maioria de razão êsse critério deve ser observado num sistema em que a transcrição ou a inscrição confere um direito real, relação jurídica impossível de defluir

da vontade pura dos contratantes. Em síntese: não é possível a inscrição de um ato jurídico cujo registo a lei não contemplou. Determiná-lo, importaria em ordenar um registo vazio de efeitos: frio, inerte, ostentando foros ilegítimos de ônus real. – P. I.R. – Julgo procedente a dúvida. Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1945”.

484. EFEITOS DA INSCRIÇÃO DA PROMESSA DE COMPRA E VENDA EM FACE DE TERCEIROS E DE OUTROS DIREITOS REAIS POSTERIORMENTE INSCRITOS – Dando à promessa de compra e venda, devidamente inscrita, o caráter de direito real não há como negar-

lhe os integrais efeitos atribuíveis a um ônus real, face a todos os direitos reais que posteriormente levados a registo sejam com êle incompatíveis.

Pode suceder, v.g., que posteriormente à inscrição de um a promessa de c/venda seja levada a efeito uma inscrição hipotecária. E‟ indubitável que o direito de preferência e todos os demais

consectários do direito hipotecário ficam subordinados aos direitos do compromissário e quem se tornar adquirente num executivo hipotecário de um bem assim onerado, fica sujeito ao cumprimento da promessa de compra e venda. Assim é indubitável que num executivo

hipotecário, se o compromissário sentir que o seu direito corre risco de ser desconhecido ou desrespeito, pode opor embargos de terceiro, porque está em causa a violação de um direito real.

[243]

Da mesma sorte o credor quirografário que executar um imóvel onerado com a promessa de

compra e venda inscrita. A arrematação não exclui o ônus e quem adquiri r se sub-roga nos deveres do promitente vendedor. Não se dando o caso de fraude, a melhor solução é a penhora recair sôbre o contrato, em relação ao crédito que ainda assistir ao promitente devedor e executado.

485. PROMESSA DE DAÇÃO EM PAGAMENTO – De vez que o art. 996 do Código Civil determina a aplicabilidade à dação em pagamento das normas do contrato de compra e venda, desde que fiquem estabelecidos o preço e a coisa dada em pagamento, podem ser -lhe aplicados os princípios da promessa de compra e venda, inclusive a respectiva inscrição?

Assim decidimos em processo de dúvida suscitado pelo Sr. Oficial do 2.º Ofício de Imóveis:

“I) – E‟ princípio inconteste, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que os atos que devem ser incluídos no Registo de Imóveis são exclusivamente os indicados pela respectiva lei. Nem é admissível analogia, nem, quando juridicamente êsse ingresso, teria êle qualquer efeito, desde que a lei não comunicou nenhum expressamente.

Há um julgado notável da Côrte de Apelação de Rom a (in Trat. dos Reg. Públ., II, pág. 141) onde se acentua não poder o instituto da transcrição ser desviado para fins diversos para o qual a lei o criou, ou aplicá-lo fora dos casos categòricamente indicados por lei, pois se trata de uma conseqüência natural de sua própria essência e finalidade.

E nem outro é o critério da nossa legislação. O nosso Código Civil, no art. 856, usou da expressão “o registo de imóveis compreende”, enumerando, em seguida, os atos que lhe devem ficar sujeitos.

Igual critério adotou a lei dos registos públicos, usando de uma expressão, que não

comporta analogias – “Nos registos de imóveis será feita”, seguindo-se a nomenclatura dos atos incluídos obrigatòriamente na publicidade.

Conseguintemente, qualquer ato ou contrato, que expressa ou virtualmente não esteja compreendido na referida nomenclatura não pode ser admitido a registo.

II) – O fundamento invocado pelo interessado para refutar a dúvida assenta no disposto no art. 996 do Código Civil, preceituando:

“determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular- se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”.

[244]

Estabelece, então, a dedução de que, sendo à dação em pagamento aplicáveis as normas do contrato de compra e venda, lògicamente também pelas normas da promessa

de compra e venda deve ser regida a promessa de dação em pagamento. Vejamos se isso é exato.

Em primeiro lugar, cumpre indagar se o art. 996 do Código Civil dá ensejo a que se coloque a dação em pagamento no mesmo pé de igualdade com a compra e venda. Ora,

que isso não é possível, que, a despeito de certas analogias, há diferenças radicais, quer no conceito, quer na origem, quer nos efeitos, é fato incontestável.

A doutrina clássica reputa a datio in solutum como de natureza polimorfa, isto é, participa

da natureza do pagamento, é uma novação e ainda uma venda ou permuta, conforme o caso, sendo que, quanto a conter a natureza da venda ou permuta, foi peculiarmente já prevista pelos romanos, que diziam: “hujus modi contractus vicem venditionis obtinet”.

Embora partidário dessa conceituação, Colin et Capitant (Droit Civil) acentua que por

mais comparável que se apresente com a venda, a datio in solutum não deixa de apresentar as suas particularidades próprias, aparecendo, de um lado, com o seu aspecto ambíguo de pagamento e venda ao mesmo tempo, e de outro lado, pressupondo uma relação de direito anterior entre as partes contratantes.

Planiol-Ripert, Esmain e Radouant (Droit Civil, VII, n.º 1.249) vêem na dação em pagamento, uma novação, pois o objeto é tão essencial que não pode ser alterado sem pôr têrmo à obrigação, mas, premidos pela realidade, não chegam aos extremos da

doutrina clássica, e reconhecem que não há um contrato de venda pròpriamente dito, mas sòmente certos elementos do contrato de venda – a obrigação de dar e o caráter oneroso, pois, justifica, “a idéia de novação e de venda se excluem necessàriamente”,

pelo que sòmente são aplicáveis à dação em pagamento regras da compra e venda inerentes à obrigação de dar como a capacidade de dar e adquirir, a t ranscrição, certo ainda que nem tôdas as regras da compra e venda podem ser estendidas à dação em pagamento. E incisivos, concluem (n.º 1.250):

“a dação em pagamento, se é semelhante à venda, contudo não é uma venda, e, além dos dois pontos particulares sôbre os quais a lei expressamente estabeleceu assimilação, o mais certo é subtrair a dação em pagamento do regime da venda”.

[245]

Há juristas que se pronunciam contra a concepção clássica, como Henri de Page (Droit

Civil, III, parte 2.ª, ns. 510-511) condenando a idéia de novação, diretamente prêsa ao princ ípio romanístico – dare solutum est vendere – por se tratar de uma construção artificiosa, pois a dação em pagamento não extingue a obrigação de um modo absoluto,

porquanto há casos em que a obrigação pode ressurgir. Para êle, não há novação, mas simplesmente uma convenção, quanto às modalidades do pagamento que se sobrepõe à obrigação inicial, sem afetá-la, nem principalmente extingui -la, doutrina que corresponde a de Giorgi Giorgio (Delle Obbligazione, VII, n.º 300).

Mesmo, porém, entre os clássicos, há acordo em estabelecer diferenças entre os dois institutos, a saber: a) a venda subsiste ainda no caso do vendedo r nada dever ao comprador, ao passo que, na dação em pagamento a ausência de causa debendi implica

na repetição o indevido; b) a dação em pagamento tem por finalidade o pagamento de um débito, ao passo que a compra e venda tem a origem em si mesma e o modo de pagamento do preço nenhuma influência exerce sôbre a sua inexistência e eficácia; c) a

dação em pagamento, diferentemente da compra e venda, não se consuma senão com a tradição e transferência da propriedade da coisa dada em pagamento (Pacifici -Mazzoni, Tratt. vol. 12, n. º 151; B. Lacantinerie e Barde, Obbligazione, II, número 1.686; B. Lacantinerie e Saignat, Delle Vendita, n.º 194; Pothier, Vente, n.º 603).

Dessas diferenças resulta que sòmente consideram aplicáveis à dação em pagamento

os princípios da compra e venda relativos aos preceitos de ordem geral, pondo -se de lado os que derrogam essa mesma ordem.

III) – Dentro nos princípios que regem a matéria no nosso Código Civil, tais pontos de vista não podem deixar de repercutir no sentido de bem explicar o campo de aplicação do art. 996.

A dação em pagamento é, entre nós, e não podia fugir a êsse critério geral, um contrato liberatório, apresentando pontos de diferenças com a compra e venda, sendo o mais importante dêles, o do art. 998 que, no caso de evicção, determina o restabelecimento

da obrigação primitiva, comunicando, assim, a essa espécie de contrato, fisionomia própria, distinta, inconfundível com a compra e venda.

Se as normas dêste último contrato são aplicáveis ao primeiro, no caso de se encontrar determinado o preço da

[246]

coisa dada em pagamento, tal aplicabilidade se cinge às relações entre as partes

contratantes, ou sejam, às normas de caráter geral concernentes à capacidade de dar a adquirir, a das obrigações de dar e a da transcrição, esta última, não em razão do preceito do art. 996 do Código Civil, mas por ser da índole de dação em pagamento a

transferência do domínio da coisa objeto da dação, o que, em se tratando de imóvel, cai necessàriamente no preceito geral que subordina à transcrição, em geral, todos os atos translativos da propriedade imóvel.

IV) – Aplicando êsses princ ípios à promessa de dação em pagamento, vê -se, desde

logo, a mais profunda dessemelhança entre a promessa de venda e a dação em pagamento.

Nós vimos já que uma das precípuas diferenças entre a dação em pagamento e a venda é que a primeira é um ato liberatório, distrahendi causa, ao passo que a segunda é um ato obrigatório, com o fim de contrahendi. Resultam daí as seguintes conseqüências:

a)como envolve um pagamento, a dação em pagamento pressupõe a efetiva prestação da coisa;

b) como contrato de natureza real, a sua percetibilidade depende da transferência da coisa;

c) não há dação em pagamento, enquanto a coisa não se tornar propriedade do de vedor

(Giorgi, ob. cit., VII, pág. 385), de modo que, antes dessa transferência, ter-se-á uma promessa de datio in solutum, com uma faculdade alternativa, “mas não já a datio, pròpriamente dita, que equivale à exibição de uma obrigação precedente (Coviello, Transcrizione, II, n.º 286).

Grandes são os reflexos de tais princípios na diferença que taxamos de profunda entre a promessa de compra e venda e a de dação em pagamento. São elas:

a) a promessa de compra e venda versa sôbre um contrahere futuro, tendo, como a

própria compra e venda, um contrato de natureza obrigatório, ao passo que a promessa de dação em pagamento teria por objeto a obrigação futura de contratar e a extinção de uma obrigação pela prestação de coisa diversa da convencionada;

b) enquanto, uma vez firmada, a promessa de venda tem plena eficácia por si mesma, a

promessa de dação nenhuma analogia pode apresentar com a primeira, pela razão fundamental de que uniformemente a doutrina reconhece

[247]

ser a sua perfectibilidade jurídica, como dação, dependente da coisa dada em pagamento tornar-se propriedade do credor, e se o próprio contrato de dação depende

de um requisito substancialmente integrante para que tenha vida jurídica, não há como comparar essa situação com a da promessa de venda que, inscrita, pode dar lugar à própria execução judicial do contrato, pois contém já todos os elementos do contrahere futuro: a compra e venda;

c) a promessa de compra e venda de imóvel foi expressamente submetida a um regime especial tendo a lei dos registos públicos tornado extensivos ao dito contrato os dispositivos do decreto-lei n.º 58, de 1937, ou seja, o caráter real pela inscrição e o efeito

da execução compulsória, e é óbvio, dada a diferença de natureza, de origem e de efeitos das duas formas de promessa, ser impossível a aplicação analógica de tais dispositivos de exceção, nem ser l ícito protrair o caráter real a institutos outros que não os expressamente considerados pela lei;

d) finalmente, o registo de imóveis, como inicialmente ficou dito, não é um organismo suscetível de receber quaisquer institutos que se apresentam ou quaisquer contratos, porque, quando tal admissão se facultasse, à margem da lei, tornar -se-ia um ato vazio

de efeitos, porque êstes decorrem, não do simples fato do registo, mas dos dispositivos legais que incluíram o ato como suscetível do registo e lhe precisaram a respectiva latitude.

Nesta conformidade,

Julgo procedente a dúvida.

Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1942.

(ass.) Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes”.

Tendo sido interposto recurso dessa decisão, o Sr. Dr. Procurador-Geral do Distrito, o ilustre Dr.

Romão Côrtes Lacerda, no parecer que iremos transcrever, dela discordou pelos seguintes fundamentos:

“A “Sul América” contratou com Jean M. F. Vincent e sua mulher, pela escritura pública de fls. 39, que êstes lhe dariam em pagamento por conta de uma dívida em dinheiro,

certos bens móveis e imóveis discriminados no instrumento, todos no valor de Cr$ 400.000,00. Pôs-se preço a cada um dos imóveis, sendo que o do terço do prédio do Rosário é de Cr$ 144.000,00.

Trata-se de promessa de dação em pagamento, estipulando as partes que terceiro, o Dr. Viana de Sousa, como pro-

[248]

curador com poderes irrevogáveis, assinara a escritura definitiva de datio in solutio, de modo a cumprir-se a obrigação dos promitentes de definitivamente transferir todo o jus, direito e ação que exercem sôbre os imóveis vendidos (sic) à outorgada”, pela “escritura

definitiva de dação em pagamento a ser lavrada”. A firmaram os contratantes, no final da escritura, aceitarem os valores postos aos imóveis, cada um de per si, dando a Sul América, “quitação parcial da dívida”, ressalvado o seu direito de “haver o saldo devedor”.

Não há como deixar de ver nos têrmos claros da escritura a estipulação de uma promessa de dação em pagamento.

A dação em pagamento, do que foi estipulado o preço à coisa dada in solutio, se regula pelas, “normas do contrato de compra e venda”, nos têrmos do expressamente disposto

no art. 996, Cód. Civil. A razão de ser dêsse dispositivo é que, pôsto preço à coisa, a datio in solutio conterá todos os elementos do contrato de venda, a saber, coisa, preço, consentimento, tornando-se, assim, obrigatória (Código Civil, art. 1.126), e aplicando -se-

lhe o disposto a respeito das obrigações de condômino vendedor no art. 1.139, do Código Civil.

Nem se diga que na dação em pagamento, evicto o credor, se restabelece a dívida (Código Civil, art. 998), estando aí a diferença entre a venda e o datio in solutio. Também

na venda pura e simples, se o comprador fôr evicto, terá direito de recobrar do vendedor o preço pago (Cód. Civ., art. 1.108).

Em ambos os casos regem os mesmos princ ípios: na datio o preço foi a quitação da dívida, razão pela qual, verificada a evicção, fica a quitação sem efeito, isto é, volta o

devedor (vendedor) a ser obrigado a pagar a dívida, ou parte desta, de que o havia quitado o credor (comprador).

Do lado do devedor, se por ex., a dívida não existia, poderá êle proceder em restituição do indébito, isto é, da coisa dada em pagamento. Mas, ainda aqui, os mesmos são os

princ ípios aplicáveis aos dois casos, pois, de nulo o contrato de compra e venda pura e simples, o vendedor, também poderá agir pela condictio indebiti para restituir-se da coisa móvel ou imóvel, dada em pagamento da obrigação resultante da compra e venda.

Se a dação de imóvel em pagamento está sujeita à t ranscrição (1.ª Câmara da Côrte de Apel., 11-11-1909, Rev.

[249]

Dir., 14-559; Trib. Santa Catarina, in “O Direito”, 82-479), claro é que a promessa de dação em pagamento em que se estipulou preço ao imóvel fica sujeita à averbação a eu se refere expressamente o art. 22 do decreto-lei n.º 58, 10-12-1937, “para os efeitos”, do

mesmo decreto-lei, isto é, entre outros para os de constituir direito real oponível a

terceiros (decreto-lei n.º 58, artigo 5.º) – e dar à adjudicação por sentença a que se refere o art. 16 e parágrafos do mesmo decreto-lei número 58.

Argumenta a douta sentença com o decreto n.º 4.857, de 1939, dizendo que êste decreto não fala da “inscrição” das promessas de datio in solutio. Mas, o legislador timbrou em deixar claro que baixava o decreto n.º 4.857 como simples regulamento

(note-se bem). A lei, isto é, o decreto-lei n.º 58, manda averbar as promessas de venda (art. 22) a outra lei expressa, isto é, o Código Civil, no seu art. 996, dispõe, por expresso, que a dação em pagamento se regulará pelas normas da compra e venda, desde que

apreçada a coisa dada em pagamento, donde se terá irrecusàvelmente que a promessa de dação em pagamento, que mencione preço à coisa prometida, se regulará pelas regras da promessa de compra e venda.

Também o regulamento não diz explicitamente que as dações em pagamento serão

transcritas, pôsto que seja certo que o devem ser. Do mesmo modo não era necessário dispusesse de modo explícito sôbre a averbação da promessa de datio in solutio porquanto esta é equiparada à promessa de venda, por fôrça do artigo 996, do Cód. Civil, desde que se ponha preço à coisa.

O que me parece essencial à solução da hipótese é indagar se o prometido (a Sul América) tem direito a exigir o cumprimento da promessa contratada e de fazê -la averbar como direito real, na forma do art. 22, do decreto-lei n.º 58. A solução afirmativa não nos

parece duvidosa, sobretudo se se tem em conta que o registo, no caso, não cria direito, destinado que é, apenas, a conservar o direito que porventura assista à prometida donatária como resultante da promessa constante da escritura pública.

Que o prometido tem direito de exigir o cumprimento da promessa e a averbação do

direito real resultante da promessa resulta do disposto no artigo 996, do Cód. Civil, comb. com os arts. 22, § 5.º e 16 e seus parágrafos do decreto-lei n.º 58.

[250]

Mas, embora se pusesse em dúvida, possa êle exigir êsse cumprimento como titular de direito real resultante da promessa, tudo aconselha a que se pratique o ato conservatório

do direito que porventura tenha, que só poderá ser definitivamente discutido e resolvido nas ações contenciosas que acaso surgirem com base na escritura em aprêço.

Por tais motivos, opino pelo provimento.

Rio de Janeiro, em 16 de novembro de 1942. – Romão Côrtes de Lacerda, procurador-geral”.

Finalmente a Quinta Câmara Cível do Tribunal de Apelação (Ac. de 7 de março de 1944, in

Diário da Justiça, de 15 de setembro de 1944, pág. 4.164), aceitou a doutrina defendida pela Procuradoria sob os seguintes argumentos:

“Dê-se provimento ao recurso. Está envolvida nêle matéria, sob o ponto de vista doutrinário, da maior importância prática. Cogita-se de saber e resolver se as promessas

de dação em pagamento podem ou devem ser levadas ao Reg. Público. Concluiu pela negativa o ilustrado prolator da decisão recorrida. Dela diverge o M. Público, pelas vozes autorizadas dos Drs. Procurador-Geral e Promotor Público. Não procedem os

argumentos da sentença. Parte dela de um pressuposto falso: a exclusividade do registo

para os atos enumerados na lei. Não se encontra em dispositivo legal algum essa

exclusividade. Uma coisa é dizer que tais atos deverão ser registados e outra diferente que sòmente tais atos poderão ser registados. Não há princípio algum de hermenêutica que autorize uma semelhante interpretação.

Não se contém na lei qualquer expressão nesse sentido. Ao contrário. O art. 856, n.º I,

do Código Civil, refere a transcrição dos títulos de transmissão de propriedade em geral. Conseguintemente todo e qualquer ato que importe ou tenha como conseqüência a transmissão da propriedade pode e deve constar do registo de imó veis.

A enumeração do art. 856 é falha e tanto assim que o título constitutivo do bem de

família, não enumerado no art. 856 do Código Civil, está sujeito a transcrição (art. 73 do mesmo Código). O que há no caso, para bem aplicar a lei, é analisar o intuito do registo público em sua natureza e finalidade. Na frase de Clóvis, “o Registo de Imóveis é o

instrumento da publicidade das mutações da propriedade”. A sua virtude específica consiste principalmente nisto: em refletir todo o giro da propriedade, quer n a passa-

[251]

gem do domínio de uma para outra pessoa quer nos ônus que gravam a propriedade. Êle reúne em si dois interêsses: um de ordem privada, outro de ordem pública,

decorrente de publicidade. E‟ uma garantia de direitos para as pessoas que participam do ato e garantia também para terceiros, porque a publicidade adverte ao público da situação dos bens. Ora, se assim é, torna-se evidente que a dação em pagamento pode

e deve ser levada a registo, porque, por ela o bem imóvel fica comprometido em favor de determinada pessoa e daí resulta a conveniência do registo para garantia das partes celebrantes do ato e para a garantia de terceiros a cujo conhecimento possa interessar.

Está aí, portanto, a dação em pagamento precisamente dentro da finalidade do Registo Público, em sua essência e em sua finalidade. Não assiste razão ao Dr. Juiz quando nega analogia entre a compra e venda e a dação em pagamento, porque esta tem por

finalidade a satisfação de uma dívida. Mas, é o próprio Código que n o art. 856, n.º II dêsse artigo se enumera as sentenças que nos inventários e partilhas adjudicarem bens de raiz em pagamento das dívidas da herança. Aí temos uma adjudicação em

pagamento de dívida sujeita a registo. A finalidade do pagamento a que atribui o Dr. Juiz tão grande importância não constitui, portanto, obstáculo ao registo do ato, pelo critério do próprio Código Civil.

Quanto à possível convalescença da dívida no caso de evicção, na hipótese da ação,

igualmente, não é argumento ponderável, porquanto, na compra e venda, também no caso de evicção há lugar para a repetição do indébito. Não existe, portanto, a dissonância apontada pelo Dr. Juiz, mas, ao contrário, as situações se assemelham

nitidamente. São êstes argumentos de ordem geral. Mas há dispositivos legais de perfeita aplicabilidade. O art. 996 do Código Civil resolve a controvérsia. Diz êle:

“Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”.

Comentando, diz João Luís:

“A equiparação da dação em pagamento à compra e venda é um princípio pacífico na

doutrina e nas legislações e já aceito no direito anterior. Se a dação em pagamento recair sôbre imóveis, é indispensável para a sua validade a transcrição”.

[252]

No caso da ação, o pagamento é a quitação. Assim o permite o art. 995 do Código.

“O credor pode consentir em receber coisa que não seja dinheiro, em substituição da prestação que lhe era devida”.

Comentando, escreve ainda João Luís:

“A datio in solutum é forma de pagamento já aceita no direito anterior, que regulou em vários texto, equiparando-se como o Código à compra e venda, nas suas regras e efeitos e subordinando-se à aquisição sôbre os bens do devedor, para se pagar pelo produto da respectiva venda judicial.

No caso em apreço, foi determinado o preço da coisa dada em pagamento. Conseguintemente, está satisfeito o requisito exigido pelo art. 996.

“Se for taxado o preço da coisa dada em pagamento a dação em pagamento é uma compra e venda”.

Aliás, ainda nos outros casos os dois atos têm muito de semelhante. In solutum dare est

vendere. Ainda é mais positivo êsse jurista, quando, ao comentar o art. 332 do Código Civil, escreve:

“O art. 531 sujeita à t ranscrição todos os títulos translativos da propriedade imóvel por ato entre vivos. Assim, a compra e venda, a permuta, a dação em pagamento, etc., têm de ser transcritos.

Fora de dúvida, portanto, pela própria lei e por seus mais autorizados comentadores que a dação em pagamento deve constar do Registo Público. Decorre, daí, que, se a promessa de compra e venda está sujeita à averbação (art. 22 do decreto -lei n.º 58, de

10 de dezembro de 1937), a promessa de dação em pagamento, em que se estipulou preço, na forma do art. 996 do Código Civil, deve, também ser registrada. Há dois dispositivos legais que a autorizam: art. 996 do Código Civil e o art. 22 do decreto -lei n.º 58, que manda averbar as promessas de venda.

Não se lhe poderia opor o regulamento n.º 4.857, de 9 de novembro de 1939, que é um simples regulamento. A omissão do regulamento não pode tirar eficácia a disposições legais, que, por sua natureza, por seus efeitos, por sua finalidade, afinam no sentido de

permitir-se a averbação das promessas de dação em pagamento, quando ela preencher os requisitos da compra e venda.

Nessa conformidade, por acôrdo de votos do Relator e Revisor, dá-se provimento à apelação, a fim de reformar a

[253]

sentença recorrida e mandar fazer o registo requerido na forma do pedid o da parte.

Custas na forma da lei.

Rio de Janeiro, 7 de março de 1944. – Edmundo de Oliveira Figueiredo, presidente com voto. – Raul Camargo, relator.

Ciente. 19-7-44. – Romão Côrtes Lacerda”.

486. CONTRATO DE OPÇÃO PARA COMPRA DE IMÓVEL – O contrato de opção, como o de promessa de compra e venda, pertence à categoria dos contratos preliminares. A doutrina e prática acolheram a locução – contrato preliminar – para significar o acôrdo das pactuantes

destinado à conclusão de um contrato futuro. Embora no Direito Romano não fôssem desconhecidos os pactos em que as partes se obrigavam a concluir um contrato de venda ou de mútuo, contudo o contrato preliminar, como figura contratual autônoma, não existia. Não se

confunde o contrato preliminar com as obrigações precontratuais, pois o contrato preliminar é um ato preparatório do contrato, até à sua última fase, representando, porém, um acôrdo de vontades completo; acôrdo das partes quando não se pode ou não se quer concluir um contrato;

reserva-se o direito de dar o seu consentimento; a outra parte obriga-se a esperar êste consentimento; opera-se, dêste modo, um contrato em que alguém se obriga a contratar – um contrato de contrato. Daí representar o contrato preliminar um ato jurídico, ser uma convenção

cujo objetivo consiste em assegurar a conclusão de um contrato definitivo, mediante a obtenção do consentimento de uma das partes.

487. A OPÇÃO DE COMPRA E VENDA COMO ESPÉCIE DE CONTRATO PRELIMINAR – O contrato preliminar, conforme viemos de focalizar, representa, como se disse, um contrato em

que uma das partes ou ambas se obrigam a celebrar um contrato, num dado momento preestabelecido. Assim, do contrato preliminar, surgem duas espécies: a promessa de compra e venda e a opção. Da primeira, viemos de tratar detalhadamente; da segunda, vamos apreciá-la

agora, especialmente do ponto de vista da possibilidade de sua inscrição, tal qual sucede à promessa de compra e venda. O contrato preliminar pode ser bilateral ou unilateral; o bilateral, na promessa de compra e venda; unilateral na opção. O contrato preliminar é unilateral (opção),

quando vincula apenas uma das partes contratantes. Assim A. concede a B. o direito puro e simples de exigir dêle, no momento próprio, a prestação do assentimento na escritura definitiva, sem contrair, a seu turno, qualquer

[254]

obrigação para com A. O contrato preliminar unilateral pode ser considerado como um contrato subordinado à condição potestativa do estipulante: si volet.

No contrato preliminar bilateral (promessa de compra e venda) tudo se passa de maneira diversa; promitente e compromissário assumem ambos obrigações recíprocas, um de vender, outro de comprar, ambos são credores e devedores, simultâneamente.

488. CONCEITO DE OPÇÃO DE COMPRA E VENDA – Fácil se torna, então, conhecidas as

noções gerais já expostas, compreender o conceito de opção de compra e venda. E‟ uma forma que, semelhantemente à promessa de compra e venda, se destina a obter de outrem a efetivação de um contrato, mas, diferentemente da promessa, a opção dá ao preferente um poder potestativo sem acarretar-lhe qualquer obrigação.

Em sentido lato, a palavra “opção” designa a faculdade atribuída a uma pessoa, quer pela lei,

quer por uma convenção, de escolher entre duas situações jurídicas diferentes; mas, stricto sensu, interpreta-se como sinônima de promessa unilateral de venda (1).

Esta promessa unilateral de venda pode surgir de dois modos: ou pode ter sido estabelecida num contrato autônomo, ou então pode vir pactuada como uma cláusula de outro contrato, como

geralmente sucede ao se conceder ao locatário, no contrato de locação, o direito de tornar efetiva a aquisição do imóvel, a ser manifestada dentro de um certo espaço de tempo.

Aqui também não há lugar para se confundir essa forma de contrato preliminar, também chamada preferência, com o direito de preferência pròpriamente dito. Neste, não há uma

faculdade concedida potestativamente ao preferente, suscetível de ser exercida dentro de um espaço de tempo ou pela superveniência de um dado evento. O direito de preferência é concedido ao preferente, dependendo, entretanto, da circunstância de querer o dono da coisa

vendê-la, ao passo que, na opção, não existe essa condição, mas sim uma obrigação do promitente de outorgar a escritura definitiva, se o credor exigi-la dentro de certo prazo.

489. DA INSCRIÇÃO DA OPÇÃO DE VENDA DE IMÓVEL – De tudo quanto fica exposto, depreende-se, conforme já se ressaltou, que a diferença intercorrente entre promessa de compra

e venda e opção está em que a primeira se apresenta como um contrato bilateral, enquanto a segunda – opção – ou promessa uni-

(1) – Colin et Capitant, Cours de Droit Civil, II, n.º 513; M. André Lecomte, De la Nature Juridique des Ventes a option, Rév. Trim., 1931, págs. 551 e segs.

[255]

lateral de venda – surge como um contrato unilateral, em que só existe um lado credor e de outro

devedor. O promitente vendedor assume a obrigação perante a outra parte – o optante – não só de não alienar o imóvel a terceiro durante um certo per íodo, como ainda de outorgar a escritura definitiva ao credor da opção, se êste lh‟a exigir dentro no prazo determinado, ou dentro nas condições estabelecidas no contrato.

Desde que essa promessa unilateral se revista de todos os requisitos da promessa bil ateral, desde que assuma a forma de instrumento público, se de valor superior a hum mil cruzeiros, desde que no ato haja intervindo a mulher do promitente vendedor, não há como se negar a

inscrição, para os seus devidos efeitos. Uma e outra forma podem e devem ser equiparadas, pois as diferenças não são substanciais, e os efeitos reais são perfeitamente compatíveis, sem qualquer prejuízo. Nem se argua a falta de disposição legal expressa, porquanto a lei fala em

promessa de venda, e promessa de venda é a opção, ainda que classificada como unilateral. Nem esta unilateralidade pode servir de estôrvo sério à extensibilidade da inscrição, dado que pràticamente desaparecem tôdas as diferenças entre ambas as formas – a unilateral e a bilateral

– quando, nesta última, o compromissário, v.g., realiza todo o preço ajustado, exaurindo, assim e completamente, tôdas as suas obrigações, tornando um contrato unilateral a promessa de compra e venda bilateral.

490. A PROMESSA DE COMPRA E VENDA EM FACE DO DIREITO FISCAL – No Distrito

Federal, o decreto municipal n.º 4.613, de 2 de janeiro de 1934, e em algumas legislações fiscais dos Estados, o impôsto de t ransmissão da propriedade imóvel é antecipadamente cobrado por ocasião da outorga da promessa de compra e venda. Bastante discutida é a tese da

constitucionalidade dessa cobrança. O ilustre jurista e Procurador-Geral da República, em

parecer emitido no Recurso Extraordinário número 11.534, do Estado do Rio de Janeiro (in Diário da Just., de 10 de novembro de 1948, pág. 8.686), assim se manifestou a respeito:

“Quanto ao mérito, opinamos que ao recurso seja negado provimento.

[256]

Não nos parece manifestamente inconstitucional a lei que exige o pagamento do impôsto de transmissão ao ser assinada a escritura de promessa de venda do imóvel.

E‟ certo que a Constituição fala em impôsto de transmissão de propriedade; esta não se transmite pela promessa de venda.

Mas, apreciado o problema com êsse rigor, nem mesmo ao tempo da escritura definitiva,

seria exigível o tributo, pois é pela transcrição do título que a propriedade imóvel se adquire (Código Civil, art. 530, n.º I).

De modo que a objeção do recorrente tanto alcançaria a exigência do impôsto ao tempo da promessa de venda como a sua cobrança por ocasião da escritura definitiva.

E quanto a esta última nunca se suscitou dúvida, o que mostra que a questão não deve ser posta nos têrmos em que a coloca o recorrente.

Conferindo aos Estados o impôsto sôbre a transmissão da propriedade imobiliária, não disse a Constituição que êle só poderia ser cobrado após a transmissão. Nem seria razoável que o dissesse.

Não há inconstitucionalidade, portanto, em que a lei declare devido o tributo, no

momento em que a transmissão é ajustada, seja mediante escritura definitiva, seja mediante contrato de promessa, tanto mais que esta, no direito vigente, pode ser inscrita no Registo de Imóveis, para constituir um direito real.

Diante do exposto, opinamos que o Egrégio Tribunal negue provimento ao recurso, se dêle conhecer.

Distrito Federal, 4 de novembro de 1948. – Luís Galoti, Procurador-Geral da República”.

Como se vê, o precípuo argumento de que se vale o ilustre Dr. Procurador -Geral é o de que nem a escritura definitiva nem a promessa de compra e venda são títulos translativos do domínio, pois êste só se transfere com o registo, com a transcrição no registo de imóveis, de modo que,

frisa S. Excia., o argumento de que a promessa não transfere o domínio pode ser oposto igualmente à escritura definitiva.

Entretanto, essa objeção não procede. A diferença está na natureza dos dois contratos. O primeiro, promessa, é, como se disse, um contrato preliminar, cujo objeto não é a transferência

de uma coisa, mas uma declaração de vontade, ao passo que, no contrato de compra e venda definitivo cogita-se já da obrigação de dar a coisa, de

[257]

transferir, a obrigação de não se opor a que se faça unilateralmente a transcrição em nome do

novo adquirente, é o título causal do registo. Enquanto a promessa de c/venda outorga um direito futuro, muitas vêzes condicional, suscetível de não vir a concluir -se, a venda definitiva representa já a base da transferência do domínio, em que não mais é possível arrependimento,

em que se não cogita mais de pedir ao juiz que supra a vontade do vendedor, pois que esta já se completou, onde não há mais condição a preencher, pois que com a obrigação de dar assumida, a prestação de vendedor está exaurida. Por conseguinte, o impôsto recaindo na escritura

definitiva de compra e venda incide sôbre o t ítulo básico causal do registo, em que êste funciona como a tradição real, mas em que o primeiro representa a base a razão exqua dessa tradição. Se o mesmo imóvel fôr vendido a mais de uma pessoa, há um delito para o que fizer, e, mesmo

assim, legítimo dono será o que primeiro t ranscrever. Ora, se a Constituição só autoriza o impôsto de transmissão da propriedade, êste não pode ser tributável por ocasião de uma escritura preliminar, mas tão só por ocasião da definitiva, pois que só a partir desta é que nasce,

para o adquirente, o direito irretorquível, inobjetável de efetuar a tradição, at ravés da transcrição no Registo de Imóveis. Também se tem decidido que, para os efeitos da sisa, o valor dos bens é o da época do compromisso de compra e venda mesmo no caso de ter sido êste cedido (Ac. da 4.ª Câmara Civil do Trib. de Justiça de São Paulo, de 8-5-947, Rev. dos Trib., 168-141).

DESQUITE E NULIDADE DE CASAMENTO

491. TRANSCRIÇÃO DA SENTENÇA DE DESQUITE E DE NULIDADE OU ANULAÇÃO DE CASAMENTO – Sôbre o significado e função da transcrição, tratamos exaustivamente no desenvolvimento das matérias constitutivas do 1.º e 2.º volumes. Nada mais nos resta a dizer.

No presente parágrafo, trataremos da t ranscrição da sentença de desquite e de nulidade ou anulação de casamento.

A primordial condição para a transcrição de uma sentença proferida em qualquer dos aludidos processos é a de que o casal possua um patrimônio, do qual constem bens imóveis ou direitos

reais sujeitos à transcrição. Também já vimos no 2.º volume o que se deve entender por bens imóveis e quais os direitos reais subordinados ao Registo de Imóveis.

492. DESQUITE – O desquite é um dos modos terminativos da sociedade conjugal.

[258]

Amigável ou judicial, êle está sempre dependente de sentença: no primeiro caso, uma sentença de efeito meramente homologatório; no segundo caso, de natureza decisória.

Em qualquer hipótese, uma das conseqüências da sentença proferida no processo de desquite,

judicial ou amigável, é a de pôr têrmo ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fôsse dissolvido (Cód. Civil, arts. 267 e 322).

Como se viu, segundo a disposição comentada, para a transcrição da sentença mister se faz que do patrimônio do casal constem bens imóveis e direitos reais suscetíveis de registo, e ainda que tais bens hajam sido partilhados, em conseqüência do desquite, nulidade ou anulação.

Quer isto dizer não bastar a existência de bens. Impõe-se, ainda, que o regime de bens vigente na sociedade dissolvida justifique a partilha, o que não ocorre no caso de vigorar o regime da separação absoluta de bens.

A disposição comentada fala em sentença de desquite, nulidade ou anulação de casamento.

A expressão exige esclarecimento. Se o desquite é amigável, os desquitandos, muitas vêzes, regulam na inicial a partilha dos bens do casal.

Neste caso, a sentença homologatória do desquite estende os seus efeitos à partilha.

No desquite litigioso, a partilha é, porém, uma conseqüência da sentença decisória.

Esta, nenhuma relação pode ter com a partilha, ato posterior e em fase distinta.

A transcrição deve ter por base o formal de partilha, o qual conterá o teor da sentença que julgou procedente o desquite ou anulou o casamento, por ser uma das peças substanciais.

Após a promulgação do Código do Processo Civil nacional, tornou-se discutível qual a formalidade apropriada ao formal de partilha decorrente do término do regime de bens, em razão de desquite.

Efetivamente, o art. 644 do aludido Código prescreve:

“Homologado o acôrdo e não provida a apelação ”ex offic io”, averbar-se-á a sentença no registo civil e, havendo imóveis, no respectivo registo”.

Em conseqüência de se referir o dispositivo supracitado a “averbação”, entendeu a antiga Quarta Câmara do Tribunal de Apelação

[259]

do Distrito Federal (Ac. de 14 de janeiro de 1944, na Apelação Cível n.º 2.703, Apelante –

Gustavo Adolfo Glock) que “embora o art. 129, do dec. 5.318, de 1940 dispusesse que da sentença de desquite, nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos à transcrição devem ser obrigatòriamente transcritas,

contudo a formalidade era a da averbação, consoante determina o art. 644 do Código do Proc. Civil, de vez que é êste último diploma legal posterior ao primeiro, contudo a posterioridade é caracterizada pelo momento em que entra em vigor, o que só se deu em 1.º de fevereiro de 1940

(Cód. do Processo Civ., art. 1.052), prazo dilatado para 1.º de março (decreto -lei n.º 1.965, de 16 de janeiro de 1940).

Aduziu-se, ainda, neste acórdão:

“Na divisão dos bens, por extinção da sociedade conjugal, de acôrdo com o art. 642 do Código do Proc. Civil, pode ser feita ou por acôrdo, na petição inicial de desquite, ou, na sua falta,

mediante partilha, em inventário judicial (Cód. do Proc. Civil, art. 642). Só neste último caso é que se exige formal de partilha. A possibilidade de haver impôsto a pagar pelo excedente que um conjuge levar em relação ao outro, não dá lugar a que o inventário se faça judicialmente, pois êsse excesso pode ser apurado no processo pelos meios administrativos”.

Tal decisão não procede. O acórdão supracitado baseia-se num fundamento errôneo: o de que a lei posterior é a que entra em vigor depois de uma outra. Ora, o critério por fôrça do qual se pode estabelecer qual das duas leis é a anterior consiste em se tomar por ponto de partida a data de

sua publicação, momento em que, após promulgada, passa a ter existência real, efetiva. O prazo para vigência é apenas condição de publicidade, de divulgação, justi ficando-se um prazo especial, como ocorreu em relação ao Código do Processo, a fim de que melhor estudado, sua

aplicação não pudesse causar transtornos ou surprêsas em detrimento dos direitos que visou

assegurar. Por conseguinte o Código do Processo é ante rior, no tempo, ao regulamento dos Registos Públicos, e êste deverá prevalecer.

493. NULIDADE DO CASAMENTO – Preliminarmente cumpre distinguir o casamento nulo do casamento inexistente.

Em princípio, certa afinidade existe entre a nulidade absoluta e a inexistência do ato (1).

Contudo, em se tratando de matéria concernente a casamento, uma diferença convém ressaltar: é que no

(1) – Lutzesco, Théorie et Pratique des Nullités, pág. 189.

[260]

ato do casamento inexistente não pode ocorrer o casamento putativo, ao passo que êste é incompatível com a nulidade absoluta.

No casamento inexistente, da sentença que assim o reconhecer, (se para tanto houver

necessidade de julgamento), nada há que transcrever, pois se trata de um fato de existência impossível.

Resta o casamento nulo.

Aqui se impõe uma apreciação mais detalhada.

A ação de nulidade do casamento em caráter declaratório, se bem que Degni (2), entenda ser de caráter constitutivo a sentença anulatória. A nulidade opera -se ex-tunc, isto é, retroage ao momento da celebração do matrimonio e o anula em sua origem (3).

Quanto ao regime de bens, o efeito da nulidade consiste, não em produzir a dissolução do regime, mas em estabelecer a suposição de que êle nunca existiu.

Todavia, é preciso notar que o matrimonio existiu de fato, antes da sentença de anulação. Esta existência e êste fato são indestrutíveis, não só em si mesmos, mas também nas suas conseqüências necessárias.

Destarte, os direitos dos conjuges devem ser regulados conforme ao direito c omum da sociedade de fato, isto é, como se regulam os interêsses daqueles que, em convenção anterior, viveram pondo em comum todos ou parte de seus bens (5), devendo, assim, ser entendida a

lição de Pontes de Miranda de que “cada conjuge se retira, não com a metade, mas com os bens com que entrara para o casal, lucros dívidas, e demais ônus, salvo o direito a cada um de reaver por indenização, o que a arbítrio do outro se tenha alienado” (6).

A partilha deve concernir aos bens que estiverem em comunhão de fato.

Por conseguinte, se os bens já se encontravam transcritos em nome do conjuge que

efetivamente seja o seu proprietário, sem que tais bens tenham ingressado na comunhão de fato, não se faz mister nova transcrição.

Exemplifiquemos: A contrai núpcias com B, sob o regime de comunhão de bens, levando o primeiro um imóvel, transcrito em

(2) – Degni, Del Matrimonio, II, pág. 275. (3) – N. Stolf i, Diritto Civile, V, n.º 256, pág. 175; Aubry et Rau, Droit Civil, vol. 7.º, § 459 pág. 57. (4) – Pacif ici-Mazzoni, Inst. VII, n.º 91, pág. 214.

(5) – B. Baudry Lacantinerie et Chauveau Chèneaux, Delle Persone, III, n.º 1.895; Aubry et Rau, ob. cit., VII, §459; Planiol, Ripert et Nast, Traité de Droit Civil, VIII, n.º 86, pág. 106. (6) – Pontes de Miranda, “Direito de Família”, pág. 75.

[261]

seu nome. Anulado o casamento e com êle o respectivo regime de bens, nenhuma transcrição se torna necessária, pois a que existe representa uma realidade. Já o mesmo não sucede

quanto aos imóveis cuja transcrição esteja relacionada com o casamento anulado, isto é, uma transcrição feita na vigência do estado de fato do casamento anulado ou decorrente de algum pacto antenupcial, ou ainda de um imóvel que, por ter entrado na comunhão de fato, tenha sido objeto de um ato de partilha.

494. ATOS INTER VIVOS RELATIVAMENTE AOS DIREITOS REAIS SOBRE IMÓVEIS, QUER PARA A AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO, QUER PARA A VALIDADE CONTRA TERCEIROS – Trata-se aqui dos casos de transcrição previstos no n.º II, da letra “b” do art. 178.

Versa a aludida disposição sôbre a transcrição dos direitos reais sôbre coisa alheia.

São direitos reais, além da propriedade (Cód. Civil, art. 674):

I – A enfiteuse.

II – As servidões.

III – O usufruto.

IV – O uso.

V – A habitação.

VI – As rendas expressamente constituídas sôbre imóveis.

VII – O penhor.

VIII – A anticrese.

IX – A hipoteca.

Das espécies supramencionadas já foram estudadas, oportunamente, as relativas às servidões,

usufruto, uso, habitação, rendas, expressamente constituídas sôbre imóveis, o penhor e a hipoteca.

Restam, portanto, a enfiteuse e a anticrese, institutos de que nos ocuparemos nos números seguintes.

Já vimos, também, que, consoante o art. 676 do Código Civil, os direitos reais sôbre imóveis

constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem depois da transcrição, ou da inscrição no registo de imóveis, dos referidos títulos (Cód. Civ., artigos 530, n.º I, e 856), salvo os casos expressos no Código Civil (Cód. Civ., art. 676).

[262]

ENFITEUSE

495. ENFITEUSE: SÍNTESE HISTÓRICA DO INSTITUTO

Discute-se, ainda e intensamente, sôbre se a enfiteuse é um instituto de origem puramente romana ou se de origem grega.

Na opinião de Girard e Beaudoin, os imperadores romanos criaram o instituto, conf orme os moldes helênicos. Segundo Simoncelli, Boraud e Mario Risso (1), porém, a enfiteuse é criação exclusivamente romana, baseando as suas conclusões nessa evolução processada pela fôrça

dos costumes, enquanto que, pelo império de iguais fatores econômico-sociais, se produziu essa coincidência de uma analogia morfológica com o instituto grego.

Mario Risso acentua êsse aspecto através das condições econômicas, tanto em Roma como na Grécia, no momento em que surgiu o instituto.

E‟ fato inconteste, segundo o resultado das pesquisas feitas por historiadores e estudiosos do

direito helênico, a presença de vestígios, no século V antes da época vulgar, de normas legais em tudo análogas as da enfiteuse atual.

O caráter de perpetuidade e a obrigação de efetuar melhoramentos, tal como hoje existem, eram predicamentos lógicos das instituições gregas primitivas.

Mas, como quer que seja, a verdade é que o Direito Romano foi a fonte dos princípios atuais que

lhes servem de fundamento e tôda transformação havida no curso dos séculos é filiada e talhada na sua estrutura, que ainda conserva algo de fundamental e ministra elementos para as discussões atuais sôbre a natureza do instituto.

Como, porém, surgiu a enfiteuse no Direito Romano? Duas ordens de causas: a índole

genuinamente agrícola do povo romano ao lado de sua índole guerreira, do seu ardor de conquista.

Esta última dava lugar ao aumento das terras do Estado.

Preponderava o princípio de que a sorte das armas proporcionava aos vencedores um domínio absoluto sôbre a pessoa dos vencidos, e suas terras, como o atesta Gaio (4.16), suum esse credebat, quae ezsaustibus cepissent.

(1) – Mario Risso, L‟Enfiteusi nella nuova transizione.

[263]

Anexando os territórios conquistados, Roma, depois de deixar os vencidos sob uma maior ou

menor dependência, modificou a sua política e reconheceu-lhes a propriedade privada, sòmente reservando para si uma têrça parte do território, metade ou dois terços.

Pela concessão dessas terras, o Estado recebia uma renda denomina da – vectigal.

No período republicano, surgem as leis agrárias, como poderosos fatores do desenvolvimento do instituto. A divisão de terras efetuada por Spurio Cassio, e que o tornou odiado pelos patrícios e foi causa de sua decapitação, constituiu um passo agigantado.

As conquistas romanas se tornaram cada vez mais vastas. O vectigal foi outorgado a todos os vencidos.

Ao lado do vectigal instituíram-se a locatio conductio, por meio da qual os censores faziam locações de terras por tempo determinado e também os usos dos munic ípios e cidades de darem as suas terras em locação perpétua.

Em conclusão, positiva-se, assim, o que dissemos de comêço: dois os fatores sociológicos determinantes da enfiteuse: a índole agrícola do povo romano, levando -o à exploração das terras conquistadas, a índole guerreira, por meio da qual a extensão das terras foi aumentada em proporções gigantescas.

496. EVOLUÇÃO DA ENFITEUSE, COMO DIREITO REAL – A enfiteuse não foi criada por si mesma, antes, resultou da evolução e transformação de dois institutos: a superfície e o ager vectigalis.

No Direito Romano, a superf ície era um direito real assecuratório do uso e gôzo ilimitado das construções e plantações colocadas sôbre o terreno de outrem.

Distinguia-se da enfiteuse pela extensão do seu objeto: a Enfiteuse, compreendendo todo o fundo imobiliário, enquanto a Superfície, como a própria palavra o indica, não ia além da superfície.

O jus in agro vectigalis, matéria em que mais tarde veio a Enfiteuse a se plasmar, hauria o seu conceito do próprio enunciado.

A palavra vectigal podia ser tomada num sentido amplo ou restrito.

No primeiro caso, indicava tôda espécie de renda; no segundo caso, era interpretada especialmente como o rendimento resultante de um terreno pertencente ao Estado ou a uma cidade, alugado perpetuamente ou a longo prazo, sob a denominação de ager victigalis.

A princípio era concedido pelo prazo de 5 anos. Mais tarde operou -se profunda transformação:

mediante o preenchimento de certas obrigações, outorgou-se ao direito, então simplesmente temporário, um cunho de perpetuidade.

[264]

Essa nova ordem de coisas, acarretando a perpetuidade, impulsionou o instituto para uma evolução maior, cujo epílogo foi o batismo de direito real, recebido no fim do século da er a cristã.

A trajetória, porém, não foi vencida de um só jacto, mas através de sucessivas etapas, obtidas gradativamente, por meio de concessões a pouco e pouco ampliadas.

Reconheceu-se, a princípio, no ager vectigalis, a possibilidade de se tornar objeto de penhor, mas atribuiu-se ao locador o direito de preferência; permitiu-se, depois, a transmissibilidade do direito, sucessòriamente ou por legados, a estranhos, mas, o que assim sucedia, permanecia adstrito às obrigações inerentes e correlatas ao direito transmitido.

Em seguida, mercê da influência pretoriana, uma verdadeira defesa real começou a circundar o instituto nascente.

As condições econômicas favoreciam essa evolução. Na época imperial havia uma tendência bem forte para ligar o cultivador à terra cultivada, bem como a preocupação da utilização

econômica das terras. Os interêsses dos colonos, protegidos pela autoridade coercitiva dos procuratores, fizeram surgir a “Lex adrianna”, da qual recebeu o instituto o seu acentuado cunho de direito real.

A aquisição dos frutos separados pelo beneficiário, os intérditos possessórios, e, finalmente, pelo

Pretor, uma ação moldada na ação reivindicatória, tais foram os corolários dessa marcha lenta, mas progressiva, em que o instituto, de simples relação obrigacional de pagar um vectigal, passou a um direito real, dotado de todos os característicos, cercado de ações próprias ao referido direito.

Com êsses materiais, foi a Enfiteuse formada, obtendo uma disciplina especifica com Zenon e Justiniano.

Fundido as duas instituições, Justiniano fê-lo acrescentando à menção ager vectigalis as palavras vel emphyteuticarius. A legislação justiniana visou estabelecer um equilíbrio de direitos:

o canon ou fôro, como obrigação do enfiteuta, ao lado do amplíssimo direito de goza r do fundo imobiliário, exceto o de destruí-lo ou deteriorá-lo; ao enfiteuta forram concedidas a utilis reivindicatio, a actio confessória utilis e a atio negatoria, enquanto ao senhorio foi outorgado o

direito de pedir a restituição do imóvel no caso de inadimplemento, por parte do enfiteuta, da obrigação do pagamento do fôro.

Idade Média – Não queremos abordar aqui os múltiplos problemas da Enfiteuse na idade média, onde continuou a atuar por largo tempo, com o aspecto rígido que lhe comunicara o direito romano.

[265]

Deixaremos de lado as várias figuras de contratos que se bifurcaram do seu tronco, nem cogitaremos da enfiteuse civil e da eclesiástica.

Um ponto, porém, não podemos passar em silêncio, pois importou numa transformação pro funda na natureza de direito real que nela se firmara: trata-se da divisão do domínio em direto e útil.

No direito romano, isso não era possível pelo princípio duorum dominum in solidum esse non potesi.

Contornando as dificuldades, catalogava-se a enfiteuse entre os jus in re aliena.

A conseqüência da concepção do dualismo medieval foi reconhecer-se no foreiro a qualidade de proprietário – dominius utilis – reservando-se ao senhorio o dominius directus.

A concepção teve favorável acolhida entre os povos germânicos, explicável pela sua compatibilidade com o dominium eminens do Imperador, assim como, no direito feudal, com o alto poder do senhor, pois não impedia a apropriação das coisas pelos vassalos. Pode-se

concluir, ante essa síntese que, consoante a feliz expressão de Biagio Bruggi (1), “ao frio exame do homem de estudo se une o entusiasmo do homem de coração procurando remediar as misérias sociais. O Direito não aparece mais como uma fórmula absoluta e lógica; mas uma conseqüência de necessidades econômicas”.

497. CONCEITO DA ENFITEUSE – Cuiacio, após haver observado que “enphyteusis grecum et nomen ut hypotheca, arra proxeneta, parapherna et alia”, definiu o instituto: “Est contractus, quo dominus fundi sui deserti forte et squalidi usum et fructum bienissimum et quasi dominium alteri

concedit, et lege ut inserendo, plantando, arando, poliendo, colendo, meliorem eum et fructuosiorem faciat, proque eo pendat pretium seu vectigal anuuméé (Cuiacio, Paratitla in Lib. IV, tit. LXVI, Cód. Justiniani).

O nosso Código assim a conceituou (art. 678): “dá -se a enfiteuse, aforamento, ou

emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou fôro, anual, certo e invariável”.

498. NATUREZA DO DIREITO ENFITÊUTICO – Como vimos, no Direito Romano a Enfiteuse tinha o caráter incon-

(1) – Biagio Bruggi, Della Enfiteusi, II, pág. 157.

[266]

testado de jus in re aliena; no direito medieval, passou a ser representada pela duplicidade de domínio: o direito e o útil.

Batida pelas condições econômicas dos tempos, a Enfiteuse continuou a sofrer modificações. Sôbre a sua natureza, surgiram controvérsias de tôda espécie, precìpuamente na Itália, onde o

instituto, com a admissão do resgate, recebeu nova feição. Tais controvérsias não são, de modo nenhum, estranhas ao nosso direito, pois o Código Civil deu à Enfiteuse, com o resgate, essa feição moderna. Podemos, assim, agrupar as correntes doutrinárias:

1.º) – Os que sustentam o princípio romano, isto é, o enfiteuta tem um direito real sôbre a coisa que permanece na propriedade do concedente (senhorio) (1).

2.º) – Os que sustentam que o verdadeiro proprietário é o enfiteuta e não o concedente, assistindo-lhe uma propriedade virtual, ao passo que ao concedente não resta mais do que um direito real imobiliário, desprovido de qualquer caráter de domínio (2).

3.º) – Teoria de Simoncelli (3), pela qual o direito de propriedade é do enfiteuta enquanto ao

senhorio fica apenas um direito real anômalo, partindo da análise do direito ao recebimento do fôro, que considera direito de crédito puro e simples, e não direito real.

4.º) – Teoria de Mirabelli (4), que, partindo da distinção entre a essência e a natureza da Enfiteuse, sustenta, ainda, a concepção medieval do duplo domínio: o direto e o útil.

Posição do problema em face do Código Civil – Como tivemos oportunidade de referir (cfr. 2.º vol.) o Código Civil, apesar de incluir a Enfiteuse entre os direitos reais sôbre coisa alheia, conservou as denominações medievais de domínio direto e útil, confundindo, assim, situações inteiramente diversas, inconciliáveis.

Para nós a verdadeira explicação da natureza da Enfiteuse está com os que a consideram, em relação ao enfiteuta, como um jus in re aliena.

E é a exegese melhor acomodada à nossa legislação, pois, como explica Biagio Bruggi (5), a concepção de um duplo domínio não passa de uma maneira de dizer, para indicar, de um lado, o verdadeiro domínio – o dominium proprietatis, que é o do concedente;

(1) – N. Coviello, ob. cit., II, n.º 306; Pacif ici-Mazzoni, Tratt. della Vendita, II, pág. 487; Gabba, Retroattività, III, pág. 139; De Piero, ob. cit., loc. cit. (2) – Colamarino Del contratto d‟enfiteusi, pág. 62 e seg.; Lomanaco, Inst. di Diritto Civile, VI, pág. 472.

(3) – Simoncelli, ob. cit., II, n.º 161. (4) – Mirabelli, Del Diritto dei Terzi, I, pág. 503. (5) – Biagio Bruggi, ob. cit., pág. 229.

[267]

de outro, um direito real mais amplo que o usufruto, atribuído ao enfiteuta.

Admitir-se o duplo domínio, argumenta vantajosamente o referido autor, seria necessário dar corpo a um e a outro, tentativa de vários séculos, sempre inútil e malograda.

499. CONSTITUIÇÃO DA ENFITEUSE – A Enfiteuse pode constituir-se quer por ato entre vivos, quer de última vontade (Cód. Civ., art. 678).

Assim, portanto, os títulos de que ela decorre podem ser: a) o contrato; b) o testamento; 1) por usucapião (1).

500. CONTRATO DE ENFITEUSE E SEUS ELEMENTOS – Como já vimos, o Código civil considera o contrato como um dos títulos institutivos da Enfiteuse.

Passaremos, então, ao exame dos seus elementos.

a) Perpetuidade – O art. 769 do Código Civil estabelece que o contrato de Enfiteuse, é perpétuo, considerando como arrendamento, regendo-se como tal, a Enfiteuse por tempo limitado.

Entretanto, na prática, surgem dúvidas sobre a distinção entre a Locação e Enfiteuse. Os pontos de diferença entre um e outro instituto ficaram sintetizados, no seguinte julgado, por nós proferido:

“Vistos, etc.:

Maria Antônia Carneiro de Morais Talina, a fls. 2, pede seja declarada improcedente a

dúvida suscitada pelo Sr. Oficial do 7.º Ofício de Imóveis, e assim seja determinado por êste Juízo a transcrição da escritura constante do documento n.º 1 como sendo uma

enfiteuse e em seguida a transcrição da doação a que se refere uma outra escritura

também junto ao processo e lavrada em notas do 4.º Ofício, em 6 de setembro de 1938. Justificando o seu pedido, a suplicante alegou o seguinte:

a) que o tabelião que lavrou a escritura de 1914 emprestou ao contrato, indevidamente o nome de arrendamento, contràriamente ao disposto no art. 679 do Código Civil que

define o contrato de enfiteuse como perpétuo, sendo considerado arrendamento se instituído com tempo limitado;

b) que embora no caso em exame não haja sido fixado o tempo de duração do arrendamento, entretanto determi-

(1) – C. Beviláqua, ob. cit., II, n.º 210; De Pirro, ob. cit., pág. 98.

[268]

nada a proibição de alienação, sem a necessária autorização da outorgante vendedora

para a transferência do arrendamento, essa condição corresponde ao preceituado nos arts. 683 e 686 do Código Civil.

Os fundamentos da dúvida oposta pelo digno oficial do 7.º Ofício estão assim expostos:

a) que a doação tem por objeto uma benfeitoria em solo alheio, e assim sendo, isolada do solo, não pode ser objeto de transcrição;

b) que essa é a lição de Lisipo Garcia opinando que o edifício é imóvel por incorporaç ão

ao solo, de que é acessório, e não se compreende o absurdo de uma propriedade que não tenha existência por si, porque não há como admitir o edifício sem o solo.

A fls. 13, pronunciou-se o digno e ilustre Dr. Promotor de Registos, salientando os seguintes pontos:

a) que o contrato apresentado, em razão de seus têrmos, é um contrato sui-generis,

admitindo a possibilidade de um equívoco do tabelião, usando da expressão arrendamento em vez de enfiteuse.

b) que há caracteres de enfiteuse, em vista do tempo ilimitado e da obrigação de não alienar sem autorização do proprietário;

c) que a interpretação de um contrato deve obedecer mais à intenção das partes do que ao significado das estipulações;

d) que quanto ao registo, não se trata de transcrever uma benfeitoria, mas um domínio direto;

e) que se a lei permite a transcrição de um contrato de arrendamento, para o efeito de sua vigência em caso de alienação, por analogia se deve estender o mesmo preceito ao caso presente, pois se trata de um arrendamento por tempo ilimitado.

Isto pôsto:

I) – Trata-se da transcrição de duas escrituras: a primeira, lavrada em 1914, forma o

ponto nodal da questão, pois impõe joeirar se se trata de um arrendamento ou de uma enfiteuse; a segunda – doação – não envolve, por si mesma, nenhuma questão, pois a sua transcrição depende da solução que tiver a interpretação do primeiro contrato.

Convém, por conseguinte, fazer-se preliminarmente um exame do conteúdo da escritura de 1914, que é a que se vê a fls. 4.

[269]

Em nota do tabelião do 14.º Ofício, foi celebrada uma escritura entre Maria Augusta Serrão Peixoto e Antônio José Carneiro de Morais, escritura essa que foi denominada “de venda do prédio n.º 102 da rua Jequiá e de arrendamento do respectivo terreno”.

No corpo da escritura, lê-se o seguinte:

“que tem ajustado vender ao outorgado o prédio descrito e as benfeitorias existentes no

terreno, pelo preço de trezentos mil réis, que confessa já haver recebido em moeda corrente, de cuja confissão dou fé E DO TERRENO FAZER ARRENDAMENTO AO OUTORGADO E PELA RENDA ANUAL DE VINTE MIL RÉIS, PAGO NO FIM DE CADA

ANO, que do preço da venda dá ao outorgado plena e geral quitação e para êle cede todo o direito, ação, domínio e senhorio, havendo-o por empossado desde já por fôrça da cláusula constituti, obrigando-se por si e seus herdeiros e sucessores a fazer esta

venda boa, firme e valiosa a todo o tempo, respondendo pela evicção, COM A OBRIGAÇÃO, PORÉM, DO OUTORGADO NÃO PODER VENDER O IMÓVEL SEM OBTER A NECESSÁRIA AUTORIZAÇÃO DA OUTORGANTE PARA A TRANSFERÊNCIA DO ARRENDAMENTO”.

II) – Fundamentando a sua dúvida, o Sr. Oficial do 7.º Ofício declarou não ser possível a transcrição dessa escritura, porque o prédio não era suscetível de registo destacadamente do solo.

Efetivamente, se assim se considerar a escritura impugnada, o fundamento argüido, com apoio na lição de Lisipo Garcia, tem tôda procedência.

Se considerarmos que a outorgante vendedora apenas vendeu o edifício em si mesmo considerado, reservando para si o pleno domínio do solo, estamos diante de um ato que a doutrina unânime repele como incapaz de ser registado.

Os edifícios sòmente são considerados imóveis pela sua incorporação permanente ao

solo. Por essa razão, como doutrina L. Coviello (Transcrizione, I, n.º 112) os atos sujeitos à transcrição não podem ter por objeto as coisas imóveis por incorporação,

“quando estas venham consideradas por si mesmas”.

[270]

Verdade é que L. Coviello defende êsse ponto de vista visando a hipótese da venda de um edifício para demolição. Mas a situação é idêntica. Mesmo que se não trate de uma

venda com o intuito de demolição, o princípio é o mesmo, porque tôdas as obras de

aderência permanente, feitas acima ou abaixo da superfície do solo são acessórios dêste (Cód. Civ., art. 61, n.º III), sendo assim perfeitamente jurídica a conclusão de Lisipo Garcia (Transcrição, pág. 155):

“A compra e venda de uma construção independente do solo a que adere, como

translativa de domínio, seria em rigor uma venda nula, porque o seu objeto é uma coisa que, por si não existe”.

Ressalvada a consideração do ser nulo o ato, aceitamos, porém, que não se trata, em tal caso, de uma venda do edifício, em sim mesmo considerado, pois tal sòmente pode se verificar com a venda do domínio do solo, seja pleno ou seja o domínio útil.

O direito que assiste a um adquirente de tal natureza é sem dúvida alguma, por analogia, o direito de indenização, concedido pelo art. 547, pois, há identidade de situações.

O que não é admissível é a transcrição de um tal contrato, pois a transferência isolada de um edifício em solo alheio, sem que haja, pelo menos, o domínio útil do solo, não é

juridicamente possível, pois o edifício é uma coisa acessória, cuja existência supõe a da principal que é o solo (Cód.Civ., art. 58).

III) – O interessado argüi, entretanto, que se não trata de um arrendamento, têrmo que figura erradamente na escritura, mas de um contrato de enfiteuse, pois nêle ressaltam os elementos integrantes do referido instituto.

Sob êsse aspecto, a questão reveste-se de importância, e assim, cumpre-nos estabelecer, antes do mais, quais os pontos diferenciais entre o arrendamento e a enfiteuse.

A controvérsia a êsse respeito é vivíssima.

Fubini (II Contratto di Locizione, I, n.º 87), acentua que não é sòmente o tempo de

duração o elemento distintivo dos dois contratos, mas sim deve ser considerado como enfiteuse, pôsto o contrato haja sido denominado de arrendamento perpétuo, quando concorram os elementos de fato que permitam uma tal classificação.

[271]

L. Abello (Trrattato della Locazione, I, n.º 48), após frisar a intensa analogia da enfiteuse

com a locação, esclarece, entretanto, que entre ambas há profundas e incisivas diferenças, destacando, dentre outros elementos da enfiteuse, os seguintes: a) o uso e gôzo amplo do imóvel; b) a irredutibilidade do fôro, mesmo no caso de depreciação; c)

perpetuidade; d) a disponibilidade das benfeitorias, salvo apenas o direito de preferência para o senhorio; e) um direito real, mantido com a obri gação de pagamento de um fôro anual.

Do mesmo ponto de vista é Henri de Page (Traité Élementaire de

Droit Civil, IV, parte 1.ª, n.º 487), que também acentua a intensa analogia entre a enfiteuse e a locação, pois, segundo êle,”l ’emphythéose est, dans le fond, un bail, mais qui confére un droit réel ”.

Para êle o ponto comum reside no uso e gôzo da coisa, consistindo a diferença, quanto

à enfiteuse, em ser êsse uso e gôzo obtidos por fôrça de um direito real, ao passo que, na locação, atua um direito de crédito; e ainda porque a enfiteuse, como direito real, tem um conteúdo mais intensivo, através do direito de disposição (alienação, constituição de servidões e hipoteca).

De Pirro (Della Enfiteusi, n.º 23) igualmente indica, para diferenciar a enfiteuse da locação, o conteúdo jurídico, caracterizado pelo direito de disposição e de resgate do fundo enfitêutico.

Essas mesmas noções são perfeitamente adaptáveis ao nosso direito.

Em sentença proferida neste Juízo, o meu ilustre antecessor – o Desembargador

Martinho Garcez – apontou como t raço diferencial entre a enfiteuse e a locação, a perpetuidade da primeira e a temporalidade inerente à segunda (Rev.de Crit. Jud., vol. 17, pág. 171).

Comentando a aludida decisão, Lacerda de Almeida (in rev. cit., loc. cit.), estabelece algumas noções muito aproveitáveis à tese presente. Diz êle:

“A locação, antes de mais nada, é a transmissão de direitos pessoais; ninguém disse ainda que pela locação se destaca da unidade do domínio algum dos seus direitos elementares como a servidão ou todos os seus elementos, salvo a nua propriedade, como no usufruto, e, mais do que isso, na enfiteuse.

[272]

Por mais dilatado que seja o prazo da locação ou acomodamento, que chegue mesmo à perpetuidade, a locação sempre é locação, e a enfiteuse, enfiteuse. Por que razão? Pela razão fundamental dada acima e basta. Mas até

exteriormente se pode distinguir a enfiteuse da locação, por mais dilatada que seja em tempo. A locação é contratada mediante aluguel ou renda, que representa a remuneração do uso e gôzo da coisa arrendada. Que seja pago por

meses, trimestres, semestres ou anos, sempre é, e não deixa de ser aluguel ou renda, e, como aluguel que é, está sempre em proporção com o uso da coisa, por mínima que seja essa remuneração, “si merces constituta sib”.

IV) – Vistos assim os elementos de distinção entre a locação e a enfiteuse, resta -nos

agora estudar as regras interpretativas do contrato, quando as duas figuras, como no caso presente, são apontados através de certos elementos comuns.

Assinala Biagio Bruggi (Simoncelli -Biagio Bruggi, Della Enfiteuse, II, n.º 48), que o confronto das várias figuras de contrato que têm caracteres diversos da enfiteuse

envolve questões de suma relevância. Acentua que, tanto na antiga jurisprudência como no atual direito, “o nome dado pelas partes a um contrato constitui um indício para determinação da natureza do mesmo”, mas que se não deve emprestar um valor

exagerado. E‟ a interpretação da vontade das partes que se deve ter em vista, método de que os romanos admiràvelmente se utilizarem, admitindo contratos quorum appellationes nullas iure civili prodatae sunt e enquadrando a voluntas contrahentium nos quadros dos contratos típicos.

Adverte, porém, que “a qualificação e o nome do contrato não podem ser reduzidos a uma simples questão de fato”.

Tratando da mesma questão Pacifici Mazzoni (Códice Civile Commentato, XIII, pág. 490) assim externou o seu ponto de vista:

“Cresce a dificuldade quando a locação é feita a longo tempo. Critérios gerais e absolutos de interpretação não são possíveis; e tanto mais deve haver cautela

de indicar normas por outros sugeridas, considerando que a experiência tem mostrado o insucesso das mesmas dando lugar a interpretações insatisfatórias.

[273]

Melhor critério é ater-se ao exame do ato e de tôdas suas cláusulas e principalmente as relativas ao pagamento anual, às benfeitorias, e ainda as

circunstâncias, e especialmente as do estado do imóvel, e definir o contrato com os resultados de tal exame: Encontrou-se a concessão de um direito real quase semelhante à propriedade, a favor do concessionário? O contrato será de

enfiteuse. Surge concedido um simples direito pessoal de gôzo? Ter -se-á uma locação.

E finaliza:

“Na dúvida deve considerar-se estipulada uma locação, antes do que enfiteuse; pois que aquela é a mais usual”.

Francesco Ercole (Enfiteuse, in Scialoja, Dizz. Pratico, II, pág. 824) indicando a confusão particularmente fácil da Enfiteuse com a locação, diz a seu turno:

“Em casos dúbios, é necessário indagar a intenção das partes para estabelecer a figura de contrato que quiseram dar vida: é opinião vencedora na jurisprudência que o critério de julgamento deve ser a diversa natureza jurídica

dos direitos, que nascem da locação e da enfiteuse. Contu do, ainda que os contraentes tenham empregado expressões relativas à enfiteuse, o contrato deve ser considerado de locação, onde apareça intenção das partes que o

concessionário tenha sôbre o imóvel um puro direito pessoal (Cass. Roma, 10 de maio de 1880, Giur. It., I, 934); vice-versa, se as partes tiverem definido o contrato como locação, deve-se considerar enfitêutico, se se reconhecer a

intenção delas em dar vida a um direito real imobiliário sôbre o imóvel (Cass. Napoli, 3 de fev. de 1867, Giur. It., XIX, I, 127; Cass. Roma, 15 de fev. de 1886, Côrte Supr., 1886, 134).

V) – Conseguintemente, valendo-nos dessas preciosas noções é que passaremos a

analisar o contrato objeto da dúvida, pesquisando a intenção das partes e os elementos jurídicos dêle constantes para estabelecer a conclusão se o sob a denominação de locação, estabelecida, como ficou na doutrina exposta que a questão da denominação

está subordinada a outros elementos e não é obstáculo a que se reconheça outra figura de contrato.

[274]

A escritura de fls. 4 declara inicialmente que a vendedora é senhora e possuidora do prédio sito à rua Jequiá n.º 102 e respectivo terreno.

Em seguida declara que ajustou vender

“o prédio e as benfeitorias existentes no terreno”.

E quanto ao terreno, declara o seguinte:

“e do terreno fazer arrendamento ao outorgado e pela renda anual de vinte mil réis”.

Claramente se vê a exclusão de todo terreno da compra e venda no contrato, pois o mesmo ficou sendo objeto de uma instituição distinta, excetuada da primeira.

Ora, como acentuamos, o imóvel não vale por si mesmo, de modo que a alienação de um prédio, sem compreender o solo onde o mesmo se acha construído, não é jurìdicamente admissível a transcrição de um ato semelhante.

Mas, argumenta-se, no arrendamento concedido há uma enfiteuse. Não se nos afigura certa a afirmativa. Vejamos, porém, através da análise dos elementos integrantes da enfiteuse.

1.º) Diferentemente da locação, a enfiteuse t raz ao enfiteuta um direito real, que o

habilita a disponibilidade do imóvel, restando apenas ao senhorio o direito de preferência (Cód. Civ., art. 683).

Ora, no contrato impugnado, o que se convencionou foi a obrigação do outorgado.

“não pode vender o imóvel sem obter a necessária autorização da outorgante para transferir o arrendamento”.

Esta obrigação é bem diversa da que resulta do art. 683 supracitado, pois nêle não se

subordina a disponibilidade do imóvel ao consentimento do senhorio, mas concede-se a êste o direito de opção, isto é, a preferência na alienação, pelo mesmo preço e nas mesmas condições.

O texto do contrato se harmoniza inteiramente com o § único do art. 1.201 do Código Civil que faculta ao locatário

“ceder a locação, consentindo o locador”.

E‟ evidente, portanto, que o texto da escritura negou ao outorgado comprador o direito de disponibilidade do

[275]

terreno, de modo que há para êle apenas um direito pessoal e não um direito real. Falta, assim, um dos elementos substanciais à enfiteuse.

2.º) Diferentemente da locação, a enfiteuse é perpétua. Os nossos juristas, com exceção

de Lacerda de Almeida, repelem a locação com caráter perpétuo (J. M. de Carvalho Santos, (Cód. Civ., Int., XVII, pág. 131).

Ora, no contrato de fls. 4, não há disposição alguma relativa à perpetuidade. E‟ êle omisso em relação ao prazo de duração, mas êsse silêncio não é elemento bastante

para se concluir que as partes visaram uma duração perpétua. Mais do que nunca, deve-se aqui aplicar a lição de Pacifici-Mazzoni: na dúvida deve-se considerar estipulada a locação.

3.º) Enquanto na enfiteuse há, para o enfiteuta, a obrigação de pagar um fôro, anual,

certo e invariável, obrigação essa representativa do gôzo que o senhorio cede ao enfiteuta (Geraolo, L’Enfiteusi, pág. 105), na locação cabe ao locatário pedir a redução proporcional do aluguel, no caso previsto no art. 1.190, do Código Civil. Poder -se-á

argumentar aqui que o contrato impugnado se refere ao pagamento de uma renda anual de vinte mil réis, mas essa circunstância não favorece a interpretação do cont rato como Enfiteuse, pois que, como já vimos na citação ao trabalho de Lacerda de Almeida, o

aluguel pode também ser pago anualmente, e nenhum dispositivo do Código Civil considera requisito da locação o aluguel mensal (cfr. arts. 1.188 e 1.192, n.º II).

4.º) Diferentemente da locação, “só podem ser objeto de enfiteuse terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação” (Cód. Civil, art. 680).

Embora alguns autores não considerem requisito substancial, contudo, ainda aqui, o

contrato impugnado se afasta pronunciadamente da enfiteuse, pois do seu teor deduz-se claramente ter tido êle por objeto um terreno já edificado e cultivado, pois precisamente o edifício e as benfeitorias é que foram objeto da venda.

Do exposto resulta para nós a firme convicção de ser o contrato impugnado insuscetível

de transcrição, pois a alienação de um edifício com exclusão do solo, é um ato que não pode ser reconhecido válido, pelo menos para o efeito de t ranscrição, nem dêle se pode concluir que as partes tivessem visado uma enfiteuse e não locação, consoante ficou

claramente expresso e tôdas as circunstâncias indicam que a vontade das partes foi simplesmente vender o prédio e as ben-

[276]

feitorias, reservando a propriedade do solo, surgindo daí uma figura jurídica bizarra, que, seja como fôr, não pode ser considerada como constituição de enfiteuse.

Nesta conformidade,

Julgo improcedente o pedido de fls. 2 de Maria Antônia Carneiro de Morais Talino, e

procedente a dúvida suscitada pelo Sr. Oficial do 7.º Ofício de Imóveis. – Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1940. – Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES ”.

b) Objeto. – O objeto do contrato de enfiteuse consiste exclusivamente em terras não cultivadas ou terrenos que se destinem a edificação (Cód. Civil, art. 68 0).

Como se vê, segundo o sistema do Código Civil, êsse objeto é assaz limitado: repele a

compreensão dos bens móveis e restringe bastante o número dos bens imóveis que podem ser incluídos no instituto.

Assim, as terras cultivadas, ou edificadas, não podem ser objeto de enfiteuse e sim de arrendamento (1); nem também permite o citado dispositivo sequer qualquer dúvida sôbre a impossibilidade de um curso dágua tornar-se dêle objeto, questão debatida no direito italiano.

c) Pensão, ou fôro, anual. – Relativamente à natureza da pensão ou fôro anual, divergem os juristas, divergência essa que se prolonga afetando a questão de saber se o adquirente do direito do enfiteuta está onerado com a obrigação de pagar o fôro devido pelo antecessor.

Uns, consideram-no simples obrigação; outros, tornam-no como um ônus real.

Pothier considerou-o um ônus real diferente dos demais, enquanto nas servidões há um ato

passivo da parte do serviente em relação ao fôro, o senhorio não pode gozar do seu direito, senão em conseqüência de um ato positivo do obrigado, isto é, o pagamento.

N. Coviello (2), propõe uma distinção: o direito ao fôro é um direito real, enquanto constitui uma diminuição ou uma limitação do valor do fundo imobiliário dado em enfiteuse, e é real imobiliário

pois que recai sôbre o imóvel; é uma prestação, e pessoal mobiliário porque o seu objeto é uma prestação em dinheiro.

Como quer que seja, se paira a discórdia sôbre a natureza jurídica do fôro, não se verifica o mesmo em relação à sua função econômi-

(1) – Clóvis, ob. cit., III, pág. 240; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 48).

[277]

co-jurídica, pois são acordes todos em afirmar que o fôro representa o correspetivo de gôzo que

o senhorio dá ao enfiteuta, e que êste paga por esta razão, e não mais em reconhecimento do domínio direto, como asseveravam os antigos, realizando, assim, a mesma função exercitada pelo preço, no contrato de compra e venda (3).

Dídimo da Veiga (4), apoiado em Lafaiete, ou invocando a lição dêste, diz que o “enfiteuta paga

o fôro não como preço das vantagens materiais, que aufere da coisa alheia (5), mas, por não ter a substância da coisa em seu domínio e reconhecer que tal substância cabe ao senhor direto – que só pela consolidação faz-se proprietário integral (6). Dessa concepção de feição medieval,

em que o fôro representava um simples sinal do reconhecimento do domínio do senhorio, já se não deverá mais cogitar (7); e Lafaiete (8), se afirma que “a pensão não representa o preço dos frutos e vantagens que o enfiteuta deduz da coisa aforada”, e isto, acrescenta, porque seria

iníquo forçá-lo a retribuir a outrem emolumentos e vantagens que são o produto da sua atividade”, por outro lado, traça a função da pensão como sendo “compensar a cessão do imóvel para ser aproveitado pelo enfiteuta”, pôsto que adicione a essa finalidade a de igualmente positivar, de um modo suscetível e interessante, o reconhecimento do domínio do senhorio.

Três os requisitos substanciais do fôro: a) deve ser anual; b) certo e invariável; c) consistente em quantia certa em dinheiro.

501. FORMA DE CONTRATO DE ENFITEUSE. – O contrato de Enfiteuse, sendo constitutivo de

um direito real, exige substancialmente, a escritura pública, se o imóvel de que fôr por objeto tiver valor superior a um mil cruzeiros (Cód. Civ., art. 134, n.º II). Não pode existir enfiteuse convencional, sem escritura pública, quando o contrato excede à taxa da lei (Arq. Jud., vol. 29).

Ante o sistema do Código Civil, torna-se fora de dúvida a invalidade do contrato de enfiteuse, estabelecido verbalmente, ou por instrumento particular, se o imóvel fôr de valor superior à taxa legal.

502. LIMITES À LIBERDADE CONTRATUAL, NO CONTRATO DE ENFITEUSE. – Os limites à liberdade contra-

(2) – N. Coviello, Delle Successioni nei debiti, pág. 60. (3) – Pisano Ceraolo, ob. cit., n.º 14, pág. 105; Pacif ici-Mazzoni, ob. cit., II, pág. 495. (4) – Dídimo da Veiga, ob. cit., IX, part. 1.ª, pág. 80.

(5) – Lafayette, Direito das Coisas, § 139. (6) – J. M. Carv. Santos, ob. cit., IX, pág. 40. (7) – Biagio Bruggi, ob. cit., II, pág. 45; Lafayette, ob. cit., pág. 352.

[278]

tual foram fixados, em relação à enfiteuse, no art. 693 do Código Civil, prescrevendo, quanto ao direito de resgate a irrenunciabilidade do mesmo, bem como vedando o contrato possa “contrariar as disposições imperativas dêste capítulo”

Assim podem ser consideradas disposições vedadas: a) qualquer condição que afete a estrutura do instituto, obliterando algum dos seus elementos essenciais; b) cláusulas que firam a orde m pública e os bons costumes, como sejam, as que visassem a modificação da ordem sucessória

ou que impedissem a transmissão causa-mortis (1); c) a cláusula que prejudicasse o caráter do fôro, tornando-o incerto; d) a que negasse ao enfiteuta o direito de abandono, previsto no art. 687, do Código Civil.

503. TRANSCRIÇÃO DA ENFITEUSE. – Como todo direito real, a enfiteuse carece ser transcrita, para que se possa considerá-la dotada do atributo de realidade.

Verificando o Oficial do Registo que a escritura contém todos os elementos integrantes da enfiteuse, pode fazer a transcrição.

Mas é bastante uma só transcrição inicial (1).

Quer isso dizer que, instituída mediante contrato, a enfiteuse, enquanto não cancelada a sua transcrição, subsiste com tal, através de tôdas as alterações dos titulares de um e outro direto.

Quanto a êles, o que se tem a fazer a partir da transcrição inaugural, constitutiva, é transcrever

os respectivos títulos de transferência, inter-vivos ou causa-mortis, mas isso sem afetar a primitiva e originária t ransição, que serve de tronco comum a êsses demais atos. Quando o enfiteuta morre ou aliena o fundo enfitêutico, o contrato não se rompe; transfere-se ao sucessor.

O direito real estabelecido inicialmente entre o senhorio e o enfiteuta cont inua; e a transcrição que se exige é para a transferência do direito real inerente ao enfiteuta ou ao senhorio, aos seus respectivos sucessores, desde que não seja exercitado o direito à preferência legal. Em resumo:

não é preciso mais outra transcrição para a manutenção da enfiteuse, mas apenas para a transferência do direito de cada um dos titulares a terceiros.

504. TRANSCRIÇÃO DO DIREITO DE RESGATE. – O direito de resgate ficou assim constituído, no art. 693 do Código Civil:

(1) – Francesco Ercole, voce Enfiteusi, in Scialoja, Dizzionario Pratico. (1) – Luzzati, ob. cit., I, n.º 131; N. Coviello, ob. cit., II, página 252.

[279]

“Todos os aforamentos, salvo acordo entre as partes, são resgatáveis trinta anos depois de constituídos, mediante pagamento de vinte pensões anuais pelo foreiro, que não

poderá no seu contrato renunciar o direito ao resgate, nem contrariar as disposições imperativas dêste capítulo”.

Tem sido debatido, na doutrina italiana, se êsse direito de resgate está subordi nado à transcrição. Em verdade, o dispositivo se refere a resgate do fôro, mas cumpre analisar os efeitos jurídicos dêste direito para focalizar o seu verdadeiro sentido.

N. Coviello (1) nega a possibilidade ou a necessidade de transcrição, mas parte do po nto de vista de que, na enfiteuse, o verdadeiro proprietário é o enfiteuta. Destarte a conclusão sòmente pode ser esta: o resgate não implica para o enfiteuta a aquisição de um direito real, pois quem

tem a propriedade de uma coisa não pode ter sôbre ela outros direitos reais de gôzo. O resgate, portanto, na opinião de N. Coviello, não produz outro efeito que não o de libertar o enfiteuta de um ônus. Diz êle: - “trata-se de um ato unilateral além disso que, importando extinção de um

direito, mas de quem deve suportar o ônus correspondente; não pode ser equiparado à renúncia, a qual se bem que importe extinção e não aquisição ou transferência de direito, também é subordinada à publicidade”.

Contesta igualmente que o resgate seja uma promessa de venda, porquanto esta pressupõe um segundo contrato, o que não ocorre no resgate.

De Pirro (2), ao contrário, parte de ponto de vista diverso e refuta os argumentos de N. Coviello.

Para êle o resgate é substancialmente uma verdadeira e própria venda da propriedade do fundo objeto de enfiteuse; para o enfiteuta uma compra da mesma por um preço fixado legalmente.

Os elementos da compra e venda – objeto, preço e consentimento – ficam originàriamente prefixados, e quando o enfiteuta manifesta a sua vontade de resgatar, nada mais à integração do ato.

Revidando o primeiro argumento de N. Coviello, sem contestar a veracidade do princípio formulado, contudo salienta que isso não impede o duplo fenômeno jurídico de sucessão e confusão, que tanto se pode dar, em relação ao titular do direito de propriedade, como de qualquer outro.

(1) – N. Coviello, ob. cit., n.º 309. (2) – De Pirro, ob. cit., n.º 40 e segs.

[280]

Quanto ao resgate constituir uma verdadeira venda, sustenta De Pirro que a circunstância da lei determinar as condições não obsta que se considere o instituto, como uma compra e venda.

Para Biagio Bruggi (3), porém, quando a lei prefixa o preço do resgate pretende tutelar o interêsse do proprietário e o do enfiteuta no exercício dêsse direito, e, a menos que haja uma convenção entre as partes, não se pode dizer que surja um negócio bilateral, ou uma compra e venda.

Na sua definição, o resgate, princípio de ordem pública, é um direito concedido pela lei ao enfiteuta, para que êste adquira, mediante o pagam ento de um determinado preço, a propriedade do fundo enfitêutico.

Pacifici-Mazzoni (4), considera o direito de resgate como uma desapropriação forçada do

domínio do senhorio em favor do enfiteuta, justificada no interêsse geral da propriedade plena e livre.

De Ruggero (5), entende haver no resgate uma venda sob dupla modalidade: coacta, em relação ao senhorio e voluntária, quanto ao enfiteuta.

Importa muito ao problema da transcrição a natureza do direito, mas, no caso presente, o que prepondera são os efeitos decorrentes do direito de resgate.

Ato unilateral ou bilateral, compra e venda ou desapropriação forçada, o que há de persistente e claro é tratar-se de um direito que produz, incontestàvelmente, a transferência do domínio direto para o enfiteuta, dando-se, precisamente, o fenômeno assinalado por De Pirro, ou seja a sucessão e a confusão.

E‟ uma transferência coativa, precisa Pietro Germani (6), que tem a sua fonte mediata na vontade do próprio senhorio, ao estabelecer a enfiteuse.

Partindo, por conseguinte, do ponto de vista dos efeitos do direito de resgate, produzindo êle uma transferência de domínio, é irrecusável, dentro do nosso sistema, tratar-se de um ato suscetível de transcrição.

505. MODO DE EFETUAR A TRANSCRIÇÃO DO RESGATE. – O regime, na ausência de qualquer modificação no contrato originário de enfiteuse, deve obedecer às condições estipuladas no

(3) – Biagio Bruggi, ob. cit., II, pág. 637.

(4) – Pacif ici-Mazzoni, Tratatto della Vendita, II, pág. 510. (5) – De Ruggero, voce Affrancazione, in Svialoja, Dizz. Pratico. (6) – Pietro Germani, voce Enfiteusi, in Nuovo Digesto Italiano, V, pág. 408.

[281]

art. 693 do Código Civil, notando-se que qualquer modificação contratual a respeito dêsse direito tem que estar conformizada com as disposições imperativas inerentes ao resgate, que são de ordem pública.

Vencido o prazo legal, podem o enfiteuta e senhorio acordar sôbre a realização do resgate.

Assim sendo, deverá ser transcrita a escritura por fôrça da qual o ex-titular do domínio direto declare recebido a importância do resgate e passar ao enfiteuta o domínio direto.

Na falta de uma convenção dessa natureza, só por meio de sentença do juiz reconhecendo o direito do enfiteuta e o pagamento realizado por meio de depósito judicial da quantia apurada, de acôrdo com o critério legal ou mesmo do contrato originário, se êste houver previsto e regulado o seu exerc ício (10).

De vez que, conforme acentuamos, se trata de uma operação jurídica que envolve uma transferência e uma confusão, nada há mais do que transcrever o ato como do domínio pleno do ex-enfiteuta, cancelando o direito real de enfiteuse, em virtude da consolidação operada pela confusão do duplo domínio num só titular.

Conforme determina o art. 245 “a transcrição do t ítulo de transmissão do domínio direto aproveita ao titular do domínio útil, e vice-versa, e será feita no livro 3, embora a constituição originária da enfiteuse tenha de ser inscrita no livro 4”.

Com maioria de razão, no caso de resgate enfitêutico, a transcrição do ato convencional ou da sentença que o reconhecer deve ser feita no livro 3.

506. VENDA DO PRÉDIO ENFITÊUTICO E HIPOTECA. – Sôbre a transcrição da alienação do imóvel enfitêutico, será objeto de apreciação na parte relativa à compra e venda de bens imóveis (cfr. n.º 529). Em relação à hipoteca e às questões oriundas do direito hipotecário em conflito com o direito enfitêutico, conferir 2.º volume, n.º 282.

507. EXTINÇÃO DA ENFITEUSE. – Em relação à extinção da enfiteuse, enumera o Código Civil as seguintes causas:

a) Pela natural deterioração do prédio aforado, quando chegue a não valer o capital correspondente ao fôro e mais um quinto dêste;

b) pelo comisso, deixando o foreiro de pagar as pensões devidas, por três anos, consecutivos, caso em que o senhorio o indenizará das benfeitorias necessárias;

c) falecendo o enfiteuta, sem herdeiros, salvo o direito dos credores (Cód. Civ., art. 692, ns. I a III).

[282]

Além dêsses modos extintivos, pode-se aduzir os seguintes:

a) resolução do domínio, se o direito daquele que constituiu a enfiteuse estava subordinado a alguma condição resolutiva;

b) pelo abandono do fundo enfitêutico, por parte do enfiteuta, nos casos dos arts. 687 e 691 do Código Civil;

c) pela renúncia;

d) pela confusão, tornando-se o senhorio herdeiro do enfiteuta ou vice-versa;

e) prescrição da enfiteuse originária para dar vida a uma nova enfiteuse, mediante posse trintenal que uma pessoa diversa do enfiteuta originário tenha do bem enfitêutico (1).

Em todos os casos acima mencionados, o cancelamento do direito do enfiteuta, ou outra qualquer operação a ser realizada no Registo de Imóveis, com fundamento em qualquer dos referidos modos extintivos, sòmente pode ser efetuada, ou mediante convenção de ambas as partes interessadas ou sentença judicial.

Um caso, entretanto, comporta exceção e o cancelamento e conseqüente transcrição poderão ser realizados por fôrça de um ato unilateral: isso acontece na hipótese de abandono, previsto no art. 687 do Código Civil, por fôrça do qual, no caso de esterilidade ou destruição parcial do

prédio enfitêutico, bem como perda total de seus frutos, pode o enfiteuta abandonar o prédio ao senhorio direto.

“e, independentemente do seu consenso, fazer inscrever o ato da renúncia”.

Êste direito está contudo subordinado ao disposto no art. 691, que prescreve:

“Se o enfiteuta pretender abandonar gratuitamente ao senhorio o prédio aforado, poderão opor-se os credores prejudicados com o abandono, prestando caução pelas pensões futuras, até que sejam pagos de suas dívidas”.

Pode o domínio direto extinguir-se por usucapião em favor do enfiteuta?

Com apoio em Spencer Vampré, J. M. Carv. Santos (2), inclui entre os modos extintivos da enfiteuse o usucapião, seja em favor do enfiteuta seja em favor do senhorio.

A questão, porém, é controvertida, além de antiga.

(1) – Pacif ici-Mazzoni, ob. cit., pág. 554; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 101. (2) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., loc. cit.

[283]

Entre os glossadores discutia-se sôbre se um enfiteuta que por 30 ou 40 anos deixa de pagar o fôro, tem em seu favor o usucapião.

Acúrcio entendia não haver usucapião: quia dominus possidet civiliter; Bartolo, ao contrário, considerava uma circunstância que conduzia a prescriptio libertatis.

Biagio Bruggi (3), entende que se o fato simples do não pagamento é ineficaz para usucapiar o imóvel como livre, um não pagamento motivado é uma genuína oposição contra o direito do

proprietário. Ainda Biagio Bruggi se refere à hipótese do usucapião decenal, em que a posse do enfiteuta tenha sido invertida por fôrça de causa originária de terceiro.

Esta é a opinião de D Pirro (4), o qual ainda indica uma numerosa jurisprudência tôda ela uniforme, no sentido de que “sem a inversão do título, o enfiteuta e seus sucessores universais

não podem obter a prescrição do domínio direto, ainda que por muitos anos o senhorio haja cessado de exigir o pagamento do fôro”.

508. SUBENFITEUSE. – Prescreve o art. 694 do Código Civil:

“A subenfiteuse está sujeita às mesmas disposições que a enfiteuse”.

A figura da subenfiteuse não é perfeitamente nítida. Importa, portanto, tanto quanto possível fixá-

la, através da doutrina, a fim de se estabelecer se está ela subordinada ou não ao Registo Imobiliário.

Explica Dídimo da Veiga (1), que o instituto deve ser entendido sem se incidir na forma teratológica consistente em transformar o domínio útil do enfiteuta em domínio direto.

Mas não há dúvida que se trata de um direito real subordinado ao Registo Imobiliário, nas mesmas condições da enfiteuse.

A doutrina preponderante em nosso direito é a de que a constituição da subenfiteuse importa na transferência, por inteiro, do domínio útil, ficando o subenfiteuta subrogado nos direitos do enfiteuta (2), considerando-se, por êsse modo, a subenfiteuse, como uma enfiteuse de segundo grau.

(3) – Biagio Bruggi, ob. cit., II, pág. 542. (4) – De Pirro, ob. cit., n.º 78. (1) – Dídimo da Veiga, ob. cit., IX, parte 1.ª, pág. 145.

(2) – Lafayette, ob. cit., § 137; Carlos de Carvalho, Dir. Civ., art. 567; Lacerda de Almeida, ob. cit., § 94.

[284]

ANTICRESE

509. ANTICRESE. – De acôrdo com os textos do Direito Romano, três palavras serviam para indicar as modalidades dos direitos reais de garantia: o penhor, a hipoteca e a anticrese.

O pignus, porém, era tomado numa dupla acepção: servia para indicar o gênero, compreendendo não sòmente o pignus em sentido restrito, como também a hipoteca e a anticrese.

Em sentido restrito, pignus é o direito sôbre uma coisa móvel consignada ao credor.

Hipoteca, o direito sôbre a coisa móvel ou imóvel, não entregue ao credor, seja frutífera ou infrutífera.

Anticrese, o direito sôbre uma coisa imóvel frutífera entregue ao credor, a fim de que torne seus os frutos, em paga dos juros do seu crédito.

A anticrese foi instituída em Roma para realizar certas vantagens do penhor impossíveis de serem atingidas pela hipoteca. Permanecendo o imóvel na posse do devedor hipotecário, o

pagamento dos juros da dívida dependia da vontade do devedor, que ficava com a percepção dos frutos.

Assim, a anticrese conseguia êsse objetivo, independente de um ato do devedor.

A anticrese é um instituto fortemente combatido, desde o Direito Romano e principalmente na Idade Média, pelos canonistas, sempre em luta com tôdas as criações jur ídicas tendentes a favorecerem a usura.

Atualmente ainda é considerada como portadora de defeitos gravíssimos, destacando-se o de

deslocar a posse do agricultor para o prestamista; constituir embaraço à livre circulação do bem onerado; esgotar para o devedor a possibilidade de novos créditos sôbre o imóvel onerado pela anticrese, etc.

510. CONCEITO DE ANTICRESE. – Lacerda de Almeida (1), definiu a anticrese como sendo o direito real de perceber os frutos em desconto da dívida segundo as regras gerais da imputação

(1) – Lacerda de Almeida, ob. cit., § 117.

[285]

em pagamento. Clóvis (2), definiu-a como sendo o direito real sôbre imóvel alheio, em virtude do qual o credor obtém a posse da coisa, a fim de perceber-lhe os frutos e imputá-los no pagamento da dívida, juros e capital, sendo, porém, permitido estipular que os frutos sejam, na sua totalidade, percebidos à conta de juros.

A. Fraga (3), reputa a definição de Clóvis mais completa, construindo, a seu turno, a seguinte definição, de acôrdo com o art. 805 do Código Civil: o contrato pelo qual o devedor ou outrem por êle, entregando ao credor um imóvel, cede-lhe o direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos e rendimentos.

511. NATUREZA DA ANTICRESE. – Discutem os juristas sôbre se a anticrese produz um direito real ou simplesmente um direito pessoal.

Laurent e Troplong sustentam ser a anticrese um direito meramente pessoal, ao passo que Pothier (1), considera-a um direito sôbre a coisa tanto quanto a hipoteca.

Entre nós, a questão perde de interêsse, completamente, porquanto o Código Civil considerou a

anticrese como um direito real (art. 674, n.º VIII) e não sòmente isso, como ainda essa realidade evidencia-se, à vista dos efeitos jurídicos de que é portadora, como sejam:

a) estabelece para o credor anticrético o direito de retenção;

b) pode opor o seu crédito ao comprador do imóvel onerado;

c) o mesmo pode fazer em relação aos credores quirografários e hipotecários do devedor que concedeu a anticrese.

Como conseqüência de ser um direito real imobiliário, tem que se admitir os seguintes efeitos:

1.º) é um direito imobiliário e como tal deve ser tratado;

2.º) pode o credor exercer ações possessórias e reivindicatórias contra o adquirente do imóvel onerado e credores quirografários e hipotecários posteriores à anticrese;

3.º) a ação que nasce da anticrese é igualmente uma ação imobiliária;

4.º) o marido, qualquer que seja o regime de bens, não pode constituir a anticrese sem o consentimento e a outorga da mulher (2).

512. PRINCIPAIS DIFERENÇAS E ANALOGIAS ENTRE A ANTICRESE E OUTROS INSTITUTOS JURÍDICOS. –

(2) – Clóvis, ob. cit., III, pág. 389. (3) – A. Fraga, Direitos Reais de Garantia, pág. 303. (1) – Pothier, Hipothéques, n.º 231-233.

(2) - A. Fraga, ob. cit., pág. 313.

[286]

A anticrese mantém pontos de analogia e de diferenças com os seguintes institutos jurídicos: a) cessão de alugueres ou rendas de imóveis; b) penhor; c) hipoteca; d) o usufruto.

a) Cessão de alugueres ou renda de imóveis. – Na cessão de alugueres há um ponto comum com a anticrese: é que ambas conferem ao titular do respectivo direito a percepção dos frutos do

locatário para ir imputando no pagamento, mas a anticrese produz a posse do bem, o que não se verifica na cessão, e é dotada de direito real, enquanto a cessão não ministra senão uma relação de ordem pessoal.

b) Penhor. – Com o penhor há uma analogia mais estreita, sobretudo porque ambos são um

direito real e produzem o direito de retenção. A diferença reside apenas no objeto; o penhor versa sôbre bens móveis, ao passo que a anticrese tem por objeto um bem imóvel.

c) Hipoteca. – Com a hipoteca também existem pontos de analogia e de diferenças. Assim, há um caráter comum ao penhor, à anticrese e à hipoteca: é que todos três são um direito real acessório.

Como a hipoteca, a anticrese é um direito real imobiliário e ambos se constituem sob a mesma forma jurídica. Distinguem-se pelos efeitos; enquanto a hipoteca conserva o imóvel sob a posse do devedor, a anticrese a desloca para a do credor.

d) Usufruto. – A anticrese se distingue do usufruto; a) pela sua origem, pois o usufruto pode

decorrer da lei ou da vontade das partes, ao passo que a anticrese sòmente decorre de um ato de vontade; b) o usufrutuário é obrigado a dar caução, como garantia da posse, ao passo que o credor anticresista obtém a posse independentemente de qualquer requisito; c) o usufruto não poder ser cedido, ao passo que a anticrese, como a hipoteca, pode ser objeto de cessão.

513. MODALIDADES DA ANTICRESE. – A anticrese pode, quanto à sua eficácia, ser

convencionada sob forma comum ou a têrmo: no primeiro caso, quando se ajusta que o credor entre logo na posse do imóvel, passando a administrá -lo e a perceber os frutos respectivos; no segundo caso, o vínculo anticrético fica subordinado, quanto ao início de sua atuação, ao não pagamento da dívida, ao dia do vencimento.

A anticrese, segundo o disposto no art. 805 e § 1.º do Código Civil, pode, ainda, em relação à sua função jurídica, ser considerada como compensativa e extintiva.

Ela é compensativa, se se estipular que os frutos e rendimentos do imóvel, na sua totalidade, sejam percebidos pelo credor, sòmente à conta de juros (§ 1.º, do art. 805); é extintiva, quando os frutos e rendimentos do imóvel são percebidos em compensação d a dívida,

[287]

entendendo-se esta em sua totalidade, isto é, capital e juros (Cód. Civ., art. 805).

514. INDIVISIBILIDADE DA ANTICRESE (1). – Como a hipoteca, a anticrese é indivis ível, seguindo, assim, a regra dos arts. 757 e 758 do Código Civil.

515. OBJETO DA ANTICRESE. – Sòmente pode ser objeto da anticrese um bem imóvel, suscetível de alienação.

A primeira situação que se apresenta é a do credor anticrético, isto é, permitir a lei (§ 2.º, do art. 805 do Código Civil) que o imóvel hipotecado possa ser dado em anticrese pelo devedor ao

credor hipotecário, assim como o imóvel sujeito a anticrese pode ser hipotecado pelo devedor ao credor anticrético.

Neste caso, o credor terá, além de transcrever a anticrese, de pedir a inscrição da hipoteca.

Uma questão que se desdobra do preceito do §2.º, do art. 805, do Código Civil: pode o devedor hipotecário dar em anticrese o imóvel onerado a outrem que não o credor hipotecário, ou vice -

versa, pode o devedor anticrético dar em hipoteca o imóvel onerado a outrem que não o credor anticrético?

Clóvis (1), responde no sentido da possibilidade da coexistência da anticrese anterior com a hipoteca posterior, diante do texto do art. 808 do Código Civil, o qual faculta ao credor anticrético

poder vindicar os seus direitos contra os credores hipotecários posteriores à transcrição da anticrese (2).

J. M. Carvalho Santos (3), atribui, por engano, a Clóvis um sentido diferente do que o grande mestre pretendeu, isto é, combate-o sob o fundamento de ser Clóvis de parecer que a anticrese não pode ser concedida a outrem que não o credor hipotecário e vice-versa.

O equívoco do supracitado autor tornou-se-nos evidente, depois de compararmos não sòmente o texto do comentário de Clóvis ao art. 805, §2.º, como ainda combinando-o com o do art. 808.

(1) NOTA – Remetemos o leitor, em relação ao objeto, requisitos e modos constitutivos e extintivos da anticrese, à parte dêste Tratado, onde tratamos da Hipoteca (2.º volume), cujos princípios gerais são inteiramente aplicáveis aqui, apenas

nos referindo aos pontos onde são notadas algumas diferenças. (1) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., III, pág. 390. (2) – No mesmo sentido: A. Dionísio da Gama, Direitos Reais de Garantia, pág. 116, not. 279. (3) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., X, pág. 239.

[288]

516. PESSOAS QUE PODEM DAR EM ANTICRESE. – A regra geral é a prevista no art. 756 do Código Civil: “só aquêle que pode alienar, poderá hipotecar, dar em anticrese, ou empenhar”.

Referindo-se ao dispositivo supracitado, com muito acêrto ensina Afonso Dionísio da Gama (1), que a capacidade para dar em anticrese é determinada pela capacidade de se obrigar. Diz êle: “na verdade, pessoas há que podem contrair obrigações, mas que não podem alienar imóveis. Assim, pois, a capacidade de alienar contém a de dar em anticrese”.

Entretanto, J. M. Carvalho Santos e Afonso Fraga (2), entendem que o usufrutuário e o enfiteuta

podem dar em anticrese o imóvel submetido ao seu direito real, contanto que a sua duração fique limitada ao tempo de existência do seu direito.

Quanto ao enfiteuta, dada a natureza do seu direito, não temos dúvida em admitir essa possibilidade.

Com o usufruto a situação é diferente. Já vimos (3), que o art. 717 do Código Civil não permite a

cessão do usufruto a outra pessoa que não o nu proprietário, facultando, porém, a cessão do seu exerc ício a quem quer que seja.

Outrossim frisamos que essa cessão de exercício não conferia ao cessionário nenhuma relação de direito real.

Ora, se assim é, como admitir-se que o usufrutuário possa conceder, pela anticrese, um direito

real a um terceiro, quando apenas lhe é facultado ceder o exercício do seu direito sob um aspecto meramente de relação de direito pessoal, que não pode ser transcrito?

Por conseguinte, sòmente num caso pode se permitir que o usufrutuário dê em anticrese o imóvel em usufruto: quando o credor fôr o próprio nu proprietário.

517. TRANSCRIÇÃO DA ANTICRESE. – E‟ pela transcrição que a anticrese recebe a fôrça de

direito real de garantia. E é ainda pela transcrição que se estabelece a eficácia da anticrese, em relação aos créditos anteriores e posteriores à sua constituição.

E‟ também pela data do registo que se conhece o grau de prioridade entre a anticrese e a hipoteca, quando haja conflito entre as duas relações creditórias reais.

São os seguintes os efeitos da transcrição, segundo A. Fraga (1).

(1) – A. Dionísio da Gama, ob. cit., n.º 108.

(2) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., pág. 231; Afonso Fraga, ob. cit., pág. 328. (3) – Cfr. n.º 454, letra “B”, supra. (1) – A. Fraga, ob. cit., pág. 385.

[289]

a) reveste de publicidade o ato jurídico;

b) opera a sua especialização;

c) dá nascimento ao direito resultante do ato;

d) torna o ato oponível a terceiros desde a data da sua transcrição.

A transcrição da anticrese é feita no livro 4 e declarará, também, a época do pagamento e a forma de administração (art. 251).

518. EXTINÇÃO DA ANTICRESE. – A anticrese extingue-se: a) pela venda, observada a regra

do art. 808, §1.º do Código Civil; b) pagamento da dívida; c ) remissão da dívida; d) renúncia do direito; e) novação; f) compensação; g) perda ou destruição do imóvel; h) consolidação do

domínio; i) condição resolutiva; j) confusão. A extinção do ônus anticrético opera -se, no Registo Imobiliário, mediante cancelamento da respectiva transcrição.

[290]

[291]

TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE IMÓVEL

519. TÍTULOS TRANSLATIVOS DA PROPRIEDADE IMÓVEL ENTRE-VIVOS, PARA SUA

AQUISIÇÃO E EXTINÇÃO. – O n.º III, da letra b, do art. 178 refere-se à transcrição dos títulos translativos da propriedade imóvel, entre-vivos, para sua aquisição e extinção. Trata-se de uma expressão usual, porém ambígua, que precisa ser devidamente esclarecida. Título translativo é a

própria forma do ato, mediante a qual algum direito deve ser transmitido. Não se trata do ato, mas da forma dêste, do modo pelo qual surge.

Ora, ato translativo, em sentido geral, é todo aquêle que encerra uma disposição de um direito, quer mediante transferência, quer mediante constituição de um ônus. Mesmo nas legislações

filiadas ao grupo francês, em que o contrato por si só é suscetível de produzir uma t ransferência do domínio, isto é, nas legislações onde prepondera a unidade formal, distingue-se o ato translativo do contrato, considerando-se o primeiro como um ato autônomo, caracterizado pelo

adimplemento da compra e venda, ao passo que o contrato de compra e venda é uma relação obrigatória, distinta do primeiro, relativamente à forma, à autolimitação da vontade e às causas particulares da invalidade do ato (1).

Entre nós, onde a transferência do direito imobiliário depende substancialmente de uma segunda

formalidade, não existindo unidade formal, não há como se denominar de título translativo ao instrumento inerente ao ato de disposição do direito, pois êle, em si mesmo, nada transfere, e tão sòmente é a causa jurídica do ato translativo: a transcrição no Registo de Imóveis.

Conseguintemente, deve-se entender a expressão legal “t ítulos translativos da propriedade

imóvel”, como sendo o ato jurídico de disposição do direito, subordinado, ainda, à transcrição: títulos para a transferência e não títulos translativos, pròpriamente ditos.

(1) – Gino Gorla, Compra Vendita, págs. 17-19.

[292]

520. ATOS AQUISITIVOS, ENTRE-VIVOS, DA PROPRIEDADE IMÓVEL. – Os atos compreendidos no n.º III, da letra b) do art. 178 ora comentado, podem ser assim classificados:

I – Compra e Venda.

II – Permuta.

III – Dação em pagamento.

IV – Doação.

V – Contribuição de um imóvel para o fundo social.

VI – Dote, quando por cláusula expressa o marido adquire o domínio (art. 270 do Código Civil) ou quando importar alheação (Cód. Civil, art. 292).

[293]

COMPRA E VENDA

521. COMPRA E VENDA. – A compra e venda é um contrato bilateral por excelência, do ut des. O Código Civil no artigo 1.122, assim deixou assentes as suas características:

“Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”.

Como se vê, o contrato de compra e venda, segundo a nossa legislação, manteve quase o mesmo perfil da compra e venda no Direito Romano.

Neste, a criação de um vínculo puramente pessoal de obrigação constituía a essência do

contrato, considerando-se a transferência da propriedade como um elemento destituído de valor essencial, pois o vendedor não assumia a obrigação de tornar o comprador proprietário da coisa vendida (1); entre nós, embora haja a obrigação de t ransferir o domínio, o contrato de compra e

venda não gera nenhum direito real, o qual sòmente surge, na venda imobiliária, após a transcrição do contrato no Registo de Imóveis.

522. REQUISITOS ESSENCIAIS DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA. – Res, pretium et consensus, são os três requisitos do contrato de compra e venda, quanto à sua substância;

quanto à sua forma, o contrato de compra e venda exige uma solenidade especial, no que diz respeito à propriedade imobiliária que, de acôrdo com a natureza do nosso trabalho, constitui o único objeto do nosso presente estudo.

523. A PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA, COMO OBJETO DO CONTRATO DE COMPRA E

VENDA. – A primeira condição é a de que o imóvel seja uma coisa incluída no comércio, isto é, suscetível de alienação, em estado de permanecer e de circular na propriedade dos homens, quis quis habere, vel possidere, vel persequi potes.

Fora do comércio são considerados os imóveis que, por sua própria natureza, assim são reputados, como os mares, os rios, e ainda

(1) – Pacif ici-Mazzoni, Cód. Civ. Comm. XII, pág. 5.

[294]

os que, nada obstante postos naturalmente in commercio, são excepcionalmente tidos como fora dele, v. g., os bens inalienáveis.

Êstes últimos são, pois, os mais importantes, pelo que se torna necessário enumerá -los.

A inalienabilidade resulta da lei ou do ato jurídico: no primeiro caso, quando a lei determina expressamente a inalienabilidade de determinados bens, pertencentes a pessoas que visa

proteger por aquêle meio; no segundo, quando, por ato entre-vivos ou causa-mortis se estipula a condição de inalienabilidade.

a) Bens dotais. – Dentre os bens por lei considerados inalienáveis, figuram os imóveis dotais,

salvo quando o dote importar alheação, pois, nesse caso, o marido considerar -se-á proprietário, e poderá dispor dos bens dotais, correndo por sua conta os riscos e vantagens, que lhes sobrevierem (Cód. Civ. art. 292), sendo certo, porém, que essa situação não exclui a

necessidade da outorga uxória, requisito que prepondera, qualquer que seja o regime de bens (Código Civil, art. 235, n.º I).

Por conseguinte, fora o caso supracitado, o princípio geral é o de que os imóveis dotais são sempre inalienáveis.

A regra não é absoluta. A lei estabeleceu exceções, permitindo a alienação de tais imóveis, mediante hasta pública e autorização judicial, nos seguintes casos:

I – Se, de acôrdo, o marido e mulher quiserem dotar seus filhos comuns.

II – Em caso de extrema necessidade, por faltarem outros recursos para subsistência da família.

III – No caso da existência de dívidas da mulher, anteriores ao casamento, desde que não existam ou não bastem ao pagamento das mesmas, os bens extradotais, ou, em falta dêstes, os frutos dos bens dotais, e finalmente os móveis dotais, caso em que respondem, em último lugar, os imóveis dotais (Cód. Civ., art. 299, §2.º).

IV – Para reparos indispensáveis à conservação de outro imóvel ou imóveis dotais.

V – Quando se acharem indivisos com terceiros, e a divisão fôr impossível ou prejudicial.

VI – No caso de desapropriação por utilidade pública.

VII – Quando estiverem em lugar distante do domicílio conjugal e por isso fôr manifesta a conveniência de vendê-los (Código Civil, art. 293).

b) Bem de Família. – O Bem de Família, que tem por objeto um imóvel destinado à residência da família (c fr. 2.º volume n.º 254 e segs.) traz, como precípuo efeito, a inalienabilidade dêsse mes-

[295]

mo imóvel (Cód. Civ., art. 72). Assim, sòmente mediante consentimento dos interessados e de

seus representantes é que pode ser vendido. Também é inalienável o terreno em que assente o edifício de dois ou mais pavimentos (art. 2.º do decreto n.º 5.481, de 15 de fevereiro de 1928, modificado pelo decreto-lei n.º 5.234, de 8 de fevereiro de 1943 e lei n.º 385, de 5 de junho de 1948).

c) Cláusula de não alienar. – Pode um imóvel transformar-se em bem inalienável, por fôrça de convenção? Fora de dúvida que, nas doações e nos testamentos, a cláusula de inalienabilidade é perfeitamente admissível. Mas sê-lo-á igualmente, nos atos inter-vivos a título oneroso? O

primeiro doutrinário, sem discrepância consagrado pelos autores, é o ser impotente a vontade do homem para atribuir às coisas o caráter de inalienáveis (1), de modo a tornar nulo qualquer ato de disposição. Uma cláusula nesse sentido seria considerada jurìdicamente impossível.

Conseguintemente inútil pactuar-se uma tal restrição ao direito de propriedade, fora dos casos por lei considerados suscetíveis de tais disposições. De modo nenhum poderia figurar numa transcrição ou numa inscrição, e nenhuma eficácia lhe comunicaria, se realizada.

O que se tem permitido é a inalienabilidade, como pura obrigação de não fazer. Repele-se a

restrição com o caráter de direito real, para admiti-la como uma relação pessoal, de obrigação de não fazer, tal qual a consagrou o art. 137 do Cód. Civ. alemão. Mas, mesmo nesse caso, é inadmissível a sua inclusão no Registo de Imóveis, por não se tratar de um ônus real.

d) Cessão de direito hereditário. – Em relação à cessão de direitos hereditários cumpre salientar

que, nada obstante ser considerado imobiliário o direito à sucessão aberta (c fr. 2.º volume), não está subordinada ao Registo de Imóveis.

Destituída da formalidade da transcrição, a cessão do direito à sucessão aberta tem a sua prova na respectiva escritura, e, no caso de haver mais de uma cessão, prepondera a de data mais antiga.

O 1.º cessionário deverá fazer constar do inventário a sua escritura.

Pode dar-se a hipótese de haver um 2.º adquirente se habilitado em inventário, sem que o haja igualmente o 1.º adquirente, e assim, contemplado o 2.º adquirente na partilha, com absoluta exclusão do primeiro.

Lisipo Garcia (2), entende que, nesse caso, assiste ao 1.º adquirente o direito de, invocando o art. 860 do Código Civil, pedir a

(1) – Ferrara, Tratatto di Diritto Civile, I, n.º 162; Borja Soriano, Teoria General de las Obligaciones, I, n.º 190-192; págs. 221-223. (2) – Lisipo Garcia, ob. cit., loc. cit.

[296]

retificação da transcrição feita, por não apoiar-se em causa válida (princípio da legitimidade);

tendo a cautela de pedir que se dê conhecimento ao Registo, para que dos seus livros conste a existência da ação, assegurados, por essa forma e desde êsse momento, os efeitos retroativos da sentença anulatória.

Não nos parece, porém, que, no caso acima figurado, ocorra a hipótese do art. 860 do Código

Civil, de vez que não se trata, simplesmente, de retificação. Há a ponderar que a transcrição do formal de partilha em nome do 2.º adquirente é o fruto da sentença de partilha, e forçoso se torna pedir a rescisão dessa pela nulidade pleno jure do processo, porquanto nêle figurou para ilegítima.

O que deve ser objeto de transcrição é o novo formal de partilha, que, em favor do verdadeiro adquirente, venha a ser expedido, por fôrça de nova partilha, em razão da anul ação da primeira.

A essa hipótese não se referem os arts. 178, § 6.º, n.º V e 1.805 do Código Civil, pois o caso é de nulidade absoluta.

Ainda mesmo que o 1.º adquirente esteja de acôrdo com o quinhão já atribuído, não é possível

executar-se a sentença anulatória diretamente, para a retificação da transcrição. Mister se faz que, preliminarmente, seja ela executada em relação à partilha, e depois, oblìquamente, por fôrça da retificação da partilha proceder-se-á a retificação da transcrição, ou melhor, dar-se-á nova transcrição, com o cancelamento da que houver sido indevidamente feita.

524. O IMÓVEL COMO OBJETO DA VENDA. – Não pode ser transcrito um contrato de compra

e venda que tenha por objeto o edifício em si mesmo considerado, com exclusão do solo, pois os edifícios sòmente são considerados pela sua incorporação permanente ao solo. Os atos sujeitos à transcrição não podem ter por objeto coisas imóveis por incorporação quando estas venham

consideradas por si mesmas (1), sendo, por isso inteiramente aceitável a doutrina sustentada por Lisipo Garcia de que

“a compra e venda de uma construção independente do solo a que adere, como translativa do domínio, seria em rigor uma venda nula, porque o seu objeto é uma coisa que, por si não existe”.

E‟ preciso salientar a diferença que existe entre a palavra prédio e edifício, perfeitamente consagrada no direito.

Assim Solidônio Leite (2), estabeleceu a diferença entre um e outro:

(1) – N. Coviello, ob. cit., I, n.º 112. (2) – Ferreira Coelho – Código Civil, VI, pág. 120.

[297]

“A palavra prédio exprime, na linguagem usual do direito, o solo conjuntamente com o

edifício e algumas vêzes o terreno, o solo simplesmente, com abstração dos benefícios e benfeitorias”.

525. VENDA DE BENS IMÓVEIS FUTUROS. – O art. 1.122 do Código Civil, ao se referir às características do contrato de compra e venda, determina que a obrigação consiste em transferir

“o domínio de certa coisa”, o que pressupõe a existência do objeto do contrato de compra e venda.

Isto, entretanto, não exclui a possibilidade da compra e venda ser suscetível de ter por objeto uma coisa futura.

O que se exige é que a coisa futura seja certa emptio spei e não incerta emptio rei speratae (1).

Pela sua própria natureza, pelas condições jurídicas de sua aquisição e transferência, é óbvio que a propriedade imobiliária não se pode considerar suscetível de alienação, como coisa futura.

Ainda que se entendesse de modo contrário, seria, então, um fato absolutamente estranho ao Registo de Imóveis, o qual pressupõe a existência certa e definida do imóvel, em razão do princ ípio indeclinável da especialização.

Trata-se de um contrato de índole abstrata e o Registo de Imóveis sòmente pode aceitar os

contratos de índole concreta, isto é, os que, efetivamente, estejam aptos a servir de base à transferência do domínio.

O Registo Imobiliário, por sua natureza, exige a efetiva existência do direito a ser transcrito, e não a sua mera possibilidade (2).

Gasca (3), abre uma exceção: a venda de uma casa a ser construída.

E‟ uma hipótese perfeitamente admissível mas não se trata, pelo menos em relação ao Registo

de Imóveis, de uma venda de coisa futura, no sentido genuíno. Antes de tudo é preciso notar a necessidade, preliminarmente, da venda da área, onde a casa tenha de ser construída. Assim, a transcrição a ser feita nenhuma relação tem com a coisa futura – a casa a ser construída. A

transcrição versará exclusivamente sôbre o terreno. O direito de propriedade sôbre êste, necessàriamente implica na sua extensibilidade à construção que na área vendida se fizer. Cumprirá apenas fazer-se a averbação dessa modificação, nos têrmos do art. 28, do decreto n.º

3.079, de 15 de setembro de 1938 (c fr. 2.º volume, n.º 280, pág. 237 -239), de vez que se trata de uma accessão.

(1) – M. I. Carvalho de Mendonça, Contratos, II, pág. 332. (2) – N. Coviello, Transcrizione, II, n.º 225, pág. 3.

(3) – Gasca, Compra-Vendita, I, n.º 255, pág. 330.

[298]

526. VENDA DE BENS IMÓVEIS PERTENCENTES A TERCEIROS. – Nas legislações, como a francesa e a italiana, onde prepondera a unidade formal, isto é, em que a obrigação, além dos seus efeitos próprios, opera a transferência da propriedade, como corolário lógico, vingou o princ ípio da nulidade da venda de coisa pertencente a outrem.

Assim não acontecia no Direito Romano e no antigo direito francês.

A venda de coisa alheia era, então, considerada válida, não no sentido de que o verdadeiro proprietário pudesse ser espoliado, mas porque, não transferindo a venda a propriedade, sendo apenas, como todos os demais contratos, um mero fator de obrigações, nada obstava a que o

vendedor se obrigasse a obter a propriedade de uma coisa e, em seguida, transferi -la a quem se obrigara a tal (1).

Transformada a concepção do contrato de compra e venda, que, nas legislações francesa e italiana, passou a ser não só um elemento gerador de um direito pessoal, mas ainda de um

direito real, a nulidade da venda de coisa alheia se impunha como uma conseqüência lógica do sistema: nemo dat quod non habet.

Entre nós a questão desperta interêsse, sobretudo porque precisamente a estrutura do contrato de compra e venda, segundo o Código Civil e de acôrdo igualmente com a natureza do registo

imobiliário, por singular coincidência, muito embora com certos aspectos diversos, corr esponde com a figura da compra e venda do direito romano, neste sentido, tantas vêzes por nós acentuado: o de se tratar de um valor meramente obrigacional.

Dêsse fato decorre certa divergência entre os juristas pátrios relativamente à validade ou não do contrato de compra e venda, quando versando sôbre coisa alheia.

Clóvis manifesta-se francamente contrário à validade de um tal contrato. Diz êle: “A coisa deve ser própria do vendedor. Ainda que alguns autores admitam a validade da venda de coisa alheia, fundando-se no direito romano (D. 13, I, fr. 28), e em pretensas necessidades do comércio, o

direito conforme à razão e à moral é que ninguém pode vender senão o que fôr propriedade sua ou a que tenha direito, como se diz no Código português, art. 1.555 e o brasileiro julgou inútil reafirmar” (2).

Não há dúvida que, na legislação francesa, ao lado dos motivos já acima expostos, uma outra razão operou, para se considerar nula

(1) – Bandry-Lancantinerie e Saignat, Della Vendita, n.º 116, pág. 107. (2) – Clóvis Beviláqua, Cód. Civ. Com., IV, pág. 295.

[299]

a venda de coisa alheia: a de constituir uma imoralidade, traduzida através da impossibilidade da execução (3).

Não nos parece de tão grande monta, uma tal consideração. Tudo depende das ci rcunstâncias, e no Direito Comercial, pelo menos, não há como se possa negar a vantagem dessa validade.

Após aceitar o princ ípio da nulidade da venda de coisa pertencente a outrem, diz:

“ao invés, será válida a venda quando o vendedor se obrigar a entregar a coisa vendida depois de adquirir a propriedade da coisa que vendeu, subordinada a venda à condição suspensiva da aquisição da coisa pelo vendedor”.

Fora essa hipótese, o princípio da nulidade da venda de coisa alheia êle o deduz do art. 622 do Código Civil, que preceitua:

“feita por quem não seja proprietário, a tradição não alheia a propriedade. Mas, se o adquirente estiver de boa-fé, e o alienante adquirir depois o domínio, considera-se revalidada a transferência e operado o efeito da tradição, desde o momento do seu ato”.

O argumento não procede. Como salientamos, a convenção e a tradição, pôsto que ligadas entre si, são atos distintos.

O fato da tradição feita por uma pessoa a non domino não alhear a propriedade da coisa, não é razão para se argumentar com a nulidade do ato jurídico que deu causa a essa tradição.

E tanto assim não é, que a própria disposição invocada pelo citado jurista estabelece a

revalidação da transferência, no caso da superveniência do domínio, estando o adquirente de boa-fé.

A verdadeira doutrina está, pois, com os que sustentam a validade da compra e venda de coisa alheia (5).

Êste último jurista traça perfeitamente a situação:

“Criando, por conseguinte, uma simples obrigação pessoal, nada há de contrassenso no

se vender o que pertença a terceiro. Porque, com a venda, o vendedor assume, implìcitamente, a obrigação de adquirir a coisa, objeto do contrato”.

(3) – Huc, Commentaire, n.º 10, pág. 91. (4) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 19.

(5) – Estão nesta corrente: João Luiz Alves, Cód. Civ. An., II, pág. 205; J. X. Carvalho de Mendonça, Trat. de Dir. Com., vol. 6, parte 2.ª, n.º 615, pág. 96; Aureliano Guimarães, A Compra e Venda Civil, n.º 91, pág. 104-105; Abgar Soriano de Oliveira, Da Compra e Venda em reserva de domínio, n.º 7, págs. 10-12.

[300]

Há, portanto, uma venda simplesmente anulável, cuja ação compete exclusivamente ao comprador e nela não tendo nenhum interêsse o proprietário da coisa vendida (6).

Quais os efeitos da compra e venda de um imóvel alheio, em relação ao Registo de Imóveis?

Trata-se de um ato inteiramente inócuo em face ao dito Registo. De vez que só pelo legítimo

proprietário é que a tradição da coisa aliena a propriedade, segue-se que, pela própria fôrça dêsse preceito, nenhuma transcrição pode ser admitida no Registo de Imóveis, senão provinda de um ato jurídico firmado pelo proprietário da coisa imóvel.

E‟ necessário que o vendedor da coisa alheia adquira a propriedade do imóvel, e, para que se

repute adquirida, é lógico que se requer, preliminarmente, a transcrição do imóvel em seu favor. Só por êsse modo se pode operar a aquisição do domínio.

527. VENDA DE IMÓVEL SOB CONDOMÍNIO – A primeira questão que se suscita a propósito do condomínio é de se saber se o condômino pode alienar uma coisa determinada, ainda em estado de indivisão.

Mais delicada se torna a questão em se tratando da comunhão hereditária, quando o direito do herdeiro nem sequer em fração aritmética se acha individuado.

Primeiramente decidimos pela impossibilidade da alienação de coisa determinada, por parte do condômino.

A decisão foi a seguinte:

“Vistos, etc.: O Dr. Artur Rocha Ribeiro, à fls. 2, pede seja declarada improcedente a

dúvida oposta pelo senhor oficial do 9.º Ofício, relativamente à transcrição da escritura que se vê do processo à fls. 4, lavrada em notas do tabelião do 10.º Ofício. Os fatos que determinaram a impugnação do oficial do Registo foram os seguintes: por fôrça da

escritura impugnada, Manuel Ornelas da Silva e outros fizeram uma dação em pagamento ao reclamante consistente na propriedade de metade do sítio “Curral”, transferindo-lhe o domínio e posse do mesmo sítio, com os correspondentes direitos e

ações da meação do primeiro outorgante e da herança dos outros outorgantes. Em face dessa escritura, observam-se as seguintes circunstâncias: a) que o 1.º outorgante, Manuel Ornelas da Silva e sua falecida mulher tinham se comprometido com o reclamante a tornar efetiva essa dação em pagamento; b) que tendo fa -

(6) – Aureliano Guimarães, ob. cit., n.º 93, pág. 105.

[301]

lecido a mulher do 1.º outorgante, a escritura foi outorgada pelo conjuge supérstite e pela maioria dos herdeiros, confessando-se no citado instrumento que dois dêles – Maria Ornelas da Silva e seu marido – não participaram da referida escritura; c) que o

outorgante ficou com poderes para promover o inventário; d) que ainda da escritura impugnada os outorgantes, antes de qualquer ato judicial, prefixaram o valor de suas cotas hereditárias; e) finalmente que tudo isso se processou sem que constasse a menor

intervenção do Juízo do inventário. No seu erudito parecer de fls. 20 a 25, o ilustre Doutor Promotor de Registos, opinou no sentido da procedência da dúvida.

Isto pôsto:

I – Do histórico que fizemos resulta evidente que a escritura impugnada não versa sôbre

alienação e um direito à sucessão aberta, mas uma dação em pagamento, constituída por uma coisa determinada, celebrada por alguns herdeiros e o conjuge meeiro, antes de se proceder a partilha dos bens deixados pelo de cujus. E‟ êste ato jurìdicamente

possível, e, como tal, suscetível de transcrição? No nosso entender, três motivos existem impedindo a transcrição impetrada: o primeiro, de ordem absolutamente jurídica e que parte da natureza do direito dos outorgantes; o segundo, de ordem administrativa,

inerente às normas que regulam o registo imobiliário; o terceiro, de ordem fiscal, em relação aos impostos que ficariam sonegados, se tal transcrição se operasse. Passaremos, por conseguinte, à análise de cada um dêles.

II – O primeiro embargo à transação efetuada pelos herdeiros reside, como dissemos, na

natureza do direito de que êles são titulares. Aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (Código Civil, art. 1.572), mas o direito que exsurge neste espaço interregno até à partilha,

quando existirem duas ou mais pessoas chamadas simultâneamente a uma herança, é um direito indivisível, quanto à posse e ao domínio (Cód. Civ., art. 1.580). Essa indivisibilidade do direito atribui-lhe um aspecto diverso do condomínio pròpriamente dito,

pois estabelece uma comunhão hereditária, conseqüência da aquisição ipso jure, abrangendo todo o monte hereditário. E‟ o que ensinam Rossel e Mentha (“Manue l du Droit Civil Suisse”, II, n.º 1.119): “a sucessão é, de algum modo, uma entidade jurídica distinta e a situação apresenta analogias com a de

[302]

uma sociedade em nome coletivo. E representada pelo conjunto de herdeiros, que aparece como credor e devedor”. E sôbre o direito de alienar, assim se expressam: “Para alienar um móvel ou imóvel todos os herdeiros devem concorrer ao ato, salvo se o

alienante houver recebido mandato dos demais”. E se passarmos à doutrina dos nossos juristas tôda ela é, sem hesitação, favorável à tese da distinção entre as duas situações – a comunhão hereditária e o condomínio – para concluir pela impossibilidade de atos

jurídicos, como os que formam o objeto da escritura impugnada. Destaca-se dentre todos, o trabalho magistral de Almeida Prado (“Transmissão da Propriedade Imóvel”, pág. 131) onde êle faz uma nítida distinção entre as duas situações. Na co-propriedade,

diz êle, a coisa comum possuída é um determinado imóvel: é uma coisa especializada; na herança, a coisa comum não é formada pelos componentes dela, mas sim a própria herança; divergindo o conceito de comunhão na herança do conceito de comunhão na

co-propriedade, conclui -se que “na co-propriedade, o condômino pode vender ou hipotecar a sua parte indivisa relativa a um imóvel, visto que a comunhão no condomínio, se cifra num determinado prédio recaindo, portanto a parte ideal sôbre êle; ao passo que

na herança, essa parte ideal paira sôbre o todo da herança, que, em regra, consiste em coisas móveis e imóveis”. E conclui: “Logo, só após a partilha, o herdeiro pode alhear ou gravar o seu direito individualizado, pois, desde êsse momento, o seu quinhão é fração

aritmética ou parcelas do valor do imóvel, ficando dest‟arte respeitado o princípio da especialidade que é base do registo, visto se mencionarem as confrontações e os característicos do todo, cuja parte é vendida ou onerada” (ob. cit., pág. 133). Idêntica é a

opinião de Lisipo Garcia (“Inscrição”, pág. 124), bem como de todos os tratadistas sôbre direito de sucessões como Hermenegildo de Barros (Man. Do Cód. Civ., XVIII, pág. 131) e Itabaiana de Oliveira (“Trat. de Dir. das Sucessões”, I, pág. 57), unânimes afirmando

que não tendo o herdeiro direito a uma parte determinada da herança, porque, só depois da partilha ou divisão, é que o seu direito se tornará concretizado, a conclusão é que, antes disso, não lhe será permitido vender, hipotecar parte determinada da coisa comum, mas tão sòmente a sua parte ideal, o seu direito à comunhão.

III – Dissemos igualmente que a essa razão de ordem puramente jurídica outra surgia pertinente mais especial-

[303]

mente aos Registos Públicos. Consiste êsse segundo fundamento na circunstância de que a transferência causa mortis aos herdeiros, impondo a divisão entre êles mediante a partilha, êsse ato está subordinado à t ranscrição, como condição necessária à

disponibilidade do direito. Admitir-se a t ranscrição da escritura impugnada, importaria em violar aquêle princ ípio legal, além de um outro, do qual é corolário lógico, que impõe ou proíbe terminantemente a transcrição de um t ítulo, sem a necessária transcrição do t ítulo precedente, que, nesse caso, será o formal de partilha.

IV – Finalmente, admitida a transcrição, importaria em dar como finda a transferência da propriedade ao reclamante, prescindindo da prova do pagamento do impôsto de sucessão causa mortis, do impôsto da t ranscrição do formal de partilha. A transcrição do

próprio título impugnado iria se processar sem a menor garantia de pagamento dêsses impostos, irretorquìvelmente devidos. Nesta conformidade. Julgo procedente a dúvida oposta pelo Senhor Oficial do 9.º Ofício de Imóveis, indeferindo o pedido inicial. P.I.R. – Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1939”.

Depois de proferida a decisão supra, prosseguindo em pesquisas, observamos existir fortíssima corrente favorável à possibilidade da venda da parte determinada do condomínio, pelo condômino, ainda quando, por direito sucessório, em estado de

comunhão. Os argumentos convenceram-nos; e assim, por ocasião do recurso de agravo interposto da referida decisão, embora o agravante não tivesse fundado o seu recurso senão em argumentos completamente diferentes, resolvemos adotar os princ ípios desta, nos seguintes têrmos:

“I – Na decisão de fls. 35 a 37, sustentamos, em resumo, a impossibilidade da transcrição de uma escritura em que alguns herdeiros, antes de procederem ao inventário, alienaram uma parte determinada de um imóvel pertencente ao espólio, sem a autorização de todos os interessados.

Partimos, então, do ponto de vista defendido por Almeida Prado (“Transmissão da Propriedade Imóveis”, pág. 131), estabelecendo uma diferença na situação da co-propriedade decorrente do direito sucessório da oriunda do condomínio, de vez que, no

primeiro caso, não existe ainda um direito individualizado, importando a venda da coisa especificada numa ofensa ao princ ípio da especialidade, base do registo.

Indicamos, ainda, como partidários dêsse ponto de vista, os seguintes juristas: Hermenegildo de Barros (“Man. do Cód. Civ., vol. XVIII, pág. 131); Itabaiana de Oliveira

[304]

(“Trat. de Dir. das Sucessões”, I, pág. 57); Lisipo Garcia (“Inscrição”, pág. 124), podendo

agora aduzir o nome de Clóvis Beviláqua (“Cód. Civ. Com., III, pág. 168) porquanto o

mesmo ensina que ”a alienação que faz o consorte, sòmente pode ter por objeto a sua parte ideal no direito sôbre a coisa comum”.

A decisão, portanto, se fundamentou numa corrente doutrinária, constituída por juristas de valor.

Contra os argumentos expendidos nada se disse, na minuta de agravo, que os pudesse delir, e a longa contestação se processou fora do seu verdadeiro eixo.

Um exame minucioso que fizemos da questão, levou-nos à convicção de que a corrente

que seguimos na decisão de fls. 35 não era a mais aceitável nem a mais compatível com a finalidade do Registo Imobiliário.

Não se trata, porém, de uma conseqüência dos argumentos constantes do agravo, mas de uma construção inteiramente diversa, e cujo resultado não é a admissão da transcrição da escritura, tal qual a pretende o agravante.

II – Sobretudo na Itália, doutrina e jurisprudência têm discutido acêrca do ponto debatido no presente processo, isto é, se o condômino, ou melhor, o herdeiro antes da partilha, pode alienar uma parte especificada de uma coisa pertencente ao espólio, sem o consentimento dos demais condôminos.

E com maior preocupação o problema tem sido pôsto, relativamente à venda de imóveis, onde, em conseqüência da transcrição, o problema assume proporções mais sérias.

A grande maioria dos juristas, entretanto, têm sido favoráveis à possibilidade dessa alienação.

Destaca-se em primeiro lugar Luzzatti (“Della Transcrizione”, I, n.º 56, pág. 50-51).

Tratando da venda do direito sôbre um direito indiviso de uma sucessão, diz o referido autor:

“Contra a transcrição desta espécie de venda se pode sustentar que tendo por objeto não já o imóvel cujo direito se refere, mas o direito indiviso do vendedor sôbre êste imóvel, direito incompatível com o de hipoteca, não seja translativo de

um daqueles bens pela venda dos quais a lei exige a transcrição. Repetiremos a êsse propósito tudo quanto se disse para o caso de venda condicional.

O direito cedido, ainda que se diga em contrário, se identifica com o imóvel que constituir o seu

[305]

objeto, pelo que tem caráter de propriedade condicional. No caso figurado pois, se deve

tanto mais fàcilmente concluir pela transcrição do contrato, por isso que o direito cedido é conexo inseparàvelmente a uma propriedade atual, dependendo a determinação efetiva do seu objeto não já de um acontecimento incerto, mas da realização da divisão”.

E conclui:

“A transcrição da suposta venda deve, segundo nós, ter lugar, se o comprador

quiser presumir-se contra ulteriores alienações possíveis da parte do vendedor. A lei sôbre transcrições, disse oportunamente Mourlon, determina, senão nos seus têrmos positivos, pelo menos pela evidência do seu objetivo, todo ato

translativo de um direito em virtude do qual o cedente teria podido hipotecar quer pura e simplesmente, quer eventualmente sob certa condição, o imóvel sôbre o qual o direito está estabelecido”.

Não menos esclarecida a lição de N. Coviello (“Transcrizione”, II, n.º 272 c) acentuando

que se não deve confundir com a venda de coisa alheia a de coisa comum realizada por um só dos co-proprietários. E diz que quem aliena a coisa comum sem o consentimento de condôminos aliena uma coisa sôbre a qual se não tem um direito exclusivo, possui

um direito limitado pela coexistência de direitos iguais e que além disso pode tornar-se exclusivo com eficácia ret roativa, e se o fundo alienado entre na cota do vendedor, êste se reputa ter sido sempre o único e exclusivo proprietário, ainda no tempo anterior à venda.

Também muito precisa é a lição de Lomonaco (“Instituzioni di Dir. Civile”, III, pág. 494) baseado numa decisão do Supremo Colégio de Firenze.

Êle diz que o condômino pode alienar vàlidamente, durante a comunhão,

“tanto la sua quota astratta, come una cosa certa e determinada”,

mas frisa que a venda nesse segundo caso não tem efeito, se não couber a coisa, no todo ou em parte, no quinhão de condômino vendedor.

Destaca depois o trecho da decisão do Supremo Colégio de Firenze onde diz encontrar argumentos inexpugnáveis.

[306]

E‟ o seguinte:

“Segundo o recorrente, pelo dispôsto no artigo 679 do Código Civil, pode o condômino vender a sua cota abstrata; mas não uma coisa certa e determinada. Porém sôbre êste assunto resistem as novas teorias acolhidas na doutrina e na

jurisprudência, depois que as novas legislações, destacando-se nesta parte do Direito Romano, consideraram que a divisão não é atributiva, mas declaratória da propriedade pertinente a cada um dos condôminos sôbre a coisa comum.

Segundo esta nova teoria cada um dos condôminos possui um direito eventual de

propriedade, a partir do dia da abertura da sucessão, sôbre cada um dos bens da comunhão; - direito que se torna certo, ou se resolve, conforme os próprios bens, no momento da divisão, entrem ou não na sua cota. Se dispuser de alguns dêstes bens,

durante a comunhão, a venda pode ser considerada resolúvel, como é resolúvel o direito do vendedor, mas não se pode chamá-la de nula, enquanto a divisão não sobrevenha, e dêsse modo se torne fato certo se a coisa vendida tocará ao condômino vendedor, ou será atribuída a outro condômino”.

No mesmo sentido figuram as opiniões de Gasca (“Compra e Vendita”, I, n.º 348, pág.

484); Pacifici-Mazzoni (“Tratatto della Vendita”, I, n.º III, pág. 216) e De Ruggero (“Inst.”, II, § 73).

III – Na nossa doutrina e jurisprudência o problema já foi focalizado.

Mendes Pimentel (“Rev. Forense”, vol. LII, páginas 296-299), fundamentando-se na lição de Baudry-Lacantinerie et Saignat (“Della Vendita”, n.º 121, págs. 121 -122), sustenta

“que a venda feita pelo condômino de parte determinada do imóvel em comum é um contrato sujeito à condição resolutiva; divisão é o evento futuro e incerto a que fica subordinado o ato jurídico. Enquanto não se realizar a condição resolutiva vigora o ato jurídico (Cód. Civ., artigo 119). Enquanto não se proceder à divisão, a venda é válida”.

Essa doutrina foi sufragada pelo Tribunal de Belo Horizonte (Ac. da Câm. Civ., de 9 de fevereiro de 1929, na ap. n.º 7.120), sendo, posteriormente, admitida por J. M. de Carvalho Santos (Cód. Civ., Int., vol. VIII, pág. 296).

[307]

Pesando bem as considerações dessa segunda doutrina, chegamos à conclusão de que

ela representa uma necessidade de proteção, como acentuou Luzzatti na lição já por nós referida, para garantir o comprador contra ulteriores alienações possíveis por parte do vendedor.

Os dispositivos legais do nosso Código civil não repelem a doutrina supra, antes, são

com ela perfeitamente compatíveis: a) porque ao condômino assiste o direito de alhear a respectiva parte indivisa, ou gravá-la (Cód. Civ., art. 626, n.º III); b) porque a divisão entre condôminos é simplesmente declaratória e não atributiva da propriedade, o que favorece e essencialmente justifica a venda com caráter resolúvel (Cód. Civ., art. 631).

A condição, nesse caso, é considerada resolutiva, segundo a fórmula estabelecida por L. Ramponi (“Della Communione di Proprietá”, n.º 358): “todo proprietário de uma coisa é proprietário dela sob a condição suspensiva de eu ela venha a lhe ser atribuída na

divisão ou num ato equivalente, e sob condição resolutiva para o caso que não venha a lhe ser dada”.

Em face do expôsto:

Reformo em parte a decisão de fls. 35 a 37, para julgar em parte procedente dúvida oposta pelo Sr. Oficial do 9.º Ofício de Imóveis, no sentido de que proceda a transcrição

da escritura impugnada nos seguintes têrmos: a) a transcrição deve ser feita, especificando-se tratar-se de uma alienação ou dação em pagamento, sob condição resolutiva; b) se a parte do imóvel, objeto da escritura assim transcrita, couber no

inventário aos herdeiros outorgantes, após a transcrição do formal de partilha, far-se-á a averbação de que a condição resolutiva já não mais subsiste; c) se a referida parte do imóvel no tocar aos herdeiros outorgantes far-se-á a transcrição do formal de partilha,

cancelando-se a transcrição feita da escritura impugnada, por se ter realizado o evento constitutivo da condição resolutiva. P. I. R.

Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1939.

Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES.

O Conselho de Justiça do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, tomando conhecimento do

supracitado agravo, recusou os pontos de vista da decisão supra, para manter os da anterior, isto é,

[308]

concluiu no sentido de que o estado de comunhão hereditária não permite ao co-herdeiro alienar parte indivisa consistente em coisa determinada, ainda que sob condição suspensiva, consoante

opinamos. Os pontos de vista das duas correntes opostas ficam, porém, fixados, cumprindo, agora, à Jurisprudência escolher entre os dois caminhos, sendo de salientar, mais uma vez, que o sistema de condomínio entre nós, em que a divisão é meramente declaratória do direito de co-

proprietário, não se opõe à solução dos juristas italianos que entre nós teve como precípuo adepto Mendes Pimentel.

Até aqui, o que deixamos dito na 1.ª edição. A supracitada decisão do Conselho foi objeto, porém, de Recurso Extraordinário.

Dêle infelizmente, não o conheceu a 2.ª turma julgadora do Supremo Tribunal Federal. O Sr.

Ministro Orosimbo Nonato, em voto vencido, pois conhecia do recurso, teve oportunidade de atacar o mérito da questão, nos seguintes têrmos:

Dêle conheço e dou-lhe provimento para restaurar a erudita decisão do Juiz Serpa Lopes.

Pendeu o Juiz de princípio, à solução indicada por Almeida Prado (“Transmissão da

Propriedade Imóvel”, pág. 131), que distingue entre a co -propriedade e a comunhão na herança. No primeiro caso, pode o condômino vender a sua parte indivisa (art. 23, n.º III); no segundo, porém, não porque, ao revés do que ocorre no primeiro, “a parte ideal

paira sôbre o todo da herança, que, em regra, consiste em coisas móveis e imóveis, créditos e obrigações e muitas vêzes se reduz à quantidade negativa, desde que o espólio não dê para pagar as dívidas do defunto”.

Diz Almeida Prado:

“Só então se concretiza num bem à parte ou se individualiza sôbre parte de um

imóvel: só então é um direito real palpável, pois as dívidas e os compromissos do de cujus já foram devidamente pagos.

Logo, só após a partilha o herdeiro pode alhear ou gravar o seu direito individualizado, pois, desde êsse momento o seu quinhão é fração aritmética ou

parcelas do valor do imóvel, ficando destarte respeitado o princ ípio da especialidade, que é a base do registo...

Almeida Prado tira a lume, nesse mesmo sentido, o que opinam Lisipo Garcia e, ainda, nosso eminente colega Sr. Ministro Filadelfo Azevedo, verbis:

[309]

“O Código Civil distingue perfeitamente no artigo 641 a comunhão em um

patrimônio delimitado em certo imóvel, em que as partes podem alhear os seus quinhões aritmèticamente fixados, quer ideais, quer mais divisos ou indivisos, divisíveis ou não; naquele caso, por exemplo, na herança, ao contrário, o

herdeiro não pode vender a sua cota hereditária sôbre determinado bem, mas apenas o seu direito e ação indeterminados, como conseqüência do regime especializado do registo hipotecário”.

E o ilustre Juiz Serpa Lopes, ainda invoca, nesta esteira, que êle, também, de princ ípio, seguiu, Hermenegildo de Barros, Itabaiana de Oli veira e Clóvis Beviláqua.

Como se vê, é inescondível o relêvo do argumento, que seria, para dizer o que é verdade, terminativo se outros dados não pudessem interferir no desate da dificuldade.

E, entre êsses dados, acha-se o espólio, vende, não obstante, parte individuada, sem o consenso dos outros herdeiros, não pratica negócio nulo. A própria venda de bem alheio,

inexistente em face do verus dominus, pode envalecer, se o dono dá assentimento, com que posterior, ao negócio ou se o vendedor vem a tornar-se dono.

Êsse envalecimento que opera ex-tunc não frisa com a lógica, segundo a qual “nemo dat quod non habet” e a validade do ato jurídico aprecia-se em sua formação mesma. Planiol

mostra aqui a interferência dos motivos de utilidade prática poderosa subordinar as da lógica extremosa. Dá-se, então, segundo Bruggi, Nattini, Cunha Gonçalves e outros, um negócio condicional. E se isso ocorre no próprio caso de venda de coisa alheia,

melhormente passará quando o herdeiro vende parte certa da herança, ainda não desfeita em quinhões.

Valerá a venda, como foi feita, se, nas partilhas lhe coube a parte vencida, como concluiu, aos melhores de direito, Mendes Pimentel, a cujo parecer cedeu Carvalho Santos (liv. cit., vol. cit., loc. cit.).

As razões práticas a que se refere Planiol, para convalidar ex tunc a venda de res aliena, confederam-se muito mais poderosamente para ter como válido o negócio, ainda que sob condição.

[310]

Porque o herdeiro, pôsto tenha direito limitado pela coexistência de outros direitos, algum direito tem e que pode vir a concentrar-se na parte vendida.

Por outro lado, por uma fictio júris de todos admitida, entende-se, conservada a partilha, que o direito do herdeiro sempre se situou no lote, que lhe coube, o que reforça, no c aso, a conclusão da concorrência de negócio condicional.

O condômino é dono. Pode alienar, verdade em que todos conspiram e que tem assento

„em lei. Se a venda se faz ultra viris, só o excesso não prevalece ainda, assim, sujeita à convalidação, como se se tratasse de venda de coisa alheia. Como, porém, êsse excesso sòmente é verificável na divisão ou não partilha, vale o negócio, no caráter de

negócio condicional, enquanto não se realiza a condição, nos têrmos do art. 119, do Código Civil.

O julgado italiano inserido na Prima Raccolta della Giurisprudenz a Sul Codice Civil, sob a direção da Fadda, Poiro, e outros, vol. III, pág. 274, n.º 32, exprime com justeza a verdade jurídica:

“L‟dienazione di una quota di condominio non é nulla assolutamente; essa si risolve se falta la divisione, non rientra nella parte di benitoccata all‟alienante”.

Acingindo-se a êsses princ ípios, mandou o Juiz que se transcrevesse o t ítulo de datio in colutum como alienação condicional. Não merecia, a meu ver, reforma a erudita decisão, que restauro, dando provimento ao recurso.

E‟ interessante consignar, ainda, a explicação de voto em seguida manifestada pelo Sr. Ministro Valdemar Falcão, nos seguintes têrmos:

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Valdemar Falcão (relator) – Sr. Presidente, a parte se reporta à decisão de fls. 65, e seguintes, do Juiz, decisão reformatória do primitivo despacho, a qual foi modificada pelo acórdão recorrido. E nessa decisão, a fls. 67, faz êle a seguinte remissão:

“Na nossa doutrina e jurisprudência o problema já foi focalizado.

Mendes Pimentel (“Rev. Forense”, vol. III, páginas 396-399), fundamentando-se na lição de Baudry Lacantinerie et Saignat (“Della Vendita”, número 121, págs. 121-188), sustenta “que a venda feita pelo condômino de parte determinada do imóvel em

[311]

comum é um contrato sujeito à condição resolutiva; divisão é o evento futuro e incerto a que fica subordinado o ato jurídico. Enquanto não se realizar a condição resolutiva vigora o ato jurídico (Cód. Civ., art. 119). Enquanto não se proceder à divisão, a venda é válida”.

Essa doutrina foi sufragada pelo Tribunal de Belo Horizonte (Ac. da Câm. Civ., de 9 de fevereiro de 1929, na apelação n.º 7.120), sendo, posteriormente, admitida por J. M. de Carvalho Santos (Código Civil Interpretado, Vol. VIII, pág. 296).

Pesando bem as considerações dessa segunda doutrina, chegamos à conclusão de que ela representa uma necessidade de proteção, como acentuou Luzzatti na lição já por nós referida, para garantir o comprador contra ulterio res alienações possíveis por parte do vendedor.

Os dispositivos legais do nosso Código civil não repelem a doutrina supra, antes, são com ela perfeitamente compatíveis: a) porque ao condômino assiste o direito de alhear a respectiva parte indivisa, ou gravá-la (Cód. Civ., art. 626, n.º III); b)

porque a divisão entre condôminos é simplesmente declaratória e não atributiva da propriedade, o que favorece e essencialmente justifica a venda com caráter resolúvel (Cód. Civ., art. 631).

A condição, nesse caso, é considerada resolutiva, segundo a fórmula

estabelecida por L. Ramponi (“Della Communione di Proprietá”, n.º 358): “todo proprietário de uma coisa é proprietário dela sob a condição suspensiva de eu ela venha a lhe ser at ribuída na divisão ou num ato equivalente, e sob condição resolutiva para o caso que não venha a lhe ser dada”.

Reportando-se a essa afirmativa do Juiz, o recorrente encontrou decisões em contrário à

decisão recorrida – ou seja êsse aresto do Tribunal de Belo Horizonte a que se reporta o Juiz nessa citação.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (relator) – O livro de Carvalho Santos é citado.

O Sr. Ministro Valdemar Falcão (relator) – Pareceu-me, data vênia, do Sr. Ministro Revisor, que não se t ratava pròpriamente de decisão em sentido contrário ao ponto de vista do aresto recorrido; e essa impressão eu acolhi per -

[312]

lustrando a citação, verificando o que se apontava no livro de Carvalho Santos e fazendo seu cotejo com o acórdão do Conselho de Justiça.

Por essa razão, e só por essa razão, como não se fazia transcrição mais elucidativa, mas demonstrativa da colisão de julgados, não pude, data vênia do Sr. Ministro Revisor, conhecer do recurso com fundamento na letra d.

E‟ evidente, por conseguinte, que o nosso ponto de vista teve o honroso apoio do eminente Ministro Orosimbo Nonato, sendo indenegável a valia dessa contribuição.

528. A VENDA DE COISA INDIVISÍVEL E O DIREITO DE PREFERÊNCIA DOS DEMAIS CONDÔMINOS – Dispõe o art. 139 do Código Civil:

“Não pode o condômino em coisa indivisível vender a sua parte a estranhos, se o outro

consorte a quiser, tanto por tanto. O condômino a quem não se der conhecimento da venda, poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranho, se o requer no prazo de seis meses”.

Várias questões podem decorrer da supracitada disposição:

1.ª) Preceituando o art. 1.139 que o condômino não pode, em coisa indivis ível, vender a sua

parte a estranhos, se ouro consorte a quiser, tanto por tanto, segue-se ser nula a venda efetuada com infração a êsse preceito?

2.ª) A partir de que momento se deverá considerar o condômino como tendo tido conhecimento da venda?

3.ª) O prazo de seis meses é um prazo de decadência ou de prescrição?

No nosso entender, essas três questões foram magistralmente estudadas por Assis Moura (in

Rev. dos Trib., vol. 99, págs. 62-82) e depois desenvolvidas pelo Tribunal de São Paulo, em acórdão de 14 de agôsto de 1935.

Acentua-se, de início, que o objetivo do preceito do art. 1.139 do Código Civil foi amparar o condômino possuidor das partes não alienadas, evitando que terceiros, estranhos ao condomínio, visem a participar dêle.

Não há, no preceito aludido, a cominação de uma nulidade, pois o direito do estranho adquirente ficou subordinado a uma condição resolutiva – se outro consorte a quiser, tanto por tanto.

Dêste modo, enquanto não verificada esta condição, vigorará o ato judicial, isto é, a venda.

Ocorrida a condição, para todos os efeitos se extingue o direito a que ela se opõe (Código Civil, art. 119).

[313]

Mas se o condômino nada objeta, se êle não quer exercitar a sua preferência, o que se deduz do seu silêncio pelo espaço de seis meses, é a ausência de qualquer infração, de qualquer falta, de qualquer motivo de sanção contra as partes contratantes.

Nessa conformidade, vendida a parte alíquota a um terceiro, com ou sem oferecimento prévio, a

outro condômino, o negócio é válido, sujeito, porém, às conseqüências da resolução do contrato, se ocorrer, nesse sentido, a iniciativa do condômino que tinha direito à preferência.

E dêste modo, o acórdão citado chega à conclusão seguinte:

“O terceiro que compra parte em coisa indivis ível, não oferecida prèviamente a outro condômino, adquire bem e poderá exercer o seu direito plenamente, enquanto não verificada a c ondição resolutiva”.

“O condômino que venda a sua parte, sem fazer a oferta prévia, não é um infrator. A proibição prevista no art. 1.139 citado, sòmente ocorrerá se houver outro condômino que queira a parte tanto por tanto”.

Advirta-se, igualmente, que ao preceito do art. 1.139 do Código Civil não está subordinada a

venda de apartamento, em edifício dividido em planos horizontais. Como é sabido, na co-propriedade de edifícios de apartamentos observa-se a presença de dois institutos distintos: a co-propriedade e a propriedade individual. A primeira, recaindo sôbre todos os elementos que

atuam em função econômica do todo, isto é, o teto, as escadas de acesso, as paredes externas, etc.; a segunda, incidindo sôbre o apartamento, que é considerado como uma parte distinta para efeito de disponibilidade. Segue-se, portanto, que a alienação do apartamento não implica no

direito de preferência dos demais condôminos, porque as coisas comuns estão em função do apartamento, dando-se o inverso do que acontece na forma de propriedade ou de co-proprietário: o solo, que é elemento principal na forma comum, passa a atuar como elemento

acessório. Neste sentido, pronunciou-se a 1.ª Câmara Civil do Trib. de Justiça de São Paulo (Ac. de 5-8-1946, Rev. dos Trib., 166, pág. 180), declarando que “nos prédios de apartamentos, só é possível o exercício de preferência, com fundamento no art. 1.139 do Cód. Civil, relativamente à cota ideal no condomínio previsto no contrato”.

Para desfazer o sentido equívoco que a ementa dêste julgado possa trazer, com o mencionar o direito de preferência em relação à cota ideal, quando o terreno é considerado coisa inalienável e indivis ível, nos têrmos do art. 2.º, impõe-se um ligeiro estudo de parte do citado acórdão, para esclarecimento da situação especial do caso nêle versado.

[314]

Depois de referir-se à opinião de Carlos Maximiliano no sentido de que, relativamente ao andar ou apartamento respectivo, o condômino tem a faculdade ampla, irrestrita de dispor por um ato

inter-vivos ou causa-mortis, entretanto pode ocorrer que um apartamento fique subordinado a

uma co-propriedade comum, caso em que a alienação por parte de um condômino do mesmo apartamento está sujeita ao direito de preferência da outra parte. Esclareça-se bem; pode suceder que, ao lado da co-propriedade em planos horizontais, co-exista a co-propriedade

comum sôbre um determinado apartamento, como em havendo duas ou mais pessoas comprado um mesmo apartamento, caso em que se co-agregam as duas formas de co-propriedade, mas cada uma delas atuando em campos distintos, sem contradições ou oposições. Foi isto que o julgado em causa acentuou.

Também se tem acentuado que o direito de preferência não pode ser invocado pelo condômino de uma propriedade agrícola, perfeitamente di visível, em relação à parte do herdeiro vendida antes da partilha (Cc. da 2.ª Câmara Cível do Trib. de Ap. de Minas Gerais, de 19 de outubro de

1942, Rev. dos Trib. 153, págs. 661-663). Fundou-se êsse julgado em que o art. 1.139 di Código Civil se refere à venda da coisa indivisível e da qual um dos condôminos tenha vendido a sua parte a estranhos, sendo a lição de João Luiz Alves no sentido de que o referido dispositivo não tem aplicação, em se tratando de coisa divisível.

Finalmente a jurisprudência tem sustentado que a ação do comunheiro que não foi chamado a exercitar o direito de preferência é promovida contra o adquirente e não contra o alienante (Ac. da 3.ª Câmara Cível do Trib. de Justiça do Rio Grande do Sul, de 8 de julho de 1943, Rev. dos Trib., 170, págs. 746-747).

No desenvolvimento dessa conclusão, foram dados os seguintes fundamentos:

“A verdadeira mens legis consiste em estabelecer, de um lado, a obrigação de o condômino não vender a estranho a sua parte na coisa indivis ível, se outro condômin o a quiser, tanto por tanto, mas essa obrigação não cria ainda o direito de preferência dêsse

outro condômino, o qual pode, portanto, compelir o que pretende vender sua parte que lha escriture, tanto por tanto. O seu direito de preferência só nasce na data do ato da venda, e se dirige não ao vendedor, mas ao comprador estranho. Daí o ensinar Vampré

que, entre as obrigações do comprador, se inclui a de entregar ao condômino, recebendo dêle o preço pago, a coisa comprada, quando fôr indivisível o objeto do condomínio, e o referido condômino não tiver tido conhecimento da compra” (Man. de Dir. Civil, III, § 1.º). Assim aquela

[315]

obrigação do condômino vendedor ou êle a cumpre, voluntàriamente, oferecendo aos demais condôminos a sua parte pelo preço que a pretende vender, estabelecendo-se a preferência a quem toca, ou, se não houver acôrdo, recorre ao processo determinado no

art. 410 do Código do Proc. Civil. Se nem uma nem outra coisa o fizer, nem por isso o outro, ou os outros condôminos, poderão disputar preferência, mesmo que aquêle queira vender a sua parte na coisa, porque o direito de preferência só toma existência jurídica

no momento da venda realizada a estranho, e tem por sujeito passivo a êsse mesmo estranho. Mas o direito potestativo do condômino contra o estranho, pois que se t rata de um “jus praelationis”, em que o poder de vontade do titular consiste na fôrça de fundar,

pela própria ação, um efeito jurídico (Ferrara, T. di Dir. Civile, I, n.º 72), só pode se fazer valer em juízo por ação ordinária, visto o Código do Proc. Civil não ter prescrito rito especial para o seu exercício. Vitorioso na ação, se não consegue efetivar o seu direito,

devido à recusa do obrigado em dar a escritura, nem por isso a respectiva sentença valerá como título, como pretende Filadelfo Azevedo (Estudo transcrito por C. Santos, C. C. interpretado, vol. 15, pág. 150), devendo o juiz, em tal caso adjudicar a coisa ao autor,

por ser êste o sistema do Código Civil, em relações jurídicas idênticas, art. 632, e por

assim se praticar na hipótese prevista e similar do art. 410, § 1.º do Código do Processo Civil”.

O segundo ponto é o de saber a partir de que momento o direito de preferência pode ser exercitado.

Ainda aqui o Registo Imobiliário é chamado a exercer uma função relevante.

Mário de Assis Moura, depois de acentuar que o direito de preferência não decorre da falta de oferecimento da coisa, diz:

“O conhecimento da venda, seja por conhecimento seja pela notoriedade da transcrição,

apresenta-se como ocasião para que se manifeste a vontade do condômino, mas não é a causa do direito de preferência; êste nasce de razões de ordem pública e em prol da extinção do condômino, e faz nascer, por sua vez, a obrigação da oferta, para que essa oferta se possa desde logo exercitar.

E mais adiante acrescenta:

“O direito de preferência não nasce dos motivos subjetivos da oferta ou falta da oferta, mas sim da objetividade do condomínio que convém eliminar, por motivos de ordem pública”.

A 2.ª Câmara Civil do Trib. de São Paulo (Ac. de 24-4-1945, in Rev. dos Trib. 163-174) assentou que em face do disposto no

[316]

art. 410 do Cód. do Proc. Civil, não basta que os condôminos do imóvel comum indivisível

tenham ciência de que um dêles pretende alienar a sua parte ideal, para deduzirem a sua preferência; é necessário o processo estabelecido nesse dispositivo. O processo previsto no art. 410 supracitado subordina a venda pelo condômino de sua parte ideal no imóvel comum, à

citação dos demais condôminos, para, no prazo comum de cinco dias, deduzirem por artigos a sua preferência, não importando a ciência que particularmente haja tido o condômino.

Finalmente em relação ao prazo na lei estipulado, o referido julgado atribui-lhe o caráter de um prazo de decadência e não de uma prescrição.

No mesmo sentido pronunciou-se a Côrte de Apelação do Estado de Alagoas (Ac. de 9 de outubro de 1936).

Nenhuma dúvida temos em admitir tais princípios, os quais estão perfeitamente fundamentados, de maneira a dispensarem qualquer outro argumento.

Assim, pois o Oficial do Registo de Imóveis não pode se negar a transcrever uma escritura de compra e venda de uma parte em coisa indivis ível, sob o fundamento de faltar à comprovação do oferecimento aos demais condôminos.

Trata-se de uma compra e venda perfeitamente válida, subordinada a uma condição resolutiva, vigente durante o prazo de seis meses, a contar da transcrição.

No caso de promessa de compra e venda, a 3.ª Câmara do Trib. de São Paulo (Ac. da 3.ª Câmara Cível, de 20-2-1946, in Rev. dos Trib., 161, págs. 682-684) assentou que “os têrmos do

art. 1.139 do Cód. Civ., não permitem a contagem do prazo prescricional ou de caducidade a

partir do compromisso de compra e venda e sim da venda”, acrescentando que “a coisa

fàcilmente partível não se torna indivis ível por ato subseqüente de um dos condôminos, transferindo a sua parte a vários descendentes.

529. VENDA DO IMÓVEL ENFITÊUTICO – Dispõe o art. 683 do Código Civil:

“O enfiteuta, ou foreiro, não pode vender nem dar em pagamento o domínio útil, sem prévio aviso ao senhorio direto, para que êste exerça o direito de opção; e o senhorio

direto tem trinta dias para declarar, por escrito, datado e assinado, que quer a preferência na alienação, pelo mesmo preço e nas mesmas condições.

Se dentro no prazo indicado, não responder ou não oferecer o preço da alienação, poderá o foreiro efetuá-la com quem entender”.

[317]

O mesmo direito é assegurado ao foreiro, pelo art. 684, nos seguintes têrmos:

“Compete igualmente ao foreiro o direito de preferência, no caso de querer o senhorio

vender o domínio direto ou dá-lo em pagamento. Para êste efeito, ficará o dito senhorio sujeito à mesma obrigação imposta, em semelhantes circunstâncias, ao foreiro”.

A infração ao direito assegurado ao senhorio está prevista, em suas conseqüências, pelo art. 685.

“Se o enfiteuta não cumprir o disposto no art. 683, poderá o senhorio direto usar, não

obstante, de seu direito de preferência, havendo do adquirente o prédio pelo preço da aquisição”.

Omitiu o Código qualquer sanção, em se tratando do direito de opção do enfiteuta, mas entendem Clóvis e Dídimo da Veiga, com justas razões, que se estende ao mesmo o direito que no artigo 683 se atribui ao senhorio, em situação idêntica.

O que não padece a menor dúvida é que o direito de preferência tanto em relação ao senhorio, como em relação ao enfiteuta, se justifica na necessidade de consolidação do domínio, do mesmo modo que sucede em relação aos co-proprietários.

Importa-nos, porém, saber, se pode ser transcrita uma escritura de venda com preterição dêsse direito de preferência.

Não há dúvida que se patenteia, no direito de preferência na enfiteuse, o mesmo caso que já deixamos examinado a propósito da venda de coisa indivis ível e o direito de preferência dos demais condôminos, aplicando-se, aqui, o que dissemos no nº 528 supra.

Surge, em ambas situações, o mesmo objetivo da lei: o de ministrar meios aptos a desfazer a

situação anômala, no primeiro caso, do condomínio; no segundo, do direito de propriedade, bifurcada em domínio direto e útil.

Se a escritura de alienação do domínio útil ou do domínio direto fôr lavrada com preterição do direito de preferência do senhorio ou do enfiteuta, fica a compra e venda subordinada, a uma

condição resolutiva – a de poder o senhorio direto usar do seu direito de preferência, havendo do

adquirente o prédio pelo preço da aquisição. Enquanto esta condição não ocorrer, vigorará o ato jurídico.

Efetuada a transcrição, deve, contudo, o Oficial, em averbação, mencionar a falta do exerc ício do direito de preferência, pelo interessado.

Além do direito de preferência, concede-se ao senhorio; no caso de alienação do domínio útil, o direito ao laudêmio, assegurado pelo art. 686:

[318]

“Sempre que se realizar a transferência do domínio útil, por venda ou dação em

pagamento, o senhorio direto, que não usar da opção, terá direito de receber do alienante o laudêmio, que será de dois e meio por cento sôbre o preço da alienação, se outro não se tiver fixado no título de aforamento”.

No nosso entender, o recebimento do laudêmio implica sempre numa renúncia à preferência, e isso para nós decorre da expressão legal do supracitado art. 686:

“O senhorio direto, que não usar da opção”

Por conseguinte, recebendo o laudêmio, o senhorio implìcitamente não usa da opção, renuncia-a, pois, incostestàvelmente; o laudêmio é o preço da renúncia à opção.

Contudo, pode dar-se o caso em que o senhorio haja sido notificado para exercitar sua preferência e a esta tenha renunciado, seja expressamente, seja por ter deixado passar o prazo legal sem responder ou sem oferecer o preço da alienação.

Se, feito isso, fôr lavrada uma escritura de alienação do domínio útil sem a quitação do laudêmio, constituirá êsse não pagamento um vício de anulabilidade do ato?

O princ ípio é de que o laudêmio deve ser pago prèviamente, não sendo em geral, lavrada escritura de transferência de aforamento, principalmente em se tratando de próprios nacionais e de marinhas, sem que o transferente mostre estar quite do laudêmio (1).

Mas se a escritura fôr apresentada a registro com essa preterição, ao nosso ver, não há um caso de anulabilidade do ato, mas cabe apenas ao senhorio promover contra o alienante a respectiva ação para cobrança do laudêmio.

Na Apelação Cível n.º 7.149, em que era Apelada a União Federal, o Supremo Tribunal Federal,

em acórdão de que foi relator o Sr. Ministro Filadelfo Azevedo assentou que “feita a venda do domínio útil sem aviso ao senhorio direto, pode êste em qualquer tempo reclamar o imóvel pelo mesmo preço, mediante simples depósito” acentuando ainda que “a cessão de direito à

sucessão aberta não está excluída da aplicação do art. 683 do Código Civil” (Ac. da 1.ª turma do Sup. Trib. Federal, de 24 de setembro de 1942, in Diário da Justiça de 18 de fevereiro de 1943, pág. 100). Igualmente ficou assente que o aviso prévio ao senhorio direto não pode ser suprido

pelo conhecimento acidental da alienação, por parte daquele que tem a faculdade de pedir a preferência pelo mesmo preço e nas mesmas condições (Ac. da 1.ª Turma do Sup. Trib. Federal, de 9 de junho de 1947, Diário da Just., de 3-12-948, pág. 3.231).

(1) – Cfr. J. M. Carvalho Santos, ob. cit., IX, pág. 70.

[319]

530. VENDA DE IMÓVEIS AD CORPUS E AD MENSURAM. – O Código Civil regulou de modo expresso a venda de imóveis, quando ad corpus e quando ad mensuram.

“Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e não

sendo isso possível o de reclamar a rescisão do contrato ou abatimento proporcional do preço.

Não lhe cabe êsse direito, se o imóvel foi vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às duas dimensões.

Parágrafo único. – Presume-se que a referência às dimensões foi simplesmente

enunciativa, quando a diferença encontrada não exceder de 1/20 da extensão total enunciada”.

Como se vê da disposição supracitada, o Código considera como ad mensuram, quando o preço da venda do imóvel fôr estipulado por medida de extensão ou no caso de haver sido determinada a respectiva área.

Por outro lado, reputa a venda ad corpus, quando o imóvel é vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativas as suas dimensões.

A diferença entre uma e outra modalidade de venda assenta nos seguintes efeitos: é que, na venda ad mensuram, não correspondendo o imóvel às dimensões dadas, e a menos que essa

diferença não ultrapasse de 1/20 da extensão total, cabe ao comprador o direito de pedir a rescisão do contrato ou o abatimento do preço. Tal disposição corresponde mais ou menos com a do art. 1.344 do Código Civil argentino. E a Jurisprudência dêste país tem ass ente que a

chamada venda ad corpus é muito comum em relação aos imóveis urbanos, como v.g., a casa da rua tal, número tal, a estância X, etc., caso em que fica avulsa tôda responsabilidade por diferença de superfície.

José Arias (1) indica ainda outros julgados, como o em que se decidiu haver uma venda ad

corpus, nada obstante a indicação de medidas, se é realizada por um preço determinado em conjunto e com limites pre-estabelecidos; igualmente há venda ad corpus se no contrato de compra e venda de um imóvel se estabeleceu que se vendia determinada superfície ou “pouco mais ou menos o que fôr encontrado int ra muros; pactuada uma venda ad corpus com a cláu-

(1) – José Arias, Contratos Civiles, I, pág. 335.

[320]

sula especificando a superfície como sendo “pouco mais ou menos o que resulte dentro de seus muros, a diferença de menos, ainda que exceda de 1/20, não autoriza ao comprador a demandar a redução do preço (Câm. Civ. 2.ª da C. de 15-12-1926, Jur. Argentina, 23, pág. 876).

Também a nossa jurisprudência, com muito brilho, tem procurado fixar uma exata interpretação

do art. 1.136 do Cód. Civil. Um dos critérios de reconhecimento e distinção de uma espécie face da outra é o tratar-se de terreno edificado ou não, e ainda o que vem com a área delimitada do que não possui tal elemento. Assim, a 1.ª Câmara do Tribunal de Apelação de Minas Gerais (Ac.

de 3 de outubro de 1945, in Diário Forense, de 31-10-1945), assentou que a “venda ad corpus é aquela que se faz com a determinação da área e a especificação das divisas exatas” aduzindo

que “na venda de terreno com edificação, reputa-se acidental a especificação da medida, salvo

estipulação expressa em contrário” depois de frisar, no princ ípio, que o art. 1.136 do Código Civil se refere exclusivamente às vendas de terras e não as de prédios edificados.

A 2.ª Câmara do Tribunal de Justiça de S. Paulo (Ac. de 17 de junho de 1947, in Rev. dos Trib. 169-185) também tomou como ponto de partida o fato de se tratar de um imóvel todo murado,

dizendo: “tratando-se de imóvel murado, cuja construção abrange a quase totalidade do terreno, reputa-se acidental a declaração de sua medida”. Invocou êsse julgado a lição de Teixeira de Freitas (2) considerando acidental a declaração da medida de um imóvel, não havendo

estipulação expressa em contrário, quando se comprar o terreno totalmente coberto por edificação.

As Câmaras Cíveis Reunidas do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (Ac. de 28 de agôsto de 1942, Rev. do Trib., 152, págs. 245-248) firmaram que “quando a venda se realiza mediante

um preço fixado para a coisa considerada em bloco, sem que a enunciação da quantidade tenha servido para fixação dêsse preço não tem o comprador direito de exigir o complemento da área que falta, nem pedir a rescisão do contrato nem tão pouco pedir abatimento proporcional do

preço”. Impõe-se a reprodução de alguns dos trechos dêsse excelente julgado de que foi Relator o ilustre Desembargador Saboia Lima. A respeito da presunção resultante do excesso de um vigésimo, fixa:

“Argumenta com razão o embargante que o vigésimo não deve ser computado sôbre a área total e sim sôbre as dimensões do terreno, pois êste era destinado à construção

(2) – Teixeira de Freitas, Formulário dos Contratos, Testamentos e outros atos do Tabelionato, § 192, pág. 172.

[321]

de um prédio residencial e por isto, em geral, o preço é estipulado por metro de testada, e não por metro quadrado. As dimensões da testada estão muito aquém do vigésimo. A diferença não deve ser apreciada sòmente em função da quantidade, mas deve sê-lo

também em função do valor, pois o que a lei visa é impedir que o comprador tenha um prejuízo econômico, conforme dizem Huc. (Com. Th. P., v. 10, pág. 196) e Cuturi (Della Vendita, pág. 281). O fato de a diferença ser superior a 1/20 não torna garantida a área

enunciada, pois não há no art. 1.136, parágrafo único do Código Civil conceito do qual se infira que seja a presunção, aí estabelecida, de natureza a não admitir prova em contrário. Para que uma presunção seja considerada “júris de jure”, mister é que o legislador expressamente o diga”.

Depois de acentuar que a classificação da venda “ad mensuram” e a “ad corpus” constitui uma questão puramente de vontade, em conformidade com a vontade das partes contratantes, fixa:

“Quando a venda se realiza mediante um preço fixado para a coisa considerada em bloco, sem que a enunciação da quantidade tenha servido para a fixação dêsse preço,

não tem o comprador direito de exigir o complemento da área que falta, nem pedir a rescisão do contrato, nem tão pouco pedir abatimento proporcional do preço”.

E‟ de notar-se, ainda, que a questão relativa a essa diferença quando superior a 1/20 deve ser considerada, sobretudo nas cidades, onde o valor do terreno supera, atualmente, o da

construção. Ao tempo em que foi promulgado o Código Civil, ainda prevalecia a idéia do Código de Napoleão. Mas atualmente, com a utilização econômica do espaço aéreo, o metro de terreno influi consideràvelmente, no valor da venda.

Mas o que nos interessa é a análise dessas formas de venda em face do Registo de Imóveis. No

caso da venda ad corpus nenhuma dificuldade se apresenta. O imóvel sendo especificado ad corpus, deve encontrar-se, na escritura, perfeitamente individuado.

Mas, se na venda ad mensuram, há apenas uma referência à quantidade da área vendida, pode ser essa escritura transcrita?

E‟ evidente que não. O Registo de Imóveis, em sua estrutura fundamental, pressupõe uma

perfeita individuação do imóvel, quer em relação ao seu estado físico, quer em relação ao seu estado jurídico.

Não se poderia transcrever uma escritura que consignasse o imóvel, tão sòmente pela sua quantidade: vendo a B, tanto hectares

[322]

de terras da minha fazenda X. As confrontações são sempre necessárias. Sendo omiss a a

escritura de venda, entre comprador e vendedor é imprescindível uma escritura complementar, especificando as confrontações, novas decorrentes dessa venda.

Diante dêsse obstáculo intransponível, a venda ad mensuram fica restrita ao seguinte ponto: é a consideração de que a extensão foi condicionada substancialmente à venda, de tal modo que,

demonstrado que ela não corresponde ao estipulado no contrato, cabe ao comprador o direito de rescindir o contrato ou pedir o abatimento do preço.

Insistimos, porém: em qualquer caso, a transcrição dessa escritura no Registo de Imóveis depende, essencialmente, de uma perfeita individuação do imóvel, inclusive a de suas confrontações.

Por isso, reputamos mais lógico o disposto no art. 468 do Código Civil alemão:

“Quando o vendedor de um imóvel se obrigar perante o comprador por um conteúdo determinado, torna-se responsável por êsse conteúdo como o seria por uma qualidade assumida”.

Aqui, como se vê, o critério é o de assumir o vendedor a garantia de conter o imóvel uma determinada extensão, o que se afasta do critério falho da existência ou não de confrontações.

531. ESPAÇO AÉREO – Já deixamos dito que o espaço aéreo, embora suscetível de servidão, não pode ser objeto de alienação (c fr. 2.º volume, n.º 244, págs. 176-178).

Contudo é preciso distinguir o seguinte caso: trata-se da venda do espaço aéreo sobrepôsto a um andar, para a construção de um outro, no caso de co -propriedade de prédios divididos em planos horizontais.

E‟ de notar, porém, não surgir neste caso, uma venda do espaço aéreo, no sentido genuíno da palavra, por isso que o objeto único da venda não é o espaço aéreo, mas sim o ponto onde deve ser construído um acréscimo do prédio e a admissão de mais um titular da co -propriedade, cujo

direito se identifica com os dos demais, porquanto se estende à comunhão dos acessórios, como seja, o solo em que está construído o edifício.

532. PREÇO. – O preço é um dos elementos essenciais à compra e venda: sine pretio nulla venditio est (Legge, 2, § 1.º).

O preço, a seu turno, deve conter certos requisitos, isto é, carece ser determinado de acôrdo com os contraentes, sério e certo.

Quanto à sua determinação, cumpre ser a mesma feita, em regra, pelas próprias partes contratantes, no ato da escritura.

[323]

Contudo permite-se possa essa determinação vir fixada por terceiros, se os contratantes logo

designarem ou prometerem designar, sendo que, se o terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando acordarem os contraentes designar outra pessoa (Cód. Civ., art. 1.123).

Em qualquer caso, porém, a escritura de compra e venda sòmente poderá ser transcrita se o preço já estiver determinado.

Se na escritura de compra e venda se dispuser que a taxação do preço fica ao arbítrio exclusivo de uma das partes, a mesma não poderá ser transcrita, pois é virtualmente nula (Cód. Civ., art. 1.125), dado conter uma condição potestativa (Cód. Civ., art. 115) que inquina um dos elementos essenciais da compra e venda.

Por duas razões impõe-se a determinação do preço, antes da transcrição: 1.º) porque não determinado o preço, falta ao contrato um dos seus elementos integrantes; 2.º) por uma razão de ordem fiscal, pois os direitos do fisco estão em correspondência com o valor da transação.

Esta determinação prévia é necessária, ainda que se queira considerar, no caso da fixação ao arbítrio de terceiro, uma compra e venda sob condição suspensiva (1).

O segundo elemento do preço é o de que êle seja sério, isto é, que não provenha de uma simulação (2), hipótese que se não deve confundir com a do preço vil, pelo nosso direito não considerada.

O preço simulado é motivo de anulabilidade do contrato. Por conseguinte, não impede a

transcrição da escritura. O reconhecimento da supramencionada circunstância depende de sentença.

Finalmente, o art. 1.122 do Código Civil fala em pagamento de “certo preço em dinheiro”.

Quererá êsse dispositivo significar que o preço sòmente poderá consistir em moeda legal e corrente?

A questão vem do Direito Romano. Os sabinianos defendiam o ponto de vista de que o preço

podia ser constituído de coisa diversa do dinheiro, ao passo que os proculeianos restringiam à moeda corrente – in numerata pecunia.

Justiniano adotou esta última solução, mas a vida econômica moderna, forçou o término dêss e absolutismo e dessa inflexibilidade (3).

No mesmo sentido Cunha Gonçalves (4), ao comentar o art. 1.544 do Código Civil Português, no qual se vê a expressão idêntica a do nosso Código: “certo preço em dinheiro”.

(1) – Gasca, ob. cit., I, n.º 433, pág. 646. (2) – B. Lacantinerie e Saignat, n.º 129, pág. 131. (3) – M. I. Carvalho de Mendonça, I, pág. 342.

(4) – Cunha Gonçalves, ob. cit., VIII, págs. 360-361.

[324]

Distinguindo a estipulação em dinheiro do modo do pagamento, entende que o preço fixado em dinheiro pode ser pago em títulos de crédito, fundos públicos nacionais ou estrangeiros, ações e obrigações; ou também por meio de letras, cheques (5).

533. CONSENTIMENTO. – Do mesmo modo que a coisa e o preço, o consentimento é também

um dos elementos integrantes do contrato de compra e venda, que mesmo se estende sôbre os dois primeiros, porquanto o consentimento deve ter por objeto a própria coisa e o preço, e ainda compreender a intenção de vender, de modo a ficar perfeitamente estabelecido que a vontade dos contratantes teve por finalidade o contrato de compra e venda.

Definido o consentimento relativamente a êsses dois elementos, o contrato de compra e venda reputa-se perfeito. Realizado o acôrdo sôbre êles, é quanto basta, pouco importando que o comprador, v.g, não tenha visitado os terrenos comprados ou que se não tenha regulado a época e o lugar do pagamento (1).

Mas, se sôbre tais pontos acessórios as parte convierem em os regular posteriormente, não se deve considerar a venda como perfeita, pois há, nesse caso, apenas um projeto (2).

534. CAPACIDADE. – O ato jurídico requer, para sua validade, um agente capaz (Cód. Civ., art. 82) de modo que se torna nulo quando praticado por agente absolutamente incapaz (Cód. Civ., art. 145, n.º I) ou anulável quando essa incapacidade é relativa (Cód. Civ., art. 147, n.º I).

Convém, portanto, enumerar os casos de incapacidade absoluta e relativa, além de ser preciso atender que, em relação à compra e venda de imóveis, existem casos especiais de lim itação à capacidade de alienar.

Em princípio, para que uma obrigação surja, é mister a existência real das partes contratantes, quer como pessoas físicas, quer como pessoas jurídicas. Em seguida, a capacidade dessas mesmas pessoas.

A capacidade de que aqui se fala é a capacidade jurídica e não a natural, pois esta pressupõe condições naturais de existência, enquanto aquela consiste na capacidade de adquirir e exercitar por si mesmo os direitos e assumir, da mesma forma, as obrigações.

Neste último ponto de vista, a lei considera absolutamente incapazes:

(5) – Doutrina idêntica: Gasca. ob. cit., I, pág. 659. Contra: Baudry Lacantinerie e Saignat, ob. cit., pág. 129; Aubry et

Rau, ob. cit., V, § 349; Huc, ob. cit., 10, pág. 54. (1) – Démogue, Obligations, II, pág. 235. (2) – Baudry Lacantinerie e Saignat, ob. cit., n.º 24, pág. 19.

[325]

a) os menores de 16 anos;

b) os loucos de todo gênero;

c) os surdos mudos que não puderem exprimir a sua vontade;

d) os ausentes declarados tais por ato do juiz. (Cód. Civ., art. 5.º ns. I a IV);

e) o falido (art. 40, do decreto-lei n.º 7.612 de 21 de julho de 1945).

São incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:

a) os maiores de 16 e menores de 21 anos;

b) as mulheres casadas enquanto subsistir a sociedade conjugal;

c) os pródigos (Cód. Civ., art. 6.º, ns. I a III);

d) os silvícolas.

Embora a regra geral seja a de que sòmente aos 21 anos termina a incapacidade dos menores,

contudo, em certas circunstâncias, abre a lei exceções, permitindo-lhe a cessação, nos seguintes casos:

a) por concessão do pai, ou se fôr morto, da mãe, e por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver 18 anos cumpridos;

b) pelo casamento;

c) pelo exercício de emprêgo público efetivo;

d) pela colação de grau científico em curso de ensino superior;

e) pelo estabelecimento civil com economia própria (Cód. Civ., art. 9.º, ns. I a V).

535. INCAPACIDADES PARA O CONTRATO DE COMPRA E VENDA RESULTANTES DO

DIREITO DE FAMÍLIA. – Dentre as incapacidades obstativas do contrato de compra e venda avultam as inerentes ou resultantes das relações de Direito de Família. Vejamos cada uma delas.

a) Incapacidades decorrentes do casamento. – Sem o consentimento da mulher, o marido,

qualquer que seja o regime de bens, não pode “alienar, hipotecar ou gravar de ônus os bens imóveis ou direitos reais sôbre imóveis alheios” (Cód. Civ., art. 235, n.º I). Por sua vez, à mulher é vedado, sem autorização do marido, não só praticar atos que êste não poderia sem o

consentimento dela, como ainda não pode alienar ou gravar de ônus real os imóveis do seu domínio, qualquer que seja o regime dos bens e alienar os seus direitos reais sôbre imóveis de outrem (Cód. Civ., art. 242, ns. I a III). Consideram -se válidos, porém, os dotes ou doações

nupciais feitos às filhas e as doações feitas por ocasião de se casarem, ou estabelecerem economia separada (Cód. Civ., arts. 236 e 213).

[326]

Uma grande controvérsia tem surgido a propósito da mulher casada, sob o regime da separação

de bens, ter capacidade para alienar algum bem do seu patrimônio ao seu consorte. Em esclarecido estudo sôbre a matéria, Oscar Dias Correa (1), destaca, dentre outras objeções, a de que a admissibilidade dessa alienação encontraria obstáculo na proibição do art. 1.133, ns. I

e II do Código Civil, dada a qualidade do marido, como administrador dos bens da mulher (Cód. Civ., art. 260, ns. II e III). Encarando o problema, sobretudo como sendo uma compra e venda com reserva de usufruto, frisa que a objeção não tem procedência, pelos seguintes motivos: a)

não lhe tira a posse o marido, pois a mulher continuaria como administradora e usufrutuária; b) não os administraria, desde que no regime da separação de bens permanecerão os de cada conjuge sob a administração exclusiva dêles (Cód. Civ., art. 276); c) não era assim também

depositário, pois a mulher os tinha sob sua guarda exclusiva. Em seguida, e em relação às demais objeções, discorre do seguinte modo:

“III – A terceira de que no regime da separação obrigatória não é possível a um conjuge alienar ao outro bens próprios. Porque, com isso, se burlaria a proibição legal, desde que

a lei não permite a comunhão e não poderia permitir a transferência da plena propriedade de um a outro.

Há que ponderar, contudo, em contrário: o impossível é um conjuge, no regime de “comunhão”, alienar bens ao outro. E exatamente porque “não próprios”, mas “comuns”.

Enquanto na separação os bens são distintos, tanto que permanecerão os próprios de cada conjuge sob sua administração exclusiva. Nem outra é a opinião de Sanchez Romain, em seu notável “Estudios de Derecho Civil”, vol. V, tomo I, pág. 867,

argumentando em favor da validade da compra e venda nos têrmos do art. 1.458 do Cód. Civil espanhol: “Respecto de la desaparición de alguna inc ompatibilidad contratual entre los conyuges, es de notar como un efecto de la “separación de biens”, ya

convencional, ya judicial, el de que, á tenor del art. 1.458, pueden el marido y la mujer venderse bienes reciprocamente, cosa que no les está permitida sino cuando existe el estado legal de separación de bienes, de donde resulta que, existiendo esta, tienen

capacidad para celebrar contratos de compra-venda entre si; e cuando, por el contrario, no impera el régimen de separación de bienes,

(1) – Oscar Dias Correia, Venda de bens da mulher casada, sob o regime da separação de bens, ao marido, com a cláusula de reserva de usufruto, in “Diário”, de Belo Horizonte, de 10 de julho de 1948.

[327]

establecido em las capitulaciones ó decretado judicialmente, es nulo todo contrato de

compra-venda que entre si verifiquen; sin duda porque en este suposto se considera subsistente el obstáculo legal de “unidad de persona” en el ordem “patrimonial”, y en otro no”.

Mais ainda: não há fraude à lei (salvo, é óbvio, os vícios comuns que podem invalidar os

atos jurídicos) desde que cada um é senhor de seu patrimônio, e pode transferi -lo a quem bem entenda.

E cai a terceira objeção.

IV – A quarta, e tida como objeção mais séria e grave, é a de que nula seria a alienação,

pois que, nos têrmos do art. 242, n.º II, “a mulher não pode, sem autorização do marido... II – alienar ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime de bens”, e, no caso, sendo o marido o comprador, a autorização é impossível.

A falha e o sofisma do argumento são, todavia, evidentes; se é o próprio marido quem quer comprar e compra, é claro que dá o consentimento à mulher para que lhe venda o imóvel. Nem se poderia, mesmo por absurdo, supor o contrário...

Outro não é aliás, o argumento de Cunha Gonçalves, quando, referindo-se

expressamente ao art. 1.216 do Código Civil português, que exige o consentimento do cônjuge para a alienação de imóvel, ainda no regime de separação de bens, acentua que “êsse consentimento não tem de ser expresso... porque êle está implícito num contrato feito entre cônjuges”. (Tratado de Direito Civil, vol. VIII, pág. 481).

Se o consentimento exigido pelo Código é, como assinalam os mestres, em defesa do patrimônio familial, de sua estabilidade, e se o bem passa apenas de um cônjuge a outro, não fugindo, pois, do patrimônio da família, não há como fundamentar a proibição.

E fulminada está a quarta objeção.

V – Mas, há outro argumento que deve ser expendido: não há, em nossa lei civil,

nenhuma disposição que proíba a venda da mulher para o marido. Não havendo, portanto, impossibilidade com outro fundamento, é ela perfeitamente válida, pois o que a lei proíbe é permitido, e as restrições são estritas.

E‟ o que, referindo-se à lei italiana, salienta Pacifici-Mazzoni, nas suas “Instituzionni di Diritto Civile Italiano”, vol. V, pág. 31. Após aludir às proibições taxativas

[328]

dos arts 1.457 e 1.458, do Código Civil italiano, escreve: “Non y ha altra persona che non possa comprare o vendere; perciocché essendo lincapacitá eccezione non puó estendersi da persona a persona; in specie la vendita non é vietata tra i coniugi”.

Ora, o Código Civil brasileiro, no art. 1.132, proibiu a venda de ascendentes a

descendentes sem o consentimento expresso dos outros descendentes, no art. 1.133 enumera os outros casos de proibição. Em nenhum, contudo, proibiu a venda entre cônjuges, nem lhes fixou condições ou limites, como outros Códigos. E se a regra é a

capacidade, a incapacidade a exceção, não há negar que é plenamente permitida, desde que a lei não a vedou. Mas, não só: outras legislações subsidiárias da nossa explìcitamente a permitem – Cód. Civil português, art. 1.504; Cód. Civil francês, art. 1.595; espanhol, 1.458.

E que a nossa legislação se baseou nessas leis é inegável. Assim, e emérito Clóvis Beviláqua, chega a afirmar, categòricamente, no “Direito das Obrigações”, pág. 229, nota 5, que “O Cód. espanhol, art. 1.758, (devia ser 1.458) admite as vendas rec íprocas entre

cônjuges, se adotaram o regime da separação de bens ou se estiverem judicialmente separados. Nosso direito não se preocupou com êsse assunto, “mas é claro que a razão de decidir é a mesma que atuou na mente do legislador espanhol”. Havendo a

comunhão de bens não é possível venda, mas, desde que os patrimônios estejam

completamente separados por pacto antenupcial, ou judicialmente, “nada impede que as vendas se possam efetuar”.

Não se compreende, pois, como possa dizer que “exclui-se a separação obrigatória, pela suspeição de fraude”, mesmo porque, a prevalecer o receio, inexistiriam em direito todos os contratos...” Nem outro argumento de Cunha Gonçalves, discutindo proficientemente

a matéria, em sua obra monumental (ob. cit., VIII, pág. 480 e segs.), dado a exata interpretação do art. 1.564 do Cód. Civ. português, que reza: “Não podem comprar nem vender rec ìprocamente os casados exceto achando-se judicialmente separados de

pessoas”, debate lùcidamente a questão, com os prós e os contra: Esta proibição, que foi emitida do art. 1.595 do Código Civil francês, e não existe em alguns outros Códigos estrangeiros, é justificada com os argumentos seguintes: a) a compra e venda entre

cônjuges poderia servir para realizar transferências simuladas, em prejuízo dos credores do cônjuge vendedor; b) essas compras e vendas servem para ocultar

[329]

doações e prejudicar o direito que os cônjuges têm de revogar livremente as mesmas doações. Também poderá dizer-se que as vendas entre casados são um meio indireto de alterar a convenção antenupcial, o que o art. 1.105, proíbe.

“Êstes argumentos, porém, não são convincentes” e contra êles se podem opor os seguintes: a) a possibilidade de fraude ou simulação não é motivo para serem proibidas as compras e vendas feitas com seriedade e para vantagem de ambos os cônjuges, as

quais seriam as mais freqüentes; b) a fraude em prejuízo de credores ou herdeiros legitimários é de fácil revogação por meio da ação pauliana, e também são rescindíveis simuladas; com tal argumento, poderiam ser proibidas tôdas as compras e vendas; c) os

cônjuges são assim, forçados a vender a terceiros, em condições menos vantajosas do que entre si alcançariam; d) não sendo proibidas as doações entre casados, claro é que não se justifica a proibição das compras de bens”.

Caminhemos mais, porém, Pisanelli, em sua “Relazione”, na Comissão italiana, citada

por Pacifici-Mazzoni, ob. cit., loc. cit., acentuava: “nel contrato di compra e vendita fu primieramente elevato il dubbio se esso doveva visctarsi tra i coniugi. Il diritto che la vendita fosse simulata per coprire una donazione; raccomandava anzi do non spiegare

troppo ricore nell‟apprezzamento delle clausole del contratto.”Non amare nec tranquam inter infestos jus probibitac donationis tractandum esse ser uno inter conjuctos maximo affectu et solam inopiam ex nimio donatione timentis”.

No mesmo sentido se vêm Lomonaco, “Istituzioni di Diritto Civile Italiano”, vol. VI, págs. 121-122; e em Pedrecal, “Codigo Espanõl Comentado”, vol. II, art. 1.453, pág. 616.

Mas, é o “chiarissimo” Pisanelli quem continua: “Il Codice austriaco no vietá alcun contrato fra copiuge, e circa la vendita non accoglie neprure una presunzione lontona di simulazione. Permettere la vendita fra i concluce é sembrato abilitarli a donazione

marcherate o a simulazzioni a danno del creditori. Nondimeno questo pericolo non é sufficiente per atabilire un incapacita affatto eccezionale”.

E argumenta, por fim:

“Lê relazioni coincali non devono impedire che i due patrimoni se avvantaggino

reciprocamente, mediante contrattazioniia titole oneroso, consicché gli utili derivanti da ciascuno

[330]

vengono tra essi permutati. Perché odovrá marito cercare un estranco compratore, che gl‟imporrá condizioni gravone con danno suo e della sua famiglia, mentre la moglie puó

offrigli condizioni piú eque e piú accettabili? Il contratto di vendita non fu pertento vitato fra conjugi”.

E Pacifici-Mazzoni, não satisfeito, encerra as considerações com a afirmação: “Anco per diritto romano il contratto di vendita noteva aver lucco fra conjugi in tutti casi. (Leg. 7, § 6 in medio, Dig. de donat, inter virum et uxorem, XXIV, 1)”.

Do exposto, concluímos pela resposta afirmativa à tese proposta, de que a mulher casada com separação legal de bens pode vender, ao marido, imóvel de sua propriedade, reservando-se o usufruto. O que nos parece perfeitamente jurídico e legal.

Essas as condições que, em síntese e breve relatório, nos levam à conclusão aceita.

Cremos, assim, haver cumprido a obrigação com que, honrosamente para nós, nos distinguiu êsse Instituto.

Exercite-se agora a crítica dos doutos.

Belo Horizonte, 6-6-1948.

(Relatório apresentado ao Instituto da Ordem dos Advogados de Minas Gerais).

A tese acima defendida é extremada. Não se advoga a possibilidade de alienação entre cônjuges no regime da separação, quando convencional, mas sim, dado o silêncio da lei, estende-se mesmo quando o regime da separação de bens é impôsto por lei.

O que o art. 1.595 do Cód. Civil francês estabeleceu foi a proi bição do contrato de venda entre esposos, a não ser nos três casos seguintes:

1.º - Quando um dos esposos cede bens ao outro, separado judicialmente dêle, em pagamento de seus direitos.

2.º - No caso de cessão feita pelo marido à sua mulher, mesmo não sepa rada, por uma causa

legítima, como a conversão de seus imóveis alienados, ou de dinheiros a ela pertencentes, se êsses imóveis ou dinheiros não incidirem no regime da comunhão.

3.º - Quando a mulher cede bens ao seu marido em pagamento de uma soma que ela lhe haja prometido em dote, e quando há exclusão de comunhão. A razão dessa proibição de venda de

bens entre esposos é de atuar ela como uma medida defensiva do princípio proibitivo de doações entre esposos, coibindo um meio de que se poderiam valer para escapar aos rigores legais.

O nosso Código, não consignou qualquer proibição expressa.

[331]

Mas, não é só por essa omissão que se deve concluir pela ausência de nulidade ou pela de

incapacidade de alienação de bens entre cônjuges, no regime de separação de bens, senão pelo motivo precípuo de faltar uma base segura para ensejar uma nulidade virtual. Se o ato de alienação é escoimado de qualquer vício de simulação ou de fraude à lei, deverá subsistir; se, ao

contrário, padece de qualquer dêsses defeitos, aos interessados competirá promover a sua anulação. Assim, v.g. tôda essa proibição perderia de interêsse, em se tratando de um casal sem filhos, ou sem outros herdeiros necessários na linha ascendente.

Desde que a lei não criou essa proteção, ela não pode ser deduzida, porque nem sempre

encontraria justificativa. Conseguintemente estamos de acordo com o ilustre jurista da tese supramencionada. No regime da separação de bens, mesmo o decorrente da lei, a venda entre cônjuges é válida, até que se prove cogitar-se de um ato praticado com o fim de fraudar a lei.

b) Venda de ascendente a descendente – Profundas divergências ainda açoitam a questão da

venda de ascendente a descendente. O art. 1.132 do Código Civil, prescreve: “Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consistam”. A primeira questão que exsurge é a de saber se a falta de consentimento do

descendente exigida no artigo supracitado constitui motivo de anulabilidade ou de nulidade do ato jurídico.

A lição de Clóvis (1) é no sentido de que o Código Civil exigiu tal consentimento como condição substancial, cuja falta determina a nulidade do ato, diferentemente do Direito Anterior em que se cogitava de simples anulabilidade, dada a possibilidade de haver o consentimento tácito.

Tal doutrina, porém, foi vantajosamente repelida pelo ilustre jurista – Desembargador Amilcar de Castro – no voto que como vogal proferiu na Apelação n.º 2.075, da 2.ª Câmara do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Ac. de 23 de fevereiro de 1948, in Diário, de 9-7-1948). Ressalta ter o

Código Civil exigido o consentimento expresso, para resguardar a venda da ação anulatória, mas que era possível uma venda válida, prescindindo do consentimento dos demais descendentes, como no caso do decurso do prazo prescricional ou no de ter sido a venda

efetuada realmente e sem nenhum prejuízo das legítimas. A anulabilidade, acrescenta, parte do fim da lei, visando evitar uma doação simulada, sob pretexto de venda, fraudando a legítima, sendo a razão da jurisprudência mais de uma vez ter reconhecido escoimada de qualquer nulidade a venda quando provadamente não ocasiona prejuízo algum às legítimas. Põe em

(1) – Clóvis, Com. pág. 308.

[332]

destaque que o fato de poder a venda convalescer, expirado o prazo prescricional de apenas 4 anos, é inconciliável com o princ ípio da nulidade absoluta do ato.

Com muito brilho e erudição, o Desembargador J. Benício defendeu ponto de vista contrário, isto é, o de que a falta de consentimento dos demais descendentes implica na nulidade da venda.

Para êle, a expressão legal em forma imperativa, como “o ato é nulo” ou então “tal pessoa não pode praticar”, o fato do art. 1.132 do Cód. Civil ter um interêsse não só privado como público , tudo isso é suficiente para indicar que se cogita de uma nulidade.

Entende que a lei exige o assentimento de todos os descendentes, em harmonia de modo que a falta de qualquer dêles impede a realização do negócio.

Refere-se a um brilhante estudo sôbre a matéria publicado na Revista dos Tribunais (vol. 109-

380), onde se acentuou pouco importar que a decretação dessa nulidade venha a ferir alienações feitas verdadeiramente. Considera impossível qualquer ressalva, mesmo em se tratando de uma venda real, séria, pois considera a prova da verdade. Invoca o disposto no art.

130, combinando-o com o art. 132 do Cód. Civil, para exigir mesmo a concordância expressa e pela mesma forma. E‟ nulidade absoluta, sustenta, porque decorre automática do simples fato de faltar o consentimento do descendente.

Depois de recordar a lição do emérito Prof. Gondim Filho, publicada na Rev. de Jur. Brasileira,

indicando o volume como sendo o 147, e onde o ilustre professor sustenta o caráter de anulabilidade em relação à infringência do art. 1.132 do Código Civil, por isso que só é invocável pelo interessado, embora se possa classificá-la como uma figura autônoma e distinta do vício de

anulabilidade em geral, dada a inaplicabilidade do princípio da validade do ato enquanto não anulado por sentença, observa, entretanto, que é uma nulidade suscetível de poder ser decretada pelo próprio juiz, num processo de inventário.

A despeito do fulgor que jorra dêsse bem estudado voto vencido, adotamos o ponto de vista do

Acórdão, da lavra de Amilcar de Castro, dadas razões contidas no estudo do Prof. Gondim Filho, de fundamentos irretorquíveis.

O caráter de nulidade absoluta em nosso direito é o poder ser ela demandada por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir; é o de comportar ser

pronunciada pelo juiz, ao conhecer do ato ou dos seus efeitos e a encontrar provada, não lhe sendo permitido supri-lo, ainda a requerimento das partes (art. 146 e parágrafo único do Código Civil). Esta é a regra do regime da nulidade absoluta em nosso direito. Tal é igualmente o critério cognoscendi da nulidade absoluta. Como bem acentua P.

[333]

Kaiser (2), ao fixar as diferenças entre a nulidade absoluta e a relativa: “il subsiste cependant cette différence, entre ces deux varietés de nullités, que nullité relative, comme son nom I‟indique, ne peut en principe être invoquée que par une personne. Cette différence s‟explique

parce qu‟elle a principalement pour but la protection d‟un individu determine, qu‟il s‟agisse d‟un incapable ou de la victime d‟un vice du consentement”.

A argumentação trazida com base em se compor a infração à lei com o simples fato da ausência de consentimento do descendente, não justifica a sua elevação à categoria de nulidade absoluta;

carece de procedência, pois inere ao caráter da prova e não ao automatismo da nulidade absoluta. O que não se pode ocultar é que a violação ao art. 1.132 do Código Civil só pode ser alegada pelo próprio prejudicado; que o juiz não a pode decretar ex-offício; que, instituída para

proteger o descendente contra uma dação inoficiosa mascarada pelo contrato de compra e venda, o ato pode ser ratificado por aquêle que não deu o consentimento no momento oportuno, porquanto o objetivo da lei ficou atingido, pelo reconhecimento do protegido, afirmando a

seriedade do ato, tal qual se êle houvesse manifestado o seu consentimento no momento de sua feitura.

Por conseguinte, faltam no caso alguns dos elementos reconhecidos pelo nosso direito positivo como necessários a compor a nulidade absoluta.

c) Suprimento judicial do consentimento do descendente. – Um segunda questão, ìntimamente

ligada à primeira, é a de saber se o consentimento do descendente, para o efeito do art. 1.132 do Código Civil, uma vez recusado, pode ser suprido pelo juiz. Em regra, a resposta favorável ou

não depende do ponto de vista sôbre a nulidade resultante da infringência ao citado dispositivo:

para os que entendem existir uma simples anulabilidade, o suprimento judicial é possível; para o que tomam como uma nulidade absoluta, tal suprimento não é meio apto de validar o ato.

No já citado acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o voto preponderante de Amilcar de Castro entendeu possível êsse suprimento judicial, enquanto que, em voto vencido, o

Desembargador J. Benício se pronunciou em sentido oposto. O ponto fundamental da maioria foi o de que, na compra e venda entre ascendentes e descendentes, não pode ser absoluto, imotivado, tirânico, arbitrário, nem caprichoso o veto dos demais descendentes, terceiros

interessados”. Efetivamente, desde que se considere a condição de assentimento como não importando uma nulidade absoluta, a con-

(2) – P. Kaiser, Les Nullités d‟Ordre Public, Rév., Trim., 1933, pág. 1.135.

[334]

seqüência mais harmonizada com a evolução do direito é a de se concluir por uma interpretação compatível com a relatividade dos direitos e não por considerar essa prerrogativa, como um

atributo absoluto. Como se observa, há uma tendência cada vez mais acentuada para reduzir-se o ciclo dos direitos absolutos. Assim, o assentimento dos demais descendentes é uma exigência ditada em relação a um determinado fim, de modo que deixaria de ter acolhimento jurídico uma

oposição desarrazoada, sem fundamento, a despeito do interessado reconhecer falta de interêsse em opor-se. Não é razoável o argumento de que o suprimento de outorga de consentimento não se pode dar além dos casos previstos em lei. De modo nenhum. A

interpretação analógica é aqui perfeitamente compatível, desde que haja identidade de fundamentos. O Juiz intervém, por exemplo, para suprir o consentimento paterno denegado para um casamento. O que êle investiga? E‟ se essa oposição tem ou não base em circunstâncias

razoáveis ou se é ela movimento de puro arbít rio. No caso da venda de ascendente a descendente procede da mesma maneira. Limitar-se o disposto no art. 625 do Cód. Proc. Civil exclusivamente ao suprimento do consentimento quando se cogitar de incapazes não parece

consultar ao intuito do legislador. Por isso, e ainda uma vez, ficamos com a opinião vencedora de Amilcar de Castro.

b) Forma mediante a qual deve ser manifestado o consentimento dos descendentes. – Três pontos ficaram fixados a respeito do consentimento dos descendentes quanto à venda de bens

do ascendente ao descendente numa decisão por nós proferida, no processo de dúvida do Tabelião do 12.º Ofício. São êles os seguintes:

a) o consentimento dos descendentes deve ser expresso;

b) deve ser manifestado por escritura pública, se se tratar de imóvel de valor su perior a hum mil cruzeiros.

c) não pode o Tabelião lavrar ou fazer lavrar uma escritura de um ato jurídico quando houver omissão de requisito legal, ainda que esta sòmente produza a anulabilidade do dito ato.

A decisão é a seguinte:

“Vistos, etc.

Omissis......

Isto pôsto:

I – O art. 1.132 do Código Civil preceitua:

“os descendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”.

No caso da presente dúvida, trata-se de uma escritura de compra e venda de imóvel a ser feita por ascendentes e descendentes.

[335]

Para a lavratura dessa escritura foi apresentado ao digno serventuário do 12.º Ofício o documento de fls. 4.

Trata-se de um instrumento particular de quitação da importância de Rs. 3:000 $000

recebida pelos vendedores dos compradores, estando o mesmo subscrito pelos demais descendentes.

No corpo do referido documento ficou consignado o seguinte:

“preço das minhas partes no prédio da rua Fernando Guimarães n.º 14, que, de comum acordo com as minhas filhas e seus maridos, vou transferir -lhes, etc.”.

Nega o Sr. Tabelião do 12.º Ofício que a oposição das assinaturas no dito documento importe num consentimento expresso, como o exige o art. 1.132 do Código Civil.

Saber quando há manifestação expressa e quando há uma manifestação tácita, distinguir as duas modalidades, tem sido o tormento dos juristas.

Refere Mircea Durma (“La Notification de la Volonté”, pág. 242 e segus.) que o significado dos têrmos expresso e tácito escapa a uma decisão precisa, a uma

delimitação concreta. Há o sistema moderno objetivo, baseado na qualificação da ação, considerando expressas as declarações cujo objetivo é exteriorizar a vontade; outros se filiam a um ponto de vista subjetivo, segundo o qual a manifestação expressa seria a que

se traduz por meios destinados, no espírito do declarante, a levar diretamente a vontade ao conhecimento dos terceiros.

Para nós, a manifestação expressa ou tácita é sempre deduzida. A diferença assenta no grau de certeza. A manifestação expressa deve entender-se, segundo a lição de Durma, no sentido de certeza.

Para Scialoja (“Lezioni”, pág. 135) há manifestação expressa quando a vontade se exterioriza por meio de ato destinado a esta manifestação, seja por palavras, escrito ou num aceno qualquer.

E êste nutus vale como expressa declaração e assim outros atos podem ter êste

significado, tanto que o próprio silêncio a própria ausência de qualquer ato pode, em

determinadas circunstâncias, ser tomada, não mais como tácita, mas sim expressa declaração de vontade.

Ora, no caso sub judice, a assinatura do documento particular de quitação por conta do preço da venda das partes do imóvel importa no consentimento expresso nessa

[336]

mesma venda, numa ciência e assentimento ao seu conteúdo.

Há, no caso, elementos inequívocos estabelecendo um grau de certeza que se pode considerar como uma manifestação de vontade indùbitavelmente expressa.

II – Mas um ponto há, não cogitado na dúvida, que constitui obstáculo à lavratura da

escritura: embora tenha havido um consentimento expresso, êle não se manifestou na devida forma.

Trata-se da compra e venda de partes indivisas de um imóvel. Versando sôbre imóvel de valor superior a 1 conto de réis é substancial a escritura pública (Cód. Civil, art. 134, n.º II) e, de vez que, em face do disposto no art. 132 do Cód. Civil,

“A anuência, ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato provar-se-á do mesmo modo que êste, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento”.

Lògicamente a anuência dos ascendentes não pode ser válida constando apenas de um instrumento particular.

Cumpre, em face da combinação dos dois dispositivos – o n.º III, do art. 134 o art. 132 – que conste de instrumento público especial ou do próprio instrumento público de compra e venda.

Aliás essa é a opinião de J. M. Carvalho Santos (Cód. Civ., Int., XVI, pág. 115):

“O consentimento pode ser prestado:

a) no ato da venda;

b) antes do ato; ou

c) posteriormente.

Essencial, entretanto, quando dado em ato destacado, que conste de escritura pública, quando a alienação fôr de imóvel superior a um conta de réis (art. 132).

III – Argumenta, porém, o impugnado que não há interêsse na dúvida, em vista de se tratar de um direito cuja prescrição sòmente corre a partir da morte do ascendente.

A questão pode ser colocada nos seguintes têrmos: o requisito da anuência dos descendentes é substancial, de modo a produzir uma nulidade absoluta, ou

simplesmente a sua falta ocasiona uma nulidade relativa? Neste último caso, tratando-se

de uma nulidade que interessa exclusivamente ao titular do direito, pode o tabelião recusar a lavratura da escritura?

[337]

Quanto ao primeiro ponto, não temos dúvida em nos filiar ao grupo dos que consideram o preceito do art. 1.132 como um dispositivo cuja violação produz apenas a anulabilidade do ato, e isto tendo em vista os seguintes pontos:

a) ser uma nulidade que só pode ser argüida pelo descendente;

b) não se tratar de uma nulidade suscetível de ser argüida pelos credores do interessado;

c) não é uma nulidade que decorre ex-vi do próprio ato, mas se torna preciso ao herdeiro provar que a venda não foi real que visou uma doação afetando à sua legítima.

Ora diferente é a situação do ato nulo da do ato anulável. Êste se consid era válido

enquanto não anulado, o que só ocorre a partir da respectiva sentença (Salvat, “Derecho Civil Argentino”, Parte Geral, pág. 1.095).

Mas nem por isso se pode deduzir que o Tabelião lavre uma escritura com preterição de um requisito que implique na anulabilidade do ato, pois é muito diferente a situação de

quem vai cientemente lavrar um ato com infração a um requisito legal, da que resulta de um ato já consumado com aquela preterição.

Na primeira situação, tem o serventuário obrigação de recusar a lavrar uma escritura, sem os requisitos legais do ato totalmente preenchidos; na segunda situação, se o ato

vier a ser anulado é êle irrecusàvelmente co-responsável pelos danos, se conhecia os motivos da anulabilidade.

E‟ o que ensina F. Dubas (“La Responsabilité Notariale”, págs. 24 e 25):

“Com muita razão, segundo nós, o notário deve ser responsável pelas formalidades do ato que dirige, seja qual fôr a natureza dessas formalidades.”

E mais adiante:

“Funcionário público a quem está afeto o monopólio de conferir autenticidade

aos atos e contratos que podem e devem ter êsse caráter, o notário é evidentemente obrigado a exercer sua atividade por esta autenticação nos limites da lei, isto é, êle não pode, mesmo mediante requerimento, realizar um

ato nulo ou anulável seja porque a operação que constata êste ato carece dos elementos necessários a tôda operação jurídica, seja porque ela é proibida pela lei”.

Em face do exposto, bem procedeu o Sr. Tabelião do 12.º Ofício, pois não lhe era dado mandar lavrar ou lavrar

[338]

uma escritura em que notara haver omissão de um requisito legal que produziria a anulabilidade do ato.

Se no caso o ponto de dúvida – não se tratar de consentimento expresso – não procede, por outro lado, o instrumento no qual se apresentou êsse consentimento não pode ser considerado válido, pois é da sua substância a escritura pública.

Nesta conformidade, e por tais fundamentos,

Julgo procedente a dúvida oposta pelo Sr. Tabelião do 12.º Ofício de Notas.

Rio de Janeiro, 20 de março de 1940.

Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES.

e) incapacidade de adquirir resultante do Mandato e da Representação. – Além dessas

proibições decorrentes do direito de família, o Código Civil, no art. 1.133, vedou a aquisição por compra, ainda em hasta pública, dos seguintes bens e em relação às seguintes pessoas:

a) pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens confiados à sua guarda ou administração;

b) pelos mandatários, os bens, de cuja administração ou alienação estejam encarr egados;

c) pelos empregados públicos, os bens da União, dos Estados e dos Municípios, que estiverem

sob sua administração, direta ou indireta, aplicando-se a mesma disposição aos juízes arbitradores, ou peritos que, de qualquer modo, possam influir no ato ou no preço da venda;

d) pelos juízes, empregados de fazenda, secretários de tribunais, escrivães e outros oficiais de justiça, os bens, ou direitos, sôbre que se litigar, em tribunal, juízo ou conselho, no lugar onde

êsses funcionários servirem, ou que se estender a sua autoridade (Código Civil, art. 1.133, ns. I a V).

A lei excetua apenas o caso da venda ser realizada ou entre co -herdeiros, ou em pagamento de dívida, ou para garantia de bens já pertencentes a pessoas designadas na disposição supramencionada do art. 1.133.

As proibições constantes do art. 1.133 do Código Civil merecem uma especial atenção.

Elas encerram, nos ns. I e II, um obstáculo em nosso Direito (pelo menos em relação aos casos supracitados) à validade dos con-

[339]

tratos consigo mesmo, no direito germânico denominados de Selbskontrahieren ou Selbstsintritt, e por fôrça dos quais se permite a uma pessoa poder autorizar a outrem vender a êle próprio um

imóvel, de modo que o autorizado assinará o ato autêntico ao mesmo tempo como vendedor (em nome do representado) e como comprador (em seu próprio nome) (2).

O Tribunal Federal suíço admitiu o Selbskontrahieren, sòmente no caso de consignar a

procuração uma autorização expressa ou na hipótese de não existir risco de lesão para o representado.

Consistindo o contrato num acôrdo de vontades, é intuitivo que pressupõe a existência de duas pessoas.

Na figura do contrato consigo mesmo, se não surge uma unilateralidade no sentido jurídico,

porque se não dispensam as duas qualidades jurídicas diferentes, há, entretanto, uma unilateralidade quanto à pessoa física incumbida de manifestar a dupla vontade.

Em França essa forma de contrato foi objeto das atenções de Démogue e Planiol et Ripert (3).

Mas a verdade é que, como afirma Henri de Page (4), se teòricamente tais contratos são perfeitamente possíveis, pois que efetivamente duas partes nêles intervêm, na prática

apresentam graves perigos, em razão da oposição de interêsses adunados numa só pessoa que age sob uma dupla qualidade.

Os casos em que se debate a proibição do contrato consigo mesmo são indubitàvelmente, como já se disse, os referentes aos tutores e mandatários, isto é, os previstos nos ns. I e II do art. 1.133 do Código Civil.

Quanto aos tutores, a disposição é por demais clara.

Contudo é preciso notar que a proibição aos tutores é limitada ao tempo em que estiverem exercitando as respectivas funções, admitindo-se ainda que a presunção de fraude júris et de jure, consagrada no Direito Anterior, cedeu lugar, no sistema do Código Civil, a uma presunção

júris tantum, de modo que se considera válida a aquisição, pelos ex -tutores, de bens que terceiros tenham adquirido, durante a vigência da tutela, a menos que haja uma simulação (Ac. do Trib. de Belo Horizonte de 14-12-1997, na Ap. n.º 6.473).

Em relação aos mandatários a proibição produz uma nulidade absoluta, insuprível, pelo juiz,

sendo assim inadmissível que um mandatário incumbido da venda de um imóvel possa vendê-lo a si mesmo, figurando, simultâneamente, como outorgante e outorgado,

(2) – Von Thür, Códe Féderal des Obligations, I, pág. 295. (3) – Démogue, Obligations, VI, ns. 40-48; Planiol, Ripert, Traité, VI, ns. 68-74.

(4) De Page, ob. cit., II, n.º 448.

[340]

nem mesmo por meio de um substabelecimento da procuração a terceiro, para representar o mandante (Ac. do T. de São Paulo, de 21-3-1922, Rev. dos Trib., vol. 42, pág. 45; Ac. do S. T. Federal, in Rev. For., vol. 33, pág. 355).

A nulidade da aquisição pelo mandatário ainda é considerada extensiva ao caso mesmo da

escritura ter sido feita com a intervenção do mandante, de vez que a proibição foi instituída com o objetivo de evitar especulação desleal (Ac. do Trib. de S. Paulo, de 4 -10-1919, Rev. dos Trib., vol. 32, pág. 40).

Neste último caso, J. M. Carvalho Santos distingue três hipóteses, para, finalmente, sòmente

reconhecer válida a venda, quando o mandatário tem apenas poderes para alienar a coisa, sem que dela esteja encarregado da administração (5).

A validade dependerá das circunstâncias. Se o ato da venda se revestir de todos os característicos de uma venda real, com a presença do vendedor e afastada tôda a possibilidade de uma influência perniciosa, é válido, pois êsse próprio fato implica na revogação do mandato.

O ponto de vista acima exposto já se encontra sustentado por Huc (6), ambos admitindo, em tal hipótese, uma revogação do mandato, solução perfeitamente aceitável.

Na Ação Rescisória n.º 124, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiu que “o mandato não proíbe que o representado venda ao representante, sòmente vedando que êste se faça a si

mesmo venda do que àquele pertence (Ac. do Sup. Trib. Federal, de 30 de abril de 1947, in Diário da Justiça de 10 de novembro de 1948, págs. 3.03503.038). Interessante é reproduzir os fundamentos dêsse julgado, cujo relator o eminente Sr. Ministro Orosimbo Nonato, manifestou -se do seguinte modo:

“No caso dos autos, discute-se, ainda uma vez a aplicação e a inteligência do art. 1.133 do Código Civil. A questão, a princípio, foi julgada pela Segunda Turma e a parte alegou, que preexistiam, simultâneamente, mandatos para alienar e para administrar. Apesar da

argüição incidir nesses dois fatos, a Segunda Turma verificou apenas o caso do mandato para alienar e decidiu que, então, a venda direta não era defesa, mas relegou a desmerecido olvido a segunda argüição, levantada desde o comêço da demanda.

No Tribunal Pleno, ousei divergir da Turma, entendendo que os casos deviam ser compreendidos diferente-

(5) – J. M. Carvalho Santos, ob, cit., XVI, págs. 135-136. (6) – Huc, ob. cit., X, pág. 79; Démogue, ob. cit., I, pág. 123.

[341]

mente. Quando se trata de mandato para venda, a venda direta não é proibida; quando, porém, o caso é de mandato para administrar, a venda é proibida, ainda que direta, até

porque nesta segunda hipótese só se compreende a venda feita diretamente. Ninguém pode servir-se de mandato para administrar ao fito de, por fôrça dêle, figurar como adquirente. E justamente para evitar essa conjuntura, veio a lei, proibindo que a venda se faça em tais têrmos.

E‟ possível que alguém com o mandato, para vender, pretenda figurar do mesmo passo, como mandatário do vendedor e comprador em nome próprio. E a lei proíbe.

Quando, porém, o mandato é para administrar, essa hipótese é inadmissível, porque ninguém pode, com mandato para administrar, dêle servir -se para efetuar a venda. Logo,

a lei só compreende a hipótese, quando se trata de mandato para administrar, a hipótese de venda direta, que proíbe.

O voto que formulei é sucinto e encerra-se nestes têrmos:

“D. Alzira de Matos Loureiro, pôsto fôsse mandatária da dona do prédio sito nesta cidade, à Avenida Gomes Freire, 25, adquiriu-o para si própria. Esforçado no artigo

1.133, n. 167 2 do Cód. Civ., alegando a impossibilidade da aquisição, pois a outorgada

compradora recebera não só poderes para alienar, senão, ainda, para administrar o prédio que veio a adquirir. Mas a ação não logrou êxito, e, manifestando recurso extraordinário, não mereceu provimento, fundada a turma julgadora em que a proibição

do art. 1.133, n.º 2, do Cód. Civil, não alcança o caso da venda direta do mandante ao mandatário. Houve, em embargos, discordância. Não se impugnou a doutrina do “acórdão“, mas a divergência em que se mantiveram os eminentes ministros Fi ladelfo

Azevedo e Laudo de Camargo e o modesto relator dêste feito estava em que a compradora, sôbre o mandato para alienar, recebera, ainda, o de administrar, caso em que se mostra desinfluente tratar-se de venda direta.

Propõe agora o espólio rescisória dos “acórdãos” dêste Supremo Tribunal e dos julgados

por êles confirmados, ofensores, todos, na sua argüição, da let ra do art. 1.333, incisos I e II do Cód. Civ., para que, em final, se proclame a nulidade “do compromisso de compra e venda lavrado nas notas do tabelião do 13.º Ofício desta Capital, no liv. n.º 138, fls. 100 e seguintes, aos de 19 de setembro de 1933,

[342]

bem assim da escritura definitiva lavrada no mesmo tabelionato liv. 138, pág. 19 verso e seguintes, aos 32 de dezembro de 1933, em que constam como partes a finada Henriqueta Alves Pinto da Silva, ora representada por seu espólio, e a Suplicada,

condenada esta nas custas e mais cominações inclusive honorários de advogado, sendo aquelas em décuplo, por recorrer nos atos impugnados à hipótese do art. 63, § 2.º do C. P. Civ...”

No que tange ao mandato para alienar, continuo a pensar que o “acórdão” rescindendo não delirou da lei e da doutrina.

Subsistem, nesse particular, as razões em que se fundaram os votos vencedores, nesse pouco com a concordância dos votos vencidos.

Se o dominus aliena diretamente ao mandatário, o adquirente não figura na qualidade de mandatário, não se prevalece do mandato em proveito próprio, fazendo, do mesmo de

adquirente e de mandatário do vendedor. Cessa, racionàvelmente, o motivo mesmo da vedação, que visa a não permitir se cumulem em uma só pessoa “gli interessi di venditore e di compratore” (Cuturi, La Vendita, n.º 44 in fine) e na qual Bufnoir e outros

comentistas do Cód. Al. vêem uma aplicação do princípio que proíbe o “selbstcontrahirem” (Com. ao artigo 457, do B.G.B.).

A melhor doutrina é nesse sentido.

Ricci:

“Le supponiano... che lo stesso mandante venda al suo mandatário la cosa, che questo aveva ricevuto incarico di vendere, non púo a questo caso estendersi il divieto, si perchè,

in siffratta ipotesi, l‟acquirente non agisce nella qualità di mandatário, nè si prevale della medesima con periculo di effetituandosi la vendita direttamente al mandante, s‟itende com tal fatto tacitamente revocato il mandato”.

(Corso, vol. 7.º, 3.ª ed., n.º 133 in fine).

E Cuturi robora o conceito observando que “nella proposta stessa del contratto sareble implicitamela revoca del mandato” (La Vendita, Cessione e Permuta, pág. 43).

O mesmo, porém, não passa no caso de mandato para administrar. E‟ possível notar que a vedação da lei é, no caso, rigorosa além da conta. Convenho em que vai demasia na proibição. A preocupação de não colocar o “intèrêt personnel aux prises avec le devoir” (vêde Laurent, Prin-

[343]

cipes, XXIV, n.º 431) não devia prevalecer com a mesma intensidade nos dois casos. Razões não escassearam ao legislador do Código do Consulado quanto ao rompimento nesse particular, e as tradições do direito costumeiro (vêde Laurent, vol. cit., n.º 47).

Uma vez, porém, que a vedação existe, exposta em têrmos desenganados, na lei pátria, razão é que se reconheça que, no caso de mandato para administrar, o comparecimento pessoal do dono no ato da venda desapresenta qualquer alcance na eliminação da

nulidade, remanescendo, íntegros, ainda nessa hipótese, e ao contrário do que passa no mandato para a venda, os motivos da proibição. E‟ o que reconhece, com justeza, Carvalho Santos, figurando a hipótese da venda direta do dono ao mandatário administrador do bem adquirido.

“O comparecimento do mandante aí não tem influência alguma, por isso que o que a lei veda é que o administrador, no exercício de suas funções, tenha preparado o terreno para foraçar a alienação, como, por exemplo, fazendo o imóvel dar renda insignificante,

de modo a fazer gerar no espírito do mandante a convicção de que necessário... se faz alienar tal propriedade, que não dá lucros ou rendimentos compensadores. E o comparecimento do mandante não pode ter influência precisamente porque não afasta a possibilidade de fraude, que a lei quis evitar”.

(Cód. Civ. Int., vol. XVI, pág. 134).

No caso do administrador, a venda direta não faz evaporar a presunção de “especulação desleal” a que se refere Huc e constitui o fundamento do veto.

As razões dêsse veto, quanto ao mandato para alienar, desaparecem no caso de venda direta: a) pagam-se as avultações com o “selbstcontrahirem”, deixando o mandatário de

aparecer como vendedor, pelo mandante, e como comprador por si próprio; elimina-se a presunção de haver o interêsse pessoal subordinado os deveres do procurador e a mesma proposta, que antecede a venda, constitui motivo de revogação do mandato.

E nenhum dêsses motivos influi, como é óbvio, quanto ao mandato para administrar.

Nem a proposta encerra motivo de revogação tácita do mandato, nem existe, no caso, a preocupação de retirar a venda visos de contrato consigo mesmo, nem desaparece o temor da especulação desleal.

Quer dizer: a vedação permanece, em todos os seus têrmos, tal como a estabelece, peremptòriamente, duramente –

[344]

reconheça-se, no caso – o art. 1.133, números I e II do Código Civil.

Sem qualquer menosprêzo aos v.v. acórdãos dêste Supremo Tribunal, tenho que, mandando subsistisse a venda, vulneraram êl es têxto expresso de lei.

A essas razões, acresce que a proibição da lei ficaria ociosa se se permitisse, no mandato para administrar a venda direta, porque nunca poderia o mandatário, armado de poderes para administrar um imóvel pretender adquiri -lo por fôrça dêsse mandato. No

caso de mandato para venda, tal hipótese seria possível e esta possibilidade é que explica, exatamente, a vedação.

O mandatário para administrar não pode comprar para si o bem administrado, por vedação desenganada, peremptória da lei em têxto expresso a mais não poder ser expresso.

E‟ exato, como declarei, que essa proibição é demasiada, tanto que os códigos francês e italiano, que acolhem a proibição de venda ao mandatário para alienar, não incluem a do mandatário para administrar.

O nosso Código, em texto peremptório, incluiu também a vedação no caso do mandato

para administrar. Enquanto que na hipótese do mandato para venda, a alienação direta faz cessar os motivos da proibição, no mandato para administrar êsse princípio permanece íntegro. E concluir o contrário seria tornar o dispositivo um “flatus vocis”, pois a venda sòmente pode ser direta, no caso de mandato para administrar.

O eminente advogado da Ré também alegou, da tribuna, que sempre o Supremo Tribunal compreendeu a ação rescisória em limites muitos estreitos. Tenho formado, sem hesitações, na corrente que se dirige neste sentido; a ação rescisória só se dá

quando o texto da lei é vulnerado em sua superfície verbal e não quando o Tribunal local ou o próprio Supremo Tribunal tende a uma interpretação que, pôsto discutível, tenha em seu favor aparência de verdade, de procedência e motivos consideráveis.

Mas, não vejo, d. v., como se possa negar que, com o “acórdão”, o texto de que se t rata ficou reduzido a um corpo inerte no caso de mandato para administrar, a vedação da lei.

VOTO

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães – O inventariante do espólio de Henriqueta Alves Pinto da Silva pro-

[345]

pôs, com fundamento no art. 798, I, c, do Cód. Proc. Civ., ação rescisória contra Alzira de Matos Lourenro, “para o fim de ser decretada a rescisão do Venerando Acórdão

proferido por êste Excelso Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário n.º 4.944, aos 27 de janeiro dêste ano (sc. 1944), pelo qual, por uma maioria eventual de quatro votos contra três, contra proibição expressa do disposto no

art. 1.133 do Código Civil, foi negada a nulidade do compromisso de compra e venda do prédio da Avenida Gomes Freire n.º 25 e a respectiva escritura definitiva..., em que a ré, em pleno exercício das funções de procuradora e de administradora do mesmo imóvel, com os mais amplos poderes, figurou como adquirente......”

Entendeu o relator do acórdão rescindendo, Sr. Ministro Castro Nunes, que o art. 1.133,

II, do Cód. Civ. não proíbe ao mandante que venda bens ao mandatário, “comparecendo pessoalmente ao ato e assinando a escritura, o que importa na revogação do mandato para o negócio de que se trata” (fls. 15).

Ao contrário, o revisor, Sr. Ministro Orosimbo Nonato, achou razão ao espólio então

embargante, ora autor, “em face do texto expresso do número II, do art. 1.133 do Cód. Civ., que defende possam ser comprados, ainda em hasta pública, pelos mandatários, os bens de cuja administração estejam encarregados. Nesta hipótese, não apresenta qualquer momento seja alienação efetuada, sem intermediário pelo dominus”, fls. 16 v.).

Tem-se tornado preponderante a jurisprudência que não considera vedada pelo art. 1.133, II, a venda feita pelo representado a seu representante, que r tenha sido êste nomeado para gerir, quer para alienar os bens.

Embora siga orientação diversa, o Sr. Ministro Filadelfo Azevedo salientou que a maioria

de decisões dos nossos tribunais admite a eficácia daquela venda (Rev. For., vol. XCVII, pág. 613).

Aceito a jurisprudência dominante, que dá, em meu parecer, interpretação exata ao disposto no art. 1.133, II, do Cód. Civ., onde se aplica o princ ípio que proíbe o negócio do representante consigo mesmo.

A fixação dêste princípio concorre para demonstrar que nenhuma razão se opõe à venda feita pelo representado ao gestor de seus negócios. Até o célebre artigo de Roemer, publicado na “Goldschmidts Zeitschrift f. Handelsrecht”

[346]

(XIX, págs. 67-69), a doutrina do direito comum não havia atingido o fundamento dos

casos em que ora se admitia, ora se proibia o auto contrato do representante. Roemer assinalou, porém, que só um princípio se opunha ao negócio jurídico de uma pessoa consigo mesmo: é que ninguém pode criar direitos e correlativas obrigações para si mesma.

O direito romano só excepcionalmente admitiu a representação direta, e, portanto, só por exceção admitia o autocontrato. Eram três as exceções: 1.º) o pagamento feito pelo representante a si mesmo no cumprimento de obrigação do representado (D. 26-7-9, §§

3-5); 2.º) o empréstimo que o representante se fazia a si mesmo (D. h. t., 9, §5.º); 3.º) a venda que o representante se fazia a si mesmo em subestação pública (D. 41, 4.2, §§ 8.º e 9.º).

Oposta à última exceção, vigorava a regra, sempre repetida na doutrina de nosso antigo

direito e enunciada no D. 18-1-34, § 7.º: Tutor rem pupilli emere non potest; idemque porrigendum est ad similia, ie est ad curatores procuratores et fui negotia aliena gerunt.

O que o nosso Cód. Civ. dispõe, no art. 1.133, I e II repete esta regra, eliminando a exceção, isto é, proibindo a venda ainda em hasta pública.

As codificações modernas foram mais rigorosas que o direito romano na admissão dos casos de autocontrato.

Estabeleceu-se a nova orientação com o preceito do art. 1.596 do Cód. Civ. francês, reproduzido no artigo 1.457 do Cód. Civ. italiano e também seguido entre nós.

A única diferença, quanto aos representantes voluntários, entre o nosso direito e o francês, é que êste se refere a mandatários, em relação aos bens de cuja venda foram incumbidos (art. 1.596, al. 3.ª), ao passo que o nosso art. 1.133, II, fala em “bens de cuja alienação ou administração estejam encarregados”.

É claro, porém, que, não havendo autocontrato, desaparece a proibição. A jurisprudência francesa assim entendeu, por considerar revogado o mandato, quando o mandante, vendedor, autoriza a aquisição pelo mandatário (Bordéus, 5 de abril de 1894).

Quanto ao mandatário com poderes de administração, a Cassação francesa não teve

dúvida em admitir que pudesse comprar bens de seu representado (8 de dezembro de 1862). Em nosso direito, o mesmo não se pode dizer, porém, o representado mesmo vende a seu procurador ad negotia,

[347]

não se pode falar em negócio do representante consigo mesmo, impondo-se a conclusão adotada quanto ao mandatário autorizado a vender bens.

Esta conclusão assume poder persuasivo, se considerarmos o princípio proibitivo do negócio jurídico do representante consigo mesmo, tal como é anunciado pela jurisprudência que se formou a respeito do artigo 131 do Cód. Civ. alemão.

O contrato consigo mesmo é vedado, salvo, primeiro, se a lei, o contrato ou a outorga do

poder o permitirem, ou se o negócio fôr realizado no cumprimento de obrigação; segundo, se o representado o ratificar (Enneccerus – Nipperdey, Lehrb, des buerg, Bechts, 1931, § 168, III, pág. 552).

Daí resulta claramente que, comprando bens ao próprio mandante, o mandatário não os

está vendendo a si mesmo, não está procedendo em nome do mandante, e, assim, desaparece o perigo de serem preteridos os interêsses do representado. E‟ êste mesmo quem vende seus bens. A venda é lícita, qualquer que seja a extensão do poder

outorgado. O mandato não proíbe que o representado venda ao representante; proíbe sòmente que êste se faça a si mesmo venda do que àquele pertence.

O acórdão rescindendo não foi proferido contra a literal disposição do art. 1.133, II, do Cód. Civ., aplicada, ao contrário, segundo a interpretação mais adequada a sua origem e a sua finalidade.

Julgo a ação rescisória improcedente e condeno o autor ao pagamento das custas.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – Senhor Presidente, peço perdão aos eminentes colegas de, a essa altura da sessão, e nos seus últimos instantes , voltar ao assunto e enunciar algumas breves considerações despertadas pelo erudito voto do

eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães. Ouvi o pronunciamento de S. Exa. com o respeito devido, e com a cordial disposição de mudar de voto se me convencesse de

estar labutando em êrro. Entretanto, entendo, data vênia, que o seu brilhante voto

provou duas coisas: primeiro, que no caso de mandato para a venda a vedação desaparece com a venda direta; segundo, que não havia razão para o que dispõe à lei quanto ao simples mandato para administrar.

[348]

Essas duas teses forram magnificamente expostas, porque S. Exa. entende que o fundamento da regra é a vedação do autocontrato, do contrato consigo mesmo. Ora, êsse fundamento é certo que só prevalece para o caso de mandato para a venda e não

para a administração em que jamais nunca poderia o mandatário comprar por fôrça do mandato, e, pois, sòmente pode ocorrer a venda direta. Negócio consigo mesmo seria impossível quando o comprador tivesse apenas poderes de administrar. O Código Civil

colocou as vedações no mesmo plano, mas essa convizinhança de dispositivos não quer dizer que sua natureza seja a mesma. O fundamento diverge. Enquanto que no caso de mandato para venda a vedação é do contrato consigo mesm o a vedação no caso do

administrador é outra, e tem sua raiz no propósito de evitar conflito entre o zêlo do administrador de coisa alheia e com o propósito de adquiri-la vantajosamente. O Código Civil proíbe ao curador, ao tutor, ao administrador, sempre e em todos os casos, e isso

genèricamente, a compra de bens que estejam sob sua administração.

Estou de acôrdo com o Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães em que, de lege

ferenda, a proibição é excessiva. Tanto que o Código Francês não a admite. Assim, a jurisprudência daquele país pôde, sem ofensa de lei, e acolhendo a melhor doutrina,

admitir, no caso de mandato para administração, a validade da compra. E essa venda não é proibida em virtude do princ ípio que veda o auto-negócio, o autocontrato, porque jamais o mandatário com poderes para administrar poderia pretender servir -se do

mandato para aquisição. Se o fizesse, ocorreria, com as naturais conseqüências, excessos de poderes.

A proibição é categórica, e tanto isso é exato, data vênia, que a se entender como o Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que ambos os dispositivos têm a mesma

origem, a mesma raiz, alimentam-se da mesma seiva e derivam do mesmo princípio vital, ficaria ocioso o texto que proíbe a venda ao mandatário com poderes apenas para administrar. Jamais poder-se-ia conceber qualquer caso em que êsse mandatário

pretendesse comprar por fôrça dêsse mandato, o que não acontece no caso do mandato para a venda.

A permitir-se, pois, a venda direta – única possível – ficaria eliminado o dispositivo.

[349]

As vedações encontram-se convizinhas, mas distanciam-se em sua significação, em sua finalidade e em sua origem. Um deriva do princ ípio teórico que veda o autocontrato,

outra deriva do princípio moral de que, quem administra coisa alheia, não pode pretendê-la ou incorporá-la como comprador.

Sou forçado, data vênia, a insistir em repulsar o argumento de que, em ambos os casos, veda-se o autocontrato, o que sòmente podia visar ao caso do mandato para alienar.

O Código Civil foi exagerado, foi rigoroso, não seguiu a esteira dos Códigos Francês e

Italiano, mas parece-me peremptória a vedação de que se trata. E a opor-se-lhe o temperamento da venda direta – muito própria para o caso do mandato para vender – ter-se-ia praticado uma “interpretatio abrogans” porque sòmente é possível, nesse caso, a venda efetuada diretamente pelo dominus.

EXPLICAÇÃO

O Senhor Ministro Hahnemann Guimarães, (Revisor) – Sr. Presidente, da explicação dada pelo eminente Sr. Ministro Relator, resulta que talvez haja sido infeliz a fórmula adotada pelo nosso legislador no art. 1.133, inciso II, do Código Civil. S. Exa. desejaria, então, corrigir essa infelicidade, o que, porém, é trabalho de interpretação.

A aplicação daquele dispositivo não rende ensêjo a ofensa da sua letra. Pode-se entender que a disposição legal só se refere ao autocontrato, ao contrato consigo mesmo, sendo admissível a venda do representante, pelo representado, porque, nesse

caso, não há autocontrato. Trata-se de trabalho de interpretação, não havendo, pois, possibilidade de se ofender literalmente disposição legal, para que haja, em conseqüência, fundamento para ação rescisória com êsse fundamento, pois que se t rata de interpretar disposição legal cuja redação foi infeliz.

Atendi à objeção do eminente Sr. Ministro Relator, tanto que assinalei o seguinte no meu voto:

“A única diferença quanto aos representantes voluntários, entre o nosso direito e o francês, é que êste se refere a mandatários, em relação aos bens de cuja

venda foram incumbidos (art. 1.596, alínea 3.ª), ao passo que o nosso art. 1.133, II, fala em “bens de cuja alienação ou administração estejam encarregados”.

[350]

Assinalei a diferença; não escolhi entre o nosso Direito e o francês. E adiante esclarece:

“E‟ claro, porém, que, não havendo autocontrato, desaparece a proibição”.

Pelo fato de o procurador ad-negotia – não poder comprar, não se segue que a razão da disposição não seja o autocontrato; o que se segue é a impossibilidade do administrador comprar bens do administrado, por ato próprio. E‟ o que se pode concluir daí.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – Se isso é exato, o que se depreende é que a razão de ser da vedação não é a proibição do autocontrato.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – Parece-me desnecessário discutir – porque sôbre isso julgo não haver dúvida – que, à luz da doutrina, a origem dessa vedação seja a proibição do autocontrato.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – V. Exa. entende que a regra é a proibição do autocontrato. Está em seu luminoso voto e é adotada pelos juízes modernos. Se a razão é essa, não prevalece para o caso de venda a administrador, em que nunca poderá haver autocontrato. Entretanto, êsse caso foi previsto no Código Civil.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – A disposição do nosso Código Civil

repete o texto do “Digesto”, 18-1-34, §7.º, que tive ocasião de ler, ao proferir meu voto. Sempre se entendeu que a razão da proibição fôsse vedar o autocontrato, que levaria o mandatário a preterir os interêsses do mandante. Não havendo essa preterição, sendo a

venda realizada pelo próprio dono, não há nulidade, porque não há razão para a proibição. Porque não seja possível a mero administrador comprar bens, não se segue que fique proibida a venda do representado ao representante. A conclusão é muito forçada. De qualquer modo, é trabalho interpretativo. Não resulta expressamente da lei.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – V. Exa. está procurando explicar a lei, por exegese muito sutil.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – A Côrte de Cassação Francesa nunca teve dúvidas em admitir que o representante possa comprar bens do representado.

[351]

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – Na França não há proibição. A questão é doutrinária e os juízes franceses, têm, pois, maior liberdade.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – Em nosso Direito, mesmo, não se pode dizer que não haja tal possibilidade de compra. Se o próprio representado vende a procurador ad negotia, não se pode falar em autocontrato, em vende a si mesmo.

Devemos interpretar a lei de maneira que se preste a bom emprêgo, e esta é a maneira de se dar explicação razoável à lei.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – Pediria a V. Exa. que me esclarecesse quando terá aplicação o dispositivo do Código Civil que proíbe a venda a mandatário com meros poderes de administrar.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – Não se pode inferir da lei que esta proíba a venda feita pelo próprio dono. Ao intérprete compete esclarecer a lei, atendendo a seu fim.

O Sr. Ministro Orosimbo Nonato (Relator) – Quando os têrmos da lei permitem êsse

esclarecimento. A lei é rigorosa, mas eu me atenho à sua letra. O que não é possível é fazer o juiz papel de legislador.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Revisor) – De qualquer modo, nunca poderia haver, na hipótese dos autos, ofensa à letra da lei, de maneira a render ensêjo a ação rescisória.

Mantenho, pois, meu voto.

VOTO

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa – Sr. Presidente, a brilhante discussão travada em tôrno do artigo 1.133, número II, do Código Civil, ressaltou que há apenas um ponto de divergência entre os luminosos votos dos Srs. Ministros Relator e Revisor. Ambos

entendem a segunda parte do dispositivo no sentido de que tôda vez que o mandatário adquire bens mediante escritura outorgada pelo proprietário, não há nulidade. Apenas o

Sr. Ministro Orosimbo Nonato, com a sua percuciência e elevado apuro jurídico, alinhou

argumentos para mostrar que êsse artigo deve ter outro alcance em relação à sua primeira parte. O primeiro membro do artigo reporta-se à venda possìvelmente feita ou realizada pelo administrador de bens. S. Exa. sustenta

[352]

que seria impossível ao mero administrador de bens adquirir êle próprio a coisa uma vez que não tinha outorga nesse sentido.

Quer me parecer, como sustentou o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que o dispositivo não foi feliz. O texto, por assim dizer, extravasou do princípio, talvez, porque, quase sempre, quando se outorga procuração para um terceiro administrar bens e

vender, também se outorgam poderes para administrar. Ocorre, via de regra, que o proprietário, não podendo, êle próprio, administrar o bem o confia a um terceiro para que o venda. Correntamente, o que acontece é isso mesmo; o proprietário, ou porque não

possa, ou porque esteja distante, entrega a administração do imóvel e sua venda a um terceiro, que constitui seu mandatário.

Talvez por isso, na primeira parte, no primeiro membro do dispositivo se tenha em vista essa finalidade.

Mas o que não se pode ver, segundo me parece, data vênia, é uma nulidade no fato do

proprietário, que tem a livre disposição do bem, como dono da coisa, e que comparece em cartório sem nenhum impedimento para vender êsse bem ao respectivo administrador ou àquele a quem outorgou a procuração para vender.

Por aí basta ver que a só presença do proprietário em cartório, para dispor daquilo que é

seu, desfaz o contrato que até então existia entre êle e seu mandatário para que êste administrasse os bens e os vendesse.

A simples presença, a declaração perante o tabelião de que quer vender o bem ao seu próprio mandatário, que era administrador e incumbido de vender o bem, a meu ver

desfigura aquêle contrato. Devemos dar aplicação à lei de acôrdo com a realidade como os fatos se apresentam. Se tiver havido fraude aos direitos do proprietário, êste anulará a venda por êrro, alegando as circunstâncias que o induziram a isso. Seria, por exemplo,

o caso de um administrador que tivesse provocado a depreciação do bem para inculcar a venda a si próprio. Nesse caso, o proprietário seria induzido à venda, e teria direito a ação, porque praticar um ato induzido por êrro. Demais disso, parece -me que a

aplicação do dispositivo, nos têrmos em que o foi, e como a hipótese se apresenta, não dá margem à propositura da ação rescisória, uma vez que se trata de mera interpretação de dispositivo de lei.

[353]

Data vênia do Sr. Ministro Relator, o meu voto é no sentido de acompanhar o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

VOTO

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: - Senhor Presidente, não se pode ter como decisão proferida contra literal disposição da lei, a que está em causa.

Trata-se de interpretação autorizada de um texto legal, interpretação que fere, não viola a própria lei, nem mesmo a tese jurídica.

Quando desembargador tive ocasião de decidir hipóteses semelhantes no sentido do voto do Ministro Revisor, entendendo que o comparecimento pessoal do mandante

desfaz o impedimento para a venda de bens ao mandatário, cujo mandato lhe outorgava poderes para administrar os bens objeto da transação.

Nesse caso, não mais se pode falar em mandante e mandatário, mas simplesmente em vendedor e comprador, cessando, portanto, a proibição do texto legal que visa impedir

que o mandatário venha alcançar vantagem adquirindo para si o que lhe competir administrar ou vender.

Assim, data vênia do eminente Ministro Orosimbo Nonato, cujos votos são sempre por mim ouvidos com a maior admiração, acompanho o Ministro Hahnemann Guimarães.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: - Senhor Presidente, como relator do acórdão ora em

debate, objeto de ação rescisória, sentir-me-ia dispensado de fundamentar o presente voto uma vez que, na brilhante discussão ora travada neste Tribunal e em que tomaram parte precìpuamente, os eminentes Srs. Ministros Relator e Revisor, êste último, o

Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, acrescentou os fundamentos de que poderia necessitar o voto que proferi no anterior julgamento da causa, para sua melhor justificação. Mas o ponto de vista em que se colocou o eminente Sr. Ministro Orosimbo

Nonato, relator do presente feito, as razões que S. Exa. expendeu, as questões doutrinárias que suscitou, e que tomaram tal relêvo, obrigam-me, embora nada de novo tenha a acrescentar, a fundamentar

[354]

ligeiramente as razões pelas quais mantenho o voto que proferi no julgamento dos embargos.

A meu ver, as duas hipóteses – a de alienação e a de administração – estão colocadas pelo Código Civil, data vênia do eminente Relator, no mesmo plano e as razões por S. Excia. invocadas, com o brilho costumeiro da sua palavra e da sua grande erudição são

as mesmas que poderiam levar à conclusão de que o ato do administrador, do mandatário, é sempre nulo, em qualquer hipótese. O mandatário, conforme muito bem salientou o eminente Sr. Ministro Ribeiro da Costa, em geral tem poderes para

administrar e vender. O mandatário, que recebe no mesmo instrumento essas duas ordens de poderes, pode, no uso dos poderes para administrar, ter contribuído, para que o mandante seja obrigado a vender o bem. Por outro lado, recebendo poderes para

vender, poderia conduzir mal o negócio, até calculadamente, de modo a levar o mandante a vender o imóvel, assim depreciado. Conforme ponderou, porém, o eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, em seu exaustivo e brilhante voto, a jurisprudência

se inclinou preponderantemente, para a interpretação por S. Exa. adotada. Afastada a

questão doutrinária, e considerando apenas os têrmos da disposição legal, o que se

verifica é que as duas interpretações são possíveis. O ato proibido, conforme salientou o eminente Sr. Ministro Revisor, é o ato do próprio mandatário, comprando bens do mandante; não é o ato do mandante, que intervém para os alienar ao mandatário. O

mandante pode, a todo tempo, revogar o mandato, pode alienar a coisa por ato seu, próprio, intervindo e comparecendo em cartório.

Desde que interveio na escritura, penso que não há nulidade. Do contrário, chegaríamos à conclusão de que, concedido o mandato para administrar ou para vender, o mandante

não poderia praticar nenhum dos atos da vida civil, quando é certo que êle poderia, hoje revogar o mandato e, amanhã vender.

Nestas condições, data vênia do Sr. Ministro Relator, acompanho o voto do Sr. Ministro Revisor, julgando improcedente a ação.

VOTO

O Sr. Ministro Anibal Freire: - Sr. Presidente, julgo improcedente a ação.

VOTO

O Sr. Ministro Barros Barreto: - Sr. Presidente, julgo improcedente a ação, visto como o

comparecimento do mandante para recebimento do preço importa na revogação do mandato conferido.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Julgaram improcedente a ação, contra o voto do Sr. Ministro Relator que julgava a mesma, em parte, procedente.

Finalmente, na proibição do n.º III, do art. 1.133 do Cód. Civil, também se incluem os

advogados relativamente aos bens vendidos em hasta pública, em ação judicial na qual tenham intervindo (Ac. da Côrte de Ap. do Estado de São Paulo, de 25-5-1929, Rev. dos Trib., v. 79, pág. 563; Ac. da 5.ª Câmara da Côrte de Ap. do Distrito Federal, de 1-7-1937, no Agrav. N.º 2.163).

Sôbre o assunto, já nos manifestamos favorável a êsse ponto de vista (7).

536. O MANDATO IN REM PROPRIAM E O IRREVOGÁVEL, EM FACE DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA. O mandato em causa própria e o irrevogável exigem, pela situação especial em que se encontram, que dêles nos ocupemos separadamente da forma comum de mandato.

Do ponto de vista, em primeiro lugar, da possibilidade de um contrato consigo mesmo, cumpre distinguir o mandato irrevogável do em causa própria. O primeiro, nada obstante a sua natureza especial, não nos parece em situação de poder justificar a referida forma de contratar.

Diferentemente é a situação do segundo, cuja denominação traduzi, comumente, a exaustão dos interêsses do mandante. Há sempre algo mais do que uma simples condição de irrevogabilidade. Contudo, isso não pode se admitido sob uma forma absoluta. Aceitável é o ponto de vista de J.

M. Carvalho Santos só admitindo a validade de um ato realizado pelo procurador in rem propriam em seu próprio benefício, quando, em se tratando de compra e venda, o mandato possuir tôdas as características dêste contrato (1).

(7) – In Arq. Jud., vol. 44, págs. 13-15. E, sentido contrário: J. M. Carvalho Santos, Cód. Civ. Int., XVI, pág. 137 e Luiz

Machado Guimarães, Rev. For., vol. 75, pág. 253. (1) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 140.

[356]

O citado autor, apoiado ainda na lição de E. Espínola (Rev. For., 45, pág. 21), censura certa corrente da Jurisprudência que entende serem nulas, indistintamente, as compras em todo e

qualquer caso em que o procurador venda o imóvel a si mesmo, figurando, simultâneamente, como vendedor e como comprador, como outorgante e outorgado (Ac. do S. T. Fed., de 3-9-1919, Rev. For., vol. 33, pág. 361).

Estamos de inteiro acôrdo com as opiniões supracitadas e por motivos bem simples.

Como vimos (cfr. 2.º vol., n.º 227, pág. 124) deve-se ter em vista, nessa espécie de mandato, o

nexo entre êle e um outro negócio ao qual esteja ligado. Depois convém considerar-se, de acôrdo com o que já dissemos, ser jurìdicamente admissível o contrato consigo mesmo, e que o único obstáculo que se lhe antepõe é o do conflito de interêsses entre mandante e mandatário, razão suprema da nulidade instituída em certos casos pela lei.

Ora, desde que um mandato in rem propriam objetiva uma compra e venda com todos os seus característicos, não se dá uma oposição de interêsses, pois o próprio objeto do mandato fica inteiramente exaurido.

a) A procuração “in rem propriam”, como instrumento suficiente para servir de base à transcrição

da compra e venda de imóveis. – Em regra, a procuração em causa própria, em sua realização prática, se processa pelas seguintes formas: ou é indicada uma terceira pessoa para outorgar a escritura de compra e venda em benefício de quem foi ela firmada; ou o próprio mandatário

pratica um contrato consigo mesmo; ou finalmente, subestabelece os poderes a um terceiro que lhe outorgará a escritura do ato visado pelo mandato. Uma quarta modalidade tem dado ensejo a discussões: é se o próprio instrumento de procuração em causa própria autoriza ao mandatário

em favor de quem foi êle outorgado, a transcrever o imóvel em seu nome, prescindindo de uma nova escritura de compra e venda. A Câmara Civil do Tribunal de Apelação de Minas Gerais, nos embargos n.º 9.080 (Ac. de 2 de julho de 1938), depois de frisar não envolver a procuração em

causa própria uma cessão de direitos, nada obstante admitiu-a válida, como instrumento de compra e venda, se, revestida de todos os requisitos desta, foi devidamente transcrita (2).

Na verdade, é êsse o critério admitido pela grande maioria dos julgados.

(2) – Cfr. Ac. do Sup. Trib. Fed., in Rev. do S. T. Federal, vol. 68, págs. 108-109; E. Espínola, Rev. For., vol. 45, pág. 18; Cândido de Oliveira Filho, Prática Civil, V, pág. 216.

[357]

Em acórdão de 28 de dezembro de 1937 (Rev. Forense, vol. 73, pág. 533), o Supremo Tribunal Federal proclamou, como jurisprudência assente, a que reconhece como irrevogável a

procuração em causa própria, revestida de tôdas as formalidades legais, implicando numa verdadeira cessão de direitos, numa genuína alienação, acarretando para o cedente a perda

imediata de todo o direito ao crédito, a menos que esteja subordinada a uma cláusula

condicional deixada sem cumprimento. Em resumo: quando a procuração em causa própria contém todos os requisitos da compra e venda, res pretium et consensus, constituindo, na verdade, cessão de direitos dominiais, é título hábil para a transmissão dos direitos reais, podendo ser legìtimamente transcrito (3).

Uma objeção ainda se fêz à validade do mandato in rem propriam como meio hábil de compra e venda imobiliária: é quanto à extensão do consentimento. Escritores há, refere Mário Ferreira (4), que reputam impossível, em tal procuratura, êsse traço de união entre as vontades rec íprocas do

constituinte e do procurador – o primeiro para transmitir e o segundo para receber, com precisão jurídica, os direitos dominiais sôbre a coisa. E o citado autor transcreve a seguinte crítica de Azevedo Marques (in Rev. dos Trib., vol. 65, pág. 672 e seguintes): “não é verdade que na

procuração em causa própria haja todos os elementos da compra e venda: res, pretium et consensus. Não há, não pode haver pelo menos um dêles: o consensus, porque êste só existe com a especificação da pessoa determinada a quem o vendedor quer vender. Ora, na

procuração, o mandante não declara que vende ao mandatário. Não t ransfere seus direitos de domínio ao mandatário; limita-se a dar-lhe poderes para uma venda futura a terceiros, que só será conhecido no momento da venda posterior. Logo, no mandato não há o consensus entre o vendedor e um comprador individuado, como seria indispensável”.

A êsses argumentos de Azevedo Marques responde Mário Ferreira, dentre outras, com a observação de que assumindo a posição de adquirente e realizando o pagamento do preço, na conformidade

(3) – Ac. da Câm. Civ. do Trib. de Ap., de 2-7-1938, Rev. For., 76, pág. 336; idem, Ac. da 2.ª Câm. do Trib. de Ap. de S.

Paulo, de 26-7-1944, Rev. dos Trib., v. 154, pág. 747; idem, da 2.ª Câm. Civ. do Trib. de S. Paulo, Rev. dos Trib., 143-84; idem, da 4.ª Câm. do T. de S. Paulo, de 30-5-1946, R. T., 162, pág. 705; idem, do 2.º Grupo de Câmaras Cíveis do Trib. de Just. de São Paulo, de 17-10-1946, Rev. dos Trib. vol. 166, pág. 147-148; Costa Manso, Mandato em Causa Própria,

in Rev. dos Trib., vol. 162, pág. 481. (4) – Mário Ferreira, O Mandato em Causa Própria, no direito civil brasileiro, pág. 117.

[358]

do convencionado, na reciprocidade de tais atos integra-se o mútuo consentimento dos pactuantes.

Para nós entendemos improcedente a objeção de Azevedo Marques por uma razão muito simples: o recíproco consentimento, tão necessário nos contratos comutativos, como é o de

compra e venda, está perfeito no próprio ato do mandato, pelos poderes concedidos ao mandatário. Se se tratar de um contrato realizado pelo próprio mandatário em seu benefício, dá-se a figura do contrato consigo mesmo, e o duplo consentimento é manifestado pela mesma pessoa.

Se o mandatário resolver vender a terceiro, ainda melhor se apresenta o duplo consentimento manifestado já então por duas pessoas diversas.

Esta é a dedução compatível com a natureza do contrato consigo mesmo.

b) A procuração em causa própria e o falecimento do mandante. – Nos têrmos do art. 1.316 do Código Civil, o falecimento de uma das partes implica na cessação do mandato. E‟ êsse

dispositivo aplicável ao mandato em causa própria? Claro está que o mandato em causa própria, implicando cessão de direitos, não pode extinguir -se pelo falecimento do mandatário, pois os seus herdeiros sucedem em tais direitos. Mas quando a morte atingir o mandante? A

jurisprudência se manifesta discorde. Uns julgados sustentam que a procuração em causa

própria extingue-se com a mudança de estado ou a morte do mandante (5). Outros sustentam, ao contrário, que a procuração não se extingue com a morte do mandante, sendo outorgada em causa própria, passando aos herdeiros a obrigação de respeitá-la, sem a necessidade de

qualquer fórmula sacramental, pois deve ser deduzida da própria natureza do ato (Ac. da 4.ª Câm. do Trib. de São Paulo, de 26-3-1942, Rev. dos Trib., vol. 138, págs. 605-608), tendo as Câmaras Cíveis Reunidas do Trib. de Apelação do Distrito Federal (Ac. de 23 de dezembro de

1943, Rev. For., vol. 99, pág. 673) firmado que “nem sempre cessa o mandato com a morte do mandatário ou do mandante. Se é condição de um contrato ou meio de uma execução convencionada, o falecimento do mandatário não exerce qualquer influência relativamente ao

mandato, que subsiste. Também se foi êle outorgado no interêsse comum do mandante e do mandatário, mantém-se não obstante o falecimento de qualquer dêles. Impõe-se até que os herdeiros pro-

(5) – Ac. da 1.ª Câm. Civ. do Trib. de São Paulo, de 26-11-1946. Rev. dos Trib., v. 164, págs. 192-193, com o voto

vencido do Desembargador Justinho Pinheiro; Ac. da 3.ª Câm. do Trib. de São Paulo, de 5 de fev. de 1947, Rev. dos Trib., vol. 167, págs. 260-261. Cfr. ainda: R. T., 102-689; 158-682 e 114-204.

[359]

videnciem a bem do mandante, como as circunstâncias o exigirem. Na procuração em causa própria, os herdeiros do procurador não investidos nos direitos que a êste competirem, como donos do negócio por direito de sucessão.

Esta, na verdade, é a solução jurídica. A boa doutrina está condensada no brilhante voto do Desembargador Justino Pinheiro e a que já aludimos, voto êste que merece ser destacado no seguinte trecho:

“uma vez que ocorreu na espécie uma verdadeira cessão de direitos, e, consoante a

lição de João Luiz Alves, - envolvendo a procuração em causa própria uma cessão de direitos o mandato que confere não se extingue com a morte de qualquer ou de ambas as partes: obriga os herdeiros do mandante e aproveita aos do mandatário – (Cód. Civ.

Com., art. 1.317). E‟ também o que ensina Lafayette: O procurador em causa própria, quando tal cláusula produz legalmente a cessão, torna-se dono do negócio, pode propor ao Juízo, em seu nome, tôdas as ações que têm por objeto os direitos ou coisas cedidas.

Uma semelhante procuração é irrevogável e não deixa de existir pelo acontecimento da morte do constituinte (Pareceres I/295). Assim tem sido julgado (Rev. dos Trib., 113-662; 160-709; 114-204; 80-479; 151-240) embora existam arestos em sentido contrário”.

A crítica que se faz a essa orientação, invocando-se o absurdo de alguém ser convocado de

além-túmulo para ainda figurar num ato jurídico, por meio de representação, carece de qualquer base, porque na procuração em causa própria há uma cessão de direitos, uma obrigação assumida pelo mandante, que exauriu todos os direitos que possuía, obrigação que passa aos

herdeiros. A figura da representação não intervém aí senão como uma imagem hiperbólica. Da representação não permanece senão a designação, desde que, por fôrça da própria relação jurídica estabelecida, não há o consectário lógico do mandato, que é a obrigação de prestar

contas, por parte do mandatário, que não mais age em nome do representado mas no seu próprio nome. Não há, pois, como se pretende, “uma absurda e macabra ficção”.

A doutrina tem sustentado, igualmente, a possibilidade da subsistência da procuração, post mortem, principalmente no caso da procuração in rem propriam ou na vinculada a um contrato, como uma de suas condições (6).

(6) – Saggese, La Reppresentanza, n.º 196, pág. 359, not. 2.

[360]

Nattini (7), ao tratar da morte do representado como modo terminativo da procuração, observa

que nada proíbe a sua subsistência mediante uma cláusula heredum, de modo a produzir efeitos post mortem do mandante, cuja vontade nesse sentido deve sempre ser presumida na procuração in rem propriam.

537 – GESTÃO DE NEGÓCIOS – A gestão de negócios se caracteriza pela intervenção na gestão de negócio alheio, sem autorização do interessado (Cód. Civ., art. 1.331).

Não pode o gestor de negócios alienar um bem imóvel do interessado, pois que, segundo o sistema do nosso Código Civil, são necessários poderes especiais e expressos para os atos que exorbitem da administração ordinária (Cód. Civ., art. 1.295), e o comércio da administração

abrange sòmente os atos de disposição, que se destinam a conservar e a empregar ùtilmente o patrimônio; os atos de gerência, que não importam alienação, exceto dos bens de fácil deterioração e dos bens que se destinam a ser alienados (1).

Mas se se tratar de uma aquisição? Não há dúvida que o gestor de negócios pode adquirir um

bem imóvel para o interessado, devendo ficar expresso que o faz em nome do mesmo interessado, devendo ficar expresso que o faz em nome do mesmo interessado. Contudo a dificuldade surge na transcrição de uma tal escritura.

Dependendo o ato do gestor de negócios da ratificação do interessado, pode-se considerar como definitivo o ato da compra e venda?

Se não é definitivo, ou melhor, se fica subordinado a uma condição, será permitida a transcrição da compra e venda?

A doutrina é discordante. Para uns (Troplong e Verdier) o contrato deve ser imediatamente transcrito; para outros (Laurent) não pode haver transcrição senão depois da ratificação; enfim,

para outros, como Luzzatti (2), distinguindo a venda da compra, admite para o comprador no caso de gestão de negócios, que se possa efetuar a imediata transcrição.

Para se encontrar a solução do problema, mister se faz, como procedeu Coviello (3), investigar qual a natureza jurídica do ato concluído pelo gestor de negócios, precìpuamente no nosso direito onde a transcrição tem caráter constitutivo.

(7) – A Nattini, La dottrina Generale della Procura, n.º 133. (1) – Hahnemann Guimarães, Gestão de Negócios, pág. 146; (2) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 64. (3) – Coviello, ob. cit., pág. 97.

[361]

Para Toullier e Waechter (4), há, no contrato de compra e venda pelo gestor de negócios, uma

simples oferta de contrato, o qual sòmente surge após a ratificação; outros opinam que o contrato, enquanto não ratificado, é nulo; Luzzatti (5), divisa um contrato de compra e ve nda subordinado a uma condição suspensiva; Coviello e Windscheid (6), acham que, antes da

ratificação, a eficácia do negócio jurídico não é negada, mas suspensa, numa posição

semelhante a do negócio jurídico condicionado, de forma alguma, porém, idêntica, porquanto o outro contraente já se encontra vinculado, antes da ratificação do interessado; finalmente Pachioni e Cunha Gonçalves (7), consideram que, antes da ratificação, há uma figura jurídica

especial, e, em relação ao dominus, um negócio incompleto, porque lhe falta a eficácia plena, que teria se fôsse realizado por um mandatário.

Não há dúvida quanto à procedência desta última teoria que, aliás, tem afinidade estreita com a de Windscheid.

Contudo, em nosso Direito, há o que ponderar, quanto aos poderes do interessado relativamente

à ratificação dos atos do gestor. Uns, como João Luiz Alves (8), entendem que o interessado é o juiz único e absoluto para dizer quando a gestão se processou em conformidade ou não com os seus interêsses, tanto que, argumenta o citado autor, o Código teve necessidade de tornar

expressas as hipóteses em que lhe não seria lícita aquela desaprovação, as quais figuram nos arts. 1.340 e 1.341.

Clóvis, ao contrário, entende que o interessado tem um poder limitado e, contra a evidênc ia dos fatos, não pode declarar que a gestão foi prejudicial (9).

J. M. Carvalho Santos (10), opina que, uma vez que a gestão tenha sido útil, “se verifica, desde logo, uma ratificação legal”.

O que não parece a menor dúvida é que o ato precisa de uma rati ficação por parte do interessado, seja expressa ou tácita.

Nos casos em que as circunstâncias indiquem uma gestão útil, e havendo recusa do interessado em dar a ratificação, não se pode inferir que os atos praticados sejam sempre válidos ex tunc, mas dependerão de sentença judicial reconhecendo a utilidade dos mesmos.

(4) – Apud Coviello, ob. cit., II, loc. cit. (5) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 64. (6) – Coviello, ob. cit.; Windscheid. Pandette, I, § 74.

(7) – Pacchioni, Trattato della gestioni degli affari altrui, números 385 a 391; Cunha Gonçalves, Trat. de Dir. Civil, IX, pág. 426. (8) – João Luiz Alves, Cód. Civ. Ant., II, pág. 4400. (9) – Clóvis, ob. cit., vol. V, observ. ao art. 1.339.

(10) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVIII, pág. 409.

[362]

Nesta conformidade, não podemos aceitar uma ratificação legal, no sentido que parece pretendido por J. M. Carvalho Santos.

De tudo isso deduz-se que uma compra efetuada pelo gestor de negócios não pode ter a sua escritura transcrita antes que, de uma forma ou de outra, fique liquidada a ratificação, seja por

fôrça de ato do interessado, ou de sentença judicial, devendo, no primeiro caso, constar de escritura pública.

538. FORMA DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS. – A escritura pública é a forma erigida, ad substantiam, nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sôbre

imóveis de valor superior a um mil c ruzeiros (Cód. Civil, art. 134). Por conseguinte, é uma forma substancial para os contratos de compra e venda de im óvel daquele valor. Assim, a compra e

venda que, nas aludidas condições, não fôr feita mediante escritura pública, é considerada nula

de pleno direito, pois não vale o ato que deixar de revestir a forma especial determinada em lei, salvo quando esta comine sanção diferente contra a preterição da forma exigida (Cód. Civ., art. 130). Decorre daí que a compra e venda feita sem a formalidade da escritura pública, pois o ato

radicalmente nulo não é suscetível de se convalescer. Cumpre que se faça nova escritura pública de compra e venda.

Como corolário lógico dessa regra, a anuência ou autorização de outrem necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que êste e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento (Cód. Civil, art. 132).

Quando o contrato de compra e venda fôr realizado mediante mandato de uma das partes não se faz mister que o mesmo conste de instrumento público, pois o disposto no § 3.º, do art. 1.289 do Código Civil é interpretado como um esclarecimento da lei do modo pelo qual deve ser feito o subestabelecimento da procuração, quando o mandato é conferido por escrito (1).

A procuração deve ser registada em cartório, pois é elemento essencial do ato, com êle formando um só título jurídico.

Para a validade de uma escritura pública é necessário que o tabelião declare conhecer as partes, ou de serem estas conhecidas de duas testemunhas dignas de fé; que diga que os

conhece e que assinam a escritura. E‟ motivo de nulidade a falta de assinatura por uma das testemunhas, bem como deixar a escritura de ser assinada por

(1) – Clóvis, ob. cit., obs. ao art. 1.289; João Luiz Alves, ob. cit., II, an. ao art. 1.289; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVIII, pág. 126.

[363]

uma das partes, que compareceu e nela figurou como presente (cfr. 2.º vol., n.º 317, págs. 295-298).

Do ato lavrado em notas do Tabelião, expedir-se-á um traslado. Havendo discordância entre o original, que é o ato lavrado em notas do Tabelião ou do escrivão, e os traslados ou certidões, quaisquer que sejam, prevalece o original, e se com êste não conferir o t raslado, o primeiro é

que deve ser tido como verdadeiro, até prova em contrário, em processo próprio (Ac. da Câm. de Agravos da C. de Ap. do D. Federal, de 12 de dezembro de 1935).

Sendo o contrato de compra e venda relativo à imóvel de valor até um mil cruzeiros, a forma da escritura é o instrumento particular, que deve conter os requisitos do art. 135. Em relação ao instrumento particular, como título de compra e venda, proferimos a seguinte decisão:

“Vistos, etc.: Artur Benites Guimarães, a fls. 2, alega que, tendo adquirido em 17 de agôsto de 1889 um lote de terreno com 113 X 38 metros, no Caminho de Bangu, pela importância de 200$000, e levando a respectiva escritura a registo, o Sr. Oficial da 4.ª

Circunscrição pôs dúvida, sob os seguintes fundamentos: 1.º) falta de forma; 2.º) obrigação de assinar a escritura; 3.º) falta de assinatura do comprador. Argumenta, então, que êsses fundamentos não procedem:

a) porque de acôrdo com a legislação então vigente, para a escritura de valor até 200$000 não havia forma prescrita em lei;

b) que a declaração do vendedor, que figura na citada escritura, de que se obrigava a

assinar a escritura pública a todo tempo que lhe fôsse exigida, não passa de uma providência facultativa, de vez que o escrito particular é suficiente para as alienações de imóveis de valor não superior a 200$000, segundo a legislação então vigente, na época da escritura;

c) que a falta de assinatura do comprador não prejudica a validade do contrato, porquanto na sendo exigida uma forma ad substantiam, não se fazia mister uma declaração expressa de consentimento. Ouvido o ilustre Dr. Promotor de Registos, êste

em longo e brilhante parecer, opinou pela procedência da dúvida, argumentando tratar-se, não de um contrato de compra e venda, mas sim de uma declaração unilateral do vendedor, tanto que êste reputou necessária a escritura pública. Depois analisa o contrato em face da lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1864

[364]

e do decreto n.º 3.453, de 26 de abril de 1865, que exigiam para o instrumento particular valer como t ítulo translativo do domínio o requisito da assinatura das partes que nêle figurassem e o conhecimento do impôsto de transmissão da propriedade, e, fundado em

Lafayette, opinou no sentido da invalidade jurídica do título apresentado. Finalmente, aponta outros defeitos na escritura que a tornam insusceptível de transcrição, como não conter certas especificações, tais como nome, domicílio do adquirente e do transmitente,

especificações essas exigidas tanto na atual legislação como na vigente na época e3m que surgiu a escritura impugnada.

Isto pôsto:

I - Vários os pontos discutidos na presente dúvida:

a) se o instrumento particular de compra e venda de imóvel, pode val er sem a assinatura do comprador;

b) qual o efeito da declaração contratual do vendedor que se obriga a assinar a escritura pública do ato logo que lhe seja exigida;

c) requisitos do instrumento particular de compra e venda para ser transcrito.

II – Trataremos, primeiramente da questão relativa à falta de assinatura do contrato de compra e venda pelo comprador. A escritura impugnada é um instrumento particular, passado em 17 de agôsto de 1899, sob o domínio da legislação anterior ao Código Civil

que, para as vendas de bens imóveis, sòmente reputada ad-substantiam a escritura pública, quando de valor superior a 200$000. No caso, o citado contrato por instrumento particular atribui à venda o valor de 200$000. Argüi o reclamante que a forma ad

substantiam, sòmente sendo exigida para os imóveis de valor superior a 200$000, prevalece a liberdade de forma quanto aos imóveis de valor até 200$000. Não há a menor dúvida que o argumento é aceitável. Diferentemente da legislação italiana, a

nossa legislação, como a francesa, nenhuma referência faz à prova da compra e venda de imóveis, quando êstes sejam de valor inferior ao que substancialmente exige a escritura pública, e isso tanto no direito resultante do Código Civil, como no previgente.

Assim sendo, da liberdade de forma resulta a liberdade de meio de prova, e a venda, que é um contrato consensual, não tem no ato escrito mais do que um meio de prova, de modo que o contrato subsiste independentemente dêste meio, salvo para a

[365]

parte a dificuldade de o provar (Baudry-Lacantinerie e Saignat, “Della Vendita”, n.º 185;

Planiol-Ripert, “Traité”, 10, n.º 15. Neste caso está a compra e venda do imóvel, que é um título que exigia no Direito anterior, como no atual, uma segunda formalidade integrante: a transcrição.

O contrato de compra e venda constante da escritura apresentada e impugnada, é válido

como um contrato, mas sua eficácia para efeito do Registo Imobiliário está prejudicada pela ausência de certos requisitos legais indispensáveis. Salientou a Promotoria que a lei n.º 1.237, de 1864, o decreto n.º 3.453, de 1865 exigiam, no instrumento particular que

transferisse o domínio, a assinatura das partes que nêle figurassem. Embora o contrato impugnado haja sido celebrado, sob a vigência de outra legis lação – o decreto n.º 370, de 1890 – êste conservou os elementos prescritos na supracitada legislação revogada,

dispondo no § 2.º do art. 74 não serem admissíveis, para os atos do registo, “senão os escritos particulares assinados pelas partes, que nêle figurarem, reconhecidos pelos oficiais do registo e selados com o sêlo competente”. Além disso o instrumento particular

impugnado, como bem frisou o ilustre Dr. Promotor à fls. 12 verso, carece de outros elementos que, a seu turno, deviam servir de base ao preenchimento de certos requisitos substanciais de transcrição, tais como, o nome, o domicílio e profissão do

adquirente e do transmitente, isso quer no regime atual, quer no da legislação que vigorava ao tempo da feitura do documento.

III – Quanto ao argumento extraído do fato de constar da escritura a obrigação do vendedor de passar a escritura pública a todo o tempo que pelo comprador lhe fôsse

exigido, pareceu-nos destituído de qualquer valor. Quando surgem tais cláusulas num contrato de compra e venda de imóveis, cumpre indagar se as partes pretenderam apenas subordinar o ato ao preenchimento de uma formalidade para transcrição ou se

visaram com aquela obrigação condicionar a perfeição do contrato, sua vinculação, por meio de um ato autêntico privado ou público (Gasca, “Compra Vendita”, I, n.º 711). No primeiro caso, ensina o citado autor apoiado numa decisão da Cassação de Roma, a

cláusula mediante a qual o vendedor se haja obrigado a transformar em escritura o contrato não torna a existência da convenção dependente do adimplemento da dita formalidade, a menos que se haja expressamente convencionado em contrato. Ora, no caso sub-judice, em se tratando de uma

[366]

venda de imóvel de valor não superior a 200$000, claro que a obrigação d o vendedor de outorgar a escritura pública não passa de um simples acréscimo de garantia, que em nada pode prejudicar a perfeição do contrato firmado. Nesta conformidade, declaro

procedente a dúvida oposta pelo Sr. Oficial do 4.º Ofício de Imóveis, indeferindo o pedido inicial de fls. 2. P.I.R.

Rio de Janeiro, 29 de agôsto de 1939.

Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES.

A decisão supracitada foi confirmada pelo Conselho de Justiça. Sôbre os elementos do

instrumento particular de contrato é ponto que já constituiu objeto de estudo nosso, no 2.º volume.

Quer se trate de instrumento particular, quer se trate de um contrato feito por escritura pública, num como noutro caso é imprescindível que se faça a descrição do imóvel, precisando todos os

seus característicos, isto é, as dimensões de frente e fundos e de extensão pelos seus diversos lados, assinalando-se qualquer acidente que o possa bem distinguir de outro, especificando-se as confrontações com a menção das propriedades vizinhas e os nomes de seus atuais

proprietários, ou de seus antecessores, evitando-se a fórmula usual, porém abusiva, de se afirmar simplesmente “confrontando com que de direito” (2).

Trata-se de uma condição essencial, tanto que se considera nula de pleno direito a transcrição feita mediante extratos que não contêm as confrontações e características do imóvel (Ac. do Trib. de São Paulo, de 29 de abril de 1938).

Por outro lado, é preciso notar que a formalidade dos atos aquisitivos deve ser a estatuída pela lei vigente ao tempo em que os mesmos foram realizados. Mas se uma lei nova dispensar uma formalidade exigida ad substantiam na lei anterior, essa circunstância não pode influir na

convalescença do ato considerado nulo pela lei revogada. Tal é o pensamento da maioria dos doutrinadores, sustentando que, em tais casos, a nulidade subsiste, quer absoluta quer relativa, a despeito de uma nova lei não mais considerá-la, pois esta não poderia modificar a relação de pessoas com direito a pleitear (3).

Assim sendo, uma escritura de compra e venda de imóvel de valor superior a Cr$ 200,00 feita por instrumento particular, no

(2) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 174. (3) – Roubier, Conflits des Lois, II, pág. 69; Gabba, Retroattivitá, delle Leggi, I, pág. 251.

[367]

regime anterior ao Código Civil, é substâncialmente nula, nada obstante ter o referido Código elevado o valor do contrato até o limite de um mil cruzeiros.

Relativamente aos imóveis pertencentes aos incapazes, fôrça é distinguir os bens pertencentes sob pátrio poder dos pertencentes aos menores sob pátrio poder dos pertencentes aos menores sob tutela.

Logo depois da vigência do Código Civil, em razão dos têrmos genéricos do art. 429 do Código

Civil, preceituando que “os imóveis pertencentes a menores só poderão ser vendidos, quando houver manifesta vantagem, e sempre em hasta pública”, suscitou-se forte controvérsia a respeito de se saber se o referido dispositivo, embora incluído no capítulo relativo à tutela, era estensivo aos menores sob pátrio poder.

Esta tese tivemos de abordá-la, quando cursávamos, em 1917, o 2.º ano jurídico da Faculdade de Direito de Recife.

Após longa dissertação relativamente às diferenças entre Pátrio Poder e Tutela, estabelecemos as seguintes conclusões:

1.º) – Que o art. 427, n.º VI, do Código Civil, relativo aos interêsses do menor sob tutela,

consagra referência expressa ao art. 429, como neste se encontrando as restantes condições legais para a validade da alienação dos imóveis do menor sob tutela, referência omitida no art. 386, regulador dos casos legais e das condições de alienação do imóvel do menor sob pátrio-poder.

2.º) Que essa omissão racionalmente significa circunscreverem -se os efeitos legais do art. 429 tão sòmente aos interêsses do menor sob tutela, surgindo, assim, como um complemento do art. 427, n.º VI.

3.º) Que sendo a Tutela um instituto jurídico suplementar do Pátrio Poder e constituindo um

regime de exceção, não se poderia justapor, em qualquer de seus capítulos, preceitos, cujos efeitos abrangessem os menores, em geral, pois que, dêste modo, se tornariam evidentemente deslocados.

4.º) Que tanto foi essa intenção do Legislador que no artigo 178, § 6.º, n.º 3, nenhuma referência

faz ao art. 429, ao passo que a primeira disposição é expressamente mencionada nos artigos 386 e 388, n.º I.

(O art. 178, § 6.º, refere-se à prescrição, em um ano, da “ação do filho, para desobrigar e reivindicar os imóveis de sua propriedade alienados ou gravados pelo pai, fora dos casos

expressamente legais”, contado o prazo do dia em que chegar à maioridade (artigos 386 e 388, n.º I). Os casos expressamente legais, em relação aos imóveis do menor sob pátrio poder, são exclusivamente os pre-

[368]

vistos nos citados artigos 386 e 388, n.º I, não se cogitando do art. 429).

5.º) – Que, finalmente, consoante a praxe seguida no Direito Anterior, a Hasta Pública não era

tida como condição legal senão para a alienação dos imóveis pertencentes aos menores sob tutela.

A princípio discordante, a Jurisprudência tornou-se definitiva no sentido favorável às conclusões supracitadas.

Destarte, os bens dos menores sob pátrio poder podem ser vendidos pelo pai, mediante autorização judicial.

Os dos menores sob tutela como os dos interditos têm que ser vendidos em hasta pública, além das demais condições da manifesta vantagem e autorização judicial.

Fatalmente a escritura deverá conter a transcrição da quitação do impôsto de transmissão da propriedade imóvel. Além disso, em tôda escritura de t ransferência de imóveis, serão transcritas

as certidões de se acharem êles quites com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal, de quaisquer impostos a que possam estar sujeitos (Cód. Civ., art. 1.137), sendo que a certidão negativa exonera o imóvel e isenta o adquirente de tôda responsabilidade (parágrafo único do art. 1.137).

Em relação ao impôsto de transmissão da propriedade imóvel, pode o valor do imóvel dar ensejo a dúvidas e contestações. Neste caso, o valor contestado poderá ser depositado judicialmente e

a certidão do despacho ordenando o depósito supre a certidão de quitação do impôsto respectivo. (Ac. do Cons. de Justiça do D. Federal, de 9 de setembro de 1937) (4).

539. DIVERSAS MODALIDADES DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA – Após havermos estudado o contrato de compra e venda sob o seu aspecto fundamental, orgânico, t rataremos agora das várias modalidades em que êle se pode apresentar. A compra e venda pode ser pura e simples e pode ser condicional.

Considera-se condição a cláusula que subordina o ato jurídico a evento futuro e incerto (Cód. Civ., art. 114).

A condição é um elemento voluntário. A sua principal divisão e a que nos interessa é a que a considera como suspensiva e resolutiva.

(4) – Para exato cumprimento da lei (Cód. Civ., art. 1.137, § único; decreto-lei n.º 96, de 22-12-1937) o Juiz Martinho

Garcez Caldas Barreto, então na Vara de Registos Públicos, expediu a portaria de n.º 23, de 4-12-37, logo depois modif icada pela de n.º 27, de 22-12-1937. E‟ do seguinte teor a portaria n.º 27, que, atualmente, regula os casos de transmissão e hipoteca de imóveis, na parte

que se relaciona às dívidas ajuizadas:

[369]

Subordinando-se a eficácia do ato à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ela visa (Cód. Civ., art. 118).

Se fôr resolutiva, a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o ato jurídico, podendo exercer-se desde o momento dêste o direito por êle estabelecido; mas, verificada a condição, para todos

“O Juiz de Direito da Vara de Registos Públicos, diante da exposição que lhe fôra f eita pelo Juiz da 3.ª Vara da Fazenda

Pública e decidindo às consultas que lhe foram formuladas pelos tabeliães dos 2.º, 5.º e 9.º Ofícios de Notas, no uso de suas atribuições legais (decreto n.º 16.273. de 30-12-23. § 4.º, do art. 85; decreto n.º 20.205, de 28-3-32; 20-661, de 14-11-1932, resolve recomendar que, pelos tabeliães de notas, escrivães com funções tabelioas e distribuidoras sejam cumpridas as seguintes instruções:

I – Nas escrituras de compra e venda de imóveis, situados no Distrito Federal, logo após a transcrição do certif icado do

Tesouro Nacional, os tabeliães de notas e escrivães com funções tabelioas, depois de examinados os respectivos documentos, observada, tanto quanto possível a norma abaixo farão a declaração de que ”... pelo outorgante vendedor (ou outorgado hipotecário) foram apresentadas certidões dos distribuidores da Fazenda Pública, provando não existir a distribuição de qualquer ação ou executivo f iscal da Fazenda Nacional ou Fazenda Municipal contra o nome do proprietário (ou devedor) e referente ao imóvel constante da escritura.

Tal como ficou decidido, por êste Juízo, a distribuição de qualquer ação ou executivo f iscal da Fazenda Nacional ou Fazenda Municipal contra o nome do vendedor ou devedor não impede a lavratura da escritura respectiva, quando o processo tenha por objeto qualquer outro imóvel que não o visado pela operação a realizar-se.

II – Atendendo a que o f ichário imobiliário foi instituído pela portaria n.º 23, depois da criação do Juízo dos Feitos da Fazenda Pública, as certidões ou documentos que terão de ser examinados pelos tabeliães, para os efeitos da

declaração supra, são as certidões dos distribuidores dos 9.º e 10.º Ofícios (decreto-lei n.º 6, de 16-11-1937), certidões atualmente já extraídas pelas partes e que fazem expressa indicação do imóvel a ser vendido ou hipotecado para os efeitos do § único do art. 1.137 do Cód. Civil. As certidões serão concedidas no prazo de 72 horas, sob penas de responsabilidade dos distribuidores. Concedidas, as certidões são válidas pelo prazo de 20 dias.

III – As medidas constantes do item primeiro serão observadas nas escrituras de enfiteuse, anticrese, cessão de crédito,

aumento de dívida e prorrogação de prazo e outras referentes a imóveis em que se torne necessária a quitação geral de quaisquer imóveis da Fazenda Nacional ou Fazenda Municipal. Cumpra-se. P. I. R.”.

Tratando dessa portaria, o então 2.º Promotor Público, Dr. César Tinoco, na carta testemunhável n.º 5, que o Conselho de Justiça deixou de tomar conhecimento, declarou:

[370]

os efeitos, se extingue o direito a que ela se opôs (Código Civil, artigo 119).

Subordinado à condição suspensiva, o negócio existe antes do implemento da condição, mas a sua eficácia permanece suspensa; não produz ainda todos os efeitos de que é capaz: o que não existe são os direitos e obrigações que dêle derivam, porque não nasceram ainda (1).

Na condição resolutiva, há uma declaração de vontade acessória suspensivamente condicionada, que tende à revogação dos efeitos da declaração principal da vontade (2).

De qualquer modo, a condição, pôsto que acessória, forma um todo incindível, orgânico e não torna acessório o que decide da existência do principal.

Há dificuldades, muitas vêzes, no distinguir quando é suspensiva ou resolutiva a condição. Podemos figurar os seguintes exemplos: “compro o imóvel porém no caso de que me venha

concedida licença para montagem de uma fábrica no terreno adquirido” (condição suspensiva); “compro o imóvel, porém se não obtiver permissão para a instalação da fábrica que pretendo, a compra e venda ficará desfeita” (condição resolutiva).

Trata-se, portanto, de uma questão de interpretação, para cuja solução mister se faz atender-se

à situação dos interêsses e aos resultados. Em havendo dúvida, a condição se considerará suspensiva, pois na condição resolutiva o negócio tem eficácia provisória, que sòmente se pode supor, notando-se uma intenção neste sentido (3).

“A portaria n.º 27 atende aos altos interêsses da Justiça e aos imperativos da lei. As duas portarias ns. 23 e 27 traçaram

normas que evitam dúvidas, sanam inconvenientes, asseguram direito das partes, fazendo cessar o rosário de multas oriundas de interpretações diferentes, que dão aos textos legais alguns serventuários e as repartições arrecadadoras”.

(1) – N. Coviello, Man. di diritto Civile, pág. 433. (2) – Windscheid, Pandette, I, § 86, pág. 287. (3) – Ennecerus-Kip-Wolf, Der. Civil, II, pág. 318; Von Thür, Códe Féderal des Obligations, II, § 84.

E mais adiante, acrescentou:

“Era tumultuária e insegura a ação, antes das portarias. A lei não tem por escopo único zelar pelo erário. Visa também, assegurar o adquirente e o credor de surprêsas e dar exatidão aos atos públicos. E isto não se consegue com quitações

parciais, nem contra o simples pagamento de impôsto de transmissão pago pelo adquirente e não pelo vendedor. O talão do pagamento do impôsto de transmissão não signif ica quitação, senão dêle mesmo. E‟ sôbre o ato e não sôbre o imóvel.

[371]

540. O CONTRATO DE COMPRA E VENDA CONDICIONAL, EM FACE DO REGISTO DE

IMÓVEIS – Vimos que as principais condições ligadas ao problema da compra e venda condicional são as suspensivas e as resolutivas.

Mas, de vez que, enquanto pendentes essas condições, o negócio jurídico permanece, por

assim dizer, num caráter transeunte, pois a todo momento se pode verificar o evento produtor da transformação operativa, quer da movimentação dos efeitos jurídicos do ato condicional, quer da extinção dêsses mesmos efeitos, preciso se torna o estudo dessa transformação, em face do Registo de Imóveis.

541. EFEITOS DECORRENTES DA CONDIÇÃO SUSPENSIVA – Como dissemos, a condição suspensiva produz um negócio jurídico se bem que de efeitos incompletos.

Discutem, porém, os juristas se a condição suspensiva dá lugar a um direito suscetível de aquisição, ou simplesmente dá vida a uma espectativa de direito.

A questão entre nós foi objeto de dissidência, em vista do artigo 3, da anterior lei de int rodução do Código Civil e dos arts. 74, n.º III, e 118 do Código Civil.

E. Espínola (1), com fundamento no art. 3.º da lei de Introdução, distinguia o caso em que a condição não podia ser alterada

O art. 1.137 do Código Civil manda que sejam transcritas nas escrituras as certidões de se acharem os imóveis transferidos quites de quaisquer impostos a que possam estar sujeitos. Essa certidão isenta o comprador e desonera o

imóvel, mesmo que haja débito. No entanto, nem a Fazenda fornece quitação, pois que são parciais as que passa, nem todos os serventuários exigiam prova de quitação plena, pois que se contentavam com o simples pagamento do impôsto de transmissão”. E prossegue:

“Mas, sôbre quitação não devemos sòmente nos deter diante do art. 1.137, do Código Civil. (1) – Eduardo Espínola, Manual do Cód. Civil, III, parte 2.ª, pág. 278. Temos o recente decreto-lei n.º 96, que, em seu art. 26, proíbe quaisquer atos referentes a pessoas, negócios ou bens

sujeitos a impostos. Não, apenas, sôbre o imóvel, como quer o Código Civil. Mas, agora, sôbre pessoas, negócios ou bens. Assim, ainda, é tolerante quando manda fazer a exigência apenas sôbre o imóvel que seja objeto do ato a lavrar -se. Principalmente quando se trata de emprêsas que loteiam terrenos devem ser radicais tais precauções, pois se torna

difícil acompanhar a marcha dos desmembramentos, máxime quando vendidos à vista ou pagos de uma só vez, escapem às exigências do decreto-lei n.º 58”.

[372]

pela simples vontade de outrem do em que essa alteração era possível, para admitir um direito adquirido na primeira hipótese.

Êsse ponto de vista foi porém fortemente combatido por Vampré, Melo Rocha, Filadelfo Azevedo

e J. M. Carvalho Santos (2), sustentando que o referido art. 3.º apenas vigora os efeitos da retroatividade das leis no sentido de estabelecer uma garantia contra o Poder Legislativo.

O que se tem a considerar em tudo isso é que, como observa Coviello (3), quando se não queira reconhecer a existência de um

Logo que foi adotada a decisão salutar do Desembargador Caldas Barreto, quando, na Vara de Regis tos Públicos,

argumentou-se que o talão do pagamento do impôsto de transmissão e as quitações passadas pela Recebedoria do D. F., bastavam para provar a quitação exigida pelo Código Civil, art. 1.137 e art. 26 do decreto-lei n.º 96, de 1937. Foram ouvidas a Prefeitura e Recebedoria que responderam negativamente, reforçando, assim, a portaria n.º 27. São êsses os ofícios da Prefeitura e da Recebedoria do Distrito Federal:

“Of. n.º 716, de 19-7-1938. – Em resposta ao ofício n.º 1. RP, de 15 do corrente mês, cumpre-me comunicar-vos que esta Diretoria quando expede os conhecimentos de impôsto de transmissão de propriedade não exige a quitação relativa aos débitos porventura existentes de alvarás de obras, impostos de licenças e multas f iscais

relativas ao imóvel, que é objeto da alienação e, assim não podem os referidos conhecimentos ser considerados como documento probante de quitação de quaisquer tributos ou taxas, exceto o de transmissão de propriedade. NÃO CONSTITUINDO DÊSTE MODO OS RESPECTIVOS CONHECIMENTOS

A PROVA DE QUITAÇÃO DE QUE TRATAM OS ARTIGOS 1.137 DO CÓDIGO CIVIL E ART. 26 DO

DECRETO-LEI n.º 96, de 22 de dezembro de 1937. – (a) Edgard Leite Ribeiro –Diretor da Receita (P. M.)”. “Of. n.º 886, de 15-7-1838 – Recebedoria do Distrito Federal – Em resposta ao of. 2 RGP – comunico a V. Excia. que ao ser passada a quitação das taxas de consumo dágua e de saneamento, esta Recebedoria não

verif ica prèviamente se estão liquidadas outras dívidas acaso existentes ou enviadas a Juízo, sôbre determinado imóvel, dívidas que poderão provir de multas, consertos de rames e outras exigências regulamentares. Para êsse f im, a Recebedoria se reporta aos livros de lançamento. Presentemente êsses livros são referentes a exercícios de 1933 e 1934, quanto à taxa dágua e de 1937, quanto a de saneamento.

ASSIM, TAIS QUITAÇÕES NÃO PODEM SER CONSIDERADAS COMO ÚNICO DOCUMENTO INDISPENSÁVEL À FAZENDA NACIONAL PARA GARANTIA DO PAGAMENTO DE TÔDAS AS DÍVIDAS QUE INCIDAM SÔBRE O IMÓVEL QUE FÔR OBJETO DA ESCRITURA DE VENDA OU HIPOTECA. – (a) Xisto Vieira – Diretor da Recebedoria do D. F.”.

(2) – J. M. Carvalho Santos, Cód. Civ., Int., III, pág. 52. (3) – N. Coviello, Man. di Dir. Civ., pág. 433.

[373]

direito adquirido, tem de se convir que os direitos estão protegidos por um máximo de tutela jurídica.

E tanto assim é que certos efeitos são atribuídos ao titular dêsse direito eventual, quer em se

tratando de um direito meramente pessoal, quer se t rate de um t ítulo que sirva de fundamento à aquisição de um direito real.

A atual Lei de Introdução não repetiu o texto da anterior, embora a Constituição, no art. 141, § 3.º, tenha voltado a mencionar a expressão – direito adquirido, contudo isso não altera os têrmos

da questão. A situação jurídica decorrente de um direito condicional se não há ensejo a um direito adquirido, todavia, não deixa de ser uma situação jurídica, governada pela lei inicial, porque o direito existe em germe, ab initio (4), isto tanto entre os que concebem a condição com um efeito ret roativo como entre os que lhe negam tal efeito.

Portanto, vejamos qual o aspecto jurídico da compra e venda condicional.

Giulio Grazioli (5), nega ao comprador condicional, pendente conditione, um direito de propriedade sôbre a coisa vendida. E argumenta: “Como poder explicar a existência contemporânea de dois direitos de propriedade sôbre a mesma coisa? Como explicar essa coexistência com o conceito de propriedade?”

Não há dúvida quanto ao argumento. Mas, se assim fôr, uma compra e venda de imóvel, subordinada a condição suspensiva, não permite a transcrição dêsse mesmo imóvel em nome do comprador condicional. Todavia a transcrição pode ter outros efeitos, que não constitutivos.

(4) – Roubier, Conflits de Lois, II, pág. 45.

(5) – Giulio Grazioli, verb. “Condizione”, in Scialoja, Dizionario Pratico, II. DOCUMENTO INDISPENSÁVEL À FAZENDA NACIONAL PARA GARANTIA DO PAGAMENTO DE TÔDAS AS DÍVIDAS QUE INCIDAM SÔBRE O IMÓVEL QUE FÔR OBJETO DA ESCRITURA DE V ENDA OU HIPOTECA. – (a) Xisto Vieira – Diretor da Recebedoria do D. F.”.

Dêsses ofícios, foi dada ciência aos tabeliães, pela circular n.º 27, de 3-6-1938, da Vara de Registos Públicos”. E‟ de notar, ainda, que o govêrno reconhecendo a vantagem da portaria n.º 27, dando a verdadeira interpretação ao disposto no art. 1.137 do Código Civil e art. 26 do decreto-lei n.º 96, de 1937, em 24-3-1938 baixou o decreto-lei n.º 418 (art. 8.º) exigindo a audiência da Fazenda Pública (cartórios de distribuidores – decreto-lei n.º 1.549, de 29-8-1939, art.

1.º) para informar sôbre as dívidas f iscais ajuizadas, independentemente de qualquer outra quitação da Prefeitura, da Re-

[374]

Fundamentando-se na retroatividade da condição e no direito eventual dela decorrente, Lisipo

Garcia (6), admite a transcrição, com um caráter de ato assecuratório, embora não haja ainda a transferência do domínio. A seguir, o referido autor assinala que “não se transferindo o domínio antes da transcrição, o vendedor pode vàlidamente vender de novo o objeto vendido ou gravá-lo;

ao passo que, pendente condição suspensiva, nenhum valor têm, antes de realizada ela, os atos do comprador, porque lhe não pertence o domínio”.

O que não padece dúvida é a possibilidade da venda sob condição suspensiva ser transcrita, pois que, como bem focaliza Luzzatti no direito italiano (7), tal forma de compra e venda torna-a suspensiva para o comprador e resolutiva para o vendedor.

O que resta examinar são os efeitos dessa transcrição.

Evidentemente ela não pode produzir uma transferência de propriedade. Não há t ítulo legal para tanto.

Seguindo a rota do Código Civil Alemão, o nosso Código não estabeleceu a retroatividade da condição, mas, no art. 122, dispôs:

“Se alguém dispuser de uma coisa sob condição suspensiva, e, pendente esta, fizer

quanto àquela novas disposições, estas não terão valor, realizada a condição, se com ela forem incompatíveis”.

Essa disposição incontestàvelmente se aplica à venda imobiliária, apenas exigindo que se trate de uma verdadeira disposição e não de uma simples promessa.

cebedoria ou da Diretoria do Impôsto de Renda isso em relação aos casos de inventários, f ideicomissos e subrogação de bens.

Assim, consoante a legislação vigente e diante da jurisprudência, os documentos indispensáveis para provar a quitação são os seguintes: Para os casos de transmissão de imóveis: I- certif icado do pagamento do impôsto de transmissão;

II- quitações da Recebedoria do D. F. (água e saneamento); III- quitação da Diretoria Geral do Impôsto de Renda; (7) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 33. IV – certidões negativas dos distribuidores da Fazenda Pública (9.º e 10.º ofícios – Portaria n.º 27, de 22-12-1937 – art.

1.137, § único do Cód. Civ., art. 26 do decreto-lei n.º 96, de 22-12-1937). Para os casos de hipoteca, os documentos são os mesmos, com exceção do certif icado de transmissão (item I) provado, porém, sempre que o imóvel está em dia com o pagamento do impôsto predial e taxas respectivas”.

[375]

Destarte, t ranscrita uma venda de imóveis, feita sob condição suspensiva, aplica-se o art. 22 do Código Civil, o qual produz uma retroação (8).

Podem ser então assentes os seguintes princ ípios:

1.º) – Se a venda sob condição suspensiva fôr transcrita no próprio dia do contrato, a condição, verificando-se, retroage ao próprio dia, tanto entre as partes como em relação a terceiros.

2.º) – Se fôr transcrita medio tempore, o efeito da condição não vale, em relação a terceiros, senão do dia da transcrição.

3.º) - Se fôr transcrito sòmente depois da verificação da condição, o seu efeito, ao invés de decorrer do dia do contrato, produz-se di dia da transcrição (9).

Mas, sobrevindo o fato ou o evento determinador da condição suspensiva, e por fôrça do qual esta passa a atribuir um direito integral, deve ser feita nova transcrição?

De modo nenhum. Transcrita a venda condicional, o ato de publicidade fica, sob o ponto de vista orgânico, inteiramente perfeito, completo.

Em virtude do princ ípio retroativo do art. 122 do Código Civil, o que há de peculiar no caso é o seguinte: a transcrição que, durante a pendência da condição, atuava como medida puramente

assecuratória, por fôrça da retroação, sobrevindo o evento, passa a ter o caráter constitutivo, mediante a averbação de que o evento ocorreu.

O argumento se nos afigura irretorquível: se existe retroação, não há como se cogitar de um novo ato.

A averbação, nesse caso, será requerida pelas partes contratantes, ou provado o consentimento de uma delas.

Em caso contrário, sòmente por meio de sentença judicial.

Precisamos, todavia, focalizar melhor o caso do art. 122 do Código Civil, isto é, a sua aplicação em relação a atos praticados com terceiros em oposição aos atos condicionais só tem lugar, em relação à propriedade imobiliária, de acôrdo com o Registo de Imóveis.

Se antes da transcrição da venda condicional, outro ato em oposição a esta, embora de data

posterior, houver sido t ranscrito, prevalece êste segundo ato. A fôrça retroativa da condição sòmente

(8) – E. Espínola, Man. do Cód. Civ., III, parte 2.ª, pág. 509; João Luiz Alves, Cód. Civ., An., I, pág. 144; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., III, pág. 93.

(9) – Luzzatti, ob. cit., I, n.º 34.

[376]

atua relativamente aos atos perpetrados durante a sua pendência e após cumprida a formalidade da sua transcrição.

542. EFEITOS DECORRENTES DA CONDIÇÃO RESOLUTIVA. – Na compra e venda sob condição resolutiva tudo se passa de maneira diversa.

Sendo resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o ato jurídico, podendo exercer-se desde o momento dêste o direito por êle estabelecido (Código Civil, art. 119).

O ato, sob condição resolutiva, surge completo; a transcrição do mesmo não possui um caráter puramente assecuratório, mas opera com efeito constitutivo, porque assim o autoriza a natureza do título, que lhe serve de fundamento.

Mas, sobrevindo o evento, torna-se necessária nova transcrição, para que o direito real

imobiliário volte ao patrimônio do interessado, a favor de quem a condição resolutiva foi convencionada?

Também aqui não é necessária nova transcrição. É bastante a primitiva transc rição, indicando que a venda ou a aquisição foi processada subordinadamente a uma condição resolutiva.

A razão é óbvia: sobrevindo a resolução de um negócio com a verificação da condição, não há

certamente um negócio novo destruindo os efeitos do precedente, não há retrocesso de direito; assim o comprador sob condição resolutiva não se torna vendedor, ocorrida a condição, nem vice-versa (1).

A operação consistirá no cancelamento de tôdas as inscrições resultantes do ato resolutivo,

restaurando a situação primitiva, dada a fôrça retroativa da condição e a sua natureza eminentemente resolutiva, sendo aplicável a lição de Coviello (2), “quando um ato é por lei retroativo, deve-se considerá-lo isento de transcrição”.

543. CLÁUSULAS ESPECIAIS À COMPRA E VENDA. – O Código Civil expressamente regulou

as seguintes cláusulas especiais à compra e venda: a retrovenda; a venda a contento; da perempção ou preferência; do pacto de melhor comprador e do pacto comissório. Passaremos a estudar essas cláusulas, cada uma de per si.

544. DA RETROVENDA. – A retrovenda é o contrato pelo qual o vendedor se reserva o direito

de recobrar, em certo prazo, o imóvel, que vendeu, restituindo o preço mais as despesas feitas pelo comprador (Cód. Civ., art. 1.140).

(1) – N. Coviello, Man. di Diritto Civile, p. 427. (2) – Coviello, Transcrizione, II, n.º 278.

[377]

Filia-se ao Pactum de retro-venda dos romanos. Todavia acentuada é a diferença entre o instituto no Direito Romano e o que vige no direito moderno.

No Direito Romano, o vendedor era credor da retrocessão e dispunha de uma ação para obter que o comprador lhe revendesse a coisa vendida. Operava-se um contractus novus. No direito moderno a mesma situação é obtida por outros processos. Em vez de ser um credor, o vendedor

tem, no exercício do direito de reaver a coisa, uma propriedade potencial, que faz parte do seu patrimônio, suscetível de cessão e de transmissão causa mortis (1).

Enquanto isso, o comprador é um verdadeiro proprietário, podendo exercitar todos os direitos compatíveis com aquela qualidade.

A natureza do contrato de retrovenda é a de um contrato sob condição resolutiva, inerente ao

contrato inicial de compra e venda. Essa condição resolutiva é expressa, e, assim sendo, opera de pleno direito (Cód. Civ., art. 119, § único).

Dessa natureza da retrovenda resultam as seguintes conseqüências da maior relevância:

1.º) – Venda e retrovenda devem ter por fonte um único título jurídico não podendo provir de títulos diversos, e se tal acontecer, não pode ser objet o de transcrição nem mesmo de

averbação, porquanto o contrato de compra e venda inicial foi realizado sem condição alguma (2).

2.º) – O exercício da retrovenda se reflete em face de terceiros. É uma conseqüência natural resolutiva do contrato. Se houvesse um novus contractus não poderia ser aparelhada dessa eficácia tão enérgica como protraída. Por isso dispõe o Código Civil no art. 1.142:

“Na retrovenda, o vendedor conserva a sua ação contra os terceiros adquirentes da coisa retrovendida, ainda que êles não conhecessem a cláusula de retracto”.

O que resta examinar, em face do Registo de Imóveis, é o que consta in fine da disposição supracitada: ainda que êles (terceiros) não conhecessem a cláusula de retracto.

Quer isto dizer que independe de transcrição a eficácia dessa cláusula em relação a terceiros?

Literalmente entendida a disposição, outra não poderia ser a conclusão. Mas, na realidade e tendo em vista o mecanismo legal, tal não pode suceder.

(1) – M. I. Carvalho de Mendonça, Contratos, I, pág. 151. (2) – Henri de Page, Droit Civil, IV, parte 1.ª, n.º 312; Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 187.

[378]

O Código Civil alemão (art. 497), por fôrça do art. 925 que proíbe a transferência da propriedade

a têrmo ou sob condição, deu à retrovenda um caráter de direito pessoal, amenizando a situação com a permissão contida no art. 883 no sentido de ser l ícito ao vendedor reservar os seus direitos em relação a terceiros, mediante prenotação no livro imobiliário.

O mesmo caráter lhe foi atribuído no art. 959 do Código Civil suíço, que subordinou a sua

oponibilidade em face de terceiros, à condição da anotação no Registo de Imóveis, com a circunstância de que o devedor não é obrigado a consentir nessa inscrição, a menos que a isso se haja obrigado no contrato (3).

Retornando ao art. 1.142 do nosso Código vemos que, apesar da sua expressão final, a

retrovenda não dispensa, implìcitamente, a transcrição para valer contra terceiros. E a razão é clara: trata-se de um contrato de compra e venda condicional, dependendo da validade de sua condição, como já vimos, de vir corporificada num só t ítulo. Para a constitutividade dêsse direito,

para eficácia dêsse título único, é imprescindível a t ranscrição a qual, a seu turno, indica existir, no caso, uma compra e venda subordinada a uma cláusula resolutória, um domínio resolúvel. Sem essa formalidade, o contrato não tem eficácia, o que equivale dizer: sem a formalidade de

transcrição do titulo de compra e venda com a cláusula retrovenda, nenhum direito pode exsurgir daí, quer os terceiros tenham ou não conhecimento dêsse contrato; nenhuma eficácia pode ter, nem mesmo em relação às partes contratantes, no sentido de transferir o domínio.

Por conseguinte, a ofensa ao sistema do registo imobiliário, que parece ter havido no art. 1.142, não passa de uma fórmula inócua, vazia de efeitos.

3.º) – O prazo dentro do qual o vendedor pode exercitar o seu direito, sendo convencional, não é suscetível de prorrogação pelo juiz, como não poderá ultrapassar de três anos, sob pena de s er reputado não escrito (Cód. Civ., arts. 1.140 e 1.141). Assim sendo, uma escritura lavrada com

infração dos artigos supracitados pode ser t ranscrita, porque, em qualquer caso, sem afetar a validade da parte restante do contrato, o prazo deverá ser considerado como sendo até três anos. Se, após expirado o prazo legal ou convencional, o vendedor vier a adquirir o imóvel, deve

ser considerada essa operação como um novo contrato, subordinado à transcrição e aos impostos respectivos, não se podendo praticar mais no Registo Imobiliário, qualquer ato com fundamento na retrovenda, já caduca.

(3) – Wieland, ob. cit., I, pág. 316.

[379]

O critério a seguir para a transcrição da compra e venda com a cláusula de retrovenda e para a

constatação da reaquisição pelo vendedor é o mesmo que já traçamos para o caso de venda sob cláusula resolutória.

545. DA VENDA A CONTENTO. – Dá-se a venda a contento quando se estipula no contrato de compra e venda a condição de que a coisa vendida será experimentada, e que a venda não será considerada definitiva, senão após o comprador julgá-la apta aos serviços a que é destinada (1).

A venda a contento é, portanto, um contrato de compra e venda e não uma simples promessa de venda, porque, além do mais, a interpretação que se dá aos textos é no sentido de que a experimentação da coisa, que ao comprador se assegura, não consiste num direito absoluto,

pois o vendedor tem o direito de fazer verificar judicialmente se, objetivamente, a coisa convém ou não aos fins a que é destinada e se a recusa do comprador é ou não o resultado de um capricho.

De acôrdo com o espírito da legislação francesa, o nosso Código, no art. 1.144, estabeleceu o

princ ípio de que a venda a contento é sempre reputada como feita sob condição suspensiva, s e no contrato não se lhe tiver dado expressamente o caráter de condição resolutiva.

A disposição supracitada tem, assim, um caráter nìtidamente supletivo, mas, para que a natureza suspensiva da condição não prevaleça, mister se faz que a condição resolutiva seja formalmente estabelecida no contrato.

Sob condição suspensiva ou sob condição resolutiva, tem lugar aqui tudo quanto já expusemos sôbre a matéria, ao tratarmos da compra e venda feita naquelas condições.

Fôrça é esclarecer, contudo, que, na venda a contento sob condição suspensiva, o evento futuro e incerto consiste nas circunstâncias das quais, expressa ou presumidamente, se possa estabelecer que a coisa vendida foi considerada a contento.

Até que tal se verifique, o contrato permanece em estado virtual; verificado o evento, o contrato de compra e venda tornar-se-á puro e simples (2).

Resta examinar a situação especial dêsse contrato em face do Registo de Imóveis. Como já

dissemos, aplicam-se aqui as mesmas noções já assentes para a condição suspensi va e para a resolutiva.

(1) – Planiol, Ripert e Hamel, Traité de Droit Civil, vol. 10, n.º 210. (2) – Henri de Page, ob. cit., IV, parte 1.ª, n.º 249.

[380]

Todavia, é preciso considerar a situação diante do texto dos artigos 1.146 e 1.147 do Código Civil.

Os supramencionados artigos contém uma distinção entre o caso de haver prazo estipulado no contrato para o comprador se manifestar e no de haver o contrato silenciado a êsse respeito.

No primeiro caso, êle reputa a venda perfeita desde que, dentro do prazo contratual, nenhuma declaração haja feito o comprador.

De modo que da transcrição do contrato deverá constar o prazo que houver sido estipulado. Expirado êste, sem que o Oficial de Registo tenha tido qualquer conhecimento a respeito de alguma impugnação por parte do comprador, poderá êle, a requerimento do interessado,

proceder a necessária averbação, a qual atribuirá efeito constitutivo à transcrição, por se ter tornado definitiva a venda.

O mesmo se dará no caso de se tratar de condição resolutiva, pois a diferença, nesse caso, é puramente de efeitos.

Não existindo estipulação de prazo no contrato, a averbação poderá ser feita à vista da prova da

interpelação judicial ao comprador, fixando-lhe prazo improrrogável para se manifestar, sob pena de se considerar perfeita a venda.

Convém o comprador, ad cautelam, se tiver motivos para recusar a coisa comprada, notificar ao Oficial de Registo da recusa que fêz, caso em que sòmente poderá ser praticado qualquer ato no

Registo de Imóveis a respeito da transcrição da compra e venda a contento, por fôrça de mandado judicial, em execução de sentença.

546. DA PEREMPÇÃO OU PREFERÊNCIA. – Dá-se a preferência, quando no contrato de compra e venda se impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que

aquêle vai vender ou dar em pagamento, para que êste use de seu direito de prelação na compra tanto por tanto (Cód. Civ., art. 1.149).

Trata-se de um direito meramente pessoal que não limita a propriedade em mãos do comprador, não o inibindo de vender a coisa a outrem, respondendo, apenas, perante o vendedor, pela indenização devida.

Não está, portanto, subordinado ao Registo Imobiliário e a compra, porventura efetuada pelo vendedor preferente, usando do direito de preferência, opera nova translação do domínio, e o seu contrato tem de ser transcrito, e não simplesmente averbado (1).

(1) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 191.

[381]

547. DO PACTO DE MELHOR COMPRADOR. – Dá-se o pacto de melhor comprador quando

no contrato de compra e venda se estipula a cláusula de ficar êle desfeito, se, dentro em certo prazo, aparecem quem ofereça maior vantagem (Cód. Civ., art. 1.158).

São os seguintes os característicos dêste pacto: a) prazo inexcedível de um ano: b) ser uma cláusula sòmente vigente entre os contratantes; c) valer por condição resolutiva, salvo

convenção em contrário (Cód. Civ., art. 1.159); d) ser um pacto exclusivamente pertinente à venda imobiliária (Cód. Civ., art. 1.160).

De todos êsses característicos merece especial exame o concernente ao parágrafo único do art. 1.158, isto é, a disposição de que “nem essa cláusula vigorará senão entre os contratantes”.

Quer isto significar que se o comprador vender o imóvel a terceiro, o subadquirente está livre da

cláusula resolutória estipulada pelo primeiro vendedor? Pensamos que não. Em relação a terceiros, constando da transcrição a cláusula resolutória, os seus efeitos são idênticos às demais cláusulas da mesma natureza.

O princ ípio do parágrafo único do art. 1.158 quer dizer que o pacto é pessoal, isto é, não pode

ser cedido, nem se transmite aos herdeiros, como o pacto de venda a contento e o de ret rovenda (1).

Como condição resolutiva, o pacto está sujeito à transcrição e resolvida a venda será a transcrição cancelada, por meio de averbação, e feita uma nova transcrição do contrato, que se efetuar com quem mais vantagem oferecer (2).

548. DO PACTO COMISSÓRIO. – O pacto comissório é o ajuste por fôrça do qual o vendedor fica com o direito de desfazer o contrato ou pedir o preço, se êste não fôr pago até certo dia, considerando-se de pleno direito desfeita a venda, se em dez dias de vencido o prazo o vendedor em tal caso não reclamar o preço (Cód. Civ., art. 1.163 e parágrafo único).

O efeito dessa cláusula é portanto o de operar pleno jure a rescisão da venda, pelo único fato do não pagamento com o decurso do prazo, sem que se faça mister qualquer ato tendente a constituir o devedor em mora (1).

Entende Lisipo Garcia (2), e com o que estamos de pleno acôrdo, que, nada obstante a fôrça da condição resolutiva expressa, para o cancelamento da transcrição, no caso de não paga-

(1) – João Luiz Alves, ob. cit., II, pág. 234. (2) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 193. (1) – Huc, ob. cit., X, pág. 232.

(2) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 194.

[382]

mento do preço, não basta a simples alegação da parte interessada, mas é indispensável a

intervenção judicial, pois a alegação do vendedor pode não ser verdadeira, ou estar êle reclamando o preço, o que impede a resolução, e ao O ficial do Registo falta autoridade para ordenar as diligências.

O que se produz, neste caso, em relação à função do Juiz, é que ela difere bastante, no caso da

resolutória expressa do em que há resolutória tácita. No primeiro caso, a decisão judicial apenas apura o fato resolutivo do contrato, para declarar êste rescindido desde o momento em que o aludido fato se produziu, ao passo que, na resolutória tácita é a sentença do juiz que irá determinar o início da resolução do contrato, concluindo pela rescisão ou não do mesmo.

Lisipo Garcia, ainda com bons fundamentos, considera inaceitável a transcrição da cláusula com que se costuma substituir o pacto comissório, e mediante a qual se estabelece a restrição da disponibilidade do imóvel no sentido do comprador não poder aliená-lo nem hipotecá-lo ou de

qualquer forma onerá-lo, enquanto o preço não fôr pago. Acha o citado autor que a dita cláusula não confere nenhum direito real, não devendo constar do registo porque os seus efeitos são meramente pessoais tanto mais quanto existe para o vendedor dois remédios legais: o do pacto comissório e o da hipoteca.

549. VENDA ALTERNATIVA. – Dá-se a venda alternativa quando a decisão de qual das duas coisas deva constituir o objeto da prestação depende da vontade do vendedor ou do comprador, sendo que tal escolha cabe ao vendedor, se outra coisa não estipular o contrato (Cód. Civ., art. 884).

A venda alternativa pode ter por objeto diversos imóveis e mesmo uma coisa imóvel e outra móvel. A questão importante que se apresenta ao Registo é a de se saber se, realizado o contrato de venda alternativa, pode o mesmo ser transcrito antes da escolha, ou se é necessário

que antes se dê esta. A respeito é divergente a doutrina. Verdade é que se trata de uma doutrina calcada numa legislação que dá à obrigação o valor de transferência da propriedade. Mas não muda de aspecto o problema, pois, de qualquer forma, o que se quer saber é se se trata de um título hábil para a transferência do domínio e capaz de servir de base à transcrição.

Êsse problema está ligado a um outro: o de se saber se as duas prestações alternativas estão in obligatione.

Uns (Demolombe, Colmet de Santerre e Mourlon) entendem que, independente da escolha, há um contrato perfeito, portanto suscetível de transcrição, do mesmo modo que a venda condicional.

[383]

Outros (Marcadé) distinguem a escolha quando pertinente ao credor e quando toca ao devedor, admitindo a transcrição no primeiro caso e negando-o no segundo.

Finalmente, outros (Larombière, Toullier, Laurent, Borsari e Pacifici-Mazzoni) sustentam ser inconcebível uma transmissão de propriedade em obrigações, nas quais permanece duvidoso o objeto do contrato.

No nosso entender, a diretriz segura assenta na doutrina sustentada por Giorgi, seguida por N. Coviello, e, entre nós, Lisipo Garcia (1).

É preciso não confundir a obrigação alternativa com a condicional. A primeira difere da segunda, por isso que a incerteza não diz respeito à questão de saber se alguma coisa é devida mas sòmente qual das diversas prestações deve ser executada (2).

Depois como assinala Giorgi (3) não pode servir de argumento o fato das duas prestações

estarem submetidas in obligatione, pois essa submissão deve ser tomada, não no sentido de que tôdas duas devam ser pagas, mas ùnicamente no de que o pagamento tanto de uma como de outra extingue a obrigação (4).

Por conseguinte, não pode haver transferência da propriedade. A faculdade de que o devedor

faz uso, optando por uma das prestações, pertence, como ensina Thür, ao grupo dos dir eitos formadores que, pelo seu exercício, modificam a relação jurídica existente.

É pela escolha que a coisa se concretiza; nela se concentra a obrigação, tornando-a objeto único, concentração que retroage ao momento da formação do vínculo obrigacional (5).

Não se cogita de uma questão de interpretação de vontade, que só tem lugar em se tratando de

indagar quando há uma venda alternativa ou quando se apresenta puramente sob uma forma facultativa.

É pela escolha que a venda se torna simples e sòmente a parti r dêsse ato é que surge o fundamento legal para a transcrição.

Mas daí surge uma segunda questão: qual o título que se deve transcrever? Se a escolha tiver sido feita por meio de um escrito separado, será êste último que deverá ser transcrito?

(1) – Giorgi, Obbligazzione, IV, n.º 436; N. Coviello, Transc. II, n.º 274; Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 198. (2) – Thür, ob. cit., I, pág. 63. (3) – Giorgi, ob. cit., loc. cit.

(4) – Giorgi, ob. cit., IV, n.º 424. (5) – M. I. Carvalho de Mendonça, Obrigações, I, n.º 75.

[384]

N. Coviello (6), acha que o título translativo é o contrato, entendendo, ainda, que se para a validade do ato principal se faz mister a realização dos atos ou fatos integrantes, contudo não se torna necessário que êstes sejam submetidos à publicidade.

Conseguintemente, para a transcrição da escritura de venda alternativa, é necessário que haja a escolha por parte do vendedor, não se tendo convenientemente que seja o credor (comprador).

Essa escolha deve constar de escrito, revestido de tôdas as formalidades legais, acompanhando a escritura. Em se t ratando de escrito particular deve o mesmo ser apresentado em duplicata, ficando um exemplar arquivado no cartório do registo de imóveis.

550. VENDA FACULTATIVA. – A venda facultativa se distingue da venda alternativa. Enquanto

nesta dois objetos são devidos, ficando subordinada à escolha a que deve ser entregue, na venda facultativa a mesma tem por objeto um imóvel, mas ao vendedor fica reservada a faculdade de entregar outra coisa, isto é, ou uma coisa móvel, como uma soma de dinheiro, ou

uma outra coisa imóvel. Conseguintemente uma só coisa permanece in obligatione, ao passo que a outra in facultate solutionis tantum. Em face dessas noções, depreende-se fàcilmente que, diferentemente da venda alternativa, a venda facultativa constitui um título translativo da propriedade.

Pôsto que haja outra coisa in facultate solutionis, o imóvel objeto da venda está apto a ingressar

no patrimônio do comprador, como de sua propriedade, e como propri etário se mantém, enquanto o vendedor não exercitar a faculdade a que se reservou.

Ao contrário, não pode haver transcrição, se o imóvel que figurar no contrato, o fôr como a coisa que fica in facultate e solutionis tantum.

É a opinião bem fundada de N. Coviello (1), argumentando que não se poderia buscar

fundamento no fato de poder se considerar uma venda sob condição resolutiva, porquanto a faculdade do vendedor constitui um mero arbítrio de sua parte, surgindo como uma condição potestativa.

O contrato, portanto, tem de ser transcrito com a respectiva condição (2).

551. VENDA DE IMÓVEL COM RESERVA DE DOMÍNIO. – Já deixamos fixado o conceito de contrato de compra e venda com reserva de domínio (cfr. 2.º volume, ns. 204 -209).

(6) – N. Coviello, ob. cit., II, pág. 152. (2) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 199.

[385]

Dissemos tratar-se de um contrato portador de um duplo efeito: o primeiro – efeitos pessoais – operando-se desde a conclusão do contrato; o segundo – efeitos reais, translativos – sòmente nascidos a partir do cumprimento das obrigações.

Essa noção é perfeita, em relação aos bens móveis, notando-se ainda o seguinte caráter diferencial, que não atuam os efeitos translativos, nada obstante intervir a tradição da coisa vendida (1).

Todavia, em relação aos bens imóveis cumpre acentuar, antes do mais, certas diferenças

próprias ao sistema decorrente do nosso Registo Imobiliário; enquanto segundo o sistema francês e italiano há unidade formal, em relação à compra e venda do imóvel, de modo que a obrigação produz, pela sua própria fôrça, a transferência do domínio, entre nós essa transferência depende da transcrição do ato no Registo Imobiliário.

Conseguintemente, o conceito de que, na compra e venda com reserva de domínio, a transferência dêste está suspensa donec pretium solvatur, deve ser interpretado de acôrdo com o nosso sistema, isto é, a realização completa do preço convencionado habilitaria o comprador a

transcrever o contrato em seu nome, e obter o domínio do imóvel sôbre o qual até então só tinha a posse.

Dadas essas circunstâncias, pode ser extensiva aos bens imóveis essa espécie de contrato?

Eis um ponto já fortemente debatido quer na doutrina, quer na jurisprudência.

N. Coviello (2), nega a possibilidade de ser transcrito no Registo de Imóveis o contrato de compra e venda de imóveis, quando feito com reserva de domínio.

Para análise do seu ponto de vista parte da indagação sôbre se o fato necessário à transferência

tem eficácia retroativa ou não, em relação ao tempo do contrato. Contesta essa retroatividade

porque, argumenta, na reserva de domínio, a venda é pura e simples e produz todos os efeitos

obrigatórios do contrato, e se não transfere a propriedade (sistema da unidade formal a que aludimos), nem por isso se pode dizer que a sua eficácia esteja suspensa.

Coviello entende que a reserva de domínio, na compra e venda, faz com que esta apresente o mesmo caráter da compra e venda do direito romano, ou seja, quase idêntico ao aspecto do

sistema germânico e do nosso, porquanto o contrato não basta a transmitir a propriedade, se não ocorrer um outro fato (pagamento do preço, ou tradição, ou todos os dois conjuntamente).

(1) – Franceschelli, in Riv. di Diritto Privato, 1934, II, pág. 79. (2) – N. Coviello, ob. cit., II, págs. 170-171.

[386]

Ora, argumenta, no direito romano, a venda era considerada perfeita e não condicional, de modo

que o pactum reservati dominii, que servia para excluir a passagem da propriedade no momento da tradição, quando se tivesse estipulado uma dilação no pagamento do preço, não tornava condicional a venda, mas sòmente a tradição.

Do mesmo modo, continua, quando se estipula um pacto de reserva da propriedade no contrato

de venda, se firma não já uma venda condicional, mas uma venda pura e simples, e se cindem os efeitos obrigatórios dos reais, exigindo-se um novo elemento, além dos comuns, para que se torne translativa. Assim, o evento do fato translativo não tem fôrça retroativa à época da venda,

porque se não pode considerar-se como condição do contrato, sendo, por isso, eficaz a transcrição, sòmente realizada posteriormente. E conclui: “entende -se porém que não é necessário transcrever nem o ato da entrega, nem o do pagamento, ainda que resultantes da

escritura, porque o ato translativo é sempre a venda, e a tradição e o pagamento do preço nada mais são do que fatos necessários, para que a venda se torne translativa, como são a determinação do objeto a respeito da venda genérica, a escolha na venda alternativa e assim por diante”.

Gino Gorla (3), depois de acentuar que a distinção entre contrato e ato translativo é um dos dois pontos principais para a descoberta da natureza jurídica do contrato de compra e venda com reserva de domínio, acentua que o pacto se apresenta como uma lex do ato translativo, e não do

contrato, e embora repute mais aceitável considerar definida, no caso, a existência de uma condição suspensiva, todavia acentua que “esta condição suspensiva não possui efeito retroativo, porque isto corresponde à intenção das partes e ao conteúdo da cláusula (a

propriedade passa ùnicamente, donec, no momento do pagamento do preço); e, de outro lado, é duvidoso se a regra da retroatividade, também sempre derrogável, estipulada pelo art. 1.170 para negócio obrigatório, se possa transportar no campo do ato translativo. Portanto, verificando-

se a condição, se tem uma propriedade a têrmo inicial para o comprador; o contrário de quanto ocorre em relação ao pacto de resgate”.

Degni (4), nega que o pacto de reserva de domínio produza uma condição suspensiva ou resolutiva. A venda com reserva de domínio, diz êle, deve considerar-se uma venda pura e simples, em

(3) – Gino Gorla, La Compra Vendita, pág. 318 e seguintes. (4) F. Degni, La Compra Vendita, pág. 123.

[387]

que ùnicamente a passagem da propriedade é deferida a um dado têrmo ou com o ocorrer de um determinado acontecimento.

Parte do ponto de vista de que o preço é um elemento essencial à compra e venda, não o sendo porém o pagamento do mesmo.

Finzi contorna a dificuldade querendo descobrir no concurso uma formação sucessiva, sendo a primeira fase a da formação do contrato de compra e venda, e a segunda a da oferta do

vendedor, mediante a t radição da coisa, e a aceitação do comprador, mediante o pagamento do preço.

Para Massimo Ferrara (5), o objetivo do contrato, sendo a transferência da propriedade, é perfeitamente conciliável com a imposição de uma condição suspensiva em relação à referida

transferência, deixando subsistirem, como inteiramente sem condições, os efeitos obrigatórios do contrato.

Do que se viu acêrca da divergência doutrinária, em relação à natureza jurídica do contrato de compra e venda com reserva de domínio, é que, mesmo no sistema da unidade formal, isto é, no

sistema em que o contrato de compra e venda une os efeitos obrigatórios aos efeitos reais ou translativos, procura-se distinguir uma e outra fase, para só se reputar condicionada, quando muito, a segunda, ou seja a parte translativa.

552. POSIÇÃO DO PROBLEMA EM FACE DOS BENS IMÓVEIS E SEGUNDO O SISTEMA DO

REGISTO IMOBILIÁRIO INSTITUÍDO PELO CÓDIGO CIVIL. – Se, no sistema de unidade formal, distinguem-se, como vimos, os dois momentos, mais avulta essa separação, num sistema, como acontece entre nós precìpuamente em relação aos bens imóveis, em que o

contrato de compra e venda apenas dá lugar a efeitos obrigatórios e serve, pura e simplesmente, de título para a transferência do domínio, que só se realiza pela transcrição no registo imobiliário.

Nesse ponto é que o nosso sistema se diferencia do francês e do italiano: enquanto nestes há um só ato do qual jorram duas classes de efeitos, no nosso, há, mui ao contrário, dois atos

inteiramente distintos, embora um dêles seja causa eficiente do outro, ou seja, de um lado o título representativo da obrigação – o contrato de compra e venda; e de outro o ato gerador da transferência do domínio – a transcrição no Registo Imobiliário.

Resta, pois, examinar se essa situação, decorrente de uma duplicidade de atos, torna

compatíveis a compra e venda com reserva de domínio e a propriedade imobiliária, como seu objeto.

(5) – Massimo Ferrara, La Vendita a Rate con riserva di proprietá, n.º 47.

[388]

Para isso, é preciso examinar se há realmente uma condição suspensiva e se ela condiciona o contrato ou, como querem muitos, o ato translativo.

Entre nós, muito são os partidários de que no contrato de compra e venda com reserva de domínio há uma condição suspensiva (1).

Outros abordaram a questão do ponto de vista da propriedade imobiliária.

Assim Aprígio Ribeiro de Oliveira (2), que, em sintético estudo, acha possível a venda de imóveis

com reserva de domínio, fundamentando-se nos seguintes argumentos: 1.º) que o argumento extraído da inutilidade da garantia, visto o recurso à hipoteca produzir o mesmo efeit o, padece de defeito visceral, prova demais porque, a vingar, lògicamente se deveria rejeitar a reserva de

domínio nos móveis, porque a êstes acode a lei com o resguardo do penhor; 2.º) que o pacto reservati dominii não sendo ilícito, imoral ou impossível, a sua aplicação aos imóveis é permitida e deve ser respeitada, se assim ajustarem as partes.

Da mesma opinião, em voto vencido, se manifestou o ilustre Ministro Orosimbo Nonato, a cuja cultura rendemos o mais justo preito (3). Os seus argumentos podem ser assim resumidos:

a) a t ransferência da propriedade não é essencial à validade da compra e venda e o pacto de reserva, assim, constitui condição que não contradiz os caracteres essenciais da compra e venda;

b)em relação à venda de bens imóveis, o pacto não constitui uma condição jurìdicamente

impossível, pois o argumento em que poderia repousar (não permitir transferência quando a finalidade do contrato é a transferência) atingiria o pacto em todos os casos, assim na venda de imóveis como de móveis; e quanto à transcrição, que é modo de adquirir domínio, não pode ela ir além do título e vale com as condições, cláusulas, pactos e restrições dêste.

O acórdão do Tribunal de Apelação de Minas, onde consta o supracitado voto, conclui pela inadmissibilidade da cláusula de reserva de domínio, no contrato de compra e venda de bens imóveis, reputando, ainda, a aludida cláusula e o pacto comissório como incompossíveis. Abgar Soriano de Oliveira (4), acentua que se bem

(1) – Eduardo Espínola, Pandectas Brasileiras, I, parte 2.ª, pág. 582; Soriano de Oliveira, Arq. Jud., Supl. Vol. 15, pág. 135-145. (2) – Aprígio de Oliveira, in Rev. For., vol. 79, pág. 220-222.

(3) – Orosimbo Nonato, in Rev. For., vol. 77, pág. 124-127.

[389]

que haja sido possível a cláusula reservati dominii no Direito romano e em alguma legislação

especial, tornou-se atualmente pràticamente inútil, no que diz respeito aos bens imóveis, estando tudo perfeitamente assegurado com a cláusula hipotecária.

Em face da garantia ser plenamente realizada pelo ônus hipotecário, conclui por ser incabível a reserva de domínio, quando o objeto da compra e venda é um imóvel, achando que a reserva de domínio é tão inajustável aos imóveis, quanto inaplicável a cláusula hipotecária aos bens móveis.

Para nós êsse argumento, como frisou Orosimbo Nonato, não possui valor algum. O fato da garantia hipotecária realizar o mesmo escopo da compra e venda com reserva de domínio, não significa nem implica em se considerar tal pacto como sendo uma condição jurìdicamente impossível.

O que resta examinar é a sua compatibilidade com o nosso sistema dual, isto é, com o sistema em que a transferência do domínio não é uma conseqüência do contrato, mas sim de um segundo ato – a transcrição no Registo Imobiliário.

Ora, cremos que a razão se acha com os que consideram o pacto de reserva de domínio uma

condição incidente, não sôbre o contrato de compra e venda, que é puro e simples, mas sôbre

um dos seus efeitos – que é a transferência do domínio, pois, como ensina Henri de Page (5),

não há uma transformação da venda em um contrato sob condição suspensiva, mas torna simplesmente a venda com têrmo, quanto à transferência da propriedade.

Em princípio não se pode dizer que a cláusula com reserva de domínio seja uma condição jurìdicamente impossível, se o objeto do contrato fôr um bem imóvel; mas, atento o requisito da

transcrição no registo de imóveis, e admitindo-se que o que fica sob condição suspensiva é o ato da transferência, é forçoso considerar-se o seguinte:

1.º) não pode ser objeto de transcrição o contrato, considerado como puro e simples. A transcrição tem por efeito operar a transferência do domínio, e, por conseguinte, seria um ato em

contraposição com um dos efeitos do respectivo contrato – qual o de conservar no vendedor o domínio;

2.º) também não pode ser transcrito como sendo um contrato subordinado à condição suspensiva. Essa diz respeito ao ato

(4) – Abgar Soriano de Oliveira, A Compra e Venda com reserva de domínio, n.º 50.

(5) – Henri de Page, ob. cit., t. 4.º, n.º 21, 4.º.

[390]

da transferência e não ao contrato pròpriamente. Não se diz: eu lhes vendo o imóvel X se tal acontecimento sobrevier, porém, mui ao contrário, se estabelece que a compra e venda está perfeita, definida a coisa e firmado o preço, e que apenas a transferência do domínio fica

subordinada ao pagamento do preço. Não cabem aqui as regras que estabelecemos quando tratamos da compra e venda de imóveis sob condição suspensiva.

Somos inteiramente partidários dos pontos de vista de Coviello. Não seria possível cogitar-se de uma retroatividade, pois o contrato está perfeito desde o início.

É a situação jurídica que J. X. Carvalho de Mendonça (6), já definia com bastante precisão:

“A compra e venda com o pacto reservati dominii é pura e simples, deferindo-se, tão

sòmente, a transferência da propriedade para dado dia, certus dies, o dia do pagamento da última prestação do preço”.

Se, dentro do sistema unitário, isto é, o da obrigação produzindo um efeito real, o contrato é cindível, em relação aos seus efeitos pessoais e reais, considerando-se a venda como pura e

simples, e sòmente condicional a transferência das propriedades, com maioria de razão essa mesma situação se esbate no sistema em que, precìpuamente em relação à propriedade imóvel, a transferência constitui um ato distinto, autônomo, embora ligado ao contrato apenas como um fundamento jurídico, um título necessário àquela operação.

Conseguintemente, repetimos: não pode ser levada a efeito a transcrição do contrato de compra e venda com reserva de domínio, com a forma de uma compra e venda sob condição suspensiva, pois o que é suspensivo não é o contrato, mas a transferência do domínio, além de

se dever tomar em consideração que se o preço é elemento essencial da compra e ven da, não o é o seu pagamento, que pode até deixar de ser realizado, sem que isto implique, muitas vêzes, na rescisão do contrato (7).

É verdade que Massimo Ferrara (8), admitindo que a reserva da propriedade estabelece uma condição à tradição, considera que

(6) – J. X. Carvalho de Mendonça, Trat. de Dir. Comercial, parte 2.ª, n.º 756. (7) – Fortunato Azulay (in Teoria do Contrato da Compra e Venda Condicional e a Reserva de Domínio, n.º 133, pág. 200) sustenta vigorosamente que, teórica e pràticamente, é inadmissível a c. e v. de imóveis com reserva de domínio.

(8) – Massimo Ferrara, ob. cit., pág. 76.

[391]

o adquirente tem um direito condicionado sôbre o imóvel, não um direito atual, mas um direito que, verificada a condição, surgirá completo por fôrça da ret roatividade.

Diz êle então que a solução proposta oferece melhores vantagens e resultados, que a que defere a transcrição para quando se realizar por completo o pagamento do preço.

Com a transcrição efetuada desde logo, acentua Ferrara, evitam-se muitos inconvenientes, principalmente os relativos aos atos praticados medio tempore.

Êstes argumentos não procedem, desde que se parta do ponto de vista de que condicional é sòmente a transferência do domínio, e, assim sendo, mais segura é a conclusão de N. Coviello considerando inconciliável o efeito retroativo ligado a um contrato puro e simples.

O que há de verdade em tudo isso é que, pôsto o argumento da inutilidade do pacto de reserva

de domínio incluído na compra e venda de imóveis não s irva para se concluir que se t rata de uma condição jurìdicamente impossível, contudo, não só pela garantia hipotecária, como ainda pela promessa de venda, que é aparelhada, quando inscrita, de garantia real, a reserva de

domínio nos bens imóveis se tornou um meio que não corresponde a nenhuma vantagem prática, nem mesmo como garantia, pois a sua t ranscrição não se pode operar senão a partir do momento do completo pagamento do preço, condição essencial da transferência do domínio. E a

conclusão a que chegamos é idêntica à de N. Coviello: em se tratando de um contrato puro e simples, e só condicional se reputando a transferência do domínio, a transcrição sòmente é realizável de um modo definitivo, provado o pagamento integral do preço ajustado.

[392]

PERMUTA

553. CONTRATO DE PERMUTA. – A permuta é um contrato pelo qual cada uma das partes se obriga a dar uma coisa para haver outra (1).

Foi a permuta que deu origem à venda: origo emendi vendique a permutationibus coepit (L. I. D. De contrah, empt).

Acêrca da natureza do contrato de permuta diverge a doutrina desde o Direito Romano. Os Sabinianos consideravam-no um verdadeiro contrato de venda, ao passo que os Proculeianos apontavam certas diferenças entre um e outro instituto.

Efetivamente, enquanto no contrato de compra e venda a coisa e o preço são distintos, bem

como em relação aos contratantes – o vendedor e o comprador, no contrato de permuta, cada uma das duas coisas é contemporâneamente comprador e vendedor.

A despeito dessa diferença, não pode deixar de ser assinalado que a permuta apresenta bastante analogia com a compra e venda, participando da natureza dêste último contrato:

Permutationem... vicem emptionis obtinere non est juris incongniti. Permutatio vicina est emptioni (L. 2. De rerum permut).

554. A PERMUTA E A COMPRA E VENDA. – O nosso Código Civil (art. 1.164) identificou a permuta com o contrato de compra e venda , no que diz respeito à sua regulamentação, pois, na citada disposição prescreveu:

“Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda com as seguintes modificações:

I) – Salvo disposição em contrário, cada um dos contraentes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca.

II) – É nula a troca de valores desiguais entre as-

(1) – Pacif ici-Mazzoni, Ins. vol. 5.º, parte 1.ª, pág. 471; Luzzatti, ob. cit., pág. 70.

[393]

cendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes”.

Como se depreende do texto supra, sejam quais forem as diferenças notad as entre a compra e

venda e a permuta, no nosso entender, pouca influência exercem do ponto de vista jurídico, dada a equiparação quase absoluta entre uma e outra fixada pelo Código Civil.

Ressalvados certos obstáculos específicos, como o da não aplicação do art. 429 do Código Civil (1), no mais perde de interêsse a questão de se saber se a permuta exige, para sua validade, a outorga uxória.

A jurisprudência tem largamente debatido a matéria. J. M. de Carvalho Santos (2), divulgando alguns julgados, expõe o seu ponto de vista no sentido de que o art. 235, n.º 1, do Código Civil, se refere a atos de alienação e dentre os atos de alienação não pode ser incluída a permuta.

Reporta-se, então, a uma citação de Wachter, feita por Estevam de Almeida, na qual o referido

romanista define a palavra alienação, como portadora de dois elementos: um negativo, consistente na deslocação da coisa do patrimônio do alienante, e outro positivo, consistente na aquisição da coisa para um novo patrimônio.

As conclusões de J. M. Carvalho Santos podem ser assim sintetizadas:

a)em face do supradito conceito de alienação, a permuta não pode ser considerada como tal, porquanto os patrimônios dos contratantes nada perdem nem ganham;

b)não sendo ato de alienação, não está compreendido no disposto no n.º I, do art. 235, do Código Civil;

c)esta dedução se reforça ante o disposto no n.º II, do art. 1.164, que permite a permuta de bens

entre ascendentes e descendentes, sem necessidade de anuência dos outros descendentes, pois se como alienação fôsse havida, o preceito não se justificaria;

d)mandando aplicar a permuta às disposições inerentes à compra e venda, o Código refere-se, evidentemente, aos preceitos subordinados ao título da compra e venda e não à regra geral do art. 235, que não diz respeito à compra e venda e sim à capacidade do marido.

Absolutamente não podemos concordar com essas conclusões. Em relação ao conceito da palavra alienação, o argumento não procede.

(1) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 280. (2) - J. M. Carvalho Santos, ob. cit., loc. cit.

[394]

Já vimos que històricamente a permuta precedeu a compra e venda, mas com esta mantém estreitos laços de afinidade.

Permuta é o tipo do contrato em que se dá coisa por coisa: permutatio fit rebus.

Mas nem por isso consideramo-la não abrangida pelo conceito de alienação.

O conceito fundamental de alienação é o de que ela produz a transmissão de um direito de um patrimônio a outro, ensina De Ruggero (3).

Em relação ao conceito de Wachter, De Ruggero (4), frisa que o mesmo deve ser rejeitado formalmente, negando, a seu turno, a proposição de Savigny (5), no sentido de ligar ao conceito

de alienação o de produzir um aumento no patrimônio do adquirente e uma diminuição no do alienante. E repete:

“Para se ter o conceito de alienação é suficiente a passagem da coisa ou do direito de um patrimônio a outro”.

Ora, na permuta, há efetivamente uma passagem recíproca de bens de um patrimônio a outro.

O acêrvo patrimonial se modifica pela entrada de uma coisa em substituição à outra: a diferença

é que, na compra e venda, essa coisa é consistente em dinheiro, ao passo que, na permuta, é uma coisa da mesma espécie ou de outra espécie, contando que sejam corpos ou coisas existentes in natura.

Por conseguinte, o art. 235, n.º I, compreende a permuta. Em nada prejudica a tese supracitada

a circunstância do n.º II, do artigo 1.164, do Código Civil ter excetuado a permuta da obrigação da anuência dos demais descendentes, que se funda, precisamente, no interêsse de evitar que, com um ato simulado, o descendente prejudique a legítima dos demais descendentes.

(3) – De Ruggero, voce “Alienazione”, in Scialoja, Dizz. Pratico di Diritto Privato.

(4) – De Ruggero, ob. cit., loc. cit. (5) – Savigny, Sistema, IV, § 145.

[395]

Havendo equivalência de valores não subsistem os motivos da anuência.

Finalmente, se o art. 235, I, do Cód. Civil, não pertence ao título inerente à compra e venda, nem

por isso deixa de estar intimamente ligado ao referido contrato, porque rege u m dos requisitos fundamentais, orgânicos do contrato de compra e venda, cujo objetivo é a alienação.

Com algumas restrições decorrentes da lei e da natureza específica de cada um dos contratos, não temos dúvida que o princípio geral é o que deflui do art. 1.164, isto é, aplicação integral à permuta de todos os princípios inerentes ao contrato de compra e venda.

Diante do exposto, fácil é compreender-se o diminuto interêsse da distinção entre a permuta e a

compra e venda, dada a aplicação quase maciça e total da disposições de uma em relação à outra.

Entretanto, discute-se se há compra e venda ou permuta no caso em que, por uma das coisas ser de valor inferior à outra, se torne necessária uma reposição em dinheiro.

Dentre os sistemas que se tem proposto à solução do problema pode-se focalizar dois principais:

o primeiro, defendido por Pothier (6), seguido por Laurent, Troplong, Duranton e Aubry et Rau, achando que há venda e não uma permuta quando o valor da reposição em dinheiro se elevar a mais da metade do valor do imóvel; o segundo, sustentado por Mercadé e Duvergier, parte de

um ponto de vista subjetivo, isto é, não é na diferença do valor da reposição que se deve encontrar o elemento para se reconhecer quando há uma permuta ou uma compra e venda, no caso figurado, mas sim se deve joeirar a intenção dos contratantes e os fatos determinativos da constituição do contrato.

O primeiro sistema se fundamenta num princípio jurídico, segundo o qual a natureza de um contrato se determina pelo seu elemento preponderante.

É o que tem a preferência da maioria dos juristas. Na verdade, como refere De Ruggero (7), a diferença substancial entre a venda e a permuta assenta no fato de que a segunda se realiza contra a entrega de uma coisa por outra.

Desde que se aduz à coisa entregue mais uma soma em dinheiro há uma degenerescência do

elemento substancial, resolvendo-se o problema da qualificação do contrato pelo elemento que mais preponderar.

(6) – Pothier, Des retroits, ns. 92 a 95. (7) – De Ruggero, Instituzioni, III, § 109.

[396]

555. PERMUTA DE BENS ENTRE ASCENDENTES E DESCENDENTES. – O n.º II do art. 1.163

do Código Civil considera “nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes”.

A 1.ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Estado de São Paulo, interpretando o supracitado dispositivo entendeu nulo o contrato de permuta assim feito entre ascendentes e

descendentes, pouco importando que os bens venham a se encontrar em poder de terceiros (Ac.

da 1.ª Câmara Cível, do Trib. de São Paulo, de 2 de março de 1942, in Rev. dos Trib., vol. 139, págs. 221-222).

Aqui a nulidade fulminada pela lei encontra-se em uma situação especial: a presunção é a validade da permuta. O contrato subsiste válido enquanto se não provar que há uma

desigualdade de valores. Diferentemente do que sucede na compra e venda, o simples fato de não haver a concordância dos demais descendentes não produz desde logo o direito de demandar a nulidade do ato praticado, que exige, como pressuposto essencial, a comprovação

dessa desigualdade de valores, equivalência essa que se deve apreciar em conformidade com os valores predominantes na época da transação (1). Tal é o princípio pacífico em doutrina e jurisprudência.

556. PERMUTA DE BENS DE INCAPAZES SOB TUTELA OU CURATELA. – Em se tratando de

bens de menores sob tutela ou de incapazes, a jurisprudência tem estabelecido a impossibilidade jurídica da permuta. A Quarta Câmara do Tribunal de Apelação do Estado de S. Paulo (Ac. de 28 de agôsto de 1941, in Rev. dos Trib., vol. 135, págs. 158-159) assentou que

“dentre as atribuições que a lei confere ao curador, não se encontra a de poder permutar bens do curatelado. Desde que a permuta não comporta hasta pública, a conclusão não é a de ser permitida, mas precisamente o contrário. Nesta matéria não se aplica a regra de que o que não é

proibido, expressamente, é permitido”. O supracitado julgado teve por precípuo fundamento o argumento de que o art. 429 do Código Civil se refere à alienação em hasta pública e o têrmo “alienação” compreende não só a venda com a doação em pagamento e a permuta, e se é certo

que o citado dispositivo dispõe sôbre a “venda”, não menos certo também é a extensibilidade à troca das disposições relativas à compra e venda, com duas exceções apenas, não aplicáveis à espécie.

557. TRANSCRIÇÃO DA PERMUTA. – Dispõe o artigo 203:

“Na permuta haverá duas transcrições com referências

(1) – Cfr. J. M. Carvalho Santos, Cód. Civ., Int., XVI, pág. 299.

[397]

recíprocas e números de ordem seguidos no protocolo e no livro de transcrição, sendo também distintas e com referências rec íprocas as indicações no indicador real”.

A citada disposição corresponde exatamente ao art. 256 do Reg. 370 de 1890, que repr oduziu a disposição do art. 281, do reg. De 1865.

Refere Lisipo Garcia (1), que as referidas disposições visaram solver duas controvérsias surgidas na doutrina francesa, a saber:

a) havendo mais de um interessado no contrato, a transcrição feita a requerimento de um dêles produz um aproveitamento aos demais;

b) obstar a que a transcrição seja efetuada tão sòmente na parte que interessar ao que a requerer, ou seja, a inscindibilidade do contrato para o efeito da respectiva transcrição.

Refere o supracitado autor que, nada obstante a clareza do texto legal, criticava-se a disposição

considerando-a inexeqüível, quando requerida a transcrição por um só dos permutantes, pela necessidade de apresentação de dois traslados para nêles se anotar cada um dos números a que o artigo se refere, crítica que refutou nos seguintes têrmos:

“É inconsciente a argumentação por confundir a faculdade de transcrever, com a de

cindir um ato conjunto, indivis ível; e por encarar como tutela de direitos alheios o que é apenas efeito decorrente da natureza da permuta, onde há duas transferências recíprocas, inseparáveis uma da outra; por constituírem a essência do próprio contrato.

Nenhuma necessidade tão pouco há da apresentação de dois traslados; porque a nota

dos dois números do Protocolo e do Livro de Transmissões, será lançada no traslado único que fôr apresentado.

É êsse o processo comum, de prática cotidiana, nos casos de compra e venda com o pacto adjeto de hipoteca, e, nos de anticrese com hipoteca, em que, com um só instrumento se efetuam dois registos”.

Com relação ao problema de estarem situados os imóveis permutados em circunscrições diversas, diz o citado autor que sobrevém uma circunstância que impede o Oficial do Registo de efetuar a transcrição sôbre os dois imóveis, porque um dêles está fora da circunscrição de sua competência.

(1) – Lisipo Garcia, ob. cit., pág. 204.

[398]

É preciso, porém, salientar que, neste último caso, a impossibilidade da dupla transcrição ser feita pelo mesmo Oficial não exime o interessado da obrigação de transcrever o contrato, em relação ao outro imóvel, no Ofício de Imóveis competente. Apenas, pelo limite da competência

do Oficial não pode a transcrição ser realizada abrangendo a totalidade dos imóveis objeto da permuta.

É o que decorre do parágrafo único do art. 211 que preceitua:

“Em caso de permuta, serão, pelo menos, três os exemplares ( refere-se o dispositivo ao título de natureza particular) sendo a transcrição feita obrigatòriamente em todos os imóveis permutados, ainda que só um dos interessados promova o registo”.

558. TRANSCRIÇÃO DA PERMUTA COM CLÁUSULA DE RETROVENDA. Já deixamos fixada a noção de retrovenda (c fr. n.º 544) e que o efeito resolutório da respectiva cláusula apenas exigia uma averbação para o exercício do direito de retrocessão.

No caso da permuta, a questão proposta pelos tratadistas é a seguinte: se no ato da permuta de

dois imóveis, se estabelecer que um dos permutantes venda ao outro, quando êste o queira, o imóvel recebido em permuta por um dado preço, ocorrendo essa venda, deverá ser considerada como uma resolução da permuta, ou apenas como uma retrocessão de um dos imóveis?

A questão reveste-se de importância, pois conforme a sua solução teremos um caso de averbação simples ou de transcrição.

Pothier que a propõe, resolve no sentido de que o novo contrato não deve ser confundido com o

resgate por fôrça do qual as partes são recolocadas na situação anterior à venda, mas deve considerar-se como uma verdadeira venda.

De acôrdo com Pothier, manifestaram-se Flandin e Francesco Gabrieli (1).

Luzzatti observa que, na hipótese do retôrno de um dos imóveis ao antigo proprietário, a permuta não fica resolvida, mas continua a existir; que a renúncia do imóvel objeto da permuta, não se

dando senão em relação a uma das partes, há uma retrocessão em favor da outra parte, retrocessão que, nada obstante prevista, não produz efeito retroativo, não exclui que o direito de propriedade tenha permanecido por certo tempo na pessoa do retrocedente, nem resolve a hipoteca e outros direitos reais conferidos a terceiros sôbre o imó-

(1) – Flandin, Transcription, n.º 184; Luzzatti, ob. cit., I, n.º 84; Francesco Gabrieli, voce Permuta, in Nuovo Digesto Italiano, IX, pág. 899.

[399]

vel. E conclui: “retrocessão em favor da outra parte, retrocessão que, nada obstante prevista, não produz efeito retroativo, não exclui que o direito de propriedade tenha permanecido por certo

tempo na pessoa de retrocedente, nem resolve a hipoteca e outros direitos reais conferidos a terceiros sôbre o imóvel. E conclui: “a retrovenda está sujeita à transcrição”.

Como se vê, os supracitados juristas negam que a cláusula de ret rovenda inserta na permuta possa ter o efeito de uma condição resolutiva.

De fato, se assim fôr considerada, isto é, como condição resolutiva, a conclusão é lógica: impõe-se a averbação.

Na venda feita com a cláusula de retrocessão, operando-se esta, o vendedor limita-se a devolver o preço recebido.

Na permuta, dá-se uma situação diversa. Não se trata mais de repor o estado primitivo, mas exige-se uma prestação nova – o pagamento do preço estabelecido para a retrocessão.

Ora, isso, na verdade, desnatura a feição substancial da permuta, ao passo que, na compra e

venda, a ret rocessão se opera sob uma forma, por assim dizer, normal, compatível com a sua própria natureza sem haver necessidade de se recorrer a uma prestação nova, mas apenas se dispondo tudo de maneira a retornar à situação primitiva, desfazendo -a, pelo mesmo modo e meios com que se constituiu.

Todavia, se a retrocessão, na permuta, fôr interpretada como uma condição resolutória, claro está sòmente se fazer necessária pura e simplesmente a averbação; se, ao contrário, fôr tomada como não importando uma cláusula resolutória, então impor-se-á a transcrição, subsistindo

contra o retrocessioário todos os ônus reais instituídos pelo ret rocedente, no período do exercício do seu direito de propriedade.

[400]

DAÇÃO EM PAGAMENTO

559. CONCEITO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO. – A dação em pagamento é um modo de

extinção da obrigação. Em princípio, o credor não é obrigado a receber senão a coisa convencionada e devida, mas permite-se, com o consentimento do credor, que o devedor, em substituição à prestação devida, preste coisa, que não seja dinheiro (Có d. Civ., art. 995).

Apresenta, assim, grande analogia com a compra e venda e com a permuta, e, com êstes últimos contratos, constitui um título hábil para a transferência da propriedade.

A diferença que se observa é que, enquanto na compra e venda e na permuta apresenta-se um contrato de caráter obrigatório, na dação em pagamento há um contrato de natureza liberatório, porque o seu objetivo é liquidar, extinguir uma precedente obrigação.

Por isso, e dado êsse cunho liberatório, a dação em pagamento possui o mesmo caráter do

pagamento, mas dêste também se diferencia, porque o pagamento consiste na proestatio ejus quod debetur, ao passo que a dação em pagamento consiste no solvere aliud pro alio.

São aplicáveis, portanto, à dação em pagamento tôdas as noções q ue já expendemos em relação ao contrato de compra e venda, pois que, de acôrdo com o art. 996 do Cód. Civil,

“determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”.

Por conseguinte, em se tratando de imóvel de valor superior a hum mil cruzeiros, a dação em pagamento tem que constar de escritura pública e, em qualquer caso, a transcrição do imóvel dado em pagamento constitui condição substancial de sua aquisição por fôrça daquele título.

560. CONTRATO DE DAÇÃO EM PAGAMENTO ENTRE ASCENDENTE E DESCENDENTE. – De vez que a dação em pagamento se identifica com o contrato de compra e venda,

[401]

são aplicáveis os mesmos princípios que já estudamos a propósito dos artigos 1.132 e 1.164, III, do Código Civil (Cfr. ns. 535, letra “b”, e 558 supra). Waldemar Ferreira (1), sustenta a inaplicabilidade das regras especiais inerentes à compra e venda à dação em pagamento.

Socorre-se antes de tudo da opinião de Cunha Gonçalves (2), calcada na legislação portuguesa não diversa da nossa, cujo principal esteio é o de que a semelhança entre a dação em pagamento e a compra e venda é mais aparente do que real, e que, em questão de capacidade,

não se podendo trazer a analogia, as exceções não podem ser ampliadas por meio dela, sem que isso prejudique a anulação do ato por fraude. Waldemar Ferreira aduz mais os seguintes argumentos: a) o Código Civil nitidamente distinguiu a compra e venda de dação em pagamento;

b) a razão da proibição é calcada na idéia de evitar doações prejudiciais, o que não pode ocorrer, no tocante à dação em pagamento, que pressupõe uma dívida contraída regularmente. A Quarta Câmara Cível do Tribunal de Apelação de São Paulo (Ac. de 8 de agôsto de 1946, in

Rev. dos Trib., 165, págs. 309-311), porém, entendeu, ao contrário que “é nula a dação em pagamento, entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes”. No acórdão em causa, apoiou-se a Câmara nas opiniões de Estevão de Almeida, Clóvis Beviláqua e Carvalho Santos.

O principal fundamento assenta em refutar o ponto de apoio opôsto, invocando a impossibilidade

de analogia para aplicação, por meio dela, de princípios de exceção. Entendeu -se, e a nosso ver muito bem, que no caso não há lugar parra a aplicação analógica, uma vez que o art. 966 do Código Civil expressamente estendeu à dação em pagamento as normas do contrato de compra e venda, a partir do momento da determinação do preço da coisa dada em pagamento.

O que há, porém, de incompreensível no citado acórdão é a sua assertiva de que a nulidade em causa “é de pleno direito” para depois acrescentar “embora relativa”, restringindo os efeitos de sua decretação a partir da sentença. Entendemos que se trata de uma nulidade do mesmo p orte da do art. 1.132, consoante deixamos dito.

(1) – Waldemar Ferreira, Dação em Pagamento, in Rev. dos Trib., vol. 165, págs. 11-15. (2) – Cunha Gonçalves, Tratado de Dir. Port., VIII, n.º 1.199, pág. 484 e IV, n.º 576, pág. 586.

[402]

DOAÇÃO

561. CONCEITO DE DOAÇÃO. – Segundo o artigo 1.165 do Código Civil, a doação é considerada como “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita”.

Da definição supra resultam-lhe os seguintes característicos:

a) A doação é um contrato. – O Código Civil francês e o anterior italiano consideram a doação como um ato, porém a doutrina tem retificado essa noção para reputá-la um contrato (1).

b) Como contrato a doação requer o consentimento do donatário. – Além da vontade do doador, é necessário o consentimento do donatário, para que a doação se torne perfeita.

Êsse consentimento pode vir contido na própria escritura ou ser manifestado posteriormente.

Não constando da escritura de doação o consentimento do donatário a regra a seguir é a do art.

1.166 do Código Civil, isto é, o doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça dentro nêle, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não fôr sujeita a encargo.

O que não mais se admite é o sistema do direito anterior pelo qual a aceitação das doações puras podia ser feita pelo tabelião que lavrasse a respectiva escritura.

Foi o que acentuou o Juiz Meirelles dos Santos (2), em decisão de útil divulgação:

“Entrou em dúvida o digno oficial do registo geral da segunda circunscrição desta capital, em fazer a trans-

(1) – Ascoli, Trattato delle Donazioni, § 5.º, pág. 39. O atual Código Civil Italiano, no art. 769, define a doação como sendo o contrato, com o qual, por espírito de liberalidade, uma parte enriquece a outra, dispondo em favor desta de um seu direito, ou resumindo uma obrigação.

(2) – apud J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 325.

[403]

crição do t ítulo de doação de fls. 5, por não constar do mesmo a aceitação por parte dos

donatários, filhos dos doadores, aceitação que não podia ter sido feita pelo tabelião, como o foi.

A dúvida procede em têrmos, no sentido seguinte. A doação é contrato unilateral, para ter valor, porém, é de mister a aceitação do donatário, consoante o art. 1.165 do Código Civil.

Mas a aceitação pode ser posterior à escritura não precisando ser concomitante, como se vê dos têrmos do art. 1.166 do dito Código. Antes da aceitação, a doação é simples ato não revestido ainda da natureza de um contrato.

De modo que a aceitação da doação em questão, por parte do tabelião o que era

permitido pelo Direito Antigo, mas não aceito pelo Código Civil, não inquina a escritura, pois é sabido “utile per inutile non vitiatur”.

Essa aceitação é simplesmente inócua, sem fôrça de eivar a validade do ato.

Está claro, porém, que para ser registado o título é necessária a prova da aceitação por parte dos donatários como se vê dos artigos 23, parágrafo único do Reg. 18.542, de 1928 e 857 do Código Civil.

Como se trata de doação pura, pode ser aceita pelos próprios menores, independentemente de intervenção de seus representantes legais e mesmo por escrito particular (art. 1.170 do Código Civil)”.

Do que fica exposto resulta que nenhuma escritura de doação pode ser objeto de transcrição, não constando prèviamente a prova do consentimento do donatário.

Se êsse consentimento não vier contido no próprio ato, exigirá o Oficial a prova da ciência do donatário e do transcurso do prazo de aceitação, sem que êle haja manifestação qualquer oposição. Nesse caso, o silêncio vale como manifestação da vontade, daí decorrendo outro

princ ípio: o de que êsse consentimento não obedece a uma formalidade substancial, não se lhe aplicando o dispôsto no art. 132, do Código Civil.

De modo que pode ser interpretado como consentimento do donatário o fato de requerer êle a transcrição da escritura, desde que o faça por escrito e tenha a firma reconhecida.

Uma exceção estabelece a lei, relativamente à necessidade do consentimento do donatário: é o

disposto no art. 1.173 do Código Civil, determinando que “a doação feita, em contemplação de casa-

[404]

mento futuro com certa e determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiro a um dêles, a ambos, ou aos filhos que de futuro, houverem um do outro, não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o casamento não se realizar.

Essa forma de doação, segundo Clóvis (3), obedece às seguintes regras especiais: 1.º) –

Entende-se subordinada à condição suspensiva – se o casamento se realizar, si nuptiae fuerint secutae. 2.ª) – Dispensa a formalidade da aceitação, que resulta, naturalmente da realização do casamento. 3.ª) – Pode ser feita a pessoa de existência meramente possível, ainda não

concebida; os filhos que, de futuro, vierem do casamento. 4.ª) – Sendo feita pelos nubentes não pode exceder à metade dos bens do doador, e neste caso, aproveita aos filhos do donatário, ainda que êste faleça antes do doador (art. 314).

Em se verificando a hipótese prevista no art. 1.173 do Código Civil, a transcrição pode ser

realizada, observando-se, em tudo, os princ ípios que já expendemos a propósito da condição suspensiva no contrato de compra e venda de bens imóveis (cfr. ns. 540 e 542 supra).

A condição suspensiva consiste no casamento, que se provará com a respectiva certidão.

Se no ato institutivo da doação fôr fixado um prazo para a realização do e vento – casamento – a expiração do mesmo sem essa realização, implica em poder o doador cancelar a transcrição sob condição suspensiva.

A dificuldade pode surgir, entretanto, pela omissão da estipulação de qualquer prazo.

Neste último caso, a doação será considerada sem efeito, quando se torne certo que o casamento que se teve em vista, não se pode realizar, como pelo falecimento de um dos nubentes, pelo casamento com outra pessoa (4), e mesmo quando, ainda vivos os nubentes, êstes renunciarem ao propósito de casar, declarando por escrito ao doador (5).

c) a doação é um contrato a título gratuito mas entre vivos. – A gratuidade do ato significa uma prestação feita sem nenhuma contraprestação. Todavia a noção de gratuito não deve ser confundida com o elemento subjetivo da doação – o animus donandi

(3) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., IV, pág. 340.

(4) – João Luiz Alves, ob. cit., II, pág. 248. (5) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 376.

[405]

-, nada obstante a opinião em contrário de Perozzi, Bonfante e Venezian, consoante o demonstraremos oportunamente.

Fôrça é notar, ainda, que a adoção feita em contemplação do merecimento do donatário não

perde o caráter de liberalidade, como o não perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerado, ou ao encargo imposto (Cód. Civ., art. 1.167).

Por ser a doação um contrato a título gratuito, deve-se ter bem em vista que a mesma não se confunde com o testemunho nem com o instituto da doação causa-mortis.

A doação causa-mortis é um instituto jurídico, originário do direito romano, com fisionomia própria, distinto da dação inter-vivos.

O seu conceito assentava numa liberalidade nullo jure cogente in accipientis facta, sendo o seu cunho característico a plena revogabilidade por parte do instituidor (6).

Ora, tal instituto não foi admitido pelo nosso Código Civil, e os nossos comentadores concluem pela sua eliminação (7).

Eduardo Espínola, manifestando-se a respeito (8), diz que “não basta que no contrato se tenha falado em doação mortis-causa, ou se haja declarado que o donatário só receberá determinado bem doado após a morte do doador, para que se trate de uma verdadeira donatio mortis-causa.

É indispensável, além disso, que do contrato conste que será revogável ao puro arbít rio do doador, e que os bens reverterão ao doador se sobreviver ao donatário”.

Mas tal circunstância não obsta, continua o citado jurista, a que se institua uma doação subordinada, em relação à sua eficácia, a um têrmo, não havendo outrossim embargo a que

êsse têrmo seja incerto quanto ao tempo em que o fato certo previsto se dará, aposto aos contratos de doação entre vivos.

E sustenta:

“Não há – portanto, preceito nenhum legal que repila a fixação do dia da morte do doador como têrmo inicial da doação, ficando até êsse momento suspenso o exercício do direito do donatário”.

Com essa doutrina estamos de inteiro acôrdo, seguindo -se, portanto, essa conclusões, em relação ao Registo Imobiliário: (6) – V. Vitali, Delle Donazione, ns. 897-899. (7) – Clóvis, ob. cit., 4.º, pág. 333-334; João Luiz Alves, ob. cit., II, pág. 241: J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 303.

(8) – Apud J. M. Carvalho Santos, ob. cit., loc. cit.

[406]

a) não pode ser objeto de transcrição uma doação em que o doador tenha consignado condições que a façam incidir no conceito de uma doação mortis-causa;

c) muito menos se pode cogitar de t ranscrição quando tal forma de doar possa vir a ser considerada como um testamento, por estar revestida de todos os requisitos dêste último instrumento, certo como é não ser o testamento, por si mesmo, um t ítulo suscetível de transcrição.

d)A doação requer o animus donandi – Se o elemento – gratuidade – é o conteúdo objetivo da doação, o animus donandi é o seu elemento subjetivo e com o primeiro não deve ser confundido.

Para que se tenha uma doação, é mister que ao lado do elemento objetivo – gratuidade – surja o elemento subjetivo do animus donandi.

Êste consiste na intenção de realizar uma atribuição patrimonial gratuita com o único objetivo de

enriquecer o donatário, não se confundindo com a gratuidade, pois casos existem em que, nada obstante se doar ou se prometer nullo jure cogente, contudo se dá com uma intenção e por um fim diverso do de beneficiar (9).

e) A doação importa na transferência de bens ou vantagens do patrimônio do doador para o do

donatário – De vez que o elemento subjetivo consiste no enriquecimento do donatário, claro que a doação acarreta a transferência de bens do patrimônio do doador para o do donatário.

O caráter precípuo dessa t ransferência consiste na sua irrevogabilidade, pois a revogabilidade só se admitia nas doações mortis-causa, hoje não mais permitida em nosso direito.

O que nos interessa, do ponto de vista do Registo Imóveis, é a propriedade imobiliária como objeto da doação.

Uma vez alienável, o bem imóvel pode ser objeto de doação, assim como a nua propriedade, quaisquer direitos reais e mesmo a renúncia de um direito, desde que a liberalidade seja a causa determinante do ato (10).

562. MODALIDADES DA DOAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO. – A doação pode assumir vários aspectos, quanto à sua substância.

Assim, deixando a forma de doação pura, pode assumir as seguintes modalidades:

(9) – Ascoli, ob. cit., pág. 73; Vitali, ob. cit., n.º 35; Tito Preda, voce Donazione, in Scialoja, Diz. Pratico, II; V. Baratta, voce Donazione, in Nuovo Digesto Italiano, V. p. 206. (10) – M. I. Carvalho Mendonça, Contratos, I, n.º 10.

[407]

1.º) condicional;

2.º) a têrmo;

3.º) com encargos, também chamada modal;

4.º) remuneratória;

5.º) com a cláusula de reversão.

A doação condicional pode ser constituída quer sob condição suspensiva quer sob condição resolutiva. Aplicam-se, em ambos os casos, as noções que expendemos a propósito do contrato de compra e venda subordinado àquelas condições, isto é, para o efeito da transcrição no Registo de Imóveis.

Na mesma situação pode ser colocada a doação celebrada a têrmo.

A doação com encargo ou modal é uma forma que se não deve confundir com a doação condicional.

O modus é um ônus impôsto àquele a quem se faz uma liberalidade. Diferentemente da condição suspensiva, o modus não deixa em suspenso a obtenção da vantagem mas esta se adquire imediatamente.

E‟ preciso distinguir quando o modus é impôsto em benefício do próprio donatário ou doador: no

primeiro caso, não há alteração na substância da doação; no segundo caso, é preciso distinguir se o modus tem por conteúdo uma prestação puramente moral ou uma prestação

econômicamente apreciável. Na primeira hipótese, não há senão uma doação perfeitamente

caracterizada; no segundo, há um negotium mixtum, não perdendo a doação o seu caráter de liberalidade na parte excedente ao encargo imposto (Código Civil, artigo 1.167).

563. CAPACIDADE PARA DOAR E PARA RECEBER DOAÇÃO – Como contrato que é a doação está, em princípio, subordinada às regras de capacidade que governam as relações contratuais em geral.

Todavia, dada a sua natureza especial, é a doação dirigida igualmente por certos princípios que necessitam ser devidamente focalizados.

O absolutamente incapaz não pode fazer doações, assim como o menor de 21 anos e maior de 16, salvo no caso de contrato antenupcial (Cód. Civ., art. 314) pelo princ ípio habilis ad nuptias habilis ad pacta nuptialis. (Cfr., 2.º vol. n.º 264, pág. 205).

O marido não pode fazer doação, não sendo remuneratória, ou de pequeno valor, com os bens ou rendimentos comuns (Cód. Civ., art. 235, n.º IV), enquanto a mulher também, na vigência do casamento não pode doar sem o consentimento do marido, ainda que

[408]

seja a um filho, salvo, neste último caso, conjuntamente com o marido ou com sua licença expressa (1).

Admite a lei que o marido possa vàlidamente dotar ou fazer doações nupciais às filhas e doações aos filhos por ocasião de se casarem, ou estabelecerem economia separada (Cód. Civ., art. 236).

Em relação à capacidade do que deve aceitar a doação segue a regra geral de que o absolutamente incapaz não pode aceitar doações a não ser por meio de seu representante legal.

Fora daí o princípio é o do art. 1.170, do Código Civil, segundo o qual

“às pessoas que não puderem contratar é facultado, não obstante, aceitar doações puras”.

Êsse dispositivo se entende com os relativamente incapazes e não com os absolutamente incapazes (2).

Entretanto, a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em sua mais recente manifestação,

unânimemente inclinou-se no sentido de repelir qualquer distinção entre menores absolutamente incapazes e relativamente incapazes, aceitando o art. 1.170 do Código Civil em tôda sua extensão gramatical.

Tomando conhecimento do Recurso Extraordinário interposto de acórdão de um dos Tribunais

dos Estados, em que se tinha decidido pela nulidade da doação por falta de aceitação, atento a que, absolutamente incapaz um dos donatários, (menor de 16 anos), não tinha capacidade para manifestá-la, o Pretório Excelso, em grau de Embargos, confirmando decisão da 1.ª Turma, por

unanimidade, assentou que a distinção entre menores absoluta e relativamente incapazes vulnerava o aludido texto legal (Ac. do Supremo Tribunal Federal, no Rec. Ext. n.º 3.983, de 8 de

julho de 1948, in Diário da Justiça, de 29-10-1949, págs. 3.579-3.580). Com o seu costumeiro brilho, assim manifestou-se o eminente Ministro Orosimbo Nonato:

“Não é necessário, na hipótese, desdobrar os têrmos em que, mais de uma vez, e com alguma detenção, tenho versado.

As proposições em que se funda o acórdão recorrido não venguejam a remetida dos embargos.

Concluiu o aresto que nula se mostrou a desistência de doação levada a efeito por incapaz em razão da idade.

(1) – M. J. Carvalho de Mendonça, ob. cit., I, n.º 8; J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 317. (2) – João Luiz Alves, ob. cit., II, pág. 247.

[409]

e válida a aceitação tácita do ato liberal. O voto do eminente relator, Exmo. Sr. Ministro Goulart de Oliveira, demonstrou, demais disso, que não se tratava de doação com encargo.

Argumenta o Embargante que, pôsto autorize o artigo 1.170 do Código Civil, a aceitação,

expressa ou tácita, é indispensável, dada a índole contratual da doação, assinalada de resto em texto expresso de lei – o art. 1.165 do Código Civil.

Argumenta ao propósito, o embargante mostra-se inócua a aceitação pelo tabelião e, neste pouco, tem carros de razão.

Trata-se de simples anacronismo, que serve, apenas, de tema histórico, controvertendo-se sôbre

sua prosápia romana ou medieval, debate em que avultam graves doutores, como Voccio, Cavarruvias e outros de igual suposição (vêde Carvalho de Mendonça, Contratos, I, nota 48, página 51).

Mas, o aresto embargado, é certo que não fêz obras com a antigualha da aceitação do notário, ato que não vicia, mas se mostra estéril de conseqüências.

Argumenta, ainda, com o caráter contratual da doação entre vivos e sua tese é verdadeira, falando pela via ordinária. E‟ a doação, qual a define o legislador mesmo, “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio, bens ou vantagens para o de outro,

que os aceita” (art. 1.165 do Código Civil). E Clóvis Beviláqua observa que o Cód. C ivil desconhece a doação inaceita, cuja aceitação é presumida ou em que o tabelião se substitui ao donatário, como admitia o direito anterior, quando a liberalidade era pura e simples”. (Cód. Civil, vol. 4, ao art. 1.165). (Vêde ainda, Carvalho de Mendonça, Contratos, vol. I, n.º 7).

O caso é, porém, de ato gratuito, o que não pode deixar de trazer certos temperamentos ao rigor do princípio. Na turma, como vogal, invoquei, ao propósito, a autoridade de Josseraud.

Eis o magistério do claro mestre francês:

“... l‟acte à tire gratuit es l‟oeuvre soit d‟une volonté unique, celle du testateur, s‟il s‟agit d‟un legs: soit d‟une volonté preponderante, celle du disposant, pour ce qui est de la donation entrevifs: le

[410]

gratifié ne jue dans l‟operation qu‟un rôle passif; il y rentre, après coup, par son

acceptation, on serait tenté de dire par son adhésion: - est l‟oeuvre essentielle du disposant que a “iniciative et le pouvoir de décision, que même le jeu dont il fait les frais, dont la volonté est préponderant en ce sens, l‟acte à titre gratuit devient pour le gratifié

comme um acte d‟adhesion”. (Les Mobiles dans les actes juridique du droit privé, n.º 159, págs. 201-202).

Examinando de fito o disposto no art. 1.165 do Código Civil o que êle exprime é a impossibilidade da doação contra a vontade do donatário, pois que invito beneficium non

datur. Dessas verdades tiram-se conseqüências que se tornaram verdadeira ius receptums – pode a aceitação, manifestar-se vàlidamente depois da doação; pode a aceitação ser expressa ou tácita, inferida de atos de certa relevância. Carvalho Santos,

dá not ícia de uma sentença que suscitou encômios a Azevedo Marques e segundo a qual o pedido de transcrição do instrumento que exprimiu a doação bastava para significar a aceitação do beneficiado. (Cód. Civ., Int., vol. XVI, pág. 329).

O art. 1.166 do Cód. Civ. empresta ao silêncio mesmo do donatário, dentro no prazo que

lhe o doador assine para manifestar-se, valor de aceitação tácita é, exatamente, a que prevê o art. 1.166 cit. e que, na espécie, não ocorreu, por não se haver fixado prazo de recusa ou aceitação. Não vingaria, o argumento. O art. 1.166 prevê a hipótese de aceitação tácita, mas outras também admitem.

Clóvis Beviláqua:

“A aceitação é elemento necessário à doação, pois que é um contrato, embora de natureza benéfica, e, ordinàriamente, unilateral. Não é, porém, necessário que a aceitação seja expressa (art. 1.079). Um dos modos de aceitação tácita é o estabelecimento neste art. (cit., pág. 334).

Razão é que se não regule a oblívio, que, no caso da doação pura, como é dos autos, o ato sòmente beneficiário pode carrear ao donatário e, assim, curial é que se admita não só que a adesão ocorra ainda posteriormente ao ato, como não se exija manifestação expressa de vontade. Ora, no caso, a transcrição foi mantida.

Demais disso, os donatários, ainda que com representação e assistência, locaram o imóvel e agora se baseiam na doação para a defesa de seus direitos – todos êsses atos argüem, inequìvocamente, a aceitação do benefício.

[411]

Válida, pois, e eficaz a doação na melhor censura de direito. E ineficaz e nenhuma a

renúncia do ato liberal, pois falecida capacidade aos pseudos renunciantes. Assim, os fundamentos do acórdão não oscilam ao pêso dos embargos, nos aspectos versados no aresto. Alude, ainda, o embargante ao lado moral da questão e é certo que deve o juiz,

sempre que pode, não relegar a olvido êsse aspecto. Mas, se a relação jurídica abstratamente considerada, não lhe permite atender a reclamos dessa ordem, seu dever não estará descumprido como se curvar êle à obediência da lei”.

Mas, ainda em relação aos relativamente incapazes convém assinalar uma certa oposição entre o disposto no art. 1.170 e o artigo 427, n.º III, do Código Civil.

Esta última disposição atribui, como competência do tutor, com autorização do juiz,

“aceitar por êle (menor) doações com ou sem encargos”.

Conseguintemente, mesmo a doação pura, tal como a prevê o art. 1.170 do Código Civil não pode ser aceita pelo menor sob tutela sem a intervenção do tutor, com a autorização do juiz.

Segue-se, portanto, que a regra do art. 1.170 se aplica a todos os relativamente capazes exceto os menores sob tutela.

Também é possível a doação feita a um nascituro que valerá, sendo aceita pelos pais (Cód. Civ., art. 1.169).

564. A CAPACIDADE PARA DOAR E RECEBER DOAÇÕES, ANTES E DEPOIS DO CASAMENTO. – Apreciação especial requer a capacidade para doar e receber doações, tendo em vista o casamento, ou depois de estabelecido o regime matrimonial.

1.º) Doações para casamento. – Já nos manifestamos sôbre a manifestação do consentimento

nas doações propter nuptias (c fr. n.º 556, letra “b” supra). O art. 1.173 do Código Civil prescreve: “a doação feita em contemplação de casamento futuro com certa e determinada pessoa, quer pelos nubentes entre si, quer por terceiros a um dêles, a ambos, ou aos filhos que, de futuro,

houverem um do outro, não pode ser impugnada por falta de aceitação, e só ficará sem efeito se o casamento não se realizar”.

As características especiais dessa modalidade de doação consistem no seguinte: a) é subordinada à condição suspensiva da realização do casamento – si nuptiae fuerint secutae -; b)

prescinde da formalidade da aceitação, que resulta da própria realização do matrimônio; c) pode ser feita tendo como destinatária pessoa de existência possível, ainda não concebida – os filhos que de futuro vie-

[412]

rem do casamento; d) sendo feita pelos nubentes não pode exceder à metade dos bens do

doador (Cód. Civ., art. 312); e) pode ser feita para depois da morte do doador, e neste caso aproveita aos filhos do donatário, ainda que êste faleça antes do doador (Código Civil, art. 314).

2.º) Doações antenupciais – Nas doações antenupciais, estão impedidos de doar os nubentes cujo casamento se impuser o regime legal da separação. São êles: a) as mulheres menores de

16 anos e os homens menores de 18 anos); b) o maior de 60 anos e a maior de 60 anos; c) o órfão de pai e mãe, embora case com o consentimento do tutor ou do curador; d) os menores sob pátrio poder, quando casarem sem o consentimento paterno; e) os sujeitos a tutela e

curatela, sem o consentimento do tutor ou curador; f) o viúvo ou a viúva com filhos, enquanto não fizer o inventário dos bens do casal; g) a mulher viúva ou separada do marido, por nulidade ou anulação do casamento, que houver contraído núpcias, antes do lápso de 10 meses depois

da morte do marido ou da separação judicial dos corpos, salvo se, antes de terminado o prazo, der à luz algum filho; h) as pessoas indicadas no art. 183, ns. XV e XVI, do Código Civil. Se o

casamento fôr celebrado com infração de qualquer dêsses impedimentos supramencionados,

nulas serão as doações feitas pelo espôso, por culpa de quem o casamento tiver sido anulado, serão considerações válidas, se fôr considerado putativo o casamento (Cód. Civ., arts. 312 e 232, n.º II).

3.º Doações entre cônjuges – Uma vez realizado o matrimônio, cumpre examinar se os esposos podem fazer doações entre êles.

a) Regime da comunhão de bens – No regime da comunhão de bens, a própria situação jurídica dêle resultante impede, de modo absoluto, a que possa um cônjuge fazer doação ao outro.

b) Regime da comunhão parcial – No regime da comunhão parcial, não podem ser objeto de doação os bens considerados comuns do casal. Permite-se, entretanto, a doação dos bens particulares de cada um, desde eu sejam alienáveis.

c) Regime da separação de bens – No regime da separação de bens, desde que convencional, em se tratando de separação pura, não existem mais do que duas categorias de bens: os particulares de cada cônjuge, propriedade de cada um dêles. Em casos tais, a doação recíproca

é perfeitamente lícita. O mesmo, porém, já não sucede nos casos de regime da separação de bens decorrente de imperativo legal, como já tivemos oportunidade de detidamente individuar tais casos e impedimentos. Assim, decidiu a 4.ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo

que “é nula a liberalidade feita pelo marido à mulher, na constância do casamento, contraído sob o regime da

[413]

separação obrigatória de bens”. (Ac. da 4.ª Câm. do Trib. de Just. de S. Paulo, de 20-3-947, Rev. dos Trib., 167, págs. 689-691).

565. OBJETO DA DOAÇÃO. – Em relação ao seu objeto temos apenas a ressaltar o ponto de

vista e o objetivo do nosso trabalho, ser nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador (Cód. Civ., artigo 1.175) como nula também se considera a doação quanto à parte excedente a que o doador, no momento da li beralidade, poderia dispor em testamento.

No primeiro caso, verificando o Oficial do Registo que os têrmos da escritura são de tal forma latos que abrangem a totalidade dos bens do doador, pode suscitar dúvida quanto à transcrição.

Nas demais hipóteses, a transcrição terá que ser feita, por faltar elemento suficiente para se ter como configurada a nulidade. Só por meio de ação, poderá o ato ser anulado e cancelada a transcrição.

A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjug e, ou por seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (Cód. Civ., art. 1.177).

Salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual (Cód. Civ., art. 1.178).

566. DOAÇÃO COM SUBSTITUIÇÃO FIDEICOMISSÁRIA – Em relação à noção de fideicomisso

já tivemos oportunidade de referi-la em duas passagens do presente trabalho (c fr. n.º 450, supra, 2.º volume, n.º 276).

Discute-se bastante, em doutrina, a propósito de ser lícita ou não a estipulação da substituição fideicomissária na doação.

A questão importa ao Registo Imobiliário, pois, se vedada tal estipulação, é ela nula, e, como tal, não pode ser transcrita a escritura de doação que a contiver.

A questão já era debatida no Direito Anterior. Mas, quer na vigência dêste último, quer no direito atual resultante do Código Civil, não cessaram as divergências.

Focalizando a tese, Jorge Americano, em sintético mas substancioso trabalho (1), assim agrupou os juristas que abordaram a matéria:

(1) – Jorge Americano, Fideicomisso por ato entre vivos, “Direito”, I, págs. 159 a 161.

[414]

“Autorizam -no, dentre outros: Melo Freire, liv. 3.º, tít. 7, §19; Lobão, Notas a Melo, liv. 2.º,

tít. 9.º, §22, n.º I e liv. 3.º, tít. 7, §19; Teixeira de Freitas, Testamento e Suc., §235; Carlos de Carvalho, Nova Cons., artigo 1.194; Gouveia Pinto, Testamento e Sucessões, § 235; Coelho da Rocha, D. Civil, § 750; Alfredo Bernardes, Rev. dos Tribunais, vol. 56,

pág. 243; Francisco Morato, Rev. dos Tribunais, vol. 44, pág. 444; Antônio Vieira, Rev. dos Tribunais, vol. 76, pág. 79; Laudo de Camargo, Rev. dos Trib., vol. 76, pág. 81.

Negam-no, entre outros: Luiz Teixeira, Curso, II, páginas 458-459; Trigo de Loureiro, D. Civil Brasileiro, §401, n.º 2; Ramalhão, Instituições Orfanológicas, §30; Ferreira Alves,

Manual do Código Civil, XIX, n.º 251-252; José Tavares, Suces., pág. 266-467; Clóvis Beviláqua, Código Civil, aer. 1.733, nota 6; Carlos Maximiliano, Sucessões, II, n.º 1.242; Frederico Steidel, Rev. dos Trib., vol. 56, pág. 237; João Arruda, Rev. dos Trib., vol. 21, página 377.

Depois, também resume, do seguinte modo, os pontos de vista das duas correntes:

“Pró fideicomisso, entre outros (argumentos), - que no Direito Romano já era admitido, ver Digesto de Legat., liv. 37, § 3.º, que são lícitas as cláusulas que a lei veda expressamente; que não constitui pacto de succedendo, não ofende a moral nem os

bons costumes; que mesmo quando se queira negar a existência dêsse instituto entre-vivos, há de se admitir que, no direito das obrigações, se pactuam cláusulas conducentes a um efeito idêntico, e portanto a questão seria só de palavras.

Contra o fideicomisso entre-vivos – que o fideicomisso é forma de substituição e como

tal só pode existir nos testamentos; na lei, só tem lugar no direito sucessório; se o nosso Código quisesse admiti-lo, teria feito como o francês, que o admite também nas doações, por expressa menção; que a disposição em favor de pessoa que não tem parte

no ato (fideicomissário) não pode caber no contrato bilateral de doação, mas só em ato unilateral, causa-mortis; que contém pacto de succedendo, vedado no nosso direito; que, tratando-se de matéria de lei especial substituição sucessória, não cabe interpretação analógica (Cód. Civil, art. 6.º, da Introdução).

[415]

finalmente o referido jurista passa a expender sua opinião. Nega então o fideicomisso contratual.

Como principal argumento invoca o art. 6.º da Introdução do Código Civil. Por se tratar de matéria especial diz afastada a interpretação analógica. Sendo uma substituição, o fideicomisso só pode existir no direito sucessório. Admite apenas uma hipótese: a de uma doação com pacto

de reversão em favor de terceiro. De outro modo, uma doação entre -vivos em que aparecessem dois beneficiários, um imediato e outro mediato, dependendo o seu direito contratual da morte do primeiro, incidiria na proibição do art. 1.089 do Código Civil; não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

Há, para êle, uma proibição geral, comportando apenas uma exceção – a do pacto de reversão em favor do doador. E conclui: “Logo nega a estipulação a favor de terceiros para reverter a êste a doação pela morte do donatário. Só pode existir na doação com pacto reversivo a têrmo, e não sob condição de morte do donatário”.

J. M. Carvalho Santos (3), depois de focalizar a questão no direito anterior, manifesta-se contrário à cláusula fideicomissária na doação e diz que, no Código Civil, dada a clareza do art. 1.733, não deveria mais subsistir a controvérsia, pois, argumenta, se intenção houvesse de que

o testador também pudesse instituir o fideicomisso, naturalmente o Código teria expressamente isso permitido, assim com o fêz em relação à cláusula da inalienabilidade no artigo 1.676, ao referir-se a testadores ou doadores, embora tratasse das disposições testamentárias em geral.

Passa, depois, a transcrever pareceres e julgados sôbre a matéria. No de Vieira Ferreira, vê-se

que êsse jurista admite o fideicomisso nas doações, baseando-se, dentre outros argumentos, no de que a omissão do Código não significa a exclusão da legalidade do aludido instituto, assinalando que nos atos jurídicos, a autonomia da vontade tem uma amplitude que só encontra barreiras nas disposições legais de caráter absoluto (3).

Em seguida transcreve um acórdão do Trib. de São Paulo também favorável à cláusula fideicomissária nas doações, destacando-se nêle as opiniões favoráveis do Desembargador Antônio Vieira contestando o argumento de importar o fideicomisso um contrato sôbre herança

de pessoa viva, de vez que o fideicomisso por doação exprime apenas a liberalidade do doador em favor de duas pessoas, uma para colhêr o benefício depois da outra; e a do Desembargador Meireles dos Santos considerando que desde que a cláusula substi-

(2) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XXIV, pág. 171 e segs.

(3) – Rev. dos Trib., vol. 75, pág. 3

[416]

tuária, adjeta à doação, não seja imoral, ou impossível, nem proibida por lei, não há razão para ser repelida das convenções particulares.

Diferentemente das argumentações até aqui desenvolvidas é a que propõe Pontes de Miranda (4).

Êle sustenta que a questão deve ser resolvida tendo-se em vista o elemento fidúcia que alega

faltar na cláusula de reversão ao doador, que é elemento substancial do fideicomisso. E diz: “O fideicomisso é a propriedade resolúvel mais a fiducia. Nos casos de venda a retro (art. 1.140), de

pactos comissórios (art. 1.163) e de melhor comprador (art. 1.159), de venda a contento (art.

1.144), de doações com cláusula de reversão (art. 1.174), e da propriedade resolúvel em geral (arts. 647, 648), há resolutividade da propriedade, porém não a fiducia. Fiducia existe, com propriedade resolutiva, no fideicomisso; sem propriedade sequer, na tes tamentária. Cumpre não julgar por idênticos a institutos cujos elementos históricos e construtivos não são os mesmos”.

Ora, ao nosso ver, o Sr. Pontes de Miranda não sòmente entra em contradição com o fideicomisso (pôsto que algo de fiducia haja); “porque, na substituição fideicomissária, a pessoa é indicada; não há segrêdo, se bem que se possa tratar de pessoas futuras (os filhos, se houver)

e o primeiro beneficiado dos fideicomissos é um herdeiro, durante lapso, e não depende da sua vontade a transmissão ao segundo: com o têrmo, ou a condição, objetivamente se dá a transmissão”.

Vê-se que enquanto no vol. }IV êle dá à fiducia um caráter substancial dentro no fideicomisso, na

passagem que vem de ser citada, isto é, a do vol. III, estabelece diferenças entre a fiducia e o fideicomisso, para dizer que neste apenas “há algo de fiducia”.

O instituto da fiducia consiste em disposições por meio das quais o herdeiro ou o legatário, nomeado pelo testador, promete secretamente administrar como depositário a herança ou o legado e restitui-lo, na época fixada pelo testador, ao verdadeiro herdeiro.

Diferencia-se portanto do fideicomisso, onde o herdeiro nomeado tem verdadeiramente essa qualidade bem como a posse da herança.

(4) – Pontes de Miranda, Tratado dos Testamentos, IV, n.º 1.559. (5) – Pontes de Miranda, ob. cit., III, n.º 839.

[417]

Mas, atualmente, o que resta de fiducia no fideicomisso é um simples resquício, antes uma persistência histórica do que uma realidade.

A transmissão não se fundamenta mais, e de um modo substancial, na fiducia depositada no fiduciário.

O que assegura a efetividade da transmissão é o caráter resolúvel do domínio fiduciário, perfeitamente sancionado pela garantia resultante do Registo Imobiliário, ou ainda pela caução de restituição dos bens, se o fideicomissário lho exigir (art. 734 e § único do Código Civil).

E tanto assim, que o próprio Pontes de Miranda (6), é fervoroso adepto do princípio de que o fideicomissário não é sucessor do fiduciário mas do instituidor.

Entre o fideicomisso e a doação, se persistem diferenças históricas, contudo se observam semelhanças orgânicas, sob o ponto de vista da gratuidade do ato e do animus donadi.

Dizer-se que a cláusula fideicomissária estipulada numa doação implica num pacto sucessório,

proibido pelo artigo 1.089, é desconhecer o mecanismo dêsse mesmo pacto ou levá -lo a extremadas extensões.

Um dos característicos do pacto sucessório é tornar uma herança não aberta ainda em objeto de um contrato (7).

Tal não ocorre no fideicomisso estatuído na doação, pois o contrato não tem por objeto a

sucessão do fiduciário, como vimos na própria doutrina de Pontes de Miranda, nem muito menos a do doador, pois que êste pode até sobreviver ao fiduciário. Por conseguinte a morte do fiduciário é, na doação, apenas um têrmo extintivo, perfeitamente admissível, como cláusula resolutiva.

Esta é a orientação preponderante na Jurisprudência. Na Apelação Cível n.º 23.183, a 1.ª Câmara Cível do Tribunal de S. Paulo entendeu possível a estipulação do fideicomisso por ato entre-vivos (Ac. de 10 de outubro de 1944), sendo que, interposto Recurso Extraordinário, o então Procurador Geral da República assim se manifestou:

De meritis, entretanto, parece-me que bem decidiu o v. acórdão recorrido porquanto nada impede a validade jurídica das cláusulas contidas na escritura de fls.

(6) – Pontes de Miranda, ob. cit., IV, pág. 183. (7) – Aubry et Rau, ob. cit., IV, pág. 359; B. Lacantinerie e Barde, ob. cit., I, pág. 265.

[418]

E isso quer se considera usufruto ou fideicomisso o que nelas se contém, por isso que

não repugna a admissão do fideicomisso por ato inter vivos, como bem o demonstrou exaustivamente Filadelfo Azevedo (“Direito”, vol. VI, pág. 53), não obstante valiosas opiniões em contrário como as de Pontes de Miranda (“Tratados dos Testamentos”, C.

1.673); Clóvis Beviláqua (“Direito das Sucessões”, artigos 1.733); Carlos Maximiliano (“Sucessões”, parágrafo 1.242) e o próprio advogado do recorrente, Noé Azevedo (“Rev. dos Tribunais”, vol. 124).

Mas também pela mesma tese de Filadelfo alertam -se os maiores da nova tradição

jurídica, como Teixeira de Freitas, Carlos de Carvalho (“Nova Consolidação”, artigo 1.194), Lafayette, Alfredo Bernardes, Estevão de Almeida, Mendes de Pimentel e a jurisprudência.

Não contraria igualmente a boa doutrina a instituição de usufruto em benefício de prole eventual, sem que seja necessário recorrer ao fideicomisso.

Bem decidiu, a meu ver, o acórdão recorrido aplicando os princípios acima.

Quanto à interpretação da escritura de fls. sòmente a contradição entre o seu texto e a letra de lei, permitiria o recurso; não basta a dúvida em tôrno de compensação do seu texto, da competência exclusiva e soberana da veneranda instância recorrida.

Não há como confundir-se o que nêle se estipula, com as normas legais que o disciplina;

a conformidade das cláusulas de contrato e a norma legal, define e limita o âmbito do recurso extraordinário.

Ora o exame dos autos não denuncia a violação da lei, nem a falta de obediência a seus preceitos, nem sequer a errônea aplicação da lei.

Nada, segundo me parece, permite a reforma da decisão recorrida que bem interpretou a lei e deu às cláusulas contratuais a devida compreensão.

Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1946. – Themistocles Brandão Cavalcanti, Procurador-Geral da República”.

Adotou êsse critério interpretativo, e unânimemente, a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (Ac. de 14 de outubro de 1946, in Diário da Justiça, de 4 de agôsto de 1948, págs. 1.971 -1.972), com os fundamentos seguintes:

[419]

“Voto do Relator, Ministro Barros Barreto.

Apreciadas a laters, além de outras questões referentes à doação em favor de prole

eventual, à interpretação restritiva dos contratos benéficos e ao direito de retenção por benfeitorias, é fora de dúvida ter girado a controvérsia jurídica principal em tôrno da validade ou não de fideicomisso instituído por ato inter-vivos.

Admitiu o acórdão recorrido o fideicomisso convencional. Fê-lo, consoante a

jurisprudência dominante, quase invariável, e acompanhando respeitável corrente doutrinária, a que aludiu o eminente Procurador-Geral da República, quando também alinhou valiosas opiniões em sentido oposto.

A êsse respeito já me pronunciei em voto anterior, a 28 de dezembro de 1944, no

recurso extraordinário número 3.973, do Rio Grande do Sul, do qual fui relator, salientando não haver, no direito pátrio, motivo para recusar o fideicomisso por meio de doação, visto como o art. 115, do Código Civil considera lícitas, em geral, tôdas as

condições não vedadas de modo expresso pela lei. E esta não impede a limitação da propriedade decorrente de cláusula fiduciária, pois, até dispõe contràriamente, segundo se infere dos artigos 647, 648, 1.100 e 1.180 do mencionado diploma.

Caso fôsse declarada a ilegitimidade de dita estipulação contratual, impondo então, para

a sua solução, o exame de várias relações de direito, invocadas pelo provecto patrono do recorrente.

Decidido, porém, como ficou, e acertadamente, o ponto nevrálgico, objeto de discussão no feito, desde a 1.ª instância, tudo mais é atinente à interpretação de cláusula da

escritura ajuizada entendendo o Tribunal de Apelação dever preponderar sôbre as demais – que só vigorariam durante a vida do donatário – a cláusula 5.ª. Esta previa a extinção do fideicomisso, liberados os bens de qualquer condição estabelecida na

escritura, desde que se verificasse a condição resolutiva fixada pelo doador: o falecimento do donatário, depois de casado e deixando filho.

A inteligência de texto contratual compete, soberanamente, à justiça, restando, limitada ao âmbito do remédio extraordinário, a contradição existente entre a compreensão

daquele e os princípios legais em sua liberalidade, o que não ocorreu na hipótese vertente.

[420]

Diante do exposto, conheço do recurso, pela letra a, do permissivo constitucional,

porquanto foi indicado o aresto divergente do Tribunal do Distrito Federal, inserto no Arquivo Judiciário, vol. XXXV, pág. 443, sustentando a tese de que o fideicomisso, como ato de última vontade, sòmente pode ser constituído por testamento.

De meritis, nego provimento ao apêlo, para confirmar o acórdão de fls. 428 v., por seus jurídicos fundamentos”.

VOTO

O Sr. Ministro Aníbal Freire – Nada menos de sete dispositivos de lei são apontados como ofendidos pelo acórdão do Tribunal de São Paulo – art. 4.158, n.º III e 181 do Código de Processo Civil e artigos 1.169, 1.174, 1.734 e 1.090 do Código Civil.

Tem-se, entretanto, da leitura dos autos a impressão de que o caso assumiu maior

relêvo, pela erudição e veemência com que foi êle debatido. A questão prende-se à interpretação de cláusulas de doação.

A petição inicial consigna expressamente o pedido de extinção de usufruto sôbre bens claramente indicados e a que se refere uma das cláusulas. A sentença de primeira instância acolheu pelo Curador de Resíduos de se tratar de instituição fideicomisso.

O acórdão recorrido confirmou a sentença e no exame das cláusulas de doação emitiu conceitos, o que deveria fazer para justificar sua conclusão.

O teor da cláusula é explícito – cláusula 5.ª - Se vier a falecer o donatário, depois de casado, tendo deixado filhos, os bens doados passarão, ipso facto, a pertencer aos filhos

do donatário em partes perfeitamente iguais, caso haja mais de um, ou ao filho deixado, sendo êste único a gozar o usufruto e os bens doados ficarão absolutamente livres de qualquer condição estipulada nesta escritura”.

O julgado entendeu bem que essa cláusula domina a controvérsia e lhe dá solução. A

compreensão da mesma está feita em têrmos que se conciliam com a doutrina e a jurisprudência dominantes.

Quer seja o caso de usufruto, quer de fideicomisso, a cláusula não se invalida por atribuir a sua propriedade aos filhos do donatário. Cunha Gonçalves, que não oculta a sua aversão pelo fideicomisso, professa:

[421]

Como nos fideicomissos, o testador não é obrigado a designar os usufrutuários ou proprietários pelos respectivos nomes, tanto mais que os segundos podem ser nascituros. Pode aquêle, pois como freqüentador, acontece, designá-los só pelo

parentesco e por grupos, assim: o usufruto a F. e a propriedade a seus filhos, ou a meu sobrinhos ou a meus netos (“Tratado de Direito Civil”, volume X, n.º 1.466).

O Egrégio Carlos Maximiliano, depois de citar a opini ão sôbre o assunto de Colin e Capitant, conclui:

Portanto, é facultado, não essencial, que no fideicomisso o segundo ou segundos

benefícios sejam designados de modo genérico. O mesmo ocorre no usufruto. Nenhum autor de prestígio científico, afirma o contrário. (“Direito de Sucessões”, vol. III, n.º 1.258 c.).

Resta considerar a assertiva do acórdão recorrido de que o fideicomisso pode ser instituído por ato inter-vivos.

Eis uma das mais relevantes contendas doutrinárias, provindas do direito anterior à codificação civil e que ainda hoje desafia a atenção dos comentadores e dos pretórios.

Pelo número e qualidade dos antagonistas difícil seria tomar posição no dissídio. Como se sabe, no direito anterior sustentavam a opinião contida no acórdão Teixeira de

Freitas, Melo Freire, Coelho da Rocha, Carlos de Carvalho e Lafayette, entre outros. Combatiam-na Trigo de Loureiro, Lins Teixeira e Ramalho.

Promulgado o Código Civil, a primeira corrente tem, entre outros prosélitos da ordem de Estevão de Almeida, Laudo de Camargo, Francisco Morato, Alfredo Bernardes, Filadelfo

Azevedo, Plínio Barreto, Azevedo Marques, Dionísio Gama e Armando de Azevedo. No campo oposto Clóvis, Carvalho Santos, Carlos Maximiliano, Pontes de Miranda, Levi Carneiro, Noé Azevedo, Jorge Americano e outros.

A jurisprudência tem se orientado em prol da primeira corrente; afigura -se-me que,

depois da excelente monografia de Armando Dias de Azevedo e da contribuição de Filadelfo Azevedo a matéria se acha esgotada.

Não teve assim o acórdão recorrido a mancha que lhe foi irrogada de ofensiva à lei. Não proferiu julgamento ultra-petita pois a conclusão obedeceu lògicamente à orientação

dada ao assunto. Não ofendeu texto expresso de lei, pois tem a ampará -la valiosa côrte de doutrinadores e arestos jurisprudenciais.

[422]

Conheço, entretanto, do recurso, com fundamento na alínea d, do n.º 3, do art. 101, da Consolidação, por divergência de julgados sôbre tese de admissibilidade do fideicomisso convencional, e no mérito, nego-lhe provimento.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Conheceram do recurso e lhe negaram provimento, unânimemente”.

567. DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE E SEUS EFEITOS.- E‟ perfeitamente admissível que no contrato de doação imponha o doador a cláusula de inalienabilidade, desde

que ocorram certas circunstâncias. Também pode o donatário renunciar a doação, depois de aceita, ou cancelar a cláusula de inalienabilidade, mediante consentimento do doador. Damos a seguir o teor de uma decisão nossa onde tais pontos são fixados devidamente:

“Vistos e bem examinados êstes autos:

Luzia Gabiso Coelho Lisboa, na inicial de fls. 2, reclama contra uma dúvida suscitada

pelo Sr. Oficial do 1.º Ofício de Imóveis, expondo os seguintes fatos: por escritura de 15 de maio de 1906, a suplicante e sua mãe, Maria José Costa Gabiso, adquiriram o prédio sito à rua Campos da Paz n.º 146, aquisição esta, entretanto, feita com o produto de

uma subscrição entre amigos, pelo que ficou expresso que o usufruto do prédio supramencionado tocaria à mãe da suplicante, com a cláusula de inalienabilidade, passando, por sua morte ao pleno domínio da suplicante. Sucedeu, porém, que, por

escritura de fôlhas 21, de julho de 1934, a usufrutuária renunciou ao seu direito ficando, assim, na pessoa da suplicante consolidado o domínio. Indo regularizar essa situação jurídica no Registo de Imóveis, o respectivo oficial exigiu: a) que a renúncia do usufruto

fôsse julgada por sentença; b) que à Prefeitura Municipal fôsse pago o impôsto de transmissão. Com a segunda exigência conformou-se a suplicante, o mesmo não sucedendo em relação à primeira, alegando tratar -se de ato inter-vivos. O oficial foi

ouvido a fôlhas 13, e a fôlhas 14 o digno e ilustre Dr. 2.º Promotor de Registos, o qual, porém, se manifestou contrário ao deferimento do cancelamento do ônus de usufruto, visto ser a inalienabilidade condição expressa da escritura de aquisição, a qual foi aceita pela renunciante.

[423]

Replicando, a suplicante, a fôlhas 19 explicou que no instrumento ficou expresso tão sòmente que a inalienabilidade era relativa ao domínio e não ao usufruto, pois, de outra forma, e de acôrdo com a lei então vigente nula seria, essa cláusula de inalienabilidade.

Isto pôsto:

I – A escritura de fôlhas 3, representa um contrato de compra e venda entre Antônio

Ribeiro da Fonseca, de um lado, como vendedor, e de outro Maria José da Costa Gabizo e Luiza Gabizo Lisboa.

O preço da venda porém, foi recebido, não destas últimas, mas de uma comissão, composta de vários membros, que intervieram na escritura para aquêle efeito, tendo sido

declarado que a quantia por êles entregue ao vendedor era o produto de uma subscrição entre amigos do falecido D. João Pizarro Gabizo com o fim “expresso de constituir um patrimônio capaz de garantir decente e condigna subsistência às outorgadas (viúva e

filha) e conforme a intenção e vontade dos que concorreram com os dons manuais em dinheiro, objeto da referida subscrição de modo a poder a dita viúva usufruir da referida casa enquanto viver, com a cláusula de não poder ser alienada nem por qualquer forma

onerada judicial ou extrajudicialmente, o que foi aceito pelas compradoras, soi-disant donatárias, as quais declararam que “aceitavam esta escritura como está feita e que adquirindo o prédio referido o faziam sôbre a expressa condição de ficar sujeito ao objeto

da compra a cláusula com que foi promovida a realização anunciada na subscrição pública”. A usufrutuária, porém, consoante se verifica da escritura de fôlhas 9, em 21 de junho de 1934, renunciou o seu direito.

E a questão surge, desde logo: podia haver essa renúncia, em face da cláusula de inalienabilidade?

E‟ o que contesta o ilustre representante do M. Público. A impugnação é, entretanto, improcedente e por diversos motivos, como passaremos a analisar.

II – O que, antes de tudo, cumpre indagar é se a escritura de fôlhas 3 a 8, nos têrmos em

que se acha concebida, facultava a cláusula de inalienabilidade que ali figura. O que se permite concluir da leitura do texto do instrumento aludido, é que o imóvel foi diretamente vendido às outorgadas. Assim sendo, não houve doação do imóvel, mas do dinheiro necessário à sua aquisição.

[424]

Para que houvesse doação do imóvel, mister se fazia que êste pertencesse aos doadores ou que êstes tivessem feito um contrato de compra e venda em favor das donatárias. Mas tal não se deu, conforme se verifica claramente da escritura de compra

e venda. Uma comissão nela interveio para entregar o preço ao comprador, enquanto que o contrato de compra e venda se estabeleceu diretamente entre as demais partes.

Conseguintemente, não tendo sido o objeto da doação o imóvel e sim dinheiro, o dinheiro necessário à sua aquisição, a conclusão lógica é que nenhuma cláusula de

inalienabilidade, nenhum ônus podia recair sôbre o dito imóvel como efeito de uma doação que sôbre êle não versou, de vez que, como bem ensinam Aubry et Rau: “La defense d‟aliener ne pourrait pás avoir pour objet d‟autres biens que les biens donnés”.

(Aubry et Rau, Cours de Droit Civil Français, XI, not. 32 bis, parágrafo 692 pág. 191, 5.ª edição, 1919).

III – Mesmo que se admita, para argumentar, que tenha havido doação do imóvel clausulado, ainda assim, é improcedente a impugnação do ilustre representante do M.

Público. Autores há que consideram ilícita, e, como tal, nula a cláusula de inalienabilidade nas doações, quer venha sob uma forma temporária, quer ilimitadamente.

A proibição de alienar naqueles atos, se lhes afigura uma imposição com um caráter de

verdadeira incapacidade, chocando-se, assim, com o princípio de que sòmente à lei, e não aos indivíduos, compete, no interêsse geral, determinar a capacidade das pessoas. (Baudry Lacantinerie e Colin – Tratt. di Diritt. Civ. – Delle Donazion fra Vivi e dei Testamenti, I, n.º 120, pág. 52).

Entretanto, estabeleceu exceções, e justamente dentre estas compreendem o caso em que a cláusula de inalienabilidade “a pour objet, de garantir un droit réservé ou donateur, ou un avantage lègitimamente conferé a un tiers”. – (Aubry et Rau, Cours de Droit Civil,

XI, § 692, página 191, ed. 5.ª), ou quando, como exemplificam os citados Baudry Lacantinerie e Colin, “la proibizione d‟alienare abbia per causa l‟interesse serio e leggitimo d‟un terzo; trattandosi, per esempio, di un usufructo o d‟una renda vitalizia constituita a favore d‟un terzo” – (Baudry Lacantinerie, ob. cit., loc. cit.).

Portanto, consoante se depreende da doutrina acima exposta, a inalienabilidade instituída na escritura de fô-

[425]

lhas 3, quando se queira dar a esta o caráter de assegurar a estabilidade do usufruto que se estabeleceu, no interêsse exclusivo da usufrutuária. Mesmo seria superfetação a

cláusula de inalienabilidade em relação ao usufruto, pois que êste, quer no Direito

Anterior (Carlos de Carvalho, Consolidação, art. 588), quer no atual Código Civil (artigo 777), sòmente é transferível por alienação ao proprietário da coisa.

Além de ter sido a inalienabilidade instituída em relação ao direito do nu-proprietário para garantia do usufruto, cumpre considerar, ainda, que, no caso sub-judice, a usufrutuária não alienou o seu direito, mas, pura e simplesmente o renunciou.

Entre a renúncia de um direito e a alienação, há diferenças sensíveis.

Na alienação, o vendedor atribui diretamente ao comprador um direito seu; na renúncia,

êsse destinatário é o que a lei indica, independentemente da vontade do renunciante. Além dessa diferença entre o ato jurídica da alienação e o da renúncia de direito, temos a considerar, ainda, em favor da legalidade, dessa mesma renúncia, os dois motivos

fundamentais seguintes: - primeiro, porque na lição de M. I. Carvalho de Mendonça (Do Usufruto, pág. 232), “a renúncia de qualquer direito é uma faculdade inerente ao seu titular”, tendo “como fundamento, em qualquer caso, a velha regra de Paulo – invicto

beneficium mon datur; segundo, porque, consoante já o dissemos, a inalienabilidade consignada na escritura de fôlhas 3, foi criada no interêsse da usufrutuária, dirige -se ao nu-proprietário e enquanto subsiste o usufruto. Ora, com a renúncia, desapareceu êsse

interêsse, e com ela, a razão de ser do ônus instituído. O domínio passou a ser pleno no patrimônio da Suplicante de fôlhas.

Por tais fundamentos, defiro o pedido de fôlhas 2, para que se proceda o cancelamento e transcrição que ali se impetra, declarando improcedente a dúvida suscitada.

Publique-se, intime-se e registe-se.

Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1935. – Dr. Miguel Maria de SERPA LOPES”.

Decidiu também o Tribunal de São Paulo que “nas doações inter-vivos, desde que se não ofendem direitos de terceiros, é lícito

[426]

aos doadores e donatários, por si ou seus representantes legais, alterando o contrato, extinguir cláusulas vinculadoras. O preceito do art. 1.676, do Código Civil, diz resp eito apenas a vínculos impostos em testamentos ou em doações causa-mortis”. (Ac. da 4.ª Câmara, de 31 de maio de 1935, Arq. Jud., vol. 35, pág. 143).

Quanto à renúncia, é bom salientar que o referido Tribunal (Ac. de 31 de janeiro de 1936, no agravo n.º 4.024), num caso de fideicomisso instituído por início de doação, decidiu não ser l ícito ao fideicionário renunciar ao fideicomisso, para o efeito de passarem os bens livres ao fideicomissário.

Depois de acentuar que a renúncia é, como princípio geral, admissível, condiciona- a às seguintes circunstâncias: a) serem conhecidos todos os fideicomissários; b) aquiescência dêstes; c) impossibilidade de superveniência de outros fideicomissários; d) ausência de proibição do doador ou testador.

E pondo em tela o caso sob julgamento, assim desenvolveu os princípios inerentes a tão importante ponto de direito:

“Não há dúvida de que o fideicomisso constituído por ato entre vivos se rege pelo direito

das obrigações. E exatamente por isso é que o agravado não podia renunciar ao encargo; pois a doação modal é um contrato bilateral perfeito, que obriga o donatário ao cumprimento das condições impostas. (Cfr. Van Wetter, Obligations, v. 3, § 176, Código

Civil, art. 1.180). A regra invicto non datu benefício, invocada pelos agravantes, tem que ser entendida em têrmos. Não é lícito obrigar manu militari o donatário a ficar com a coisa doada. Êle pode sem dúvida transferi -la desde logo ao substituto. Mas, como não

lhe é dado transferir mais nem melhores direitos do que tem, a conseqüência é que o substituto recebe a coisa com os ônus e cláusulas impostas pelo doador. E‟ evidente que não está na vontade do donatário o cancelar os vínculos impostos por aquêle. A

liberação só se operará quando se verificar a condição determinada: no caso, a morte do fiduciário”.

568. DOAÇÃO COMO ADIANTAMENTO DE LEGÍTIMA – Prescreve o art. 1.171 do Código Civil:

“A doação dos pais aos filhos importa adiantamento de legítima”.

O princípio decorrente do supracitado artigo é o de que, no silêncio do instrumento de doação, a presunção por lei estabelecida é de que as doações de pais a filhos importam em adiantamento de legítima, pois que podem ser feitas, para serem imputadas na

[427]

cota disponível do doador, por sua morte, vierem os bens a colação (1).

O Tribunal de São Paulo (2), decidiu que, nas doações como adiantamento de legítima, feitas pelo pai ao filho, não haverá necessidade de escritura pública, sempre que elas couberem na legítima do filho.

Com razão tal julgado foi fortemente criticado por J. M. de Carvalho Santos (3), pois, embora

feita de pai a filho e como adiantamento de legítima, a doação conserva a sua natureza jurídica de ato inter-vivos, que exige substâncialmente a escritura pública, desde que consista o seu objeto em imóvel de valor superior a um mil cruzeiros, bem como, em qualquer caso, subordinada a transcrição no registo de imóveis.

Ao ocorrer a abertura da sucessão, observa aquêle jurista, não há mais transmissão da propriedade que já se operou anteriormente.

Com muita procedência também sustentou E. Espínola que nessa espécie de doação não se presume o pacto de reversão.

Por outro lado, se apresenta outra questão: pode a doação feita como adiantamento de legítima ser onerada com encargos? Ao meu ver, tal não é possível.

Assim decidimos no seguinte caso: A doou a seu filho B., como adiantamento de legítima, um imóvel, estipulando na escritura que, por morte dêle, o bem doado passaria para os seus filhos, sendo que o doador estabeleceu que a doação era em usufruto.

O donatário requereu o cancelamento da referida cláusula. Estabelecemos, então, que era

possível o referido cancelamento. Não se tratava de usufruto, mas, evidentemente, de um fideicomisso.

De qualquer modo, porém, consideramos que o cancelamento se impun ha, porquanto, em se

tratando de adiantamento de legítima, a aludida substituição ofendia ao preceito de ordem pública, contido no art. 1.721, do Código Civil, por fôrça do qual a legítima pertence de pleno direito ao descendente, só se permitindo ao testador prescrever a incomunicabilidade ou

estabelecer condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia, sem que isto possa obstar a livre disposição dos bens por testamento e, em falta dêste, a sua transmissão, desembaraçados de qualquer ônus, aos herdeiros legítimos (Código Civil, art. 1.723).

Fôrça é considerar, entretanto, que se a substituição fideicomissária não é possível, contudo a

instituição do usufruto, que é temporário e não pode ir além da vida do doador, é perfeitamente admissível, desde que o usufrutuário seja o próprio doador.

(1) – João Luiz Alves, ob. cit., pág. 247. (2) – Rev. dos Trib., vol. 31, pág. 238.

(3) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XVI, pág. 365.

[428]

569. FORMA DE DOAÇÃO. – Sendo sempre encarado com desconfiança o contrato de doação, em razão de depauperar, sem contraprestação, o patrimônio do doador, a maior parte das legislações dedicam cuidados especiais, ora à capacidade, ora à forma do contrato.

Quanto a esta, sempre se visou proteger o doador ne quis impetu aliquo sine iudicio, tanquam prodigus donet e também os terceiros.

Seguindo a doutrina romana, o direito anterior, para as doações superiores a Cr$ 360,00, para o varão, e Cr$ 180,00 para a mulher, careciam ser realizadas por escritura pública, além da formalidade substancial da insinuação, processada judicialmente.

O nosso Código Civil, no art. 1.168 simplificou tudo isso nivelando a doação aos demais

contratos. Segue a regra geral do art. 134, isto é, a escritura pública quando tiver por objeto a constituição ou transferência de direitos reais sôbre imóveis de valor superior a um mil cruzeiros, reportando-nos aqui a tudo quanto dissemos a propósito da forma do contrato de compra e venda no que fôr aplicável.

570. MODOS TERMINATIVOS DA DOAÇÃO. – Dispõe o art. 1.181, do Código Civil:

- “além dos casos comuns a todos os contratos, a doação também se revoga por ingratidão do donatário”.

A doação é, em regra, irrevogável, neste sentido que não pode ficar a sua subsistência subordinada ao mero arbítrio do doador. Entretanto, a doação pode ser desfeita:

a) pelo mútuo consentimento;

b) pelo direito de reversão em favor do doador, se por êste houver sido estipulada tal cláusula para o caso de sobreviver ao donatário;

c) pelo advento da condição resolutiva, se a doação estiver a ela sujeita;

d)pela ingratidão do donatário.

Nos três primeiros casos, o Oficial do Registo de Imóveis pode realizar nos seus livros a operação necessária à restauração do estado primitivo.

Se se tratar de uma causa não prevista na própria doação, como o distrato pelo mútuo consentimento, deve-se considerar como uma operação nova e, neste caso, tem que ser cancelada a transcrição em nome do donatário e fazer nova transcrição em nome do doador.

No caso de reversão (Cód. Civ., art. 1.174) processa-se da mesma maneira como se se tratasse de uma condição resolutiva.

O Oficial pode restaurar a primitiva transcrição em favor do donatário, mediante a apresentação pelo doador da certidão de óbito do donatário.

[429]

Quanto à revogação da doação por ingratidão do donatário, não se aplica às seguintes formas de doação:

a)as doações puramente remuneratórias;

b)as oneradas com encargo;

c)as que se fizerem em cumprimento de obrigação natural;

d)as feitas para determinado casamento.

São os seguintes os motivos determinantes da revogação por ingratidão:

I.Se o donatário atentou contra a vida do doador.

II.Se cometeu contra êle ofensa física.

III.Se o injuriou gravemente, ou o caluniou.

IV.Se, podendo ministrar-lhe, recusou ao doador os alimentos, de que êste necessitava. (Cód. Civ., art. 1.183).

No caso de revogação de doação por ingratidão, a modificação a se fazer no Registo Imobiliário é o cancelamento da transcrição da mesma e a restauração da primitiva transcrição em nome do doador, por se t ratar de um modo terminativo, senão previsto contratualmente, pelo menos decorrente da lei.

Em todo caso, a alteração sòmente pode ser levada a efeito mediante ordem judicial decorrente de sentença passada em julgado, na respectiva ação revocatória.

Em relação à doação onerosa, poder-se-á revogar por inexecução do encargo, desde que o donatário incorrer em mora (parágrafo único do art. 1.181).

Da mesma maneira que a revogação por ingratidão, está esta última forma sujeita ao seu reconhecimento por meio de sentença.

A modificação que tiver de ser feita no Registo Imobiliário, consistirá no cancelamento da transcrição da doação.

O cancelamento também pode decorrer da nulidade da doação, não sòmente nos casos gerais de nulidade do ato jurídico, como ainda nos casos em que a lei marca certas incapacidades especiais, tanto para doar como para receber a doação.

Assim, a nulidade decorrente da doação feita em relação a todos os bens do doador (Cód. Civ., art. 1.175); a nulidade da doação quanto à parte excedente a que o doador, no momento da liberalidade podia dispor (Cód. Civil, art. 1.176); a doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice.

Igualmente nesses casos, o cancelamento da transcrição da doação e a restauração da primitiva transcrição em nome do doador fica subordinada à sentença judicial.

[430]

PARTILHA ENTRE-VIVOS

571. DOAÇÃO PARTILHA. – Dispõe o art. 1.176 do Código Civil:

“É válida a partilha feita pelo pai, por ato entre -vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros”.

A supracitada disposição estabelece que a partilha tanto pode ser feita por ato entre-vivos como por meio de testamento.

A que nos importa, porém, é a partilha feita por ato entre -vivos.

A primeira é originária do Direito Romano; a segunda, do direito francês.

Entre uma e outra correm sensíveis diferenças. O testamento é um ato revogável, ao passo que a doação é irrevogável; no testamento, a divisão é mais distribuição do que disposição, ao passo que, na doação, prevalece a disposição sôbre a distribuição dos bens. A divisão por meio de

testamento não produz efeito senão após a morte do testador, ao passo que a decorrente de doação produz imediato efeito, implicando na transmissão da propriedade. Daí êste outro efeito importante: a partilha testamentária é ato meramente declaratório da propriedade, ao passo que

a partilha oriunda de doação é um ato translativo da propriedade, diferindo, assim, os efeitos da transcrição num e noutro caso.

Entretanto, há quem lhe negue êsse caráter translativo.

Polacco e Bonelli acham que se trata de um instituto especial que se não confunde com os atos translativos; outros, contestam-lhe a índole jurídica de doação.

A divisão inter liberos, argumenta-se, ainda que por ato entre-vivos, é essencialmente um ato de

divisão relativo à sucessão fatura, com todos os caracteres precisos da divisão que se faz por ato testamentário, sendo o verdadeiro título de aquisição o hereditário.

De acôrdo com essa teoria, não se nega a transferência atual: a divisão inter liberos é, como a

verdadeira divisão, um t ítulo que pressupõe um outro título o único e verdadeiro título definitivo de

[431]

aquisição; na divisão posterior à sucessão hereditária, é simplesmente declaratória, porque o título de aquisição é a sucessão; sendo a divisão anterior, não podendo, por fôrça das coisas ser declaratória, é uma simples antecipação, um título provisório.

N. Coviello (1), segue a mesma orientação, dizendo que se a divisão transmite a propriedade, contudo essa transferência só se torna definitiva com a aceitação da herança, ou com o verdadeiro t ítulo que é o hereditário. Conclui achando que se trata de um ato suscetível de

transcrição, não por ser translativo da propriedade, mas porque são também suscetíveis de transcrição os atos que transferem a propriedade sob condição suspensiva ou resolutiva.

Entre nós, pelo menos, essa doutrina não poder ser admitida. A partilha feita inter liberos, como já dissemos, implica doação, com todos os requisitos orgânicos inerentes à mesma. A colação,

a inoficiosidade e todos os demais efeitos que o ato possa determinar na sucessão não lhe desnaturam a feição originária.

Transmite desde logo a propriedade e a transcrição tem efeito constitutivo e não declaratório.

572. REQUISITOS DA PARTILHA ENTRE-VIVOS. – Em relação às pessoas que deverão figurar no ato, tem-se, de um lado, o partilhante que pode ser tanto o pai como a mãe, e do outro, os

beneficiários que são todos os descendentes do partilhante, isto é, todos quantos possam ser chamados à sucessão no dia da morte do partilhante. A omissão de um titular produz a nulidade da operação (1). Os netos sòmente poderão ser incluídos por fôrça do direito de representação.

“Não prevalece, pois, a divisão de bens efetuada em vida: por filho entre os pais, sobrinho entre os tios, avô entre os netos, pai ou mãe, entre filhos e estranhos (2).

Em relação ao bem partilhado, é necessário que a divisão seja real mediante composição regular dos quinhões, e que o partilhante tenha a livre disposição dêsses mesmos bens.

Depois cumpre que a partilha compreenda bens presentes. Ela pode ainda ser total ou parcial,

sendo de notar que, no primeiro caso, considerar-se-á nula se o disponente não reservar o suficiente para a subsistência dêle.

573. FORMA DO ATO DA DOAÇÃO PARTILHA – A partilha pode ser feita por um dêsses dois modos:

1.º) – Por escritura pública quando consistir em bens imóveis de valor superior a um mil

cruzeiros ou quando houver algum donatário interdito ou menor. (1) – Coviello, ob. cit., II, pág. 51.

(1) – Josserand, ob. cit., t. 3.º, n.º 1.924. (2) – Carlos Maximiliano, Dir. das Sucessões, II, n.º 1.480.

[432]

2.º) – Por instrumento particular quando os imóveis forem de valor não excedente a um mil cruzeiros (1).

Entretanto, o que acima fica exposta não é isento de dúvida, quando há menor interessado ou incapaz.

Alguns entendem que, no referido caso, a partilha efetuada pelo pai tem que ser processada judicialmente.

Parece adotar essa diretriz J. M. de Carvalho Santos (2), apontando duas opiniões: a do

eminente Orosimbo Nonato (voto vencido, in Rev. For. v. 64, pág. 410) e a do acatado jurisconsulto Dr. Alfredo Bernardes (in Rev. For., v. 45, pág. 274).

O primeiro, depois de focalizar a complexidade da natureza da doação partilha, acentua que o Juiz não delibera na doação partilha, pois o seu ofício é em grande parte, substituído pela

magistratura doméstica exercida pelo pai, estando o ato respectivo, entretanto, sujeito à censura do juiz quanto à integridade das legítimas e à rescisão, por via da ação própria, por motivos de vícios que acaso a infirmem.

Alfredo Bernardes, porém, é francamente partidário de partilha judicial.

Depois de analisar a questão no direito francês, o eminente jurisconsulto sustenta que a solução da doutrina francesa não se adapta ao nosso direito.

“porque os dispositivos a respeito da doação partilha, feita pelo pai, se acham regulados no art. 1.776 parte integrante do Cap. II, do Tít. IV, sob a rubrica “Da Partilha” – e determinando que – “será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum dêles fôr menor ou incapaz”.

Afirma, então, que o têrmo herdeiros, empregado no art. 1.774 não compreende sòmente os interessados, que concorrem à partilha, mas abrange a pa rtilha feita em vida, pelo pai. E estabelece as seguintes conclusões:

1.º) – Podem os pais em doação conjunta, partilhar os bens do casal entre seus descendentes;

(1) – Itabaiana de Oliveira, ob. cit., III, § 947. (2) – J. M. Carvalho Santos, ob. cit., XXIX, pág. 369.

[433]

2.º) – Essa doação partilha será feita por escritura pública (Art. 1.168 do Cód. Civil) se todos os filhos forem maiores, observado o preceito do art. 1.175 quanto aos pais

doadores, - e o art. 1.776, quanto à inteligência da legítima dos compartilhantes, herdeiros necessários dos ditos doadores;

3.º) – Havendo, entre os donatários, alguns que sejam menores ou incapazes a doação-partilha não mais revestirá a forma de escritura pública.

e será nessas condições, exclusivamente judicial, na forma do art. 1.774 do Cód. Civil –

e, como entre os pais doadores e os filhos compartilhantes há, nesse caso, colisão de interesses (art. 397, do Cód. Civil),

é de necessidade a nomeação de um curador especial, para fiscalizar o ato judicial da partilha e representar os aludidos donatários menores (art. 384, n.º V, do Código Civil),

não pode, no mesmo ato, exercer as qualidades opostas de alienante doador e de adquirente donatário”.

No mesmo sentido a opinião de João Luiz Alves que, mais radicalmente, afirma não poder ter lugar a partilha feita pelo pai, “desde que haja herdeiros menores ou incapazes”, atento o preceito expresso terminante do art. 1.774 (3).

Clóvis (4), não é bastante claro sôbre o assunto, pois apenas diz que “quando os herdeiros forem menores ou interditos, intervirá, necessàriamente, a autoridade, a quem a lei confia a função de velar pelos interêsses dos incapazes”.

Quanto ao nosso ponto de vista, cremos que a escritura pública é a forma bastante para a validade da doação partilha.

Esta, consoante assinalamos, é uma forma mista, constituída de elementos próprios da doação e dos relativos à partilha.

Na partilha, onde existem menores ou incapazes, a intervenção do Juiz faz -se mister, de um modo essencial, para garantir os interêsses daqueles mesmos incapazes. Na doação partilha, é

o pai quem representa êsse papel; quem irá distribuir os bens que lhe pertencem; e se lhe é lícito, independente de intervenção judicial, fazer doações como adiantamento de legítima, também lhe não pode ser recusado o poder de fazer, em vida, a partilha dos seus próprios bens.

Um só defeito a lei marcou com infirmativo dêsse ato: o não corresponder aos direitos dos herdeiros sôbre as suas legítimas, mas

(3) – João Luiz Alves, ob. cit., III, pág. 180. (4) – Clóvis Beviláqua, ob. cit., vol. 6.º, pág. 251.

[434]

isso é um fato que pode ser apreciado, por ocasião da abertura da sucessão do doador. A circunstância de se encontrar o art. 1.776 compreendido no capítulo relativo à partilha não implica na sua subordinação ao art. 1.774, como pretende o ilustre Dr. Alfredo Bernardes.

O art. 1.776, que foi reproduzido pelo art. 502 do Código do Processo Civil, não produz essa subordinação, porque a doação-partilha é, incontestàvelmente, um instituto distinto.

Se o Código Civil e o próprio Código do Processo Civil, estatuem que

“Será válida a partilha feita pelo pai”.

com a condição única do respeito à legítima, importa isso em ser prescindível, a adição de outro qualquer órgão de garantia. A autoridade paterna é bastante.

Insistimos no argumento: a doação partilha é um agregado de elementos da doação e da

partilha, mas nesse agregado de elementos, nessa comistão, a preponderância quase inteira

cabe aos elementos oriundos da doação. E ‟ bastante rever os pontos de diferença que já se estabeleceu entre a doação e a partilha.

Ora, se a preponderância toca ao instituto da doação de um modo quase inteiro, fôrça é reconhecer que são as normas inerentes a esta as que deverão ter igualmente pr edomínio sôbre a partilha.

E dessa preponderância resulta, na falta de outro dispositivo em contrário, que, em relação á

forma do contrato, é ela a mesma indicada para as doações comuns: instrumento público ou particular, conforme o valor dos imóveis que formem o seu objeto.

Decidiu a 2.ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação de Minas Gerais (Ac. de 25 de março de 1940, Rev. For., vol. 84, pág. 385) que “em substância, a desistência da meação em favor dos

filhos é ato que tanto se pode considerar doação como partilha em vida, por apresentar os característicos de uma e outra”, bem como que “quer se considere doação, quer partilha em vida, exige escritura pública, se o valor da meação exceder a taxa legal”. Explicou-se no acórdão

supracitado que “a renúncia de herança, simples ou em benefício de alguém, é que se pode fazer por têrmo nos autos do inventário, mas a doação, ou a partilha em vida, referente a imóvel de valor acendente da taxa legal, não pode deixar de ser feita por escritura pública, sujeita a

registo; e, no caso dos autos, não há nenhuma renúncia de herança, quando nada porque não se trata de herança, mas de meação, que não é herança.

[435]

CONTRIBUIÇÃO DE UM IMÓVEL PARA O FUNDO SOCIAL

574. NATUREZA JURÍDICA DA INCORPORAÇÃO DE UM IMÓVEL PARA UM FUNDO SOCIAL E SEUS EFEITOS. – A questão que essa contribuição faz surgir versa sôbre a forma

mediante a qual deve ser feita a constituição da sociedade anônima, quando alguns dos subscritores fazem entradas, conferindo à sociedade bens imóveis. – Êste problema está ligado a outro: saber se, nesse caso, há ou não uma alienação. J. M. Carvalho de Mendonça (1), diz

que na hipótese supra não se trata de compra e venda, de doação ou permuta de imóveis, contratos nos quais é da substância a escritura pública, porém da constituição de uma sociedade para a qual a lei dispensou a escritura pública. Reputa títulos bastantes para a transferência dos

imóveis à sociedade os estatutos e a ata da assembléia que aprovar a avaliação, e, com apoio em Sousa Ribeiro, João Monteiro, Ferreira Viana, Silva Costa e José Higino, conclui que a transferência não é estipulada a título de compra e venda, mas a título de sociedade, atos jurídicos regidos por normas diversas.

Da mesma opinião é Spencer Vampré (2), considerando que essa aversão de bens, conquanto translativo do domínio, não é venda, ou permuta, mas elemento orgânico da associação, tanto que, pela entrada com imóveis, não recebe o subscritor um preço, mas se constitui associado.

No mesmo sentido o Trib. de Just. de São Paulo, em acórdão de 20 de setembro de 1899 (Rev. de Jur., VII, pág. 333).

Todavia, o então Ministro Inácio Arruda, em voto vencido, sustentou ponto de vista contrário, argumentando, em s íntese, que a lei, permitindo a constituição da socieda de anônima, quer por escritura pública, quer por meio de ata, mostrou claramente em tudo quanto prescreveu a semelhante respeito, que continuará inalterável a noção do escrito particular.

(1) – J. X. Carvalho de Mendonça, Trat. de Dir. Comercial, 3.º, n.º 966.

(2) – Spencer Vampré, Trat. Elem. de Dir. Com., II, § 20, n.º 14.

[436]

Do mesmo modo manifestam-se Carvalho Mourão, Alfredo Russell e Vilemor do Amaral (3).

Por motivos especiais estamos de inteiro acôrdo com esta última corrente. Qual o aspecto jurídico dessa conferência de bens à sociedade? E‟ evidente, como ensina Soprano (4), que implica: a) subordinar à comunhão a coisa conferida; b) atribuir um fim social à sua destinação.

Assim sendo, o estado da comunhão subtrai ao patrimônio individual do conferente a coisa conferida, colocando-a no fundo coletivo. Se essa operação não constitui uma venda por lhe faltar o requisito do preço, é, porém um ato translativo, fôrça do qual os bens ou o seu gôzo

passam do conferidor à comunhão social ou sociedade, pois conferir em sociedade quer dizer pôr qualquer coisa em comunhão (5).

Decorre daí que, se impossível é a aplicação em pêso da disciplina inerente ao contrato de compra e venda, é possível examinar-se e êsse exame demonstra a aplicação de algumas

normas do referido contrato, em pontos assentes no mesmo fundamento racional, por isso que, num como noutro caso, há um ato de fôrça translativa (6), além do que tudo deve ser pôsto em conformidade com as normas disciplinadoras da passagem da propriedade e de outros direitos reais, segundo a natureza dos vários bens (7).

Assim, a doutrina dos maiores comercialistas propende para comparar a situação do sócio com a do vendedor; destarte, o momento em que a transmissão da propriedade se opera em face da sociedade se determina de acôrdo com os princípios gerais de direito, quer quanto às relações

das próprias partes, quer quanto às relações destas com terceiros (8), ponto de vista êste também seguido por Giorgi (9), que, retificando a doutrina por êle admitida em edições anteriores à 4.ª, passou a sustentar que o Código Comercial deixa livre o império do Direito Civil quanto aos contratos de forma solene.

E essa conclusão de Giorgi é lógica no direito italiano como também o é perante o nosso, exceção feita das sociedades anônimas, como iremos ver.

(3) – Carvalho Mourão, Rev. de Dir., vol. 23, pág. 37; Alfredo Russell, Sociedades Anônimas, ns. 227-231; Vilemor Amaral, Cód. das Sociedades Anônimas, pág. 74. (4) – Soprano, Le Societá Commerciale, I, n.º 216.

(5) – Manara, Delle Societá, I, n.º 68. (6) – Soprano, ob. cit., I, n.º 222. (7) – L. Bolaff io – De Gregorio, Delle societá, pág. 55.

(8) – Houpin et Bovieux, Traité des Societés Civiles et Commerciales, I, n.º 66; Lyon Caen et Rinault, Traité de Droit Commercial, II, parte 1.ª , n.º 16. (9) – Giorgio, Obbligazioni, III, n.º 203.

[437]

Todos os autores admitem o caráter translativo dessa conferência de bens por parte do sócio. Nenhum choque entre a lei civil e a comercial; há uma dis tribuição de competência, em espaços livres para cada uma delas, sem prejuízo de sistemas.

Conferir um bem imóvel para a formação do quinhão social é, incontestàvelmente, transferir à sociedade um direito real sôbre o mesmo imóvel, estando êste subordinado, ad substantiam, à escritura pública, se de valor superior a um mil cruzeiros, nos precisos têrmos do art. 134 do

Código Civil, não se tratando de sociedade anônima, porquanto a legislação atual adotou a ata constitutiva como título hábil.

Se o Código rege o ato para o efeito da sua transcrição, também essencial, igualmente não há motivo para o excluir, quanto a outro requisito, também essencial, o relativo à forma do título.

Quanto à sociedade anônima, no direito anterior, os que pensavam de modo contrário, admitiam que a transcrição da ata se realizasse do mesmo modo que a decorrente de instrumento

particular de alienação de imóveis, devendo, portanto, um exemplar da ata ficar arquivado no Registo Geral e de Hipotecas, com as assinaturas reconhecidas por tabelião, achando ainda conveniente que a ata fôsse redigida em triplicata (10). A verdade é que os textos de lei

invocados nenhuma base ofereciam para a admissão dêsse rito, que assim se apresentava sem qualquer aspecto legal.

575. O PROBLEMA DA INCORPORAÇÃO DO IMÓVEL NO FUNDO SOCIAL, SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA. – A 5.ª Câmara da Côrte de Apelação do Distrito Federal, em acórdão

proferido no agravo n.º 306, de que foi Relator o Desembargador Cândido Lobo (Cândido Lobo, Sentenças e Despachos, vol. 5.º, pág. 285) assim focalizou a questão:

“Quanto à 1.ª questão: só pela – Compra e Venda – seria lícito aos agravados argumentar contra os agravantes, se porventura como – compra e venda – fôsse tomada

a incorporação feita por B. L., proprietária do dito imóvel, em favor da Sociedade Anônima Edifício Antonini, a agravante.

Incorporar um imóvel a uma sociedade anônima não é ato de compra e venda; nem por isso, a sociedade anônima adquiriu, por compra e venda, o imóvel que lhe foi

incorporado, mas, sim, verificou-se uma integralização de capital. Não se trata de alienação a que tão inquestionàvelmente se refere o art. 1.197 do Código Civil, tanto vale di-

(10) – Spencer Vampré, ob. cit., II, § 20, n.º IV.

[438]

zer que o imóvel ficou em comunhão societária sem ter havido no rigor da interpretação

legal, transferência de propriedade a terceiros, o que só podia acontecer por escritura pública de compra e venda; o imóvel hoje incluído no acervo da Sociedade Agravante, o foi por um titular que também compartilha da mesma sociedade como seu acionista que é”.

Como se depreende dos pontos de vista acima desenvolvidos, o referido acórdão se inclinava por uma orientação diversa da que sustentamos, correspondendo, exatamente ao contido no acórdão do Supremo Tribunal Federal, decidindo que “o acionista, entrando para a formação do

capital da sociedade anônima com bens de raiz não transfere o domínio de tais bens e sim apenas põe êsses bens em comunhão societária com os de outros indivíduos, para o fim de auferir lucros com as operações que a sociedade tem como objetivo”. (Ac. de 16 de outubro de 1915, in Rev. de Dir., vol. 40, pág. 526).

Mas a jurisprudência mudou de orientação, encaminhando-se no sentido opôsto.

A Côrte Plena da Relação do Distrito Federal (Ac. de 29 de agôsto de 1934, Arq. Jud., 41, pág. 249) firmou que “a entrada de imóveis para compor o capital social, à sociedade transmite a propriedade dêles e, nos têrmos do art. 209, letra “a”, do decreto municipal n.º 3.017, de 1925,

estão sujeitos ao impôsto de compra e venda os imóveis com que os sócios ou acionistas de

qualquer sociedade, emprêsas ou companhias, comerciais ou não, entrarem para a formação do capital social”.

Finalmente, ainda, a 5.ª e 6.ª Câmara do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, por acórdão de 16 de setembro de 1938 (in Rev. For., vol. 77, pág. 89) tendo como relator o então Desembargador Cândido Lobo, assim colocou a questão:

“A sociedade, por isso que tem personalidade jurídica distinta da dos seus sócios, tem

patrimônio exclusivamente seu, desacreditado o circunlóquio incorporação de bens em comunhão societária, com que se procurava dissimular a evidência de uma alienação. Nesse sentido a doutrina autorizada e a jurisprudência de todos os tempos. Se a

sociedade é pessoa jurídica distinta das pessoas dos seus sócios, a transferência de um imóvel do patrimônio individual para o da sociedade, importa em bem caracterizada transmissão de propriedade. O imóvel desincorpora-se do patrimônio individual e se

incorpora ao da sociedade. Ainda neste particular estão acordes aos autores, abundantemente invocados e citados nos autos. Nos copiosos julgados, por sua vez, tam-

[439]

bém nos autos enumerados, se depara o princ ípio assegurado com a exaustiva

argumentação convencedora: com a entrada do sócio para a sociedade o jus in re passa a jus ad personam; só a sociedade tem a livre disposição dos bens; só o ato de legítimo representante da sociedade interrompe a prescrição, o sócio tem apenas direito pessoal

de crédito contra a pessoa jurídica da sociedade; os sócios não são co -proprietários indivisos sôbre os bens sociais. Nem colhe que a argumentação de que, por dissolução da sociedade, os bens voltam para os sócios; ao contrário, a diversidade da espécie

dêsses bens e do seu valor, evidencia que se opera nova transação e de coisa diferente”.

576. A INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS, COMO CONTRIBUIÇÃO DO ACIONISTA, NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS, SEGUNDO A LEGISLAÇÃO ATUAL. – O decreto-lei n.º 2.627, de

26 de setembro de 1940, que regulou as Sociedades Anônimas, fulminou tôda controvérsia, quer a respeito da natureza da t ransferência de bens para o fundo social, como composição do valor da cota do sócio ou acionista, quer quanto à forma dessa transferência. Do primeiro ponto de

vista, dispõe o art. 7.º que “na falta de declaração expressa em contrário, os bens transferem -se à companhia a título de propriedade”. Assim, não explicando a ata ou o título de transferência, subentende-se que o que se quis foi alienar a propriedade. Trajano de Miranda Valverde (1),

cogitando do problema, acentua que “a entrada em bens, para a formação de todo o u parte do capital de uma companhia opera, na conformidade dos preceitos reguladores do ato, a transferência de tais bens do patrimônio do subscritor para o da companhia”, e “quando feita a

título de propriedade importa, evidentemente, na transmissão definitiva dos bens do subscritor para a pessoa jurídica, a sociedade anônima.

Em se tratando de bens imóveis, êsse caráter t ranslativo acarreta tôdas as exigências e formalidades, em geral, impostas para a transferência de tal espécie de bens. Assim, o

respectivo título de transferência – a ata de constituição da sociedade ou a escritura pública – deverá ser levado à transcrição no Registo de Imóveis da situação dêstes, competindo tal providência aos primeiros diretores, sendo o título hábil para essa transcrição, a certidão dos

atos constitutivos da companhia, passada pelo Registo do Comércio (art. 54, parágrafo único) (2). Em razão dêsse mesmo princ ípio, o marido ou a

(1) – Trajano de Miranda Valverde, Sociedade por Ações, I, n.º 63, pág. 74).

[440]

mulher, qualquer que seja o regime de bens, no casamento, não pode entrar com imóveis para a

composição do capital de uma sociedade, sem a autorização expressa do outro cônjuge (Cód. Civil, arts. 235, I, 242, I e II).

A atual legislação, ao mesmo tempo que tornou preciso o caráter translativo da contribuição dos bens para a formação da cota social, por outro lado desviou -se da conseqüência comum, a da

forma de constituição mediante escritura pública, quando houvesse imóveis, com a contribuição social.

Assim, mesmo existindo bens imóveis de valor superior a hum mil cruzeiros a serem incorporados à sociedade anônima, esta poderá constituir-se quer pela forma de escritura

pública, quer por meio de ata. É o que resulta expressamente do art. 46, do decreto-lei n.º 2.627, de 1940, assim esclarecendo:

“Ainda que se trate de bens imóveis, de valor superior a Cr$ 1.000,00, a sua incorporação na sociedade, para a constituição de todo o capital ou parte dêle, não impõe a forma da escritura pública”.

Por conseguinte, a incorporação de bens imóveis é incompatível com qualquer das duas formas. Quando a sociedade se constitui por escritura pública, a qual deverá ser assinada por todos os subscritores (art. 45, § 2.º) a ata é transcrita na dita escritura (art. 45, § 4.º).

A escritura deverá conter determinados requisitos, como a transcrição das atas das duas assembléias preliminares, a que alude o artigo 44.

De vez que todos êsses títulos deverão preliminarmente ser registados no Registo do Comércio, formando título hábil para a transcrição a certidão dêste último registo, não cabe ao Oficial do Registo de Imóveis, senão exigir a presença dos requisitos indispensáveis ao seu próprio ato,

com os inerentes ao domínio do transmitente, aos característicos da coisa objeto da transferência, mas não poderá penetrar na indagação dos inerentes à constituição da sociedade anônima, às lacunas no seu modo constitutivo que ficam presumidamente liquidadas pela inscrição no Registo de Comércio.

577. A INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS AO PATRIMÔNIO DAS PESSOAS JURÍDICAS, SEGUNDO A NOVA LEGISLAÇÃO. – Damos a seguir o texto da nova legislação que cria o impôsto sôbre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoas jurídicas.

(2) – Trajano de Miranda Valverde, ob. cit., I, n.º 61, pág. 73.

[441]

DECRETO-LEI N.º 2.109 DE 5 DE ABRIL DE 1940

Cria o impôsto sôbre imóveis incorporados ao patrimônio de pessoas jurídicas, e dá outras providências.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e nos têrmos do artigo 31 do decreto-lei n.º 96, de 22 de dezembro de 1937, decreta:

Art. 1.º - Ficam sujeitas, no Distrito Federal, ao impôsto de 6% sôbre o valor dos bens:

a) a incorporação de imóveis para formação do capital de pessoa jurídica;

b) a transferência de imóveis incorporados ao capital da sociedade para o patrimônio de qualquer dos sócios, ou de seus herdeiros, em pagamento do quinhão do sócio que se retirar, ou falecer, ou ainda em caso de dissolução e liquidação da sociedade.

Art. 2.º - As pessoas jurídicas ficam sujeitas, em cada período de 33 anos, ao impôsto de 4% sôbre o valor dos imóveis de sua propriedade situados no Distrito Federal.

§ 1.º - Os períodos contam-se a partir da constituição da sociedade, ou da aquisição do imóvel quando posterior.

§ 2.º - Para os imóveis que há 33 anos, ou mais, estejam incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, os períodos contam-se a partir do 33.º ano anterior à data desta lei; para os incorporados há menos de 33 anos, a partir da incorporação.

Art. 3.º - O impôsto será devido nos três primeiros anos que se seguirem ao período e poderá ser pago em três prestações anuais.

Parágrafo único – Faltando o devedor ao pagamento de qualquer prestação, o restante do impôsto será com ela cobrado judicialmente.

Art. 4.º - As transferências de ações de sociedades anônimas, nominativas ou ao portador, ou de

cotas de quaisquer sociedades que sejam proprietárias de imóveis, continuarão sujeitas ao impôsto de transmissão de propriedade causa-mortis, mas ficam excluídas do de transmissão inter-vivos.

Art. 5.º - Ficam isentas do impôsto a que se refere o art. 2.º as pessoas jurídicas que, sem objeto

de lucro ou remuneração, realizarem fins de caridade, cultura e esporte, e, quanto aos imóveis utilizados exclusivamente para o objeto da concessão, e quanto esta vigorar, as concessionárias de serviços públicos.

Art. 6.º - O valor dos bens para o cálculo dos impostos de que t ratam os artigos 2.º e seguintes

será, em princípio, conforme o caso, aquêle por que forem incorporados ao capital da sociedade ou o que, nos pagamentos posteriores, fôr declarado pela sociedade, na guia que deverá apresentar para pagamento.

[442]

§ 1.º - Quando entender que a declaração não corresponde ao valor efetivo do imóvel na época

da incidência do impôsto, a autoridade fiscal arbit rará o valor sôbre o qual o impôsto deverá ser calculado.

§ 2.º - Não se conformando com o valor arbit rado, o devedor depositará o impôsto na importância constante da guia, e promoverá a avaliação judicial na forma das leis de processo.

§ 3.º - No caso do parágrafo anterior, o devedor fica obrigado a facultar à perícia o exame de sua

escrita e dos documentos necessários à avaliação, bem como a prestar todos os esclarecimento que lhe forem requisitos.

§ 4.º - Se o valor da avaliação fôr superior ao da guia, a diferença deverá ser paga no prazo de 30 dias.

§ 5.º - Sòmente por ação própria poderão as partes anular a avaliação.

§ 6.º - Se, no prazo de t rinta dias, o devedor não promover a avaliação judicial, ou deixar sem andamento o processo, o impôsto será devido sôbre o valor fixado nos têrmos do § 1.º.

Art. 7.º - O processo do artigo anterior será aplicado na cobrança do impôsto de transmissão de propriedade imóveis inter-vivos.

Rio de Janeiro, 5 de abril de 1940. – 119.º da Independência e 52.º da República.

GETÚLIO VARGAS – Francisco Campos.

(in Diário Oficial, de 8 de abril de 1940).

[443]

REGIME DOTAL

578. TRANSCRIÇÃO DOS IMÓVEIS DOTAIS. – O regime dotal constitui matéria pertinente às convenções antenupciais, assunto já examinado no 2.º volume dêste Tratado (cfr. ns. 263 a

265). Apenas há a observar uma modificação introduzida pelo decreto n.º 4.857 que ora se torna o objeto do nosso comentário; é a disposição do n.º I da letra “c” do art. 178, que realiza inovação útil consoante assinalamos no n.º 195, pugnando por essa medida.

O princ ípio geral, no que diz respeito aos bens imóveis no regime dotal, é o de que

“Salvo cláusula expressa em contrário, presumir-se-á transferido ao marido o domínio dos bens, sôbre que recair o dote, se forem móveis, e não transferido, se forem imóveis”.

Decorre dessa presunção em relação aos bens imóveis, que o domínio dêstes não se transfere ao marido. Por conseguinte, de acôrdo com êsse princ ípio geral, na ausência de disposição contratual em contrário, sòmente há duas operações no Registo Imobiliário: 1.ª) a transcrição do

pacto antenupcial no livro competente; 2.ª) a averbação da cláusula dotal em relação aos imóveis dotais, que deverá ser efetuada na própria transcrição do imóvel.

Quando, porém, se convencionar que os imóveis dotais passam à propriedade do marido a situação diversifica.

Nesse caso há transferência do domínio. Assim sendo, além da transcrição do pacto antenupcial

no livro competente, cabe aqui, não mais a averbação prevista na letra “c” do n.º I, do art. 178, mas a transcrição em relação a cada imóvel, como modo constitutivo do domínio do marido sôbre o mesmo.

579. EFEITOS DA TRANSCRIÇÃO DO IMÓVEL DOTAL EM NOME DO MARIDO. – Havendo transferência do domínio ao marido, o imóvel dotal, por êsse modo transcrito, é alienável.

Como sabemos, no regime dotal, os bens são por fôrça da lei inalienáveis, pois que, salvo os casos especialíssimos dos ns. I a VII,

[444]

do art. 293, o princípio que domina a matéria, segundo a aludida disposição, é o de que

“os imóveis dotais não podem, sob pena de nulidade, ser onerados, nem alienados”.

No Direito Anterior, salvo estipulação em contrário, passavam para o domínio pleno do marido as coisas fungíveis, e os móveis e imóveis dados com estimação venditionis causa.

Pelo sistema do Código Civil, é da essência do regime dotal descreverem-se e estimarem-se

cada um de per si, na escritura antenupcial, os bens, que constituem o dote, com expressa declaração de que a êste regime ficam sujeitos – (Cód. Civ., art. 278) de modo que, sendo a estimação obrigatória, não é ela mais o elemento determinante da transferência ou não do bem imóvel ao marido.

Portanto, quando, no regime dotal, o imóvel passa à propriedade do marido, êste é considerado proprietário e poderá dispor dos bens dotais, correndo por conta sua os riscos e vantagens, que lhes sobrevierem (Cód. Civ., art. 292).

Essa é a boa doutrina, bem esclarecida por João Luiz Alves (1).

“Só os bens dotais estimados taxationis causa não podem, em regra, ser alienados, porque só êstes devem ser restituídos em espécie (art. 290).

Os imóveis dotais, estimados venditionis causa, porém, pertencem ao marido e são alienáveis (art. 292), embora, dependendo de outorga da mulher (art. 235, n.º I).

Assim, o artigo que comentamos só pode ser entendido, para evitar contradição manifesta com o artigo 292, como referente aos imóveis cuja estimação não importa a alheação (taxationis causa).

Êstes é que não podem ser vendidos, senão excepcionalmente, nos casos previstos.

Se quaisquer imóveis dotais não pudessem ser alreados sem autorização judicial, sem hasta pública e sem que se verificasse um dos casos dêste artigo, a distinção feita no parágrafo único do art. 290, e o preceito geral do art. 292, não teriam aplicação, nem

razão de ser. Seria, pois, uma interpretação inaceitável. Por êsse motivo, entendemos que o preceito se refere aos imóveis dotais estimados taxationis causa.

(1) – João Luiz Alves, ob. cit., I, pág. 322.