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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA MIKHAIL VASSÍLIEVITCH LOMONÓSSOV: Uma apresentação. Rafael Nogueira de Carvalho Frate Versão Corrigida São Paulo, 2016.

MIKHAIL VASSÍLIEVITCH LOMONÓSSOV: Uma apresentação. · Carta sobre as Regras de Versificação Russa. 183 Prólogo sobre a Utilidade dos Livros Eclesiásticos em Língua Russa

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

MIKHAIL VASSLIEVITCH LOMONSSOV:

Uma apresentao.

Rafael Nogueira de Carvalho Frate

Verso Corrigida

So Paulo, 2016.

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA E CULTURA RUSSA

MIKHAIL VASSLIEVITCH LOMONSSOV:

Uma apresentao.

Rafael Nogueira de Carvalho Frate

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Literatura e Cultura Russa, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Letras.

So Paulo, 2016.

3

, ,

.

Pndaro. stmica 7.

4

Agradecimentos.

A meus pais, sem os quais, nada.

A minha irm, meus avs e familiares, meu lastro para o mundo.

A meu mestre, Tatiana Serguievna Lrkina pelo russo.

A meu orientador, Mrio Francisco Ramos pela entrada na poesia russa e por me fazer

descobrir que eu sou capaz de alguma coisa.

Aos professores Bruno Barreto Gomide e Elena Nikolevna Vssina pelo incentivo,

sugestes e puxes de orelha na qualificao deste trabalho e, antes, pela formao.

Aos professores Marcos Martinho dos Santos, Paulo Tadeu Ferreira, Alexandre Pinheiro

Hasegawa, Joo ngelo de Oliva Neto, Paula da Cunha Correa, Jos Marcos Macedo

por seus ensinamentos: animae dimidium meae.

Aos queridos brderes: Tadeu Andrade, Pedro Baroni Schmidt, Mrcio Mau Chaves,

Fernando Schirr, irmos na comunho das Clssicas; Joo Paulo Cyrino, irmo na do

Logos; Leonardo Zucaro, Vicente Ferreira Sampaio, Pedro Iacovini, na da Fineza;

Ticiano Lacerda, caro Gatti, Tarsila Don, Tatiana Lima Faria, Bia Boissou, na do

RocknRoll.

A Henrique Elfes e Martim Vasques da Cunha, por tudo que h alm.

CAPES, quae sera, pela bolsa.

5

RESUMO

O presente trabalho se prope a esboar a primeira apresentao em lngua

portuguesa de uma das mais importantes figuras do pensamento, letras e educao da

Rssia, absolutamente central em seu desenvolvimento tcnico, cientfico e literrio,

Mikhail Vasslievitch Lomonssov. Nele, juntamente com uma introduo provendo uma

contextualizao geral do sculo XVIII russo, seguida de um panorama biogrfico do

polmata centrado em sua produo literria e findada em um relato sobre sua

contribuio para a formao da lngua russa moderna, so apresentadas as tradues

integrais de quatro obras suas na rea das letras, duas das quais poemas longos

acrescidos de comentrios, bem como outras tradues secundrias ilustrativas da

primeira parte.

Palavras-chave: Mikhail Vasslievitch Lomonssov, sculo XVIII, classicismo russo,

Pedro, o Grande, lngua russa, ode, versificao, mtrica.

ABSTRACT

The goal of the present work is to provide a sketch presenting for the first time in

Portuguese language one of the most important individuals in Russian thought, language

and education, who played a fundamental role in the technological, scientific and literary

development of the country, Mikhail Vasilievitch Lomonosov. Here, along with an

introduction containing a general outline of 18th century Russia, followed by a biographical

overview of the polymath and ending in an account of his main contributions to the

shaping of the modern Russian language, four full translations of his works in the realm

of letters are presented, two of which duly commented long poems, as well as minor

secondary translations, illustrating the first part.

Keywords: Mikhail Vasilievich Lomonosov, 18th century, Russian classicism, Peter the

Great, Russian language, ode, versification, metrics.

6

ndice.

Introduo. 05

Captulo I. Panorama Biogrfico de Mikhail Vasslievitch Lomonssov. 12

Captulo II. Lomonssov e a Lngua.

A lngua antes de Pedro. 61

As Primeiras Reformas. 66

Os Poetas. 77

A Contribuio de Lomonssov. 90

Captulo III. Duas odes de Lomonssov. 118

Carta sobre as Regras de Versificao Russa. 183

Prlogo sobre a Utilidade dos Livros Eclesisticos em Lngua Russa. 203

Bibliografia. 215

7

Introduo.

Se uma revoluo se define por ser, uma mudana abrupta, que foram

conscientemente planejadas, ao menos por uma minoria ativa, que ocorreu de maneira

relativamente sbita, marcando uma fase ps-revolucionria de modo prontamente

distinto da pr-revolucionria, que foi assim reconhecida por seus contemporneos e que

produziram transformaes que perduraram, como prope James Cracraft,1 o incio

sculo XVIII na Rssia foi um momento revolucionrio. O chamado sculo de Pedro, o

Grande, o Tsar, depois Imperador, que promoveu uma reestruturao social de seu pas

dificilmente vista na sua histria do mundo, definiu a Rssia moderna. Durante seu

reinado o estado russo, viu reformas que o impulsionaram a uma modernizao e uma

reorientao cultural em um ritmo, uma pujana e uma violncia talvez sem precedentes

at ento na histria humana. A burocracia estatal, as foras armadas, a religio, a

educao, a cultura, a lngua do pas, foram reformadas, transformadas ou recriadas, de

modo a imprimir-lhes uma dupla natureza que para bem e para mal foi essencial na

formao de seu carter nico. As reformas revolucionrias de Pedro I criaram as bases

do moderno estado russo que foram a terra frtil a partir de onde todas as grandes figuras

russas mundialmente conhecidas puderam florescer e produzir seus feitos. Aps sua

morte, a corte e o governo estavam irrevogavelmente mudados e a Rssia havia se

tornado um Imprio, que emulava todo o esplendor e glria da Roma de Augusto

trasladada na cidade construda no desague de um rio na extremidade oriental do mar

Bltico, ento no mais que um delta pantanoso esparsamente habitado por uma

pequena vila de pescadores. So Petersburgo serviu de capital a todo o Imprio at seu

fim, em fevereiro de 1917, e demonstrou em suas magnficas construes e terrveis

tragdias todas as contradies resultantes de uma reorientao forada das estruturas,

dos valores e da cultura.

Durante o sculo, que teve outro monarca intitulado Grande, Catarina II, outras

personalidades de influncia decisiva para o pas surgiram e contriburam para seu

desenvolvimento e grandeza. Generais, homens de estado, cientistas, educadores,

literatos apareceram em uma escala ainda no imaginada na histria do pas e sua

1 Cracraft, 2004, pg. 12.

8

determinao direta ou indireta na construo do novo Imprio foi essencial. Pegue-se,

como apenas um exemplo, Grigri Potimkin (1739 1791), general que participou do

golpe que levou Catarina II ao poder e foi crucial na vitria contra o Imprio Otomano na

guerra de 1768-74, que deu ao Imprio definitivo domnio sobre o norte do Mar Negro,

foi formado nas fileiras da Guarda Imperial formada por Pedro, o Grande. Se formos para

o campo da cultura e letras, tomemos os literatos e poetas Vassli Kirlovitch Trediakvski

(1703 1768) e Alexander Petrvitch Sumarkov (1717-1777), o primeiro, que comeou

seus estudos na Academia de Cincias ideada por Pedro, estudou na Frana e ao voltar,

foi uma das principais personagens nas discusses de como seriam compostos versos

russos dali em diante e contraponto fundamental para o que definitivamente

estabeleceria a poesia russa moderna; o segundo, que foi um importante poeta em sua

poca, e seu principal dramaturgo, formando o maior corpus dramtico em nmero de

peas do pas. O que no dizer de Gravrila Derjvin, o maior poeta do sculo, que

representou a primeira grande sntese da poesia russa, a um passo anterior do poeta

que definitivamente a universalizaria, Alexander Pchkin?

O XVIII foi o sculo das bases do pas. As bases da modernidade foram-lhe

lanadas nesse momento e o que pode ser mais fundamental do que a lngua na qual

seus cidados se comunicam? Pode-se dizer que a prpria lngua russa, a lngua

civilizacional em que o Estado, seus sditos e seus literatos, falando ou escrevendo, se

comunicam e que conhecemos hoje foi fundada e desenvolvida ao longo do sculo.

Estabeleceram-se ento os marcos que a permitiram adquirir autonomia frente lngua

mais antiga, ou melhor dizendo, o espectro lingustico, que analogicamente guardava as

diferenas entre o grego antigo e o moderno, ou forando um pouco mais, o latim e o

italiano. Esse conjunto de dialetos era o quase milenar eslavnico, lngua

fundamentalmente eclesistica, que era a nica lngua de cultura disponvel para a

Rssia antes das reformas petrinas. O pas ganhou ento uma voz autnoma e

perfeitamente comparvel s outras lnguas ocidentais que, dependendo do caso, j

haviam adquirido autonomia desde o sc. XIII. Alm disso, foi nesse sculo que a nova

lngua ganhou uma literatura antes impensada no pas, introduzida diretamente pelas

tendncias europeias da poca, cujo desenvolvimento posterior permitiu que todos os

9

grandes nomes universalmente reconhecidos dos sculos XIX e XX nela se

inscrevessem tornando-a uma das mais relevantes do mundo.

O sculo tambm foi o momento de um tipo particular de gnio sem o qual outros

maiores que ele simplesmente no poderiam existir. O influente crtico do sculo XIX,

Vissarion Belnski prope em um artigo que gnios podem ser classificados em dois

graus: Alexandres, Csares, Napolees, Carlos, Luteros so todos gnios que agem

diretamente em toda a humanidade e do outra orientao aos assuntos do mundo

inteiro; j um Henrique, um Colbert, um Pedro, agem na humanidade e em seu destino

futuro no diretamente, mas por meio de seu povo, preparando nele um novo realizador

na cena mundial.2 H gnios de feitos grandiosos particulares, e h gnios de feitos

grandiosos, mas basilares. Mikhail Vasslievitch Lomonssov foi um gnio da segunda

classe, algum sem o qual seria muito difcil imaginar quais seriam os rumos do pas.

Lomonssov foi um tpico polmata do sculo XVIII, que no raramente se encontraram

nas universidades alems, um dos beros do Iluminismo, capaz de se dedicar com

excelncia s mais variadas reas do saber, explorando-as e desenvolvendo-as com

uma incansvel voracidade e sede por um conhecimento que h no muito comeara a

revelar-se. Lomonssov foi o primeiro grande cientista da Rssia, responsvel no

apenas por feitos como a descoberta de que o planeta Vnus possua uma atmosfera ou

a proposio de uma lei de conservao da matria antes que Lavoisier, mas foi o

responsvel pela formao de centenas de jovens futuros cientistas, engenheiros e

poetas, pela construo do primeiro laboratrio de qumica profissional, pela fundao

da primeira universidade do Imprio que vicejava e pela reorganizao de suas

instituies educacionais. Da qumica engenharia, da fsica metalurgia, da histria

geografia, no fcil encontrar um campo do saber a que Lomonssov no se dedicou.

Seus feitos deixaram uma marca no pas a partir da qual tornou-se muito mais fcil para

que outros vivessem suas vidas e fizessem sua parte. Foi um gnio basilar.

Mas talvez seu maior feito, o feito que definiu e orientou as tendncias do ofcio a

partir do que quase todos os seus artfices vindouros produziriam, foi no campo das

letras. Lomonssov no apenas foi o terico que escreveu a primeira gramtica e a

primeira retrica da lngua russa, mas tambm foi o mais destacado poeta de seu tempo.

2 Belnski, 2014a.

10

No apenas ele criou obras modelares para a literatura russa, como tambm estabeleceu

o sistema de metrificao no qual poemas deveriam ser compostos e, com efeito, foram

at hoje, excetuados talvez os experimentos das Vanguardas. Foi, de acordo com outro

artigo de Belnski, o Pedro, o Grande, da literatura russa,3 que foi o modelo, positivo ou

negativo para poetas do primeiro escalo de genialidade, que comporiam mais tarde

obras como Queda dgua, ou Eugnio Oniguin4. A Gramtica Russa foi a primeira

gramtica da nova lngua, nica por 40 anos, cuja traduo para o alemo foi o primeiro

contato que um estrangeiro pde ter com ela e serviu de fundamento para gramticas

subsequentes. Suas Retricas, ainda que no totalmente originais, foram o guia de

eloquncia e composio textual por todo o resto do sculo XVIII, contendo os preceitos

e regras que lhes deram uma direo mais clara, que, apesar de abandonadas

posteriormente, foram a chave sem a qual era difcil orientar-se pelas letras do perodo.

Com o documento fundacional Carta sobre as Regras da Versificao Russa, foi trazida

luz a proposta que nunca mais seria mais abandonada ao se compor versos na lngua.

So esses feitos que fizeram com que Belnski o chamasse fundador e pai da poesia e

literatura russa. Indo mais alm, so esses feitos que permitiram que o crtico sequer

existisse.

Se suas obras hoje so pouco lidas e estudadas na Rssia e seu nome quase

que absolutamente desconhecido fora dela, talvez se deva ao fato de que gnios

basilares por no agirem diretamente, no costumam deixar uma marca reconhecvel

por feitos particulares. As odes de Lomonssov e boa parte do resto de sua produo

potica soa-nos hoje, em um ambiente democrtico, totalmente liberal nos costumes e

centrado na individualidade em detrimento do decoro e tradio, como pomposas,

enfadonhas, ridculas at, por tratar de uma matria totalmente estranha, em um modo

que simplesmente deixou de ter sentido e uma elocuo cuja primeira reao que pode

nos causar o riso e a chacota. Sua poesia , portanto, circunscrita, e se j na poca de

Belnski ela soava empolada e bombstica, hoje em dia ela dificilmente vai ter alguma

aceitao fora dos crculos de especialistas ou aficionados por poesia. A base do estudo

de um gnio basilar deste calibre, em um contexto em que ele simplesmente no existe,

3 Belnski, 2014b. 4Magna opera de Derjvin () e Pchkin ( ).

11

entretanto, faz-se necessria, pois estudar um poeta como Pchkin ou Derjvin sem o

conhecimento de seu predecessor e fundamentador, a figura sem a qual eles no

existiriam, resultar em uma compreenso incompleta de seu objeto e o estudo

decorrente corre o risco de se tornar sem fundamentos. Que este breve estudo sirva de

uma modestssima base a futuras investigaes em terras brasileiras sobre uma das

figuras mais importantes do sc. XVIII e uma das mentes mais brilhantes que a Rssia

j produziu.

12

I Panorama Biogrfico de Mikhail Vasslievitch Lomonssov.

A 8 (19, Juliano) de novembro de 1711, em uma vila de pescadores na aldeia de

Mishninskaia, distrito de Kurstrov, provncia de Arkhngelsk, no extremo norte da parte

ocidental do futuro Imprio, nascia uma criana que seria um sculo depois chamada o

singular (samobytny) companheiro do iluminismo entre Pedro I e Catarina II e a primeira

universidade do pas, por seu maior poeta.5 Mikhail Vasslievitch Lomonssov nasceu

em uma regio bastante particular e de fundamental importncia para o pas, pelo menos

desde o reinado de Ivan IV, o Terrvel. No desague no Mar Branco, uma antessala do

Oceano rtico, o rio Dvina do Norte se fragmenta em ilhas esparsamente habitadas

tendo como centro populacional a cidade de Arkhngelsk, o nico acesso ao mar que a

Rssia possua at as conquistas iniciais no Bltico durante a Grande Guerra do Norte.

At ento, ele era praticamente a nica via de comunicao com as potncias europeias

ocidentais consistindo no nico porto por onde se poderiam fazer negcios com elas. Foi

por onde Pedro, o Grande conheceu o mar e partiu para suas primeiras navegaes e

permaneceu uma via comercial importante aps a fundao de So Petersburgo. A

aldeia natal do polmata ficava em uma dessas ilhas com seus habitantes se ocupando

sobretudo da pesca, do comrcio e do famoso artesanato herdado dos primeiros

habitantes provenientes de Nvgorod em meados do sculo XII.

Seus habitantes eram nicos em toda a Rssia. L, as terras pertenciam

diretamente ao estado, no tendo sido delegadas aos nobres boiardos, senhores feudais

que geralmente tinham a posse das terras no resto do pas. Dessa forma, a fria regio

com suas terras pobres no conheceu a lei da servido, o conjunto de normas que

estabeleciam o regime feudal de servido para o resto do reino. Seus camponeses,

chamados tchornoschnie,6 no pertenciam propriedade de nenhum senhor feudal,

5 Pchkin, em sua Viagem de Moscou a S. Petersburgo, reflexes dedicadas ao livro de Radschev Viagem de S. Petersburgo a Moscou, elabora as opinies crticas do escritor a respeito de Lomonssov, a elas acrescentando as suas. O elogio feio ao grande homem inicia sua reflexo, mas uma ressalva. Aps isso, ele dir que ele no um poeta, mas um funcionrio decente no departamento de eloquncia dessa universidade e que sua influncia nas letras foi danosa e at agora nelas repercute. Pchkin, 1950, pg. 213. 6 A palavra um adjetivo composto do adjetivo tchrny, negro, e o substantivo socha, arado. Eram, ao contrrio dos Krpostnye Krestiane, os servos que viviam sob as leis de servido russa pertencendo a um determinado senhor feudal e, portanto, presos terra, servos que viviam em terras negras, isto , pertencentes diretamente ao estado russo. Cf. a entrada Tchornostchie Krestiane em Skharev, Krtskikh, 2003.

13

mas estavam diretamente subordinados ao estado, o que lhes garantia maior autonomia

e, principalmente, liberdade de movimento. A condio jurdica de seus habitantes fez

surgir um grupo tnico-religioso parte na regio chamado pomor, falando uma variao

dialetal prpria e normalmente se afiliando s faces da Igreja Ortodoxa Russa que

rejeitaram as reformas nikonianas em sua f e mantiveram os costumes antigos.7 Suas

ocupaes, diferentes das praticadas nas glebas do resto da Rssia, eram associadas

antes de tudo pesca, comercio e o pouco de navegao que havia no pas at a

construo da Marinha Imperial por Pedro I. Essas ocupaes garantiam-lhes melhores

condies de vida, inclusive provendo certa prosperidade para alguns, a ponto de eles a

repassarem para a construo de templos e outras melhorias pblicas. Este era o caso

de Vassly Dorofievitch Lomonssov, um desses camponeses cujo enriquecimento deu

a oportunidade de construir um barco prprio, adquirir um pedao de terra e dar parte de

seu dinheiro para a construo de um templo no vilarejo prximo de Densovka. A relativa

prosperidade de Vassli lhe possibilitou o casamento com a filha de um dicono local,

Elena Ivnovna Sivkova, de cuja unio, nasceu Mikhail Vasslievitch. Elena no viveria

alm da infncia do menino e seu pai se casaria ainda duas vezes, primeiro com Fidora

Mikhilovna Uskova, moa que no sobreviveria trs anos aps seu casamento, e, logo

em seguida, com a viva Irina Seminovna Korilskaia, mulher de quem Mikhail

guardava no muito ternas recordaes.

Desde a infncia, Vassli levava o jovem Mikhail para o mar, ensinando-lhe tudo

o que seu trabalho envolvia. O garoto teve contato com a spera e grandiosa natureza

dos mares do Norte, aprendendo a controlar o barco em momentos crticos causados

pelo tempo sempre instvel que acomete a regio e que quase matou Pedro, o Grande.

Ao mesmo tempo, a exuberncia natural da regio com sua fauna, com seus recursos

naturais, como salinas e reservas de mbar, com fenmenos estupefacientes como a

aurora boreal, somada diversidade tnica encontrada pela regio, deu curiosidade

7 As reformas promovidas nos anos 1650-60 pelo patriarca Nikon que modificavam uma srie de mudanas na liturgia e organizao da Igreja Ortodoxa Russa, visando sua aproximao com a ortodoxia grega de ento, causaram um cisma (em russo Raskol) na instituio, com uma parcela dos fieis renegando as modificaes, exigindo que todas as tradies se mantivessem inalteradas. Os membros dos diversos grupos que no aceitaram a reforma nikoniana, perseguidos e postos em apostasia pelo estado, ficaram conhecidos por staroobridtsy, velhos crentes. Aps isso fundaram comunidades em localidades afastadas dos grandes centros, tendo especial fora no norte do pas. Na poca de Pedro I, a represso a esses grupos diminuiu, permitindo que vivessem em maior tranquilidade.

14

do garoto o alimento necessrio para que se tornasse uma das mais insaciveis mentes

j vistas no pas at ento, talvez apenas comparvel de Pedro, o Grande. Nos anos

de alfabetizao, quando tinha por volta de 12 anos, sua curiosidade e vontade de

aprender deu as primeiras mostras do que se tornariam mais tarde. No demorou at ele

ser capaz de copiar livros paroquiais e ter contato com toda a literatura disponvel l

ento.8 Aos 14 era considerado o melhor recitador dos Salmos da parquia, escrevendo

quase sem erros. Isso atestado por um de seus primeiros autgrafos, um contrato para

a construo de uma igreja em seu vilarejo, firmado em nome de seus habitantes. Nesta

poca, viu na casa de um vizinho os dois livros que teriam sido chamados por ele as

portas da minha instruo: a Gramtica Eslavena de Meliti Smotrtski, e a Aritmtica

de Lenti Magntski. Aps a morte desse vizinho, Lomonssov herda os to preciosos

livros e d incio ao seu caminho pela cincia e pelas letras. Juntamente com esses

livros, outra grande influncia para o garoto, com a qual teve contato ainda nos anos de

adolescncia, foi o Saltrio Rimado de Simeon Plotski, que definitivamente deixou sua

marca em seus poemas espirituais.

Mas para que esse caminho pudesse ser trilhado em sua poca, Mikhail precisaria

deixar seu torro natal e ir para os centros culturais de ento. Moscou, So Petersburgo

e Kev eram os nicos lugares em que se poderia alcanar uma educao superior no

pas. O garoto decidiu pela primeira com sua Academia Eslavo-Greco-Latina, localizada

no mosteiro fundado no incio do sc. XVII, o Zaikonospsskie Monastyr, como o passo

inicial em sua caminhada e o local onde ele melhor poderia aprender a lngua franca

cientfica e filosfica de ento, o latim. Aos 19 anos, extenuado por sua situao

domstica, com sua madrasta implicando com o fato de ele inutilmente s sentar-se

atrs de livros,9 e com a presso cada vez maior de seu pai para cas-lo e tocar os

negcios da famlia, desviando-o assim de seu grande sonho e obsesso, a incessante

aquisio de conhecimento, escondido de todos, Lomonssov parte para Moscou,

viajando em uma caravana de pescados com trs rublos no bolso e um cafet herdado

de um amigo. Para a viagem, o garoto precisou da ajuda de conterrneos para forjar um

8 Alm das escrituras, havia na igreja paroquial de Kurstrov vidas de santos, sermes de Padres da Igreja, textos exegticos e outros escritos eclesisticos que formavam o grosso da produo eslavnica. 9 Plnoe Sobrnie Sotchinnii (Obras Completas, doravante PSS). Tomo X. Carta 29. pp. 480-483.

15

passaporte e uma nova identidade, uma vez que na Academia s se aceitavam filhos de

clrigos. Assim ele se passou por filho de dicono, sendo aceito ao chegar instituio.

Esse segredo se manteria ainda por dois anos, at ele ser descoberto, mas o fato no

lhe causou tantos problemas por conta de sua excepcional performance e, talvez, pela

interveno direta da maior autoridade eclesistica do Imprio, o principal idelogo do

poder do primeiro Imperador de Todas as Rssias, Feofan Prokopvitch.10

Lomonssov passou cerca de cinco anos na Academia Eslavo-Greco-Latina,

durante os quais tornou-se proficiente em latim, aprendeu grego antigo, recebeu

formao retrica e potica com a leitura dos principais oradores e poetas romanos, teve

os fundamentos filosficos e teolgicos nos moldes escolsticos vigentes na instituio

e tomou contato com uma biblioteca relativamente grande para a Rssia do incio do

XVIII. O curso da Academia era previsto para durar 13 anos, que foram esgotados por

Mikhail durante sua estada. Seu ingresso aos 19 anos lhe ps na incmoda situao de

estudar latim com crianas de 12. Suas memrias atestam a inconvenincia de ser alvo

das chacotas e ofensas de seus colegas, mas pior do que isso era sua situao

financeira. Com um soldo de apenas trs copeques por dia, o jovem subsistia com no

mais que um copo de kvs e uma bisnaga de po. Se restasse algum dinheiro, ele

serviria para adquirir materiais de estudo indispensveis ou roupas para se proteger do

frio.11 Some-se a isso que, aps descobrir onde o filho se encontrava, Vassli

Dorofievitch continuamente mandava-lhe cartas implorando pelo seu regresso,

oferecendo-lhe regalias e facilidades com que ele sequer poderia sonhar em sua atual

condio, dentre as quais uma mulher de boa famlia. Nada, no entanto, demoveu o

jovem de seu caminho e sua sede de saber foi seu princpio e sua finalidade de

existncia.

10 Feofan Prokopvitch (1681-1736), clrigo formado pela Academia de Kiev, posteriormente o religioso mais importante da corte de Pedro I, chegando a se tornar Arcebispo de Nvgorod, foi uma pea central na legitimao ideolgica da pessoa e das reformas promovidas pelo monarca. Sua atividade com o clero, seus sermes, suas obras filosfico-jurdicas foram elementos tericos que deram a defesa intelectual necessria para que se justificasse a nova orientao cultural e poltica que se iniciou no pas durante o reinado de Pedro. Lembremo-nos que em 1721 o pas passou de um Tsarado, um estado governado por um Tsar, a um Imprio, encabeado por um Imperador, o primeiro dos quais foi Pedro I, o Grande. 11 PSS. Tomo X. Carta 28. pp. 478-480.

16

No primeiro ano, Lomonssov completou o que levaria trs para se concluir. Com

dois anos de estudo, j compunha seus primeiros versos em latim e, ao final do terceiro,

completaria a instruo mediana que compreendia potica e retrica, passando para a

superior, o ensino de filosofia e teologia. A capacidade do jovem chamou a ateno de

seus professores abrindo a ele oportunidades raras no Imprio Russo. Uma delas foi

uma expedio ao mar Cspio ideada em 1734 com o fim de buscar novas reservas de

minrio e estender a soberania do Imprio a novas terras. Havia a necessidade de um

clrigo para servir de capelo expedio, que foi pedido Academia. Este teria sido

Lomonssov, se no fosse descoberto em sua artimanha de se passar por filho de

dicono. A descoberta o privou dessa empreitada, mas, como dito, devido ao seu

desempenho e a provvel interveno de Prokopvitch, foi perdoado e pde prosseguir

com seus estudos. Presume-se que seja desta poca a primeira composio literria sua

que chegou at ns, um poemeto de 8 versos pentasslabos, fabular, que fazia

significativo uso de eslavonicismos, em que moscas sentindo o cheiro do mel, nele

pousam e l acabam presas por sua voracidade impensada.12

Em 1734, talvez por influncia de Prokopvitch, Lomonssov decide a ir ao outro

centro educacional mais renomado do pas, a Academia de Kiev. L ele passar um ano,

regressando aps seu desapontamento com os mtodos de ensino e com o fato de que

a escola no tinha muito mais a oferecer-lhe. A cosmoviso escolstica, aristotlico-

ptolomaica, encontrada l no satisfez a Mikhail, que aproveitou os meses que passou

na instituio para aperfeioar seu grego e seu latim, e tomar contato mais aprofundado

com a filosofia escolstica e os grandes nomes da aurora intelectual do cristianismo,

como Joo Crisstomo, Baslio Magno, Joo de Damasco e outros padres da Igreja.

Alm disso aqui ele teve um contato mais amplo com a primeira literatura dos eslavos

orientais, pela leitura das primeiras crnicas, dos documentos oficiais que restaram das

invases mongis e dos monumentos literrios da poca, dando-lhe uma formao

histrica que seria bastante aproveitada mais tarde. Ao voltar a Moscou em meados de

1735, Lomonssov inicia o penltimo grau de formao na Academia Eslavo-Greco-

12 Provavelmente o poema se tratava de uma espcie de castigo comumente empregado em pedagogias jesuticas bastante difundidas por via da Academia de Kiev, que estipulavam que o aluno que cometesse faltas gramaticais teria de pagar com uma composio. PSS, Tomo VII, poema 1, pg. 872.

17

Latina, o de filosofia, permanecendo a por alguns meses at o final do ano, quando, em

novembro, uma ordem do Senado chega escola para escolher doze de seus melhores

alunos afim de que continuassem seus estudos na Academia de Cincias de So

Petersburgo. O pomor se encontrava entre eles e no incio de 1736 apresentava-se

instituio de ensino mais alta do pas. Sua relao com a instituio duraria at o final

de sua vida e seu papel dentro dela seria decisivo para seu desenvolvimento.

O incio da estada na Academia de Cincias para os alunos recm-chegados da

Academia de Moscou no foi sem dificuldades. No primeiro ms no havia alojamentos

para todos eles e tiveram que se ajeitar como pudessem.13 Ignorando as adversidades,

Lomonssov aplicou-se com total afinco aos novos conhecimentos que lhe eram

oferecidos. Durante este perodo, foi apresentado a modelos cientficos ainda no

divulgados na Rssia, comeou a aprender o alemo, praticamente a lngua oficial da

instituio depois do latim e tomou contato com as ltimas tendncias e discusses a

respeito da produo potica russa, principalmente pela aquisio do Novo e Breve

Mtodo para a Composio de Versos Russos do poeta mais influente da dcada de

1730, Vassli Trediakvski. O exemplar adquirido por Mikhail foi preservado, e, pelas

glosas e anotaes nele feitas, veem-se diversos questionamentos que seriam um pouco

mais tarde centrais na composio da obra que seria uma resposta a esse Mtodo, a

Carta sobre as Regras da Composio de Versos Russa. Nas glosas notam-se

divergncias com respeito a questes lingusticas, semnticas, escolha dos exemplos

e prpria proposta formal apresentada por Trediakvski. Elas mostram de maneira

clara quo importante era a questo lingustica russa para Lomonssov e como ele deu

incio a sua decisiva contribuio a ela.14 Passado menos de um ano, a Academia de

Cincias escolhe trs de seus melhores alunos para, entre outras coisas, estudarem

metalurgia e minerao, durante um perodo de quatro anos em terras alems, no

Eleitorado da Saxnia, primeiro em Marburgo, onde receberiam formao universitria

geral, depois em Freiberg para o estudo especfico das disciplinas mencionadas e aps

13 No final dos anos 50, em um relatrio sobre a necessidade de reformar a Academia de Cincias, Lomonssov lembra do episdio em sua vida e na de seus companheiros vindos da Academia Eslavo-Greco-Latina, para atentar para a necessidade de prover melhores condies de moradia, alimentao e vestimenta de seus alunos. PSS, Tomo X, doc. 400, pg. 37. 14 Birkov, 1936. Pp. 54ff.

18

o qual, ao regressarem a So Petersburgo, teriam direito a postularem por uma vaga de

professor nos quadros da Academia de Cincias. Os trs eram Gustav lrich Reizer, um

alemo que depois daria sua contribuio qumica, Dmtri Ivnovitch Vinogrdov, o

futuro fundador da porcelana russa, e o pomor Mikhail Vasslievitch Lomonssov.

Os trs estudantes partem de Petersburgo no dia 8 de setembro de 1736 de barco

em direo ao porto de Travemnde, de onde iriam por terra at Marburgo. Chegando

l, puseram-se sob a direo e orientao do renomado aluno de Leibniz, Christian Wolff,

e estudaram aritmtica, geometria, trigonometria, qumica, desenho, lngua francesa e

alem.15 Atendendo s ordens da Academia de formar-se no apenas em cincias, mas

tambm em lnguas,16 por volta de outubro de 1738, Lomonssov envia-lhe sua primeira

traduo que nos chegou. A traduo de uma ode do padre francs Franois de Salignac

de la Mothe Fnelon (1651-1715) foi sua primeira experincia literria relevante no

apenas por apresentar uma j slida concepo tradutolgica, mas tambm por ser uma

das primeiras amostras de um poema escrito totalmente no sistema mtrico que seria

desenvolvido na Carta sobre as Leis de Versificao Russa um ano mais tarde. A ode

de Fnelon,17 escrita no metro mais comumente usado na Frana para a composio de

odes, o heptasslabo, foi vertida no tetrmetro trocaico russo, uma sequncia de quatro

ps tnicos cuja primeira slaba uma tnica e a segunda, uma tona. Alm disso,

manteve-se a alternncia entre rimas femininas e masculinas e o mesmo esquema

estrfico do original (a dcima em aBaBccDeeD), fornecendo desse modo uma primeira

amostra de um dos pontos de sua futura carta que se oporiam viso defendida por

Trediakvski em seu mtodo de que s deveriam ser empregadas rimas femininas nas

composies poticas em lngua russa, inaugurando, assim, um princpio formal que

seria posteriormente adotado como cannico no pas.

O tema da ode de Fnelon fundamentalmente descritivo, apresentando a

paisagem circundando o Priorado de Carennac, um mosteiro localizado no sudoeste

francs, como um idlio primaveril sublime cheio de vida e fertilidade, em que o poeta

toca a sua lira acompanhando o murmrio das guas enquanto pastores tocam seu

15 PSS. Tomo X. Doc. 500. pg. 362. 16 PSS. Tomo VIII. Pg. 866. 17 Ode labb de Langeron. Description de Prieur de Carennac. Fnelon, 1835. pg. 258 ff.

19

rebanho pelos montes e os deuses Ceres e Baco proveem suas ddivas em abundncia.

Esse modo descritivo sublime foi muito utilizado nas obras subsequentes de

Lomonssov, como veremos em suas Meditaes. No mesmo ano, outra traduo foi

composta, desta vez de um poema grego. Tratava-se do poema anacrentico ento

popularmente chamado Lira18. O poema foi traduzido aps a leitura do artigo do retor

alemo Johann Christoff Gottsched Tentativa de traduo de Anacreonte em versos

brancos,19 no qual este era um dos poemas traduzidos, vertendo o metro original, o

hemiambo simples20 (x v v x), em um trmetro imbico russo, com trs sequncias

de tona/tnica, tambm em versos brancos, como Gottsched. Essa experincia seria

reaproveitada vinte anos mais tarde, na composio de um de seus maiores feitos

literrios, a Conversa com Anacreonte.

A estada em Marburgo foi um perodo muito ativo e alegre para Mikhail. Destacou-

se bastante nos estudos enviando, durante o perodo em que esteve na cidade, trs

dissertaes, duas de fsica, uma de qumica. Foi tambm o momento em que conheceu

sua futura esposa, Elizabeth-Christina Zilch, a filha da dona da penso onde ficou

durante esses anos. O casamento se daria mais tarde, quando regressasse a Marburgo,

com todas as atribulaes e problemas que se vero a seguir, mas nesse momento ele

a engravida pela primeira vez, gerando sua nica filha que sobreviveu, Elena. De

qualquer modo, Marburgo era uma cidade predominantemente estudantil, girando em

torno da Universidade, com uma vida bastante agitada pelo grande nmero de jovens

estudantes. A viso de liberdade que l tiveram os jovens russos sados de uma

academia eclesistica, em uma sociedade ainda bastante pautada em valores religiosos

estritos, foi imensa, e eles trataram de aproveitar o mximo que puderam. Os gastos, no

entanto, decorrentes das muitas vezes em que pediram fiado dos comerciantes alemes

foi imenso. No tempo em que l estiveram deviam uma soma gigantesca de 1370

Reichstaler. Por pedido de seu professor e muitas vezes protetor, Christian Wolf, para

que os gastos no os atrapalhassem mais durante sua estada em Marburgo, os trs

18 Poema 23. West, 1993. 19 Versuch einer Ueberzetzung Anakreons in Reimlose Verse, 1736, in PSS. Tomo VIII, pg. 871. 20 West, 1993. Pg. XIV (Praefatio).

20

jovens foram mandados prematuramente para os estudos de mineralogia e metalurgia

em Freiberg, o lugar onde receberiam sua formao completa.

Em 1739, Lomonssov parte ento para a segunda fase de sua estada na

Alemanha, onde estudaria sob a orientao do renomado professor de mineralogia e

metalurgia Johann Friederich Henkel, a maior referncia do assunto na poca. A cidade

tambm era uma das maiores da Saxnia e um dos maiores polos de minerao da

Europa. L o aprendizado recebido foi predominantemente prtico, com visitas s minas

e metalrgicas da regio, acompanhadas de detalhadas explicaes sobre os processos

de minerao e produo de metal. Entretanto, apesar de este ser o momento em que

Lomonssov funda a literatura russa com sua Ode sobre a Tomada de Khotin e sua Carta

sobre a Versificao Russa, escritas em dezembro de 1739, a estada em Freiberg lhe foi

amarga e breve. Desde seu incio, no se deu com Henkel, no qual, segundo ele, apesar

de todas as tentativas de agrad-lo e respeit-lo, s transpareciam maldade,

mesquinharia e safadeza. Henkel segurava o dinheiro mandado para ele da Academia

de Cincias e simplesmente deixava os estudantes russos sob seu comando sem nada,

ao mesmo tempo que avisava a todos na cidade a no fazerem fiado para os russos l

residentes. s vezes os jovens no tinham sequer meios de subsistncia. Alm disso,

Lomonssov ficou totalmente insatisfeito com os posicionamentos tericos de Henkel,

que segundo ele desprezava toda filosofia racional e as posies cientficas modernas

que contrastassem com sua concepo peripattica. A relao do pomor com o saxo

chegou ao limite e, aps alguns confrontos, Henkel o expulsou, dando incio a uma fase

de muitas dificuldades e aventuras para Lomonssov. Como Henkel mantivera seus

documentos, o jovem vagou por muitas alemanhas sem dinheiro, sem identificao, sem

explicao oficial para sua permanncia nos estados que percorreu.

Ele foi primeiro a Leipzig, a oeste, ainda na Saxnia, onde morava o baro

Hermann Karl von Keyzerlingk, membro do conselho oculto da Imperatriz Ana Ionovna

e um dos principais representantes diplomticos do Imprio, mas foi em vo. O baro

tinha se ausentado, ido para Kassel, a oeste, para onde foi o jovem, com a ajuda de

alguns amigos. L chegando, outra vez viu que ele no estava l. Sua situao se

complicava. Volta a Marburgo onde consegue um pouco de dinheiro e parte para

Hamburgo, no Noroeste, prximo do Mar do Norte, para ir Holanda e tentar de l voltar

21

a Petersburgo. Aps falhar no contato com o corpo diplomtico russo no pas e passar

por algumas cidades, chega a Amsterdam, onde encontra russos da Pomria. Eles, no

entanto, o dissuadem de fazer a viagem, por conta de todos os perigos que envolvia

viajar sem documentos e voltar a Petersburgo sem pretexto. Retornando a Marburgo da

Holanda, ele fez uma parada prximo a Dsseldorf e l se deparou com um oficial do

exrcito prussiano, que o ludibriou, o embebedou e raptou o jovem para o servio militar.

Quando ele acordou, estava de uniforme na caserna e simplesmente no tinha o que

fazer. Passou cerca de trs semanas servindo dissimuladamente, at que um dia,

quando todos dormiam, conseguiu escapar da fortaleza e correu at a fronteira da

Westflia com Hessen, a regio de Marburgo. Exceto por esta ltima parte, toda a

aventura est narrada em uma carta ao acadmico Schumacher, ento presidente da

Academia de Cincias, enviada de Marburgo datada de 16 de novembro de 1740,

justificando sua desapario de Freiberg.21

Lomonssov l passou cerca de cinco meses. Nesse nterim conheceu sua filha

Elena, casou-se com Elizabeth no dia 6 de junho de 1740 e a engravidou pela segunda

vez. Enquanto esperava a resposta de Schumacher, continuou com os estudos

exercitando-se sem superviso e trabalhando no que podia. Cerca de 4 meses aps a

carta, Schumacher enviou uma ordem para que o jovem voltasse. Sem dinheiro, ele teve

de esperar mais dois meses antes que pudesse partir da Alemanha. Por todas as

complicaes, entre elas o fato de ter se casado na Igreja Luterana, Mikhail teve de

deixar Elizabeth-Christina grvida em Marburgo com sua filha Elena. Os dois ficariam

separados por dois anos, at que a situao de Lomonssov se estabelecesse na

Rssia. Durante esse tempo ele escondeu completamente o fato de que tinha se casado

e quase no se comunicou com Christina, deixando-a em uma situao bastante

delicada. Eliza daria luz um menino, morto a um ano de idade, que Lomonssov jamais

conheceria.

O estudante volta a So Petersburgo em 8 de junho de 1741, bem no meio da

crise sucessria ocorrida aps a morte de Ana Ionovna. A situao teria fim em

dezembro de 1741, quando por um golpe palaciano, a filha de Pedro, o Grande, Elizabete

Petrovna, frente do destacamento de granadeiros do batalho Preobrajnski, fundado

21 PSS. Tomo X. Carta 5. pp. 421-431

22

nos anos de adolescncia do primeiro Imperador, e atual corpo de elite do exrcito russo,

toma o poder das mos do beb Ivan VI e de sua me, a cada vez mais impopular regente

Ana Leopldovna. Ivan passaria o resto de sua vida em um calabouo at ser

assassinado durante uma tentativa de libert-lo na poca de Catarina II, a Grande. Todas

essas tribulaes refletiram-se na Academia e, durante esses anos, Lomonssov l

permaneceu oficialmente como estudante, vivendo nas moradias a eles assignadas e

passaria assim pelos prximos sete meses, apesar dos constantes pedidos de incluso

nos quadros. Trabalhou muito, no entanto. desse perodo que datam seus primeiros

trabalhos oficias pela Academia, como a catalogao de minrios pedida pelo professor

de cincias naturais Johann Aman, que foi bastante importante como base para

investigaes posteriores na rea de mineralogia no pas. Outros trabalhos relevantes

foram os Elementos de Qumica Matemtica, o Comentrio sobre O Instrumento

Catadiptrico, em que delineia os pontos sobre a combinao do uso de lentes e

espelhos convexos para gerar luminosidade, e as Reflexes Fisico-Qumicas sobre a

Correspondncia entre a Prata e o Mercrio. Todos esses foram trabalhos apresentados

Assembleia da Academia de Cincias com bastante sucesso, mas ainda no lhe

garantiram um posto de professor. Data de janeiro uma carta endereada Imperatriz

recm empossada, considerando todos esses trabalhos, com o pedido para que ela

expedisse um ukaz, uma ordem imperial, que o inclusse nos quadros da Academia. O

pedido foi aceito e em fevereiro, Lomonssov era efetivado como professor adjunto da

Academia de Cincias, ocupando o cargo subalterno na Ctedra de Qumica, subseo

da Faculdade de Fsica, com um salrio de 360 rublos anuais, podendo participar das

assembleias acadmicas, sem direito a voto nas deliberaes. Ainda no era o que lhe

prometeram quando partiu para a Alemanha, mas era um comeo. J nesse ano, ele

pela primeira vez faz um pedido que levaria ainda seis para ser atendido, mas que era

essencial a qualquer instituio de ensino superior, a construo do primeiro laboratrio

de qumica do pas, sem o qual no haveria como fazer todos os experimentos

necessrios para qualquer postulao terica cientfica moderna. O pedido

acompanhava um projeto, contendo todos os elementos que Lomonssov julgava

necessrios para o pleno desenvolvimento das cincias em benefcio da ptria.22 A

22 PSS. Tomo IX. pg. 9.

23

proposta nesse momento no recebeu a ateno devida e o agora professor precisaria

ainda de muita insistncia para que o laboratrio fosse construdo.

Em 1741, escreve trs odes para o pobre beb imperial. A primeira,23 datando do

dia de sua chegada a Petersburgo, a celebrao do primeiro ano do Imperador Ivan

VI, Antonvitch, que seria deposto seis meses mais tarde no golpe palaciano que levou

Elizabete ao poder. A ode foi encomendada por Schumacher para ser recitada em uma

celebrao com fogos de artifcio e espetculos de luzes. Ela foi a primeira publicao

literria de Lomonssov, aparecendo no suplemento da revista publicada pela Academia

Primetchnia k Vidomostiam (Comentrios s Notcias). A ode louva o Imperador

recm-nascido, anunciando uma nova era dourada, com a promessa de tranquilidade s

esperanas do eu lrico (v.16). Dirigindo-se a um beb, a ode tem um tom de ternura no

visto em outras composies, com os beijos dedicados s mozinhas e perninhas do

novo soberano (est. 3 a 6). O poema mantm as tpicas costumeiras, filiando-se

mitologia clssica (est. 7, 8, 11), apresentando a sequncia da histria da Rus (est. 14 a

17), at fechar-se com uma recusa guerra e um louvor me do Imperador e regente

do Imprio, Ana Leopldovna. A segunda, tambm requisitada por Schumacher e

publicada no Primetchnia k Vidomostiam, louva seus primeiros feitos blicos, pela

vitria do exrcito russo contra os suecos na primeira batalha da guerra de 1741-44, um

primeiro episdio de um conflito mais amplo, que envolveu todas as potncias ocidentais

e que precipitou definitivamente o declnio do Imprio Sueco, a Guerra da Sucesso

Austraca. uma ode de guerra, que, aberta com as devidas convenes, mostra em

uma bela alegoria Marte batido na batalha, ferido, ir a uma gruta se recuperar at a

chegada de Vnus e Diana outra vez conclamando-o a lide, depois de curarem-no com

Lrios e a gua do Sena. A referncia ao Imprio Sueco, depois da destrutiva derrota

em 1721, voltar ao ataque 20 anos depois, instado pela diplomacia francesa a declarar

guerra contra a Rssia. Nela abundam perguntas retricas contra os suecos,

provocaes e imagens de sua destruio. No h propriamente uma passagem

histrico-mtica alm de Ana Ionovna olhando do cu a vitria (est. 21), uma

23 Ode, que no Solene Aniversrio do Excelso Nascimento do Sumelevadssimo Soberano, Detentor do Grande Imprio Russo, Ioan Terceiro, Imperador e Autocrata de Todas as Rssias, a 12 de Agosto de 1741, a Regozijante Rssia Celebra. PSS. Tomo VII. pp. 34ff.

24

homenagem ao Pai da Ptria, no diretamente nomeado (22), terminando com uma

orao a Deus pedindo que sempre proteja o pas. uma ode que destoa um pouco do

conjunto da obra lomonossoviana, principalmente por no aplicar com intensidade o

princpio da desordem lrica. Por suas operaes com as perguntas e provocaes ela

se mostra pouco mais experimental e talvez por isso tenha sido criticada no decorrer do

sc.XIX.24 Ambas as odes foram condenadas destruio aps o golpe que levou

Elizabete ao poder, tornando-se uma raridade suas primeiras publicaes.

No mesmo ano, pouco antes da coroao de Elizabete, a Lomonssov

requisitada uma outra ode, celebrando o aniversrio da nova soberana. Seria a primeira

de 8 odes celebrando a nova Imperatriz. Ela uma traduo de uma ode do acadmico

Schtaelin, composta no delicado momento poltico do golpe de Elizabete, principalmente

em se tratando da situao dos alemes ocupando postos altos no poder. uma ode

comparativamente menor, contendo doze estrofes, com nfase na representao da

esperana mediante prosopopias e alegorias. No h propriamente coisas dignas de

nota nela, exceto a estrofe final com o jogo de palavras entre o nome da Imperatriz

(Elizavita) e as palavras slave svita (Glria do mundo).25 No ano seguinte, outra ode

para a Imperatriz, desta vez em tributo a sua coroao. Esta ode tambm uma traduo

do alemo, composta pelo tambm acadmico, Gottlieb Junker. O metro respeita as

escolhas do alemo, sendo vertida em hexmetros imbicos, medida que seria mais

usada em outros gneros, como as Inscries e a inconclusa epopia Pedro, o Grande.

Todas essas odes so geralmente consideradas obras imaturas, frias, sem expresso,

talvez pelo fato de toda a cautela necessria de se demonstrar nesses tempos de crise

poltica. Cabe lembrar tambm que a ode para Elizabete uma traduo de Schtaelin e

serve antes de exemplo das concepes tradutolgicas de Lomonssov que de mostra

significativa de seus princpios poticos dirigentes. So de qualquer modo uma etapa

importante no desenvolvimento de sua expresso e merecem ser considerados.

1742 foi um ano atribulado para a Academia. Pela mudana brusca no poder

Imperial e por diversos descontentamentos com algumas regras institucionais e com a

24 Como fazem os prprios comentrios das Obras Completas: PSS. Tomo VIII, pg. 884. 25 , / / / . PSS, tomo VII. pg. 58.

25

presidncia de Schumacher, alguns acadmicos protestaram contra ele, acusando-o de

arbitrariedade e abuso no tratamento com os acadmicos russos, e desvios para si

prprio da verba dedicada instituio. O professor de astronomia Joseph-Nocols de

LIsle e o inventor, escultor e homem de estado Andrei Konstantnovitch Nrtov enviaram

uma queixa contra o presidente ao Senado Imperial, que formou uma comisso de

investigao, e em pouco tempo Schumacher foi destitudo do cargo e preso por

malversao de dinheiro pblico. Nrtov assumiu a direo da Academia e Lomonssov

recebeu novos encargos, como ministrar palestras separadas sobre geografia fsica e

ensinar composio potica e estilo uma vez por semana. Agradou ao pomor a nova

configurao acadmica e, em princpio, ele tacitamente os apoiou. A comisso de

investigao, entretanto, para a surpresa de muitos membros da Academia absolveu

Schumacher das acusaes, restituiu-o ao cargo e os acusadores acabaram se tornando

acusados. Algumas decises de Nrtov, como o foco dedicado s cincias aplicadas em

detrimento das tericas, bem como seu comportamento ditatorial semelhante ao de

Schumacher, causaram desentendimentos e divises dentro da instituio e

contriburam para que Schumacher fosse restitudo.

Lomonssov, a quem Nrtov havia encarregado algumas atividades burocrticas,

se envolveu em uma srie de conflitos com correligionrios de Schumacher e recebeu

diversas queixas na comisso investigadora. Um episdio que as gerou ocorreu com o

Secretrio de Conferncias da Academia Christian Winsheim, em que houve uma

acalorada discusso que quase chegou s vias de fato. Houve tambm quando em casa

de um dos membros da Academia, o pomor alcoolizado acusou um dos presentes de

terem roubado sua algibeira. A discusso a acabou na ignorncia, com Lomonssov

agredindo a socos e pontaps boa parte dos presentes depois de dizer a seu lacaio para

arrebentar todos at a morte.26 O dono da casa teve de escapar pela janela e chamar a

guarda da cidade para remover o agressor de l. As queixas contra o temperamento do

pomor foram se avolumando. Por conseguinte, um decreto da chancelaria da Academia

o suspendeu do posto de adjunto, foi culpado de conduta indecente pela comisso e

intimado a um interrogatrio. Nele, o polmata recusou-se a responder aos

questionamentos, sendo, assim, por fim foi condenado priso domiciliar.

26 Lvvitch-Kostritsa, Seo 1274.

26

Foram tempos difceis. Ficou preso por oito meses e durante perodo adoeceu e

teve de suportar mais um perodo de necessidades financeiras, uma vez que seu soldo

tambm fora suspenso. Teve dificuldades para comprar alimento e remdios e no

conseguia de ningum dinheiro emprestado.27 Ele s seria posto em liberdade em janeiro

de 1744, ainda que sob uma dura sano: teve de receber por um ano apenas metade

de seu soldo e pedir perdo a todos os professores que ofendera nas querelas ocorridas

um ano antes. Sua situao se complicava, principalmente em vista do fato de que no

fim de 1743 sua esposa finalmente chegara com sua filha. Ele teria mais duas bocas

para alimentar. Mas as dificuldades, como j se viu, no foram as maiores de sua vida e

isso no o impediu de trabalhar. Pelo contrrio, foi um perodo extremamente produtivo

para Lomonssov, que usou o tempo para compor a estrutura geral de seus tratados

retricos e seu mais famoso poema, a Meditao Noturna sobre a Grandeza Divina por

Ocasio da Aurora Boreal junto com seu irmo menos ilustre, mas no menos belo, a

Meditao Matinal sobre a Grandeza Divina. Infelizmente no h espao o bastante aqui

para analis-los em detalhes, mas que pelo menos se lhes dediquem algumas linhas.

Os dois poemas podem ser classificados como odes espirituais, em uma matria

e forma similares a algumas feitas pelos dois grandes poetas contemporneos

Trediakvski e Sumarkov, em que se contempla toda a majestade e esplendor da

realidade, como reflexo da grandeza divina frente a insuficiente inteligncia humana.28 A

grande diferena e o fator que a faz sobressair-se s demais o fato de que elas so

escritas pela mente que mais amplamente atingiu o limite das diferentes reas do

conhecimento de ento e por um dos maiores versificadores do sculo na Rssia. Os

conhecimentos cientficos e o domnio da eloquncia adquiridos pelo jovem polmata (e

talvez sua triste condio no crcere) no decorrer desses anos terminou por criar estas

duas prolas que se tornariam cannicas na poesia russa. So construdos em uma

estrofe de seis versos com um esquema de rimas aBaBCC para a matinal e ABABCC

para a noturna. O esquema desta ltima que emprega apenas terminaes masculinas

nico em Lomonssov e contribui para o sentido de dvida, de exasperao com a

27 PSS. Tomo X. pg. 503. 28 Cf., por exemplo, Trediakvski, 2009, pg. 228: Ode XXVIII Sobre a Impermanncia do Mundo, ou, mais prximas na forma e tom, as odes espirituais de Sumarkov, como a Ode I Sobre a Majestade Divina. (1787. Tomo 1. pp. 115ff.)

27

prpria ignorncia em meio a tanto questionamento.29 Nos dois poemas faz-se uso

principalmente da descrio sublime dos fenmenos que esto sendo cantados, com

muitas perguntas retricas para enaltecer essas descries e o frequente uso do

discurso direto. Como o prprio ttulo diz, o poema em princpio uma ode de louvor ao

Criador, e como tal, segundo as regras do gnero, h diversos vocativos de

endereamento laudatrio que se faz a Deus. A Meditao Matinal trata basicamente da

grandeza divina a partir do tema do nascer do sol. O dstico final da primeira estrofe d

o tom dessas odes: Mira quo claro tanto esplendor / E v por ele o prprio Criador

(vv. 5, 6). Cenas descritivas do sol se seguem na est. 3 aps a condio dada na est. 2,

Se a ns mortais pudesse o dom ser dado (v. 7) de voar at o sol sem se queimar, e

impressionam por sua fora imagtica: Batem-se l incessantes gneas vagas / E no

se encontram margens aportveis, / Tormentas l de fogo entrechocadas / Revolvem-se

por eras incontveis. / Pedras l tal como gua em vapor fervem / Chuvas ardentes l ao

lume servem. (vv. 12-18). Tal fria retratada arrematada na estrofe seguinte com a

constatao de que toda esta imensido apenas uma fagulha frente grandeza do

Altssimo, e que por Ele e seu luzeiro que podemos tocar nossas vidas diariamente

dentro de nossa pequena parcela do Cosmo. A est. 5 a descrio do mundo iluminado

pelo sol, descrevendo todo o esplendor da existncia sob essa luz. Mas s teu olhar

penetra o fundo bratro / E no possui limite a tua cincia. / Do teu olhar, da claridade

tua, / Vem a alegria a toda criatura, como diz a est. 6, complementando a cena do

esplendor terrestre e traz a reflexo a respeito da inteligncia divina segundo concepes

geralmente esposadas por alguns nomes do Iluminismo, que prope um criador para o

universo, mas que no age diretamente sobre ele dando-lhe seguir seu curso segundo

as regras que Ele estabeleceu. A questo do chamado desmo de que seriam adeptos

nomes como Newton, Leibniz e o prprio Lomonssov bastante complexa e no pode

ser tratada aqui, mas estes poemas do uma medida, ainda que extremamente parcial,

de como Lomonssov via o fenmeno da criao e da ao de uma entidade metafsica

subjacente realidade.30 A est. 7 fecha o poema com uma invocao: Criador, a mim,

29 O efeito mais ou menos similar ao empregado quase duzentos anos depois por Ana Akhmtova no eplogo (II) de seu Rquiem, ainda que l a exasperao seja bem diferente. 30 A questo das concepes religiosas de Lomonssov extremamente controversa. Ao tratar esse assunto, seus comentadores soviticos so talvez unnimes em afirmar que o polmata era um fervoroso materialista e usava a

28

por trevas encoberto, / Verte todo o saber do teu luzir. / E o que for pelo teu desgnio

certo / Sempre ciente ensina-me a erigir / E, toda a criao a contemplar, / Ensina a ti

louvar, imortal Tsar!

A Meditao Noturna talvez o poema mais famoso do polmata. Sua publicao

inicial, entretanto, no serviu como um fim em si mesma, mas para ilustrar alguns anos

mais tarde um ponto de sua Retrica de 1748, cuja primeira verso, publicada em 1744,

foi principalmente elaborada no momento em que ele estava em priso domiciliar. O

poema, localizado na terceira parte, Disposio (Raspolojinie), serve para ilustrar um

entimema, um silogismo retrico que oculta uma de suas duas premissas, partindo

diretamente para a concluso. No 270, o retor diz que em vez de uma premissa, pode-

se colocar um desenvolvimento da ideia para ilustrar melhor a figura. O poema serve de

ilustrao para o seguinte entimema: No podemos conhecer tudo das criaturas,

portanto, o Criador inatingvel. Ento, usando o tema da noite, do mundo e da aurora

boreal, ele ilustra o desenvolvimento de um entimema na ode, um dos nicos poemas

integrais dispostos na Retrica de 1748.

O pretexto para o louvor a Deus um fenmeno que desde a infncia maravilhou

Lomonssov e que sempre recebeu dele uma grande ateno em suas investigaes

cientficas. A aurora boreal (sivernoe siinie, lit. apario setentrional) tem aqui um dos

mais belos poemas que lhe foram dedicados. Por sua importncia crtica e literria, o

poema entra obrigatoriamente em todas as coletneas poticas de Lomonssov e em

boa parte das crestomatias da poesia russa em geral. Um tema secundrio, ou pelo

menos a postura do sujeito potico que diz, assim eu nesse abismo submergido, / perco-

me em pensamentos, aturdido. (vv.15-16), a pequenez do ser humano frente o

esplendor da realidade e talvez um certo ceticismo com relao a sua capacidade de

conhece-la plenamente. A ode abre com uma estrofe descritiva sublime do crepsculo:

tradio crist como mero embelezamento retrico ou com o fim de evitar problemas com as autoridades. Cf., por exemplo, Pvlova, Fidorov, 1987, pp. 164ff, ou Vasetsky, 1968, pp. 238ff, ou os comentrios das Obras Completas em que se trata do assunto. inegvel, no entanto, que Lomonssov guardava grande respeito pela tradio crist e o fato de ele ter dedicado uma boa parte de sua obra filolgico/potica a ela j parece ser uma evidncia bastante eloquente disso. bvio que sua cosmoviso no era pautada segundo uma observncia estrita das Escrituras, mas tambm no to fcil afirmar peremptoriamente que elas no tinham a importncia que os autores acima a todo momento fazem questo de descartar. Para uma viso alternativa, justamente no tratamento dessas meditaes, cf. Moser 1971. pp. 189ff.

29

O dia vai ocultando sua face, / Aos campos a atra noite est a cobrir, / Nos montes sobe

a sombra num enlace / Curvando-se se foi a luz daqui. / Repleto abriu-se o abismo das

estrelas; / No h fundo nem nmero a cont-las. Passa-se ento na est. 2 descrio

da pequenez humana por meio de uma enumerao de quatro smiles de coisas

minsculas diante de espaos imensos, para ser arrematada no tenor ocupando o dstico

final dos vv. 15-16. A estrofe seguinte d um tom bastante ambguo ao poema, podendo

ser irnico ou no, um pouco ctico, com relao possibilidade de conhecimento

absoluto da realidade, disposta em discurso direto, imitando posicionamentos cientficos

frequentes ento, comeando com o verso: As vozes dos mais doutos asseguram (v.

17). Nelas se diz que l h profuso de outros mundos, com infinitos sois fulgurando e

gente vivendo no entorno desses sois. A posio de que havia outros seres em outros

pontos do universo era bastante polmica e foi proibida por setores da Igreja Ortodoxa

Russa. Alguns afirmam peremptoriamente que Lomonssov aqui estava desafiando

setores reacionrios eclesisticos da sociedade russa pela postulao direta da

existncia de extraterrestres, e sua viso de mundo totalmente materialista,31 mas no

h como descartar que pode haver um tom irnico, que aponte para um certo ceticismo

com relao s possibilidades ltimas do conhecimento humano.32 De qualquer forma, a

ode prossegue com a pergunta talvez mais repetida no decorrer da existncia do

polmata: Mas onde, natureza, est sua lei? A ento comea a bela descrio da aurora

boreal. Na estrofe seguinte h uma nova interpelao a aqueles cuja presena o olhar

ligeiro, grafa no livro as leis da eternidade, cientistas e filsofos da natureza. A pergunta

retrica final continua com um tom sardnico: Conheceis dos planetas cada rota. / dizei

ento o que tanto nos toca? A descrio continua na estrofe seguinte e arrematada na

est. 7 pela enumerao de explicaes que podem ser propostas para o fenmeno, a

bruma se choca com a gua, reflexos do brilho do sol, ondas que se chocam com o ar,

relmpagos sem nuvens de trovo. Uma dessas explicaes, o fato de que a aurora pode

ser causada por movimentaes no ter, foi exposta pelo prprio polmata em seu

trabalho Sobre as Aparies Etreas Eltricas de 1753.33 Essas explicaes, no entanto,

31 Por exemplo, Pvlova, Fidorov, 1987. pp. 227ff. e 298ff.; PSS. Tomo VII. pg. 912ff. 32 Moser, 1971. pg. 196. 33 PSS. Tomo III. pg. 123.

30

so arrematadas na ltima estrofe por Vossas respostas enchem-se de dvida / At

sobre o que est a nosso redor. (vv. 46-47) e prosseguem no tom de certa forma ctico

com relao s possibilidades do conhecimento humano. O dstico final do poema o

momento em que ocorre a concluso do entimema: Qual do ser seu ltimo valor? /

Dizei, por fim, quo grande o Criador? Concluindo seu poema mais famoso com esse

tom de dvida, Lomonssov deu uma grande interrogao e exasperao a boa parte de

seus crticos que tentaram fazer dele uma personalidade que consolidasse seus

princpios ideolgicos. Este um polmico poema em sua recepo posterior e um das

maiores prolas da poesia russa.

A chegada de Christina com a pequena Elena, pe um freio no temperamento

irascvel e conturbado de Lomonssov que lhe causou tantos problemas. A partir de

1744, sua produo intelectual aumenta consideravelmente e a partir de ento que

seus trabalhos mais importantes, tanto nas cincias naturais como nas letras, daro seus

maiores frutos. Nesse ano, escreve trs dissertaes: Sobre a Livre Circulao do Ar nas

Minas, sobre o Efeito dos Solventes Qumicos em Geral e, a primeira verso do mais

importante dos trs, Reflexes Fsicas sobre as Causas do Calor e do Frio, em que o

calor dos corpos consiste em seu movimento interno,34 ressaltando as propostas de

grandes nomes anteriores como Bacon, Boyle e Newton, e dando importantes

contribuies prprias para a teoria cintico-molecular. Aqui pela primeira vez ele opera

com os conceitos gerais da conservao da matria, que seriam mais tarde

desenvolvidos no que na Rssia conhecido por Lei de Lomonssov. As trs obras

ensejaram o pedido do professor adjunto a ser promovido a professor pleno, chamado

Acadmico ento. Em abril de 1745 ele manda uma carta Academia pedindo sua

incluso nos quadros.35 Nela ele lista todos os ramos do saber a que se dedicou, todas

as tradues que fez do alemo, francs e latim e, por fim, seus mais recentes trabalhos

um livro sobre minerao e uma retrica, que mais tarde seria reelaborada no primeiro

grande tratado do gnero em lngua russa. O pedido foi considerado, mas a Assembleia

Acadmica requisitou que ele antes apresentasse um ltimo trabalho, com um tema que

fosse o mais adequado situao atual das cincias, segundo seu juzo. Em 14 de junho,

34 PSS. Tomo I. pg. 127. 35 PSS. Tomo X. pp. 338-339.

31

o adjunto apresenta a dissertao, Sobre o Brilho Metlico, e, ao analis-la, a Assembleia

decidiu que as mostras de sabedoria dadas pelo senhor adjunto, fazem-no digno de ser

elevado ao posto de Professor da Ctedra de Qumica.36 Lomonssov foi um dos

primeiros russos a integrarem os quadros da instituio. Seu soldo, entretanto, demorou

a ser estipulado, continuou sendo pago como adjunto e apenas um ano depois foi

estabelecido que recebesse 660 rublos anuais, uma soma considervel para a poca.

Data dessa poca tambm a redao do importantssimo Fundamentos da Metalurgia e

Minerao, livro que s seria publicado em 1762, mas que considerado por muitos o

documento terico fundacional da ocupao na Rssia. uma obra enciclopdica, com

a catalogao de todos os minrios ento conhecidos, com slida fundamentao terica

e, principalmente, uma abordagem extremamente didtica para a resoluo de questes

prticas relacionadas disciplina. O manual ilustrado com uma srie de imagens

desenhadas pelo prprio autor, de modo a parecer o mais didtico e formativo possvel.

L encontram-se desenhos dos equipamentos, locais e modos de produo e instalaes

necessrias para o domnio da ocupao, extremamente bem detalhados e explicados.

Este manual, com tiragem inicial da primeira edio de 1225 exemplares enviados a

todas as partes do Imprio, foi uma das obras de maior repercusso do polmata e

serviram como guia de muitas geraes de engenheiros no pas.37

No decorrer do ano, Lomonssov continuou a presso para a construo de um

laboratrio de qumica enviando diversos pedidos para tal. Nesse nterim ele conseguiu

o apoio de outros colegas que adicionaram suas queixas aos seus pedidos. A carta

enviada ao Senado Imperial, assinada por todos os membros da Assembleia datada de

15 de dezembro de 1745 dizia da grande necessidade para o pas de se construir um

laboratrio de qumica, fechando o documento ao afirmar que um professor sem

laboratrio como um astrnomo sem observatrio e seus instrumentos necessrios.38

No ano seguinte o Senado deu a ordem para a construo do primeiro laboratrio de

qumica do pas, segundo um projeto elaborado por Lomonssov, de acordo com o que

ele observou em Marburgo e Freiberg e com todo o conhecimento adquirido na rea at

36 Pvlova, Fidorov, 1987. pg. 96. 37 Ibid. pp. 256ff. 38 PSS. Tomo IX. pp. 28.

32

ento. Ainda demorariam dois anos at que ele fosse concludo, mas era mais uma

contribuio que o pomor dava sua to amada Rssia. Concludo, o laboratrio foi a

principal instituio de pesquisa cientfica experimental do pas enquanto Lomonssov l

trabalhou e um pouco depois quando este passou seus encargos dez anos depois para

o qumico alemo lrich Chistoff Salchow. O laboratrio fechou suas portas no final do

sculo XVIII e durante mais de 70 anos a Academia no disps de um espao para

experincias cientficas satisfatrio, s sendo construdo outro em 1867, com os projetos

propostos por Lomonssov servindo-lhe de base.

Com o posto de professor aumentam no s os encargos e as responsabilidades

sobre o polmata, mas tambm sua autoridade, ainda que demorasse mais um pouco at

ele ser contemplado com uma posio no Quadro de Classes, o sistema de posies e

patentes do funcionalismo pblico e militar desenvolvido por Pedro I. Entre os anos de

1746 e 1751 ele produz trabalhos bastante significativos. Em 1746, publicada sua

traduo mais importante, a Fsica Elementar de seu professor Christian Wolff, uma das

obras mais importantes na formao de jovens cientistas de ento. Indiretamente ela

trouxe contribuies significativas tambm para a lngua russa, uma vez que a

quantidade de palavras novas para nomear elementos, procedimentos, equipamentos,

frmulas etc. acabou por ser um dos documentos mais importantes no estabelecimento

na nomenclatura cientfica da lngua. Palavras como diametr, qvadrat, formula, barometr,

atmosfiera, etc. entraram pela primeira vez no lxico da lngua russa, contribuindo em

muito para a consolidao da cincia no pas. tambm uma defesa clara da concepo

cartesiana de mundo, em muitos pontos polmica contra o aristotelismo escolstico

dominante nas principais instituies de educao russas. Apenas por essa traduo,

v-se o quanto o grande cientista era na mesma proporo um mestre das letras. Seu

estilo claro, simples, vrias vezes inventivo na busca de solues tradutolgicas e

bastante fiel dentro das possibilidades ao original foi responsvel por lhe render um

grande reconhecimento como tradutor. Aps ela a Academia o encarregou no s de

novas tradues, como tambm do servio de revisor de outras enviadas instituio.

Lomonssov era um tradutor completo. Exceleu em todos os campos da atividade, tanto

na traduo potica e na artstica em prosa, quanto na tcnica. Tinha plena conscincia

da srie de registros lingusticos a serem correspondidos entre as lnguas, era de uma

33

grande inventividade na busca pelas analogias formais to necessrias na poesia e tinha

a medida ideal entre o respeito pelo texto e a necessidade de criao muitas vezes

exigida do tradutor. Tinha o decoro tradutrio perfeito.

Tambm toma parte da redao do peridico Sanktpeterburgskie Vidomosti,

Notcias de So Petersburgo, e seus suplementos cientficos, os Komnetarii e os Novye

Komentarii, Comentrios e Novos Comentrios. Esses comentrios publicavam os

principais trabalhos produzidos na Academia e Lomonssov foi um de seus maiores

colaboradores, publicando por eles a maior parte de suas dissertaes. Em 47 termina

a reelaborao de seu primeiro manual de retrica de 1744, batizado de Breve Guia para

a Eloquncia, publicado no ano seguinte, que, como j foi dito e ser ainda ressaltado,

seria o primeiro tratado retrico escrito na lngua russa que se formava. Data do mesmo

ano uma de suas mais famosas e melhores odes solenes, a Sobre a Ascenso ao Trono

de Elizabete Petrovna, um de seus maiores feitos literrios. Este tambm o perodo em

que ele mais trabalhou no que ele prprio chamou Ndpis, como calque Sobrescrito,

como traduo, Inscrio, poemas curtos, de natureza epigramtica,39 que geralmente

eram compostos para cerimnias da corte em que serviam de suporte verbal para

iluminuras, fogos de artifcio e mascaradas, com a representao alegrica do monarca.

Eles serviam tambm para outros fins, como inscries a esttuas e outros

monumentos.40 O poeta escreveu mais de trinta e sete em sua vida sendo esse o gnero

literrio em que mais praticou. Ele no deve ser confundido com o epigrama, que nessa

poca era um poema breve de carter ferino com finalidade ao vituprio ou chacota de

determinada pessoa ou figura pblica. O poeta tambm escreveu uma srie destes, mas

no se comparam em nmero s Inscries.

Em 48, na continuao de suas posies na questo atmico-molecular,

expostas no trabalho sobre as causas do frio e calor, escreve em latim as Experincias

da Teoria sobre a Resistncia do Ar, um trabalho muito comentado e debatido, que fez

com que ele se debruasse na questo, com vrios experimentos no laboratrio por

39 Segundo a definio antiga, alexandrina, de epigrama como consta na Antologia Palatina. 40 A mais famosa, a Inscrio Esttua de Pedro, o Grande (1750), foi inicialmente pensada como suporte verbal para uma esttua equestre do Imperador, que seria construda no Castelo do Engenheiro, atual Castelo de So Miguel em So Petersburgo. Ela no foi construda, mas o poema ficou. (PSS. Tomo VIII. Poema 162. pg. 284).

34

anos.41 Esse trabalho revelava parte da concepo atmico molecular defendida por

Lomonssov, que mais tarde o levaria a concluses a respeito de uma questo muito

debatida at ento, a da lei da conservao da matria. Lomonssov nunca reclamou

para si o ttulo de descobridor ou postulador de uma lei universal nesse sentido como o

fez algumas dcadas mais tarde Antoine de Lavoisier. Mas a noo sempre acompanhou

o polmata, como demonstrado em uma longa carta datada de 5 de julho de 1748 ao

talvez mais clebre de todos os membros da Academia Imperial de Cincia, o

mundialmente famoso matemtico Leonard Euler. A carta uma resposta ao

matemtico, que propusera ao russo escrever uma dissertao e envi-la a um concurso

cientfico em Berlim explicando a origem do salitre. Ela em si um tratado cientfico em

forma epistolar, que celebrada por muitos, principalmente por pesquisadores

soviticos, como a primeira vez na histria cientfica em que mencionada a lei da

conservao da matria e movimento e que a formulao de uma lei geral da natureza

um dos feitos mais importantes de Lomonssov na histria do desenvolvimento de uma

filosofia materialista.42 O polmata faria outros experimentos mais frente que

ressaltariam a proposta. Quem entrou para a histria, entretanto, como o primeiro a

propor a lei foi Lavoisier, talvez pela elegncia com que foi exposta e pela relevncia e

autoridade que o francs adquiriu no desenvolvimento da qumica moderna.

Em 1750, Lomonssov escreve sua primeira epstola em versos ao grande

homem de estado, homem de letras e mecenas do perodo elisabetano Ivan Ivnovitch

Chuvlov. Primo de Alexander e Piotr, duas peas centrais no golpe palaciano que levou

Elizabete Petrovna ao poder, ele depressa se tornou um dos favoritos da Imperatriz,

ocupando posio de destaque em seu reinado. Lomonssov se aproximara deste

amante das belas artes alguns anos antes, como seu professor particular de eloquncia

e potica e logo adentraria em seu crculo de amizades, participando de diversos jantares

e festas em sua casa. Por causa de sua amizade, Lomonssov conseguiu realizar

diversos projetos, deixando-nos por conta dela algumas obras poticas centrais em sua

obra. A Carta ao Excelentssimo Ivan Ivnovitch Chuvlov43 o primeiro exemplar desta

41 PSS. Tomo II. pg. 109. 42 PSS. Tomo II. pp. 662-663. 43 PSS. Tomo VIII. Poema 164. pp. 289-290.

35

correspondncia, que representou o grosso de sua produo no gnero epistolar. Esta

primeira carta um breve poema de 36 versos, que louva o estado russo escabeado

pela Imperatriz. A relao entre Chuvlov e Lomonssov foi uma das mais importantes

amizades da Rssia do sculo XVIII. Por causa dela, algumas instituies que at hoje

fazem parte da estrutura cultural e cientfica do pas foram criadas, bem como algumas

das mais importantes obras poticas de Lomonssov. A insistncia de Chuvlov com

que o polmata se dedicasse mais s humanidades em detrimento da filosofia natural s

foi benfica paras as letras russas, sem prejudicar em nada a parte cientista de

Lomonssov. O homem simplesmente se dedicou igualmente aos dois universos...

Data do mesmo ano a primeira de duas tragdias escritas por Lomonssov,

Tamira e Selim. Com a fama consolidada principalmente pelas odes solenes e pelos

discursos que agradaram muito monarca, a prpria Elizabete requisitou do polmata a

composio de uma tragdia que tivesse a histria da Rssia como pano de fundo.

Tamira e Selim uma tragdia composta nos moldes do teatro clssico francs, em

hexmetros imbicos, com rimas pareadas alternando entre masculinas e femininas em

cinco atos cuja trama tem por base o assassinato de Mamai, o lder dos trtaros da Horda

Dourada que foi derrotado na batalha de Kulikovo por Dmtri Donski, impondo aos

trtaros-mongis sua primeira derrota decisiva e chacoalhando o jugo que cairia

oficialmente um sculo depois em 1480. Aps sua fuga com outros quatro comandantes

para uma cidade na Crimeia, onde ele acaba sendo assassinado por um deles. Antes

disso, o prncipe da Crimeia, Mumiet, cuja filha Tamira estava prometida a Mamai,

enviara seu filho, Narsim, para a campanha mongol na Rssia. A ausncia dessas foras

causou uma guerra entre o prncipe de Bagd, Selim, e Mumiet, que aps sofrer algumas

derrotas, entra em negociaes com seu inimigo e acaba por consolidar uma trgua. A

ao comea a. A tragdia teve um moderado sucesso em sua poca, rapidamente

esgotando a primeira edio e sendo montada duas vezes na corte, pelo corpo de

cadetes do batalho Preobrajnski. Escrita no auge das polmicas literrias contra

Alexander Petrvitch Sumarkov, recebeu deste e de um de seus apoiadores um breve

libreto que satirizava o Racine sem querer, aluso ao polmata-dramaturgo.44

44 PSS. Tomo VIII. pp. 971-975.

36

A outra tragdia, Demofont, publicada um ano depois, escrita no mesmo metro,

tambm em cinco atos, mas tem como tema a Grcia mitolgica com Demofonte, o filho

de Teseu como personagem principal. A histria bastante obscura na antiguidade e o

mais prximo que se encontra dela o raro mito de Filis e Demofonte.45 Filho do rei

ateniense, Teseu, e participante da guerra e destruio de Troia, Demofonte, ao voltar

da expedio acometido por uma tempestade e acaba aportando nas terras da Trcia.

L a princesa Flis, filha do finado rei Licurgo da Trcia, e criada pelo atual regente

Polimnstor, conhece o ateniense e se envolve em uma trrida paixo com ele. O regente

estava ausente por conta de uma guerra contra os Citas, e a princesa prope a

Demofonte casar-se com ele e tomar para si o poder exilando o regente ausente. Antes

disso, entretanto, antes da destruio de Troia, o rei Pramo enviara sua filha Ilona para

a Trcia, de modo a salv-la. Demofonte, ao conhec-la tem sentimentos ambguos para

com a moa, acabando por se apaixonar por ela. Em sua indeciso Polimnstor regressa

e a se tem o incio da ao. Demofonte no recebeu a mesma ateno que Tamira e

Selim e no h notcia de que tenha sido montada. A obra dramtica de Lomonssov

no foi to popular e no to reputada quanto a do maior dramaturgo, tanto em

quantidade como em qualidade do perodo, Alexander Sumarkov. De qualquer maneira,

com as duas tragdias, Lomonssov um dos principais nomes do drama russo do

sculo XVIII e deve ser lido por qualquer um que deseje estud-lo.

Um outro campo das humanidades em que o polmata foi fundamental, tambm

muito incentivado por Chuvlov, foi a histria. Lomonssov sempre teve contato com os

monumentos historiogrficos da antiga Rssia, como as crnicas de Nstor e de

Nvgorod, desde sua infncia e adolescncia no Norte e depois quando estudou tanto

na Academia Eslavo-Greco-Latina e na Academia de Kiev. Os conhecimentos herdados

45 um mito muito pouco atualizado. H a verso apresentada nos comentrios de Srvio Honorato cloga V (v. 10 Phyllidis ignes), em que Flis, filha do rei Sitnio, se envolve com Demofonte, regresso de Troia, que depois a deixa prometendo que voltaria. Com a demora a moa acaba se matando e se converte em uma aveleira. Outra instncia em Apolodoro, que conta o fim de Demofonte. Ao regressar a Atenas, ele abre uma caixa dada por Flis, para ser aberta caso ele no voltasse, e l se depara com um horror tamanho, que sai para galopar, caindo do cavalo e morrendo sobre sua espada. A apropriao mais famosa est em Ovdio: Heroides. II, chama-se Flis a Demofonte e uma epstola dsticos elegacos em que a amante abandonada expe sua pobre condio ao ingrato Demofonte. Lomonssov apropriou-se bastante originalmente do mito, introduzindo uma srie de elementos tirados simplesmente de seu engenho. PSS. Tomo VIII. pg. 993 nos informa que a verso do comentador do sc. XVII Daniel Helvetius, contm uma verso similar usada por Lomonssov. Infelizmente no foi possvel conferi-la.

37

dessa paixo foram requisitados pela primeira vez no final dos anos 1740, quando toma

parte nos primeiros debates historiogrficos envolvendo o historiador e membro da

Academia de Cincias, Gerhard-Friedrich Mller. Mller foi um importante nome da

instituio na poca por ter sido um dos organizadores da primeira expedio a

Kamtchatka, passar dez anos na Sibria por conta dessa expedio, coletar l

importantes documentos historiogrficos para o pas e compor obras historiogrficas

influentes. Essas obras, como a Histria da Sibria, garantiram uma primeira divulgao

da histria do pas no ocidente. Em uma reunio solene da Academia em 1749, Mller e

Lomonssov foram requisitados a apresentar este um panegrico solene para a

Imperatriz, aquele um discurso de contedo histrico. O discurso de Lomonssov, o

Discurso Panegrico Soberana Elizabete Petrovna de 26 de Novembro de 1749, a

aplicao de boa parte dos princpios expostos no manual de retrica escrito dois anos

antes e um dos marcos da oratria no primeiro desenvolvimento da lngua russa, sendo

aclamado inicialmente por seus pares, mas recusado posteriormente como modelo para

a prosa russa em geral.46 O discurso de Mller, Origem do Nome e do Povo Russo, no

entanto recebeu diversas crticas, encabeadas pelo prprio Lomonssov. O discurso de

Mller estava embasado em uma teoria da origem dos russos centrada na ideia de que

estes teriam sido descendentes dos normandos, inclusive devendo o prprio nome das

terras, Rus, a eles. O polmata criticou o discurso de Mller principalmente pelo fato de

ele desconsiderar em grande medida as fontes mais antigas dos cronistas da Rus e se

basear principalmente em trabalhos de historiadores estrangeiros. As opinies de Mller

de que os variagues, os fundadores do estado russo, eram normandos foram rebatidas

por alguns argumentos de Lomonssov de que estes teriam sido de origem eslava e

falado uma lngua eslava e de que o nome Rus era da mesma origem. Esta resenha

crtica foi uma das primeiras obras historiogrficas de Lomonssov, que alguns anos

depois escreveria o primeiro volume de um trabalho mais ambicioso, que no foi

materializado. A Histria da Antiga Rssia um trabalho de cerca de 170 pginas que

pretendeu cobrir o perodo entre as primeiras menes dos habitantes da regio e o final

46 Um dos motivos por que Pchkin entre outros consideraram a influncia de Lomonssov danosa nas letras russas ilustrado neste e em outro panegrico dedicado a Pedro, o Grande, escritos pelo polmata. O uso de uma sintaxe que buscava emular os grandes oradores clssicos, como Ccero em sua lngua original, traa certa naturalidade da lngua, cuja prosa seria posteriormente aperfeioada.

38

do reinado de Iaroslav I, o sbio, neto de Vladimir I, o Grande, o responsvel pela

cristianizao do pas. A obra revela um grande conhecimento dos monumentos

histricos e documentos da literatura russa antiga, bem como um bom domnio das

fontes contemporneas, como o primeiro historiador russo moderno, Vassli Niktitch

Tatschev (1686-1750) e pretendeu ser um documento bem fundamentado teoricamente

e ao mesmo tempo acessvel para um amplo crculo de leitores. Esta no foi a nica obra

historiogrfica importante do polmata. Em 1760 ele publica uma Breve Crnica da

Rssia com uma Genealogia, um resumo sucinto da histria russa a partir da observao

de seus governantes. Alm disso, revisou vrios trabalhos historiogrficos de outros

estudiosos, entre os quais os rascunhos de A Histria do Imprio Russo sob Pedro, o

Grande, obra mais tarde publicada em 1761, que popularizou imensamente a figura do

monarca no ocidente, escrita por um de seus maiores prosadores, Voltaire. A data da

reviso dos rascunhos data de 1757 e l v-se frases como, O sr. V. deveria deixar de

lado tais descries da Rssia, ou, se quiser continuar, que venha at aqui v-la por si

s, colocando-se sob minha superviso. 47 As atividades de Lomonssov no campo da

histria consagraram seu nome em mais uma rea do saber. Suas obras foram

traduzidas e publicadas no estrangeiro e gozaram de uma boa popularidade entre alguns

nomes do final do sc. XVIII e incio do XIX, como Radschev e alguns dezembristas.

1751 foi o ano em que o poeta mais praticou em uma subdiviso do gnero ode,

que representava uma tradio de pelo menos 150 anos na Rssia. A chamada ode

espiritual continha alguns tipos de poemas espirituais cristos, o mais importante dos

quais, a parfrase de textos ditos poticos do Velho Testamento. Principalmente no

ltimo quarto do sculo XVII, com os poemas do monge Simeon Plotski, os Salmos, o

Livro de J, o Cntico dos Cnticos, todos foram parafraseados em metro e rimas,

formando poemas autnomos. No XVIII, a maior parte dos grandes poetas continuaram

essa tradio deixando obras bastante consistentes. Lomonssov foi um deles e de

1751 que datam suas mais importantes composies no gnero. As Parfrases aos

Salmos 1, 26, 34, 7048 so parte da produo de Lomonssov no gnero. Estes poemas

47 PSS. Tomo VI. pp. 92-93. 48 Numerados segundo a tradio greco-eslavnica. A tradio hebraica conta as composies 10 a 148 uma unidade frente. Cf. Bblia de Jerusalm, 2002. pp. 858ff.

39

so compostos em quartetos com um esquema de rimas aBaB, geralmente em

tetrmetros imbicos. O 2