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Militantes, atores políticos e biografados: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.
MÍRIAN CRISTINA DE MOURA GARRIDO
As relações raciais brasileiras e as formas como elas se consolidaram no Brasil estão
no foco das discussões acadêmicas e políticas no país. O confronto não é novo, mas a forma
como tem sido debatido e a visibilidade que tem ganhado são um fenômeno novo e, em
grande medida, fruto de uma militância aguerrida que emergiu na década de 1970 para
denunciar o mito da democracia racial e o efeito danoso que ele causa na sociedade brasileira.
Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994) possuem, com toda
a certeza, um espaço privilegiado nesse novo movimento negro combativo politicamente e
que enxergou na esfera política o meio privilegiado de reverter o preterimento do negro no
país. Vinte e um anos de diferença separam o nascimento de Abdias ao de Lélia, as
experiências e os contextos em que viveram também são caracterizados por essa distância,
contudo ambos se unem em prol de um bem comum: a denúncia e a superação dos danos
materiais e simbólicos causados pelo racismo.
O artigo que por ora se apresenta no XXVIII Simpósio Nacional de História é parte de
discussões mais amplas que serão o produto final do doutoramento da autora. Efetivada a
ressalva, espera-se que se compreendam as limitações do texto delineado. Mas ao mesmo
tempo, que o escrito possa contribuir para o alargamento das discussões sobre raça e racismo.
Para tornar o intento mais didático e a fim de explorar a relação entre os biografados,
os contextos de suas vivências e como influíram num processo maior – o da ampliação de
direitos dos negros brasileiros -, o texto está dividido em 2 partes: a primeira com
considerações metodológicas e caracterização dos autores das obras a segunda uma
explanação sobre a apreensão das visões de mundo dos dois militantes dispostas nessas obras.
Biografias e autobiografia: breve incursão.
A década de 1990 caracterizou um boom editorial, desde então, o gênero tem se
manifestado amplamente nos catálogos das editoras porque são, sem sombra de dúvida, uma
literatura que agrada o público, inclusive o acadêmico. O salto quantitativo das produções já
foi alvo de reflexões e vale aqui apontar algumas das considerações elencadas por elas.
Doutoranda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
UNESP/Assis, Agência Financiadora: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP.
2
O historiado e especialista em biografias Benito Bisso Schmidt (1997) propõe no texto
em questão analisar como se constituiu a volta da produção do gênero e demarcar
aproximações e distanciamentos entre o produto do historiador para o do jornalista. A
vitalidade da biografia no jornalismo está segundo o autor associado ao movimento chamado
new journalism que, resumidamente, define-se pela aplicação de técnicas ficcionais a textos
que não são ficção, tais como a história de vida. No caso da história, a biografia ganha folego
com o enfraquecimento do paradigma estruturalista na academia.
Partindo da concepção de estruturalismo como uma forma de visualizar a história em
seus mecanismos mais amplos, ligados geralmente aos aspectos econômicos, era difícil de
fato na historiografia brasileira emplacar um estudo que tomasse por objeto a vida de um
indivíduo. Mesmo porque a biografia antes de 1960, ao menos no Brasil, ainda carregava o
fardo de uma visão positivista da História no qual os biografados eram os homens
excepcionais, tais como os grandes líderes políticos.
Benito Schmidt afirma que o desenvolvimento da biografia feita por historiadores foi
favorecida pelo “recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da
micro-história” (1997, p.5). Soma-se a esse cenário, tanto no jornalismo como na história, a
aproximação desses campos com a literatura. Mas as diferenças mais elementares na produção
das duas áreas seriam: (a) o cuidado com as fontes, não apenas no seu levantamento
incansável, caso dos jornalistas, mas na transposição dessas informações ao leitor,
identificando o que pode ser obtido ou não com determinadas fontes; (b) a liberdade ficcional
maior ao jornalista, ao passo que o historiador quando deseja supor algo que não se encontra
na fonte é necessário efetivar a ressalva que o fato “talvez”, “possivelmente” deve ter se
desenrolado como o narrado; (c) o objetivo da biografia em história, em geral, associado a
apreensão de contextos e questões mais amplas do que a trajetória individual, sendo esta uma
forma de compreender parte desse objetivo.
Apenas para exemplificar essa liberdade ficcional nos textos selecionados, quando
Sandra Almada – jornalista – descreve como era viver em Franca no período próximo ao fim
da escravidão afirma “Era um privilégio poder ver através dos olhos de Abdias, que assistira
àquele momento tão significativo, e tão de perto, como transcorria a existência negra naquele
início de século” (2009, p.24 – grifos da autora).
Para Ângela de Castro Gomes (2004) “Cartas, diários íntimos e memórias, entre
outros, sempre tiveram autores e leitores, mas na última década, no Brasil e no mundo,
3
ganharam um reconhecimento e uma visibilidade bem maior, tanto no mercado editorial,
quanto na academia” (p.8). O fenômeno é apontado como resultado de três fatores: o gosto
dos leitores; a expansão de uma historiografia que aborda preocupações da esfera política,
cultural e social, e que tem se ocupado em desvendar as práticas de escrita e leitura; a
constituição de centros de pesquisa e documentação que armazenam diversos documentos
privados e públicos e que, portanto, estimulam discussões sobre a guarda e uso desses
materiais, dos quais exemplifica o CPDOC centro de pesquisa do qual é integrante.
Para Gomes estaria na preocupação do historiador ligado a escrita de si não “o que
realmente aconteceu” mas “a ótica assumida pelo registro e como seu autor a expressa” (2004,
p.15), no caso da história de vida de militantes – seja de qualquer ordem, movimento social
negro, feminista, ambientalista, etc. – o registro de sua vida se dá exatamente pela sua ligação
ao movimento social e, nada mais natural, que a narrativa seja construída em torno dessa
preocupação do biografado, no caso, como perceberam o racismo e o que os levaram a militar
em prol de uma mudança das relações raciais em âmbito internacional, inclusive.
De acordo com Schmidt “penso ser importante destacar uma das tarefas fundamentais
do gênero biográfico na atualidade é recuperar a tensão, e não a oposição, entre o individual e
o social” (1997,p.16 – grifos do autor), a definição, vai ao encontro do que se espera das
biografias dos militantes. Nelas o indivíduo é focalizado, mas a grande questão é como eles
apreenderam as relações raciais que os transformaram, então, em militantes.
A metáfora do historiador francês Philippe Artières (1998) ilustra parte das
preocupações daquele que faz uso de biografias:
[...] Em toda família, existe com efeito o hábito de dedicar regularmente
longas tardes a reunir e a organizar as fotos relacionadas com a vida de cada
um dos seus membros. Um casamento, um nascimento, uma viagem são
objeto de uma ou de várias páginas. Não colocamos qualquer foto nos nossos
álbuns. Escolhemos as mais bonitas ou aquelas que julgamos mais
significativas; jogamos fora aqueles em que alguém está fazendo uma careta,
ou em que aparece uma figura anônima. E depois as ordenamos esforçando-
nos para reconstruir uma narrativa. Quando a foto é muito enigmática,
acrescentamos um comentário. Quando uma visita chega, começa a
cerimônia das fotos, fazem-se observações, viram-se algumas páginas
rapidamente. Acontece também, com o tempo, de algumas fotos serem
retiradas, porque são comprometedoras, porque não são condizentes com a
imagem que queremos das de nós mesmos e da nossa família. Pois o álbum
de retratos constitui a memória oficial da família; só raramente os amigos
tem lugar nele. O essencial é que em alguns minutos, uma hora no máximo,
possamos justificar o tempo passado e sua coerência. [...] (p.14)
4
Portanto, aquele que se propõe a arquivar a sua própria vida preocupa-se – consciente
ou inconscientemente – primeiro a organizar aquilo que acredita ser relevante; hierarquizar e
selecionar, determinando assim o grau de relevância que o indivíduo atribui a determinado
objeto de arquivamento; e se responsabiliza por guardar esses arquivos. Mais do que
produtores de memórias: “Sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor
autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda nossos colegas)”
(ARTIÈRES, 1998, p.34).
No caso dos militantes negros, suas biografias são produzidas muitas vezes por
indivíduos também envolvidos no movimento negro e, portanto, simpáticos as causas dos
biografados. Flávia Rios, por exemplo, construiu sua trajetória acadêmica dentre os temas
raciais e as lutas anti-racistas1 e, é autora de textos biográficos de outros 3 indivíduos
relacionados ao movimento negro ou a identidade negra (Thereza Santos, Hamilton Cardoso,
Carolina de Jesus) ; e Sandra Almada, declaradamente militante do movimento negro e
estudiosa das relações raciais2, também autora do livro que narra a trajetória de 4
personalidades femininas do meio artístico ligadas a luta contra a discriminação.
As duas biografias utilizadas são fruto da Coleção Retratos do Brasil Negro, uma
iniciativa do Grupo Summus publicada pelo Selo Negro – uma das editoras do grupo – e, cujo
objetivo é abordar a vida e obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da militância
negra, segundo o site da editora. Os livros são, portanto, obras encomendadas com um
objetivo pré-estabelecido e seus autores, ao que tudo indica, selecionados pela proximidade de
pesquisa ou de vivência com a militância negra, dos selecionados nenhum é historiador. Faz
parte da coleção até o momento biografias de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli
Carneiro, Nei Lopes, Cruz e Souza, João Candido, Luiz Gama, Lima Barreto, e a história do
Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) do qual são provenientes parte importante dos
indivíduos que formaram o Movimento Negro Unificado em 1978.
O livro de Abdias do Nascimento, com coautoria de Elé Semog, selecionado como
uma das fontes de discussão para esse texto consiste numa autobiografia, para a qual estou
atenta sobre a constituição do documento, sabendo que “Numa autobiografia, a prática mais
acabada desse arquivamento [da própria vida], não só escolhemos alguns acontecimentos,
1 Informação obtida em: Grupo Summus. Disponível em:
http://www.gruposummus.com.br/selonegro/autor//Flavia+Rios Acesso em: 11 ago 2014. 2 CULTNE – Damas Negras – Sandra Almada. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=hFsYgx7ph90 Acesso em 02 de jun 2015.
5
como os ordenamos numa narrativa; a escolha e a classificação dos acontecimentos
determinam o sentido que desejamos dar às nossas vidas.” (ARTIÈRES, 1998, p.10). A
autobiografia em questão demarca claramente o que é fruto das entrevistas – portanto
narrativa de Abdias – e o que consiste das impressões e comentários adicionais de Semog,
portanto a coautoria não prejudica o acesso a construção da narrativa de Abdias do
Nascimento, na época já bastante idoso para realizar o intento sozinho. De forma geral é
válido ter em mente que:
Passamos assim o tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos,
desarrumamos, reclassificamos. Por meio dessas práticas minúsculas,
construímos uma imagem, para nós mesmos e às vezes para os outros [...] O
arquivamento do eu não é uma pratica neutra; é muitas vezes a única ocasião
de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser
visto (ARTIÈRES, 1998, p.10-31)
Atenta a Ilusão Biográfica, a leitura e análise das biografias e autobiografias partiu do
pressuposto que a linearidade imposta no texto, a ausência de conflitos nas ações – dúvidas
normais em tomadas de decisão -, o escrito e o ocultado, fazem parte da construção da
imagem ou identidade que o biografado desejou tornar público3. Porém, essas considerações
de forma alguma invalidam o uso e análise dessas fontes na pesquisa acadêmica, inclusive
porque permite acesso exatamente ao que almejo: a visão de mundo construído por Abdias do
Nascimento e Lélia Gonzalez e por eles transformados em estratégias do movimento negro.
Para completar uma explanação rápida das fontes selecionadas aponto a escolha do
texto de autoria de Lélia Gonzalez no livro Lugar de Negro. Não se trata diretamente de uma
autobiografia, mas a construção pela autora da trajetória dos movimentos negros brasileiros
em diferentes períodos e suas formas de atuação. Contudo, a ênfase recai sobre o movimento
articulado em 1978 da qual a autora foi personagem ativo e isso transparece na escrita do
texto, por isso, considerado por mim também um relato de vida.
A tabela a seguir busca de forma didática sistematizar as informações relativas aos
autores das obras selecionadas nesse artigo como fonte e suas possíveis inspirações para a
produção das mesmas. Efetivada essas considerações a próxima sessão trabalhará
efetivamente com o conteúdo das biografias e autobiografias.
3 Cf. BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína. Usos & Abusos da
História Oral. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1988.
6
Nome do
autor / obra
Área de trabalho/estudo Informações relevantes sobre
autores e suas obras
Sandra
Almada.
Abdias
Nascimento.
Jornalista, Mestre em Comunicação pela
Universidade do Rio de Janeiro, tem por
estudo os temas mídia e representação,
segundo lattes da pesquisadora. Leciona
atualmente na Universidade Estácio de Sá.
Também autora de outra obra
biográfica: Damas Negras –
Sucessos, lutas, discriminação:
Chica Xavier, Léa Garcia, Ruth de
Souza, Zezé Motta. 1.ed. Rio de
Janeiro: Mauad, 1995.
Alex Ratts.
Lélia
Gonzalez.
Doutor em Antropologia pela USP é professor
na Universidade de Goiás, como não mantêm
currículo lattes, as informações do grupo
summus são de que atua nos temas: quilombos
e relações raciais.
Flávia Rios.
Lélia
Gonzalez.
Graduada em Ciências Sociais é também
doutora na área tendo por orientadores
especialistas reconhecidos internacionalmente
(Antonio Sérgio Guimarães e Edward Telles).
Os temas de investigação são: gênero, ações
coletivas, relações raciais e ações afirmativas
no ensino superior. Atualmente leciona no
Instituto Federal de São Paulo.
Possui textos biográficos de outros
militantes (Hamilton Cardoso e
Thereza Santos) e personagens
importantes para a identidade
negra (Carolina de Jesus).4
Éle Semog.
Abdias do
Nascimento: o
griot e as
muralhas.
Poeta, escritor, não há indicações sobre
formação superior. Militante em entidades
negras, em especial fundação CEAP (Centro
de Articulação das Populações
Marginalizadas). Concorreu em 1998 ao cargo
de deputado federal pelo PDT.
Afirma ter conhecido Abdias do
Nascimento no Congresso, para o
qual na década de 1990 se tornou
assessor e amigo íntimo.
Abdias do
Nascimento.
Abdias do
Nascimento: o
griot e as
muralhas.
Graduado em Economia, na época
Universidade do Brasil. Literato, artista
plástico, militante e fundador de diversas
entidades, com ênfase para o TEN (Teatro
Experimental do Negro). Ocupou diversos
cargos políticos pelo PDT entre os anos 1983 a
1999.
A obra configura parcialmente o
gênero “escrita de si”, o autor
narra as experiências vividas.
Lélia
Gonzalez.
Lugar de
Graduada em História e Geografia, UERJ
1958, e Filosofia na mesma instituição em
1963. Militante e fundadora de diversas
Texto é reflexão da autora sobre a
trajetória dos movimentos negros,
com ênfase no período pós 1978,
4 RIOS, Flavia . A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural (São
Paulo. Online), v. 21, p. 73-96, 2014; OLIVEIRA, F. N. ; RIOS, Flavia . Consciência Negra e Socialismo: a
trajetória de Hamilton Cardoso(1953-1999). Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, p. 507-
530, 2014; RIOS, Flavia . Carolina de Jesus na Cena Cultural Contemporânea. In: Dinha; Fernandez. Raffaela.
(Org.). Onde estaes felicidade?. 1ed.São Paulo: Me parió Revolução, 2014, v. , p. 99-108.
7
Negro. entidades, entre as mais destacadas o MNU e
Nzinga-Coletivo Feminista. Pleiteou cargo
legislativo tendo, contudo alcançado a
suplência, mas tornou-se então assessora de
Benedita da Silva pelo PT, 1982.
no qual atuou fortemente.
Fonte: Plataforma Lattes; Site da Editora Summus; e obras referendadas como fonte do artigo.
Abdias e Lélia: o negro revoltado e a pretinha atrevida.
A primeira informação a ser levada em consideração quando se estuda a militância
negra é que não existe um movimento negro único, mesmo que a sigla MNU tente contradizer
o fato. A informação consta da própria Lélia Gonzalez uma das mais proeminentes ativistas
contemporâneas, fundadora e participante de diversas entidades negras no Brasil (Movimento
Negro Unificado, Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, Grêmio Recreativo e Escola de
Samba Quilombo, por exemplo):
Na verdade, falar do Movimento Negro implica no tratamento de um tema
cuja complexidade, dada a multiplicidade de suas variantes, não permite uma
visão unitária. Afinal, nós negros, não constituímos um bloco monolítico, de
características rígidas e imutáveis (GONZALEZ, 1982, p. 18).
As trajetórias de Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez demonstram isso. Na sessão
que se segue apresentarei essa trajetória de forma resumida, baseada nas biografias e
autobiografias, com o intuito de apresentar como viam as relações raciais no Brasil e como
poderiam agir para alterar essa realidade. Não se trata de um resumo das obras, nem tão pouco
a produção de uma nova biografia, mas o uso das obras para a leitura do contexto de vivência
desses dois indivíduos e suas ações. Trajetórias que são difíceis de recuperar, senão pelo
auxílio de outros militantes, textos produzidos por eles ou existentes dada atuação de ambos
no Congresso – ou como ocupante de cargo ou como convidada em sessões específicas para a
discussão de políticas voltadas aos negros – e, por isso, constituem também a possibilidade de
acesso à história de vida de pessoas de fora do circuito hegemônico do poder econômico,
político ou cultural.
Das duas obras publicadas pela Editora Summus a construção do texto segue a
seguinte lógica: a vida na infância; a formação educacional e a percepção do ser negro; os
8
projetos políticos, institucionalizados ou não, em que se envolveram; e na reta final as
contribuições a posteriori dessas atuações. É válido mencionar que parte das entrevistas
dispostas na autobiografia de 2006 foram aproveitadas como corpo documental por Sandra
Almada. A autobiografia transcorre de forma cronológica, mesmo que em dados momentos
Abdias afirme que a memória não ajuda a pensar no fluxo contínuo, assumo então como
provável o fato das entrevistas terem transcorrido de uma forma e a transposição de outra.
A vida na infância e a questão do pertencimento racial foi sentido por nossos
personagens de forma muito diferente. Lélia era a décima sétima filha de um total de dezoito,
filha de empregada doméstica de descendência indígena e pai ferroviário e negro, nascida em
Belo Horizonte tendo depois migrado para o Rio de Janeiro graças ao sucesso no futebol de
seu irmão Jaime de Almeida, Gonzalez afirmava ter conseguido uma formação educacional
fora do comum aos negros graças a essas especificidades:
nessa família todos trabalhavam, ninguém passava da escola primária [...]
para sustentar o resto da família. Mas, no meu caso, o que aconteceu foi que,
[por ser] uma das últimas, a penúltima da família [...] a visão de meus pais
em relação a mim já foi uma visão de neta (Lélia Gonzalez Apud RATTS,
RIOS, 2010, p.23)
Por sua vez, Abdias do Nascimento era o segundo filho de um grupo de sete irmãos,
pai sapateiro e mãe cozinheira, doceira e costureira, além de ama-de-leite o que é bastante
destacado nas entrevistas que o militante deu, talvez para enfatizar reminiscências da
escravidão, “quase todos os meus irmãos têm irmão-de-leite” (Abdias Nascimento Apud
NASCIMENTO, SEMOG, 2006, p.30), ambos negros, sendo a avó paterna ex-escrava que
havia sido estuprada por um português, ato do qual o pai de Abdias é fruto. A oportunidade de
estudar para Abdias é apresentada como mais tortuosa, trabalhando desde os 9 anos
entregando leite e carne na cidade de Franca, onde nasceu, Abdias tentou diversificadas
formações:
Abdias também tentara aprender violão, piano, pistão, telegrafia, mas foram
projetos de curtíssima duração, todos derrotados, apesar dos esforços do
menino, pelas condições de vida muito adversas. Dessas empreitadas,
entretanto, uma vingaria. Aos 11 anos entrou para a Escola de Comércio
Ateneu Francano. Nessa época, ia ao grupo escolar de manhã, trabalhava a
tarde e à noite fazia o curso de contabilidade, que levaria a cabo com
seriedade e no final do qual começaria a procurar emprego mais de acordo
com sua nova formação (ALMADA, 2009, p.34)
9
Se Abdias teve que aliar trabalho aos estudos, ao que Lélia afirmava ocasionalmente
fazer com serviço de babá dos filhos de dirigentes dos clubes de futebol que o irmão foi
jogador, o francano contava ainda com o desestímulo do pai segundo a narrativa o biografado:
Não, nada de estudar! O filho adotivo do doutor Petraglia acabou se
suicidando porque ninguém queria se tratar com aquele médico negro. Negro
que quer estudar dá nisso. Então tire isso da cabeça, de fazer estudo superior,
ser doutor, tire isso da cabeça! (Abdias Nascimento Apud ALMADA, 2009,
p.38)
O pai de Abdias provavelmente desejava proteger o filho de frustrações posteriores.
Possivelmente essa relação com os estudos e o período de nascimento dos biografados esteja
relacionado à forma como o pertencimento racial foi apreendido por ambos. Nascido em 1914
em um município cercado por fazendas Abdias descreve sua infância já demarcada por uma
pertença:
Pena eu não ser um bom memorialista. Talvez eu não consiga contar
detalhes, lembrar das minúcias das histórias e dos “causos”, ou da maneira
de cada uma daquelas pessoas falar; da ênfase, da entonação , que com
certeza tornava cada uma daquelas narrativas mais curiosa e mais
impressionante. Mas o importante é que , naqueles momentos, ali entre nós,
manifestava-se uma literatura – de longa tradição africana –, e tratava-se de
assuntos relacionados com as nossas questões de família racial. As histórias
versavam sobre uma escravidão que acabara recentemente. Por ali viviam
homens e mulheres bastante idosos e outros mais jovens, que tinham sido
escravos, ou que pegaram o finalzinho da escravidão. Embora não tivesse
parentes ali, isso me fazia lembrar da minha avó Ismênia, que veio do nosso
continente africano. (Abdias Nascimento Apud SEMOG; NASCIMENTO,
2006, p.37- grifos do autor)
Mesmo alertando as falhas impostas a memória Abdias reconstrói o cenário da sua
distante infância e atribui uma essência cultural africana ao descrito – o que claro, não devia
ser atribuído na época em que isso ocorreu, mas depois do contato do biografado com a
cultura africana nos tempos de exílio -. Na continuidade do texto construído por Nascimento
ele fala da liberdade dos passeios nessas fazendas que eram acompanhados das professoras
contratadas pelos fazendeiros, a partir desse ponto afirma já perceber – mesmo criança – a
existência dos resquícios da escravidão:
10
Não há dúvidas que esta situação era uma herança da escravidão, uma
relação dúbia que não tinha nada a ver com solidariedade. Durante uma parte
da minha infância convivi com essa estrutura, com essa maneira de
tratamento. Nós, os “negrinhos”, estávamos naquela condição de protegidos
das sinhazinhas. Meus irmãos ficavam felizes quando ganhavam presentes;
mas eu recebia com desconfiança, pressentindo um jogo maldoso nessas
relações. Assim, eu fui uma exceção entre aqueles sete irmãos,
aparentemente bem ajustados na sociedade “branca” brasileira. A outra
exceção foi minha irmã, que se suicidou, possivelmente porque também não
conseguiu se ajustar. (Abdias Nascimento SEMOG; NASCIMENTO, 2006,
p.38 – grifos do autor)
Abdias não sabia explicar o porquê desse despertar quando a educação dada aos
irmãos era a mesma que a dele. O não ajustamento dele, somado ao desejo de uma
prosperidade que Franca não lhe oferecia, o levou a sair do interior rumo a capital do Estado.
Se de fato o “sentir-se negro” veio na infância ou é uma leitura feita a posteriori não é
possível mensurar, mas fica a narrativa do militante como registro de uma forma de
resistência ao processo de aculturação.
Lélia Gonzalez narra uma experiência totalmente diferente e que vai ter reflexo nas
lutas travadas enquanto militante:
Fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem
cerebral dado pelo discurso pedagógico brasileiro, porque, na medida que eu
aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais minha
condição de negra (Lélia Gonzalez 1979 Apud RATTS, RIOS, 2010 p.31)
Gonzalez concluiu o colégio, ou científico como era chamado, no famoso Colégio
Pedro II em 1954. A boa formação garantiu a Lélia a fluência no francês, tornando-se em uma
fase de sua vida tradutora. Em seguida entrou para Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
aonde se graduou em Geografia e História em 1958 e Filosofia em 1962. A trajetória
educacional de Lélia não a colocou em contato com um pertencimento negro, o confronto que
a levou a auto identificação se deu graças a relação com o primeiro marido e a família dele. O
marido em questão, Luiz Carlos Gonzalez era espanhol e é descrito na biografia como
interessado nas questões políticas tendo ele despertado a esposa para mundo do qual ela vivia
afastada. De acordo com Lélia Gonzalez:
A família do meu marido achava que nosso regime matrimonial era, como eu
chamo, de “concubinagem”, porque mulher negra não se casa legalmente
com homem branco; é uma mistura de concubinato com sacanagem, em
11
última instância. Quando eles descobriram que estávamos legalmente
casado, aí veio o pau violento em cima de mim; claro que eu me transformei
numa “prostituta”, numa “negra suja” e coisa desse nível... Mas meu marido
foi um cara muito legal, sacou todo o processo de discriminação da família
dele, e ficamos juntos até sua morte. [...] Luiz Carlos foi muito importante
pra mim [...] ele rompeu com a família, ficou do meu lado e começou a
questionar minha falta de identidade comigo mesma. Isso dói [...], por isso
eu tenho orgulho de trazer o nome dele. Eu nunca troquei o meu nome, podia
estar com meu nome de solteira, Lélia de Almeida, mas é uma homenagem
que eu presto a esse homem branco tão sofrido [...] essa pessoa demonstrou
uma solidariedade extraordinária [...] e foi a primeira pessoa a me questionar
com relação ao meu próprio branqueamento. (Apud RATTS; RIOS; 2010,
p.52-53 – grifos da autora e cortes do texto original)
Os questionamentos do marido sobre pertencimento racial, o rompimento familiar por
conta da discriminação sofrida pelo casa, somado a morte trágica dele – suicídio – são
abordados como ponto fulcral para a mudança de comportamento de Lélia. Por intermédio
desses elementos Gonzalez começou a se questionar sobre sua auto identificação e se
aproximou de núcleos de discussões raciais dentro da universidade – na qual já atuava como
professora -, em seguida, aproximou-se também da umbanda e procurou auxílio na
psicanálise. Lélia Gonzalez já usufruía de certos benefícios garantidos a classe média,
contudo a discriminação não deixou de se fazer presente em seu cotidiano.
Abdias do Nascimento, porém, tem outra experiência com a ida a capital de seu
estado. Diferente de Lélia que havia migrado com a família e que se formou - e se
embranqueceu, segundo ela, dado o ensino que recebeu – Abdias resolve ir para São Paulo
munido de cartas de recomendações de ex-patrões de sua mãe e a formação em Contabilidade
que obtivera em Franca, biografado e biógrafo narram da seguinte forma a experiência:
“Foi com uma cusparada, com uma cusparada no meus sonhos, que São
Paulo me recebeu naquele ano de 1929!” Havia muito rancor na voz de
Abdias. Tratava-se de um dos pronunciamentos mais carregados de revolta.
Fazia essa observação enquanto consultava os registros em DVD de fase
diferentes de sua trajetória. (ALMADA, 2009, p.39)
Abdias do Nascimento se desencanta com a recepção da capital e afirma responder
toda a hostilidade e atos de discriminação com bofetões, o que lhe garantiu o apelido de
“negro revoltado”. As ocupações foram das mais variadas: alistou-se no exército; cursou
economia na Escola de Comércio Álvares Penteado; depois no Rio de Janeiro para onde fugiu
dada a perseguição política que sofria na capital paulista, foi faxineiro; revisor do jornal O
12
Radical; graduou-se em Economia na então Universidade do Brasil (atual UERJ); entrou na
ação Integralista Brasileira em 1937, saindo, segundo ele por perceber que a questão racial
não tinha espaço no movimento; preso – um processo correu a revelia enquanto viajava com
amigos poetas pela América Latina – criou o Teatro do Sentenciado.
Com 30 anos Abdias já havia se envolvido com grupos de artistas, realizado o
Congresso Afro-Campineiro (13 de maio de 1938) e sentia agora a falta de uma organização
que demonstrasse a capacidade dos negros nas artes – sempre apreendida no sentido político –
e assim, cria o Teatro Experimental do Negro:
O Teatro Experimenta do Negro veio para combater isso tudo [preterimento
dos atores negros e secundarização, folclorização e uso obsceno dos
personagens negros], mas ele veio também para ser a favor. A favor da
história negra, a favor da cultura negra, a favor de todos os valores positivos
que a cultura africana trouxe para o Brasil e que continuam até hoje
menosprezados, secundarizados, agredidos e floclorizados. O Teatro
Experimental do Negro veio com um lado de combate – vamos dizer, que é o
lado negativo -, e outro que é positivo: trazer uma contribuição nova e de
afirmação. Com essas perspectivas de luta social e artística, viemos para
influir nos critérios estéticos do espetáculo brasileiro. (Abdias Apud
SEMOG; NASCIMENTO, 2006, p.123)
Com uma estética divergente da europeia (branca), atuando na formação profissional
de atores negros, mas ao mesmo tempo contribuindo para sua apreensão da cultura afro-
brasileira, o TEN é considerado um dos marcos da militância negra na história do Brasil. Mas
o TEN não se restringia à questão cultural, havia uma inserção no campo político, inclusive
com a organização de Convenções, Eventos e Concurso; entre as preocupações estava
também a discussão e possíveis propostas da relação do negro com a Constituinte de 1946.
Segundo Éle Semog, dada a representatividade de Abdias nas manifestações dos negros pela
igualdade o cerco da ditadura militar começou a se fechar, motivando o exílio do biografado:
Com o endurecimento do regime militar, e a repressão intensa instituída pelo
AI-5, fui obrigado a deixar o país. A questão racial virou assunto de
segurança nacional, a sua discussão era proibida. Fui incluído em diversos
Inquéritos Policiais Militares, sob a estranha alegação de que seria
encarregado de fazer a ligação entre o movimento negro e a esquerda
comunista. (Abdias Apud SEMOG; NASCIMENTO, 2006, p.123)
Lélia Gonzalez também não escapou da vigilância da Ditadura Militar:
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As informações sobre Lélia aparecem pela primeira vez nos fichários do
Dops em 1972, quando era professora da Universidade Gama Filho. Nessa
ocasião, foi solicitada a averiguação sobre seu possível envolvimento no
“recrutamento de adeptos à doutrina marxista” na citada universidade. No
entanto, nada foi comprovado após investigação. Com base nos depoimentos
recolhidos para a pesquisa, pressuponho que o recrutamento teria alguma
relação com a prática de reuniões na casa da Léia para discussões filosóficas
(BARRETO, 2005, p.24 Apud ALMADA, 2010, p.54-55)
O destino dos dois militantes se cruzariam numa empreitada comum, no Ato Público
de 7 de julho de 1978, realizado nas escadarias do Teatro Municipal em São Paulo, ambos na
condição de apoiadores do movimento que ali se tornava público, o Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial – posteriormente simplificado para Movimento
Negro Unificado -. O MNU era fruto da insatisfação com a condição de preterimento histórico
do negro, somado as recentes mortes de Robson Silveira da Luz e Nilton Lourenço e a
expulsão de quatro atletas negros do time juvenil do Clube de Regatas Tietê das dependências
do clube. E era organizado especialmente por militantes de São Paulo, em especial, aqueles
que faziam parte do Centro de Cultura e Arte Negra, tais como: Miton Barbosa, Rafael Pinto e
Hamilton Cardoso. Lélia estava na condição de representante do Grêmio Recreativo e Escola
de Samba Quilombo e Abdias como apoiador do movimento, e na época já famoso por seu
envolvimento em temáticas raciais – mesmo que ainda morasse em Nova York -. Lélia se
envolveu intensamente com as reuniões e estratégias lançadas pelo Movimento Negro
Unificado. Abdias foi apoiador e ficou responsável por levar aos Estados Unidos as
informações relacionadas ao novo movimento que surgia no Brasil.
Ambos concordavam, portanto, com o que propunha o MNU e ergueram a bandeira da
entidade. Para compreender de forma breve apresento a Carta de Princípios do Movimento
Negro Unificado – discutido no I Congresso do MNUCDR nos dias 14,15 e 16 de dezembro
de 1981, segundo Gonzalez. Ela aponta a certeza de que a escravidão e o racismo legou a
parcela negra da sociedade piores condições de vida que a desfrutada pelos brancos:
NÓS, membros da população negra brasileira – entendendo como negro todo
aquele que possui na cor da pela, no rosto ou nos cabelos, sinais
característicos dessa raça –, reunidos em Assembléia Nacional,
CONVENCIDOS da existência de:
- discriminação racial
- marginalização racial, política, econômica, social e cultural do povo
brasileiro
- péssimas condições de vida
- desemprego
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- subemprego
- discriminação na admissão de empregos e perseguição racial no trabalho
- condições sub-humanas de vida dos
, presidiários
- permanente repressão, perseguição e violência policial
- exploração sexual, econômica e social da mulher negra
- abandono e mal tratamento dos menores, negros em sua maioria
- colonização, descaracterização, esmagamento e comercialização de nossa
cultura
- mito da democracia racial
(Carta Princípios do MNU 1982, GONZALEZ; HASENBALG; 1982 p.65-
66)
Os militantes identificavam a disparidade econômica e social não somente como
consequência do período escravocrata, mas da postura racista que continuou lesando-os pós-
abolição. Mas não se tratava somente de um documento denunciativo, ele era composto
também dos elementos por eles (militantes) vislumbrados como alvos de atuação, cujo
objetivo será reverter o acesso limitado dos negros nas diversas áreas, tal como: saúde,
educação, trabalho e valorização cultural.
RESOLVEMOS juntar nossas forças e lutar por:
- defesa do povo negro em todo os aspectos políticos, econômicos, sociais e
culturais através da conquista de:
- maiores oportunidades de emprego
- melhor assistência à saúde, à educação e à habitação
- reavaliação do papel do negro na História do Brasil
- valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização,
folclorização e distorção
- extinção de todas as formas de perseguição, exploração, repressão e
violência a que somos submetidos
- liberdade de organização e de expressão do povo negro
E CONSIDERANDO ENFIM QUE:
- nossa luta de libertação deve ser somente dirigida por nós
- queremos uma nova sociedade onde todos realmente participem
- como não estamos isolados do restante da sociedade brasileira
NOS SOLIDARIZAMOS:
a) com toda e qualquer luta reivindicativa dos setores populares da sociedade
brasileira que vise a real conquista de seus direitos políticos, econômicos e
sociais;
b) com a luta internacional contra o racismo.
POR UMA AUTÊNTICA DEMOCRACIA RACIAL!
PELA LIBERTAÇÃO DO POVO NEGRO!
(Carta Princípios do MNU 1982, GONZALEZ; HASENBALG; 1982 p.65-
66)
Por intermédio da leitura do documento é possível apreender que para os militantes do
MNU as ações para reversão da discriminação racial envolviam questões do campo simbólico
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(tal como valorização, fim da estigmatização e conhecimento da cultura do negro) ao lugar
concreto (emprego, saúde, habitação). Certamente, a solução para esses diferentes elementos
não se daria unicamente pela criação do MNU e, por isso, parte dos militantes do movimento
e simpatizantes lançaram estratégias conjuntas para reverter o preterimento do negro na
sociedade brasileira.
Dentro dessa apreensão da militância novamente os caminhos de Lélia e Abdias se
aproximam. Ambos irão trilhar o caminho da “militância institucionalizada”, isto é, em nome
das causas negras irão pleitear cargos eletivos nas primeiras eleições diretas realizadas
durante o processo de abertura política do país. Abdias opta por se filiar ao Partido
Democrático Trabalhista (PDT), partido que abrigou uma pauta exclusiva para discussão de
questões raciais, fruto do desejo de Abdias e de sua boa relação com o idealizador do PDT,
Leonel Brizola; Lélia filia-se ao Partido dos Trabalhadores (PT), recém-criado e originário da
classe trabalhadora de São Paulo que ganhou destaque nacional pelas greves realizadas no
ABC no final da década de 1978. Abdias é eleito deputado federal em 1983 (seu primeiro
cargo político de muitos outros mandatos), Lélia não obtém sucesso no pleito, mas torna-se
assessora de Benedita Silva eleita para vereadora em 1983 pelo PT-RJ (Silva terá também
longa vida política).
De Abdias é possível recuperar desse período seus discursos feitos no Congresso
Nacional, de Lélia constam seus discursos na Subcomissão dos Negros, Populações
indígenas, Pessoas Deficiente e Minorias, que objetivava contribuir para a formação na nova
Constituição Brasileira, 1988. Os dois trechos demonstram que mesmo com anos de diferença
de idade, tendo a experiência de vida reservado diferentes formas e momentos de se
compreender pertencentes à população negra; os dois personagens alvo desse artigo
compreendiam as relações sociais brasileiras profundamente marcadas por um racismo que
contamina inclusive as instituições:
A estrutura de dominação racista, a estrutura branca de dominação do negro
ainda perdura até os nossos dias [...] Srs. Congressitas, eu tenho denunciado
frequentemente desta tribuna, o racismo institucional, o racismo estrutural
que existe na Constituição do Brasil, nas constituições das instituições
brasileiras (Discurso de Abdias do Nascimento, DIÁRIO DO CONGRESSO
NACIONAL, 1983, P.2141).
O censo de 1980 está aí demonstrando que na nossa sociedade a hierarquia
permanece. No que diz respeito ao acesso aos melhores salários nas
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diferentes profissões, vamos encontrar a relação hierárquica ao acesso aos
melhores salários nas diferentes profissões, vamos encontrar a relação
hierárquica e no primeiro plano está o homem branco, abaixo a mulher
branca, em seguida o homem negro e, finalmente a mulher negra. É
importante ressaltar que o racismo que existe na nossa sociedade tem que ser
encarado olho no olho. Chega de ficarmos disfarçando que somos
democratas, raciais, que batemos no ombro do pretinho, mas não admitimos
que casa com nossas filhas, porque é demais! Chega desta postura
paternalista que marca todas as relações da sociedade brasileira, as relações
dos donos do poder com relação aos explorados, oprimidos e aos dominados;
relações de compadrio, relações pessoais. (Discurso de Lélia Gonzalez,
DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSITUINTE –
SULPLEMENTO, 1987, P.121)
Essa forma de apreender o mundo os colocou diante do cenário político como em que
o Estado era devedor de uma reparação para com maior parte da população, uma vez que é
também o reprodutor da disparidade racial. Diferente de militâncias do passado que atribuíam
ao próprio negro a força e a necessária organização para resolver o “problema negro”, Abdias
e Lélia acreditavam que por intermédio da valorização da cultura afro-brasileira e africana o
sentimento positivo de pertencer etnicamente se desenvolveria, e caberia ao Estado garantir
meios para essa valorização e essa reversão da realidade excludente.
A atuação deles em torno do MNU os faz compactuar com os fatores de luta elencados
no documento Carta de Princípios, aqui apresentado. Outros poderiam ser pormenorizados,
mas os limites impostos na escrita me fazem destacar um argumento fulcral que os aproxima:
a questão de isonomia. Tratado por Abdias no Projeto na Lei n.1.332 de 1983 (Dispões sobre
a ação compensatória visando à implementação do princípio de isonomia social do negro, em
relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado
pelo art.153, parágrafo 1 da Constituição da República) e enfatizado na palestra de Lélia em
1988 na ocasião da Subcomissão mencionada:
E nesse momento em que aqui estamos, para discutir a questão da
Constituinte, não podemos, se pretendemos efetivamente construir uma
sociedade onde o princípio de isonomia efetivamente se concretize, não
podemos mais construir mentiras que abalem a possibilidade que são uma
grande ameaça à possibilidade da construção da Nação brasileira, porque
sem o crioléu, sem os negros, não se construirá uma Nação neste País! Não
adianta continuarmos com essa postura paternalista de bater nos ombros,
mas que na hora H fecha todas as portas para que o negro, com toda a sua
competência histórica, tenha acesso ao mercado de trabalho, à organização
dos partidos políticos. Sempre somos as bases, já perceberam isso? Ou então
somos cooptados pelas resentarmos [sic] o teatro da democracia racial. Não
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queremos mais isso. (Discurso de Lélia Gonzalez, DIÁRIO DA
ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSITUINTE – SULPLEMENTO, 1987,
P.122 – grifos meus)
Isonomia significa equidade, justiça, igualdade; juridicamente trata-se de compreender
que todos são iguais perante a lei, mas que situações desiguais devem ser compreendidas em
suas especificidades, uma vez que, não deve haver distinção de classe, grau ou poder
econômico entre os homens. Abdias e Lélia recorrem ao pedido de isonomia para a efetivação
de fato de uma nação que considere a existência das diferenças e planeje pensando nelas.
Considerações Finais
O texto que por ora se encerra não é a criação de uma biografia, ou resumo de
biografias. Tratei de utilizar biografias e textos complementares para observar como a
trajetória de militantes da causa negra se aproximam e se distanciam de acordo com suas
experiências.
Mais do que incongruências busquei as afinidades de Abdias do Nascimento e Lélia
Gonzalez. Ambos importantes para a militância negra contemporânea, simbolizam lutas
travadas contra o preterimento histórico do negro e que tem consequências danosas ainda
hoje, basta refletir sobre resultados como os apresentados pelo Mapa da Violência 2014 no
qual consta a informação de que
os homicídios são hoje a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos
no Brasil, e atingem especialmente jovens negros do sexo masculino,
moradores das periferias e áreas metropolitanas dos centros urbanos. Dados
do SIM/Datasus do Ministério da Saúde mostram que mais da metade dos
56.337 mortos por homicídios, em 2012, no Brasil, eram jovens (30.072,
equivalente a 53,37%), dos quais 77,0% negros (pretos e pardos) e 93,30%
do sexo masculino. (WAISELFISZ, 2014, p.9)
Portanto, são lutas que não morreram com os militantes e que devem se propagar nas
discussões acadêmicas, políticas e dentro da sociedade civil, tendo o texto buscado contribuir
um pouco nesse sentido.
Fontes
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Diário da Assembléia Nacional Constituinte – Suplemento. [Discurso de Lélia Gonzalez]
Disponível em
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup62anc20mai1987.pdf#page=1201987
Publicado em 20 de maio de 1987.
Diário do Congresso Nacional. [Discurso Abdias do Nascimento] Disponível em:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD22OUT1983.pdf#page=29 . Ata da 138º
Sessão de 21 de outubro, publicado em 22 de outubro de 1983.
GONZALÉZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero,
1982.
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