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ewell' EDICAO BRASILEIRA jANEJRO-FEVEREJRO 2007 Missao das N Unidas para a ; do Haiti p. 2 Gene ral Augusto Helena Ribeiro Pereira, Exercito Bra si leiro Contra 0 das Redes Insurgentes p \4 Co ron el (R/I) Thomas X. Hammes, CFN dos EVA o Exercito de Voluntarios 1'.26 Gene ral (Rtl) Waller L. Stewart 11' ., Exercito dos EVA o Diario de Combate da 1'. 50 Tenente-Coronel (RJ I) Ted A. Thomas. PhD, do Exercito dos EVA COMBINED ARMS CENTER. FORT LEAVENWORTH, KANSAS

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Revista militar especializada em assuntos militares dos países norte-americanos e latino-americanos.

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  • ewell'

    EDICAO BRASILEIRA jANEJRO-FEVEREJRO 2007

    Missao das Na~oes Unidas para a ~,

    ; Estabiliza~ao do Haiti p. 2 General Augusto Helena Ribeiro Pereira, Exercito Brasileiro

    Oposi~ao Contra 0 Aperfei~oamento das Redes Insurgentes p \4 Coronel (R/I) Thomas X. Hammes, CFN dos EVA

    o Exercito de Voluntarios 1'.26 General (Rtl) Waller L. Stewart 11'., Exercito dos EVA

    oDiario de Combate da Lideran~a 1'. 50 Tenente-Coronel (RJ I ) Ted A. Thomas. PhD, do Exercito dos EVA

    COMBINED ARMS CENTER. FORT LEAVENWORTH, KANSAS

  • General

    David H. Petraeus

    Comandante,

    Centro de Armas Combinadas

    Coronel William M. DarleyEditor-Chefe da Military Review

    Redao Ten Cel Arthur E. Bilodeau

    Editor-Chefe das Edies em Ingls Maj Thomas E. Shrader

    Gerente de Produo Sandra Caballero

    Editora-Chefe, Edies em Lnguas Estrangeiras

    Administrao Patricia Wilson

    Secretria

    Edies Ibero-Americanas Michael Serravo

    Diagramador/Webmaster

    Edio Hispano-AmericanaRonald Williford Robert K. Werts Tradutores/Editores

    Edio Brasileira Lore C. Rezac

    Shawn A. Spencer

    Tradutores/Editores

    Assessores das Edies Ibero-americanas

    Cel Franklimberg Ribeiro de Freitas, Oficial de Ligao do Exrcito Brasileiro junto ao

    CAC/EUA e Assessor da Edio Brasileira

    Ten Cel Moritz Traub Bauer, Oficial de Ligao do Exrcito Chileno junto ao

    CAC/EUA e Assessor da Edio Hispano-Americana

    2 O Componente Militar da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao do Haiti

    General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Exrcito Brasileiro

    Em 30 de abril de 2004, o Conselho de Segurana estabeleceu, pela Resoluo 1542, a Misso das Naes Unidas para Estabilizao do Haiti (MINUSTAH), amparada no Captulo VII da Carta das Naes Unidas. De forma genrica, sua principal misso assegurar um ambiente seguro e estvel, que permita ao pas voltar normalidade institucional, retomar o estado de direito e realizar eleies livres, democrticas e transparentes.

    14 Oposio Contra o Aperfeioamento das Redes Insurgentes

    Coronel (R/1) Thomas X. Hammes, CFN dos EUA

    Tanto as insurgncias como as contra-insurgncias possuem caractersticas persistentes. A arma fundamental da contra-insurgncia um bom governo. Enquanto os insurgentes somente tm de continuar a existir e realizar ataques espordicos, o governo deve aprender a governar eficazmente. A existncia de uma insurgncia indica que o governo fracassou na sua misso. Em suma o contra-insurgente se encontra numa situao desvantajosa.

    26 O Exrcito de Voluntrios: Ainda Podemos Reivindicar que um Sucesso?

    General (R/1) Walter L. Stewart Jr., Exrcito dos EUA

    A histria registra que a deciso para adotar uma fora somente de voluntrios e, logo em seguida, formar uma comisso com a responsabilidade de justific-la foi fundamentada numa premissa falsa. Esse mito de uma desigualdade no servio militar obrigatrio baseado nas classes foi apresentado formalmente a Nixon em janeiro de 1969.

    35 O Aperfeioamento das Atividades Americanas Contra os Insurgentes

    Sarah Sewall

    [A] atualizao da doutrina deve equacionar os dif ceis dilemas e realidades enfrentados na luta contra os insurgentes. Isso reflete as lies aprendidas anteriormente em operaes britnicas, francesas e inclusive a experincia americana na Guerra do Vietn.

    50 O Dirio de Combate da Liderana: Uma Abordagem Prtica para o Autodesenvolvimento de um Lder

    Tenente-Coronel (R/1) Ted A. Thomas, PhD, do Exrcito dos EUA

    O Treinamento do Exrcito e o Modelo de Desenvolvimento de Lderes apresentam trs reas para o desenvolvimento de um lder: institucional, operacional e de autodesenvolvimento. Embora a rea institucional seja de absoluta importncia para o desenvolvimento, a maioria reconhece que grande parte de seu aprendizado ocorre no trabalho.

  • Edio Brasileira REVISTA PROFISSIONAL DO EXRCITO DOS EUA

    Publicada pelo CENTRO DE ARMAS COMBINADAS Forte Leavenworth, Kansas 66027-1254

    TOMO LXXXVII JANEIRO-FEVEREIRO 2007 NMERO 1 http://militaryreview.army.mil

    email: [email protected]

    56 REDES: A Terra Incgnita e a Inteligncia EtnogrficaTenente-Coronel: Fred Renzi, Exrcito dos EUA

    A proliferao de redes fortalecidas torna a inteligncia etnogrfica muito mais importante para os Estados Unidos do que jamais foi. Entre as redes, a Al-Qaeda por certo a mais infame, mas h vrios outros exemplos do passado recente e do presente tais como o Diamante de Sangue e cartis de droga que nos levam concluso de que tais redes sero um desafio num futuro prximo.

    65 Organizao da Inteligncia no Combate da Contra-InsurgnciaKyle Teamey e Tenente-Coronel Jonathan Sweet, Exrcito dos EUA

    O objetivo da coleta de inteligncia na contra-insurgncia determinar quais fatores a desencadeiam e, ao mesmo tempo, repassar aos comandantes a informao sobre eles e as formas de revert-los ou mitig-los.

    73 Estatstica, Propriedades e os Princpios de Guerra: Porque no Existe uma Teoria de Guerra Unificada?

    Dr. Jan S. Breemer

    O que consideramos princpios de guerra?... O mximo que podemos dizer que descrevem tendncias na conduta da guerra que podem informar decises militares estratgicas e operacionais.

    80 Atacar o Espao Insurgente: A Negao de Refgios e a Interdio nas Fronteiras

    Coronel (R/1) Joseph D. Celeski, Exrcito dos EUA

    Ao negar espao aos insurgentes para que realizem operaes, ataca-se uma das trs opes da guerra irregular que os atores mais fracos empregam para enfrentar os mais fortes. As outras duas so o tempo e a vontade.

    88 Pesquisa de Opinio

    Peter J. Schoomaker General, United States Army

    Chief of Staff

    Official:

    JOYCE E. MORROW Administrative Assistant to the

    Secretary of the Army

    Military Review Publicada pelo CAC/EUA, Forte Leavenworth, Kansas, bimestralmente em portugus, espanhol e ingls. Porte pago em

    Leavenworth Kansas, 66048-9998, e em outras agncias do correio. A correspondncia dever ser endereada Military Review, CAC, Forte

    Leavenworth, Kansas, 66027-1254, EUA. Telefone (913) 684-9332, ou FAX (913) 684-9328; Correio Eletrnico (E-Mail) milrevweb@ leavenworth.army.mil. A Military Review pode tambm ser lida atravs da Internet no Website: http://www.militaryreview.army.mil/. Todos

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    Military Review (Brazilian (in Portuguese)) (US ISSN 1067-0653) (USPS 009-356) is published bimonthly by the U.S. Army, Combined

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  • O Componente Militar da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao do Haiti

    General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Exrcito Brasileiro

    aP

    O General-de-Diviso Augusto Heleno Ribeiro Pereira atualmente o Chefe do Gabinete do Comandante do Exrcito. Graduou-se pela Academia Militar das Agulhas Negras como oficial de Cavalaria em 1969, pela Escola de Aperfeioamento de Oficiais em 1978 e pela E s c o l a d e C o m a n d o e Estado-Maior do Exrcito em 1986. Foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras, Ajudante-de-Ordens do Ministro do Exrcito e Assessor de Educao Fsica da Misso Militar Brasileira de Instruo no Paraguai. ComoCoronel, comandou a Escola Preparatria de Cadetes do Exrcito e foi Adido Militar na Embaixada do Brasil na Frana e Blgica. Promovido a General-de-Brigada em 1999, comandou a 5 Brigada de Cavalaria Blindada, o Centro de Capacitao Fsica do Exrcito e chefiou o Centro de Comunicao Social do Exrcito. O General Heleno comandou, por um ano e trs meses, a Fora de Paz na Misso das Naes Unidas para Estabilizao do Haiti.

    Cheguei ao aeroporto internacional de porto prncipe no final da manh de 30 de maio de 2004. Ao desembarcar, ansioso e preocupado, deparei-me com um ambiente de uma base area. Havia marines (fuzileiros navais americanos) e viaturas militares por toda parte. Na pista, sobressaam as silhuetas de alguns helicpteros de combate estacionados e uma flagrante desorganizao. Aguardavam-me no sop da escada da aeronave dois assistentes brasileiros que l se encontravam h uma semana: o coronel de cavalaria William Soares, escolhido por mim, e o capito-de-fragata fuzileiro naval Carlos Chagas, que eu via pela primeira vez. Subimos para um salo de espera e, antes que meu chefe de estado-maior, o coronel canadense Barry McLeod, pudesse falar comigo, fui cercado por membros da imprensa. Limitei-me ao trivial. Tudo que sabia sobre o Haiti era proveniente de pesquisas na internet, da leitura de jornais e do que ouvira em um seminrio organizado pelo Ministrio da Defesa. Precisava sair dali, hospedar-me e preparar-me para a cerimnia de assuno de funo do dia seguinte.

    Comeo da Misso Vinte e quatro horas aps minha chegada, efetuou-se a transferncia

    de autoridade na rea da misso. A partir da, nenhuma deciso aconte-ceria mais sem meu conhecimento e aprovao. O general de brigada do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA Ronald S. Coleman comandava a Fora Interina Multinacional (MIF). Presente no pas desde o final da crise que resultou na renncia do Presidente Aristide, a MIF reunia 3775 militares dos EUA, Frana, Canad e Chile. At 31 de julho, os

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review

  • Estabilizao Do Haiti

    contingentes americano, francs e canadense retrairiam. Ficariam no Haiti apenas uma companhia canadense com 250 militares em Gonaives e o batalho chileno com 350 militares em Cap Haitien e Hinche.

    Iniciou-se, ento, um demo-rado e penoso processo em que a Fora Militar seria lentamente constituda, at atingir no final de dezembro, somente seis meses depois, um efetivo superior a seis mil militares. Simultaneamente, e em ritmo ainda mais lento, os componentes civis da Misso comeavam a estruturar-se e des-dobrar-se em territrio haitiano.

    No dia 25 de junho, nova sole-nidade militar marcou a transfe-rncia da responsabilidade de comando dentro do territrio haitiano. Cabe ressaltar o profissio-nalismo e a disponibilidade do Gen Coleman e do seu estado-maior na transmisso das informa-es disponveis e no acompanhamento cerrado das primeiras atividades desenvolvidas pelo meu estado-maior e pelo contingente brasileiro, recm-chegados e vidos para familiarizar-se com a situao.

    As Origens do CaosA evoluo histrica do Haiti nos ensina que

    a atual crise no se trata de um evento isolado. A ilha de Hispaniola assistiu a chegada da frota de Cristvo Colombo, em 1492. Durante dois sculos, o Haiti pertenceu Espanha, at tornar-se, em 1697, colnia francesa. Em pouco tempo, graas ao cultivo da cana-de-acar e do caf, sustentado pelo trabalho escravo, explorado de forma cruel, transformou-se na mais prspera possesso francesa. Transformou-se na Prola do Caribe, onde os nativos, com baixssima expectativa de vida, eram substitudos como animais de corte pelos novos negros africanos que chegavam importados.

    Com o decorrer do tempo, nasceu uma profunda diviso entre os locais, conhecidos por croles, e os africanos, chamados de bossales, originrios de diferentes tribos. As rivalidades do perodo colonial marcam at os

    aP

    O General Augusto Heleno Ribeiro Pereira, Comandante da MINUSTAH conversa com o General Ronald Coleman do Corpo de Fuzileiros Navais dosEUA durante a cerimnia de transferncia de comando em junho de 2004 em Porto Prncipe.

    dias atuais a conturbada histria do Haiti. Foi herdado, tambm, o hbito da violncia para a soluo de conflitos e da marronage, ou seja, dissimulao usada para enganar os senhores franceses e os estrangeiros que se sucedem na explorao do pas. Desse perodo, restam ainda traos culturais marcantes do povo haitiano: no campo religioso, os rituais vodus; nas artes, a habilidade na pintura e no artesanato, marcados por cores vivas habilmente combinadas.

    Uma revolta dos escravos, no final do sculo XVIII, iniciou o processo de libertao do pas. Inspirados pelos ideais da Revoluo Francesa, formaram um exrcito, capaz de derrotar a fora enviada por Napoleo, na batalha de Vertires. Em 01 de janeiro de 1804, o Haiti declarou sua independncia e aproveitou a ocasio para perseguir e massacrar os colonizadores brancos.

    Seguiu-se um perodo difcil. Em um mundo de ricos pases escravocratas, a existncia da primeira nao negra livre ameaava a estabilidade futura das potncias coloniais europias e mesmo dos EUA. A Frana recusou-se a reconhecer a independncia. S o fez em 1825, depois de receber a promessa de uma fantstica indenizao. Esse pagamento que consumiu por muitos anos grande parte da riqueza haitiana, juntamente com a vertiginosa queda dos preos do acar e do caf no mercado mundial contriburam

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007

  • para inviabilizar a economia do Haiti. Os EUA, vizinho prximo e influente, isolaram o novo Estado. S o aceitaram em 1862.

    Internamente, governos despticos e conflitos sociais incentivavam golpes e assassinatos de chefes de governo. Em 1915, tropas de fuzileiros americanos desembarcaram em Porto Prncipe e ocuparam o pas at 1934, no tendo conseguido plantar razes de uma democracia. Em 1957, os Duvalier tomaram o poder. Papa Doc e Baby Doc sucederam-se como violentos ditadores at 1986. Nesse perodo, houve algum progresso econmico, com nfase no turismo e na exportao de produtos txteis e artefatos desportivos para os EUA.

    O fim da era Duvalier marcou o surgimento de um novo lder: Jean Bertrand Aristide. Jovem padre progressista, carismtico, excelente orador, criou o Partido Lavalas (avalanche, em crole) e, com um discurso em defesa dos miserveis, conquistou o apoio das classes populares. Eleito presidente pela primeira vez em 1990, dois anos depois se viu deposto por um golpe militar, liderado pelo General Cedras. Exilado nos EUA, obteve apoio da OEA para decretao de um embargo econmico contra o Haiti. A combalida economia haitiana faliu de vez.

    Uma aglomerao de pessoas tenta roubar sacos de comida do bairro Cit Soleil em novembrode 2005. O Programa Mundial de Alimentos da ONU proporcionou azeite e sacos de arroz e feijo para mitigar a fome de mais de 2.700 pessoas.

    Aristide retornou ao poder em 1994, amparado por uma fora multinacional de 20 mil militares, liderada pelos EUA. Aproveitou para extinguir, por um decreto presidencial, as Foras Armadas Haitianas, previstas na Carta Magna. Acusou-as de responsveis pela instabilidade do Haiti. Uma deciso ilegal, mal conduzida, que deixou os ex-militares de baixa patente desempregados, desamparados e, incompreensivelmente, armados. Presas fceis para atividades ilcitas. Criou-se, ento, a Polcia Nacional do Haiti (PNH). Sua formao foi objeto de outra misso da ONU, liderada pelo Canad. At hoje, essa polcia, nica fora legal do pas, tornou-se mais um problema do que uma soluo.

    Aristide, em 1996, elegeu seu sucessor, Ren Preval, nico presidente que cumpriu todo o mandato. Em 2000, Aristide retornou ao mais alto cargo da Repblica, em uma eleio acusada de fraudulenta e pouco representativa (10% dos votantes foram s urnas). Desenvolveu aes populistas e resolveu recrutar e armar grupos marginais (chimres), no interior dos bairros mais carentes, para neutralizar seus opositores. Politizou de forma irresponsvel a PNH. Em meados de 2002, ganharam as ruas as primeiras manifestaes populares contra os lavalas e Aristide.

    A Crise Precipitando o Mandato da ONU

    No final de 2003, prenunciava-se, no Haiti , uma grave crise. A comunidade internacional come-ou a movimen-tar-se em busca de uma sada. Durante o ms de fevereiro de 2004, a agitao atingiu seu clmax. Culminou com a renncia de Aristide e sua partida, no dia 29. Nesse mesmo dia, a Fora Interina Multinacional, apro-

    aP

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review

  • Estabilizao Do Haiti

    vada s pressas pelo Conselho de Segurana (CS) da ONU, iniciava seu desdobramento em territrio haitiano. Sua atuao manteve a violncia em nveis aceitveis e trouxe alguma estabilidade ao pas, evitando o total colapso das instituies. A ONU, pressionada, iniciou imediatamente o planejamento de uma misso de paz e enviou equipes de reconhecimento ao Haiti para identificar as neces-sidades e propor a estrutura e o mandato da futura misso. Simultaneamente, intensifica-ram-se as negociaes, capi-taneadas pela prpria ONU e por outros atores internacionais (particularmente os EUA e a Frana), com pases que se interessassem em participar da misso como o Brasil.

    Enquanto isso, no mbito interno, o Presidente da Corte de Cassao, Boniface Alexandre, assumiu a presidncia da Repblica, conforme prev a Constituio. Um Conselho de Sbios, formado com representantes dos principais setores da sociedade escolheu Gerard Latortue, funcionrio aposentado da ONU, como Primeiro-Ministro. Em 24 horas, mudou-se o perfil poltico do Haiti. Se no governo Aristide, cabia-lhe protagonizar o poder, no governo provisrio, o homem-forte passou a ser o Primeiro-Ministro.

    Em 30 de abril de 2004, o Conselho de Segurana estabeleceu, pela Resoluo 1542, a Misso das Naes Unidas para Estabilizao do Haiti (MINUSTAH)1, amparada no Captulo VII da Carta das Naes Unidas. De forma genrica, sua principal misso assegurar um ambiente seguro e estvel, que permita ao pas voltar normalidade institucional, retomar o estado de direito e realizar eleies livres, democrticas e transparentes. Com esse objetivo, a MINUSTAH deve apoiar o governo transitrio do Haiti (TGOH) nas seguintes aes: na reforma e reestruturao da Polcia Nacional (PNH); num abrangente programa de desarmamento, desmobilizao e reintegrao (DDR) para todos os grupos armados ilegais; no monitoramento e cobrana do respeito

    aP

    O General Ribeiro Pereira fala com soldados brasileiros antes da cerimnia de transferncia de comando em junho de 2004.

    aos direitos humanos e na manuteno da ordem pblica por meio de apoio operacional PNH. Lamentavelmente, a MINUSTAH recebeu papel e estrutura limitadssimos para coordenar as aes humanitrias e projetos de desenvolvimento no Haiti.

    Estrutura da Misso A MINUSTAH foi instalada como misso

    multidimensional e integrada. O primeiro chefe da misso, Representante Especial do Secretrio Geral (SRSG), foi o experiente e competente diplomata chileno Juan Gabriel Valds. O componente de maior visibilidade a Fora Militar, cujo comando coube, at agora, a um General-de-Diviso do Exrcito Brasileiro. Permaneci no cargo de Force Commander (FC) de 30 de maio de 2004 at 31 de agosto de 2005, data em que fui substitudo pelo General Urano Teixeira da Matta Bacellar, que suicidou-se tragicamente. Hoje, a Fora Militar comandada pelo General-de-Diviso Jos Elito de Carvalho Siqueira.

    Aresoluo em vigor autoriza o desdobramento de 7250 militares e de 1.922 policiais, alm de funcionrios civis internacionais e locais.

    Aos Adjuntos do Representante Especial esto subordinados importantes setores da misso.

    Muitas pessoas, inclusive alguns jornalistas, confundem o componente militar com a prpria misso. Na realidade, Fora Militar cabe manter

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007

  • um ambiente seguro e estvel, interagindo com os demais componentes da misso para que eles atinjam os objetivos previstos nos campos poltico e de direitos humanos. Nessa tarefa, conta com dois grandes parceiros com os quais divide a responsabilidade: a Polcia das Naes Unidas (UNPOL) e a Polcia Nacional do Haiti (PNH).

    Trataremos da PNH quando abordarmos os desafios. Quanto UNPOL, verificamos alguns aspectos bastante peculiares. Primeiramente, a UNPOL, chefiada por um comissrio-chefe, no possui qualquer vnculo de subordinao ao Force Commander, contrariando o princpio da unidade de comando e, algumas vezes, dificultando at mesmo a unidade de esforo. Rene agentes policiais de mais de 30 pases (que deveriam atuar como instrutores da PNH), alm de oito Unidades Formadas de Polcia (FPU), cada uma com cerca de 125 policiais. Enfrenta srios problemas de coordenao, integrao e padronizao de procedimentos, com flagrantes diferenas no preparo profissional dos policiais. Sem conseguir um efetivo controle das aes da PNH, compromete sua principal tarefa. Aps dois anos de misso, no conseguiram sequer cadastrar os policiais haitianos nem acompanhar o trabalho da PNH dentro dos comissariados. As Unidades Formadas de Polcia, equipadas com veculos blindados e fortemente armadas, se dizem aptas exclusivamente para aes de controle de distrbios.

    Ressalto a existncia de uma seo de Desarmamento, Desmobilizao e Reintegrao (DDR) para planejar e executar, juntamente com o governo, um programa complexo. No caso do Haiti, onde no h duas partes em conflito que decidem desarmar-se mediante acordo, sua tarefa torna-se ainda mais difcil. O componente militar apia as iniciativas de desarmamento voluntrio da seo DDR e atua no desarmamento forado, quando possvel.

    Desdobramento e a Estrutura da Fora Militar

    A ONU, obrigada a mobiliar dezoito misses de paz no mundo, enfrenta dificuldades na obteno de tropas de pases-membros. Em conseqncia, a MINUSTAH, quando substituiu

    a MIF, dispunha de um efetivo inferior metade daquela fora. Esse total s chegaria a 4000 militares cinco meses depois, em dezembro de 2004, superando o da MIF. O efetivo mximo autorizado, jamais seria atingido no decorrer do primeiro ano da misso. Ao final de julho de 2005, contvamos com 6.250 militares. Tal fato causou prejuzo na operacionalidade da Fora, sem meios suficientes para cumprir seu mandato. Acarretou tambm enorme presso sobre o contingente brasileiro, que por um longo tempo era o nico presente em Porto Prncipe e, por isso, foi empenhado em diversas misses praticamente em todo o territrio haitiano.

    A Fora de Paz Atuando na Manuteno da Segurana e da Estabilidade

    Apesar das dificuldades e incertezas, a Fora Militar foi se estruturando at atingir sua feio atual. O Estado-Maior da Fora com efetivo previsto de 96 oficiais multinacional. Em maio de 2005, o EM era integrado por oficiais dos seguintes pases: Argentina, Benin, Bolvia, Brasil, Canad, Chile, Crocia, Equador, Espanha, EUA, Filipinas, Frana, Guatemala, Jordnia, Marrocos, Nepal, Paraguai, Peru, Sri Lanka e Uruguai.

    Um importante aspecto necessrio aos oficiais do EM diz respeito fluncia verbal e escrita do idioma ingls e, como alternativa, do francs, essenciais para que o oficial possa expressar suas idias e utilizar seu potencial. Oficiais que chegaram sem esse nvel adequado, ainda que competentes e aplicados, foram, invariavelmente, relegados a um segundo plano.

    Tarefas e Atividades Desenvolvidas pela Fora Militar

    Com base no mandato da ONU, meu estado-maior definiu as principais tarefas que competiam fora militar:

    Prover segurana nas principais cidades e suas cercanias;

    Proteger instalaes vitais; Prover segurana ao longo das principais

    rodovias;

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review

  • Estabilizao Do Haiti

    Dissuadir e impedir o engajamento de grupos armados em atos violentos e/ou criminosos;

    Proteger o acesso infra-estrutura humanitria;

    Realizar aes de desarmamento em coordenao com a UNPOL e com a PNH;

    Apoiar a PNH e a UNPOL na proteo de manifestaes pacficas e no controle de distrbios civis;

    Monitorar os principais pontos de passagem na fronteira;

    Proteger as instalaes humanitrias do governo e da ONU;

    Garantir a segurana e a l iberdade de movimento do pessoal da ONU e seus afiliados;

    Proteger, na mxima extenso possvel, civis sob iminente ameaa de violncia; e

    Monitorar o ambiente de segurana, atuando preventivamente para impedir a escalada de ameaas.

    O cenrio encontrado e o cumprimento das tarefas acima obrigaram a fora militar a envolver-se, desde o primeiro momento, nas mais diversas atividades, abrangendo quase todo o espectro de operaes militares e de aes humanitrias.

    Merecem destaque os seguintes eventos realizados:

    Patrulhas diurnas, noturnas, a p, motorizadas e mecanizadas (mais de 15 mil);

    Escolta e segurana de comboios de ajuda humanitria;

    Proteo aproximada de autoridades, incluindo a segurana pessoal do Primeiro-Ministro e a guarda do palcio presidencial, alm da proteo de visitantes ilustres;

    Segurana de instalaes consideradas sensveis pelo governo do Haiti ou pela MINUSTAH, incluindo o Porto, o Conselho Eleitoral Provisrio (CEP), a sede da misso e o Palcio Presidencial;

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007

  • Segurana de grandes eventos, como o jogo de futebol Brasil X Haiti, o pr-carnaval e o carnaval;

    Pontos de bloqueio, pontos fortes e pontos de controle;

    Controle, acompanhamento e proteo de manifestaes populares;

    Ajuda humanitria (todos os contingentes tm atuado para melhorar as condies de vida da populao);

    Operaes conjuntas com a PNH e com a UNPOL, incluindo pontos de controle e patrulhas;

    Aes humanitrias em emergncias (os sistemas de defesa civil haitianos so praticamente inexistentes. O grande destaque foi a atuao aps a tempestade tropical Jeanne, em setembro de 2004, que alagou inteiramente a cidade de Gonaives);

    Negociaes para evitar conflitos. A fora militar tem procurado negociar com os principais lderes dos diversos movimentos, para evitar conflitos durante as manifestaes e nas principais datas populares;

    Recuperao de prdios pblicos, ocupados ilegalmente pelos ex-militares e rebeldes; e

    Operaes militares de grande envergadura, em rea urbana, contra gangues armadas que operam nos bairros populares.

    Os Grandes Desafios na Atuao da Fora Militar

    Desde o incio da misso, a Fora Militar se viu submetida a intensos desafios. Alguns surgiram pela inexperincia das tropas em operar com regras de engajamento baseadas no captulo VII2, mas a maior parte deles nasceram no prprio cenrio haitiano, na atuao de outros atores internacionais ou mesmo nas peculiaridades do sistema ONU. Dentre os inmeros desafios enfrentados, destacam-se:

    A lentido na obteno e no desdobramento das tropas. Tal situao obrigou a Fora de Paz a atuar durante momentos crticos e por considervel perodo de tempo com um efetivo muito abaixo do que havia sido planejado.

    O efetivo previsto e disponvel. Em qualquer operao militar, obrigatoriamente, 30% do pessoal estar empenhado em atividades logsticas. Alm disso, h necessidade imperiosa

    de repouso a cada 24 horas e a ONU impe, com sabedoria, que, a cada dois meses, o participante da misso tenha cinco dias de descanso, de preferncia fora da rea de misso. No caso do Haiti, para atuao efetiva em todo o pas, conclumos que o efetivo dirio disponvel de uma fora de 7.000 militares no ultrapassa a cifra de 2500. Em Porto Prncipe, juntando-se Fora Militar, UNPOL e PNH empregvamos, no mximo, 1700 agentes legais por dia, em uma cidade de 2 milhes e 500 mil habitantes. Como termo de comparao, Braslia, com populao semelhante, possui mais de 20.000 policiais, alm da fora federal.

    A estrutura e as peculiaridades do sistema ONU. A estrutura e as peculiaridades do sistema ONU, desconhecidas para a maioria dos militares, tambm se mostraram um grave problema. A logstica gerenciada por civis, subordinados ao chefe da administrao (CAO), a quem compete todas as decises sobre o assunto. Alguns elementos do EM da fora militar participam do processo, mas ficou claro que nossa capacidade de influir seria bastante limitada. As prioridades civis so nitidamente diferentes das prioridades da fora e a principal preocupao, sempre que se tratava de assuntos militares, parecia ser reduzir despesas.

    As deficincias no apoio areo s operaes. Desde o incio da misso, rigorosas regras de segurana e razes contratuais mantiveram os helicpteros, inclusive os militares, fora do controle do comandante da fora, pois todas as aeronaves so controladas pelo CAO. Com isso, o apoio areo aproximado s operaes terrestres inexiste.

    Falta de um servio de inteligncia. A ONU no prev, nas misses de paz, um servio de inteligncia. A misso fica extremamente vulnervel a boatos. Reiteradas vezes, me vi obrigado a empregar tropa para fazer face a informes, cuja veracidade no se confirmava. Tal situao, sobretudo nos momentos de crise, produzia elevado e desnecessrio desgaste.

    Os grupos armados e o desarmamento. No Haiti, ao longo da Histria, em funo dos constantes conflitos, diferentes grupos armaram-se, de forma legal ou ilegal. Est previsto o direito posse de armas na presente Constituio haitiana.

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review

  • Estabilizao Do Haiti

    O papel da fora militar e sua interao com os demais componentes

    O mandato da MINUSTAH prev um amplo processo de desarmamento, desmobilizao e reintegrao (DDR) e a fora militar tem se engajado no problema. Entretanto, peculiaridades da situao do Haiti tornam o quadro complexo. Em outros pases, faces opostas, como parte do acordo de paz, concordam em desarmar-se e incluir-se em um programa DDR. No caso do Haiti, no existem grupos formais em conflito, nem tampouco acordo de paz. A maior parte das armas est nas mos dos integrantes dos diversos grupos, que se homiziam em favelas e outros locais densamente habitados, pauprrimos e de difcil acesso. O desemprego contribui para invalidar a reintegrao dos marginais sociedade.

    Nessas condies, o desarmamento forado necessita de um eficaz sistema de inteligncia, sem o qual corremos o risco de provocar srios danos populao civil inocente. A fora da MINUSTAH tem optado pela conduo de operaes pontuais, contra alvos claramente definidos, de modo a reduzir ao mximo os efeitos colaterais.

    A situao dos ex-militares. parcela significativa dos ex-militares, na sua imensa maioria os de baixa graduao, sem outra forma de sustento aps a extino das FA (no houve penses ou indenizaes), passou a atuar em atividades paramilitares e de segurana privada. Decorridos onze anos, por diversas razes, incluindo a inflexibilidade da comunidade internacional e da prpria ONU, a situao s piorou. Recrutados para o movimento que culminou com a renncia do Presidente Aristide, os ex-militares acolheram no grupo considervel quantidade de jovens, que se auto-intitulam rebeldes e tambm reivindicam vantagens e recompensas. A Fora Militar confrontou o grupo com energia em diversas situaes, principalmente quando prdios pblicos foram ocupados como na operao de desocupao da casa de Aristide em Tabarre, realizada pelo contingente do Brasil; na operao de retomada das delegacias de Terre Rouge, realizada por tropas do Nepal

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007

  • Integrantes brasileiros da fora de manuteno da paz da ONU em um posto de controlena proximidade de Carrefour em Porto Prncipe, Haiti.

    e de Petit Goave, executada por militares do Sri Lanka. Paralelamente, determinei que, nas diversas regies do pas: incentivssemos a negociao e a desmobilizao (excelentes resultados foram obtidos pelos chilenos em Cap Haitien, conseguindo que todo o grupo do norte se desmobilizasse); evitssemos o surgimento de lideranas nacionais e impedssemos o trnsito de grupos uniformizados e armados. Atualmente, a situao no Haiti est sob controle, entretanto, a soluo definitiva depende de uma deciso poltica que contemple as justas reivindicaes do grupo, reconhecidas pelo governo provisrio.

    Gangues e Chimres A existncia de grupos civis armados, com os

    mais diversos propsitos, faz parte da histria haitiana. A ausncia do Estado em boa parte do territrio facilitou sua proliferao. O ex-presi-dente Aristide, ao que parece, armou grupos de jovens favelados, alcunhados chimres, com o propsito poltico de controlar seus opositores. As gangues, por sua vez, atuam com propsitos criminais: assaltos, drogas, seqestros, etc. Na maioria das vezes, fica difcil distinguir aes polticas de aes criminosas, uma vez que esses grupos atuam juntos, de acordo com a necessidade. Desde dezembro de 2004, a Fora

    aP

    Militar j realizou algumas operaes de vulto contra esses marginais, logrando resultados favorveis ao neutralizar alguns dos seus lderes mais importantes.

    A grande preocupao durante a realizao de tais operaes evitar baixas de civis inocentes. Atu-almente, a situao est tranqila na maior parte do pas. A exceo fica por conta da enorme favela de Cit Soleil e do bairro de Cit Militaire, em Porto Prncipe, que ainda neces-sitam de grandes cuidados, especialmente devido ausncia do Estado no seu interior.

    Apoio Policia Nacional do Haiti. apoiar a Polcia Nacional do Haiti a tarefa mais pro-blemtica daquelas estabelecidas no mandato. nica fora legal do pas, quando por ocasio da chegada da fora de paz encontrava-se em pssima situao, acumulando graves proble-mas tais como corrupo, falta de equipamento, abusos constantes de direitos humanos, atuao como polcia poltica, uso indevido de violncia, instalaes destrudas, deficincia de efetivo e equipamento, alm de total descontrole. Alm disso, e por isso, detestada pela maior parte da populao.

    Senti, desde o incio, que a liderana da PNH no se submeteria ao modus operandi da fora de paz, ou seja, continuaria a operar de forma autnoma. De ns, esperavam apoio material e quando solicitadas aes em fora, normalmente de planejamentos primrios, eram mal executadas.

    Os desencontros entre a misso e a PNH atingiram seu clmax em fevereiro de 2005, no aniversrio da queda deAristide, quando unidades da PNH dispararam contra uma manifestao lavalas, acompanhada de perto por tropas brasileiras e por correspondentes da mdia local e internacional. Tal situao, alm de ter provocado a morte de manifestantes, colocou em risco a prpria integridade fsica das tropas,

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review 10

  • Estabilizao Do Haiti

    que ficaram na linha de fogo da PNH. Apesar da direo da PNH ter insistido na verso de que os manifestantes estariam armados, o testemunho da mdia e da prpria MINUSTAH no deixava dvidas de que a PNH atacara deliberadamente uma passeata pacfica. O prprio SRSG, diante da gravidade do fato, condenou publicamente a atuao da PNH. Em seguida, governo e MINUSTAH atenuaram a crise a fim de manter o relacionamento em nveis aceitveis.

    A situao segue tensa e preocupante, at porque no se percebem melhoras sensveis no comportamento e no preparo dos policiais haitianos, o que seria esperado depois de dois anos e seis meses de trabalho da UNPOL.

    Relao com as OI e ONG de ajuda humanitria. Historicamente, registram-se desentendimentos entre foras militares e organizaes humanitrias, conseqncia da falta de compreenso mtua.

    No Haiti, a fora militar tem sido acionada para prover segurana de vrias atividades desen-volvidas pelas agncias, incluindo numerosas escoltas de comboios de ajuda humanitria. Essas atividades tm transcorrido sem incidentes, exceto quando o nmero de pedidos ultrapassa a capacidade da fora. Contudo, existe um aspecto responsvel por fortes divergncias sobre esse apoio: o fornecimento de ajuda humanitria (gua, comida, medicamentos, tratamento de sade, etc.) diretamente pelos con-tingentes militares. Boa parte destas organizaes e alguns especialistas em ajuda humanitria acre-ditam que a fora militar no deve se envolver de modo direto em ajuda humanitria, dedicando-se exclusivamente s tarefas de segurana. Ainda que tal pensamento se baseie em algumas razes coe-rentes e sensatas (como necessidade de neutrali-dade, impactos na eco-nomia informal, etc.), o caso do Haiti especial. Todos os contingentes,

    aP

    diante da ausncia do Estado e na nsia de obter melhor apoio da populao, em um pas onde as promessas de ajuda jamais foram cumpridas, empregam recursos prprios em prol da melhoria de vida dos favelados.

    Atuao da mdia local e internacional. A mdia local atuante e vida por notcias. Trinta emissoras de rdio funcionam na capital e exploram exageradamente o problema da segurana, transmitindo populao uma verdadeira sndrome de pnico diante de aes criminosas idnticas s que ocorrem em outras metrpoles do mundo.

    A mdia brasileira veicula, de maneira geral, uma imagem bastante honesta e positiva da misso, apoiando-se em uma adequada estrutura de comunicao social do contingente brasileiro.

    As principais agncias internacionais (AP, Reuters, AFP e EFE) mantm correspondentes no Haiti e acompanham de perto a situao. As grandes redes (BBC, CNN, TV5, FOX) enviam equipes para acompanhar as datas mais crticas. Um engajamento direto, sincero e baseado na compreenso mtua com os rgos de imprensa, em misses desta natureza, tende a produzir resultados positivos.

    Ausncia de projetos de desenvolvimento. A ausncia de projetos de desenvolvimento constitui-se, na minha opinio, no maior

    Fuzileiros Navais brasileiros, integrantes da Misso de Estabilizao da ONU no Haitidescarregam contineres com alimentos e gua aps a chegada de dois navios do Brasilque carregavam viaturas da ONU e 96 soldados brasileiros. (2004).

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007 11

  • desafio do Pas. O Haiti encontra-se econmica e socialmente destroado, com ndices de desemprego da ordem de 80%. Mais de 70% da populao faz apenas uma refeio por dia. Quatro misses anteriores da ONU3 no produziram resultados concretos para a gente humilde. Por isso a MINUSTAH j contava com certo ceticismo quanto aos resultados que poderia alcanar.

    A esperana renasceu das promessas de doaes vindas dos pases mais desenvolvidos. Contudo, tais quantias no se materializaram em investimentos. A parte mais visvel da misso continua sendo os militares. Conseqentemente, as presses sobre a tropa aumentam, em funo do nvel de frustrao da populao.

    Presses de determinados pases e da elite haitiana para a conduo de operaes robustas. Pases como EUA, Frana, Canad e at mesmo a elite local haitiana exerceram forte presso sobre o comando da fora para que se usasse mais violncia na represso aos grupos armados. Apesar disso, a Fora Militar tem utilizado a energia necessria na execuo de suas tarefas, evitando seu uso indiscriminado.

    Resultados Alcanados Podemos considerar que o componente militar

    da MINUSTAH tem alcanado resultados bastante expressivos. Mesmo os crticos mais severos admitem que a situao no Haiti est longe de ser a ideal, mas que j teria se degradado por completo e se transformado em uma guerra civil, caso no houvesse a presena e atuao da Fora de Paz.

    inegvel, ainda, que a possibilidade de grave perturbao da ordem nas datas consideradas mais crticas, graas atuao preventiva da MINUSTAH, da UNPOL e da PNH, passaram sem que fossem registrados incidentes graves.

    As principais ameaas estabilidade vm sendo neutralizadas pela fora de paz: os ex-militares, como resultado direto da estratgia adotada, encontram-se neste momento sob controle. As favelas esto patrulhadas e relativamente calmas; a rea quente de Bel Air retornou vida normal pelo excelente trabalho que a tropa brasileira vem realizando no local. O interior do pas est absolutamente calmo h mais de um ano.

    Atuando com moderao, procurando observar os princpios fundamentais que regem a atuao das foras militares em operaes de paz e, principalmente, evitando-se o uso indiscriminado da violncia, o componente militar da MINUSTAH vem contribuindo para a criao e a manuteno de um ambiente seguro e estvel no Haiti. Tudo isso demandou sacrifcios. At o momento, mais de 30 militares, brasileiros e de outros pases, foram feridos em aes de combate. Outros onze (dois do Nepal, dois do Sri Lanka, um das Filipinas, um do Uruguai e cinco da Jordnia) perderam suas vidas em servio.

    Em que pese a existncia de elementos desestabilizadores, o Haiti, amparado em um magnfico trabalho poltico do Embaixador Juan Gabriel Valds, conduziu um processo eleitoral livre, democrtico e transparente, com pouqussimos incidentes. O governo, chefiado por Ren Preval, e o parlamento, eleitos pelo povo, tomaram posse em um ambiente de tranqilidade no Pas.

    Perspectivas FuturasA longo prazo, o futuro do Haiti depender

    da aplicao dos recursos prometidos em investimentos scio-econmicos.

    O planejamento inicial previa a gradativa reduo do efetivo de tropas, medida que os resultados dos investimentos em desenvolvimento e o efetivo emprego da PNH garantissem uma maior estabilidade. Como os investimentos prometidos no ocorreram e a PNH continua despreparada e insuficiente, o Conselho de Segurana foi obrigado a autorizar um aumento do efetivo da misso.

    A ONU assumiu compromissos pblicos de comprometimento a longo prazo. Os pases americanos que atualmente contribuem com tropas ou policiais para a MINUSTAH declaram-se prontos a manter seus efetivos no Haiti pelo tempo que o governo haitiano e o Conselho de Segurana da ONU julgarem necessrio.

    No momento, fica difcil prever o que ocorrer no futuro. Se os investimentos tardarem e a PNH continuar despreparada, to cedo no se poder pensar em retirar tropas, sem que, imediatamente, se degrade a situao de segurana no pas. Aris-

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  • Estabilizao Do Haiti

    tide continua a representar uma sombra na poltica haitiana. Sua volta constantemente reclamada por seus seguidores mais fanticos.

    A continuidade ou no da participao brasileira envolve uma deciso poltica de alto nvel. Com a posse do governo Prval, caracterizou-se o final de uma importante fase no pro-cesso de recuperao do Haiti. A governabilidade depender da recuperao econmica, diretamente ligada ao nvel de emprego e ao desarmamento das gangues.

    Concluses Pessoais

    Apesar de todas as dificuldades, o balano da Misso das Naes Unidas para a Estabilizao do Haiti altamente positivo.

    Nos mais diversos nveis, desde o poltico-estratgico at o ttico, as lies tm sido valiosas. Os que tm a ventura de participar dessa escola de vida desenvolvem seu potencial de liderana e o conhecimento individual de seus limites, ficando em condies de empreg-los em todas as situaes futuras.

    Todos os pases participantes passaram a conhecer melhor o funcionamento da ONU e esto, agora, melhor preparados para participar de novas misses de paz

    Constataram a importncia do estudo de idiomas na formao dos nossos profissionais militares;

    No que tange ao relacionamento das Foras Armadas com os parceiros regionais, atingimos um nvel excelente de integrao e comunho de esforos e objetivos. Comandantes e tropas da Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Equador, Guatemala, Paraguai, Peru e Uruguai tm operado juntos com impecvel sinergia.

    Vrias vezes externei minha discordncia quanto estratgia adotada pela comunidade internacional em relao ao Haiti. Fazia eco s manifestaes de desapontamento do embaixador Juan Gabriel Valds, representante especial do secretrio-geral da ONU e chefe da misso, e dos

    aP

    Crianas haitianas jogam futebol no bairro Cit Soleil. (2004).

    governos de pases latinos. Considero primordial que alguma coisa acontea de prtico e visvel, em termos de reconstruo nacional.

    Desejo que a elite intelectual e poltica do Haiti assuma o papel que lhe cabe e se una em torno de um pacto de governabilidade. Esquea as desavenas do passado e aproveite a presena estrangeira bem-intencionada e financeiramente poderosa para recuperar a estabilidade, incentivar os investimentos e o crescimento econmico. Espero que o fantstico e sofrido povo haitiano, pioneiro na conquista da sua independncia, escolha seus futuros governantes dentre aqueles haitianos capazes de restabelecer a democracia e o Estado de direito, de reconstruir o pas e pavimentar um futuro melhor.MR

    Referncias

    1. importante ressaltar que o mandato da MINUSTAH amparado no captulo VII, que autoriza as medidas necessrias imposio da paz, uma vez que, ainda hoje, persiste alguma confuso entre aqueles que insistem em classificar a misso como uma simples misso de manuteno da paz. A utilizao do captulo VII e o reconhecimento de apenas uma parte como legtima (o governo transitrio do Haiti) caracterizam uma misso de imposio da paz.

    2. United Nations Mission in Haiti (UNMIH) 1993 a 1996; United Nations Support Mission in Haiti (UNSMIH) 1996 a 1997; United Nations Transition Mission In Haiti (UNTMIH) 1997; e Mission de Police Civil des Nations Unies en Hait (MIPONUH) 1997 a 2000.

    3. Inegavelmente, houve demora da maior parte dos contingentes dos pases envolvidos em perceber que a misso era efetivamente uma misso de imposio da paz, e no simplesmente manuteno da paz. Tal demora resultou em postura das tropas por vezes classificada como tmida, por relutarem em usar a fora alm da autodefesa, em interpretao excessivamente conservadora das regras de engajamento.

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007 1

  • Oposio Contra o Aperfeioamento das

    Redes Insurgentes

    O Coronel Thomas X. Hammes do Corpo de Fuzi le iros Navais dos EUA escritor e comentarista muito conhecido em assuntos militares. Bacharel pela Academia Naval dos EUA e Ps-Graduado pela Escola de Comando e Estado-Maior do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e pela Escola de Defesa Nacional do Canad. Atualmente, est fazendo seu Doutorado em Histria Moderna na Oxford U n i v e r s i t y . O C o ro n e l Hammes serviu como chefe das foras operacionais do nvel de peloto at batalho no territrio continental dos EUA, na Somlia, Iraque e em outras localidades no ultramar. autor de The Sling and the Stone: On War in the 21st Century (Zenith Press, 2004), um livro amplamente discutido sobre como combater uma insurgncia moderna.

    Coronel (R/1) Thomas X. Hammes, CFN dos EUA

    O primeiro passo para resolver o desafio que enfrentamos hoje no Iraque, ou no futuro em outras zonas de combate similares, entender que a insurgncia e a contra-insurgncia so dois tipos de conflitos muito diferentes. O resultado do emprego de Foras Especiais contra os insurgentes no Vietn para eliminar os guerrilheiros com suas prprias tticas de guerrilha foi, sem dvida, a soluo errada para o problema ao supor-se que o insurgente e o contra-insurgente podem empregar o mesmo mtodo para alcanar objetivos muito diferentes.

    Minha definio de insurgncia baseada no Insurgency and Terrorism de Bard ONeil. Ele enfatiza que a insurgncia pode ser definida como uma luta entre um grupo que no est no poder e as autoridades governantes. O grupo que deseja tomar o poder usa conscientemente recursos polticos, como a percia organizacional, a propaganda ou manifestaes e a violncia para destruir, reformular ou suster o fundamento de um ou mais aspectos da poltica.1

    A contra-insurgncia como definida por Ian Beckett, est longe de ser um problema puramente militar... a coordenao de ambos os esforos civis e militares deve ocorrer em todos os nveis e com o aproveitamento de dados fornecidos pela inteligncia...2

    A primeira vista, estas definies sugerem que a insurgncia e a contra-insurgncia so similares porque as duas requerem uma ao poltica e militar. Entretanto, quando analisadas em sua plenitude, o desafio muito diferente para o governo, que deve governar eficazmente e realizar alguma coisa para a populao ou para o Pas. Os insurgentes, por outro lado, somente tm que propor algumas idias para um futuro melhor medida que asseguram que o governo no pode funcionar com eficcia.

    No Iraque, a resistncia nem sequer tem planos para um futuro melhor. Sua meta terrorista simplesmente assegurar que o governo no funcione. Esta meta negativa mais fcil de alcanar do que governar. Por exemplo,

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review 14

  • mais fcil e direto empregar a fora do que aplicar tcnicas polticas econmicas e sociais. Os insurgentes podem empregar a violncia para desacreditar um governo, em funo da dificuldade de se cumprir com o contrato social bsico de proteger a populao. No obstante, a simples aplicao da violncia pelo governo pode restaurar esta legitimidade. Na obra clssica de David Galula, Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice, o autor explica a diferena entre a insurgncia e a contra-insurgncia em termos muito claros: a guerra revolucionria... representa um caso excepcional, no porque suspeitamos que tenha regras especiais diferentes das guerras convencionais, mas tambm porque a maioria delas no aplicvel aos dois tipos de conflitos. Numa luta entre uma mosca e um leo, a mosca no pode dar um golpe letal, mas o leo, tambm, no pode voar. A guerra a mesma para ambas as partes em termos de espao e tempo, embora na realidade existam duas formas distintas de guerra a do revolucionrio e poderamos dizer a do contra-revolucionrio.3

    As Caractersticas Durveis da Insurgncia

    Mao Tse-Tung escreveu seu famoso livro On Guerrilla War (Yo Chi Chan) em 1937. Apesar do transcurso do tempo, muitas de suas observaes bsicas sobre a insurgncia ainda so vlidas. Antes de tudo, a insurgncia uma luta poltica, no militar. Ela no receptiva a uma soluo puramente militar sem que recorra a um nvel de brutalidade inaceitvel pelo mundo ocidental. A violncia extremamente brutal infringida pela Rssia na Chechnia matando quase 25% da populao e destruindo suas cidades no resultou em vitria.

    O segundo fator consiste na vontade poltica das foras contra-insurgentes. Se a populao sente-se descontente quando enfrenta durante muito tempo os sacrifcios da situao e os custos cada vez maiores resultantes da contra-insurgncia, os insurgentes vencero. Isto tem acontecido todas as vezes que os EUAintervm nas operaes contra-insurgentes. Durante os ltimos trinta anos os insurgentes aprenderam que no tm que derrotar militarmente os EUA para forar a sua sada da insurgncia; apenas tm que derrotar sua vontade poltica. Os atuais insurgentes doAfeganisto e do

    redes insurgentes

    Novas Caractersticas da

    Insurgncia

    O surgimento de coalizes de voluntrios centrados em redes;

    a evoluo para organizaes transdimensionais;

    A auto-suficincia financeira; e Uma grande variedade de

    motivaes entre os diferentes elementos da coalizo.

    Iraque sabem disso e estabeleceram a quebra da vontade poltica dos EUAcomo principal objetivo dos seus esforos.

    Um terceiro aspecto inaltervel da insurgncia tem a ver com a durao. As insurgncias so medidas em dcadas e no em meses ou anos. Os comunistas chineses lutaram durante 27 anos. Os vietnamitas lutaram contra os EUA por mais de uma dcada. Os palestinos vm resistindo contra Israel pelo menos desde 1968. Quando a contra-insurgncia vence, porque lutou durante muito tempo. Tanto a Emergncia na Malsia quanto a insurgncia em El Salvador duraram 12 anos.

    Finalmente, apesar dos norte-americanos possurem uma fascinao pela alta tecnologia, esta no oferece uma grande vantagem em uma contra-insurgncia. Alis, no passado, a parte menos sofisticada em termos de tecnologia sempre venceu. O fator que tem sido mais decisivo na maioria das contra-insurgncias so os traos humanos de liderana, entendimento cultural e objetivo poltico.

    Em suma, os fatores cruciais de uma insurgncia que no tm mudado so: a natureza poltica, o prazo prolongado e a natureza intensamente humana em vez de tecnolgica.

    As Caractersticas Emergentesda Insurgncia

    Embora estas caractersticas especficas da insurgncia continuem constantes, a sua natureza tem evoludo em outras reas. Como em todas as formas de guerra, a insurgncia

    Military review Janeiro-Fevereiro 2007 15

  • se adapta s condies polticas, econmicas, sociais e tcnicas da sociedade na qual surge. Esses movimentos no so produtos especiais de organizaes unipartidrias como a de Mao ou a de Ho Chi Minh. As organizaes insurgentes de hoje so integradas por coalizes independentes, com voluntrios e redes humanas que abrangem o nvel local e internacional. Isto reflete como esto estruturadas algumas organizaes grupais da sociedade e a realidade que as organizaes mais bem-sucedidas so redes em vez de hierarquias.

    Alm de serem integradas por coalizes, as insurgncias tambm operam em todo o mbito das organizaes nacionais e transnacionais. O fato dessas redes se estenderem pelo mundo inteiro, como os rabes que lutaram ao lado dos

    A insurgncia pode ser definida como uma luta entre um grupo

    que no est no poder e asautoridades governantes. O

    grupo que deseja tomar o poder usa conscientemente recursos

    polticos, e a violnciapara destruir, reformular ou suster o fundamento de um

    ou mais aspectos da poltica. Bard ONeill, Insurgency and Terrorism

    talibs no Afeganisto, os afegos que lutaram na Bsnia e os muulmanos da Europa que agora esto surgindo no Iraque, tornam essa participao um elemento regular das insurgncias.

    As metas dos diferentes elementos que integram uma coalizo podem variar em uma insurgncia. Atualmente, no Afeganisto, alguns insurgentes simplesmente querem dominar suas prprias regies, outros querem governar uma nao. Al-Qaeda luta por um califado transnacional (no isl um instituto governante religioso liderado pelo califa). No Iraque muitos insurgentes sunitas querem um governo secular, no qual possam dominar o Pas. Outros sunitas os salafistas querem uma sociedade islmica estrita governada pela Sharia. Entre os xiitas, Muqtada Al-Sadr envolveu-se primeiro em operaes insurgentes, mas mudou para a rea poltica,

    enquanto mantinha uma milcia poderosa e uma base de apoio geogrfica nos bairros da cidade de Sadr. Embora temporariamente afastado das aes insurgentes, suas foras continuam sendo um fator importante em qualquer conflito armado. Outras milcias xiitas tambm esto preparadas para entrar na equao militar caso seus esforos polticos atuais no alcancem os objetivos desejados. E, finalmente, os elementos criminosos no Afeganisto e Iraque lutam no conflito, principalmente, para alcanarem suas metas.

    s vezes at o dio pelos estrangeiros no o suficiente para impedir que vrios grupos da mesma coalizo lutem entre si. O engajamento entre faces distintas passou a ser um problema contnuo para os insurgentes anti-soviticos no Afeganisto na dcada de 80, sendo algumas vezes tais conflitos explorados por comandantes inteligentes. Observamos hoje os mesmos sintomas no Iraque.

    Essa mistura complexa de pessoas e motivos agora o padro para as insurgncias. Se os insurgentes conseguirem seus objetivos de expulsar a Coalizo do Iraque e do Afeganisto, suas coalizes de voluntrios extremamente diversos no tero condies de formar um governo coeso, pois suas incompatveis crenas resultaro em uma luta contnua at que uma faco domine as outras. Isto foi o que aconteceu no Afeganisto depois que os insurgentes expulsaram os soviticos. Uma desunio semelhante ocorreu na Chechnia depois da retirada dos soviticos em 1996. A luta interna cessou somente quando os russos retornaram para estabelecer o seu prprio governo. Na Faixa de Gaza, evacuada recentemente, observa-se, tambm, os sinais de uma luta pelo poder.

    Um componente essencial para entender as recentes insurgncias o fato de terem sido formadas por coalizes. Durante muito tempo, os lderes americanos declararam que a insurgncia no Iraque no podia ser genuna porque no tinha nenhuma causa ou lder unificador, portanto no podia representar uma ameaa. Os insurgentes no Afeganisto, Chechnia e Palestina no eram unidos por uma crena ou liderana e o que os mantinha unidos era a expulso do poder estrangeiro. Esses insurgentes, no entanto expulsaram a Unio

    Janeiro-Fevereiro 2007 Military review 16

  • redes insurgentes

    Sovitica e continuam a enfrentar os EUA, Rssia e Israel, respectivamente. A falta de unidade nas insurgncias atuais dificulta a sua derrota. uma caracterstica que temos de aceitar e entender.

    Devido f lexibi l idade caracters t ica das organizaes bem-sucedidas, muitas insurgncias agora so adimensionais bem como transnacionais. medida que os esforos ocidentais reduziram o nmero de refgios para os insurgentes, esses passaram agressivamente a gravitar para o espao virtual.Agrande capacidade da banda larga neste domnio aumentou muito a utilidade da Internet para os insurgentes. Com o incremento das comunicaes e da propaganda, os insurgentes e seus contrapartes terroristas passaram a recrutar, averiguar os recrutas, o doutrinamento teolgico, o adestramento e a disposio logstica pela Internet. Os insurgentes nunca tm que encontrar um recruta pessoalmente at que se sintam vontade com a situao, a ento, podem usar a Internet como um site de encontro que eles podem controlar. A enorme disponibilidade de salas de conversas com senhas de acesso protegidas permite aos insurgentes realizar reunies dirias com pouca probabilidade de serem descobertos. Alm das agncias de inteligncia ocidentais terem de descobrir estas salas de conversas em meio a milhes de outras no espao virtual e as senhas usadas, elas precisam de algum que possa falar o idioma dos insurgentes e que seja, tambm, convincente para evitar que o outro participante saia do sistema. E, logicamente, os insurgentes podem mudar das salas de conversas normais para as privadas tornando ainda mais difcil a tentativa de infiltrao.

    Outra mudana importante nas insurgncias a auto-suficincia dos insurgentes. Os grupos modernos implementam sistemas de arrecadao de verbas convencionais e tambm administram organizaes beneficentes, negcios e empresas criminosas. No passado, a maioria das insurgncias dependia de um ou dois principais colaboradores, os quais os EUA podiam submeter a uma presso econmica ou diplomtica. Atualmente, os mais variados esquemas de arrecadao de verbas somados possibilidade de transferncia desse dinheiro fora do sistema oficial bancrio dificultam ainda mais um ataque s finanas insurgentes.

    Formular abordagem internacional;

    Opor as ideologias mltiplas; Conhecer a cultura e a sua

    histria; e lidar com os estrangeiros.

    Caractersticas EmergentesDa Contra-insurgncia

    As Caractersticas Persistentes da Contra-insurgncia

    Tanto as insurgncias como as contra-insurgncias possuem caractersticas persistentes. A arma fundamental da contra-insurgncia um bom governo. Enquanto os insurgentes somente tm de continuar a existir e realizar ataques espordicos, o governo deve aprender a governar eficazmente. A existncia de uma insurgncia indica que o governo fracassou na sua misso. Em suma o contra-insurgente se encontra numa situao desvantajosa.

    O primeiro passo de um governo contra a insurgncia deve ser o estabelecimento da segurana da populao. Sem uma segurana eficaz e contnua, no importando se a populao apia ou no o governo, eles tm de cooperar com os insurgentes ou sero mortos. Contudo, proporcionar apenas a segurana no o suficiente. O governo deve tambm fomentar a esperana de seus cidados de um futuro melhor para seus filhos se no para si mesmo.Alm disso, este futuro deve estar de acordo com o desejo da populao e no com o que desejam as foras contra-insurgentes. A campanha estratgica dos vilarejos no Vietn e a nfase ideolgica de liberdade no Iraque so exemplos do que as foras contra-insurgentes consideraram o melhor para o futuro, mas estes no foram muito bem aceitos pela populao. No Vietn, os campesinos eram muito apegados a seus terrenos, mas na cultura islmica a justia tem mais valor que a liberdade.

    A opinio do futuro deve abranger a dignidade da pobreza que Thomaz L. Friedman identificou

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  • to claramente como um motivador para os terroristas.4 A populao no apenas deve ter a esperana do que considera uma vida melhor, mas tambm o sentimento de dignidade resultante da possibilidade de opinar sobre o seu prprio futuro.

    Aguerra no Iraque tem provocado recentemente muitos debates sobre a sua transio de guerra de terrorismo para uma de insurgncia e por fim para uma guerra civil. Embora isso seja muito importante do ponto de vista do insurgente, no determina os primeiros passos que as foras contra-insurgentes devem tomar para vencer esta luta. Como sempre, o primeiro passo proporcionar segurana populao. Se a populao deixar de apoiar o governo por medo dos insurgentes, terroristas ou outros grupos violentos o governo s pode comear a recuperar sua credibilidade ao prover uma segurana eficaz. Esta segurana pode variar de acordo com a ameaa, mas a necessidade bsica no pode ser negociada. Portanto, os conceitos fundamentais da contra-insurgncia seguem sendo o mesmo: prover segurana para a populao e uma verdadeira esperana para o futuro.

    As Caractersticas Emergentes da Contra-Insurgncia

    As foras contra-insurgentes devem tambm reconhecer as caractersticas emergentes da insurgncia. Para lidar com o tipo de redes transnacionais dos insurgentes, as foras contra-insurgentes devem organizar uma metodologia verdadeiramente internacional para enfrentarem os assuntos de segurana. Ademais, no devem se opor a uma s ideologia, mas a todas as ideologias da variedade de grupos que participam de uma insurgncia. uma gigantesca tarefa porque atacar a ideologia de um grupo pode reforar a de outro. Um combate ideolgico bem-sucedido tambm requer que as foras contra-insurgentes tenham um profundo entendimento cultural e histrico da populao em um conflito. O xito nesse tipo de luta ser difcil de alcanar, mas pode ser obtido se o governo atacar a coalizo insurgente exacerbando as diferenas entre os grupos.

    Finalmente, o governo deve encontrar uma maneira de enfrentar a variedade de elementos externos que passaram a se unir com a insurgncia.

    Entre eles, somente os seguidores verdadeiros podem ser capturados ou mortos; os outros devem ser convencidos a deixar a insurgncia e regressar vida civil. Quando possvel, as foras contra-insurgentes devem evitar que os guerrilheiros estrangeiros retornem a seus pases de origem e l difundam o conflito. Sem dvida, isto ir requerer uma grande cooperao internacional. As naes envolvidas deveriam estar ansiosas para cooperar na preveno do retorno desses guerrilheiros violentos e potencialmente rebeldes.

    Visualizando a InsurgnciaCom a combinao das caractersticas

    perdurveis e emergentes nas insurgncias, surge a pergunta de como melhor analisar a forma moderna. essencial para as foras contra-insurgentes possuir um claro conhecimento da insurgncia. A histria recente mostra que, no princpio, os poderes convencionais interpretaram erroneamente e com mais freqncia a insurgncia. Na Malsia, os britnicos levaram quase trs meses para formular uma metodologia consistente para enfrentar a insurgncia comunista. Como observou John Nagl, aproximadamente em 1950 que foi reconhecida a natureza poltica da guerra.5

    No Vietn, o General Creighton Abrams e o Embaixador Robert Komer somente em 1968 idealizaram um plano eficaz para enfrentar os vietcongues no Sul. No Iraque, foram quase dois anos para concluir que estvamos enfrentando uma insurgncia e ainda estvamos debatendo sua composio e metas.

    Para combater de maneira eficaz uma insurgncia, mister primeiro entend-la. Devido complexidade inerente de uma insurgncia moderna, a melhor ferramenta para visualiz-la um mapa da rede. As foras contra-insurgentes devem traar um diagrama das redes humanas em ambos os lados do conflito em razo dos seguintes motivos:

    Um mapa das conexes humanas reflete como operam as insurgncias na realidade. Um mapa das redes revelar a escala e a profundidade das interaes entre distintos indivduos e ndulos e mostra o impacto de nossas aes contra estas conexes;

    Um mapa da rede traado no decorrer do tempo pode mostrar como mudanas no ambiente

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    Um Tenente-Coronel do Exrcito dos EUA se rene com soldados iraquianos para planejar uma operao de encordoamento e busca para capturar insurgentes conhecidos na vila de Majidiah, Iraque, 13 de agosto de 2006.

    afetam ndulos e vnculos na rede. De novo, este conhecimento crucial para entender como nossas aes afetam insurgncia;

    Os modelos das redes humanas levam em considerao o carisma e a sagacidade de tal forma que um simples organograma no o pode fazer;

    As redes procuram ativamente oportunidades para crescer. Ao estudar os mapas de redes, podemos observar onde ocorre o crescimento e sua importncia para os insurgentes e governo. Ao estudar quais reas da rede insurgente crescem mais rpido, podemos identificar os membros mais eficazes da insurgncia bem como suas melhores tticas e atuar de acordo com essa anlise;

    As redes atuam entre si de maneira complexa que no podem ser mostradas em um organograma organizacional;

    Os mapas das redes mostram as conexes do nvel local at o internacional e revelam quando os insurgentes empregam a tecnologia moderna para estabelecer relacionamentos distncia mais importantes e estreitos do que os locais;

    As redes demonstram a natureza dimensional e transnacional das insurgncias de forma que nenhum outro modelo pode fazer. Tambm podem revelar as conexes insurgentes com o governo da nao anfitri, a comunidade civil e quaisquer outros membros presentes no conflito;

    Finalmente, se comeamos a entender as diferenas entre as redes subjacentes e as redes insurgentes, podemos analis-las ao empregar uma srie emergente de ferramentas. Em seu livro Linked: The Science of Networks, Albert Laszlo

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  • Barabasi mostra esses novos instrumentos: uma srie de recentes descobrimentos impressionantes nos forou a reconhecer que algumas leis internacionais, extraordinariamente simples e de grande alcance, governam a estrutura e a evoluo de todas as redes complexas ao nosso redor.6

    Devemos tambm empregar a construo de redes quando planejarmos nossas organizaes. Em vez da composio hierrquica que habitualmente empregamos quando nos apresentamos, um esquema de redes nos permitir entender muito mais como as polticas de pessoal afetam nossas operaes. Quando planejamos uma organizao de maneira hierrquica, parece que nossas polticas a respeito do rodzio de pessoal tm um mnimo efeito na nossa organizao. Um indivduo sai

    A contra-insurgncia como definida por Ian Beckett,

    est longe de ser um problema puramente militar... a coordenao de ambos os

    esforos civis e militares deve ocorrer em todos os nveis e

    com o aproveitamento de dados fornecidos pela inteligncia...

    e outro igualmente qualificado o substitui no organograma; no h nenhuma indicao visual do impacto em nossa organizao. Porm, se planejarmos nossas organizaes como redes, poderemos entender os danos massivos que causam nossas polticas de rodzio de pessoal. Quando uma pessoa chega ao pas e assume um cargo por um perodo determinado, ele provavelmente conhece somente o seu chefe e algumas pessoas na repartio. Em uma rede, ele aparecer apenas como um pequeno ndulo com poucas conexes e encontrar velhos amigos em outros empregos em todo o teatro. No mapa da rede iremos observar seu crescimento, de um pequeno ndulo para um eixo principal. Veremos gradualmente suas conexes com outras organizaes militares, agncias governamentais dos EUA e pases aliados, agncias da nao

    anfitri, ONG e outras organizaes afins. Fica muito claro que quando este indivduo deixar a organizao, observaremos que um eixo extenso ser instantaneamente substitudo por um ndulo pequeno com poucas conexes. Sentir-nos-emos ainda mais agitados quando observarmos o impacto em massa que causa a sada simultnea de vrios eixos na funcionalidade da nossa rede.

    Para nos ajudar na construo de mapas de rede, podemos usar um dos vrios programas de software anti-gangue que nos permite seguir a pista de indivduos e visualizar seus contatos. Estas so essencialmente verses sofisticadas das antigas bases de dados de personalidades-organizaes-incidentes, que nos permitem vincular as partes de inteligncia que temos para construir uma imagem visual das conexes reveladas. Por exemplo, detemos um suspeito perto de um local onde houve um atentado, investigamos sua identidade no banco de dados e achamos que, embora nunca tenha sido detido, tem grandes relaes com um homem que sabemos muito bem est envolvido com um partido poltico. Podemos ento investigar os outros membros da famlia e o partido para determinar se h outras conexes ao atentado, ao indivduo que est detido ou possvel organizao envolvida.

    Um software de qualidade permitir uma visualizao instantnea destas relaes em uma rede com cdigo de cores que podemos projetar em uma parede, imprimir ou transmitir para outros analistas. Um software bom quase instantaneamente consegue fazer o que antes requeria centenas de horas de trabalho intensivo para vincular informaes isoladas e aparentemente desvinculadas. Isso nos permite buscar as conexes num terceiro ou quarto nvel na rede e, portanto, formar um mapa de rede muito mais til. Em particular, poderemos descobrir as brechas onde sabemos que devem existir conexes.

    H dez anos, esse tipo de software estava disponvel e era empregado para rastrear a atividade das gangues nos EUA. Desconheo a situao do software de inteligncia humana usado atualmente pelo Departamento de Defesa, mas duvido que tenha o grau de sofisticao para avaliar os nveis cruciais de companhia e peloto

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    Soldados iraquianos entregam bandeiras de seu pas aos cidados em um acampamento de pessoas desamparadas emHusaybah, Iraque, em 6 de novembro de 2005 durante a Operao Steel Curtain.

    na luta contra-insurgncia. Temos de buscar de qualquer maneira o melhor software e coloc-lo em uso. Se as cidades podem oferecer este tipo de informao polcia, nossas companhias e pelotes merecem o mesmo.

    Ao fazer um mapa das conexes humanas nas redes insurgentes, logo aplicando o conhecimento cultural e a teoria de redes s prprias redes, poderemos entend-las melhor. Podemos tambm empregar o dado de que a maioria delas se forma ao redor de redes sociais pr-existentes. Alis, esta metodologia j foi empregada. Marc Sageman realizou um estudo detalhado da Al-Queda e suas organizaes afiliadas, mapeou as conexes operacionais e logo as comparou s conexes sociais pr-existentes.7 Seu trabalho indica um caminho para uma anlise muito mais eficaz das organizaes insurgentes e terroristas.

    Os estudos de Sageman revelaram os ndulos e vnculos-chave em todas as partes da Al-Qaeda e como as mudanas no ambiente operacional, a longo prazo, afetaram estas partes. Sageman tambm identificou ambos os vnculos reais

    e virtuais entre indivduos e as organizaes componentes. Ainda mais importante, os estudos nos do um ponto de partida no qual podemos examinar qualquer rede: as conexes sociais pr-existentes de uma sociedade. Em vez de comear do princpio, podemos analisar dados de inteligncia limitados que coletamos do contexto social e cultural de uma insurgncia. Em breve, a metodologia de Sageman nos permite formular uma imagem da rede inimiga que podemos analisar.

    Segurana e no DefesaPara as foras contra-insurgentes, o elemento

    central em qualquer estratgia deve ser a populao. Os contra-insurgentes devem proporcionar um governo eficiente para conquistar a lealdade da populao. fcil dizer, mas ajudar outro pas a estabelecer uma boa forma de governo uma das tarefas mais difceis. O conflito no Iraque nos mostra a dificuldade em auxiliar o estabelecimento de um governo numa sociedade fragmentada. Alm da discusso se existe ou no uma guerra civil no Iraque, ainda

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  • no chegamos a um acordo se a estratgia que se emprega junto populao inerentemente ofensiva ou defensiva. Se considerarmos a defensiva, a maioria dos estrategistas estaria relutante em adot-la simplesmente porque a defesa quase nunca ganha as guerras.

    Nas contra-insurgncias, prover a segurana para a populao uma ao inerentemente ofensiva. Ningum contesta que durante guerras convencionais os ataques que conquistam o territrio inimigo para negar-lhes recursos, impostos ilegais e base de recrutamento so consideradas aes ofensivas. Mas por outro lado, quando realizamos operaes de controle da populao em uma contra-insurgncia, essas so consideradas defensivas, ainda que tenham o mesmo efeito: negam ao inimigo os elementos que precisa para operar.

    Uma operao de controle da populao a ao mais ofensiva que se pode tomar em uma contra-insurgncia. Da mesma maneira que em uma guerra convencional, uma vez que haja apropriao de uma parte do territrio inimigo, no se pode evacu-lo e devolve-lo. Se isso acontecesse, simplesmente restaurar-se-ia todos os recursos ao controle inimigo ao mesmo tempo em que se arruinariam o moral do governo, do povo e de suas prprias foras.

    Em uma contra-insurgncia, incurses rpidas e ataques de surpresa pelas grandes unidades so operaes inerentemente defensivas. Reagimos a uma iniciativa inimiga que deu a ele o controle de uma parte do pas. Passamos pela rea, talvez capturamos ou matamos alguns insurgentes e logo retornamos s nossas posies defensivas. Em suma, cedemos o terreno principal a populao e seus recursos aos insurgentes. Talvez tenhamos infringido um revs ttico temporrio ao inimigo, mas a um custo mais alto em relao a nossos objetivos operacionais e estratgicos. O fato de realizarmos incurses rpidas e no ficarmos com o terreno, expe a fraqueza do governo populao e violncia, numa demonstrao de que est se fazendo pouco para melhorar a segurana ou para criar perspectivas de uma vida melhor.

    claro que as operaes de controle da populao so as verdadeiras operaes ofensivas em uma contra-insurgncia. Tambm claro que o governo anfitrio e as foras dos

    EUA raramente tero um nmero suficiente de tropas para realizar estas operaes em escala nacional no incio do esforo contra-insurgente. Portanto, devemos priorizar as reas que devero receber os recursos para proporcionar a segurana completa e permanente, o controle da populao e a reconstruo. A estratgia de varrer, manter e fortalecer a correta. No obstante, devem-se reconhecer as limitaes das foras governamentais e, por um perodo pr-determinado, ceder o controle de alguns elementos da populao aos insurgentes a fim de proporcionar a proteo eficaz para o resto do povo. Isto , sem dvida, alguma abordagem branca, cinza ou preta empregada pelos britnicos na Malsia.8 Como citou Sir Robert Thompson, Como os recursos de um governo, especialmente em matria de mo de obra, so limitados, o planejamento da contra-insurgncia deve tambm priorizar as medidas que sero tomadas e nas respectivas reas em que devem comear. Se a insurgncia ocorre em uma escala nacional, impossvel atacar em todas as reas. importante entender que em certas reas s possvel realizar uma operao de manuteno.9

    Alm disso, a reconstruo pode ter incio se concentrarmos nossas foras para estabelecer uma segurana eficaz em algumas reas ao invs da iluso de proporcionar segurana em todo o pas. A combinao resultante de segurana e prosperidade contrastar marcadamente com as condies nas reas controladas pelos insurgentes. Quando tivermos foras suficientes para desdobrar nestas reas, a populao poder ser mais receptiva presena do governo.

    Comando e Controle Existe um refro antigo referente ao

    planejamento militar: Estabelea as relaes de comando e controle corretamente e o resto se resolver por si mesmo. prudente afirmar que os soldados provero solues somente se forem bem liderados em uma organizao funcional. O primeiro passo e, frequentemente o mais difcil, em contra-insurgncia integrar o comando e a execuo da fora amiga. Observe que eu disse integrar e no unificar. A natureza dimensional e transnacional das insurgncias atuais impossibilitaro o desenvolvimento da verdadeira unidade de comando para todas as

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    Um soldado norte-americano conversa com vrios afegos sobre as atividades insurgentes na aldeia de Alazai na Provncia de Ghazni, Afeganisto, 18 de setembro de 2006.

    organizaes necessrias ao combate de uma insurgncia. Em vez disso, devemos nos dedicar para conseguir a unidade de esforo ao integrar os esforos de todos os participantes.

    As Foras Armadas dos EUA no gostam de comits, embora esses possam ser a estrutura mais eficaz para o comando em uma contra-insurgncia. Deveria existir um comit executivo para cada subdiviso poltica principal, do nvel municipal e provincial at o nacional. Cada comit deve incluir todos os elementos-chave que tomam parte no esforo contra-insurgente lderes polticos como o primeiro ministro, governadores e pessoas afins, policiais, oficiais de inteligncia, financiadores e apoiadores (incluindo as ONG), ministrios de servios pblicos e as foras armadas. Os lderes polticos devem ter autoridade total para oferecer empregos, despedir e avaliar os outros membros do comit. Esses membros no devem ser controlados nem avaliados por suas matrizes no nvel superior, porque assim sendo o comit no obter a unidade de esforo esperada. Este passo

    requerer uma mudana em massa da cultura por intermdio dos canais hierrquicos normais que abarcam todos os assuntos relativos ao pessoal e promoes para os funcionrios do governo. Um dos obstculos para a mudana que muita gente pensa que a organizao hierrquica atual eficaz. Consideram-se cilindros de excelncia, em vez de mecanismos obstinados, ineficientes e ineficazes. Acima do comit no nvel nacional, que pode ser facilmente estabelecido em nossa atual organizao, precisamos de um comit regional. Graas natureza transnacional da insurgncia moderna, a equipe militar de apenas um pas no pode, por si mesmo, gerenciar todos os assuntos regionais e internacionais exigidos em uma contra-insurgncia eficaz. Portanto teremos que desenvolver uma equipe regional genuna. As atuais organizaes do Departamento de Defesa e do Departamento de Estado no se prestam bem para este tipo de estrutura e precisaro de um extenso realinhamento de uma mudana extremamente necessria.

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  • Uma vez estabelecidos os comits nacionais e regionais, Washington deve emitir ordens tipo misso, destinar verbas e logo passar a gerncia da campanha ao pessoal no nvel regional e nacional. Obviamente, um dos maiores desafios neste sistema formar lderes para chefiar as equipes nacionais e regionais, particularmente os lderes civis americanos que devem ser enviados para a regio bem como os lderes das naes anfitris. Um desafio ainda maior ser convencer os burocratas de mbito nacional nos EUA a no intrometer-se nas operaes cotidianas.

    Uma vez estabelecidos, os comits podero usar um mapa da rede de insurgncia e do seu ambiente para fazer planejamentos e buscar a vitria. O mapa da rede oferece importantes informaes sobre a natureza da interao entre os eixos-chave e ndulos menores da

    Obviamente, um dos maiores desafios neste sistema

    formar lderes para chefiaras equipes nacionais e

    regionais, particularmenteos lderes civis americanos

    que devem ser enviadospara a regio bem como os

    lderes das naes anfitris.

    insurgncia. Embora os ndulos e eixos sejam os aspectos mais visveis de qualquer rede, o importante a natureza das atividades entre eles. Ao compreendermos este fato, entenderemos como funciona a rede na realidade. Isso difcil e o que o torna um desafio ainda maior que no se pode entender a rede, salvo no seu contexto natural. Para isso necessrio encontrar e empregar pessoal com o domnio do idioma rabe e o entendimento cultural para traar e interpretar nosso mapa.

    Velocidade versus Preciso O ciclo de observao-orientao-deciso-

    ao (observation-orientation-decision action OODA) traado pelo Coronel John Boyd para as contra-insurgncias apesar de continuar vlido, tem outro enfoque.10 A guerra

    convencional e, especialmente, o combate areo foram os instrumentos que incentivaram Boyd a desenvolver seu conceito: a velocidade era essencial para completar o ciclo de observao-orientao-deciso-ao e coloc-lo dentro do ciclo de observao-orientao-deciso-ao inimigo.Temos de empregar uma metodologia diferente na contra-insurgncia. Dar nfase velocidade no ciclo de decises simplesmente no faz sentido em uma guerra que pode durar uma dcada ou mais.

    Na contra-insurgncia, ainda queremos nos movimentar rapidamente, mas o enfoque deve ser mais na preciso (desenvolvida no segmento de observao-orientao do ciclo). O governo deve entender o que observa antes de decidir o que fazer. At hoje, os conceitos centrados em redes tm-se concentrado na reduo da velocidade entre a deteco e o disparo (o segmento de deciso-ao de Boyd). Depois devemos nos concentrar no aperfeioamento da qualidade do segmento de observao-orientao. E o mais importante, o ciclo de observao-orientao-deciso-ao se expande no apenas para rastrear no terreno a reao do nosso inimigo, mas tambm a reao de todo o ambiente a populao, o governo da nao anfitri, nossos aliados, nossas foras e at mesmo a nossa prpria populao.

    Atacar a Rede Em virtude de operaes ofensivas eficazes

    em uma contra-insurgncia serem baseadas na proteo da populao, a ao direta contra os insurgentes de importncia secundria; no obstante, esta ao continua sendo uma parte necessria do plano geral de campanha. Uma vez que entendamos a rede insurgente ou grandes segmentos da mesma, podemos atacar seus elementos individualmente. Mas, s devemos faz-lo se os ataques apiam nossos esforos de proporcionar segurana populao. Se houver uma grande possibilidade de danos colaterais, no devemos atacar porque esses, por sua prpria natureza, reduzem a segurana da populao. Alm disso, os regulamentos fundamentais para atacar uma rede so diferentes dos empregados quando se ataca um inimigo convencional. Primeiro, em uma contra-insurgncia melhor explorar

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  • um ndulo conhecido que atac-lo. Segundo, se tiver de ser atacado, a melhor opo o ataque ligeiro que introduz a desconfiana na rede. Terceiro, se tiver que fazer um ataque mais violento, deve realiz-lo simultaneamente contra os vnculos relacionados ou os efeitos sero menores. E finalmente, depois do ataque, aumentar a observao para ter conhecimento de como a insurgncia pretende comunicar ou reparar os danos. medida que buscam estabelecer novos contatos, os novos ndulos sero mais visveis.

    A Campanha de InformaoUma parte integral de uma contra-insurgncia

    uma campanha de informao eficaz. Deve ter mltiplas metas como a populao do pas anfitrio, a populao americana, a comunidade internacional, os insurgentes e seus partidrios; deve ser integrada em todos os aspectos gerais da campanha e s pode ser eficaz se for baseada na verdade a manipulao poltica eventualmente se manifestar e ser muito difcil para o governo recuperar sua credibilidade.

    Alm disso, nossas aes freqentemente so to expressas que obscurecem nossas palavras. Quando afirmamos que representamos justia, mas no culpamos os oficiais superiores responsveis pela tortura, invalidamos a nossa mensagem e alienamos nossa audincia. Felizmente as aes positivas tambm contam. Os esforos para socorrer as vtimas do tsunami e do terremoto em 2004 e 2005 tiveram um grande impacto nas nossas audincias. Nossa campanha de informao deve basear-se na difuso da informao sobre nossas aes positivas. Assim sendo, nossas aes devem ser consistentes com a nossa retrica.

    Para estudar uma campanha de informao eficaz, recomendo avaliar a que os palestinos realizaram na Intifada de Schiff y Yari.11

    Resumo A atual guerra contra-insurgncia envolve a

    competio entre redes humanas as nossas e as deles. Para entender as redes de nossos inimigos temos de entender os vnculos pr-existentes das redes e o contexto cultural e histrico da sociedade. Tambm temos que entender no

    redes insurgentes

    apenas a rede insurgente, mas a do governo da nao anfitri, sua populao, nossos parceiros de coalizo, ONGs e, claro, a nossa.

    Uma contra-insurgncia completamente diferente de uma insurgncia. Em vez de focalizar seus esforos no combate, a estratgia consiste em estabelecer um bom governo ao reforar os ndulos amigos importantes ao mesmo tempo em que esmorecem os do inimigo. No Iraque, temos de ganhar o apoio da maioria da populao. O bom governo fundamenta-se em proporcionar segurana eficaz para a populao e criar esperana para o seu futuro; ele no deve estar orientado para matar os insurgentes e terroristas. Para proporcionar segurana temos de visualizar a luta entre e dentro das redes humanas participantes. Somente ento poderemos formular e executar um plano para derrotar os insurgentes.MR

    Referncias

    1. ONEILL, Bard E.; Insurgency and Terrorism: Inside Modern Revolutionary Warfare (Washington, DC: Brasseys Inc, 1990), p. 13.

    2. BECKETT, Ian F. W. ; editor, Armed Force and Modern Counter-Insurgency: Armies and Guerrilla Warfare 1900-1945 (Nova York: St. Martins Press, 1985), p. 8.

    3. GALULA, David; Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice (Nova York: Frederick A. Praeger Publishers, 1966), xi.

    4. FRIEDMAN, Thomas L.; A Poverty of Dignity and a Wealth of Rage, New York Times, 15 de julho de 2005, disponvel em: , acesso em 7 jul 2006.

    5. NAGL, John; Learning to Eat Soup with a Knife: Counterinsurgency Lessons from Malaya and Vietnam (Chicago, Illinois: University of Chicago Press, 2005), p. 71.

    6. BARABASI, Albert-Laszlo; Linked: The New Science of Networks (Cambridge, Massachussets: Perseus Publishing, 2002). Ver tambm SORLEY, Lewis; A Better War (Nova York: Harcourt, Brace, Jovanovich, 2003).

    7. SAGEMAN, Mark; Understanding Terror Networks (Filadlfia: University of Pennsylvania Press, 2004).

    8. Empregado pelos britnicos na Malaia, o esquema branco-cinza-preto um corolrio da estratgia de varrer, manter e fortalecer atualmente usada no Iraque. As reas brancas so completamente varridas da presena insurgente e prontas para a reconstruo e iniciativas democrticas. As cinzas esto em litgio com as foras contra-insurgentes e insurgentes em uma luta ativa para obter vantagem. As reas pretas so controladas pelos insurgentes e principalmente ignoradas at que ocorra uma redistribuio de recursos governamentais de outras reas. Ver THOMPSON, Sir Robert; Defeating Communist Insurgency: The Lessons of Vietnam and Malaya (Nova York: Frederick A. Praeger, 1966), Captulo 10.

    9. Thompson, p. 55. 10. O Coronel Boyd expressou o conceito do ciclo OODA em uma extensa

    apresentao de eslaides. Para uma discusso do ciclo OODA e outras teorias de Boyd, ver Boyd and Military Strategy, disponvel em: , acesso em 10 jul 2006.

    11. SCHIFF, Zeev e YAARI, Ehud; Intifada: The Palestinian Uprising-Israels Third Front (Nova York: Simon and Schuster, maro de 1990).

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  • General (R/1) Walter L. Stewart Jr., Exrcito dos EUA

    O Exrcito de Voluntrios: Ainda

    Podemos Reivindicar que um Sucesso?

    O Secretrio do Exrcito Cal laway posi t ivamente brilhou. Em 1 de janeiro ele se encontrou com reprteres no Pentgono e afirmou que o Exrcito composto de voluntrios um sucesso. O Exrcito encerrou o ano de 1974 com um pouco mais de 783.000 homens e mulheres no servioativo,aproximadamente 1 .400 mi l i tares a mais do que seu efetivo total autorizado. Esse nmero foi alcanado com o alistamento d e a p r o x i m a d a m e n t e 200.000 voluntrios e com o reengajamento de outros 58.000 soldados.

    Robert K. Griffith Jr.1

    Em 1974, com apenas 20 meses de experincia, o Exrcito integrado somente por voluntrios foi declarado um sucesso. mas isso foi baseado num recrutamento aps o trmino de um contnuo perodo de combates e no incio de um prolongado perodo de relativa segurana nas guarnies e de operaes de manuteno de paz, entremeado por conflitos de curta durao.2

    mas podemos ainda reivindicar o mesmo sucesso em 2006 se consideramos o aumento da populao dos EUA de aproximadamente 100 milhes desde 1974, quase o dobro de pessoas elegveis devido oportunidade oferecida s mulheres de ingressar na maioria das especializaes militares, e as operaes que, embora perigosas, no foram tanto quanto os prolongados conflitos anteriores?3 Acredito que no, e