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Milton Machado - Para Chegar Ao Mictório Deve-se

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volta à pintura.

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    Gerhard Richter,Station, 1985Fonte: http://home.swipnet.se/

    ~w-26153 /art/richter/images/

    station.htm

    A R T I G O S M I L T O N M A C H A D O

    Uma tela pode estar completa a ponto

    de nem mais o ar poder passar por ela,

    mas s uma obra de arte se deixar

    espaos suficientes para que passem

    cavalos.2

    16. Para chegar ao mictrio deve-se descera escada. Em outras palavras: foi a tradioda pintura o que permitiu o aparecimentodo readymade. O readymade dialoga com atradio da pintura tanto quanto umCzanne dialoga com um Poussin ou quan-to um Rauschenberg dialoga com um deKooning meticulosamente apagado (Erasedde Kooning, 1953). Da que a manobra decolocar bigodes na Mona Lisa foi um desviooportuno para evitar barbeiragens. Em to-dos esses casos, trata-se de um mesmo tipode reverncia. Reverncia e traio: em arte,uma das modalidades mais elevadas da re-verncia ou o dilogo mais profcuo entreartistas a traio. Czanne dizia: Cadavez que me afasto de um Poussin tenho umaidia melhor de mim mesmo. No teria sidopara ter uma idia melhor de si mesmo queDuchamp precisou afastar-se de um

    Milton Machado

    Partindo da considerao de que a tradio da pintura e a tradio do readymade

    so tradies concorrentes portanto igualmente formativas e constituintes, no

    territrio da arte, de seus julgamentos e vigncias reflete-se sobre a condio de

    ambas as prticas no contexto da arte contempornea. Com ateno a determina-

    das posturas assumidas por artistas, crticos e historiadores no trato com a produ-

    o pictrica brasileira dos anos 80, sugere-se que uma reviso crtica de seus pos-

    tulados esteja ainda por fazer.

    Pintura e readymade, Brasil anos 80, estratgias de edio.

    retiniano Courbet? Pois: para que possa-mos ter uma idia melhor de ns mesmos,cada vez que nos afastamos de (um, outros)Duchamp, no seria preciso reverenciar oreadymade e a sua tradio? Caso contrrio,como poderemos tra-los?

    15. A histria no passa procurao, da que preciso cuidado com os veredictos, princi-palmente os que se pretendem histricoscom suas sentenas finais. Isso vale para overedicto que Joseph Kosuth pretendeu de-finitivo, em Arte Depois da Filosofia (ArtAfter Philosophy, 19693 ) em que se recusa pintura (e escultura) o papel de investi-gar a natureza da arte. Ora, o readymadeno veio para decretar o fim da pintura e desuas investigaes, e sim para decretar massem oferecer garantias a continuidade daarte. Por isso, a pintura-em-continuidade tevee tem que levar em conta o readymade, suaexistncia e sua tradio. Em outras palavras:para reencontrar a pintura, o artista devevoltar a subir as escadas que o levaram aomictrio. Vestido, de preferncia, vale dizerrecomposto, com a compostura que se es-

    Para chegar ao mictrio deve-sedescer a escada (em dois lances de 8 ou 80)1

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    pera de um artista que presta suas homena-gens s fontes, e a todas as demais his-trias da arte.

    14. Voltar a subir as escadas: seria isso o quese quis dizer nos anos 80, quando sepropalava a tal volta da pintura? Ora, no a volta da pintura o que era importantenos anos 80. A pintura, de fato, nunca se foi.O importante era o interesse dos artistaspela persistncia da imagem, pela sobrevi-vncia da imagem como elemento potencialde significao, em um momento de suamxima saturao por abuso de exposioe excesso de visibilidade, e que poderiamlev-la a um estado de mximo esvaziamen-to de sentido. S que essa pesquisa, essevoltar-se para a imagem, no privilegiou ummeio em particular no privilegiou a pintu-ra, como no privilegiou a fotografia ou ovdeo ou o cinema justamente porque oestado de mxima saturao da imagem ten-de a homogeneizar todo e qualquer supor-te (isso, no entanto, no impede que se possaconsiderar as fotografias, por exemplo, deuma Cindy Sherman mais significativas ouinteressantes do que as pinturas, por exem-plo, de um David Salle, para o desenvolvi-mento da pesquisa nos Estados Unidos e para a prpria potencializao da imagemuniversal).

    13. A arte, em sua longa e contnua histriade descontinuidades, j teve que dar contade outras rupturas. Michael Baxandall, em OOlhar Renascente,4 lembra-nos que, com osdesenvolvimentos da perspectiva noQuattrocento, aumentou consideravelmen-te a incidncia de ngulos retos e de formasprismticas, tanto na pintura quanto na es-cultura e na arquitetura vale dizer, no real.Outra ruptura, e com efeitos igualmenteimportantes sobre a imagem e a represen-tao, ocorreu no sculo 19, com a inven-o da fotografia. Muitos acreditavam que a

    fotografia decretaria o fim da pintura (damesma forma que alguns cientistas do scu-lo 19 afirmaram que as viagens de trem, de-vido s altas velocidades, fariam mal sa-de, deixando incurveis seqelas, incluindoa cegueira e as doenas mentais). No entan-to, sabemos da relevncia da fotografia paraas conquistas do Impressionismo, assim comosabemos que o Impressionismo visto pormuitos como doena mental ou cegueira foi um descarrilamento da pintura que colo-cou a arte devidamente nos trilhos.

    12. Uma pintura que leve em conta o apare-cimento e a tradio do readymade. Quepintura seria essa? Difcil dizer, a no ser quese adote o tom de blague modernista deum Greenberg vaticinando que uma tela embranco j uma pintura, embora nonecessariamente uma pintura bem-sucedi-da. menos importante dizer que pintura essa do que fazer dessa pintura uma pinturabem-sucedida. Em outras palavras: poss-vel que os esforos dos pintores que se de-dicaram quilo que, nos anos 80, costuma-va-se chamar de m pintura tenham resul-tado em uma pintura que d conta da exis-tncia e da tradio do readymade. Afinal,no fosse a estratgia de apropriao e no-meao que tpica do readymade, a estra-tgia de apropriao e nomeao da pintura(gnero) pelos bons pintores de ms pintu-ras no teria sido possvel. A assim nomea-da, ainda que nem sempre apropriada, mpintura dos anos 80 presta mais homena-gens aos piores readymades do que s me-lhores pinturas. Uma boa m pintura dosanos 80 menos uma grande pintura doque o Grande Vidro uma grande pintura.O Grande Vidro no um trabalho de pin-tura, mas um trabalho da pintura, assimcomo a pintura um trabalho da arte. possvel que os cubistas mais ortodoxos(Gleizes, Metzinger...) tenham reconhecidoser esse o caso de Nu Descendo a Escada, e

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    Gerhard RichterToilet Paper, 1965Fonte: http://www.gerhard-richter.com/

    exhibitions/detail.php?exID=297&

    show_per_page=8&page_selected

    =1&paintID=4995

    A R T I G O S M I L T O N M A C H A D O

    que tal reconhecimento os tenha levado, emnome da pintura, dos veredictos, dos trata-dos e da ortodoxia, a recus-lo. Se ao me-nos o nu descesse vestido...5 (vale dizer, re-composto etc. etc...)

    11. Uma pintura que leve em conta a tradi-o do Grande Readymade e a tradio daGrande Pintura deve ser uma pintura capazde agentar o tranco de ser taxada comoalgo em que se tropea quando, andandopara trs, nos afastamos para ver melhor umainstalao, performance ou qualquer outraobra contempornea que no seja de pintu-ra subvertendo a clebre e irnica defini-o de Ad Reinhardt de escultura.6 S queo objeto contemporneo em questo, estetambm tem que segurar o tranco de po-der ser taxado assim: toda vez que me afas-to desse objeto eu tenho uma idia melhorsobre a pintura.

    10. No sei se o leitor j conseguiu localizarem seus arquivos visuais exemplossatisfatrios dessas tais pinturas que levemem conta a tradio essa e aquela do gran-de isso e aquilo Eu tambm teria dificul-dades em formular uma lista de pintores cujaspinturas eu considero isso e aquilo Maseu gostaria de dar dois exemplos que meparecem bvios, de artistas estrangeiros:Gerhard Richter e Robert Ryman, exemplosde pintores do tipo que estou sugerindo queprocuremos.7

    Vendo essas imagens de pinturas de Richtere, mais ainda, ouvindo com ateno o pr-prio pintor afirmar eu pinto para fazer foto-grafia (um pintor que afirma isso, colocan-do a fotografia na rota de um estratgicoafastamento da pintura e/ou o contrrio s pode estar querendo provocar nossostropeos, para que caiamos de cara e emcheio tanto nesta quanto naquela): no nosparece, como sugeri, que as estratgias deRichter so muito mais prximas de um certonominalismo pictrico (o termo deDuchamp) do que de um certo e irrestrito(puro) pictorialismo? No seria mais con-veniente classificarmos essas pinturascomo exemplos de um incerto e restritopictorialismo? De um pictorialismo vagante,extravagante, errante, que caminha (s)emqualquer direo? Que, se prope algumadireo para a pintura, o faz na direo opos-ta da Grande Pintura, com a qual parecemarcar e atualizar um permanentedesencontro? Que, diante da grande narra-tiva que a Grande Pintura constituiu noModernismo, a recupera por meio de pe-quenas grandes pinturas que magnificam aspequenas narrativas?

    Reprodues fotogrficas no fazem justiaa pinturas, em especial s de Robert Ryman.Essas imagens ilustram o ensaio RadiantDispersion (Disperso Radiante), por Jeffrey

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    Robert Ryman,Prototype, 2002Fonte: Artforum, setembro 2002

    Weiss, para a revista Artforum, setembro de2002. Trata-se de um texto sobre Prototype(Prottipo), uma srie recente de trabalhosde Ryman, cuja execuo envolve aplicaese retiradas de fitas adesivas, at a fixao dossuportes so placas delgadas de acetato ao muro, pela prpria aderncia da tinta.8

    Cito duas frases do autor que o editor sele-cionou como chamadas (traduo minha):

    Pode-se dizer que os trs Prottipos jproduzidos at agora [2002] consti-tuem manifestaes efmeras de um

    trabalho que tambm existe num esta-

    do puramente conceitual. O ttulo re-

    flete perfeitamente essa ambigidade:

    cada encarnao da pintura, completa

    por em e si mesma, tambm um pro-

    ttipo para a prxima.

    Um Prottipo de Ryman se auto-sus-tenta. Comeando com as pinturas pro-

    duzidas por remoo de fitas, esse fei-

    to improvvel que , acima de tudo,

    uma jogada de extrema inteligncia e

    humor representa um desenvolvi-

    mento histrico na filosofia e na prti-

    ca da pintura.

    9. Diante deste trabalho de Ryman, que bus-ca uma pintura (quadros) autoportante, todoestrutura, parece fazer mais sentido ainda apergunta (de Arthur Danto, nossa): Robert

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    Ryman representa o fim ou um reincio dapintura? No sei se h resposta nem se ocaso de se procurar responder a tal pergun-ta. O que sabemos que a pintura de Rymanrepresenta um modo de a pintura convivercom os tantos outros modos de se fazer arte:performance, instalao, foto, filme, vdeo,aes de toda ordem. Sim, porque essesProttipos, antes e depois de serem pintu-ras mas sem deixar de ser pintura, so aes,so atos de pintura.

    8. Mas, e da? No seriam todas as pinturasatos de pintura? O que teriam ento estaspinturas de extraordinrio, que possa noslevar a caracterizar como pintura mais o atoque as engendra do que os resultados osfatos consumados de tais atos de pintura?No seria, ento, melhor pens-las, ainda apartir desse seu meio, mas na direo deum outro fim, outro fim que no os resulta-dos que tais pinturas apresentam, no fim? Oque quero dizer que atos de pintura po-dem ter outros fins alm de se constituircomo pinturas. Em outras palavras: um dosfins de uma pintura que leva em conta essae aquela tradio do grande isso e aquilo,isto e agora falando clara e francamente

    , de uma pintura que j se quer contempo-rnea, trair a pintura que j se quis pura.

    Ora, no foi a pintura que se quis pura;quem queria que a pintura se quisesse puraeram os grandes crticos modernistas, comoClement Greenberg e Michael Fried, que serecusavam a ouvir da pintura ou da arte seus pedidos lancinantes de eu quero chocolate (um blend, mistura processada apartir de gros distintos de cacau). J mereferi maldosamente em outro tex-to,9 frustrao de Michael Fried (em Artand Objecthood, 196710 ) diante de suabola de cristal, vendo tudo e prevendode tudo com impressionante acuidade enitidez performances (happenings), ins-talaes (ambientes), intervenes no es-pao real (land-art, earth works), aesteatrais de toda ordem, que lhe eramincomodamente contemporneas e re-clamando, contrariado: Mas que droga debola de cristal, que me mostra tudo, me-nos o que mais quero ver, quando o quemais quero ver o mais puro cristal!

    Assim como o mais impuro cascalho con-temporneo assombrava a bola do mais puro

    Robert Ryman,Prototype, 2002Fonte: Artforum, setembro 2002

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    cristal modernista, a pintura que j se quispura assombra a pintura-em-continuidadecom o fantasma de uma pinturadescontinuada. Pois justamente essadescontinuidade aquilo a que se costumareferir como morte da pintura. A morteda pintura como um fantasma modeladoem chiaroscuro. A morte da pintura s nosinteressa se for mantida viva tarefa essaque cabe a ns, imortais.

    7 (PATAMAR). Essas aes de Robert Ryman(e mesmo certas aes do pictorialismo in-certo e vagabundeante de Gerhard Richter)incorporam, inevitavelmente, operaes deCOPY e PASTE. O que pretendo sugerir que as estratgias de EDIO so uma ca-racterstica do trabalho contemporneo, eno apenas de trabalhos de arte contempo-rnea, mas de qualquer trabalho que pre-tenda, no mbito de suas particularidades,operar sobre as verdades. Operar sobre asverdades uma maneira de se manipular oReal. Exemplo: a transmisso de guerrasreais por diferentes canais de televisomostra guerras diferentes, e irreais. Cer-tas guerras so, nessa lgica, melhoresprogramas do que outras.

    Bem, j foi o tempo tempos de Mondrian,Malevich etc. em que era necessrio a pin-tura operar sobre a verdade que afirmavaque a pintura o real: pintura comopresentao, e no mais como represen-tao. Hoje, o tal Real no basta como ver-dade para as operaes sobre as verdadesda pintura. A pintura, que j se quis pura,que j se quis representao, que j se quispresentao, hoje quer contar histrias: nar-rar. E essa narrativa inclui contar, da prpriapintura, essas suas prprias e as imprpri-as histrias. A rigor, a pintura sempre quiscontar histrias; mas essa sua prerrogativaancestral esbarrou e tropeou no duroe puro cristal do credo formalista, que sedisps a extirpar, da pintura e da arte, toda

    e qualquer exterioridade. E conseguiu: a dic-o formalista conta, da pintura e da arte,uma histria imprpria, ao considerar que apintura e a arte tm algo de prprio.

    E a est alguma justificativa para a persistn-cia ps-moderna da imagem e da recupera-o de seu potencial de significao, a queme referi. At Manet, que nos acostuma-mos a ver apontado como o precursor dapintura moderna (ver Greenberg em Pintu-ra Modernista,11 por exemplo) por causa desuas conquistas formais, de suas manchascromticas, da autonomizao do gesto e dacor, da afirmao da planaridade etc., estsendo revisto e re-estudado e, cabe frisar, apartir dos anos 80 e at, com especialbrilhantismo, pelo prprio Michael Fried, coma proposta de se recontextualizar Manet,agora pelo vis dos dramas, dos temas, dahistoricidade vale dizer, das narrativas que sua pintura encerra.12

    6. possvel que a utilizao das tcnicas deedio de COPY e PASTE ajudem (mas semgarantias) a pintura contempornea a darconta dessa e daquela tradio do grandeisso e aquilo. A boa utilizao de tais tc-nicas pode levar produo de eficazesnarrativas. Operar sobre as verdades danarrativa equivale a escrever a histria. Issopode soar como uma deslavada mentira,mas a histria mais verdadeira, mesmo quesuja e impura, a histria mais bem escrita.No fosse assim, as histrias escritas porGreenberg e Fried (sobre limpeza e pure-za) no mereceriam o crdito que lhes devido. A boa utilizao das tcnicas deedio de COPY e PASTE pode evitar queuma pintura seja cpia ou pastiche da pin-tura j editada no passado que hoje se querreeditar bem.13

    5. So muitos os pintores contemporneos(alm de Richter e Ryman) que se utilizamde tcnicas de edio para produzir suas

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    prprias narrativas. S para citar alguns exem-plos imediatos, desta vez de artistas brasilei-ros, e que comearam a trabalhar nos anos80: Beatriz Milhazes, Adriana Varejo, LedaCatunda, Daniel Senise, Luiz Ernesto, LuisZerbini... No s por isso, mas tambmpor isso que se mantm aquecido o interes-se por suas narrativas e, de modo geral (naverdade, particular), por suas pinturas.

    4. Mesmo que nos aproximemos, perigosa-mente, da Grande Cpia, h diversas moda-lidades de mmesis: pode-se copiar a natu-reza, podem-se copiar pinturas, podem-secopiar fotografias... Das vrias modalidadesda mmesis, a mais problemtica fazer c-pias da arte. E uma de suas conseqnciasmais problemticas que coisas que se pa-recem com arte fazem com que o circuito eo mercado se paream com arte.

    Quando, nos anos 80 (e pelo mundo afora),o circuito e o mercado falavam de um re-torno da pintura, talvez pretendessem queuma certa pintura de retorno traria de voltaa arte, e a arte de volta vida. No entanto,sabemos: s uma arte assombrada revisionista, historicista pode retornar doalm para vi-ver de novo, e mesmo assimcomo cpia, repetio e pastiche (COPY/PASTE no garantia). Nos anos 80 (e pelomundo afora), talvez influenciados por umZeitgeist apressado, sem tempo suficientepara constituir um esprito, muitos crticosoperavam mal sobre as verdades da pinturaporque escreviam mal a histria (ou a teo-ria) da arte.14 Entre ns, a tendncia domi-nante era a de representar jovens artistascomo uma espcie de empiristas inspiradosembalados por alguma forte emoo, afa-gando certa (ou uma incerta, restrita) pin-tura expressionista com carcias de vampi-ro, e atribuindo a preferncia a algum tipode fissura geracional. Por isso, muito daque-la crtica, muitas daquelas pinturas e muitosdaqueles pintores j no produzem reflexes

    no espelho. Ou melhor, produzem: se ob-servarmos o espelho mais atentamente, paraalm do lusco-fusco e da homognea pali-dez de superfcie, veremos que jaz ali umapotncia adormecida. Zeitgeist: o mostradorda meia-noite o mesmo que anuncia omeio-dia: de um lado, mancha cromtica; dooutro lado, borro.15

    3. Finalmente, ainda no cruzamento entrea edio e a reedio, proponho um jogo,com recursos de traduo, traio,ilusionismo e vampirismo, onde me utilizode tcnicas de COPY e PASTE para pro-duzir uma pequena narrativa sobre modosde operar sobre as verdades, ainda que como risco de delet-las:

    2. Naqueles anos 80, arautos de uma pintu-ra de retorno procuraram instilar um vrus(com o pretexto de SALVAR a arte, bementendido) que quase acabou por compro-meter seu prprio sistema operacional. Umvrus antipluralista, que parecia querer con-fundir ou apagar da memria, principalmen-te, a produo dos anos 60 e 70, acusando-a de posturas indesejveis, herdadas de suaigualmente suspeita linhagem conceitual.Lembro-me de ter assistido a uma palestrade um importante crtico, em uma galeriaigualmente importante do Rio de Janeiro,ambos franca e sinceramente envolvidos coma propagao da boa nova o retorno dapintura na qual se fez uma seleo cuida-dosa de quais artistas teriam alguma rele-vncia para o desenvolvimento da entoemergente produo de pintura. Em outraspalavras, quais artistas eram capazes de pro-duzir reflexes em seus espelhos. Picabiaentrou. Duchamp ficou de fora.

    Pretendendo fazer de Duchamp entreoutros (um, outros) excludos da projeode slides em loop da histria da arte um

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    desafeto de jovens pintores, alguns crti-cos influentes com o devido reconheci-mento da relevncia de suas atuaes pro-fissionais e de suas contribuies para a re-flexo (se quisermos, sobre a natureza daarte) pareciam querer impedir que jovenspintores produzissem uma pintura afetada.Uma pintura afetada seria uma pintura que um meio entre os meios. Uma pintura que um meio entre os meios faz pensar emcontnuas trocas de lugar, em movimentosde contnua e permanente translao/tradu-o/tradio/traio, at como formas derefrescar nossas memrias sobre as sutile-zas da etimologia. Ao contrrio, colocandoa pintura no centro em um momento (depluralismo) em que j no havia mais cen-tros, em que s havia meios, entremeios,espaos-entre, distncias-em-proximidade,pareciam querer impedir a pintura de tradu-zir-se para outros idiomas, deixando-a falan-do sozinha, autocentrada e ensimesmada,produzida mas improdutiva, inchada mas ain-da faminta e por chocolate.

    1. DELETAR uma forma de apagar damemria, em alguns casos sem a devida reve-rncia, nem que seja pelos zeros e pelosuns, entre outras sutis diferenas, em umsistema que no tem nada de binrio. Porcaprichos de programao, o vrus que de-veria deletar o que se costumava referirpela alcunha geral e imprecisa de con-ceitualismo, e que se procurava culparpor atitudes indesejveis tais comohermetismo, racionalismo, elitismo, ouat mesmo por uma imperdovel empfia,quase acabou deletando o que se preten-dia salvar. Ainda bem que prevaleceu a ve-lha regra do salve-se quem puder. E a pin-tura-em-continuidade SALVE! essa feliz-mente pde, e ainda pode.16

    ZERO. Piso onde j cho. Sugiro chegar amais esse fim que reinicia o trreo com o

    embalo de Joo Cabral de Melo Neto, poe-ta tradicional. O que se segue a segundaparte do poema Na morte de Marques Re-belo, que Cabral dedicou memria do es-critor e amigo, neste ano [2007] em que secomemora ou se deveria comemorar coma devida reverncia seu centenrio de nas-cimento (06/01/1907).

    E como Jos Maria Dias da Cruz, que pin-tor e amigo tradicional (mais prximo dos80 anos do que dos anos 80), uma esp-cie de memria viva de Marques Rebelo, queera seu pai e amigo, creio que podemosrededicar o poema (numa estratgia lareadymade) memria viva da pintura, dospintores, dos escritores, de seus pais, de seusfilhos, legtimos, bastardos, e de todas as suasfamlias.

    Fuzilar o gesto no vo;

    mas que o gesto assim fuzilado

    prossiga no seu vo vivo

    e conserve vivo seu pssaro.

    Fuzilar o gesto de jeito

    que aquele vo assim cortado

    no se corte num instantneo;

    mas continue a voar parado.

    Continue ainda a se fazer,

    a se voar, com todo espao;

    conserve o gesto e o pulso de antes,

    e no morra, embora caado.

    16. ... espaos suficientes para que passemcavalos ...

    Milton Machado artista plstico. Professor da Esco-la de Belas Artes, no Departamento de Histria eTeoria da Arte e no Programa de Ps-Graduao emArtes Visuais, PPGAV/EBA/UFRJ. Tem textos publica-dos em diversos meios impressos e on-line . pesqui-sador do CNPq.

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    Notas

    1 Este texto uma verso revista e modificada de palestracom o mesmo ttulo, contribuio do autor ao ciclo dedebates sobre os anos 80, organizado por GuilhermeBueno, no MAC-Museu de Arte Contempornea deNiteri, agosto de 2003.

    2 Huang Pin-Hung, citado por Gilles Deleuze e Felix Guattari,in O que filosofia, Editora 34, 1997.

    3 Disponvel em http://www.ubu.com/papers/kosuth_philosophy.html

    4 Michael Baxandall, O olhar renascente: pintura e experin-cia social na Itlia da Renascena, Jorge Zahar Editores,1989.

    5 sabido, segundo relato irnico, fatalmente do pr-prio Marcel Duchamp, que o jri do salo de inspira-o cubista que recusou Nu Descendant un Escalier(1912), do qual faziam parte os pintores e tericosAlbert Gleizes e Jean Metzinger (autores do tratadoDu Cubisme, 1912), teria solicitado ao artista que mu-dasse ao menos o ttulo.

    6 Escultura, segundo a definio de Reinhardt, seria aquiloem que se tropea quando nos afastamos para ver me-lhor uma pintura.

    7 Citar pintores tais como Rauschenberg, Johns, Warhol,Lichtenstein... seria apelar demasiadamente para o b-vio. No entanto, nunca demais remeter ao texto OtherCriteria, de Leo Steinberg (Outros Critrios, traduopublicada em Clement Greenberg e o debate crtico,org. Glria Ferreira e Cecilia Cotrim de Melo, tr. MariaLuiza X. de A. Borges, Jorge Zahar Editores, Rio de Ja-neiro 1997), e a sua definio da flat-bed painting pra-ticada por Rauschenberg, cujos suportes presisavam serresistentes o suficiente para suportar, por assim dizer, opeso do mundo (mundo sobre tela?).

    8 Vdeos sobre Prototype podem ser vistos em http://www.pbs.org/art21/artists/ryman/clip1.html

    9 The imaginary encounter between Hlio Oiticica andKasimir Malevich in the open air, or How an American

    art critic lent his innermost essence to a Dutch curator,contribuio do autor mesa-redonda sobre o trabalhode Hlio Oiticica, in IVA-International Institute for theVisual Arts, Londres, 1999, por ocasio do lanamentodo CD-Rom HO-Supra Sensorial, de Katia Maciel, pro-duo NImagem/UFRJ, Rio de Janeiro 1998.

    10 Ver Arte e Objetidade, in Arte&Ensaios, n. 9, PPGAV/EBA/UFRJ, 2002, tr. Milton Machado.

    11 Publicado em Clement Greenberg e o debate crtico,org. Glria Ferreira e Cecilia Cotrim de Melo, op. cit..

    12 Ver, a respeito dessa tendncia de re-interpretao deManet: Manets Modernism: the Face of Painting in the1860s, por Michael Fried, The University of Chicago Press,1996; Voici, 100 ans dart contemporain, Gand, 2000,por Thierry de Duve; e mais prximo de ns, A pinturada vida moderna: Paris na arte de Manet e de seus se-

    guidores, por T.J. Clark, tr. Jos Geraldo Couto, So Paulo:Companhia das Letras, 2004; A reinveno do realismocomo arte do instante, por Luiz Renato Martins, revistaArte&Ensaios, n. 8, PPGAV-EBA/UFRJ 2001, alm de,pelo mesmo autor, Manet, uma mulher de negcios, umalmoo no parque e um bar, Jorge Zahar Editores, Riode Janeiro 2007.

    13 No difcil demonstrar como o prprio Manet utilizouo que se poderia identificar como estratgias de edio melhor dizer, de montagem, arriscando uma tentativaaproximao do cinema em suas pinturas, de regrarejeitadas. O escndalo que Le Djeuner sur lHerbe,por exemplo, provocou entre seus detratores deriva em grande parte, mas no apenas de sua construofragmentada, como que por montagem a partir de re-cortes incongruentes, que a academia s poderia estra-nhar, respaldada pelas regras da boa composio e daunidade pictrica. Ver, a esse respeito, Manet..., de LuizRenato Martins, supra-citado.

    14 Isso vale, igualmente, para parte da crtica que, simetrica-mente celebrao interessada (o Zeitgeist um mos-trador de dupla-face), proclamava que a pintura haviachegado a um irremedivel impasse, portanto desprovi-da de qualquer interesse.

    15 De fato, os jovens pintores que comearam a atuar nosanos 80 eram exatamente isso: jovens artistas em inciode atuao, da que se deva considerar seus primeirostrabalhos como experimentaes, legtimas e de tododesejveis. Muitos daqueles artistas acabaram por afas-tar-se da pintura para se aproximar de outros meios. Sealgum reparo deve ser feito, trata-se de rever os postu-lados que, em geral, regiam a apropriao crtica dessaproduo, a meu ver ainda por fazer. Muitos crticosimportantes preferiram no dedicar a devida ateno atal produo, um parti-pri necessitando igualmente dereviso. Em muitos casos, coube aos prprios artistasencontrar, e no processo de produo de seus traba-lhos, referncias consistentes para o desenvolvimentode suas pesquisas, e, nos melhores casos, para a manu-teno de seu carter experimental.

    16 menos importante dizer que pintura essa do quefazer dessa pintura uma pintura bem-sucedida.

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