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GeoTextos, vol. 1, n. 1, 2005. Milton Santos 139-151 .139
Milton SantosOutubro, 1994
A questo do meio ambiente:desafios para a construo deuma perspectiva transdisciplinar1
1. Introduo
O tema proposto para o debate nos desafia a refletir, de imediato,
sobre duas questes polmicas que, hoje, preocupam as comunidades ci-
entficas, a saber: o problema da interdisciplinaridade e a questo do meio-
ambiente.
O grande desenvolvimento das diferentes cincias particulares, du-
rante o sculo XX, contribuiu para grandes avanos cientficos e
tecnolgicos, mas, tambm, levou a uma extrema especializao do sa-
ber, cuja conseqncia , freqentemente, o prprio comprometimento do
entendimento do mundo. A possibilidade dos saberes antigos sucumbi-
rem aos saberes novos faz com que os prisioneiros de uma viso imobilista
corram o risco de ficarem deriva diante da tarefa de interpretao do
presente.
A denominada crise ambiental a que hoje assistimos padece dessa
situao e deve suscitar uma reviso das teorias e prticas das diversas
disciplinas na medida em que demanda uma anlise compreensiva,
totalizante, uma anlise na qual as pessoas, vindas de horizontes diversos
e que trabalhem com a realidade presente, tenham o seu passo acertado
atravs do mundo, atravs de um legtimo trabalho interdisciplinar. Con-
cordamos (tambm) com Paulo Vieira (1993, p.103) quando este diz que
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"os problemas implicados na crise do meio-ambiente se caracterizam pelo
fato de exigirem para sua confrontao efetiva novos padres de organiza-
o das comunidades cientficas".
Como oferecer subsdios para uma epistemologia da questo do meio-
ambiente, que contribua para esse enfoque interdisciplinar? Mas, o que
esse trabalho interdisciplinar?
As disputas mantidas, desde o sculo XIX, "pelo monoplio do objeto
de estudo" (IGLESIAS, 1994, p.5), e o decorrente isolamento das discipli-
nas perderam significado em funo da complexidade dos dias atuais.
Para alcanarmos uma interdisciplinaridade vlida precisamos partir, de
metadisciplinas, o que nos obriga a nos inclinarmos diante da histria
contempornea. Do contrrio, chegaramos a uma interdisciplinaridade
coxa, fundada num afan de especialidade extrema, com todos os perigos
da analogia do tipo mecnico.
No levar em conta a multiplicidade de prismas sob os quais se apre-
sentam aos nossos olhos uma mesma realidade, pode conduzir constru-
o terica de uma totalidade cega e confusa. Mas, a necessidade de par-
tirmos de metadisciplinas, que conduzam viso sistemtica da totalida-
de, no exclui as especializaes, pois estas continuam sendo necessri-
as. Por isso, uma exigncia tambm essencial a de bem precisar o objeto
de estudo. Entendemos que um objeto de estudo supe uma viso do real,
que denota um sistema de pensamento: a partir do mesmo objeto as vi-
ses podem ser diferentes. toda a questo da objetividade do objeto e da
objetividade do sujeito que sempre se recoloca.
Os dados do problema no so dados a priori quando se trata de
definir a interdisciplinaridade. Tambm no podemos nos esquecer de
que para cada poca e cada objeto h uma interdisciplinaridade. Esta questo
no abstrata, pois no so propriamente disciplinas que esto em jogo,
mas aspectos da realidade total tornados autnomos e demandando um
tratamento especfico. Insistimos no fato de que o processo histrico muda
a significao do objeto e a verdade necessria tambm muda com o tem-
po que passa. Isso inevitvel, acarretando inclusive mudanas no pr-
prio elenco das disciplinas ou saberes interessados.
Da evoluo histrica resultam saberes novos, saberes renovados ou
em vias de transformao e cuja definio por isso mesmo difcil. O
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reconhecimento dessa evoluo histrica essencial. sempre temerrio
trabalhar unicamente com o presente e somente a partir dele. Mais ade-
quado buscar compreender o seu processo formativo. Quando nos con-
tentamos com o presente, e partimos dele, corremos o risco de estabelecer
uma cadeia causal inadequada que pode comandar o raciocnio numa
direo indesejada. tambm problemtico tomar como ponto de partida
uma vontade planejadora que ir igualmente influenciar o encadeamento
de fatos e idias.
Da a nossa proposta de rever a prpria construo histrica do objeto,
de modo a reconhecer os seus elementos formadores, avaliados no isola-
damente, mas segundo o respectivo contexto. Para isso, acreditamos que
um enfoque baseado no fenmeno tcnico o mais adequado, j que a
natureza e o espao se redefinem a partir da evoluo tcnica, cuja
periodizao pode servir de base ao reconhecimento de uma periodizao
na histria territorial, at chegarmos fase atual, em que a problemtica
do "meio ambiente" se impe.
2. Premissas de Base
Uma indispensvel premissa de base que no existe meio-ambien-
te diferente de meio. Tanto a geografia como a sociologia, desde o final do
sculo XIX, basearam boa parte de suas proposies nesta idia de meio
que ainda hoje vlida. Pensadores como Humboldt, Ritter, Vidal de La
Blache, Durkheim, entre outros, buscaram refletir a relao sociedade-
natureza, considerando o entorno das sociedades como um dado essencial
da vida humana.
O que hoje se chamam agravos ao meio-ambiente, na realidade no
so outra coisa seno agravos ao meio de vida do homem, isto , ao meio
visto em sua integralidade. Esses agravos ao meio devem ser considera-
dos dentro do processo evolutivo pelo qual se d o confronto entre a din-
mica da histria e a vida do planeta.
A histria do homem sobre a Terra a histria de uma ruptura pro-
gressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando,
praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivduo e
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inicia a mecanizao do planeta, armando-se de novos instrumentos para
tentar domin-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudana
na histria humana da natureza. Agora, com uma tecno-cincia, alcana-
mos o estgio supremo desta evoluo (SANTOS, 1994, p.16).
Diante das conseqncias advindas dos maus tratos ao meio e que
ameaam a vida no planeta, colocamos, desde logo, uma questo: o lcus
desses problemas o lugar e o mundo.
Na fase atual, momento em que a economia se tornou mundializada,
adotando um nico modelo tcnico, a natureza se viu unificada. Suas
diversas fraes so postas ao alcance dos mais diversos capitais, que as
individualizam, hierarquizando-as segundo lgicas com escalas diversas.
A uma escala mundial corresponde uma lgica mundial que, nesse nvel,
guia os investimentos, a circulao de riquezas, a distribuio de merca-
dorias. Porm, cada lugar o ponto de encontro de lgicas que trabalham
cm diferentes escalas, reveladoras de nveis diversos, s vezes
contrastantes, na busca de eficcia e de lucro, no uso das tecnologias e do
capital e do trabalho (SANTOS, 1994, p.19). Trata-se de uma natureza
unificada pela histria a servio dos atores hegemnicos, onde a tcnica
passou a ser mediao fundamental do homem com seu entorno.
Ao falarmos em meio-ambiente, portanto, temos que entender, antes
de tudo, a formao desse meio-tcnico que, hoje, passvel de ser apre-
endido na relao do lugar com o mundo, posto que a tcnica a base de
realizao da mundialidade como totalidade emprica (SANTOS, 1985) e
esta somente alcanada atravs dos lugares, na medida em que os luga-
res exprimem a funcionalizao do mundo.
A tcnica a grande banalidade e o grande enigma, e como enigma
que ela comanda nossa vida, nos impe relaes, modela nosso entorno,
administra nossas relaes com o entorno. Se, ontem, o homem se comuni-
cava com o seu pedao de natureza praticamente sem mediao, hoje, a
prpria definio do que esse entorno, prximo ou distante, o local ou o
mundo, cheio de mistrios. nesse sentido que, j em 1949, Georges
Friedmann nos aconselhava a considerar esse meio tcnico como uma "re-
alidade com a qual nos defrontamos", propondo, por isso, "estud-la com
todos os recursos do conhecimento e tentar domin-la e humaniz-la".
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3. A Construo do Objeto: A Importncia da Tcnica
Acreditamos que uma anlise histrica da chamada "questo
ambiental", vista do ponto de vista da tcnica, possa constituir um bom
ponto de partida para uma periodizao da problemtica e para o entendi-
mento da situao atual. A tcnica apareceria, assim, em cada perodo,
como uma espcie de "pivot", ou referncia, na constituio de um saber
interdisciplinar.
Nosso ponto de vista parte da premissa hoje adotada por inmeros
historiadores da cincia e filsofos da tcnica (B. Latour, A. Gras, J. Ellul,
entre outros), segundo os quais no se pode pensar em tcnica, ou, mais
explicitamente, em objeto tcnico, sem pensar paralelamente na sociedade
que os anima. Isso pode ser dito de maneira mais direta: nenhuma tcnica
, apenas, materialidade: a tcnica tambm social. E, sobretudo, nos dias
de hoje, neste perodo tcnico-cientfico da histria, nada puramente soci-
al, mas, tambm, igualmente tcnico. Enfim, tudo hbrido, misto.
Essa noo de hibridez e mistura constitui um dado fundamental na
constituio dos elementos da equao com a qual pretendemos traba-
lhar. Essa equao constituda por trs termos: (1) o primeiro dado
pelos sistemas tcnicos adicionados Natureza, em um lugar dado e em
um dado momento histrico, uma segunda natureza, j tecnicizada; (2) o
segundo dado pelas motivaes de uso dessa natureza segunda. Essas
motivaes de uso so locais e extralocais, crescentemente extralocais;
(3) o terceiro dado o grau de "indiferena" dos sistemas tcnicos utiliza-
dos, em relao com o meio que os acolhe, em outras palavras, o grau de
respeito dos sistemas tcnicos quanto s estruturas encontradas: estrutu-
ra do meio, visto como materialidade (em seus equilbrios ditos naturais)
e como sociedade (em seus equilbrios ditos sociais).
Haveria, assim, e numa delimitao grosseira, 3 grandes perodos:
1) o perodo pr-tcnico;
2) o perodo tcnico;
3) o perodo cientfico-tcnico-informacional.
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Antes, mesmo, de tentarmos caracterizar cada qual desses perodos,
necessrio frisar que essa periodizao, arbitrria como sempre, obedi-
ente, como sempre, s finalidades do tema e do autor, susceptvel de
uma sub-periodizao. As situaes eram dificilmente comparveis at a
poca recente, j que a unidade de evoluo do fenmeno tcnico igual-
mente recente. Mas, em cada rea, as diferenas de evoluo permitem
um tratamento especfico do respectivo tempo histrico.
1) O que estamos chamando de perodo pr-tcnico comporta uma
definio restritiva. Desde o homem social, os prprios objetos na-
turais, isto , as prprias coisas ganhavam um contedo social com
o seu uso humano. As transformaes impostas s coisas naturais
j eram tcnicas, entre as quais a domesticao de plantas e ani-
mais aparece como um momento marcante: o homem mudando a
Natureza, impondo-lhe leis. A isso tambm se chama tcnica. Mas
estamos, aqui, reservando a apelao perodo tcnico fase posteri-
or, inveno e ao uso das mquinas, j que estas, unidas ao solo,
do uma toda nova dimenso respectiva geografia.
Nesse perodo pr-tcnico os sistemas tcnicos no tinham existn-
cia autnoma. Sua simbiose com a natureza era total, e podemos dizer,
talvez, que o possibilismo da criao mergulhava no determinismo do
funcionamento. As motivaes de uso eram, sobretudo, locais, ainda que
o papel do intercmbio nas determinaes sociais pudessem ser crescen-
tes. Assim, a sociedade local era, ao mesmo tempo, criadora das tcnicas
utilizadas, comandante dos tempos e dos limites de sua utilizao. Essa
harmonia scio-espacial assim estabelecida era, desse modo, respeitosa
frente natureza herdada, no processo de criao de uma nova natureza.
Produzindo-a, a sociedade territorial produzia, tambm, uma srie de nor-
mas territoriais, cuja preocupao era preservar o meio de vida, para sal-
vaguardar a continuidade do processo. Exemplos disso so, entre outros, o
pousio, a rotao de terras, a agricultura itinerante, que so ao mesmo
tempo regras sociais e regras territoriais, tendentes a conciliar o uso e a
"conservao" da natureza: para ser, outra vez, utilizada. Esses sistemas
tcnicos sem objetos tcnicos, no eram, pois, agressivos, pelo fato de
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serem indissociveis em relao Natureza que, em sua operao, ajuda-
vam a se reconstituir.
2) O perodo tcnico v a emergncia dos objetos tcnicos e do espa-
o mecanizado. Os objetos que formam o meio no so, apenas,
objetos culturais; eles so culturais e tcnicos, ao mesmo tempo.
Quanto ao espao, o componente material crescentemente for-
mado do "natural" e da mquina. Dentro da populao total de
objetos de uma rea, o nmero e a qualidade de objetos tcnicos
varia. As reas, os espaos, isto , regies e pases, passam a se
distinguir em funo da extenso e da densidade da substituio,
neles, das coisas e dos objetos culturais, por objetos tcnicos.
Os objetos tcnicos, maqunicos, juntam razo natural sua prpria
razo, uma lgica instrumental que desafia as lgicas naturais, criando,
nos lugares atingidos, mistos ou hbridos conflitivos.
Os objetos tcnicos, o espao maquinizado, so lcus de aes "supe-
riores", no sentido de sua superposio triunfante s foras naturais, aes
ditas superiores pela crena de que atribuem ao homem novos poderes - o
maior, mesmo, nesse sentido, o de poderem enfrentar a Natureza natu-
ral, ou a Natureza j socializada do perodo anterior.
Nesse perodo, o corpo superado, pela transgresso dos limites
impostos pela resistncia dos materiais ou da distncia; e o homem come-
a a fabricar um tempo novo no trabalho, no intercmbio, no lar. Os tem-
pos sociais tendem a se superpor e contrapor aos tempos naturais.
O componente internacional da diviso do trabalho tende a aumen-
tar exponencialmente. Assim, as motivaes de uso dos sistemas tcnicos
so crescentemente estranhas s lgicas locais e, mesmo, nacionais; e a
importncia da troca na sobrevivncia do grupo tambm cresce. Como o
xito, nesse processo de comrcio, depende, grandemente, da presena
de sistemas tcnicos eficazes, estes buscam ser cada vez mais presentes e
cada vez mais eficazes. A razo do comrcio e no a razo da natureza
que preside sua instalao. Em outras palavras, sua instalao torna-se
crescentemente indiferente s condies preexistentes. A poluio e ou-
tras ofensas ambientais ainda no tinham esse nome, mas j so larga-
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mente notadas - e causticadas - no sculo XIX, nas grandes cidades ingle-
sas e continentais. E a prpria chegada ao campo das estradas de ferro no
deixa de suscitar protesto. A reao antimaquinista protagonizada pelos
diversos ludismos antecipa a batalha atual dos ambientalistas. Esse era o
lado social dos miasmas urbanos.
O fenmeno, porm, era limitado. Eram poucos os pases e regies
em que o progresso tcnico podia se instalar. E, mesmo nestes poucos, os
sistemas tcnicos vigentes eram geograficamente circunscritos, de modo
que tanto seus efeitos estavam longe de ser generalizados, como a viso
desses efeitos era, igualmente, limitada.
3) O terceiro perodo comea praticamente aps a segunda guerra
mundial e, sua afirmao, incluindo os pases de terceiro mundo,
vai realmente se dar nos anos 1970. a fase a que R. Richta (1968)
chamou de perodo tcnico-cientfico, que se distingue dos anteri-
ores, pelo fato da interao, nos dois sentidos, da cincia e da
tcnica, a tal ponto que certos autores preferem falar de tecno-
cincia para realar a inseparabilidade atual dos dois conceitos e
das duas prticas.
Essa unio entre cincia e tcnica e entre tcnica e cincia, vai se
dar sob a gide do mercado. E o mercado, graas exatamente cincia e
tcnica, torna-se um mercado global. Neste caso, a idia de cincia, a
idia de tecnologia e a idia de mercado global devem aparecer conjunta-
mente, oferecendo uma nova interpretao ao tempo presente, j que as
mudanas que ocorrem na natureza tambm se subordinam a esta lgica.
Neste perodo, os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo
tcnicos e informacionais, j que, graas extrema intencionalidade de
sua produo e de sua localizao, eles j surgem como informao; e, na
verdade, a energia principal de seu funcionamento a informao.
Como em todas as pocas, o novo no difundido de maneira gene-
ralizada e total. Porm, os objetos tcnico-informacionais conhecem uma
difuso mais generalizada e mais rpida do que as precedentes famlias
de objetos. Por outro lado, sua presena, ainda que pontual, marca a tota-
lidade do espao. por isso que estamos denominando o espao geogrfi-
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co do mundo atual como meio tcnico-cientfico-informacional (SANTOS,
1985 e 1994).
Quanto mais "tecnicamente" contemporneos so os objetos, mais
eles se subordinam s lgicas globais. Agora, torna-se mais ntida a asso-
ciao entre objetos modernos e atores hegemnicos. Na realidade, am-
bos so os responsveis principais pelo processo de globalizao.
Esses objetos modernos - ou ps-modernos - vo do infinitamente
pequeno ao extremamente grande, como, por exemplo, as grandes
hidroeltricas e as grandes cidades, dois objetos enormes cuja presena
tem um papel de acelerao das relaes sociedade-natureza, impondo
mudanas radicais natureza. A fome de energia um dado essencial ao
funcionamento do sistema econmico atual, do qual as megalpoles so
um dado e uma conseqncia. Tanto as grandes hidroeltricas, quanto as
grandes cidades, surgem como elementos centrais na produo do que se
convencionou chamar de crise ecolgica, cuja interpretao, insistimos,
no pode ser feita sem levar em conta, mais uma vez, a tipologia dos
objetos e as motivaes de seu uso no presente perodo histrico.
O progresso tcnico, sobretudo o desenvolvimento da informao,
permite mudanas no patamar da concorrncia dentro do capitalismo, le-
vando a que se imponha, agora, o que tambm se convencionou chamar
de competitividade e que aparece como uma equao nica a que todos os
pases devem se subordinar. Usada neste sentido, a palavra recente,
mas o fato j data de alguns lustros.
A busca de mais-valia ao nvel global faz com que a sede primeira do
impulso produtivo (que tambm destrutivo, para usar uma expresso de
J. Brunhes), seja aptrida, extraterritorial, indiferente s realidades locais
ou, vamos dizer assim, s realidades ambientais.
Talvez por isso a chamada crise ambientaI se produz neste perodo
histrico, onde o poder das foras desencadeadas ultrapassa a capacidade
de control-las, nas condies atuais de mundialidade e de suas repercus-
ses nacionais e locais.
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4. Problemas Atuais de uma Epistemologia do Meio Ambiente
Quando falamos em meio-ambiente em lugar de meio, certos enfoques
atuais podem aparecer como reducionistas, na medida em que eles ape-
nas se interessam por um dos aspectos de uma complexa problemtica.
Por exemplo, uma viso puramente ideolgica da questo, uma viso
puramente econmica ou uma preocupao exclusivamente tpica.
Estas redues, no caso da questo do meio-ambiente, renovam o
perigo j enunciado de sermos levados a elaborar uma cadeia causal que,
no caso do planejamento tpico, pode levar ao absurdo de fazer com que,
na produo do conhecimento, o efeito aparea precedendo a causa.
Grandes campanhas envolvendo financiamento de agncias interna-
cionais buscam preservar a Amaznia, recuperar o Tiet e a Guanabara,
salvar do extermnio naes indgenas e micos-lees-dourados. Mas o que
fazer diante dos pobres que continuam a chegar nas grandes cidades e
com os menores abandonados?
Visto por esse prisma reservado, o ambientaIismo seria uma redu-
o, embora assumindo ares de cientificidade em nome da salvaguarda
do planeta. Em que medida estas campanhas globais no estariam aniqui-
lando a fora dos conceitos, impondo novas formas de controle do trabalho
intelectual? No dizer de Bertha Becker e Paulo Gomes (1993, p. 162)
a influncia ecolgica como novo parmetro da geopoltica mundial atua sobdiversas formas; a mdia, a violenta retrao do crdito para projetos; as impo-sies da agenda internacional que define o que vai ser discutido e exclui temasessenciais; a proposta de converso da dvida por natureza, que corresponde criao de novos recortes territoriais, verdadeiros parasos experimentais para abiotecnologia - semelhana dos parasos fiscais - e que significa a retirada depores dos territrios nacionais do circuito produtivo.
Diante de ns, temos, hoje, possvel (e freqente), com a falsificao do
evento, o triunfo da apresentao sobre a significao, ainda que reclamando
uma ancoragem. Na questo do meio-ambiente, que revela essa faceta da
histria contempornea, esta ancoragem chama-se buraco de ozona, efeito-
estufa, chuva cida; e a ideologia se corporifica no imenso territrio da Ama-
znia (SANTOS, 1994, p.21). A fora das imagens tende, pois, a aniquilar os
conceitos, esvaziando-os das correspondentes significaes. Alguns estudio-
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sos j se debruaram, tambm, sobre essas questes. Eduardo Yzigi (1994,
p. 92), por exemplo, aponta que na sociedade contempornea "o destino do
planeta tornou-se indissocivel dos que nele habitam" e que justamente o
fator humano que deve ser recuperado nos movimentos ambientais, cuja
motivao principal no deve ser a "emoo". Segundo Ana Fani A. Carlos
(1994, p.77), "o discurso ecolgico tem substitudo o espao concreto da prti-
ca social do vivido, aquele de habitar no sentido amplo... Passa-se do vivido
ao abstrato para projetar essa abstrao no nvel do vivido. Neste sentido, a
natureza vira signo, e torna-se estratgica e poltica".
A mdia tornou-se o grande veculo desse processo ameaador da
integridade dos homens. Virtualmente possvel, pelo uso adequado de
tantos e to sofisticados recursos tcnicos, a percepo mutilada, quan-
do a mdia julga necessrio, atravs do sensacional e do medo, captar a
ateno. Muitos movimentos ecolgicos, levados pela mdia, destroem,
mutilam ou reprimem a Natureza... Quando o "meio-ambiente", como
"Natureza-espetculo", substitui a Natureza Histrica, lugar de trabalho
de todos os homens, e quando a natureza "ciberntica" ou "sinttica" subs-
titui a natureza analtica do passado, o processo de ocultao do significa-
do da histria atinge o seu auge. tambm desse modo que se estabelece
uma dolorosa confuso entre sistemas tcnicos, natureza, sociedade, cul-
tura e moral (SANTOS, 1994, p.24).
No atual processo de globalizao, o discurso assume papel funda-
mental na construo da "nova ordem", ou melhor, na ordem das coisas,
neste perodo tcnico- cientfico-informacional. Hoje, criam-se os objetos
e, depois, manda-se criar as disciplinas. Como recusar a confuso dos
espritos, numa Universidade, cuja temtica orientada pela moda e pela
mdia! (no dizer de VATTIMO, 1992).
Atravs da escolha das temticas e da seriedade da reflexo no trato
com os conceitos, como, no caso, o devido cuidado com o termo meio-
ambiente, encontraremos, talvez, possibilidades de ao. Contextualizar
a crise ambiental, fugindo de estudos tpicos e da seduo das campanhas
globais, toma-se uma necessidade urgente, se quisermos apreender e pro-
por solues para o meio-ambiente, que como j dissemos e vale insistir,
nada mais que o meio de vida do homem, constitudo, na sociedade
contempornea, como um meio tcnico-cientfico-informacional.
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Ainda aqui a histria do trabalho que nos ajuda a circunscrever a
problemtica, j que ela inclui a histria das tcnicas e dos sistemas soci-
ais, vistos como uma combinao histrica. a mesma proposta que nos
serviu de base para sugerir uma periodizao. Assim, revemos a produo
dos objetos tcnicos em relao com as motivaes do seu uso e os graus
de indiferena dos objetos e de seu uso em relao com o meio.
A tcnica (ou os sistemas tcnicos), como possibilidades usadas, mas,
tambm, e, sobretudo, como possibilidades ainda no usadas, permite
olhar para o presente e para o futuro e talvez isso venha permitir a supe-
rao da fbula que, num mundo globalizado, permeia as diversas moti-
vaes de uso, com os conseqentes graus de indiferena com as estrutu-
ras (materiais e sociais) do meio. A elaborao de uma cultura tcnica,
isto , de uma viso da tcnica que inclua todos os aspectos da vida e
todos os atores, dever nos permitir desvendar que o que est por trs da
"explorao selvagem da natureza" a prpria racionalizao da existn-
cia calcada nas relaes atuais entre tcnica e sociedade.
J que a tcnica define o presente e, sob muitos aspectos, limita ou
abre as portas do porvir, devemos explorar esse fenmeno em todas as
suas dimenses desde a propriamente tcnica e operacional, at as refe-
rncias culturais e polticas que comandam a sua incorporao na histria
do mundo e dos lugares. As relaes entre os homens, as relaes entre
os homens e o seu entorno, as chamadas relaes internacionais e
interlocais, o uso dos capitais, a natureza do trabalho, a vida no lar e at
mesmo a intersubjetividade so, hoje, subordinados, de forma ativa ou
passiva, s condies oferecidas pela tcnica em suas diversas manifesta-
es. So outros tantos campos do saber que se levantam e se renovam e
cuja explorao metdica, atravs desse tempo unificador, permite a cons-
truo de metadisciplinas que fundem, em bases adequadas, o indispen-
svel trabalho interdisciplinar.
Notas
1 Com a colaborao de Adriana Maria Bernardes da Silva, poca mestranda em geografia
na Universidade de So Paulo.
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