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Minha Filha Fuma Alice Walker Minha filha fuma. Enquanto ela faz o dever de casa, os pés na banqueta à sua frente e a calculadora dando respostas dos problemas de álgebra, olho para o maço quase vazio de Camels, descuidadamente deixado ao alcance da mão. Camels. Apanho o maço, levo para a cozinha, onde a luz é mais forte, e o examino, cigarros com filtro, o que em parte me consola. Meu coração fica apertado. Tenho vontade de chorar. Na verdade, choro um pouco, ali de pé ao lado do fogão, segurando um dos instrumentos, tão branco, tão bem- feito, que pode provocar a morte de minha filha. Quando ela fumava Marlboro e Players eu procurava não me importar muito; nenhum dos meus conhecidos fumava essas marcas. Ela não sabe, meu pai, seu avô, fumava Camels. Mas antes ele fumava dos “comuns”, quando era muito jovem e muito pobre, com olhos grandes como lanternas, fumava tabaco Príncipe Alberto e enrolava os próprios cigarros. Lembro-me da lata de fumo vermelho vivo com a figura do príncipe consorte da rainha Vitória de fraque preto e com uma bengala. O fumo era marrom escuro, pungente, um pouco amargo. Quando criança, experimentei mais de uma vez e as latas vazias eram usadas para muitas coisas: guardar botões e cordões de sapatos, sementes, e o melhor de tudo, guardar minhocas, nas raras vezes em que meu pai nos levava para pescar. No fim da década de 40 e começo dos anos 50 ninguém mais enrolava o próprio cigarro (e poucas mulheres fumavam) na cidade em que nasci, Eatonton, Georgia. A indústria de cigarro, aliada aos filmes de Hollywood, nos quais, tanto o

Minha Filha Fuma

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Minha Filha Fuma

Alice Walker

Minha filha fuma. Enquanto ela faz o dever de casa, os pés na banqueta à sua frente e a calculadora dando respostas dos problemas de álgebra, olho para o maço quase vazio de Camels, descuidadamente deixado ao alcance da mão. Camels. Apanho o maço, levo para a cozinha, onde a luz é mais forte, e o examino, cigarros com filtro, o que em parte me consola. Meu coração fica apertado. Tenho vontade de chorar. Na verdade, choro um pouco, ali de pé ao lado do fogão, segurando um dos instrumentos, tão branco, tão bem-feito, que pode provocar a morte de minha filha. Quando ela fumava Marlboro e Players eu procurava não me importar muito; nenhum dos meus conhecidos fumava essas marcas.

Ela não sabe, meu pai, seu avô, fumava Camels. Mas antes ele fumava dos “comuns”, quando era muito jovem e muito pobre, com olhos grandes como lanternas, fumava tabaco Príncipe Alberto e enrolava os próprios cigarros. Lembro-me da lata de fumo vermelho vivo com a figura do príncipe consorte da rainha Vitória de fraque preto e com uma bengala. O fumo era marrom escuro, pungente, um pouco amargo.

Quando criança, experimentei mais de uma vez e as latas vazias eram usadas para muitas coisas: guardar botões e cordões de sapatos, sementes, e o melhor de tudo, guardar minhocas, nas raras vezes em que meu pai nos levava para pescar.

No fim da década de 40 e começo dos anos 50 ninguém mais enrolava o próprio cigarro (e poucas mulheres fumavam) na cidade em que nasci, Eatonton, Georgia. A indústria de cigarro, aliada aos filmes de Hollywood, nos quais, tanto o herói, quanto a heroína fumavam como chaminés, conquistou completamente pessoas como meu pai, viciados em cigarro.

Mas ele nunca foi elegante como o príncipe Alberto, continuou sendo um negro pobre, gordo, cansado por excesso de trabalho e com uma grande família; negro, com um cigarro muito branco entre os lábios.

Não me lembro de quando ele começou a tossir. Talvez desde o começo. Uma pequena tosse seca de manhã quando acendia o primeiro cigarro. Quando eu tinha a idade de minha filha, a respiração dele era um chiado embaraçoso; não podia subir escadas sem descansar a cada três ou quatro degraus. Não era raro tossir durante uma hora.

É difícil acreditar que durante algum tempo ninguém compreendia que o fumo era um vício. Certa vez comentei com minha irmã, que está sempre

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tentando deixar de fumar, se nosso pai sabia disso. Perguntei qual era a impressão dela, fumante desde o ginásio, sobre seu hábito.

Foi nosso pai quem deu a ela o primeiro cigarro, certo dia, quando minha irmã foi levar água para ele, no campo.

_ Sempre imaginei por que ele fez isso, observou ela, intrigada e com alguma amargura.

_ O que ele disse?

_ Que eu não devia pedir cigarro para mais ninguém, respondeu ela, o que nem tinha passado pela minha cabeça.

Ele sabia que era um vício, pensei então, embora me sentindo revoltada, como minha irmã, com o fato dele achar que ela estava interessada.

Eu comecei a fumar quando estava no décimo primeiro grau, o mesmo ano em que tomei várias garrafas de vinho barato e muito doce. Meus amigos e eu, todos garotos nessa aventura, compravam cigarros e vinho do dono de um bar e loja de bebidas, fora do centro da cidade. Na entrada havia um grande cartaz dizendo PESSOAS DE COR. Não podíamos beber no bar, só comprar. Eu fumava Kools, porque era a marca usada por minha irmã. Naquele tempo eu achava encantadores seus lábios e gengivas escurecidas pelo fumo. Porém, meu corpo simplesmente não tolerava o fumo. Dentro de seis meses eu estava com uma inflamação crônica na garganta. Deixei de fumar, alegremente. Mas como tomar vinho era um ritual entre meus amigos: Murl, Leon e “Dog” Farley, eu continuei.

Meu pai morreu de pneumonia, “a amiga do homem pobre” num inverno rigoroso em que a bronquite e o enfisema tinham minado sua resistência. Duvido que ele ainda tivesse pulmões, depois de tossir durante tantos anos. Sua respiração era tão curta, nos últimos anos, que estava sempre apoiado em alguma coisa. Lembro que, numa reunião de família, quando minha filha tinha dois anos, meu pai a pegou no colo por um minuto, o tempo suficiente para que eu tirasse uma fotografia, e o esforço foi óbvio. No fim de sua vida, especialmente porque não tinha mais pulmões, ele deixou de fumar. Engordou alguns quilos, mas já estava tão emaciado que ninguém notou.

Quando visito os países do Terceiro Mundo vejo muita gente como meu pai e minha filha. Enormes cartazes parecem dirigidos a ambos: o homem de idade, forte do tipo “dominador” ou elegante, a jovem glamourosa, “ experiente”, os dois fumando. Nesses países pobres, como nos guetos da América e nas reservas índias, dinheiro, que devia ser gasto em comida vai para os fabricantes de cigarro; com o tempo, o povo se priva de comida e de ar, enfraquecendo e viciando seus filhos, finalmente destruindo-se. Leio nos jornais e na minha revista de jardinagem que os restos dos cigarros fumados são tão tóxicos que se um bebê engolir algum pode morrer, e que a água da fervura desses restos é um poderoso inseticida.

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Minha filha diz que gostaria de deixar de fumar. Nós duas sabemos que as estatísticas estão contra ela; a maioria das pessoas que tenta não consegue.1

Como mãe, isso me magoa profundamente. Em alguns dias é uma sensação de futilidade. Lembro do quanto eu cuidava de minha alimentação quando estava grávida, com que paciência ensinei minha filha a atravessar a rua em segurança. Para que, penso às vezes; para que ela possa passar a vida com a respiração difícil, com metade da sua capacidade vital e depois morrer auto-envenenada, como seu avô?

Mas, afinal, temos de sentir empatia pela planta de tabaco. Há milhares de anos tem sido venerada pelos Índios Americanos como um remédio sagrado. Eles sempre a usaram extensivamente, o suco, as folhas, as raízes, a fumaça sagrada, para cicatrizar feridas e curar doenças, e nas cerimônias de prece e de paz. E embora a planta que conhecemos esteja envenenada com produtos químicos e alterada pelo monocultivo intensivo, quase uma planta diferente, para alguns índios ela continua a ser considerada como algo de poder positivo. Aprendi isto quando meus amigos nativos americanos, Bill Wahpepah e sua família, passaram alguns dias comigo recentemente e a primeira coisa que ele fez foi plantar sementes de tabaco no meu jardim.

Talvez seja possível liberar o fumo daqueles que o capturaram e abusam dele, escravizando a planta em grandes plantações, privando-a da liberdade e das suas iguais, obrigando-a escravizar o mundo. Sua verdadeira natureza é eliminada, portanto não admira que se tenha tornado mortal. Talvez plantando algumas sementes de tabaco nos nossos quintais e tratando a planta com a reverência que ela merece, seja possível redimir a alma do tabaco e restaurar seu auto-respeito.

Além disso, para os fumantes, como deve ser desagradável saber que estão fumando um escravo.

Existe um slogan de um abrigo feminino que me agrada muito: “A paz na terra começa em casa”. Acredito que tudo começa em casa. Imagino um slogan para as pessoas que tentam deixar de fumar: “Cada lar uma zona onde é proibido fumar”. Fumar é uma forma de se prejudicar, prejudicando também quem está perto, que ocasionalmente se queixa, dá conselhos, ou observa impotente. Compreendo agora que quando eu era criança eu me sentei, durante os anos, e literalmente observei meu pai enquanto ele se matava; sem dúvida, uma vitória dos ricos homens brancos donos das fábricas de cigarro é suficiente na minha família.

1987

1 Três meses depois de ler este ensaio minha filha deixou de fumar.

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